Atiq Rahimi Nossa Senhora do Nilo Trechos do poema “O convidado do espelho�
Atiq Rahimi adaptou para o cinema um dos romances mais conhecidos da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga: Nossa Senhora do Nilo (Editora Nós). O filme, que venceu o Urso de Cristal no Festival de Cinema de Berlim (2020), mostra a gênese do genocídio dos tútsis sob o ponto de vista de professoras e alunas de uma escola elitista na Ruanda. A fotografia é linda – nos convida a esticar a mão e tocar a superfície da água. Rahimi nunca havia adaptado uma obra de outro escritor e optou por contar uma história complementar ao romance. “Não fazia sentido repetir o que já tinha sido dito.” Foram seis meses em Ruanda, começando com o casting – o elenco é quase inteiramente composto por não atrizes, de origens tútsi e hutu (e muitas vezes as tútsis fazem o papel de hutus, e vice-versa). A experiência rendeu livro: em L’Invité du miroir (O convidado do espelho), recém ‑publicado pela editora francesa P.O.L, o autor segura um espelho entre o seu país de mil montanhas, o Afeganistão, e o outro país de mil colinas, Ruanda. “A obsessão de me enxergar no espelho do Outro muda o sentido da travessia na qual me lanço”,
escreve. Organizado como um grande poema, na cena inicial, uma diva caminha à beira de um lago, e conversa com a humanidade, dez anos após o genocídio nos tútsis. Poemas adaptados do livro percorrem todo o filme, em kinyarwanda, pela voz da cantora ruandesa Florida Uwera. Como se diz em sua língua natal: “SIJYE WAHERA HAHERA UMUGANI”. Que não seja o fim, mas apenas o fim desta história.
Nossa Senhora do Nilo Trechos do poema “O convidado do espelho” (P.O.L, 2020) de Atiq Rahimi Tradução de Jennifer Queen
Vovó me dizia que, quando morresse, Seu espírito se retiraria nos vulcões, sua memória se dissolveria nas águas do lago. Eu ouço sua voz. A terra está cansada. Cansada sob os sapatos desses homens brancos que só fazem se perder buscando a inocência esquecida. Foi assim que conquistaram o mundo… Perdendo-se! Passaram ali, onde se ouvia o riso de uma criança – sopro da paz. E a canção de ninar de uma mulher – canto da dignidade.
Também passaram, os exploradores brancos perdidos, pelo país de mil e uma colinas... Mas, em sua arrogância, pisotearam a inocência dos vales e picos. Até o coração de cada criança. Nos lábios de cada mulher. Gravando-a na pele de cada homem. Vocês se perguntam, sem dúvida, se aqui reencontraram a inocência. Mas, silêncio! Ouço alguma coisa. Vocês não? A desolação está chegando. Venham! Venham comigo! Eu vou levá-los aonde viviam outrora os corações sinceros… Quem tem medo do sangue? Os deuses? Os homens? Os dois, vocês me teriam me dito. Mas por quê, diabos, uns exigem o sacrifício e outros o executam? Não sabem que o sangue desfruta da inocência? Sem dúvida é por isso que o derramam, perdem ‑no… sem cessar.
Eles temem a inocência do sangue. Ou o sangue da inocência. E, de seus temores, fizeram nascer o sagrado. Sim, a inocência, eles a sacramentaram aqui, no país de mil e uma colinas. Mas somente para sacrificá-la. E eles derramaram sangue. Ainda mais sangue. Como para tingir de escarlate seus rostos brancos, brancos de medo… Mas de onde vêm nossas lágrimas? Por que afligem nossos rostos? Alguns dizem que são a seiva de nossos sofrimentos Diante do sacrífico de nossas crianças. Elas escondem nossos olhos para não vê-las compartilharem sua carne e seu ódio, em vez de partilharem pão e açúcar Como nos tempos de outrora. Outros dizem que nossas lágrimas são as águas da inocência para limpar a terra das mil e uma colinas, Do sangue que o deus da miséria derramou em sua inominável vingança.
Os deuses, depois de terem afastado as mil e uma colinas, Arrancaram, nesses vales As águas da terra O dia da noite O corpo do espírito A dignidade da riqueza A esperança da miséria… Depois, partiram, Deixando os exploradores brancos – sempre errantes na busca de sua inocência esquecida –, Sacramentar a riqueza, dando-lhe raízes, E a miséria, dando-lhe sangue. Eles também pediram a alguns que se vingassem E a outros, que fugissem, escondendo no fundo de suas bolsas as brasas do fratricídio. E voltar pouco depois, carregando o fogo do genocídio.
Jennifer Queen é jornalista com MBA em marketing digital, e tradutora. Para a Estação Liberdade, traduziu Os carregadores de água, de Atiq Rahimi (no prelo).
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