"Peregrinos do sol", de Luiz Kobayashi

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PEREGRINOS DO SOL



Luiz Kobayashi

PEREGRINOS DO SOL A arte da espada samurai


© Luiz Kobayashi, 2010 Preparação Camila Werner Revisão Nair Kayo Editor-adjunto Leandro Rodrigues Projeto gráfico e capa Silvana Panzoldo Imagem de capa O samurai Kataoku Dengoyemon Takafusa. Utagawa Kuniyoshi [1797-1861]. © Akg-Images/Latinstock Editores responsáveis Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ K79p Kobayashi, Luiz, 1979 Peregrinos do Sol : a arte da espada samurai / Luiz O. M. Kobayashi ; [prefácio de Toshihiko Tsutsumi]. - São Paulo : Estação Liberdade, 2010. il.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7448-192-0

1. Esgrima - História. 2. Samurais - Japão - História. 3. Kendô. 4. Esgrima - Brasil - História. I. Título. II. Título: A arte da espada samurai. 10-5162.

CDD: 796.86 CDU: 796.86

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 | 01155-030 | São Paulo-SP Tel.: (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br



Este livro é uma homenagem a Midori Kobayashi (1891-1961), fundador e mestre da primeira academia de arte da espada japonesa no Brasil, em 1926, e Akira Tsukimoto (1928-2001), mestre do estilo Shintô-ryû iaijutsu.

Este livro é dedicado a todos aqueles que praticam ou têm interesse pela arte tradicional da espada japonesa.


Agradecimentos

De início, agradeço Àquele que não possui Nome, mas que recebe vários nomes. Agradeço aos meus pais por absolutamente tudo o que sou e o que tenho. Agradeço à Suprema Mestra Ching Hai por ela ser o que ela é. Agradeço a todos os senseis da Confederação Brasileira de Kendô. Agradeço ao sensei Tsukimoto e aos seus alunos. Agradeço à sensei Matsunaga e à sensei Kato. Agradeço ao sensei Kanno e a Kaneko, Usui, Satô e Nemoto. Agradeço ao sensei Naganuma e aos senseis Koyama, Suzuki, Suzuka, Ôtsuka, Hoshi, Yumida e Gotô. Agradeço ao sensei Yoshinari e a Yoshida. Agradeço à sensei Ogikubo. Agradeço a todos os mestres que compartilharam comigo os seus conhecimentos e visões.



Sumário

Prefácio, Toshihiko Tsutsumi

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Nota ao leitor 19 1. Mitos e lendas 25 Contexto histórico 27 Era Yayoi (c. séc. III a.C.–c. séc. III d.C.) 27 Era Kofun (c. séc. III–séc. VI) 29 Era Asuka (séc. VI‑710) 32 Era Nara (710-794) 34 Era Heian (794-1185) 36 Era Kamakura (1192-1336) 42 Os deuses da arte da espada japonesa 46 Take‑Mikazuchi‑no‑Kami 47 Futsu‑Nushi‑no‑Kami 48 Marishiten 48 O desenvolvimento da espada japonesa 49 As espadas lendárias 49 A evolução das espadas japonesas 52 O desenvolvimento das técnicas de esgrima 56 Kashima‑no‑Tachi 59 Kiichi Hôgen‑ryû (Kiichi‑ryû) 60 Os Sete Estilos de Kantô, Os Oito Estilos de Kyoto 61 2. Os primórdios 65 Contexto histórico 67 Era Muromachi (1336-1573) 67 Era Azuchi Momoyama (1573-1603) 72 A evolução da arte da espada japonesa 76 Kaisha Kenpô e Suhada Kenpô 81 De Tachi para Uchigatana 82 Os primeiros estilos 84 O surgimento do Ittô‑ryû 86 Nen‑ryû 86 Chûjô‑ryû 88

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Toda‑ryû 89 Ittô‑ryû 93 O surgimento do Shintô‑ryû 96 Tenshinshôden Katori Shintô‑ryû 96 O surgimento do Shinkage‑ryû 97 Kage‑no‑nagare 97 Kashima Shin‑ryû (Shinkage‑ryû) 99 Shinkage‑ryû 99 As primeiras ramificações 103 Kashima Shintô‑ryû 103 Tendô‑ryû 110 Iaijutsu ou battôjutsu – técnicas de saque 113 Shin Musô Hayashizaki‑ryû 114 Tamiya‑ryû 115 Hôki‑ryû 117 (Hasegawa) Eishin‑ryû 118 3. O apogeu da esgrima 123 Contexto histórico 125 A evolução dos estilos 133 As mudanças na esgrima japonesa 138 Para a unificação da esgrima japonesa 144 Os estilos derivados do Shinkage‑ryû 149 Yagyû Shinkage‑ryû 149 Taisha‑ryû 160 Hikida Kage‑ryû 164 Jiki Shinkage‑ryû 164 Mujû Shinken‑ryû 166 Shintô Munen‑ryû 172 Estilos derivados do Ittô‑ryû 173 Ono‑ha Ittô‑ryû 174 Tadanari‑ha (Chûya‑ha) Ittô‑ryû 180 Mizoguchi‑ha Ittô‑ryû 181 Nakanishi‑ha Ittô‑ryû 183 Yuishin Ittô‑ryû 184 Mugai‑ryû 184 Hokushin Ittô‑ryû 187 Kôgen Ittô‑ryû 191 Tenshin Shirai‑ryû 192 Estilos derivados do Shintô‑ryû 200 Jigen‑ryû 200 12


Shintô Musô‑ryû 202 Musô Gan‑ryû 205 Tennen Rishin‑ryû 207 Outros estilos 209 Niten Ichi‑ryû 209 Maniwa Nen‑ryû 219 Shingyôtô‑ryû 224 Kyôshin Meichi‑ryû 227 Mugan‑ryû 228 Seia‑ryû 230 4. Declínio e ressurgimento 237 Contexto histórico 239 A proibição da espada e o desaparecimento da esgrima 247 Ittô Shôden Mutô‑ryû 252 Kenbu 258 A revitalização da esgrima japonesa 262 A prática na Polícia Metropolitana de Tóquio 263 A fundação da Dai Nippon Butokukai 273 A adoção do kendô no sistema educacional japonês 282 O kendô e a Segunda Guerra Mundial 287 5. A arte marcial e o esporte 295 Contexto histórico 297 A proibição e o ressurgimento do kendô 301 A popularização do kendô 307 Seitei Iaidô 312 Seitei Jôdô 314 Outras organizações 316 Os estilos antigos nos dias de hoje 318 6. O kendô e o kenjutsu no Brasil 325 Contexto histórico 328 O início da imigração 328 A imigração e a integração no pós‑guerra 329 A inversão do movimento migratório e o panorama atual 330 O kendô e kenjutsu no Brasil antes da Segunda Guerra Mundial 331 O panorama após a Segunda Guerra Mundial 338 Glossário 343 Bibliografia 349 Sobre o autor 355

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Prefácio É muito oportuna a publicação de Peregrinos do Sol, a compilação da história da tradicional arte da espada japonesa feita por Luiz Kobayashi. Este livro é resultado de uma ampla e profunda pesquisa realizada pelo autor e acredito que seja um tomo extremamente valioso, indo ao encontro da sede de saber, não apenas dos amantes das artes marciais japonesas, mas também de todos os interessados por cultura japonesa, em particular pela cultura samurai. Não só no Brasil, mas fora do Japão de modo geral, a bibliografia existente sobre o tema é extremamente exígua, existindo uma grande demanda por uma obra como esta, que se baseia em fontes históricas e academicamente reconhecidas para apresentar e esclarecer os pontos fundamentais da evolução da arte da espada japonesa. Esta é, portanto, uma obra de grande importância para saciar o interesse de todos — praticantes ou não — pelas artes marciais. Isso porque, ao utilizar a língua portuguesa, ele traz do Japão para o leitor, de forma clara e acessível, os conhecimentos sobre as linhagens e tradições dos samurais, revelando de forma detalhada as origens e a evolução da arte e de suas escolas, situando-as no contexto histórico do Japão. Pude amealhar um bom conhecimento sobre o tema deste livro, graças ao acesso que tive a muitos escritos e documentos, bem como a inúmeros mestres de estilos antigos de artes marciais tradicionais japonesas. Entretanto, acredito que seja realmente muito raro se deparar, especialmente fora do Japão, com uma fonte de conhecimento equivalente a esta obra, que se propõe a aglutinar de forma tão abrangente a evolução da cultura marcial, notadamente a arte da espada japonesa, desde os primórdios na Antiguidade até os dias atuais.

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Deve-se ressaltar mais uma vez a extensa pesquisa que respalda este livro, que traz também nomes e termos em consonância com a pronúncia japonesa, o que por si só já permite aprofundar o interesse e o entendimento acerca da cultura samurai. Esse interesse manifestado por pessoas do mundo inteiro sobre a vida, as visões e a mentalidade dos guerreiros japoneses é algo que sempre atrai minha atenção. A história nos conta que, por volta dos séculos X e XI, surgiram grupos de guerreiros peritos em luta com espadas. Foi nessa época que surgiram os primeiros nomes de técnicas e, em registros dos séculos subsequentes, é possível ver nomes que evocam golpes extremamente fortes e intensos, utilizados amplamente no campo de batalha. Afirma-se que, em meados do século XIX, havia mais de setecentas escolas no Japão, mas este livro mostra que é possível rastrear suas origens até alguns poucos estilos fundamentais, que possuíam dois importantes pontos em comum: o primeiro foi a presença de um fundador altamente capaz e habilidoso; e o segundo foi a existência de técnicas e conceitos deveras sofisticados que justificassem a existência e a continuidade do estilo. Dentro desta obra, há uma divisão bem organizada dos nomes e estilos dos samurais que foram os grandes baluartes de sua época e creio que isso será de muita valia ao leitor, pois permite vislumbrar de maneira correta as origens da tradicional arte marcial da espada japonesa. No início, não havia uma separação entre as artes marciais, que constituíam um grande conjunto de formas de combate desenvolvidas a partir de necessidades reais na guerra. Com o passar do tempo, a estruturação das técnicas e do ensino propiciou a especialização em uma determinada forma. Isso influenciou outras artes, como o teatro nô, a cerimônia do chá, os arranjos florais e a música, que também foram sistematizados em estilos. Tudo isso serviu como pano de fundo para a educação do guerreiro japonês, cujo modus vivendi era pautado por elevados valores morais. E a presença de tais valores nos treinamentos de artes marciais japonesas, mesmo nos dias atuais, é, em minha análise, o que desperta ainda hoje um grande interesse no mundo todo pelo modo de vida samurai. Além disso, faço sinceros votos para que os atuais praticantes da arte da espada japonesa — e os praticantes de artes marciais em um sentido

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P R E FÁ C I O

mais amplo — utilizem os textos, biografias e linhagens constantes neste livro para extrair conhecimentos e inspirações que norteiem seu treina­mento e pesquisa, subindo mais um degrau no caminho do aprimoramento. Creio também que Peregrinos do Sol tenha um grande valor didá­tico, servindo de providencial ajuda para que se possa retornar às origens e relembrar, nos momentos de dúvida ou estagnação, o significado e a essên­ cia das artes marciais. Convido o leitor a redescobrir dentro de si, por meio desta obra, a verdadeira natureza do caminho do guerreiro, bem como a fonte de seu interesse pelo samurai e pelas artes marciais tradicionais japonesas. Por fim, gostaria de encerrar com uma palavra que aprecio muito: Mushin — a “não-mente” — o estado de espírito que Takuan, o mestre zen de Yagyû Tajima-no-kami Munenori, fundador da ramificação de Edo do estilo Yagyû Shinkage-ryû no século XVI, buscou durante sua vida inteira, fazendo do Mushin o fecho deste prefácio e a minha palavra de congratulação ao autor. Toshihiko Tsutsumi 1

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Toshihiko Tsutsumi é natural da província de Kumamoto, no Japão, e reside há sete anos no Rio de Janeiro. Praticante de Kendô e Iaidô, é vice-presidente da Confederação Brasileira de Kendô.

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Nota ao leitor Para melhor aproveitamento deste livro, alguns pontos devem ser esclarecidos.  1. Ele está dividido em partes de acordo com os períodos históricos. Cada uma delas começa com o contexto histórico da época e, a seguir, o tema do livro é abordado. A última parte em particular apresenta um pequeno resumo da história da arte da espada (esgrima) japonesa no Brasil.   2. Este livro não é, nem pretende ser, a obra definitiva sobre a arte da espada japonesa. A intenção é que ele seja um ponto de partida e possa munir o leitor de conhecimentos básicos que o ajudem a compreender a evolução da arte, a buscar outras fontes de conhecimento e a analisá‑las de forma crítica de forma a enriquecer sua instrução.   3. Todas as informações contidas neste livro foram extraídas de fontes elaboradas por especialistas ou foram diretamente obtidas a partir de registros históricos. No final, há uma lista das obras básicas utilizadas como referência. Deve‑se ressaltar que a bibliografia é composta exclusivamente por obras japonesas e registros da colônia japonesa no Brasil.   4. Todas as traduções apresentadas não são oficiais e foram feitas de modo a ficarem próximas o quanto possível do sentido original dos textos. Em em alguns casos, elas são propositalmente literais ou até mesmo se optou por não traduzir os conceitos descritos.   5. Alguns textos trazem descrições de técnicas, outros, ensinamentos de estilos. Tais textos são de caráter meramente ilustrativo e o autor não se responsabiliza por quaisquer consequências de seu uso. 19


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6. Dado o gigantesco número de estilos que existiram e o número limitado de páginas desta obra, seria impossível enumerar, apresentar e discorrer sobre todos eles. Sendo assim, apenas os três principais estilos são apresentados, bem como algumas de suas ramificações mais imediatas. Todavia, não há intenção de diminuir a importância daqueles que não foram citados.   7. A arte da espada japonesa recebeu muitos nomes diferentes ao longo da história. Por esse motivo, neste livro se optou por utilizar a terminologia pertinente à época a que o texto se refere. Por conveniência, em alguns momentos os termos kenjutsu e kendô foram diferenciados. Kenjutsu se refere aos estilos e práticas mais antigas (anteriores a 1867) da espada japonesa, enquanto kendô se refere às práticas mais atuais da arte. Entretanto, o leitor mais arguto certamente irá perceber que os dois termos possuem essencialmente o mesmo significado: arte da espada (esgrima) japonesa.   8. Adotou‑se a convenção japonesa de escrever o nome das pessoas na ordem sobrenome-nome. Assim, “Miyamoto Musashi” significa que Miyamoto é o sobrenome e Musashi é o nome. Mas, para nomes ocidentais, utilizou‑se a ordem nome-sobrenome.   9. Os topônimos são usados de acordo com o período histórico. Por exemplo, a cidade de Tóquio chama‑se Edo até 1868 e, assim, ambos os nomes podem ser encontrados neste livro. Uma lista no final da obra ajuda a localizar outras cidades, regiões e feudos mencionados na divisão política japonesa atual. 10. Por fim, utilizou‑se basicamente a notação Hepburn para a transcrição das palavras japonesas — aqui, preferiu‑se o uso do acento circunflexo para denotar o prolongamento das vogais. A pronúncia dos fonemas deve ser feita da seguinte forma: • “s” sempre tem o som de “ss”. Por exemplo, “Usa” é pronunciado como “Ussa”. • “j” sempre tem o som de “dj”, como na palavra inglesa jacket. • “ch” é pronunciado como “tch”, como na palavra inglesa patch. • “h” é pronunciado como um “r” aspirado, como na palavra inglesa home. 20


N O TA A O L E I T O R

• “r” é sempre pronunciado como o “r” em “cara”, mesmo quando estiver no início da palavra. • “w” tem pronúncia semelhante a “u”, como na palavra inglesa water. • “ge” é sempre pronunciado como “gue”. Por exemplo, “sageo” é pronunciado como “sagueo”. • “gi” é sempre pronunciado como “gui”. Por exemplo, “giri” é pronunciado como “guiri”. • o acento circunflexo sobre uma vogal significa que ela deve ser prolongada. Por exemplo, “tôma” é pronunciado como “tooma”. L. K.

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1 Mitos e lendas


DA ANTIGUIDADE À ERA KAMAKURA (10.000 a.C.– c. 1333) • • • • • • •

os mitos e lendas sobre a espada japonesa a evolução da espada japonesa o surgimento de espadas e técnicas Tachikaki, Tachiuchi, Heihô e Kashima‑no‑tachi os Sete Estilos de Kantô e Os Oito Estilos de Kyôto contexto histórico era Jômon (10.000 a.C.– c. séc. III a.C.)


Contexto histórico O arquipélago japonês passou a ser habitado por seres humanos durante a última era glacial, quando uma espessa camada de gelo ligou o Japão ao continente e permitiu a travessia a pé. Assim como em outros lugares do mundo, os primeiros vestígios de presença humana no Japão são instrumentos feitos de pedra lascada, pedra polida e osso, bem como restos de palhoças erguidas para moradia, chamadas de tateana‑shiki jûkyo. O desenvolvimento da cerâmica foi um divisor de águas e marcou a transição de sociedades baseadas na caça e pesca para uma sociedade baseada na agricultura. No caso do Japão, os objetos de cerâmica desse período possuem como característica marcante a presença de padrões em forma de cordas, o que foi chamado de code marked pottery por Edward Moore. Em japonês, esses padrões são chamados de jômon e dão nome a este período histórico. Nessa época, começaram a se formar pequenos núcleos de povoamento, chamados de mura, a partir da região de Kyûshû, no sudoeste do arquipélago japonês. Sítios arqueológicos dessa época mostram concentrações de palhoças, bem como de objetos de cerâmica e instrumentos como machados, flechas, facas, arcos, dardos e lanças. Era Yayoi (c. séc. III a.C.– c. séc. III d.C.)

A divisão entre as eras Jômon e Yayoi não é muito clara e causa divergências entre os estudiosos. Mas se pode dizer que, durante a Era Yayoi, a 27


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agricultura realmente se disseminou e assumiu importância central na subsistência dos homens do arquipélago japonês, com o início do cultivo do arroz. Isso fez com que os núcleos de povoamento crescessem cada vez mais e, por consequência, a hierarquia surgisse entre as pessoas. Os núcleos também passaram a se aglutinar, formando diversos pequenos “países”, compostos por vários “vilarejos”. A expansão populacional se deu principalmente em duas regiões: no sudoeste, na região de Kyûshû, e no centro‑oeste, na região de Kinki. Ao mesmo tempo, existiam outros povos vivendo na região nordeste e no extremo sul do Japão. Outro marco do desenvolvimento da civilização nipônica foi o surgimento da metalurgia. Não está claro quando exatamente ela passou a existir no Japão, mas foi nesse período histórico que os rudimentares instrumentos feitos de pedra e osso foram substituídos por instrumentos de bronze e ferro. Essa tecnologia foi importada por meio do intercâmbio feito com o continente através da península da Coreia. Uma das maiores provas materiais dessa troca é um selo chinês de ouro, descoberto no Japão e datado de 57 d.C., cuja existência está registrada em um documento chinês da época. Nesse registro, há referência a um “país de Na”, que se situava no Japão. Não se conhecem os detalhes do panorama político japonês do período, mas se acredita que inúmeros países coexistiam no arquipélago, até que um deles passou a incorporar os outros, dando início ao processo de formação de um país único. Esse país foi chamado de Yamatai‑koku e era liderado por uma sacerdotisa chamada Himiko. Registros chineses situam a existência desse país entre os séculos II e III. É interessante notar que muitas lendas japonesas são ambientadas aproximadamente nessa época. Os dois principais registros da história antiga do Japão — o Kojiki e o Nihon Shoki — situam a criação do Japão em uma época que é geralmente aceita como sendo por volta de 660 a.C., ou o ano 1 da Era Imperial Japonesa. No entanto, recentes estudos multidisciplinares apontam evidências de que tal época é na rea­ lidade mais recente. 28


MITOS E LENDAS

Esse assunto ainda é objeto de muita controvérsia e, ao mesmo tempo, é fascinante não apenas pela riqueza das lendas, mas também pela combinação de prováveis fatos históricos transmitidos oralmente com elementos mitológicos frutos da influência de diversas culturas e costumes da época. Os dois registros, juntamente com os relatos regionais, em particular os da terra de Izumo,1 ainda hoje oferecem um campo extremamente amplo para pesquisas. Era Kofun (c. séc. III– séc. VI)

A Era Kofun presenciou o surgimento do império Yamato (Yamato Chôtei) no século IV, na região de Yamato, atual província de Nara. A partir desse império, comandado pelos antepassados da atual família imperial japonesa, ocorreu a posterior unificação do arquipélago japonês para a formação da nação japonesa. Não é clara a relação entre o império Yamato, chamado de “país de Wa” nos registros chineses, e o país de Yamatai‑koku. Existem evidências de que o império Yamato seria o sucessor natural de Yamatai‑koku, mas ainda não há nenhuma prova arqueológica conclusiva que preencha esta lacuna histórica de modo convincente. Uma característica marcante dessa era foi o surgimento de túmulos dos gôzoku, clãs familiares poderosos. Para demonstrar o seu poderio, eles construíram grandes túmulos, chamados de kofun, de variados formatos, sendo que no seu auge, durante o século V, o formato se assemelhava ao de uma fechadura invertida. O clã familiar mais poderoso de Yamato era, obviamente, a família imperial japonesa. Estima‑se que o Imperador Ôjin, 15º imperador do Japão, viveu nessa época. Ele é o primeiro imperador cuja existência é amplamente aceita pelos historiadores.2 No século V, surgiu o sistema de Shisei Seido, que estabeleceu uma hierarquia entre os diversos clãs existentes e trouxe maior estabilidade política e social para o império. Os clãs mais poderosos, chamados de uji, possuíam uma relação mais próxima com o imperador e controlavam os É um local muito relevante para as lendas japonesas. O atual imperador, Akihito, é o 125º imperador e descendente direto deste clã.

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clãs mais fracos, denominados be. Dentro do sistema criado, os clãs eram também divididos de acordo com quatro títulos, chamados de kabane: Omi, Muraji, Kimi e Atai. Em particular, apenas as famílias mais poderosas e tradicionais podiam ser Omi ou Muraji. Dentro do escopo deste livro, vale a pena ressaltar os clãs Ôtomo e Mononobe. Os dois eram Muraji3 e especialistas em assuntos militares. De modo geral, o clã Ôtomo era responsável pela guarda imperial e os Mononobe cuidavam da segurança interna e das expedições militares contra os outros povos que habitavam o arquipélago. Especialmente os povos Kumaso, residentes ao sul da região de Kyûshû, e os Ezo (também chamados de Ebisu ou Emishi), residentes ao norte do Japão, eram uma ameaça ao império Yamato. Os Ezo só seriam completamente derrotados e incorporados ao império tempos depois. As lendas e histórias relativas aos Ôtomo e Mononobe são bastante interessantes, mas seria impossível fazer uma apresentação detalhada de tais relatos aqui. Todavia, vale notar que os poemas relativos aos Ôtomo comprovam a existência de códigos de conduta e de atitudes que os guerreiros japoneses deviam seguir já naquele período. Não se sabe exatamente se tais códigos possuíam um nome, mas textos do século VIII atribuem nomes como Kyûba no michi (“caminho do arco e do cavalo”) ou Yumi‑ya no michi (“caminho do arco e da flecha”) ao con­ junto de códigos que hoje se conhece por Bushidô (“caminho do guerreiro”).4 Com relação aos Mononobe, o próprio nome do clã já é bastante intrigante, uma vez que pode ser interpretado como Mono‑no‑be, cuja possível tradução seria “clã dos guerreiros”, entre outras alternativas.5 Deve‑se notar também a semelhança entre o nome Mononobe e a palavra japonesa mononofu, que significa “guerreiro”, “homem de valor”. Posteriormente receberam um status mais alto, de Ô‑Muraji, e passaram a responder diretamente ao imperador.  4 Não existia e nunca existiu um código único para a conduta dos guerreiros. A conduta variava de acordo com o clã ou feudo, a região geográfica e a época. É um equívoco acreditar que haveria um código único chamado bushidô que ditaria o comporta­ mento dos guerreiros.  5 Mono pode significar “arma”, “guerreiro” e até mesmo “espírito”, dependendo da interpretação. O clã Mononobe, além de ter um lado bélico, também era responsável por muitos ritos esotéricos.  3

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MITOS E LENDAS

O poder dos dois clãs teve uma duração relativamente curta. Os Ôtomo perderam o poder após a deposição de Ôtomo‑no‑Kanamura, em 512, por suspeitas de suborno, que levaram o império de Yamato a perder influência na península coreana. Os Mononobe foram política e militarmente derrotados anos mais tarde pelo clã Soga. Um acontecimento fundamental para o desenvolvimento do império Yamato foram as imigrações coreana e chinesa a partir do século IV. Chamados de torai‑jin ou kika‑jin, elas propiciaram uma evolução acentuada no artesanato e na manufatura, além de terem trazido inúmeras influências culturais do continente. Dentre essas, deve‑se ressaltar três em particular: a introdução do confucionismo, da escrita chinesa e do budismo. Dizem que foi um homem chamado Wa Ni6 quem levou pela primeira vez os analectos ao Japão. As ideias de Confúcio se tornaram uma forte influência cultural e sociopolítica, sendo perceptíveis também em documentos sobre as artes marciais tradicionais japonesas. A introdução da escrita chinesa, com o uso de ideogramas, possibilitou a compilação de registros e tradições que, até então, só eram transmitidos oralmente.7 É crucial ressaltar, entretanto, que os japoneses adotaram a escrita chinesa de duas formas. A primeira é o uso da escrita chinesa levando em consideração o significado dos ideogramas e as estruturas gramatical e sintática chinesas. A segunda forma é o uso dos ideogramas para representar a pronúncia das palavras. Comumente chamados de ateji, os ideogramas nesse caso possuem uma função meramente fonética.8 Assim, para a correta compreensão dos textos japoneses, primeiro é preciso definir se os ideogramas escritos devem ser interpretados de acordo com o seu significado ou de acordo com a sua pronúncia japonesa. Wang ren, em romanização da pronúncia chinesa. Existem documentos que supostamente contêm a antiga escrita japonesa, chamada de Kamiyomoji, que teria sido criada antes da introdução da escrita chinesa. São formas geométricas predominantemente curvilíneas que em nada se assemelham à escrita chinesa. Há outras formas que são extremamente similares ao alfabeto coreano ou remetem até mesmo ao alfabeto devanagari.  8 No caso de textos bastante antigos, é comum utilizar o termo Man’yô‑gana, em referência à antologia poética Man’yô‑shû. É interessante notar que, a partir dos ideogramas escolhidos, é possível estimar aproximadamente a época em que o texto foi escrito.  6  7

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A terceira grande influência dos imigrantes foi a introdução do budismo, que ocorreu oficialmente em 538, com o envio de estátuas e textos budistas pelo rei de Kudara (Baekje, em coreano), um reino da península coreana. Praticado pelos imigrantes coreanos, inicialmente o budismo se popularizou no Japão mais por causa do apelo estético de suas construções, seu artesanato e sua música do que por seu conteúdo filosófico‑religioso. Entretanto, o budismo também foi o estopim de uma guerra política entre os clãs mais poderosos, uma vez que os Soga eram favoráveis à adoção do budismo por parte da família imperial, enquanto que os clãs Nakatomi e Mononobe eram contra e defendiam a manutenção dos ritos existentes. Esse conflito, mais do que um confronto religioso, foi uma disputa de influências na casa imperial, que levou a uma guerra pelo poder. Era Asuka (séc. VI– 710)

A introdução do budismo, em 538, é um dos marcos da transição para a Era Asuka e seu início se confunde com o fim da Era Kofun. Nesse período, o império Yamato perdeu sua influência na península coreana, com a extinção do reino de Mimana. Por outro lado, o seu poderio já era sentido na maior parte do arquipélago japonês, desde a região de Kumamoto, a sudoeste, até a região de Tóquio e Gunma, na região centro‑oriental. Em termos políticos, o clã Soga ganhou um poder considerável por meio de casamentos com membros da família imperial, ao mesmo tempo em que obtia cargos essenciais no governo, como postos relativos às finanças e às relações exteriores. Esse acúmulo de poder levou a uma guerra contra os Mononobe, em 587, na qual os Soga se sagraram vencedores. Eles assumiram de fato o poder no Japão e transformaram a família imperial em uma figura simbólica. Em uma luta política para recuperar o poder, o Imperador Suiko,9 a primeira mulher a assumir o trono,10 realizou manobras para proteger Apesar de ser chamado de Imperador (Tennô), Suiko foi uma mulher. Não se utiliza o termo Imperatriz (Kôgô), pois essa palavra implica ser esposa do Imperador, o que não foi o caso de Suiko. 10 Suiko não foi a primeira estadista da história japonesa. Antes dela, Himiko governou Yamatai‑koku, a Imperatriz Jingû (esposa do Imperador Chûai) supostamente  9

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MITOS E LENDAS

a família imperial, ao mesmo tempo em que agia de forma diplomática com relação aos Soga. Foi assim que Shôtoku Taishi (574‑621), sobrinho do Imperador Suiko, pôde tomar as rédeas do império e se tornar um dos maiores estadistas japoneses da história. Shôtoku Taishi, chamado de Umayado‑no‑Ôji ou Toyotomimi‑no­-Ôji, se tornou chefe político aos vinte anos de idade e, tendo como conselheiro o monge Eji, iniciou uma série de reformas. No campo externo, ele selou a paz com os reinos da península coreana. Ao mesmo tempo, a partir do século VII, iniciou o envio de emissários à China, que vivia a dinastia Sui, estabelecendo pela primeira vez laços diplomáticos entre o Japão e a China. Até então, a China sempre considerara o Japão como uma região submissa a ela. Além disso, é a partir do ano 607 que se começa a utilizar o termo “Japão” (Nihon) ao invés de “Wa”. Em uma carta levada pelo emissário de Shôtoku Taishi, a China é chamada de “Terra do Sol Poente” em oposição ao Japão, chamado de “Terra do Sol Nascente” (Nihon). No que diz respeito à política interna, Shôtoku Taishi tomou duas medidas revolucionárias para a época. A primeira foi a criação de uma hierarquia baseada nos méritos da pessoa, rompendo com o costume vigente de classificar apenas as famílias e não os indivíduos. A segunda foi a reda­ção do primeiro código de leis fundamentais do Japão, que estabeleceu diretrizes que todos deviam seguir. Essas duas medidas foram tentativas de estabelecer de forma clara a superioridade e a unicidade do imperador, bem como de reduzir as disputas existentes entre os dife­ rentes clãs. A morte de Shôtoku Taishi levou a uma interrupção momentânea das reformas, e os Soga voltaram a assumir o poder. Entretanto, os dois homens mais importantes do clã, Soga‑no‑Iruka e Soga‑no‑Emishi, foram eliminados por meio de um plano arquitetado pelo príncipe Naka‑no‑Ôe‑no‑Ôji e por Nakatomi (Fujiwara)‑no‑Kamatari, o que marcou o declínio dos Soga e a ascenção dos Fujiwara.

comandou homens em guerras na península coreana, e Iitoyo‑Ao‑no‑Himemiko chegou a assumir o poder de maneira temporária.

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LUIZ KOBAYASHI, praticante de kendô, iaidô, kenjutsu, iaijutsu, bôjutsu, kenbu e shibu, e filiado à Nihon Kobudô Shinkôkai, organização de preservação das artes marciais tradicionais japonesas, recebeu instruções diretamente de renomados mestres dessa arte no Brasil e no Japão, e durante anos compilou material — parte dele, extremamente raro — para a elaboração do livro que ora chega a nossos leitores.

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9 788574 481920

ISBN 978-85-7448-192-0

Prefácio de Toshihiko Tsutsumi

NATANAEL

Luiz Kobayashi A ARTE DA ESPADA SAMURAI

estudo sobre a história e as técnicas de kenjutsu/kendô, a arte da espada samurai, desde suas origens longínquas no Japão até os dias atuais, dasaguando na trajetória da arte da esgrima japonesa em solo brasileiro.

PEREGRINOS DO SOL A ARTE DA

ESPADA SAMURAI

Existe atualmente uma aura mítica em torno

do samurai. Ele é o grande herói de mangás, animês, filmes e novelas que chegam de roldão ao imaginário de jovens (ou não muito jovens) brasileiros. Com sua habilidade no manejo da espada, o samurai vence (quase sempre) o mal para a redenção do bem. Uma ilustração típica pode ser encontrada na história de Miyamoto Musashi, o grande espadachim imortalizado em inúmeros romances, filmes e mangás. No Brasil, o sucesso de vendas do livro a respeito do personagem, de autoria de Eiji Yoshikawa e traduzido para o português por Leiko Gotoda, atesta bem a aceitação do mito do samurai herói. O estilo de duas espadas utilizado por Musashi tornou-se para alguns leigos o supra-sumo das técnicas de esgrima, capaz de vencer qualquer duelo. Porém, até que ponto essa e outras histórias re­ fletem a realidade? Infelizmente, muito pouco. Muitos erros, conhecimentos falsos e crenças equivocadas pululam nesse cenário mítico. Enquanto se estiver no terreno do entretenimento, não há nada a que se opor. Ninguém consegue ficar exposto constantemente à dura e fria realidade. Necessita-se de uma válvula de escape. E, para isso, nada melhor do que imergir no sonho e na fantasia do mito do samurai e da espada redentora. Mas, a situação muda de figura quando alguém realmente quer se aprofundar no tema. Os mitos e técnicas de espadachins nascidos da fantasia muitas vezes acabam sendo um desserviço para o conhecimento da cultura japonesa.

www.estacaoliberdade.com.br

Shozo Motoyama Professor do Departamento de História da USP Presidente do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros

Elaborou-se para esta obra um aprofundado

PEREGRINOS DO SOL

Nesse sentido, saudamos o aparecimento do presente livro. Em estilo leve e despo­jado, o autor soube mesclar convenientemente os ensinamentos da esgrima com episódios (reais ou imaginários) dos mestres dessa arte e dos samurais. Mais ainda: ele conseguiu con­tex­tualizá-los na história nipônica. Para com­pletar, ofere­ ce-se um esboço histórico da evolu­ção (in­vo­ lução) de kenjutsu/kendô no Brasil, si­tuada no contexto da imigração japonesa no país. O autor conhece bem a arte do manejo da es­pada e quer disseminá-la na sociedade brasileira, utilizando seu domínio da língua japonesa e da portuguesa. Da junção dessas suas habilitações com o amor pela arte da esgrima nasceu uma bela introdução ao assunto. Estejam portanto convidados à leitura desta obra. Com certeza, não se arrependerão.

Luiz Kobayashi

NATANAEL

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Cortar Altura: 20 cm

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(cont.)

03/03/2017 10:05:18


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