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O desenvolvimento pela atividade independente
reconhecer que, mesmo se nenhum aspecto fosse negligenciado, as divergências de opinião não se apagariam todas por conta disso.
Alguns posicionamentos e conclusões de Maria Montessori se parecem mais com os de Pestalozzi, em seus momentos filosóficos, do que com a análise objetiva de um doutor em medicina. Mas é precisamente essa amplitude de visões que confere a muitos de seus escritos sua potencialidade profética, que, aliás, não é sempre sem ambiguidade e é o que explica sua grande popularidade no mundo inteiro, na Índia como na Europa. Sua influência era maior quando ela vinha pessoalmente, ministrava conferências e cursos, e encontrava um grupo de discípulos devotos, decididos a viver e manter viva a sua doutrina. (Schültz-Benesch, 1962, Böhm, 1991, p. 15)
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Percepção
Maria Montessori não apenas pôs em prática um método sistemático de desenvolvimento das faculdades perceptivas como também elaborou uma teoria da percepção que tem muitos pontos em comum com a abordagem de Pestalozzi. Assim, no que diz respeito ao material didático, ela notou que não é necessário que “a atenção das crianças seja retida por objetos quando começa o delicado fenômeno da abstração” (Montessori, 1976, p. 80). Ela queria que seu material didático fosse concebido de forma a permitir a situação concreta e imediata e a favorecer a abstração.
Se esses materiais não incentivam a generalização, correm o risco, com suas ‘armadilhas’, de amarrar a criança à terra. Se isso ocorre, a criança permanece ‘fechada no círculo vicioso de objetos inúteis’ [para favorecer a abstração]. Maria Montessori escreve:
No seu conjunto, o mundo repete mais ou menos os mesmos elementos. Se estudarmos, por exemplo, a vida das plantas ou dos insetos na natureza, temos uma ideia aproximada da vida das plantas ou dos insetos no mundo inteiro. Ninguém conhece todas as plantas. Mas basta ver um pinheiro para conseguir imaginar como vivem todos os pinheiros. (Montessori, 1976, p. 80)
Na mesma ordem de ideia, ela escreveu em outro lugar: “Quando encontramos um rio ou um lago, é necessário ver todos os rios e todos os lagos do mundo para saber o que é?”. Emitindo essa ideia e formulando-a como o faz, ela se mostra surpreendentemente próxima a Pestalozzi. Assim como ele, ela aconselha não negligenciar as formas de percepção direta.
Nenhuma descrição, nenhuma imagem de nenhum livro podem substituir a vista real das árvores em um bosque com toda a vida que acontece em volta delas. (Montessori, 1966, p.40)
A seu ver, é fundamental obter a “cooperação da atenção interior”. É por isso que se esforçava em estruturar a base motivacional do material didático de tal maneira que ele estivesse em contato com a esfera e a consciência da criança. Convém notar que Montessori explicava esse processo comparando-o a um ato de fé, processo aparente que, no entanto, se reproduz em outro nível: “Não basta [...] ver para crer; é necessário crer para ver”.
Escreveu igualmente mais adiante: “É em vão que se explica ou mesmo que se faz ver um fato, por mais extraordinário que ele seja, se não existe a fé. Não é a evidência, é a fé que faz penetrar a verdade” (Montessori, 1966, p. 216). Ela conseguiu incontestavelmente estabelecer um laço entre sua concepção de ciência e essa forma de fé, que é conhecimento interior e visão melhorada.
O desenvolvimento pela atividade independente
Um dos conceitos de base do sistema educativo de Maria Montessori é a “atividade independente”. “Um indivíduo é o que é, não por causa dos professores que ele teve, mas pelo que realizou, ele mesmo”. Em outro contexto, chegou até mesmo a introduzir a ideia de “autocriação”, que aplicava não somente à percepção sensorial e ao intelecto, mas também à coordenação de todos os aspectos humanos do desenvolvimento da personalidade.
Esse processo somente pode ser bem sucedido se desenvolvido na liberdade, a qual entende-se, anda junto com a disciplina e a responsabilidade. As crianças são dotadas de uma compreensão intuitiva das formas de plenitude pela atividade independente.
As crianças parecem ter a sensação de seu crescimento interior, a consciência das aquisições que fazem desenvolvendo-se a si mesmas. Elas manifestam exteriormente, por uma expressão de felicidade, o crescimento que se produziu nelas. (Montessori, 1976, p. 92)
Na maior parte dos exemplos que forneceu para ilustrar essa ideia, Montessori fala da grande satisfação manifestada pelas crianças pelo fato da plenitude que alcançaram de maneira independente. Conclui que “essa tomada de consciência sempre crescente favorece a maturidade. Se damos a uma criança o sentimento de seu valor, ela se sente livre e seu trabalho não lhe pesa mais” (Montessori, 1966, p. 40).
Considerada sob esse ângulo, a liberdade é aquilo a que é preciso primeiramente renunciar, e, então, reconquistar progressivamente para a realização de si. Sendo todos os indivíduos solidários, eles só podem, portanto, chegar à realização de si na independência. Esse processo é inteiramente consciente, e requer a mobilização de todas as faculdades do indivíduo, reforçando-as. Essa realização de si conduz no fim das contas à autoeducação, que é a verdadeira finalidade. A reflexão, a concentração meditativa, mas também um esforço intenso são indispensáveis para tentar resolver os problemas postos pelo material didático. Chegamos ao que Maria Montessori entendia por “espírito absorvente”, que consti-
tui, com o da “normalização”, em um dos conceitos fundamentais de seu sistema. Conforme a sua terminologia de inspiração médica, ela chamava as crianças de “embriões intelectuais”. Ressaltava com isso que, por um lado, as crianças estão engajadas em um processo de desenvolvimento, por outro, o desenvolvimento intelectual e o desenvolvimento físico são paralelos. As crianças são, desde o começo, seres dotados de inteligência. No entanto, durante o primeiro estágio de desenvolvimento, após o nascimento, o aspecto físico predomina, ainda que as necessidades fundamentais só possam ser satisfeitas se o ser intelectual que está na sua origem é reconhecido e aceito. “A criança vai então ser cuidada após o seu nascimento, considerada antes de tudo como um ser dotado de uma vida psíquica”. (Montessori, 1972, p.61)
A educação das crianças deve ser conduzida de maneira equilibrada desde o começo, caso contrário, as primeiras impressões produzem maneiras deformadas ou falseadas de compreensão, de expectativa, de comportamento, que depois se perpetuam.
Essas primeiras impressões não são somente gravadas permanentemente no espírito das crianças, resultam também no desenvolvimento de estruturas, de esquemas, em função dos quais todas as experiências posteriores são confrontadas e assimiladas. As crianças são desde o nascimento naturalmente abertas ao mundo. Por isso, elas correm constantemente o risco de se perder, diferentemente dos animais que têm um estoque de reações instintivas que lhes garante um desenvolvimento apropriado; por outro lado, os animais não são livres porque a liberdade não é um estado natural, mas uma condição a ser conquistada.
“O homem, diferentemente dos animais, não têm movimentos coordenados fixos; deve construir tudo sozinho” (Montessori, 1972, p. 67). Sob esse aspecto, podemos encontrar certa analogia entre as ideias de Maria Montessori e a antropologia moderna. Antropologia pedagógica (Milão, 1910) é a primeira obra que ela consagrou a esse tipo de questões. Quando ela fala da “vida psico-embrionária”, recorre a uma analogia com o “embrião físico” a fim de ressaltar que o mundo intelectual do indivíduo deve igualmente ser construído progressivamente por meio de impressões e experiências. O meio – e a maneira como ele é organizado para preencher
sua função educativa – é, portanto, tão importante quanto a alimentação do corpo durante o período pré-natal.
O primeiro passo da educação é prover a criança de um meio que lhe permita desenvolver as funções que lhes foram designadas pela natureza. Isso não significa que devemos contentá-la e deixá-la fazer tudo o que lhe agrada, mas nos dispor a colaborar com a ordem da natureza, com uma de suas leis, que quer que esse desenvolvimento se efetue por experiências próprias da criança. (Montessori, 1972, p. 82)
O “espírito absorvente” é ao mesmo tempo a capacidade e a vontade de aprender. Isso quer dizer que o espírito é orientado rumo aos acontecimentos do mundo ao redor, em harmonia com esses acontecimentos, a tal ponto que em relação à diversidade, os aspectos que têm um valor educativo diferem de acordo com cada caso particular: “[...] em todos, o desenvolvimento físico precede as aventuras da vida” (Montessori, 1972, p. 69). O importante, é que as impressões recebidas e a abertura mental andem juntas, de forma que os imperativos do processo de aprendizagem correspondam às sensibilidades e às tendências naturais de cada fase do desenvolvimento.
Estreitamente ligada a esses conceitos antropológicos está a ideia de “períodos sensíveis”. Trata-se de períodos de maior receptividade do ponto de vista do aprendizado por interação com o meio. Segundo essa teoria, existem períodos determinados durante os quais a criança está naturalmente receptiva a certas influências do meio, que a ajudam a dominar certas funções naturais e a atingir uma maior maturidade.
Existe, por exemplo, períodos sensíveis para o aprendizado da linguagem, o domínio das relações sociais etc. Se lhes consentimos a atenção que convém, eles podem ser explorados para promover períodos de aprendizagem intensa e eficaz. Senão, as possibilidades que oferecem são para sempre perdidas. O desenrolar harmonioso do desenvolvimento interior e exterior pode produzir igualmente uma independência ampliada:
Se nenhuma síndrome de regressão se revela, a criança manifestará tendências muito claras e muito fortes em direção à independência funcional [...] Em cada indivíduo está em curso uma força vital que o leva a procurar a realização de si. Percy Nunn chamava essa força de hormico. (Montessori, 1952, p. 77)
Isso explica igualmente por que Montessori colocava tanta esperança em uma reforma da educação conforme as suas ideias. Para ela, a educação do “homem novo” devia começar com a criança, que carrega o gérmen. Tão grandes eram as suas esperanças que ela estava convencida de que aí estava o caminho da salvação. Ela acreditava igualmente na renovação e na conquista da perfeição:
Se a salvação vem, começará pelas crianças, já que elas são as criadoras da humanidade. As crianças são investidas de poderes não conhecidos, que podem ser as chaves de um futuro melhor. Se queremos verdadeiramente uma renovação autêntica, então o desenvolvimento do potencial humano é a tarefa que deve ser atribuída à educação. (Montessori, 1952, p. 52)
Essa fé no potencial humano – reforçado ainda pelo “espírito absorvente”, quando os métodos pedagógicos adequados são utilizados – é uma das pedras angulares da teoria da educação de Maria Montessori. O segundo ponto importante é a vontade de influir sobre esse processo, num espírito de responsabilidade científica, e de descobrir os pontos fracos e os momentos decisivos do desenvolvimento da personalidade a fim de melhor conduzilo.
Segundo Montessori, esse processo não é linear, é antes dinâmico, pontuado de “explosões” – despertares, revelações, transformações, sínteses criativas – que o levam a novos níveis de evolução do qual não podemos nem mesmo pressentir a natureza. Ela escreve sobre isso: “O desenvolvimento é uma série de nascimentos sucessivos”. (Montessori, 1952, p.16)