Estamos mais do que vivos 1/2

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Revisão: Jeff Ferreira

Projeto gráfico editorial, capa e diagramação: Thiago Suiten

A886

Atualidades FAINOR/ Faculdade Independende do Nordeste. – V. 3, n. 3 (2016) - Vitória da Conquista, BA: FAINOR, 2016. 70p.

Anual

ISSN 2358-8233

1.Educação - Atualidades - Periódico. 2.Temas nacionais e internacionais – Periódico. 3. Conhecimentos Gerais – Periódico. I. Aguiar, Poliana Policarpo de M. (Org.).II. Lima, Thaíse R. Santos. III. Aguiar, Larissa Magalhães .IV. Spínola, Terezinha F.V. Marlon, Alberto. VI. Oliveira, Vanessa. VII. Pereira, Taís A..VIII. Sena, Ezequiel. IX. Moura, Jeane. X. Damasceno, Fernanda. XI. Silva. Gabriel A.S.Silva. XII. Silva, Daiane. XII. Título.

CDD: 372

Todos os direitos reservados. © 2023, Nem Tosco Todo

www.XXXXX.com | toscotodo@hotmail.com

SUMÁRIO AGRADECIMENTOS ................................. 4 PREFÁCIO ................................................. 6 silvia..................................................... 13 SILVIA 02 .............................................. 23 MAGALI .................................................27 MAGALI 02 ........................................... 37 MAGALI 03 ............................................ 39 despedida ............................................43 a explosão ......................................... 46 um comprador................................... 61 a viagem ..............................................72 buenos .................................................76 bora, bahêa! ....................................... 81 mais alto que palavras ................ 84

AGRADECIMENTOS

Quando lançamos um livro, um disco ou qualquer outro projeto que envolva arte, é quase impossível que ele se concretize sem o apoio dos amigos e familiares.

É o caso deste meu segundo livro, o primeiro romance. Sem o apoio das pessoas que acreditam na arte como uma ferramenta de transformação, nada disso teria se tornado real.

Quero agradecer a Nélio Silzantov pelo tempo dedicado ao prefácio e a Thiago Suiten por entender minhas loucuras e transforma-la nessa arte linda da capa e da diagramação do livro!

Agradeço também a Jeff Ferreira da Editora Dando a Letra, por acreditar na minha história e pela revisão da mesma!

Agradeço ainda a Editora Merda na Mão por aceitar a parceria de apoio na distribuição do livro pelo subterrâneo brasileiro!

E finalmente, agradeço a todos que contribuíram para a realização de mais um sonho desse punk tosco. Pessoas de suma importância em todo o processo de sobrevivência através da arte, numa cidade do interior da Bahia. Aqui faço questão de deixar o nome de todos os amigos e apoiadores! São eles;

Geovane Chiacchio

Isaac Gusmão (Power Jet)

Fabio (Fome stop)

Miro Rodrigues, das bandas Desnutrição e Academic Worms (MR&L Móveis Planejados)

Rafael Souza (Conquista Energia)

Alexandre Darrel (Inforjet)

Professor Marcone Higino

Caio Neto

Alfredo Leme

Muito obrigado a todos vocês e boa leitura!

APOIO CULTURAL

PREFÁCIO

Após acompanharmos Nem Tosco Todo em sua autobiografia odepórica, Vagando por aí (2019), sua estreia na ficção é mais que um passeio pelas ruas da capital baiana e das cidades aos pés da Chapada Diamantina e as desventuras de um protagonista. A experiência literária (e sonora!) aqui encontrada pode ser despretensiosa para os leitores em busca de diversão, mas ela também pode ser uma imersão na interioridade humana, seus dramas e tragédias mais díspares. Nietzsche estava certo em dizer que quando olhamos longamente para um abismo, o abismo devolve o olhar para dentro de nós. É o que ocorre quando olhamos atentamente para o nosso próprio ser e com igual intensidade para o ser do outro. Espécie de mergulho em águas profundas ou queda em um precipício. No seio de Estamos mais do que vivos, é por meio desse olhar atento que autor e seus personagens

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nos revelam as camadas mais viscerais da existência humana e de uma cultura multiversa, underground, que se propaga pelo subterrâneo, longe dos olhos e ouvidos dos que consomem e são devorados pela cultura de massa. Eu resumiria com tais palavras a estreia de Nem neste ofício romanesco, se uma questão não latejasse em minha têmpora quando me deparei com seu título.

Se estar vivo parece ser um feito cada vez mais grandioso em um mundo em que a violência e a morte se alastram em números assustadores, o que é permanecer mais do que vivo e o que dizer daqueles que são capazes de tal proeza?

A resposta pode ser tão complexa quanto a pergunta, ou muito mais simples do que imaginamos, se tivermos a mesma determinação em olhar longamente estes abismos que se encontram espalhados ao longo da narrativa. Como quem contempla uma obra de arte ou a natureza exuberante de alguma paisagem ou obra arquitetônica pela primeira vez. Mas que diabos de abismos são estes? — poderia me perguntar o leitor ou a leitora menos paciente e eu respondo que não vejo outra forma de representar nossa espécie, sem me alongar em questões psicofilosóficas.

Sinônimo de caos, desastre, ruína, o que separa profundamente uma coisa da outra, o precipício

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mais profundo, o que é imenso, insondável. Em resumo, a alma e a mente humana, nossas paixões, ódio, desejos e tudo aquilo que nos move e nos afeta. Eis o que encontramos logo no primeiro capítulo e ganha mais intensidade a cada página virada.

É certo que assim como todo mergulho clama pelo retorno à superfície, todo corpo em queda-livre busca vencer a gravidade e encontra o equilíbrio perfeito para repousar. Mas a superfície aqui é o que menos importa, como dito na canção floydiana que nomeia a obra erigida por Nem Tosco Todo: “It’s louder than words, the sum of our parts, the beat of our hearts, is louder than words, louder than words”. E se olharmos para o alto, para a imensidão do céu, para além daquilo que nossas vistas alcançam, estaremos diante de outro abismo cujas palavras são incapazes de mensurar e descrever.

A propósito, esse é outro diferencial no estilo que Nem imprime a narrativa, majoritariamente estruturada em diálogo, sem extensas tergiversações das personagens ou mesmo do narrador em terceira pessoa. São as ações e as consequências que verdadeiramente interessam, e isso é bastante significativo para a experiência imersiva.

Por outro lado, como todo apaixonado por música, Nem espalha em seus capítulos fragmentos de al-

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gumas canções e expressões emblemáticas desse universo. Amalgamando relações abusivas, encontros casuais, o velho golpe da passagem de ônibus, John Lennon, “Explosão, tiro, assalto, Rambo, MacGyver, Lampião, Macaco, Rato, carro incendiado, demissão”, Glauber Rocha, Pink Floyd, Boca x Bahia; tudo por meio de uma narração dialógica com o leitor, com frases curtas e sem rodeios, sem abrir mão de algumas doses de críticas ácidas e humor, como ocorre nas melhores canções punks.

Confesso que achei curiosa e uma grata surpresa a referência musical que Nem foi buscar para se apropriar de sua estrutura e tornar a experiência estética-literária ainda mais envolvente. O novo ciclo tão desejado pelo protagonista dessa insana viagem não poderia ter uma elegia mais apropriada ao seu passado, mesmo que tudo pareça um looping temporal, como se observa o início e o fim da narrativa. Pois mais importante do que estar vivo, como a canção e o romance sugerem, é se sentir mais vivo ainda encarando o que vier pela frente.

Professor, escritor e crítico literário. Autor de “Desumanizados” (2020) e “BR2466 ou a pátria que os pariu” (2022)

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Para Ana Virgínia

– Para o aeroporto, por favor!

– ¿Aeroparque? – perguntou o motorista.

– Sim. – Glauber respondeu enquanto abria o vidro traseiro direito do carro.

– Daqui para o aeroporto, dependendo do trânsito, vamos gastar cerca de meia hora, ou mais.

Isso foi o que Glauber achou que o motorista disse, enquanto engatava a segunda marcha.

Devia ter pego um metrô. Pensou Glauber.

– Si hubieras ido en metro, te llevaría mucho más tiempo. – o motorista leu seu pensamento.

A ida de Glauber a Buenos Aires para se reencontrar com Sílvia foi um fiasco.

Depois de ter vendido sua coleção de LPs do Pink Floyd na internet, ele conseguiu comprar as passagens para a capital argentina. Ficou hospedado no Hostel Circus, em Chacabuco. Na verdade, os

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SILVIA

dias que passou na Argentina foram aqueles para se esquecer.

Glauber conheceu Sílvia em Salvador, capital do estado da Bahia. Ele estava fazendo um curso de especialização em vendas, todo custeado pela loja de eletrodomésticos em que trabalhava no interior. Ficou hospedado em um hotel no Corredor da Vitória, área nobre do centro de Salvador, próximo à Praia do Porto da Barra e do Pelourinho também.

Em um dia de folga, resolveu dar uma volta pela cidade.

– Boa noite. Me indique um bar legal pra eu tomar umas cervejas mais tarde, aqui por perto.

– Tem o Bar do Reggae. – disse o atendente do hotel.

– Não, de reggae não.

– Ah, que o senhor está com essa camisa vermelha e a bermuda verde, pensei que gostava.

– Cara, eu até gosto de reggae, mas se tiver algum de rock, acho melhor.

– Rock aqui é difícil. Na Bahia só teve Raul Seixas, Camisa de Vênus e Pitty.

Glauber sabia o nome de várias outras bandas de rock da Bahia que eram legais, como Pastel de Miolos, Dona Iracema, Jacau, Social Freak, Injúria, Ladrões de Vinil, Renegados HC, Signista. Vixe, um

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Estamos mais DO

tanto. Mas economizou a saliva. Foi para o reggae. Chegando ao Centro Histórico de Salvador, foi seguindo sem rumo, na tentativa de dar de cara com algum bar ou pub mais rock-and-roll. Depois de alguns minutos perambulando viu uma pequena aglomeração em frente a um boteco caindo aos pedaços e um som grave vindo da sua direção. Eita, porra! Ó, o bar do reggae! Pensou.

Estava cheio! Levando em conta que o local tinha pouco mais de cem metros quadrados, tinha muita gente. E de todo tipo. De nativos a turistas, tinha de tudo lá. Nas paredes via faixas nas cores verde, amarela e vermelha, bandeiras de países africanos, quadros emoldurados de grandes nomes do reggae internacional, nacional e havia capas de discos de artistas baianos como Adão Negro e Sine Calmon. Tinha também um monte de bandeirolas multicoloridas no teto. Nessa hora Glauber se sentiu como em uma festa junina. Um cara com boné preto e camisa de abadá nas cores da Jamaica, provavelmente de algum bloco carnavalesco de anos anteriores, era quem comandava o aparelho de som. Tocava uma música que Glauber não conseguiu identificar quem era o artista ou banda. Estava muito quente e o odor da cannabis se misturava com o suor das pessoas presentes, que se balançavam ao som daquele provável clássico

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regueiro, que Glauber desconhecia, ou talvez a música que emanava das caixas era uma “pedra”, como se diz lá no estado do Maranhão.

Glauber foi se adentrando no lugar e procurou uma brecha no balcão. Pediu licença para um senhor de uns sessenta anos ou mais, queimado de sol e com uma camisa social desabotoada, de modo que sua barriga parecia querer saltar para fora. Ele levava uma bolsa de couro laranja no ombro. O homem não parecia nada pertencente aquele espaço. Glauber pediu uma cerveja, ficou observando e curtindo o reggae. Percebeu que tinha um negro mais alto que todos do local. Era um cara forte de cabeça raspada que não saía do lado da parede formada de caixa de som, que media cerca de dois metros de altura. Esse cara carregava uma grossa corrente de prata no pescoço, e com os olhos meio fechados, ele mirava para o vazio, enquanto seguia a batida da música, pra lá e pra cá. Do lado direito dessa parede de som, tinha uma mulher, branca e com cabelo trançado, conversando com um rastafari que tinha o cabelo quase batendo no chão. Tinha várias outras mulheres, negras, loiras, brancas queimadas de sol. Mas Glauber ficou de olho naquela de cabelo trançado.

Logo ela percebeu que ele estava lhe observando.

Falou algo com o rastafari e foi ao banheiro.

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Nisso o coroa barrigudo ofereceu para Glauber um copo de Cravinho do Pelô. Ele não gostava, mas para se enturmar no ambiente, aceitou uma dose.

– Sou de Mundo Novo, você conhece? – o coroa puxou conversa.

– Bonito nome para uma cidade. Deve ser legal lá, né? – Glauber falou enquanto observava a movimentação no banheiro feminino.

Porta fechada ainda.

– Não, Mundo Novo só tem de bonito o hino e a Catedral de Nossa Senhora da Imaculada Conceição! – falou enquanto mexia na sua bolsa de couro. Glauber deu mais uma olhada para o banheiro feminino. A porta estava aberta. Buscou aquela mulher rapidamente por todo o bar. Perdeu a moça de cabelo trançado.

– Olha, eu preciso visitar minha filha lá em Mundo Novo, mas tô com uma passagem comprada pra Brasília. Eu trabalho lá. – falou o velho, mostrando a passagem.

– Ah, legal, já fui à Brasília, muito interessante a arquitetura da cidade.

– Você tem um cigarro? – uma voz feminina gritou no ouvido de Glauber. Ele olhou por cima do ombro. Era ela, com seu cabelo trançado.

– Não tenho, mas posso comprar pra você. Me dê

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uma carteira de cigarro! – gritou para o cara do bar. – Então, garoto. Você não tem interesse de ir trabalhar em Brasília?

O velho perguntou, mas Glauber não queria ir para lugar nenhum naquele momento. Só queria ficar olhando para aquela moça e poder conhecê-la melhor.

O coroa ficou chateado com a falta de interesse e saiu resmungando algo. O balconista do bar trouxe a carteira de cigarro.

Tá aqui, garota, uma carteira inteira pra você.

– Glauber disse.

Ela pegou, abriu, tirou um cigarro e devolveu a carteira.

Obrigado!

Disse isso e saiu do bar.

Glauber ficou alguns segundos sem entender, olhando para as pessoas dançando no bar. Quando deu por si, viu o velho entregando a passagem para o cara que estava o tempo inteiro escorado naquela pilha de caixa de som. O cara pegou a passagem e saiu do reggae sem nem olhar para trás. O velho voltou para o balcão todo feliz e pediu mais um cravinho!

Amanhã vou pra Mundo Novo! De novo! – gritou para o bar inteiro ouvir.

Glauber ficou do lado dele, com uma cara de

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idiota.

– Me dá um cigarro aí, garoto! – o velho estava se sentindo como se tivesse feito sexo. No cinema, toda cena de sexo, no final tem um cigarro.

– O que foi que houve com você, rapaz? – perguntou depois da primeira tragada.

– Nada demais.

– Cadê a garota?

– Ela só queria um cigarro mesmo. Foi embora. Disse Glauber.

Pagou a cerveja e o cigarro. Foi ao banheiro. Era muito sujo. Daqueles que você tem que entrar de bota e de luva. Glauber não tinha bota nem luva, mas entrou assim mesmo. Quando voltou, a garota estava do lado do velho, no maior papo. Glauber encostou entre eles dois e pediu mais uma cerveja.

– Ué, você não ia embora, rapaz? – perguntou o velho.

– Não, só fui ao banheiro. – Você me arruma mais um cigarro? – perguntou a garota para Glauber. Pelo visto ela era uma fumante com o vício em seu nível mais alto.

– Claro, pode ficar com a carteira. Já te falei isso. – Obrigado! Eu não costumo pedir cigarro a estranhos. Me desculpe. – pegou um cigarro e devolveu a carteira de novo.

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– Tudo bem! Eu entendo.

– No meu tempo, se uma mulher pedisse cigarro, ela queria trepar com você. – o velho gritou de novo.

– Valeu, tenho que ir! – a moça falou já virando as costas e saindo do bar.

– Poxa, isso é coisa pra se falar pra uma garota?

– Ah, meu filho! A mulher fica a noite toda te pedindo cigarro e você aí nessa. Vou pagar essa cerveja que você pediu e não tomou nada ainda. Corra atrás dela que ainda dá tempo! – o coroa falou isso, pediu mais um copo, encheu de cerveja e virou de um gole só.

Glauber saiu do bar e olhou à esquerda, por um beco meio estreito, a garota caminhava lentamente, com o cigarro na mão direita.

Foi a sua espreita, sorrateiramente, para que ela não percebesse que estava sendo seguida.

Já era tarde e o Centro Histórico não estava muito movimentado. Após alguns minutos, depois de virar uma esquina, vacilou e ela sumiu do seu campo de visão por entre os becos do Pelourinho. Parou próximo a escadaria de uma igreja.

Eu acho que já vi essa igreja em algum filme. Pensou.

Sim, era d’O Pagador de Promessas. Resolveu subir a grande escadaria para pagar seus pecados.

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Ao final, já de frente com a igreja, percebeu um som distorcido vindo de um casarão na mesma rua. Tinha dois caras na porta.

– Opa, rapaziada! Tá rolando o que aí?

– Um show punk aí do cartaz. – falou um dos caras, apontado para a parede na entrada do casarão. Glauber se aproximou.

– “Show com Bosta Rala e Convidados”. – leu em voz alta.

Puta que pariu, onde eu vim parar. Num show com uma banda com nome de merda. Pensou.

– Vai querer entrar? – perguntou um dos caras, com ingressos para o show na mão.

Glauber já estava meio perdido mesmo.

– Vou sim!

Pagou e entrou. O show era no porão do casarão. Desceu as escadas e logo à sua direita havia o pequeno balcão do bar. Pediu uma cerveja e entrou no porão onde estava rolando o show. A banda já tocava e o local estava lotado. O estilo deles era um rock bem barulhento, hardcore talvez, e com o calor que estava fazendo, Glauber não aguentou ficar muito tempo lá dentro. Saiu um pouco para pegar um ar fresco e pediu mais uma cerveja.

– Você ainda tem cigarro?

Ah, não era possível isso! A moça do cabelo tran-

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çado estava lá!

Glauber ficou surpreso.

– Olha, antes de qualquer coisa, me fale o seu nome? – ele disse enquanto lhe passava a carteira de cigarro.

– Sílvia. E o seu?

– Glauber.

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SILVIA 02

O despertador do celular tocou.

7h da manhã.

Glauber tinha mais um dia de curso em Salvador.

Levantou-se e foi ao banheiro. A porta estava fechada por dentro.

– Olá! Bom dia! – bateu três vezes na porta.

– Bom dia! – Sílvia gritou do outro lado.

– Você vai demorar muito? Preciso tomar banho para ir ao curso.

– Não, já estou saindo.

A porta se abriu e Sílvia surgiu enrolada em uma toalha.

– Tenho que correr também, vou viajar. – ela disse.

– Ah, vai viajar? Pra onde?

– Buenos Aires.

– O que você vai fazer lá?

– Estou indo embora.

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– Indo embora? Como assim?

– Vou tentar a vida lá. Tenho uma amiga que vai me ajudar. Ela tem um apartamento, mora sozinha, vamos dividir as despesas.

– Você vai assim, com a cara e a coragem?

– Sim. Vou tentar recomeçar minha vida.

– Desculpa perguntar isso, mas você cometeu algum crime e está fugindo da justiça?

– Bem que eu queria ter cometido um crime, passional se possível.

– Você está fugindo de alguém, então?

– Depende do seu ponto de vista.

– Não entendi.

– Estou fugindo de mim mesma! – ela disse enquanto vestia sua roupa.

– Olha, eu sei que nosso encontro foi casual e que não foi nada sério. Mas se você estiver com algum problema que eu puder...

Sílvia interrompeu antes que Glauber pudesse terminar a frase.

– Cara, eu estou fugindo do meu ex-marido.

– Ele está te perseguindo?

– Não é bem isso. Na verdade, ele é um machista frustrado.

– Como assim?

– Ele é um cara que nunca se garantiu com uma

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mulher. Aí, sempre achava que estava sendo traído.

– Poxa, que chato isso. Vocês têm filhos?

– Não, ele é estéril.

– É por isso que você decidiu pela separação?

– Não. Ele começou a me chamar de piranha, de puta e tudo era motivo para achar que estava sendo traído. – ela falou.

Glauber já estava atrasado para o curso e não tinha nem escovado os dentes, muito menos tomado banho. Sílvia continuou.

– Desconfiava de tudo. Do vizinho, do zelador, do cara do gás, do técnico da internet. Virou uma paranóia sobre traição.

– Quanto tempo tem que você pediu a separação?

– Ontem.

– Caralho! E ele aceitou de boa?

– Que nada. Tomou minha chave de casa, me empurrou pra fora. Só tive tempo de pegar o celular e meus documentos. Estou sem nada.

– Que filho da puta!

– Pois é!

– E como você vai viajar sem grana e sem passaporte?

– A Argentina não pede passaporte brasileiro pra entrar no país. E o dinheiro, eu consigo movimentar minha conta pelo celular.

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– Ah, que bom! Preciso tomar um banho que eu estou atrasado para o curso. – Glauber falou enquanto corria para o banheiro.

Enquanto ligava o chuveiro, ficou pensando em como foi legal a noite que passou com Sílvia. O ex-marido realmente parecia que não conseguia dar conta de Sílvia na cama, pois na noite que passaram juntos, ela parecia sedenta por sexo.

– Oi, já vou, viu, querido! Foi um prazer te conhecer! – ela gritou da porta do banheiro.

– Espera só um minuto.

Silêncio. Só o barulho de porta batendo e da água saindo do chuveiro.

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Uma página em branco na sua frente. Isso é o terror dos escritores. Existe um filme chamado “Jogue a mamãe do trem”, que tem uma cena do devaneio de um escritor em frente à uma página em branco.

Depois daquele dia com Sílvia, ou aquela noite, melhor dizendo, tudo virou uma página em branco para Glauber. Uma história sem continuação. Sem um novo capítulo.

Foi seguir sua vida de volta a Mucugê. Uma pequena e pacata cidade do interior da Bahia, encravada na Chapada Diamantina. Pesquise no Google e verá imagens magníficas das criações da natureza na região.

Glauber era vendedor de uma loja de eletrodomésticos, já falei isso. Trabalhava no balcão de venda de aparelhos celular. A loja era na Rua Direita do Comércio, em um casarão antigo, onde anos atrás

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MAGALI

funcionava uma farmácia tradicional da cidade. No térreo era a loja e no andar de cima o depósito.

Vender um celular era a coisa mais difícil do mundo, mas o gerente não queria saber de nada, só cobrava metas e mais metas para cumprir.

Tinha muito turista na cidade. E de vez em quando aparecia algum querendo comprar um celular novo, pois perdera no rio, nas cachoeiras ou nas trilhas.

– Olá, bom dia! – o vendedor de móveis da loja falou com uma mulher com tinta no cabelo, que acabara de entrar.

– Bom dia. Eu queria ver um celular novo, vocês têm? – disse a mulher.

– Ah, celular é ali naquele balcão. – disse o colega de trabalho de Glauber, apontando para a sua direção.

A mulher se aproximou. Devia ter uns quarenta anos, no máximo. O cabelo tinha grandes mechas azuis ou verde. Um verde azulado, talvez.

– Bom dia senhora, em que posso ajudar? – Glauber falou educadamente.

– Estou precisando de um celular novo. Mas não quero um muito caro, nem com muitas funcionalidades.

– Sim, temos de todos os tipos, senhora. — Glau-

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ber disse, já apontando para um com o preço mais em conta.

– Não me chame de senhora, por favor, eu odeio isso.

– Ah, tudo bem senhora, quer dizer, tudo bem, me desculpe. É a força do hábito e regras da loja.

– Esqueça os hábitos e as regras, por favor. – ela pediu.

– Ok. Temos esse aparelho com uma boa memória e armazenamento de 164 gigabytes. Talvez seja o que a se... – Glauber deu uma engasgada e continuou. – Talvez seja o que você está precisando. Ela olhou rapidamente e pediu para que ele tirasse o celular do balcão de vidro, para que pudesse manuseá-lo.

– Quanto é esse?

– R$ 1.199,00.

– Hum, tem um mais barato?

– Mais barato que esse, só aqueles aparelhos para idosos, bem básico.

– Não, ainda estou na flor da idade, querido. Parcele esse em dez vezes pra mim, por favor!

– Sim, sen... quer dizer, faço pra você agora! Como é seu nome? – Magali.

– Pode vir por aqui, Magali!

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Feito todo o procedimento de uma compra de celular no cartão de crédito, Magali saiu da loja com seu mais novo aparelho celular. Quase que de encontro com ela, Pedro adentrou na loja.

Glauber conheceu Pedro ainda na adolescência, quando seu pai foi transferido para uma obra na estrada entre Mucugê e Lençóis. O pai de Glauber era encarregado de almoxarifado da obra. Glauber e Pedro eram grandes amigos e andavam sempre juntos, desde a época da escola. Uma vez Glauber o chamou para pular o muro da escola, no intuito de matar uma aula. Pedro não aceitou. Pulou sozinho e Pedro ficou lá, gritando, mandando Glauber voltar. E é lógico que ele não voltou.

Pedro agora era auxiliar administrativo da prefeitura. Um cargo burocrático, como ele sempre foi, de bater carimbo e conferir assinaturas.

Fala, Glauber! – se aproximou sorridente, pegando na mão do amigo.

Opa, de boa, Pedro?

E essa mulher aí, rapaz?

Acabou de comprar um celular aqui comigo.

Você sabe que ela é a médica nova do hospital, né?

Sabia não. – Glauber não estava interessado na vida de forasteiros.

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– Veio de Brasília. Mas me falaram que é casada.

– disse Pedro, mostrando para Glauber o dedo anelar esquerdo.

– Pô, Pedro. Você agora virou polícia pra investigar a vida dos outros?

– Não, me falaram lá na prefeitura. O pessoal a achou meio esquisita, com esse cabelo colorido.

– Pô, eu sempre tive vontade de pintar o meu de vermelho.

– Ah, qual é Glauber, nada a ver com você! Cabelo vermelho, só faltava essa!

– Tá. – Glauber ficou desanimado de falar dos seus sonhos para Pedro.

No final do dia Glauber resolveu passar no Bar de Peu. É um bar bem simples, com venda de vários tipos de cachaças temperadas. Mas tem cachaça pura também, vindas lá de Abaíra, cidade da chapada. O bar de Peu também colocava telão em dia de jogos importantes da seleção brasileira de futebol.

Mas nesse dia não estava tendo jogo nenhum, era quinta-feira. Dia de um bom movimento em qualquer bar. Glauber entrou e, por sorte, achou um banquinho desocupado à beira do balcão.

– Me dá uma Gabriela, por favor! – pediu ao sentar-se no banquinho.

Gabriela é uma bebida famosa na Bahia, que leva

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cachaça, melado e, claro, cravo e canela.

– Me dá um conhaque! – disse uma mulher atrás de Glauber.

– Ô, Doutora. A senhora por aqui! – ele falou surpreso.

– Já lhe falei que não precisa me chamar de senhora! – Ah, desculpa doutora. Força do hábito.

– E quem lhe disse que eu sou doutora?

– Cidade pequena a notícia corre rápido.

– Ah, entendi. Mas também não me chame de doutora. Doutora é quem fez doutorado e eu ainda não fiz. – disse ela enquanto o atendente do bar trazia a Gabriela de Glauber.

Isso que você está tomando é o que? – Gabriela!

– Cravo e canela? – ela disse sorrindo.

– Exatamente! A sen...você sabe das coisas! – falou enquanto dava o primeiro gole na cachaça. – Eu vou tomar um conhaque. Adoro conhaque.

– Eu gosto de umas cachaças temperadas. Gabriela, umburana, carqueja, essas coisas. – Glauber falou antes de virar o que sobrava da dose de Gabriela.

Então Pedro apareceu.

Fala, Glauber! – disse dando uns tapinhas nas costas do amigo. E continuou.

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– Não vai me apresentar sua amiga?

– Essa é doutora Magali. Quer dizer, essa é Magali.

– Prazer, doutora, eu sou Pedro. Trabalho na prefeitura. O que precisar de mim, estarei à disposição. Magali não demostrou nenhum interesse na conversa de Pedro, voltando-se para Glauber.

– Seu nome é como? – Magali perguntou.

– Glauber.

– Glauber Rocha? – perguntou arregalando os olhos.

– Não, Glauber Silva. – Cara, eu amo cinema. Você sabe quem foi Glauber Rocha, né?

– Nunca ouvi falar.

– Glauber era um cineasta incrível, um revolucionário e era baiano! – ela falava e seus olhos brilhavam.

– É, eu não conheço muito de cinema. Eu gostei de Central do Brasil – Glauber falou meio sem graça.

Não, cara, eu tô falando de cinema revolucionário. Tipo Godard. Você já assistiu algo do Godard? Glauber preferiu ficar mudo.

– Godard, é impossível entender plenamente suas obras. E aí que está a sua força, sua revolução, sua resistência. Ele é tipo o Frank Zappa do cinema, você flagra Frank Zappa?

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– Não, não conheço. Ele era o quê?

– Ah, desculpa, cara, eu estou viajando aqui demais. Frank Zappa era um músico, mas tudo bem. Me dá mais um conhaque, por favor. – Magali gritou antes de virar a primeira dose do seu copo.

Ah, falando em músico, meu irmão conheceu

John Lennon. – disse Pedro. Ele sempre contava essa história para os amigos.

Magali ia virando a segunda dose de conhaque, mas parou.

– Seu irmão conheceu quem?

– John Lennon, meu irmão morou nos Estados Unidos.

– Ah, cara, qual é? Conta outra aí! – Magali parecia irritada com Pedro.

Conheceu, sim!

Cara, John Lennon era outro revolucionário! Daqui a pouco você vai me dizer que foi seu irmão quem atirou nele?

Não. Mas eles se conheceram, isso eu sei.

Tem foto pra provar? Eu quero ver!

Pedro ficou chateado com a desconfiança de Magali.

Valeu, Glauber! Vou nessa!

Que amigo louco, hein? – ela falou enquanto virava o segundo conhaque.

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– Esse irmão de Pedro, saiu muito cedo de casa. E ficava sempre enviando cartas falando por onde andava, o que fazia e quem ele conhecia. O irmão dele era cantor.

– Ah, então pode ser que conheceu John Lennon e até Elvis Presley. – Ela falou dando gargalhada.

– Elvis, acho que o irmão de Pedro não conheceu, mas ele era muito fã! Tinha carteirinha de fã club e tudo mais!

– Tô amando essa cidade! Conheci um cara que o irmão conheceu John! Que loucura isso! – ela ria descontroladamente.

– É, além disso, aqui só tem rios e cachoeiras.

– Glauber falou desanimado enquanto secava outra dose de Gabriela.

– Não, desculpe, se pareceu que faltou humildade, que estou com desdém ou coisa que o valha de minha parte.

– Tudo bem, eu entendo, você vir de uma cidade grande, pra uma cidade pequena... – Magali cortou.

– Não, me desculpe. Nunca passou pela minha cabeça querer ofender alguém aqui. Estou amando essa cidade de verdade! – ela falou enquanto passava a mão sobre o ombro de Glauber.

– Afinal, o que te trouxe até Mucugê? – ele perguntou.

35 Nem Tosco Todo

Magali baixou a cabeça por um instante, puxou um banco que acabara de ser desocupado, sentou-se e disse:

– O que me trouxe até aqui?

Glauber só balançou a cabeça de forma automática.

– Meu marido. — ela falou isso e deu uma pausa para mais um gole no conhaque.

Nessa hora, Glauber se lembrou de quando Sílvia disse que estava sendo perseguida pelo ex-marido.

– Meu marido é um playboyzinho mimado! – falou e virou o resto do conhaque.

36 Estamos mais DO QUE VIVOS

MAGALI 02

No início da manhã de sexta-feira, um avião pousou no pequeno aeroporto da cidade e dele desceu um cara de óculos Ray-Ban e sapatênis.

Um motorista já o esperava.

– Bom dia. Me leve até o hospital da cidade. –disse o forasteiro.

Magali havia terminado de atender um paciente. De dentro do consultório, com a porta entreaberta, chamou o próximo.

– Senhor Adson Marcelino!

A porta se abriu totalmente e Magali tomou um susto.

– Eduardo?

– Surpresa com minha presença, querida?

– Sim, meu amor. Como você sabia onde eu estava?

Nesse momento o paciente bate à porta, já aber-

37 Nem Tosco Todo

ta, só para marcar presença.

– O senhor poderia aguardar só um minuto, por favor? – pediu Eduardo para o paciente.

– Já atendo o senhor, seu Adson. Dei-me só um minutinho, por favor. – disse Magali.

– Precisamos conversar, querida. — Eduardo falou, puxando uma cadeira para se sentar frente à sua esposa.

– Isso não é hora, querido. Vá em casa, vou pedir ao porteiro do hospital pra te ensinar onde eu estou morando. É aqui perto. Tome a chave. Daqui a pouco eu chego lá e a gente conversa!

– Como você teve a coragem de nos deixar, eu e as crianças, e vir trabalhar num fim de mundo desse, Magali? – Eduardo levantou a voz.

– Querido, agora é impossível de conversar. Estou atendendo pacientes e você está sendo inconveniente. Estou em meu trabalho, Eduardo! – Magali ficou irritada e continuou. – Pegue a chave e procure o porteiro que ele lhe mostra onde estou morando.

Eduardo tentou dizer algo, mas Magali gritou.

– Senhor Adson Marcelino, pode entrar por favor!

Eduardo pegou a chave da mão da esposa e se retirou, esbarrando no paciente e batendo a porta com força.

38 Estamos
DO QUE VIVOS
mais

MAGALI 03

A atitude de Eduardo deixou Magali preocupada. O que teria levado seu marido a chegar ao ponto de invadir seu local de trabalho? E como ele descobriu onde ela estava?

No caminho do hospital para casa, Magali não sabia ao menos por onde começar a conversa com seu companheiro.

Eduardo andava de um lado para o outro, quando a porta da casa se abriu.

– Finalmente, querida. – disse enquanto se sentava ao sofá.

– Então, Eduardo, o que te traz aqui? – perguntou Magali, colocando sua bolsa sobre a mesa da sala.

– O que você acha que eu quero vindo até aqui? – Não sei, querido. – Não sabe?

– Eduardo, eu sei que foi um erro a forma como

39 Nem Tosco Todo

eu saí de casa...

– Você saiu sem dizer nada para mim, Magali! Pior, não disse nada para nossos filhos! Como você pôde fazer isso com as crianças?

Magali não sabia o que responder, baixou a cabeça e foi para a cozinha. Eduardo foi logo atras. E continuou.

– Qual o sentido de tudo isso, Magali?

– Eu só queria um tempo, Eduardo!

– Tempo pra que? Você não ama mais a gente? Eu e seus filhos...

– Não é nada disso, Eduardo! Eu queria um tempo pra mim mesma! – Magali falou isso e voltou para a sala.

– Tempo pra quê, querida? Era só falar sobre o que você estava sentindo, o que você estava passando. Fugir de casa não resolve nossos problemas!

– Eu cansei de ser babá de duas crianças e um adulto! – falou e se virou para a janela. – Babá? Nós pagamos uma pra tomar conta dos meninos, Magali! Que conversa é essa de você ser minha babá? – Eduardo falou e se aproximou de Magali. – Você foi muito mimado por sua mãe, Eduardo.

Cresceu, mas não amadureceu. – Magali voltou pra cozinha e pegou uma garrafa de conhaque sobre a geladeira.

40 Estamos mais DO QUE VIVOS

– A pessoa que fala em maturidade, no primeiro problema familiar, abandona o marido e os filhos. Eduardo foi irônico.

Magali colocava uma dose de conhaque no copo e explodiu.

– Tudo naquela casa era eu que resolvia! Tudo nas minhas costas, caralho! O mundo caindo sobre a minha cabeça, e você ia jogar futebol de botão com seu avô! Acorda pra vida, porra! – disse isso e encheu o copo de conhaque.

– Magali, a gente poderia ter conversado, sobre a divisão de tarefas de casa! Qual o seu problema? Você, sim, está sendo imatura! Eu sempre joguei botão com meu avô, é um hobby dele, e você sabia disso quando nos conhecemos, querida.

Magali tinha lágrimas nos olhos, tristeza na face.

– Querida, vamos voltar pra casa! Você sempre foi um exemplo de mãe, de esposa, amiga. As crianças estão sentindo sua falta. Perguntam todo santo dia quando que a mãe deles volta pra casa. Eu também sinto muito a sua falta. – Eduardo se sentou no sofá e chorou.

Magali deu um gole no conhaque, largou o copo sobre a mesa e se ajoelhou próximo ao companheiro.

– Desculpa, querido. Eu não queria magoar você nem as crianças. Eu fugi para não fazer algo pior.

41 Nem Tosco Todo

Eu estava esgotada e precisava sair, respirar outros ares. Eu também penso em vocês todos os dias. Me desculpa! – falou chorando e escondeu a cabeça nas pernas de Eduardo.

Vamos voltar pra casa. Vamos reorganizar as coisas. Tudo vai ficar bem, querida. – Eduardo falou, enquanto acariciava a cabeça de Magali.

42 Estamos mais DO QUE VIVOS

despedida

Glauber estava indo para casa e resolveu passar no mercado pra fazer umas compras.

Incrível como a cada dia que passa, meu salário compra menos produtos no mercado. Pensou enquanto pegava um quilo de feijão.

– Oi, Glauber.

Ele se virou e viu que era Magali. – Oi, tudo bem. Só tô gastando todo meu salário aqui, mas fora isso, tudo bem. – Glauber disse enquanto soltava uma risada. Só então percebeu que Magali estava acompanhada.

– Esse é Eduardo, meu marido.

Eduardo estendeu educadamente a mão e Glauber o cumprimentou.

– E vocês, estão gastando aqui também? Cada dia que passa, os preços só aumentam. – falou Glauber, meio sem graça e procurando assunto.

43 Nem Tosco Todo

– Tá difícil mesmo. Mas queria me despedir de você. Vou voltar para Brasília. – Magali falou.

– Ué, você acabou de chegar. Não gostou de Mucugê, né? Cidade pequena...

– Não, eu adorei a cidade, as pessoas. É que eu estava só de passagem mesmo, uma curta temporada...

Eduardo interrompeu Magali.

– Era tipo umas férias forçadas e merecidas.

disse sorrindo para Glauber.

– Mas que tipo de férias é essa que a pessoa vem pra cidade e trabalha num hospital? – Glauber não entendeu.

– Ah, é uma longa história. Só posso te dizer que a razão não anda de mãos dadas com o coração, ou a emoção. Foi um prazer te conhecer, Glauber! – Magali disse e o abraçou.

– Prazer em conhecê-lo. Até a próxima! – Eduardo falou, depois pegou na mão de Magali e sumiram pelo corredor do pequeno mercado.

Fala, Glauber!

Era Pedro.

Porra, Pedro, tá me seguindo, bicho?

Ué, onde você vai, eu também vou. A cidade é pequena, esqueceu, foi?

Glauber não respondeu. Empurrou o carrinho rumo ao caixa do mercado.

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