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Campinas, 9 a 15 de maio de 2016 - ANO XXX - Nº 655 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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CORREIOS

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Fotos: Antonio Scarpinetti/ Wilson Dias (Agência Brasil)

A ESQUERDA

ARMOU A BOMBA? Roberto Romano atribui a crise política à acomodação da esquerda, que teria ignorado as raízes absolutistas do Estado brasileiro e feito alianças com oligarquias. O professor de Ética do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp fala ainda sobre:

Os holofotes não iluminam a verdade A cena conspiratória na antessala do poder Quando o cordeiro não sacia os lobos da Fiesp Foro blinda tropas de parlamentares sob suspeição Ecos de um Estado absolutista e anacrônico Entre o descalabro policial e o elitismo de juízes Nem sombra de ‘accountability’ nos três poderes Semeando Sarney, colhendo Bolsonaro e Feliciano O arbítrio sob a capa do verniz jurídico do STF Mídia fecha os olhos para as ilicitudes da direita Os sinais de politização que vêm da juventude No horizonte, turbulência e supressão de direitos

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Drones militares banalizam violência Empregadas domésticas têm ganhos nos anos 2000

Genoma e linhagens da população europeia Um novo sistema solar com três Terras Métodos contra o câncer são alvos de revisão

TELESCÓPIO

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O professor Roberto Romano (em primeiro plano) e manifestantes comemorando, em Brasília, o afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados


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TELESCÓPIO

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

Fervura em Marte Algumas características temporárias do relevo marciano, como faixas escuras e deslizamentos observados em encostas, podem ser causadas por água fervente, diz artigo publicado na edição mais recente do periódico Nature Geoscience. Em setembro do ano passado, a mesma revista havia trazido trabalho, baseado em observações da sonda orbital Mars Reconnaissance Orbiter (MRO), da Nasa, sugerindo que faixas escuras observadas em encostas do planeta poderiam sinalizar fluxos intermitentes de água. Especulou-se que água, contendo grandes concentrações de sais dissolvidos, poderia ser estável o suficiente, nas condições marcianas, para escorrer ladeira abaixo, causando as marcas. O artigo mais recente descreve um experimento realizado em laboratório, onde cientistas da Europa e dos Estados Unidos analisaram o comportamento de um bloco de gelo colocado sobre uma ladeira arenosa, numa câmara que recria condições de pressão atmosférica compatíveis com as existentes em Marte. Nesse ambiente de baixa pressão, a água ferve, lançando para o alto grãos de areia que, ao cair, formam pequenas pilhas. Essas pilhas, então, tornam-se instáveis e deslizam pela encosta. Esse processo dá origem a pequenos canais que se assemelham aos observados na superfície marciana. “É de especial interesse que apenas pequenas quantidades de água de derretimento são necessárias para transportar os sedimentos”, escrevem os autores, sugerindo que esse mecanismo pode representar uma alternativa, ou um complemento, aos fluxos de água salgada teorizados anteriormente.

Origens da Europa Uma análise do genoma dos restos mortais de 51 seres humanos anatomicamente modernos que viveram na Europa entre 45 mil e 7 mil anos atrás permitiu que pesquisadores elaborassem a mais detalhada análise das linhagens que colaboraram para a formação da população europeia atual. A equipe internacional de cientistas determinou que, embora a chegada dos humanos modernos ao continente tenha ocorrido há cerca de 45 mil anos, essa população pioneira não deixou vestígios no DNA dos europeus atuais, que no entanto preservam marcas de uma onda migratória de 37 mil anos atrás. “Todos os indivíduos de cerca de 37 mil a cerca de 14 mil anos atrás descendiam de uma

mesma população fundadora, que forma parte da ancestralidade dos europeus do presente”, diz o artigo, publicado na revista Nature. Essa população fundadora teria vivido no noroeste da Europa, e era parte da chamada cultura aurignaciana da Idade da Pedra, à qual se atribui um papel importante no desenvolvimento da arte, incluindo as primeiras obras que buscavam representar a figura humana, incluindo a Vênus de Hohle Fels, esculpida numa presa de mamute. A predominância genética dessa população original começou a ser diluída há 14 mil anos, com a chegada de um novo fluxo migratório vindo do Oriente Próximo.

Ameaça hidrelétrica O controle do fluxo de água dos rios por barragens hidrelétricas pode ameaçar a cadeia alimentar à jusante, ao eliminar populações de insetos aquáticos, alerta estudo realizado nos Estados Unidos e publicado no periódico Bioscience. A equipe de autores, encabeçada por pesquisadores da US Geological Survey (USGS), debruçou-se especificamente sobre os efeitos da prática de regular a liberação de água pela barragem de acordo com o consumo de energia, fazendo o rio correr com maior vazão em horários de pico de demanda. Usando amostras colhidas por cidadãos voluntários ao longo do Rio Colorado, e por um levantamento da diversidade de insetos em rios barrados do Oeste do país, os cientistas concluem que o controle artificial da vazão do rio é incompatível com os hábitos de reprodução de certas espécies de inseto importantes para a cadeia alimentar.

Anticorpo contra o HIV Dois artigos publicados na Science apontam resultados promissores com o uso de um anticorpo de neutralização ampla contra o HIV. Em um dos estudos, o anticorpo testado, 3BNC117, foi aplicado em ensaio clínico a 15 pacientes. A maioria teve redução na carga viral que perdurou por várias semanas, com resultados individuais, de acordo com nota divulgada pela revista, indo do “pequeno” ao “dramático”. O segundo estudo, envolvendo experimentos em camundongos, aponta que o 3BNC117 acelera a depuração das células in-

fectadas pelo HIV. O mesmo trabalho detectou uma mutação do anticorpo que o torna ineficaz nesse processo de limpeza celular.

Três Terras

– um hormônico comumente relacionado ao estresse – em resposta a situações de tensão. Além disso, os grupos que praticam comportamentos de risco mostraram menos consideração pelos outros. Os autores sugerem que técnicas de prevenção mais voltadas para os interesses pessoais dos motoristas – em vez de apelos à lei ou a princípios morais – podem ser mais eficazes para esse tipo de motorista.

Pesquisadores dos EUA, Índia e Europa anunciam, na edição mais recente da Nature, a descoberta de um sistema solar com três planetas de dimensões semelhantes às da Terra, sendo que dois deles orbitam sua estrela a uma distância próxima ao limite da chamada “zona habitável” – a região do espaço em que um planeta recebe energia estelar suficiente para manter água em estado líquido em sua superfície, característica tida como necessária para que possa suportar vida. Esses planetas estão perto da borda da zona mas, ainda assim, fora dela. A órbita do terceiro planeta, escrevem os autores, ainda comporta muitas incertezas, mas é provável que ele receba muito menos energia de sua estrela do que a Terra recebe do Sol. A estrela que abriga os planetas se localiza a 12 parsecs (39 anos-luz) da Terra, e é considerada uma “anã fria”, categoria que inclui estrelas com temperatura efetiva de menos de 2.400 ºC (o Sol tem uma temperatura efetiva de cerca de 5.500 ºC). As observações que levaram à descoberta foram feitas pelo telescópio belga TRAPPIST, baseado no deserto de Atacama, no Chile, e que é parte do complexo ESO, o Observatório Europeu do Sul.

Reportagem publicada no website da revista Nature (http://www.nature.com/news/ nine-years-of-censorship-1.19842) analisa o fim da política de censura na comunicação científica, imposta pelo governo conservador que administrou o Canadá entre 2006 e 2015. Nesse período, pesquisadores vinculados a órgãos públicos tinham de solicitar permissão a seus superiores hierárquicos antes de falar com jornalistas. Essa política foi revertida com a chegada da atual administração liberal ao poder. Pesquisadores ouvidos pelo periódico referem-se ao fim das limitações como um “peso” retirado de seus ombros. “Era um malabarismo incrível tentar levar a informação mais inócua para a mídia ou o público”, disse Diane Lake, que trabalhava como assessora de imprensa de um órgão de pesquisa federal. “Era como se uma cortina de ferro tivesse se fechado sobre a comunicação das pesquisas aos canadenses”.

A psicologia do mau motorista

Métodos contra o câncer

Motoristas que repetidamente dirigem embriagados ou violam limites de velocidade com frequência têm um perfil psicológico e uma reação ao estresse peculiar, e não veem a si mesmos como pessoas que correm riscos exagerados ou desnecessários, diz um estudo canadense publicado no periódico PLoS ONE. Os autores do trabalho elaboraram perfis de quatro grupos de motoristas, sendo 36 indivíduos que haviam sido detidos por dirigir embriagados repetidas vezes, 28 punidos por direção perigosa, mas sem a influência do álcool, 27 pegos dirigindo de modo perigoso com e sem abuso de bebida e um grupo de controle, composto por 47 motoristas com histórico considerado de baixo risco. Em comum, os três grupos de motoristas envolvidos em atos de direção perigosa mostraram um aumento menor de cortisol

Os métodos atualmente usados para avaliar a eficácia de possíveis novas drogas contra o câncer – os chamados ensaios de proliferação – são inadequados e deveriam ser substituídos por um procedimento que leve em conta os efeitos da droga ao longo do tempo, argumenta artigo publicado no periódico Nature Methods. O trabalho, de autoria de pesquisadores da Universidade Vanderbilt, nos EUA, descreve o procedimento fundamental dos ensaios de proliferação celular da seguinte forma: “uma droga é adicionada a uma população celular dentro de um espectro de concentrações, e o efeito sobre a população é quantificado segundo a métrica escolhida. A métrica padrão ‘de facto’ é o número de células viáveis 72 horas após a adição da droga”. Os autores argumentam que, por depender de medição feita num ponto fixo do tempo, esse processo é “estático” e não leva em conta especificidades da proliferação celular, incluindo possibilidades como a de um “rebote” proliferativo das células cancerosas sobreviventes, após uma intervenção aparentemente bem-sucedida. Chamando atenção para a baixíssima eficiência dos métodos atuais de prospecção de drogas contra o câncer – menos de 90% das moléculas que chegam a ser testadas em seres humanos dão origem a terapias – a equipe de Vanderbilt propõe uma nova métrica, chamada Proliferação Induzida por Droga (DIP, na sigla em inglês), definida como a taxa de proliferação das células, sob diferentes concentrações da droga, ao longo de um intervalo de tempo. Os detalhes do cálculo da DIP são descritos no artigo “An unbiased metric of antiproliferative drug effect in vitro” (doi:10.1038/nmeth.3852).

Foto: Martin Frouz e Jiří Svoboda/Divulgação

Crânios humanos de 51 mil anos, encontrados na República Checa

Cientistas canadenses falam sobre censura

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lgação

Foto: Divu

Nem limpa, nem cirúrgica

Modelo de drone utilizado em operações militares: equipamento, que hoje é usado como arma letal, foi desenvolvido originalmente para realizar atividades de vigilância

Fotos: Antoninho Perri

Tese aponta que uso de drones pelos EUA contribuiu para banalizar a violência em guerras nas quais o país está envolvido MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

o contrário do que apregoa o discurso das autoridades políticas e militares dos Estados Unidos, o uso de Veículos Aéreos Não Tripulados (VANTs), os conhecidos drones, não contribuiu para o surgimento de guerras rápidas, limpas e cirúrgicas, mas sim para a banalização da violência e barbarização dos conflitos nos quais o país está envolvido. A conclusão é da tese de doutorado de Alcides Eduardo dos Reis Peron, defendida no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, sob a orientação do professor Rafael de Brito Dias. De acordo com o autor da pesquisa, o emprego dessa tecnologia também favoreceu o estabelecimento de um estado permanente de guerra, sem que este seja plenamente percebido pela opinião pública norte-americana. No estudo, Peron, que é graduado em relações internacionais, compreende o drone como um dispositivo que cristaliza os interesses políticos de uma época, notadamente no que se refere às decisões no âmbito da segurança nacional dos Estados Unidos. “Eu utilizei nas minhas análises o suporte teórico proporcionado pela área que investiga temas relacionados à ciência, tecnologia e sociedade. Nesse contexto, eu defendo a ideia de que os drones são o vetor de um discurso sobre a guerra, que tem evidentemente um forte componente ideológico”, explica. Segundo esse pressuposto, os VANTs servem ao propósito das autoridades de promover um distanciamento dos norteamericanos dos horrores da guerra. Ao enviar máquinas e não tropas aos campos de batalha, o governo fomenta um sentimento “sanitizado” da sociedade em relação aos conflitos. “Ao incorporarem o discurso de uma guerra precisa, limpa e sem efeitos colaterais para os que não são os alvos diretos das operações, os norte-americanos assumem a falsa sensação de que não estão em guerra”, reforça Peron. Esse comportamento fica mais claro quando se analisa os resultados de uma pesquisa de opinião realizada pela empresa Gallup. De acordo com o levantamento, 65% dos norte-americanos aprovam o uso de drones no combate ao terrorismo. Entre os entrevistados, foi constatado que 48% acompanham com interesse as notícias sobre os conflitos nos quais o país está envolvido. Destes, 74% concordam com o emprego dos VANTs contra norte-americanos em outros países ou contra terroristas em outros países. Por meio dos veículos não tripulados, observa o professor Dias, os Estados Unidos encontraram uma maneira de realizar intervenções militares em estados soberanos que não estão em guerra. “Em outras palavras, o país utiliza uma solução tecnológica para burlar limites políticos e jurídicos”. Devido aos avanços registrados nos últimos anos, prossegue o docente, os drones ganharam autonomia suficiente para serem operados a partir do próprio território norte-americano. Com isso, também os militares se distanciam do confronto, o que contribui para que passem a enxergar a guerra com naturalidade.

apenas no Paquistão, no período de 2004 a 2014, aproximadamente 3.500 pessoas foram mortas em ações com drones. Destes, 190 (5,4%) eram crianças. “De todas as vítimas, somente 52 (1,5%) tinham a entidade conhecida pelas autoridades norteamericanas”, elenca Peron. Os relatos dos combatentes acerca de ações de guerra são impressionantes, como observa o professor Dias. “Há um depoimento no qual o operador olha e afirma que acha que o alvo foi um cachorro. Outro, porém, diz que a vítima foi uma criança. Tudo com grande naturalidade. Vale destacar que a sala de comando dos drones se assemelha muito ao cockpit de determinados videogames. Ocorre que os jogos de guerra, nesse caso, geram vítimas reais”, adverte o docente.

ORIGEM

Alcides Peron, autor da tese: “Ao incorporarem o discurso de uma guerra precisa, limpa e sem efeitos colaterais para os que não são os alvos diretos das operações, os norte-americanos assumem a falsa sensação de que não estão em guerra”

Peron explica que tanto os pilotos dos drones quanto os operadores dos sensores vivem num estado permanente de guerra e paz. Ao encerrarem o turno de trabalho, eles voltam normalmente para casa e para suas famílias. O pesquisador cumpriu parte do doutorado na Inglaterra, onde foi investigar qual era o sentimento desses militares em relação ao trabalho que executam. Ele se baseou em uma pesquisa desenvolvida pelo médico Wayne Chapelle, que entrevistou 1.600 operadores de drones. Segundo o estudo, somente 20% deles apresentavam algum tipo de estresse, sendo a maioria dos quadros associada a questões operacionais e não diretamente envolvida com as ações de guerra. Dito de modo simplificado, esses profissionais são tão estressados quanto um professor, um jornalista ou advogado, ainda que o ofício deles seja, em muitas ocasiões, ceifar a vida de seres humanos, vários deles sem qualquer vínculo direto com o terrorismo. “Existem mecanismos que permitem às pessoas se desligarem emocionalmente de uma situação, o que abre a possibilidade para cometerem um ato ilegal ou eticamente condenável”, esclarece Peron. No caso dos pilotos de drones e operadores de sensores, esse mecanismo é potencializado pelo já referido distanciamento do campo de batalha. “Durante as

operações, eles não sentem cheiro, não ouvem som e não enxergam cores. Esses combatentes sabem que estão matando pessoas, mas a morte se torna abstrata para eles. Ela é apenas a morte”, pontua o autor da tese. O professor Dias destaca dois pontos que considera importantes sobre a pesquisa. O primeiro deles é o fato de Peron ter promovido o diálogo entre diferentes áreas do conhecimento, como engenharia, economia, geopolítica etc, de modo a buscar explicações para as questões abordadas. O segundo refere-se ao esforço do estudo para fazer emergir as pessoas que estão do outro lado da guerra, e que normalmente permanecem invisíveis aos olhos da comunidade internacional. O docente lembra que onde vivem os terroristas, vivem também civis sem qualquer tipo de engajamento com o terrorismo ou movimentos antiamericanos. “Os taques com drones alteram o modo de vida dessa população. As crianças do Paquistão, por exemplo, evitam sair às ruas em dias claros porque é justamente nessa circunstância que as operações ocorrem com maior frequência”, relata Dias. Os resultados dos ataques com veículos não tripulados nada têm de cirúrgicos e limpos, insistem os pesquisadores. Dados obtidos por Peron a partir do cruzamento de informações de três conceituadas plataformas dos Estados Unidos revelam que

Os drones foram desenvolvidos para serem utilizados como dispositivos de vigilância. Pelo menos este era o objetivo inicial do engenheiro aeronáutico Abe Karem, conhecido como “pai do drone”. Nascido em Bagdá, ele migrou primeiramente para Israel, onde trabalhou para o exército local, e depois para os Estados Unidos. A ideia original era enviar os veículos para fazer o reconhecimento do terreno e a identificação dos inimigos, através de câmeras e sensores. O drone ofereceria, por assim dizer, suporte para uma posterior operação de ataque. O equipamento também foi utilizado pelo exército israelense como uma espécie de isca. O VANT era lançado com o propósito de ser localizado e atacado pelos inimigos. Com isso, Israel identificava as linhas inimigas e as bombardeava. Já as autoridades militares dos Estados Unidos perceberam a oportunidade de transformar o drone em uma arma letal, promovendo o acoplamento de mísseis e metralhadoras. “Aliás, essa junção é que permitiu ao país passar ao largo das questões legais que impediriam o uso desse tipo de artefato bélico. Como drone e armamentos já tinham aprovação separadamente, os norte-americanos promoveram a união deles, driblando assim a necessidade de submeter a admissão da tecnologia ao ordenamento jurídico internacional”, detalha Peron. Conforme o autor da tese, as questões abordadas em seu trabalho têm sido debatidas e denunciadas por organizações não governamentais tanto nos Estados Unidos quanto em outros países. “Ocorre, porém, que esse movimento ainda não chamou a atenção do grande público, principalmente porque o lobby contrário é muito forte. Vale lembrar que algumas empresas de alta tecnologia envolvidas na produção de drones estão entre os principais financiadores das campanhas eleitorais americanas, principalmente do Partido Democrata, em cujas administrações o uso dos VANTs cresceu exponencialmente”, registra Peron, que contou com bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência do Ministério da Educação.

Publicação

O professor Rafael Dias, orientador da pesquisa: “Os taques com drones alteram o modo de vida das pessoas. As crianças do Paquistão, por exemplo, evitam sair às ruas em dias claros porque é justamente nessa circunstância que as operações ocorrem com maior frequência”

Tese: “American way of war: O reordenamento sociotécnico dos conflitos contemporâneos e o uso de drones” Autor: Alcides Eduardo dos Reis Peron Orientador: Rafael de Brito Dias Unidade: Instituto de Geociências (IG) Financiamento: Capes


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Grupo descreve molusco de 2 mm Bivalve coletado na Bacia de Campos é um dos menores animais carnívoros do mundo Foto: Antoninho Perri

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

esquisadores ligados à Unicamp, juntamente com um cientista da Universidade de Hong Kong, publicaram, no ano passado, a primeira descrição detalhada da anatomia de um dos menores animais carnívoros do mundo: um molusco de menos de 2 milímetros de comprimento, chamado Grippina coronata. Esse molusco é um bivalve – tem uma concha dividida em duas partes – coletado na Bacia de Campos pela Petrobras, e encaminhado à Unicamp para estudo. “O laboratório tinha recebido um material importantíssimo da Bacia de Campos para identificação”, disse o pesquisador Fabrizio Marcondes Machado, um dos autores brasileiros do artigo que descreve a Grippina coronata, publicado no periódico Journal of Molluscan Studies, e de uma dissertação de mestrado que trata da identificação de duas famílias de microbivalves até então desconhecidas em águas brasileiras, Cyamiidae e Spheniopsidae. “Quando cheguei para o mestrado, o professor Flávio [Flávio Dias Passos, do Departamento de Biologia Animal do IB-Unicamp, orientador da dissertação de Machado e também autor do artigo] disse, olha, tem um material aqui superbacana, com mais 15 mil indivíduos”, lembrou Machado. A G. coronata pertence à família Spheniopsidae, que ainda não havia sido registrada para o Brasil. “Algumas espécies dessa família já tinham sido descritas para a Nova Zelândia, oeste da África, América do Norte e Pacífico, mas até então, na América do Sul, não”, disse Passos. “E o bacana dessa família é que ela era totalmente desconhecida quanto aos seus caracteres anatômicos. Até o nosso trabalho, não se sabia nada sobre a anatomia desses animais, para além das características da concha”, acrescentou o orientador. “Os caracteres da anatomia trazem elementos para a gente saber como o animal vive. E, surpreendentemente, descobrimos que eles são carnívoros, uma coisa que para os bivalves nem é tão comum. Tem um grupo grande de bivalves que é carnívoro, só que até então a gente não sabia que os Spheniopsidae se enquadravam ali. E isso é surpreendente porque eles são muito pequenos, mas ainda assim, carnívoros”, disse Passos. Esses animais vivem enterrados, em substratos que podem ser areia ou lodo no fundo do mar e provavelmente se alimentam de larvas de outros crustáceos, ou de animais ainda menores, com tamanho de frações de milímetro.

ANATOMIA

Estudar a parte mole de um molusco milimétrico requer cuidados especiais: o uso de técnicas invasivas para eliminar a concha e expor a parte interna traz o risco de danificar seriamente o animal, que é extremamente delicado. “A gente geralmente não disseca, porque como o animal é muito pequeno, seria problemático, poderia causar alguma lesão na parte interna. Então, põe-se numa solução levemente ácida que descalcifica a concha, deixando a parte mole exposta”, explicou Machado.

O professor Flávio Dias Passos (à esq.) e o pesquisador Fabrizio Marcondes Machado: artigo em periódico internacional

Os pesquisadores constataram então a presença de um septo muscular – um músculo que divide a parte interna do bivalve em duas câmaras. “Esse septo tem uma função interessantíssima nos bivalves carnívoros, ele é fundamental, porque funciona como uma bomba de sucção para captura de presa”, disse Machado. “Os sifões do molusco ficam à mostra, para fora do substrato, com os tentáculos sensoriais que sentem as vibrações da presa quando ela passa na água. Isso atua como um estímulo, e então o septo se contrai lá dentro, cria uma pressão negativa na câmara e suga: cria uma corrente de água que traz a presa para dentro”. “A boca dos carnívoros geralmente é grande, porque como esses animais não têm dentes para mastigar, a presa entra viva”, descreveu. “Viva, ela cai no esôfago e no estômago. E o estômago é modificado nos bivalves carnívoros: além de produzir enzimas muito potentes para a digestão, ele tem um revestimento protetor de quitina, para que a presa, ao se debater, não acabe rompendo o órgão”. “O objetivo maior do laboratório é formar alunos na descrição da biologia dos moluscos. O Fabrizio fez isso, ele pegou duas famílias e descreveu aspectos da biologia desses moluscos”, disse Passos. “Apesar de não pegá-los vivos, para saber como se alimentam e tal, na parte mole de um molusco a gente tem essas pistas de como eles vivem. Então, além de descrever espécies novas, a ideia também é descrever a biologia delas”. “O diferencial do trabalho dele foi observar a parte mole, porque a concha dos moluscos é a parte mais conhecida: todo mundo gosta, os amadores colecionam, todo mundo quer ter conchas bonitas em casa como decoração”, acrescentou o orientador. “Já a parte mole é a menos estudada, até porque é mais difícil, exige um conhecimento muito maior. E as espécies que ainda faltam serem descritas no Brasil são principalmente as que são pequenas ou que ocorrem em lugares muito específicos, que fica difícil de a gente achar, ou em grandes profundidades”.

ÁGUAS RASAS

As amostras recebidas da Petrobras pelo laboratório de Passos haviam sido coletadas em 2009 na Bacia de Campos. “Essa é uma área muito grande, que vai desde o norte do litoral de São Paulo até o sul do Espírito Santo”, descreveu o orientador. “É muito rica em recursos minerais, como gás e óleo, é muito rica para exploração de petróleo. As empresas envolvidas na prospecção e exploração, como a Petrobras, têm que fazer projetos de monitoramento, e foi com a identificação do material coletado por esses projetos que me envolvi”. “Na literatura que se tinha sobre bivalves carnívoros, o que é mais conhecido e mais divulgado é que eles são, preferencialmente, animais de águas profundas. Quando digo profundas, são mais de 500 metros de profundidade”, disse Machado. “Mas a Gripina coronata, que foi a espécie que descrevemos no artigo, e a Spheniopsis brasiliensis, que também descrevemos e vai aparecer em outro artigo, ocorrem entre 10 e 120 metros de profundidade. Ou seja, isso é raso: se coletei um bivalve, com parte mole, a 20 metros de profundidade, isso não é tão profundo quanto a literatura sugeria”. A fauna marinha brasileira ainda é muito pouco conhecida, ressalta Passos. “São poucos os navios oceanográficos no Brasil, então quando alguém faz uma coleta, aparece muita novidade. Ainda tem muita coisa para conhecer, inclusive sobre ações humanas, a presença de poluentes. Vamos ver agora, por exemplo, o que vai acontecer com a foz do Rio Doce”, lembrou, referindo-se ao desastre do lançamento de lama de mineração de ferro da empresa Samarco nas águas do rio, em novembro do ano passado. “Conhecendo a biologia das espécies que ocorrem nessa foz, a gente vai saber quem vai resistir ou não, de acordo com os aspectos de cada espécie”. Quanto às espécies descobertas e descritas no artigo – que tem como coautor internacional o pesquisador Brian Morton, da Universidade de Hong Kong – e no mestrado de Machado, os dois brasileiros acreditam que elas sempre estiveram no nosso litoral, e apenas não haviam sido identificadas até agora. “Os animais pequeninos que ocorrem em águas profundas estão lá há séculos”, disse Passos. “Provavelmente amostras até já tinham sido coletadas, mas como os indivíduos dessas espécies são muito pequenos, acabaram confundidos com jovens de outras. Até deve ter em coleções esses animais, mas nunca ninguém prestou atenção”, acrescentou Machado, que segue com um doutorado na mesma área. Para o futuro, a ambição é conseguir estudar esses animais minúsculos ainda vivos: “Se a gente conseguir organizar a coleta dos animais vivos, dá para observar diretamente como eles vivem, fazendo experimentos, pegando dados do DNA... Enfim, dá para fazer muito mais coisas”, disse Passos.

O itinerário da coleção de Maurício de Nassau CRISTIANE MARIA MAGALHÃES cristmag@gmail.com

o notável livro De Olinda a Holanda: O gabinete de curiosidades de Nassau, Mariana Françozo traça com competência a formação da coleção organizada pelo conde João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679) durante período em que foi governador do Brasil holandês, entre 1637 e 1644. A pesquisa se deu dos dois lados do Atlântico, o que faz dela um estudo inédito na abordagem do tema referente ao período nassoviano no Brasil e seu retorno aos Países Baixos. A obra trata da análise dessa coleção, do seu valor simbólico e significado como conjunto e de suas ligações com a cultura visual neerlandesa no período Moderno, tangenciando, ainda, a produção e a circulação de conhecimentos e de saberes que se fizeram sobre a América na Europa durante o século XVII. Estudo primorosamente elaborado no doutorado em Ciências Sociais da Unicamp, sob a orientação de John Manuel Monteiro, sua autora conduz o leitor com propriedade e fluência narrativa a conhecer a formação, a circulação e a dispersão dessa coleção de objetos. Por que o conde alemão teria tido interesse em montar um conjunto composto quase que exclusivamente de objetos sul-americanos? Qual o sentido de levar esse conjunto de volta para os Países Baixos, para, em seguida, desfazer-se dele? São questões que norteiam o trabalho. No caminho para responder a essas problematizações, Françozo apresenta um cenário amplo a respeito do debate científico europeu no período Moderno; o impulso editorial nos Países Baixos, ao qual ela denomina de “revolução editorial”; as rotas marítimas comerciais no Atlântico; a importância das viagens para a prática colecionista, além de descrições preciosas do estabelecimento de Nassau e sua comitiva no Brasil e da construção do palácio e jardim de Vrijburg. Aspectos da História Natural e descrições da natureza tropical são também privilegiados na pesquisa.

Sílvia Lara, no prefácio do livro, enfoca como a autora mostra que o hábito de colecionar não era fruto de alguma característica particular de Nassau, mas sim um hábito comum a nobres e burgueses europeus. Colecionava-se para estudar ou para mostrar. Colecionava-se na busca de prestígio e de distinção social. O ineditismo e a singularidade da obra, contudo, se fazem pela abordagem primorosa da cultura material ao dar visibilidade à produção e à circulação de saberes, pessoas, objetos e artefatos culturais entre a América Portuguesa e os Países Baixos. Destacamos, ainda, o ineditismo das fontes documentais com as quais a autora interagiu e trouxe à luz em países como a Holanda, a Alemanha e a Dinamarca. O resultado é uma amálgama de conceitos e de metodologias de abordagens dos campos de conhecimento da antropologia e da história, entre os quais a pesquisadora transita com facilidade. Organizado em quatro capítulos e um epílogo, além da apresentação de Heloísa Pontes e o prefácio de Sílvia Lara, o livro tem na capa uma imagem emblemática. É o Retrato póstumo de Mary Stuart I, pintura do neerlandês Adriaen Hanneman feita em 1664. Na imagem, Mary Stuart veste um belo manto de penas vermelhas e amarelas. Na cabeça, usa um turbante feito de penas vermelhas de avestruz. A nobre europeia se fantasiou de indígena americana usando o manto e o turbante constantes da coleção de Nassau e aparece em dois quadros pintados por Hanneman usando idêntica indumentária, inusitada para aqueles círculos. O ornato plumário teria manufatura controversa, apesar da presunção de sua origem no Brasil durante ocupação holandesa. A doação de artefatos de penas faria parte de uma estratégia indígena de aliança com os holandeses no nordeste da colônia. Ao retornar à Europa, o manto percorreu grupos sociais demarcados, assim como aconteceu com outros itens da coleção. A circulação dos objetos colecionáveis introduzia o mundo não europeu na Europa, ressignificando os seus usos e interpretações. A exposição do trânsito e das permutas desses objetos tornou visíveis práticas sociais, laços comerciais, pessoais e de poder que foram se constituindo nesses itinerários.

SERVIÇO Título: De Olinda a Holanda: O gabinete de curiosidades de Nassau Autora: Mariana de Campos Françozo Páginas: 288 páginas Área de interesse: História e Antropologia Preço: R$ 60,00 Editora da Unicamp www.editoraunicamp.com.br

Ao final, o livro oferece 44 ilustrações coloridas pouco veiculadas no Brasil, como aquarelas de Georg Markgraf, pinturas de Albert Eckhout, frontispício da Historia Naturalis Brasiliae, xilogravuras e aquarelas representando os índios brasileiros e fotografias de objetos e mobiliários que pertenceram à coleção de Nassau. De Olinda a Holanda é estudo acurado, habilmente redigido, que merece leitura atenta e contempla públicos distintos dos campos das ciências humanas e os amantes das artes e das ciências como um todo. Cristiane Maria Magalhães, mestre em História pela UFMG, doutora em História pela Unicamp, pesquisadora independente e palestrante nas áreas de patrimônio cultural e de jardins históricos.


5 Campinas, 9 a 15 de maio de 2016

Professor da Unicamp critica atuação do STF e prevê cenário político turbulento CLAYTON LEVY clayton@reitoria.unicamp.br

outor em filosofia e professor de Ética Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Romano diz que, em boa parte, a crise política atual é resultado de uma acomodação da esquerda em relação ao esquema dominante do Estado brasileiro e suas raízes absolutistas. “É estranho se falar, hoje, em golpe da direita contra um sistema de esquerda. Boa parte dos ministros de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff pertence à direita. E tais alianças foram instituídas tendo em vista o realismo, a governabilidade”. E arremata: “Quem se alia a notórios defensores de golpes e de governos autoritários espera apoio fiel a políticas democráticas?”. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o filósofo examina o atual cenário político a partir de uma perspectiva histórica. “Não tivemos, como povo, experiências duradouras de ordem democrática”, observa. Romano também analisa a polarização política e ideológica, a atuação da mídia, o papel do Supremo Tribunal Federal e a Operação Lava Jato. E traça um quadro turbulento para o futuro: “O nosso problema se localiza no Estado antidemocrático, na sociedade idem, na ausência de qualquer accountability nos três poderes. O concreto mesmo é que em pouco tempo estaremos às voltas com crises mais graves do que a de hoje”.

Para Romano, acomodação da esquerda está na gênese da crise Foto: Antonio Scarpinetti

Jornal da Unicamp – Desde a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, na Câmara e agora no Senado, a sociedade convive com dois discursos antagônicos. Os contrários ao processo afirmam que se trata de um “golpe”. Os que defendem a saída da presidente garantem que se trata de um processo constitucional. Em sua opinião, quem está com a razão? Roberto Romano – É difícil encontrar alguma “razão” se a crise geral bate à porta de todos. Erich Auerbach, ao analisar a propaganda política no livro intitulado Mimesis, enuncia que o universo social é como um palco onde muitas cenas se apresentam. O propagandista coloca o holofote sobre algumas cenas, deixa as demais na penumbra. Assim, o público testemunha atos verdadeiros, mas não totalmente imersos na verdade. Para a verdade, diz ele, é preciso toda a verdade e nos momentos de luta e crise não sobra tempo para inspeções amplas. Sim, tem motivos certos quem afirma ser o impeachment algo legal. Mas eles deixam nas sombras todo o jogo de interesses políticos, econômicos, religiosos que também deveriam ser considerados. Desde que o governo federal abriu as portas dos cofres para empresários, com juros baratos e larga margem de manobra, os donos do capital julgaram que tudo lhes é devido, sem riscos. Como disse um conhecedor do empresariado, este último vive do alimento estatal. Ademais, a ética golpista integra o universo de nossos supostos empreendedores. Sua presença foi essencial em 1964 e ao longo da ditadura. Como todos os presidentes posteriores ao regime autoritário lhes deram o que puderam e não puderam, até o primeiro governo Dilma eles não retornaram ao seu antigo sestro. Quando perceberam que os cofres estavam vazios, para eles e para todos, iniciaram a campanha, de início sigilosa e depois aberta, para derrubar a governante. Também do lado político, muito se agiu no segredo nos últimos tempos. Com a ameaça da Operação Lava Jato, surgiram no Congresso vários projetos de lei que pretendem preservar a corrupção e penalizar seus críticos. Eles poderão vigorar,

O professor Roberto Romano: “A ética golpista integra o universo de nossos supostos empreendedores”

como normas legais, com a mudança de governo. Medidas para coibir ações do Ministério Público estão na Câmara dos Deputados, e outras iniciativas que buscam preservar os representantes da população, contra ela. O sigilo vigorou também em reuniões preparatórias do impeachment. JU – O sr. poderia exemplificar? Roberto Romano – O parlamentar Heráclito Fortes (Arena, depois PFL, agora socialista!) deu uma longa entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, na qual narra as reuniões reservadas a poucos com o alvo de elaborar o impedimento da presidente. Os cenários jurídicos foram idealizados e expostos pelo ex-presidente do STF, Nelson Jobim (ministro de Luiz Inácio Lula da Silva), com a presença de outros juristas, políticos e mesmo de integrantes do PT (Henrique Fontana, Arlindo Chinaglia). Pergunto: quando parlamentares e juristas se reúnem sigilosamente, por mais de um ano, discutindo estratégias para o impeachment, inclusive com a presença de partidários do governo, não estaríamos diante de uma estratégia preparatória? Some-se a atividade da Fiesp a tal iniciativa, e teremos um quadro conspiratório efetivo, não um fantasma de golpe. Agora, chegam as perguntas incômodas: o governo e seu partido, tendo nas mãos instrumentos de vigilância, foram tomados de surpresa ou receberam advertências sobre o rumo das coisas? Como os partidários do governo conviveram com tais atos visando a sua destituição? A resposta está na jaula das alianças encetadas desde o primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva.

O governo teve diante de si as tratativas para seu impedimento, boa parte delas lideradas por aliados. É estranho se falar, hoje, em golpe da direita contra um sistema de esquerda. Boa parte dos ministros de Luis Inácio da Silva e de Dilma Roussef pertence à direita. E tais alianças foram instituídas tendo em vista o realismo, a governabilidade. Temos aí resultado da acomodação da esquerda ao esquema dominante no Estado e na sociedade brasileira. Quem se alia a notórios defensores de golpes e de governos autoritários (ACM, José Sarney, Jader Barbalho, Gilberto Kassab, Katia Abreu, Romero Jucá e outros, a lista é extensa) espera apoio fiel a políticas democráticas? No caso da Fiesp, a fábula de La Fontaine sobre o lobo e o cordeiro não foi lembrada: o lobo não se contenta com as concessões do cordeiro, ele exige tudo. Finanças e poder tendem para o absoluto e o convívio com poderosos nos dois campos é muito simples: tudo lhes é devido. O partido do governo imaginou ser possível partilhar com oligarcas regionais poderosos e com os suportes das finanças nacionais e internacionais o mando e os recursos. No início do governo Luiz Inácio Lula da Silva, José Genoino disse algo importante: “estamos no governo, mas não temos o poder”. O esquecimento de tal realidade só poderia terminar em fim melancólico. O resultado aí está. O impeachment é constitucional, mas a Constituição ou é um sistema de normas que regulam umas às outras, ou é apenas um ajuntamento de regras desconexas e ineficazes. Por exemplo: a determinação do impeachment, sobretudo por crime de responsabilidade, deve ser conectada ao

mandamento do Capítulo VII, artigo 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”. Vejamos as cenas escondidas com o processo de impeachment. Este é contra um dos operadores do Estado, a presidente. Mas lancemos os olhos sobre parlamentares que autorizaram o procedimento. Boa parte deles, algo em torno de 135 deputados federais, estão na mira da Justiça ou já respondem processo judicial, protegidos pela prerrogativa de foro. Eduardo Cunha é réu estabelecido e alvo de vários processos por improbidade. O Senado não tem situação diferente, a partir do parlamentar que o preside. Mesmo setores da oposição têm contra si investigações policiais e do Ministério Público. Qual legitimidade resta ao Congresso Nacional para impedir a dirigente do Executivo? Do ponto de vista estritamente legal, pode ser enunciada a validade do procedimento. Mas no horizonte da legitimidade – as cenas escondidas indicadas por Auerbach – que vai muito além e aquém da norma, seria preciso destituir ao mesmo tempo os que integram o Legislativo e, mesmo, setores do Judiciário. Talvez seja tempo, não de convocar eleições gerais, mas uma Assembleia Nacional Constituinte, dissolvendo-se o atual Congresso, eivado de vícios devidos aos piores procedimentos partidários e corruptos.

(Continua nas páginas 6 e 7)


6 Campinas, 9 a

‘Não tivemos experiências dura CLAYTON LEVY clayton@reitoria.unicamp.br

(Continuação da página 5) JU – Outro argumento presente no discurso dos governistas é que o processo de impeachment, tal como foi aprovado, implicaria num Estado de Exceção e, portanto, num risco para a democracia. Afinal, nossa democracia corre perigo? Roberto Romano – Estranho que só agora tenha sido descoberta a lógica que define a máquina estatal brasileira. A nossa forma política e jurídica, desde o século 19, vive em perene estado de exceção. No Império e nas Regências, a força física (um dos monopólios mais abusados em nosso país pelos governos) e as normas legais não valiam para os donos das regiões, os coronéis, e para os proprietários do poder central. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. No século 20, duas ditaduras sanguinárias impediram qualquer atividade livre e democrática. No regime de 1964 mesmo decretos secretos foram promulgados. Não tivemos, como povo, experiências duradouras de ordem democrática. E o suposto protetor da Constituição, o cimo da Justiça, o STF, sempre coonestou os piores abusos e arbítrios do Executivo, não raro apoiado pelo Legislativo. Somos um Estado absolutista anacrônico e ainda não chegamos à República. É bom recordar que governantes de centro-esquerda e de esquerda, tendo em vista as alianças pela governabilidade, ajudaram a manter o mando oligárquico e os privilégios dos que operam o Estado. Sinto muito recordar, agora, um fato marcante. Quando José Sarney usou helicóptero público para passear em sua ilha da fantasia, e foi denunciado, Luiz Inácio Lula da Silva decretou que “Sarney não é um homem comum”. A República exige que todos sejam comuns. As exceções jamais devem ser toleradas. Enquanto o realismo político, em leitura tosca de Maquiavel, encobrir os oportunismos da hora, a democracia corre perigo, como hoje. Quando chegou ao governo federal, a liderança de esquerda deveria conhecer o modo de funcionamento da máquina repressora e perenemente ditatorial do Brasil. Mas ela abraçou justamente os que mantiveram ditaduras direitistas no século 20.

JU – O senhor se preocupa com o atual momento brasileiro no que diz respeito à segurança das instituições? Roberto Romano – Um mantra repetido, sobretudo à direita, mas também aceito pela esquerda, reza que “nossas instituições funcionam normalmente”. É o mundo da fantasia que, uma hora ou outra, sofre a resistência da realidade. Como pode funcionar normalmente um Legislativo à beira das celas, e onde os seus presidentes são fortes candidatos à cadeia? Como pode funcionar normalmente uma Justiça que ainda julga, no STF, casos de roubo de doces (o último deles foi relatado pelo juiz Fux, semanas atrás) e demora anos e anos para julgar políticos corruptos e confessos? Se as instituições brasileiras funcionam segundo normas, estas últimas devem ser abolidas incontinenti. Sim, me preocupo porque as nossas instituições não servem aos contribuintes e aos cidadãos. Nossa sociedade amadureceu bastante, se urbanizou de modo célere desde os anos 60 do século 20, o que exige o aporte de serviços públicos complexos (água, esgoto, escola, hospital, lazer, etc) que não são atendidos pela enorme centralização das políticas públicas. Sessenta por cento dos municípios brasileiros não têm água e esgoto condignos. E nos demais setores, o descalabro é similar. As manifestações de 2013 tiveram o condão de chamar à consciência tais problemas. Os operadores do Estado, em vez de seguirem para o rumo democrático, apresentaram projetos restritivos de direitos e privatizantes. Uma sociedade de 200 milhões de integrantes não recebe, do Estado, serviços públicos eficazes. E no plano da segurança, temos o descalabro policial e o elitismo au-

toritário dos juízes. Não por acaso somos campeões de assassinatos no mundo. Só existe garantia institucional quando a maioria do povo é assistida no cotidiano. JU – Qual o efeito concreto que o eventual impeachment da presidente Dilma poderia ter nesse cenário? Roberto Romano – Com o impeachment, teremos outro curativo no organismo do Estado brasileiro, o que, evidentemente, não vai melhorar o todo estatal formado sob o modelo absolutista, irresponsável, corrupto, oligárquico. No plano imediato, haverá certa “melhora” na economia, dado que os ditames do capital financeiro serão obedecidos e as empresas terão novamente os cofres públicos ao seu dispor. Mas o nosso problema se localiza no Estado antidemocrático, na sociedade idem, na ausência de qualquer accountability nos três poderes. O concreto mesmo é que em pouco tempo estaremos às voltas com crises mais graves do que a de hoje. As crises resultam da estrutura não democrática do Estado e da sociedade. Sem mudanças em ambos, o caos será sempre uma ameaça, mais abrangente. JU – É possível identificar, do ponto de vista histórico, os fatos que deram início à atual crise política? Como o senhor vê essa crise sob uma perspectiva histórica? Roberto Romano – Dom João trouxe para cá todo o ressentimento contrarrevolucionário, oposto às conquistas democráticas trazidas pelos movimentos políticos que mudaram o Estado inglês (os puritanos e a doutrina da accountability), ajudaram a instaurar o Estado norte-americano, e destruíram a monarquia francesa. Aqui, o Estado foi imposto como instrumento contrário às formas democráticas. O princípio da irresponsabilidade do Chefe de Estado, na Constituição de 1824, simboliza o “poder divino” ainda outorgado ao soberano. À “gente ordinária de vestes”, o povo, restou muito pouco após o banque-

te dos funcionários e oligarcas. Com a República, quase nada mudou. Ainda subsiste entre nós a ambiguidade entre prerrogativas e privilégios dos que operam os poderes. Entremos em qualquer prefeitura: atrás do balcão existe sempre um cartaz enorme, avisando: “Insulto a funcionário, tantos anos de cadeia”. Mas não existe, ao lado, um outro quadro “desrespeito ao cidadão, tantos anos de cadeia”. Esta é a miniatura do que se passa no Estado maior. No Antigo Regime o rei comprava o clero e os nobres com isenções, privilégios, empregos. Mas nunca foi registrado que o mesmo rei pagava as carruagens do cardeal ou duque. Aqui, dos vereadores aos senadores, passando pelos prefeitos, deputados estaduais, federais, secretários, etc. todos têm carruagem pagas pelo povo soberano. São bilhões que poderiam ser empregados em saúde, educação, etc. E não falemos da excrecência, abençoada pelo STF, da prerrogativa de foro. Tais marcas foram adquiridas em séculos de ampla dominação política, econômica e social. Elas definem um modelo obsoleto e injusto. Que, se não for removido, trará ainda muito sofrimento. JU – Analistas políticos de diversas tendências costumam fazer comparações históricas para tentar interpretar a crise atual. Alguns comparam o atual momento à crise que resultou no suicídio do presidente Vargas, em 1954. Outros evocam cenários internacionais, como o processo que levou à instauração do Reich e a ascensão de Hitler. O senhor vê paralelos? Roberto Romano – Situações diversas exigem análises diversas, o truísmo é apenas de superfície. Eu mesmo indiquei algo similar quando disse, em data recente, que a ruptura beligerante entre o PT e o PSDB só tenderia a beneficiar a direita nacional. Fui criticado acerbamente pelos seguidores do PT, do PSDB e dos que seguem Olavo de Carvalho. Eu lembrava justamente as crises da República de Weimar, quando os maiores inimigos da social democracia eram os

“Qu ACM Bo

“Enquanto o realismo político, em leitura tosca de Maquiavel, encobrir os oportunismos da hora, a democracia corre perigo, como hoje”

“O nosso problema se localiza no Estado antidemocrático, na sociedade idem, na ausência de qualquer accountability nos três poderes”

“Ainda estamos longe de conhecer todas as cenas ocultas da Lava Jato. O que vem à tona mostra um trato duro e tecnicamente correto com acusados ou réus de corrupção”


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adouras de ordem democrática’ Fotos: Antonio Scarpinetti

comunistas e vice-versa. O que abriu a porta para a radicalização das direitas, com o corolário nazista. O certo é que as batalhas entre a centroesquerda tucana e o PT, levaram a primeira a se enfraquecer dentro do PSDB e ao reforço das alianças entre os dirigentes do PT e setores à direita. Perdoem a boutade, mas quem semeia Sarney, ACM, e quejandos, colhe Bolsonaro e Feliciano.

“O suposto protetor da Constituição, o cimo da Justiça, o STF, sempre coonestou os piores abusos e arbítrios do Executivo, não raro apoiado pelo Legislativo”

Roberto Romano – Políticos cuja origem é exterior ao PT estão no cárcere ou respondem a processo. Empresários que beneficiaram todos os partidos, idem. Agora, uma pergunta: dizer que os “outros” também são praticantes de ilícitos desculpa um partido?

JU – Crises recentes, como a do mensalão, não foram suficientes para atingir a figura da presidente. Em que medida a corrupção na Petrobrás acelerou os acontecimentos atuais?

JU – Como o senhor analisa a atuação do Supremo Tribunal Federal nesse episódio?

Roberto Romano – É bom recordar o fato. Sim, a diferença entre as duas crises reside nos bilhões a mais da segunda. E o sistema de financiamento de parlamentares e empresários corruptos, desta feita, ronda as portas do Palácio do Planalto. Mas insisto: a quem aproveitou o saque, além dos empresários presos? Ele foi útil para boa parte dos que, hoje no Parlamento, pensam impedir a presidente. Inabilidade dela, pois Luiz Inácio Lula da Silva soube operar com os parlamentares de modo diplomático e astuto. Dilma insistiu na política do choque com os reais ou supostos representantes do povo. A chefia da Casa Civil, em seus governos, foi liderada por pessoas sem tino diplomático, e que se notabilizaram pelo estilo imperial de trato, o que trouxe muitos ressentimentos contra a presidente.

Roberto Romano – O STF continua sendo a mais elevada amostra de arbítrio sob a capa do saber jurídico. Recordo uma entrevista que dei ao Jornal da Unicamp quando ocorreu o apagão de FHC. Arguida a constitucionalidade da multa, os magistrados decidiram que o povo não colaboraria sem multa. O chicote foi aplicado, doutamente, nos ombros do mais fraco. Joaquim Barbosa, ao julgar a reforma da Previdência apresentada por Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou em alto e bom tom que “não existem direitos adquiridos, caso contrário ainda vigoraria a escravidão”. Sofisma bisonho com o qual o juiz pagava sua indicação ao presidente da República. Não se tratava de gente escrava, mas de cidadãos trabalhadores que exigiam seus direitos. Hoje, o STF continua sua tradição de um tribunal político, no pior sentido.

JU – Como o senhor analisa a Operação Lava Jato?

uem semeia Sarney, CM, e quejandos, colhe olsonaro e Feliciano”

JU – Os críticos à Operação Lava Jato acusam a Justiça e a PF de, deliberadamente, serem seletivas para prejudicar o governo e o PT. O senhor concorda?

Roberto Romano – Ainda estamos longe de conhecer todas as cenas ocultas da Operação. O que vem à tona mostra um trato duro e tecnicamente correto com acusados ou réus de corrupção. Mas é bom lembrar, como disse acima, que leis de proteção aos corruptos estão sendo encaminhadas no Congresso, à semelhança do que ocorreu após a Operação Mãos Limpas, por iniciativa de Berlusconi.

“Têm motivos certos de queixa os que, apoiadores do governo, mostram seletividade de boa parte da mídia. Quase nada aparece, por exemplo, das ilicitudes praticadas por tucanos e políticos da direita”

JU – Que papel a mídia de massa, de um lado, e as redes sociais, de outro, estão desempenhando nessa crise? Roberto Romano – Existem setores da mídia que usam muito a técnica do holofote, no sentido indicado por Auerbach. Eles iluminam uma cena ou duas, e nelas insistem de maneira forte. Mas deixam na sombra outras cenas. Neste sentido, têm motivos certos de queixa os que, apoiadores do governo, mostram seletividade de boa parte da mídia. Quase nada aparece, por exemplo, das ilicitudes praticadas por tucanos e políticos da direita. É como se os únicos heterodoxos no trato das coisas públicas estivessem na esquerda. Daí, vem a “indignação seletiva” que faz aquele setor da mídia perder credibilidade. Não raro, jornais e televisões estrangeiros trazem um quadro mais amplo, com mais cenas no sentido dado por Auerbach, do que os nacionais. JU – Em meio ao tiroteio verbal, com notas marcadamente passionais a favor e contra o impeachment, como é possível ao cidadão comum discernir os fatos do jogo político, para formar uma opinião mais próxima da realidade? Roberto Romano – Volto aos holofotes de Auerbach: para diminuir o número de slogans e meias verdades, apenas pesquisando as cenas escondidas pela propaganda. Neste sentido, a cidadania tem ao seu dispor a internet, alguns setores da mídia e a própria honestidade intelectual. JU – Como o senhor analisa a atuação da população, em especial a polarização política e ideológica verificada nas manifestações pró e contra o impeachment? Roberto Romano – Açulada pelos blogs fanáticos, de esquerda ou direita, e por palavras de ordem truculentas, boa parte da classe média brasileira tem se comportado

com selvageria. O tom latrinário aparece, de início, nos “comentários dos leitores” dos blogs, revistas, jornais. Ali não se fala, mas são expelidos os mais baixos sentimentos de ódio. Mas parte da população, sobretudo a mais jovem, mostra sinais importantes de politização responsável, sem ataques pessoais, calúnias, exclusões. JU – Quais as principais diferenças entre a polarização atual e a verificada em outros momentos de crise política no País? Roberto Romano – À diferença de 1964, agora as esquerdas têm um apoio popular mais amplo, embora não organizado. Os anos de poder petista não serão facilmente extirpados da opinião pública, como ocorreu após o último golpe civil militar. JU – Como explicar o atual nível de tensão verificado em ambos os lados. Em muitas situações, o embate político ultrapassa, em muito, o terreno das ideias. A corda não parece estar esticada demais? Roberto Romano – A radicalização do preconceito é comum em crises políticas, econômicas e sociais. Receio que se alguns limites forem ultrapassados, passaremos às vias de fato, o que seria o fim da política. JU – Como o senhor analisa a atuação do ex-presidente Lula na atual crise política? Roberto Romano – Luiz Inácio Lula da Silva é um dos poucos líderes populares do Brasil. Com os fatos recentes da Operação Lava Jato, ele está na defensiva, sem maiores condições de propor alternativas ao possível governo Temer. Isto mostra um erro grave, interno ao PT: para garantir a hegemonia de Lula, nenhuma outra liderança nacional surgiu na sigla. O PT possui lideranças regionais (Tarso Genro, Jacques Wagner, os Viana, etc), mas está tão carente quanto os demais partidos, de lideranças nacionais. JU – Em caso de impeachment, como deverá se definir o mapa das forças políticas no país? Roberto Romano – O PMDB estará no comando, dividido como sempre. O governo estará na dependência de bancadas parlamentares retrógradas e, na sociedade civil, dos grandes proprietários. Os ruralistas já exigem a mudança do estatuto das Forças Armadas, para colocá-las a serviço da guerra contra os sem-terra. A turbulência de hoje será retomada em breve. JU – Corremos o risco de, com a crise econômica atual, perdermos os avanços sociais que tivemos nos últimos anos? Roberto Romano – O vice-presidente Michel Temer afiança que não. Mas as exigências dos conservadores, para não dizer truculentos, será no sentido de abolir ou atenuar ao máximo os avanços sociais. A promessa de privatização ampla e irrestrita, comum nos pronunciamentos dos que apoiam Temer, indica tal senda. JU – Como o senhor vislumbra o Brasil nos próximos seis meses? Roberto Romano – Instabilidade, autoritarismo, intolerância vitoriosa, contestação virulenta. Nenhum clima ameno.

Quem é Roberto Romano é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Filosofia pela École des hautes études en sciences sociales (EHESS-Paris). É professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É autor de diversas obras, entre as quais Moral e Ciência - A Monstruosidade

do Século XVIII; O Caldeirão de Medéia, (São Paulo, Imprensa Oficial); Cidadania – Verso e Reverso (Editora Guanabara); Lux in Tenebris (Meditações sobre Filosofia e Cultura), (Cortez Editora); Silêncio e Ruído (Editora da Unicamp); Brasil, Igreja contra Estado (Editora Kayrós); e Conservadorismo Romântico (Editora Brasiliense).


8 Campinas, 9 a 15 de maio de 2016

Tese revela conquistas das domésticas nos anos 2000 Políticas públicas tiveram impacto positivo na categoria

Foto: Antoninho Perri

Juliane da Costa Furno, autora da dissertação: “São necessárias novas políticas que contribuam para que essa parcela da classe trabalhadora supere o passado escravocrata e a invisibilidade”

ISABEL GARDENAL bel@unicamp.br

s anos 2000 impactaram positivamente a categoria das trabalhadoras domésticas no Brasil, com melhoria na economia e na perspectiva política. Foi um projeto que apostou nas políticas públicas e de inclusão como ferramenta de transformação social. “Teve um grande avanço, mas é preciso investir mais em programas que cheguem às trabalhadoras, principalmente do ponto de vista da formalização, que não acompanhou o quadro geral da economia”, concluiu Juliane da Costa Furno, em seu estudo de mestrado realizado no Instituto de Economia (IE). “São necessárias novas políticas que contribuam para que essa parcela da classe trabalhadora supere o passado escravocrata e a invisibilidade para chegar a uma posição de trabalho portador de direitos. Há ainda muita informalidade no Brasil. Só 31% da categoria está presente no mercado formal”, informou a autora do estudo. A sua amostra baseou-se na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que constatou 6.453.884 pessoas empregadas no trabalho doméstico. A autora tratou no estudo das transformações no mercado das trabalhadoras domésticas, comparando a década de 1990 e os anos 2000. Segundo Juliane, nos anos 2000, aumentou significativamente o percentual de trabalhadoras que sabiam ler e escrever. “Também triplicou o número de trabalhadoras domésticas que cursam o ensino superior e esse número foi maior para as trabalhadoras domésticas autodeclaradas negras, que podem ser fruto de programas de inclusão social como o Prouni (Programa Universidade para Todos), o Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) e as Políticas de Cotas Raciais”, revelou. A renda média da trabalhadora doméstica, o ponto mais significativo, subiu 77%, acima do rendimento médio do salário mínimo na década de 1990 – que foi de 74%. O salário da trabalhadora doméstica com carteira de trabalho em 2014 foi em média de R$925,62 e da trabalhadora doméstica sem carteira foi de R$578,03. Neste universo, também notou-se a interferência de um recorte racial. Em 2003, por exemplo, como reflexo da década de 1990, o salário médio das trabalhadoras brancas era de R$414,00 e das negras R$345,00. Em 2014, só para as brancas era R$685,00 e para as negras R$592,00.

Os homens, apesar de representarem 8% da categoria, tinham um salário bem superior ao das mulheres, mesmo no emprego doméstico, porque eles são alocados em tarefas mais especializadas, entre elas jardinagem e motorista. Em 2014, os homens trabalhadores domésticos tiveram um rendimento médio de R$965,40, enquanto as mulheres ganharam R$683,75. “Um trabalho tão essencial no sustento da família, que ganha menos que o trabalho do jardineiro, apenas encontra justificativa na história da desvalorização do trabalho das mulheres na sociedade”, acredita Juliane, orientanda do professor do IE Márcio Pochmann. Sua intenção foi situar as trabalhadoras domésticas dentro do universo mais geral da classe trabalhadora, como aquelas que têm o menor rendimento, compõem maior jornada de trabalho, são a maioria entre as trabalhadoras informais, auferem menos direitos trabalhistas e têm a participação mais precária no mercado, tanto em termos de salário quanto de recorte racial. As trabalhadoras negras têm menos direitos, são a maioria entre as informais e recebem menos.

INFORMALIDADE

Os estudos em economia neoclássica majoritariamente negligenciam as ocupações mais precárias e medem o grau de desenvolvimento econômico a partir do trabalhador médio: que já está empregado e tem uma renda média. Como nos anos 2000 melhorou o crescimento econômico, a distribuição de renda e os indicadores do mercado de trabalho, Juliane quis estudar um setor mais precarizado e olhou uma categoria alijada dos ganhos econômicos, para medir a eficácia da melhoria no período. O trabalho doméstico é uma herança escravocrata e guarda similitudes com a época do Brasil-Colônia. O trabalhador doméstico é um sujeito agregado da família, sobretudo quando se tem a intenção de explorar mais essa mão de obra. E a demora na regulamentação dos direitos do trabalho é uma herança dessa forma pessoalizada e informal com que o trabalho doméstico se realizou no Brasil-Colônia. “Paira a ideia de que é um ‘não’ trabalho e de que a doméstica precisa estar disposta sempre a servir aos interesses da família que a emprega, mesmo fugindo da jornada de trabalho”, descreveu Juliane. “Ela está ali para servir sempre, inclusive aos sábados, domingos, feriados, festas, viagens de família, sem que isso se configure uma jornada extra, pagamento de hora extra, adicional por deslocamento.”

Camuflam-se as características de um trabalho para que seja melhor explorado. “Quanto menos características formais ele tem, mais fácil é que a trabalhadora doméstica esteja sempre presente, fazendo todas as atividades”, salientou. Neste estudo, elas em geral eram mensalistas, mas hoje 30% começam a migrar para o trabalho como diaristas, por verem vantagens nisso, como receber dinheiro na hora e receber um pouco mais. Mas isso esconde a grande desvantagem de não conseguir direitos trabalhistas e não garantir direitos previdenciários, carteira de trabalho assinada, férias, FGTS.

EVOLUÇÃO

O crescimento econômico nos anos 2000 possibilitou que as trabalhadoras domésticas ingressassem em outros setores, mesmo tendo renda parecida. O fato de ser mais acessível à carteira de trabalho ou ao próprio status de valorização do trabalho, como telemarketing por exemplo, demonstrou uma melhoria no período, na medida em que o trabalho doméstico não é mais a única porta de entrada de muitas mulheres no mercado. No Brasil, a trabalhadora doméstica é predominantemente negra (64%) e com baixa escolaridade. Enquanto em 1990 a maior participação de trabalhadoras domésticas no emprego doméstico estava na faixa até os 30 anos, nos anos 2000 esse contingente diminuiu e foi superior a parte com 40 a 60 anos ou mais. As principais conquistas entre a década de 1990 e os anos 2000 estiveram relacionadas aos direitos trabalhistas. Em 2006, foram criadas leis para facilitar aos empregadores o contrato de trabalhadores domésticos com vínculos formais e o pagamento do FGTS. Depois a própria dinâmica da economia – da reestruturação do mercado e da atuação dos movimentos sociais – contribuiu para as transformações que culminaram, em 2013, com um projeto de emenda constitucional que equiparou os direitos das domésticas ao dos demais trabalhadores formais. A melhora geral do quadro econômico traz a melhora específica. Mas não só isso, porque em outros períodos da economia brasileira (como na ditadura militar) também houve crescimento econômico e aumento da renda dos trabalhadores, porém com maior concentração de renda e precarização do trabalho. “A singularidade dos anos 2000 é que, além do crescimento da economia, firmaram-se políticas de inclusão social. A própria política da PEC das Domésticas deve ser encarada como política pública”, sugeriu a pesquisadora.

Surpreendeu Juliane a taxa de sindicalização das trabalhadoras domésticas em 2000, que cresceu muito, até entre as que não tinham carteira. Na década anterior, o sindicalismo teve um número de greves inferior, bem como o número de conquistas salariais que se igualavam, no máximo, à inflação. A expectativa dela é que esses dados ajudem a elucidar a realidade no mercado de trabalho e que as trabalhadoras tenham acesso a eles, pois as opções políticas e econômicas que um país faz em um determinado período têm um impacto em especial para trabalhadores mais pobres. “Espero que as agências governamentais e as entidades da sociedade civil acessem esses dados para entender que essa categoria avançou, contudo é preciso um olhar muito mais cuidadoso, visto que ela carrega o traço da escravidão colonial e da histórica discriminação de gênero na sociedade, que ainda junta elementos de discriminação – as mulheres e as negras”, frisou a estudiosa. Na opinião de Juliane, essa dissertação ainda não refletiu os impactos da PEC das Domésticas porque eles vão conseguir ser visualizados somente daqui a dois ou três anos, estimou. Parte da classe média chegou a alardear que aumentaria o desemprego no país, que não contratariam mais os serviços domésticos. “Fizemos um cálculo rápido sobre o custo do trabalho doméstico com a nova PEC das Domésticas. Para o empregador que já contrata um trabalhador doméstico e paga seus direitos com registro em carteira, pagar o INSS, o FGTS e multa rescisória sai apenas R$ 60,00 mais caro. É pouco para o empregador, mas essencial para garantir o direito previdenciário e o futuro dessa trabalhadora”, realçou. Uma pesquisa de orçamento familiar identificou que o custo com o trabalho doméstico, para parte das famílias mais ricas do Brasil, associa-se ao custo de telefone, energia elétrica e outros consumos supérfluos.

TRANSIÇÃO Este trabalho também identificou em 2009 a correlação entre trabalho doméstico e crise econômica. Nos períodos de maior crise econômica, 1990 e 2009, cresceu muito o número de trabalhadoras domésticas nesse tipo de emprego, porque caiu a chance de inserção em outro posto. Muitas trabalhadoras que não estavam na ativa ou perderam seus empregos viram no trabalho doméstico a única possibilidade de renda. Em 1990, 17% das mulheres estavam alocadas no mercado de trabalho doméstico. “Hoje é 15% das mulheres. Ainda é um percentual elevado, contudo diminuiu para crescer em outras ocupações, como comércio, administração pública e serviços educacionais, mostrando que essas profissionais estão se inserindo melhor”, afirmou. Outro dado foi que caiu a participação das mulheres domésticas entre os mais pobres. Na década de 1990, mais de 60% das empregadas domésticas se situavam entre os pobres ou extremamente pobres. Agora, esse número é 30%. “E as não pobres são 67% e melhoraram bastante de vida, graças a políticas de transferência de renda e ao crescimento econômico mais geral.” Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontaram que o Brasil é o país que tem mais trabalhadoras domésticas. “Para nós, isso é um resquício da escravidão colonial e do tipo de transição para o trabalho livre”, refletiu a mestranda. “A abolição da escravatura, sem a construção de políticas públicas ou a inclusão no mercado, permitiu que os ex-escravos apenas ocupassem os trabalhos que já ocupavam. As trabalhadoras continuaram fazendo todo tipo de serviço de limpeza e organização doméstica a um baixo custo.”

Publicação Dissertação: “A longa abolição no Brasil: transformações recentes no trabalho doméstico” Autora: Juliane da Costa Furno Orientador: Márcio Pochmann Unidade: Instituto de Economia (IE)


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Grupo lança curso de português para estudantes estrangeiros Coursera será usado como plataforma por pesquisadores do IEL LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

ioneiro no ensino de línguas em meio digital no Brasil, o Grupo de Pesquisa E-Lang, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, está lançando um curso de português avançado para estudantes estrangeiros através do Coursera – plataforma educacional gratuita que oferece os chamados Moocs (Massive Open Online Courses), em parceria com importantes instituições de ensino e que possui mais de 12 milhões de usuários em todo o mundo. “A pluralidade no português brasileiro” é o tema deste curso, que deverá estar disponibilizado ainda neste mês, depois de cumpridos os últimos trâmites burocráticos, como de licença de imagens. O Coursera do IEL é o fruto mais recente de uma linha de pesquisa inovadora e que vem de longa data, como mostra a professora Denise Bértoli Braga, que implantou a linha de pesquisa Linguagens e Tecnologia no instituto. “A Unicamp foi pioneira na produção de materiais digitais para estudo independente de línguas. Em 1996, com base em nossa experiência de 17 anos em sala de aula, desenvolvemos uma metodologia reflexiva adequada para a aprendizagem automonitorada de leitura de textos acadêmicos em língua inglesa. Essa metodologia orienta o aluno no desenvolvimento de estratégias globais de leitura, que facilitam a compreensão de textos em língua estrangeira e estratégias de aquisição de língua através da leitura.” Denise Braga conta que assim surgiu uma primeira versão do material digital Read in Web, cuja interface digital foi desenvolvida por ela, lado a lado com o estudante Fábio Aragão, ingressante do curso de Computação que colaborou nesta iniciativa com uma bolsa SAE da Unicamp – o ex-aluno hoje está na Amazon (EUA). “Construído o conteúdo por uma equipe de docentes do IEL e do CEL [Centro de Ensino de Línguas] e publicado todos os módulos, o curso Read in Web foi testado em 1999 e passou a ser oferecido no ano seguinte aos nossos alunos de pós-graduação. Foi uma iniciativa muito avançada da Unicamp, pois na época não havia nada parecido com os Moocs de hoje. Já disponibilizávamos cursos automonitorados lá atrás, com um índice de conclusão por volta de 50%, considerado altíssimo no ensino a distância, principalmente em cursos que são de acesso gratuito e sem mediação docente.” Paralelamente, a docente responsável pelo E-Lang começou a orientar dissertações e teses sobre ensino de língua a distância, bem como estudos focando as novas formas expressivas surgidas com a mudança para o meio digital. “Tivemos as primeiras dissertações apresentadas em 2000, quando iniciei a orientação de pesquisas na linha voltada a Linguagens e Tecnologias. Os temas seguiram inicialmente duas vertentes: uma orientada ao ensino de línguas online e outra ao estudo das mudanças geradas pelas possibilidades de produção de textos multimídia e hipermídia. Mais recentemente, esse campo de investigação se desdobrou para a participação social, investigando recursos expressivos do meio digital que facilitam a comunicação, a organização e o registro das vozes da periferia.”

SEIS MIL ALUNOS

Desde que foi criado, o Read in Web atendeu a cerca de 6 mil alunos, sendo que o curso, antes dirigido a pós-graduandos, tornou-se uma disciplina regular de graduação – a primeira totalmente a distância, sem mediação de professor, em que somente as provas são presenciais. “É um avanço da Unicamp também nesta direção e, na atual gestão, a grande contribuição foi a transformação do Read in Web em software livre. O curso é constituído de 25 aulas para leitura de textos acadêmicos em língua inglesa, através de uma ferramenta

que é também de autoria, ou seja, permite a criação de outros conteúdos utilizando-se a mesma metodologia reflexiva. Esses recursos estão acoplados à plataforma Sakai.” Segundo Denise Braga, por ser voltado para a leitura acadêmica, o público do Read in Web é de pós-graduandos ou de graduandos que possuem um domínio de inglês intermediário e precisam ler no idioma estrangeiro para estudar ou fazer pesquisa. “O curso é diferenciado em relação aos similares por utilizar conteúdos da New Scientist, revista inglesa que trata de temas gerais, mas escritos em linguagem acadêmica; do ponto de vista linguístico, existe a mesma complexidade de leitura de textos acadêmicos em geral. As questões sobre compreensão de texto, e os materiais de apoio oferecidos, visam levar o aluno a ‘aprender a aprender’, uma orientação pedagógica que está sendo bastante teorizada na atualidade, mas que já foi adotada desde 2000, numa iniciativa bem arrojada.” A professora do IEL aponta dois problemas enfrentados pelo aluno ao ler textos acadêmicos: o primeiro é recorrer ao que conhece sobre o tema para deduzir aleatoriamente sentidos, o que não é desejável em leitura acadêmica; e, segundo, ler parte por parte do texto, sem formar uma ideia global. “Como estratégia de aquisição de língua, nosso material traz o texto e perguntas específicas que obrigam o aluno a atentar para as particularidades da língua, bem como perguntas ge-

rais para que ele construa o sentido global. Temos notado, em aulas presenciais, que esta metodologia faz com que o aluno passe a ler melhor inclusive textos acadêmicos em português, por usar essas estratégias na língua que já domina.” A pesquisadora do E-Lang observa que o ensino pela internet trouxe uma vertente bastante disseminada, a aprendizagem colaborativa, que explora ambientes virtuais nos quais a dinâmica de sala de aula é transposta para o meio virtual, acompanhada de uma tecnologia que possibilita acesso diferenciado à informação. “O professor deixou de ser a fonte central de acesso à informação e abriu-se um novo caminho para o estudo em grupo e também para estudo independente automonitorado. Pensando nestas questões pedagógicas, percebemos que a navegação através dos links digitais oferece uma rapidez de acesso e contraste entre informações que não são atingidas na interação com materiais impressos, e que essa velocidade favorece a aprendizagem reflexiva.” Denise Braga acrescenta que novos gêneros começaram a surgir na rede e a pedagogia de línguas se preocupa em encontrar formas de usar esses gêneros para a exposição e a prática da língua. “A prática sempre foi um problema para o ensino de língua estrangeira. A internet permite uma imersão linguística virtual e a exploração de recursos multimídia cria contextos mais propícios para a Fotos: Antonio Scarpinetti

A professora Denise Bértoli Braga, que implantou a linha de pesquisa Linguagens e Tecnologia no instituto: “A Unicamp foi pioneira na produção de materiais digitais para estudo independente de línguas”

A professora Cláudia Hilsdorf Rocha, uma das responsáveis pelo curso “Pluralidade em português brasileiro”: “A formação crítica é fundamental para o aluno do século 21”

Foto: Divulgação

Aluna do ‘Read in Web’, curso oferecido aos alunos de pós-graduação e implantado em 2000: conteúdo formulado por professores do IEL e do CEL

aquisição de línguas. Em relação ao Read in Web, além de seu acesso ter sido aberto, já se discute com a atual Reitoria a proposta de divulgação do curso através do MEC, uma ação que considero politicamente interessante, pois coloca o produto de uma universidade pública a serviço da população.”

PORTUGUÊS BRASILEIRO

O curso denominado “Pluralidade em português brasileiro”, desenvolvido por meio da parceria Unicamp/Coursera, está sob a responsabilidade da professora Cláudia Hilsdorf Rocha e também da professora Denise Braga, ambas atualmente coordenadoras do Grupo de Pesquisa E-Lang. A professora Claudia esclarece que esse curso inova diretrizes pedagógicas já adotadas no curso construído para ensino de língua inglesa. “A partir de 2015, eu e a professora Denise começamos a aventar a possibilidade de expandir o Read in Web, transportando todo esse conhecimento acumulado para um projeto baseado na ideia do letramento crítico. A formação crítica é fundamental para o aluno do século 21. Adotamos as bases de uma orientação pedagógica reflexiva que funciona para o estudo automonitorado, agora explorando novos recursos pedagógicos permitidos neste outro momento histórico que vivemos.” Cláudia Rocha afirma que o curso do Coursera apresenta avanços em relação ao Read in Web, visto que na época em que este foi criado, as ferramentas de web ainda eram limitadas. “O Read in Web possui uma lógica digital, a estrutura de hipertexto, mas não explora mais a fundo a multimodalidade, os recursos das novas linguagens hoje disponíveis. Além disso, seu viés é exclusivamente de ensino de língua de gênero acadêmico. O curso para a plataforma Coursera avança ao explorar imagens, vídeos, arquivos em áudio, que ampliam as possibilidades de atividades. O grupo envolvido no desenvolvimento do curso conta com uma docente do CEL da Unicamp, a professora Raquel Rodrigues Caldas, e duas profissionais ligadas à tecnologia educacional, Paula Furtado e Ana Rute Mendes. Temos uma equipe bastante heterogênea, com outros professores que trazem um olhar rico e foco diversificado para este curso de português em rede, bastante voltado para questões de identidade e questionamento social, que caracterizam práticas de letramento crítico.” De acordo com as docentes do IEL, trata-se de um curso de português brasileiro em nível avançado para estrangeiros, mas o material desenvolvido também pode ser explorado na aula de língua portuguesa do ensino fundamental, respeitando-se as especificidades de ambos os contextos, já que as atividades propostas auxiliam a reflexão social crítica. “O material a ser disponibilizado na plataforma Coursera pode, portanto, ser uma alternativa de material digital para as escolas brasileiras. Em relação aos alunos estrangeiros, a meta não se restringe a levar o aluno a aprender o português brasileiro para uso social da língua, mas também a refletir sobre nossas culturas e identidades, que são bastante heterogêneas. O ‘Pluralidades em português brasileiro’ não é um curso exclusivamente de ensino e aprendizagem da língua, por si só”, acrescenta Cláudia Rocha. As professoras argumentam que este é um viés importante explorado no ensino de línguas, já que o processo de globalização deixou evidente que convivemos com múltiplas culturas, múltiplas variações de português e múltiplas visões de mundo. “A língua genérica ensinada nos cursos tradicionais desconsidera que a língua, assim como valores, ideias e culturas, sempre varia conforme o grupo social, as atividades sociais em que determinadas práticas linguísticas se fazem presentes. Os sotaques nunca são homogêneos e agregam valores distintos. Agora, com a globalização, o aluno precisa saber lidar não só com as diferentes variedades do português falado pelos brasileiros, como também falado pelos estrangeiros”, ilustra Denise Braga. “Exploramos a riqueza da nossa própria diversidade para fazer o aluno estrangeiro pensar não apenas na questão da aprendizagem da língua, mas também nas suas próprias visões de mundo, nas pluralidades que o constituem – e como tudo isso se relaciona com a língua que está aprendendo, em toda sua riqueza e complexidade”, finaliza Cláudia Rocha.


10 Campinas, 9 a 15 de maio de 2016

Painel da semana 

Painel da semana  30 anos do Serviço Social do Caism - No dia 10 de

maio, às 9 horas, no Anfiteatro do Hospital “Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti” – Caism da Unicamp, o professor José Fernando Siqueira Silva, docente do Serviço Social da Unesp, profere a palestra “Serviço Social Brasileiro: neoconservadorismo e legado crítico”. O evento faz parte das comemorações dos 30 anos do Serviço Social do Caism.  IX Seminário de Pesquisa em Gerontologia e Geriatria - Evento acontece de 10 a 12 de maio, no Centro de Convenções da Unicamp. O objetivo é discutir os desafios que acompanham a longevidade da população. Com o tema “A revolução da longevidade: possibilidades e desafios” o Seminário é organizado pela professora Anita Liberalesso Neri. Seu público-alvo são estudantes de graduação, de pós-graduação e profissionais de Gerontologia, Geriatria e áreas afins. Mais informações: 19-3521-9552.  Integridade como parte essencial da prática acadêmica - No dia 11 de maio, às 12h30, a pesquisadora Rosana Almada Bassani, do Centro de Engenharia Biomédica (CEB), fala sobre o assunto durante a realização do próximo encontro Tempo de Debate, evento organizado pelo Núcleo de Estudos da População “Elza Berquó” (Nepo) da Unicamp. A organização é da pesquisadora Maísa Faleiros da Cunha (Nepo). Os principais pontos que orientam os encontros científicos do Tempo de Debate são a interlocução de diferentes linhas de pesquisa que atuam no Nepo, a interação entre os pesquisadores e a socialização do conhecimento através de discussões de temas e pesquisas desenvolvidos por pós graduandos (as), pesquisadores (as) e docentes. O encontro será no auditório do Nepo/NEPP. Mais detalhes pelo e-mail pesquisa@nepo.unicamp.br ou telefone 19-3521-5898.  Simpósio comemora jubileu de ouro da Neurologia - Em comemoração ao seu jubileu de ouro, o Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp promove nos dias 12 e 13 de maio, o Simpósio de Atualização em Doenças Neurológicas. O evento, cuja abertura ocorre às 12h30, no Auditório 5 da FCM, abordará os seguintes temas: atualização de técnicas cirúrgicas, AVC e fibrilação atrial: profilaxia secundária (uso de novos anticoagulantes), cefaléia, demências, dieta cetogência, doença de Parkinson, epilepsia, esclerose múltipla, estado atual no tratamento das neuropatias periféricas, neuroimagem, sono, TDAH, terapia atual das miopatias, tremores e tumores cerebrais. Mais detalhes pelo e-mail solange@fcm.unicamp.br

Teses da semana 

 Logotipo para a Nova Medicarium - A Nova Medi-

carium, farmácia assistencial dos funcionários, alunos, docentes e aposentados da Unicamp receberá, até 13 de maio, as inscrições para o concurso de criação de seu logotipo. O concurso, que tem caráter exclusivamente cultural, é aberto à participação de técnicoadministrativos, pesquisadores, docentes, estagiários e estudantes regularmente matriculados nos cursos de graduação e de pósgraduação da Unicamp ou da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp (Funcamp). O tema é livre, mas deve fazer alusão ao termo cooperativismo. O logotipo vencedor será utilizado em materiais que a Nova Medicarium julgar pertinente, como documentos administrativos, site, cartazes, placas, em materiais informativos e multimídia, etc. O formulário para a submissão de trabalhos e o regulamento estão disponíveis na página eletrônica http://www.ggbs.gr.unicamp. br/sistema_medicarium/index.php/concurso_logo/formulario  Colóquios Unicamp Ano 50 - Em comemoração aos 50 anos da Universidade, entre os dias 12 de março e 1 de outubro, o Centro de Convenções da Unicamp recebe a série Colóquios Unicamp Ano 50 - de professor para professor. A série traz palestras, a serem realizadas aos sábados e proferidas por docentes da Unicamp, que discutirão temas da atualidade com professores do Ensino Fundamental e Médio. O próximo encontro será no dia 14 de maio, das 8h30 às 13 horas. Na ocasião, a professora Sônia Maria Pessoa Pereira Bergamasco, da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), abordará o tema Política agrária e agricultura familiar brasileira. A entrada é franca. Inscrições podem ser feitas pelo site Unicamp Ano 50 http://www.50anos.unicamp.br/congressista ou no dia do evento. O Centro de Convenções fica à rua Elis Regina, 131 - Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, em Campinas-SP.

Eventos futuros  Caminhada da Faculdade de Enfermagem - No dia 15

de maio, às 8h30, na Lagoa do Taquaral, em Campinas-SP, acontece a 1ª Caminhada da Faculdade de Enfermagem (Fenf) da Unicamp. O evento esportivo comemora os 50 Anos da Unicamp; os 90 Anos da ABEn; os 4 anos da FEnf e os 39 anos do Curso de Graduação da FEnf. Haverá distribuição de camisetas aos primeiros 500 inscritos. As inscrições são gratuitas e devem ser feitas pelo e-mail caminhadaenfermagem@gmail.com.  Workshop on Advances of Probiotics for Food and Veterinary Applications - Abertura do workshop acontece no

Eventos futuros 

dia 16 de maio, às 8 horas, no auditório 5 da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA). A organização é dos professores Adriane Antunes e Anderson Sant’Ana. De âmbito internacional, o evento destina-se aos alunos de graduação, de pós-graduação e membros da indústria. O encontro, que prossegue até o dia 18, objetiva difundir conhecimentos, atualização sobre o estado da arte do tema probióticos realizando intercâmbio entre as áreas humana e animal. Mais detalhes pelo e-mail adriane.antunes@fca.unicamp.br  I Semana de Pesquisa: Inovação, Ética e Ensino - Evento será realizado no dia 16 de maio, às 9 horas, no Auditório da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC). O objetivo é expor o impacto de ideias, tecnologias, métodos e processos que adotam em sua concepção requisitos essenciais como inovação, ética e ensino, permitindo a discussão no âmbito da Unicamp com palestrantes que se destacam no meio acadêmico por seu trabalho intenso nestes temas. Neste evento os participantes terão a oportunidade de participar da discussão de temas de grande interesse para a comunidade acadêmica da Unicamp, contribuindo para a formação de docentes, pesquisadores e alunos. Esta é uma forma de contribuição concreta da Comissão de Pesquisa da FEC para a promoção de espaços abertos para a reflexão do futuro da pesquisa, que se constitui um dos grandes desafios de nossa universidade. A organização é da Secretaria de Pesquisa da FEC. Mais informações pelo e-mailpesquisa@fec.unicamp.br  Semana Interna de Prevenção de Acidentes no Trabalho - Evento que integra a programação das comemorações dos 50 anos da Unicamp acontece de 16 a 19 de maio, no Centro de Convenções da Unicamp, no Auditório da Diretoria Geral da Administração (DGA) e nos Campi de Piracicaba e de Limeira. Para esta edição, o tema abordado será “Avançando na segurança, saúde e educação”. A abertura oficial ocorre às 9 horas, no Centro de Convenções. A Sipat é organizada pelas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes no Trabalho da Unicamp, da Funcamp, de Limeira e de Piracicaba. Inscrições para participação podem ser feitas no site www.cipa.unicamp.br. A Sipat é aberta à participação da comunidade. Outras informações pelo e-mail cipa@unicamp.br ou telefone 19-3521-7829.

Teses da semana  Computação: “Amostragem gaussiana aplicada à criptografia

baseada em reticulados” (mestrado). Candidata: Jheyne Nayara Or-

Destaque do Portal 

tiz. Orientador: professor Ricardo Dahab. Dia 11 de maio de 2016, às 10 horas, no auditório do IC02 do IC.  Engenharia de Alimentos: “Farinha de sorgo integral e suas frações: efeitos na obesidade e comorbidades” (doutorado). Candidata: Érica Aguiar Moraes. Orientador: professor Mario Roberto Marostica Junior. Dia 11 de maio de 2016, às 14 horas, na sala 2 de videoconferência da FE. “Estudo da cinética de degradação da cor, ácido ascórbico e consistência ao longo da cadeia de processamento de polpa concentrada de tomate” (mestrado). Candidata: Karla Ariane Silveira Munhoz. Orientador: professor Flavio Luiz Schmidt. Dia 12 de maio de 2016, às 9 horas, no salão nobre da FEA. “Produção, caracterização bioquímica e aplicação de L-asparaginase fúngica” (doutorado). Candidata: Fernanda Furlan Gonçalves Dias. Orientadora: professora Helia Harumi Sato. Dia 13 de maio de 2016, às 9 horas, no salão nobre da FEA.  Física: “Estudo da dinâmica de sistemas quânticos compostos

sob a influência de ambientes externos” (doutorado). Candidato: Gustavo Lázero Deçordi. Orientador: professor Antonio Vidiella Barranco. Dia 12 de maio de 2016, às 14 horas, no auditório da Pósgraduação do IFGW.

 Linguagem: “Afinal, o que é o estágio supervisionado? De labirinto a entrelugar: o estágio proposto pela Universidade na visão dos estagiários” (doutorado). Candidata: Marília Curado Valsechi . Orientadora: professora Angela Del Carmen Bustos Romero de Kleiman. Dia 13 de maio de 2016, às 14 horas, na sala de colegiados do IEL.  Matemática, Estatística e Computação Científica:

“Sobre a Topologia e geometria do comutador dos quatérnios” (mestrado). Candidato: Dan Anibal Agüero Cerna. Orientador: professor Alcibiades Rigas. Dia 11 de maio de 2016, às 14 horas, na sala 253 do Imecc.

 Odontologia: “Investigação do conteúdo microbiológico, endotóxico e análise dos níveis de metaloproteinases de canais radiculares e bolsas periodontais de pacientes com doença periodontal” (doutorado). Candidata: Thais Mageste Duque. Orientadora: professora Brenda Paula Figueiredo de Almeida Gomes. Dia 13 de maio de 2016, às 8h30, na sala da congregação da FOP.

“Nanotecnologia aplicada ao cimento de ionômero de vidro convencional: avaliação das propriedades físico-químicas e biológicas” (mestrado). Candidata: Daniela Delloso Cibim. Orientadora: professora Kamila Rosamilia Kantovitz. Dia 13 de maio de 2016, às 14 horas, no anfiteatro 4 da FOP.

Destaque do Portal

Pesquisas sobre fibrose cística são destaques no Brasil e no Exterior arla Cristina Souza Gomez, aluna de doutorado do curso de pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, apresentou oralmente a pesquisa “Pulsed direct and constant direct currents in the pilocarpine iontophoresis sweat chloride test” durante o European Cystic Fibrosis Network Working Group: 13th Annual Meeting, ocorrido em fevereiro em Londres. O evento seleciona projetos e artigos de jovens pesquisadores com idade até 35 anos de todo o mundo para a apresentação oral e discussão. Carla foi a única selecionada de toda a América Latina. A pesquisa foi orientada pelo médico José Dirceu Ribeiro e coorientada por Francisco Ubaldo Vieira Junior e Fátima Servidoni. A pesquisa faz parte da dissertação de mestrado Avaliação das correntes contínuas, pulsada e constante, pelo método de iontoforese por pilocarpina em indivíduos com e sem fibrose cística e foi publicado em forma de artigo no periódico BMC Pulmonary Medicine. Participaram do estudo 48 indivíduos entre 8 e 29 anos. O teste mostrou eficácia na estimulação e recolha de suor, sem efeitos colaterais. O tempo de estimulação e recolhimento de suor foram, respectivamente, de 10 e 30 minutos. “Tanto o trabalho de mestrado publicado quanto o projeto de doutorado têm propiciado interações com vários centros de pesquisa no Brasil e no exterior”, explica Carla. Uma parte do projeto de doutorado intitulado Estimulação, coleta e dosagem de eletrólitos no teste do suor: características de diferentes centros recebeu também o prêmio de melhor trabalho apresentado sob a forma de pôster no Congresso Brasileiro de Pneumologia Pediátrica em 2014. A orientação foi da professora Maria de Fatima Servidoni. De acordo com Carla, o objetivo principal desse projeto é o treinamento e padronização do teste do suor com o auxílio de um novo dispositivo para o diagnóstico de

Fibrose Cística (FC) pelo método clássico de Gibson & Cooke em 12 centros de referência em fibrose cística no Brasil. “Esse é um estudo multicêntrico. Serão disponibilizados para os centros um protótipo do dispositivo desenvolvido pelo Instituto Federal de Engenharia e o Centro de Engenharia Biomédica da Unicamp. Eles serão treinados e acompanhados”, revelou. Ambas as pesquisas fazem parte do projeto temático do CNPq-SETEC/MEC intitulado Diagnóstico de Fibrose Cística: procedimentos para teste de suor com o auxílio de novo dispositivo, coordenado por Francisco Ubaldo Vieira Junior. Os pesquisadores são Carla Cristina Souza Gomez, Maria de Fátima Servidoni, Maria Ângela Ribeiro,

Eduardo Costa Tavares e Veruska Acioli, Antônio Fernando Ribeiro e José Dirceu Ribeiro.

CENTROS DE REFERÊNCIA QUE PARTICIPAM DO ESTUDO Os trabalhos do grupo de Fibrose Cistica da Unicamp têm apoio dos seguintes pesquisadores e disciplinas: Francisco Ubaldo Vieira Junior, Eduardo Costa Tavares, Veruska Acioli (Centro de Engenharia Biomédica da Unicamp e Instituto Federal de Engenharia); José Dirceu Ribeiro, Adyléia Dalbo Contrera Toro, Andressa Peixoto (Pneumologia Pediátrica); Antônio Fernando Ribeiro, Maria de Fátima Servidoni, Ga-

briel Hessel (Gastroenterologia Pediátrica); Carlos Emilio Levy (Microbiologia); Carmen Silvia Bertuzzo e Fernando Augusto de Lima Marson (Genética); Silvana Dalge Severino, Maria Ângela Gonçalves de Oliveira Ribeiro (CIPED/LAFIP); Roberto Jose Negrão Nogueira e Renata Guirau (Nutrição); Eulália Sakano (Otorrinolaringologia); Adriana Mendes (Biólogo); Maura Goto (Pediatria); Carla Cristina Souza Gomez, Renan Mauch, Aline Cristina Gonçalves, Kátia Alberto, Thalita Aielo, Mauro Arrym e Artur Kmit (Pós-Graduandos); Monica Corso Pereira, Ilma Aparecida Paschoal (Pneumologia de adultos) e Margarida Amaral e Marisa Sousa, pesquisadoras de Portugal. (Edimilson Montalti) Foto: Divulgação

Da esq. para dir., Francisco Ubaldo Vieira Junior, Fátima Servidoni, Carla Cristina Souza Gomez e José Dirceu Ribeiro


11 Campinas, 9 a 15 de maio de 2016

Pesquisador sugere yoga para pessoas com esclerose múltipla Foto: Antonio Scarpinetti

Autor acumula experiência de 12 anos trabalhando com a prática CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

m tese de doutorado Gerson de Oliveira, professor de yoga, mostra o emprego dessa técnica como caminho de integração na abordagem de pessoas com esclerose múltipla (EM). O objetivo principal do trabalho foi o de organizar o conhecimento do yoga como uso terapêutico nessas pessoas. Constituíram seus objetivos específicos apresentar uma abordagem teórica sobre o yoga através da história, resgatando tradições e conceitos; realizar uma revisão acadêmica sistemática sobre o yoga relacionada à EM; e relatar suas experiências e intervenções com yoga em pessoas com a doença, considerando tanto os pontos de vista de pesquisadores quanto delas. É em relação a este último quesito que o trabalho assume particular importância ao procurar entender os reais problemas e dificuldades desse público e, depois, com base em uma experiência de 12 anos, propor condições de trabalho e terapias que se mostraram viáveis com a prática do yoga. Neste particular não há insensibilidade ou indiferença que resista às vivências do pesquisador que confessa: “Vivo no dia-a-dia situações que me provocam sempre profunda emoção”. Com a abordagem ele espera fornecer subsídios, escassos na literatura, para que, tanto familiares e cuidadores, como profissionais que atendem portadores de EM possam atuar e contribuir de maneira mais efetiva para suas melhoras física e mental e para uma maior integração na sociedade. Em decorrência das limitações das pesquisas sobre o tema e ciente das incertezas que acompanham estudos como este, o autor, no frontispício de sua publicação, menciona o aforisma de Mahatma Gandhi: “Você não sabe quais resultados virão da sua ação, mas se você não fizer nada não existirão resultados”. Para garantir a contextualização do trabalho, Gerson o dividiu em blocos. Inicialmente apresenta um estudo teórico sobre o yoga, mostrando sua origem, conceitos que o permeiam, o desenvolvimento do yoga no Ocidente, as pesquisas científicas a ele relacionado, seu desenvolvimento no Brasil e, através de uma revisão sistemática, comenta dissertações e teses sobre o yoga em instituições brasileiras. Um segundo bloco mostra uma revisão sistemática sobre o yoga direcionado para pessoas com EM. Em outro capítulo são apresentadas as experiências corporais, sob o ponto de vista de pessoas com EM, por meio de entrevistas em grupo. Por fim, propõe um programa de yoga para pessoas com EM, calcado em suas experiências de 12 anos, abordando os cuidados e possibilidades de práticas para essa população. Para o pesquisador, os artigos, dissertações e teses analisados e os resultados alcançados por ele indicam que a prática de yoga é viável e favorável para pessoas com EM. Ele espera que o trabalho possa servir como ferramenta para estimular futuros estudos na área.

ESCLEROSE MÚLTIPLA A esclerose múltipla é uma doença neurológica, crônica, progressiva, decorrente de uma inflamação na bainha de mielina, constituída pela gordura em que estão os neurônios e responsável pelo processo de condução dos impulsos elétricos do sistema nervoso. A destruição de partes dela compromete a condução dos impulsos nervosos.

Gerson de Oliveira, professor de yoga e autor da tese: “Proponho o que considero importante ser observado e praticado”

Trata-se de uma doença autoimune, ou seja, o próprio sistema de defesa ataca o organismo. Esclerose porque provoca o endurecimento de partes superficiais dessa bainha, comprometendo o envio dos impulsos elétricos, e múltipla porque pode se manifestar em qualquer parte do sistema nervoso, como o cérebro ou a medula espinhal. Dependendo da região e da extensão da bainha comprometida manifestam-se efeitos diversos. Não se conhecem bem as causas da EM. Em geral se aceita que se trata da manifestação de um vírus em decorrência de uma predisposição genética. A faixa etária de seu maior acometimento situa-se entre 20 e 40 anos, e é mais comum entre mulheres e em populações que vivem mais próximas aos polos terrestres. O quadro clínico dos pacientes depende da topografia das lesões, sendo mais frequentes as síndromes medulares, de tronco cerebral, neurite ótica, hemiparesias, paraparesias e monoparesias por acometimento do sistema nervoso central em vários níveis, síndromes sensitivas, cerebelares, esfincterianas e mentais. Nos últimos anos, pesquisadores têm considerado o uso de terapias complementares e integrativas para melhorar a qualidade de vida de pacientes com EM tais como yoga, tai-chi e meditação, que podem ser benéficas para a saúde de seus praticantes. Vários estudos relatam efeitos positivos das práticas do yoga para pessoas com EM como, por exemplo, diminuição da fadiga e da espasticidade, que é o aumento do tônus muscular, evolução da capacidade cognitiva, redução do estresse e melhora do humor e da qualidade de vida.

YOGA Nascido na Índia há três mil anos a.C., o yoga, que significa junção, integração, união, visa a supressão do turbilhão mental, levando o indivíduo a se auto perceber, integrando o corpo físico, mental e espiritual, de forma a atingir estados meditativos profundos. Os estudos sobre os aspectos científicos do yoga iniciaram-se em 1924, em Kaivalyadhama, na Índia, com a proposta de verificar a real influência do yoga no corpo das pessoas e, a partir daí, vêm sendo ampliados face à perspectiva dos efeitos benéficos que essa prática possa ter na saúde e na prevenção de doenças. Recursos modernos permitem hoje determinar, por exemplo, modificações que ocorrem no cérebro durante a meditação. Ao proceder a uma revisão sistemática para avaliar os dados disponíveis sobre o uso do yoga em pessoas com EM, o autor selecionou doze trabalhos realizados no exterior. Neles são recorrentes os efeitos benéficos para a fadiga, equilíbrio físico, marcha, alguns aspectos da qualidade de vida, dor,

atenção, bexiga neurogênica, força funcional, satisfação sexual e estresse. Todos eles concluem que a prática do yoga trouxe algum benefício para pessoas com EM, não colocam restrições ao seu emprego e o apontam como potencial intervenção para uma população estimada no mundo em 2,5 milhões.

PESQUISA Gerson vê sua pesquisa como o fechamento de um ciclo com um grupo de pessoas com EM que vem acompanhando há doze anos e que se iniciou depois de um curso de especialização em atividade motora adaptada, quando a professora Maria da Consolação G. C. F. Tavares, que o ministrava e viria a ser sua orientadora no mestrado e no doutorado, o convidou a responder a questão: o yoga seria uma boa prática para pessoas com EM? Durante a especialização, conta ele, “formamos um grupo com sete pessoas realizando com elas uma prática por um período de quatro meses. Isso me valeu uma experiência extremamente rica porque os participantes tinham variados graus de comprometimento. Após o término dessa especialização, continuamos com as práticas e mais adiante surgiu a oportunidade do mestrado que teve o intuito de medir a influência do yoga no equilíbrio postural de pessoas com EM”. Para tanto, foi formado um novo grupo experimental e também um grupo controle que não praticou yoga, para que pudessem ser estabelecidos parâmetros comparativos. Após a conclusão desse projeto, os grupos oriundos da especialização e do mestrado se uniram e permanecem até hoje realizando as práticas de yoga. Aproveitando as vivências e experiências de um trabalho desenvolvido durante 12 anos, no doutorado o autor procurou pavimentar o caminho para quem de alguma forma assiste ou trabalha com portadores de EM. Um dos pontos fundamentais deste novo estudo envolveu uma pesquisa focal com oito elementos desse grupo com que vem trabalhando e paralelamente com outro

Publicação Tese: “Yoga como caminho de integração na abordagem de pessoas com esclerose múltipla: apontamentos e reflexões” Autor: Gerson de Oliveira Orientadora: Maria da Consolação G. C. F. Tavares Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)

composto por seis componentes com EM que não praticavam yoga. O objetivo foi o de saber como essas pessoas convivem física e psicologicamente com as situações decorrentes da EM no âmbito da família e da sociedade. O autor pretendeu descobrir como no dia-a-dia elas enxergam e enfrentam os problemas com que se deparam, como gostariam de ser tratadas e como passaram a se sentir a partir do momento do diagnóstico da EM. Mas, principalmente, enfatiza ele, “o mais importante foi descobrir o que precisamos conhecer por meio das suas próprias vozes para tratá-las. Que sensibilidades e conhecimentos técnicos devemos desenvolver para isso?”. Conhecer os problemas das pessoas com EM é fundamental para a família e para todos os profissionais que trabalham com elas. Por isso, talvez um dos pontos cruciais da tese sejam os relatos dessas pessoas acometidas pela doença e que foram reproduzidos pelo autor. A partir desses relatos ele destaca que os portadores de EM encontram dificuldade em identificar as sensações relacionadas especificamente à EM ou decorrentes de outros fatores; acham-se incômodos para as pessoas com que convivem e consideram que atrapalham principalmente suas atividades de lazer; os recém-diagnosticados com EM sentem dificuldades em participar de atividades com outros indivíduos com quadro avançado de incapacitação; sentem-se vítimas de preconceitos; a fadiga e a dor são os principais sintomas relatados que levam a maior comprometimento social e laboral; a parestesia, isto é, sensações cutâneas subjetivas, mostra-se muito estranha ao corpo; seus maiores temores são não poder andar e perder a autonomia; consideram a atividade física e práticas corporais benéficas quando realizadas adequadamente. O pesquisador dedica ainda um capítulo para registrar com minúcias os procedimentos que utilizou ao aplicar o yoga no tratamento de portadores de EM. “Procuro relatar minhas experiências na condução das práticas de yoga voltadas para membros do Grupo de Esclerose Múltipla de Campinas e Região (GEMC) e, em função delas, proponho o que considero importante ser observado e praticado. Espero que os relatos possam servir como guia para os que atendem, de alguma forma, portadores de EM”, diz ele. Para concretização desses objetivos sugere cuidados com o ambiente físico; relata aspectos da doença que devem ser considerados; menciona características mais apropriadas do yoga para o público a que se destina; e faz sugestões de técnicas. Destaca ainda a importância do profissional envolvido nessas práticas conhecer as principais características da EM e do yoga de forma integral, além dos aspectos físicos, psicológicos e existenciais das pessoas com que trabalhará.


12 Campinas, 9 a 15 de maio de 2016 Foto: Reprodução

Dissecando e traduzindo ‘A tia fingida’

Miguel de Cervantes: para pesquisador é provável que escritor espanhol seja o autor de “A tia fingida”

Foto: Antoninho Perri

LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

ma tradução inédita de La tía fingida – texto praticamente desconhecido no Brasil – e um estudo sobre a polêmica de que seu autor seria ou não seria Miguel de Cervantes, alçado a maior escritor da Espanha e um dos maiores do mundo com Dom Quixote de La Mancha, compõem a dissertação de mestrado de Rafael Augusto Boni Bisoffi, orientada pelo professor Alexandre Soares Carneiro e apresentada no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). O texto foi descoberto no final do século 18, dentro de um manuscrito que não identifica autores, mas que traz dois outros escritos sabidamente de Cervantes por fazerem parte da coletânea Novelas exemplares, que ele publicou em vida – são originalmente 12 novelas e A tia fingida poderia ser a 13ª. Rafael Bisoffi explica que “novela”, na Espanha da época, designava tipos de texto narrativo ficcional que iam do que chamamos hoje de conto até o romance. “É um termo difícil de traduzir e melhor explicado pela etimologia: novela vem do novo, de uma narrativa em prosa não prevista dentro dos gêneros clássicos como o drama, a epopeia e a lírica. Ela surge na Itália por volta do século 14, início do humanismo, com Giovanni Boccaccio, autor de Decameron – justamente uma coleção de cem novelas. O contexto que estudei é do Século de Ouro espanhol, o período de Cervantes, que no prólogo de Novelas exemplares afirma ter sido o primeiro a ‘novelar’ de fato no país – outros haviam feito, mas em cópias ou traduções. Até hoje os espanhóis referem-se ao romance como novela, inclusive a D. Quixote.” Segundo o autor da dissertação, o manuscrito de Francisco Porras de la Cámara, cuja data provável de feitura é 1604, foi encontrado em 1788 por Dom Isidoro de Bosarte, erudito e diplomata espanhol. Traz uma miscelânea de textos, incluindo duas “novelas exemplares”: El celoso extremeño e Rinconete y Cortadillo. “A questão é que o manuscrito foi dedicado ao divertimento de um arcebispo [Niño de Guevara] falecido em 1609 (data limite, portanto, para a manufatura da miscelânea), enquanto a publicação de Novelas exemplares se deu em 1613. A diferença de quatro anos significa que os dois textos reconhecidamente de Cervantes não foram copiados do livro e sim de outros manuscritos (originais do escritor ou deles copiados) – esse tipo de circulação de textos era bastante comum.” Bisoffi esclarece que não teve a pretensão de dirimir a dúvida sobre a autoria de A tia fingida, ainda mais diante de todo o esforço despendido pelos cervantistas desde sua descoberta, sem sucesso. “Meu trabalho tem caráter duplo. Quis trazer um texto desconhecido no Brasil, em tradução anotada: há muitas notas de rodapé para explicar passagens de um espanhol do século 17, difícil até para o falante nativo. Em outra parte da dissertação trato da polêmica envolvendo Cervantes e também de aspectos da Universidade de Salamanca (contexto onde transcorre a novela) e da questão de autoria e circulação de manuscritos. Parece que só tivemos livros depois da invenção da imprensa, mas a circulação de textos copiados a mão perdurou por bom tempo.”

Rafael Augusto Boni Bisoffi, autor do estudo: “Discuto bastante a questão da autoria na dissertação e vejo que tanto interesse se deve à importância simbólica de Cervantes”

O ENREDO A tia fingida, na opinião do seu tradutor, parece inspirada em Giovanni Boccaccio, no sentido de contar histórias mundanas. Salamanca era então o grande centro universitário da Espanha e um dos maiores da Europa, atraindo estudantes de todas as regiões de um país heterogêneo até hoje, haja visto o espírito separatista na Catalunha e no País Basco. A história começa com dois estudantes fanfarrões da Mancha (mesma região de D. Quixote) caminhando por um bairro suspeito da cidade, até atentarem para uma gelosia (tipo de janela engradada) que impedia a visão do interior. Ficam sabendo pelo vizinho, um artesão, que ali vivem duas mulheres, uma senhora de ar nobre e uma jovem extremamente bela, o que só faz aguçar a curiosidade deles. Já suspeitando de que se trata de prostitutas atraídas pela fama do bairro, os estudantes inspecionam a casa, verificam que está trancada e aguardam, até a chegada de um estranho cortejo: um escudeiro, duas damas de honra, a venerável senhora e a jovem que aparenta 19 anos, realmente belíssima e algo extravagante com seus saltos altos – todos entram rapidamente e se trancam. Obcecados pela beleza da jovem, os fanfarrões reúnem na mesma noite uma trupe de músicos manchegos para uma estrondosa serenata à janela da misteriosa casa. Quem aparece é uma das damas de honra, tentando afastar a trupe com um discurso afetado, em favor da honra de suas senhoras. A interferência da polícia faz o grupo se dissipar, mas os dois jovens manchegos procuram a ajuda de um amigo rico e aventureiro, que se interessa em conhecer as mulheres e envia um pajem à “tia fingida”. Interessada no estudante rico, a tia responde através da mesma dama da janela, que embora tente convencê-lo da pureza de suas amas, acaba subornada para revelar que a velha vetusta já tinha “vendido” a jovem cortesã como virgem por três vezes; e aceita introduzir o rapaz secretamente na casa, escondendo-o atrás da cama da donzela para que dela se desfrutasse mais tarde da noite. Esperança é o nome da moça, que já ciente do complô e ansiosa para ir ao quarto, vê-se obrigada a ouvir um longo sermão em que a tia fingida, com uma sinceridade chocante, ensina-lhe pormenores do ofício, especialmente sobre como lidar com

os homens conforme a província de onde vieram. O jovem atrás da cama ouvia tudo, até se trair por um espirro. A velha senhora arma uma cena, tentando retomar sua aparente nobreza, enquanto a dama tenta convencê-la a aceitar o novo cliente. É nesse momento que irrompem os policiais, que desconfiados das moradoras da casa já estavam à espreita para o flagrante. As duas mulheres saem presas e lá fora, em meio à comoção popular pela ação da polícia, estão os dois estudantes manchegos, que se aproveitam da confusão para juntar sua trupe e resgatar Esperança, abrigando-a na pensão onde moravam. Ambos flertam com a jovem e chegam a brigar por ela, que acaba aceitando o pedido de casamento de um deles, sendo levada para outras terras e deixando a condição de prostituta. Fica-se sabendo neste final que Esperança foi sequestrada na infância, assim como outras meninas, pela vetusta senhora – daí o título A tia fingida, que acaba punida e humilhada em praça pública como bruxa.

DESCONFORTO De acordo com Rafael Bisoffi, o trecho do sermão de La tía é muito similar ao encontrado em outra obra, do italiano Pietro Aretino, contendo um diálogo de prostitutas sobre como agradar homens de diferentes regiões, o que levou um cervantista a afirmar que se trata de uma cópia. “É um argumento que refuto em minha dissertação, mostrando que não se fez uma tradução direta. Mas, como há muitas semelhanças, o texto italiano pode ter sido uma referência para o autor de A tia fingida, lembrando que Cervantes diz ter sido o primeiro a escrever novelas originais. Acho possível que seja mesmo dele.” O pesquisador acrescenta que Cervantes cita Pietro Aretino em Novelas exemplares, ainda que depreciativamente, porque

o italiano lidava com a questão erótica e não servia de referência para um escritor daquele século. “As Novelas exemplares possuem justamente um caráter exemplar, de moralidade, e entre elas não caberia A tia fingida com seu tom imoral. Uma das novelas tem enredo parecido, Ciganinha, sobre uma menina sequestrada por ciganos, mas que se mantém pura ao longo da história e, no final, descobre-se que é de família nobre. Não é o que acontece com Esperança, que consegue se casar mesmo sendo prostituta, quando seu destino para a época seria morrer por não ter casado virgem. Cervantes pode ter achado a piada interessante, recontando-a de outra forma e decidido não publicá-la. Mas certamente não é uma 13ª novela exemplar.” Curiosamente, conforme Bisoffi, A tia fingida não recebeu tanta atenção do descobridor do manuscrito, Isidoro de Bosarte, cujo foco estava nas duas novelas exemplares que utilizou para publicar um estudo crítico; depois, quase que em nota de rodapé de jornal, informou que havia encontrado um terceiro texto. “Esta informação começou a circular, iniciando-se esta grande discussão sobre quem seria o autor. A hipótese mais provável é de que De la Cámara tenha copiado as duas novelas de outra pessoa que as copiou dos manuscritos de Cervantes, já que era comum fazer circular textos que considerassem interessantes, sem se importar com a autoria.” Uma complicação apontada pelo autor da dissertação é que não restou um manuscrito sequer de Cervantes (os críticos têm acesso apenas a edições da época), ao passo que os copistas, não raramente, faziam modificações no gesto de copiar. “Para atiçar a fogueira, no próprio prólogo de Novelas exemplares, Cervantes admite que existem textos seus circulando anonimamente. Por outro lado, o fato de La Tía estar próxima às duas novelas exemplares dentro do manuscrito, não implica que tenha sido copiada de uma mesma pessoa – isso foi motivo de muita discussão no século 19, quando o texto começou a circular em volume e em jornais, com alguns críticos publicando-o literalmente como a 13ª novela exemplar. Há muito debate e nenhuma conclusão.” Rafael Bisoffi informa que, de modo geral, os argumentos giravam em torno do estilo ou se o conteúdo de A tia fingida estaria de acordo com o das novelas. “A crítica contrária à autoria de Cervantes acusa que não se trata de um texto de qualidade e, sendo um manuscrito, não revisado para publicação, realmente apresenta problemas. Discuto bastante a questão da autoria na dissertação e vejo que tanto interesse se deve à importância simbólica de Cervantes, o grande autor da Espanha, grande a ponto de emprestar seu nome ao instituto responsável por difundir a cultura espanhola. Por exemplo, quando se fala da obra completa de Cervantes, como tratar um texto como A tia fingida, deve ser incluído ou não? É uma dúvida que causa enorme desconforto dentro da crítica cervantista.”

Publicação Dissertação: “Tradução e estudo de ‘La Tía fingida’” Autor: Rafael Augusto Bonin Bisoffi Orientador: Alexandre Soares Carneiro Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)


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