Ju 658

Page 1

Foto: Antoninho Perri

5 Maria da Conceição Tavares, da Cepal à economia internacional

Jornal daUnicamp www.unicamp.br/ju

Campinas, 6 a 12 de junho de 2016 - ANO XXX - Nº 658 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

MALA DIRETA POSTAL BÁSICA 9912297446/12-DR/SPI UNICAMP-DGA

CORREIOS

FECHAMENTO AUTORIZADO PODE SER ABERTO PELA ECT Foto: Ana Carolina Martins Junqueira

Vida de inseto 3

Equipe coordenada pela professora Ana Maria Lima de Azeredo Espin, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp, sequenciou o DNA mitocondrial de 32 espécies do grupo Schizophora, que inclui 78 famílias da ordem Diptera, entre as quais as moscas varejeira (foto), doméstica, das frutas e da bicheira. As pesquisas, parte integrante do pós-doutorado da bióloga Ana Carolina Martins Junqueira, revelam importantes dados sobre os ciclos evolutivos e populacionais dos insetos.

4 8

Técnica prolonga vida de alimentos industrializados A poesia de João Cabral, do arcaico ao moderno

9 12

Jogos subvertem grade estabelecida por escolas

Nitrogênio forma polígonos em Plutão

Topografias do inferno, de Dante a ‘Blade Runner’

Valor-p é alvo de críticas na ‘Science’

Plumas de amônia na atmosfera de Júpiter

TELESCÓPIO

6 Doenças rondam salões de beleza

2


2 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

TELESCÓPIO

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

Editando o RNA Uma equipe composta por pesquisadores baseados nos Estados Unidos e na Rússia anuncia, na edição mais recente da Science, a existência de uma ferramenta bioquímica com potencial para editar o RNA, de modo semelhante à edição de DNA possibilitada pela tecnologia CRISPR-Cas, que vem sendo saudada como um dos mais promissores avanços científicos deste século. A ferramenta que atua sobre o RNA é um tipo de CRISPR-Cas, chamado C2c2. Os experimentos descritos no periódico mostram que o C2c2 pode ser usado para editar RNA de fita simples, mas não de fita dupla, e que é capaz de desativar o RNA mensageiro em bactérias vivas. O RNA mensageiro é parte essencial do mecanismo pelo qual as instruções contidas no DNA são executadas pelas células. Moléculas de RNA são usadas como material genético, no lugar do DNA, em certos vírus. Nas formas de vida que codificam seus genomas em DNA, o RNA desempenha funções fundamentais para garantir que os genes sejam ativados e interpretados corretamente. Os autores se mostram otimistas quanto à possibilidade de novas pesquisas levarem à criação de ferramentas biológicas programáveis, capazes de alterar o RNA em células vivas, levando até mesmo à construção circuitos artificiais para a regulação da atividade genética.

Polígonos em Plutão A região de Plutão conhecida informalmente como Planície Sputnik, localizada na parte equatorial do planeta-anão, é recoberta por uma capa de nitrogênio congelado recortada em curiosas formas poligonais com até 40 quilômetros de largura. O centro de cada polígono pode ser vários metros mais alto que as bordas. A origem dessas formas é discutida em dois artigos publicados na revista Nature. O primeiro artigo, do grupo liderado por William B. McKinnon, da Universidade de St. Louis, aponta que camadas sólidas de nitrogênio com quilômetros de espessura devem sofrer convecção nas

condições atuais de Plutão, tal como medidas pela sonda New Horizons, da Nasa. “Demonstramos numericamente que a reviravolta convectiva em camadas de nitrogênio sólido, com vários quilômetros de espessura, pode explicar a grande largura lateral” dos polígonos, diz o texto. O segundo trabalho, de A. J. Trowbridge, da Universidade Purdue, reforça a tese de que é a convecção no interior das camadas de nitrogênio a causa dos polígonos, e não outro mecanismo, como a mera contração do gelo. “O diâmetro dos polígonos da Planície Sputnik e as dimensões das ‘montanhas flutuantes’ (as colinas de água congelada ao longo das arestas dos polígonos) sugere que o gelo de nitrogênio tem cerca de dez quilômetros de espessura. A velocidade estimada de convecção é de 1,5 cm ao ano, e indica uma superfície de apenas um milhão de anos de idade”, diz o artigo.

Amônia em Júpiter Observações realizadas com radiotelescópios baseados nos Estados Unidos revelam detalhes da dinâmica da atmosfera abaixo da camada visível de nuvens de Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar. O trabalho conseguiu sondar regiões com até 100 km de profundidade, onde existem pressões oito vezes superiores à da atmosfera terrestre no nível do mar. Os resultados, publicados na revista Science, detectaram a presença de zonas “quentes”, onde a atmosfera é transparente para ondas de rádio, e permitiram a descoberta de plumas de amônia que se elevam a partir das profundezas da atmosfera em um movimento ondulatório, condensando-se em cristais quando chegam a grandes altitudes.

Água na Lua Asteroides podem ter levado água ao interior da Lua durante a formação do astro, há mais de 4 bilhões de anos, diz artigo publicado no periódico Nature Communications. Usando dados e amostras obFoto: Divulgação/Nasa

A Planície Sputnik, em Plutão, com seus misteriosos polígonos de gelo

tidos em trabalhos anteriores, incluindo taxas de diferentes isótopos de hidrogênio detectados na Lua, os pesquisadores, baseados na França, Reino Unido e Estados Unidos, concluem que menos de 20% da água presente no satélite teve origem em cometas. “Determinamos que uma combinação de materiais do tipo condrito carbonáceo foi responsável pela maior parte da água (e nitrogênio) entregues ao sistema TerraLua”, escrevem. Condritos carbonáceos são um tipo de meteorito rico em carbono e que também pode conter água ou minerais modificados pela presença de água.

Clima na Terra Artigo publicado no periódico Nature Climate Change oferece uma nova metodologia para acompanhar os acertos – ou erros – dos modelos adotados para prever o comportamento do clima em resposta à ação humana. Os autores, baseados nos EUA, Reino Unido e Austrália, ponderam que “os produtos da ciência climática” vêm sendo usados como previsões probabilísticas a respeito dos efeitos das políticas de manejo, e portanto precisam ter suas falhas detectadas. O processo se propõe a identificar quando as previsões do modelo tornamse significativamente inconsistentes com os dados da realidade. Os métodos sugeridos são testados, no artigo, em dois casos reais – um envolvendo a ecologia de um pássaro migratório, a marreca-arrebio, e outro, a extensão do gelo no Ártico. “Demonstramos que estes métodos teriam detectado a mudança na área habitada pela marreca-arrebio 20 anos antes de ela ter sido descoberta, e estão dando cada vez mais peso aos modelos que preveem um Ártico sem gelo, no mês de setembro, a partir de 2055”, escrevem os autores.

A maior prova Um arquivo de computador de 200 terabytes – volume de dados equivalente ao de 4000 discos blue-ray – é a maior prova matemática já produzida e, embora possa ser checada por computadores, jamais será lida por um ser humano. Trata-se da solução do Problema Booleano dos Trios Pitagóricos, que responde à seguinte questão: é possível dividir a sequência dos números naturais {1, 2, 3, 4...} em duas “cores”, de modo que, para todos os trios que satisfazem a relação do Teorema de Pitágoras (a² + b ² = c ²), seja possível garantir que um deles pertencerá a uma “cor” diferente dos demais? A resposta, determinada pela máquina e apresentada em artigo publicado no repositório ArXiv, é não: até o número 7.824 ainda dá para garantir que um dos três termos da equação de Pitágoras tenha uma cor diferente da dos outros, mas a partir de 7.825 não é mais possível colorir todos os trios pitagóricos, de modo consistente, sem usar a mesma cor três vezes. Segundo nota no site Nature News, esse resultado pode ter implicações importantes para a teoria matemática que estuda as propriedades e estruturas que surgem em conjuntos à medida que o número de elementos cresce, mas sua produção via computador deixa algumas questões cruciais em aberto – por exemplo, a razão lógica

por trás da impossibilidade, ou o que há de especial com o número 7.825. O artigo que descreve a prova pode ser acessado em http://arxiv.org/abs/1605.00723 .

Colonizando Madagáscar Uma trilha de “migalhas de pão” – ou, no caso, vestígios arqueológicos de práticas agrícolas – oferece a primeira evidência física da migração dos povos da Austronésia (região que abarca a Indonésia e ilhas do Oceano Pacífico) para Madagáscar, na costa africana. Dados culturais, linguísticos e até mesmo genéticos já sugeriam, há tempos, que a população original de Madagáscar teria vindo da Austronésia, e não da África, mas o rastro agrícola é a primeira confirmação arqueológica dessa hipótese. “Apresentamos novos dados que mostram que colonizadores do Sudeste Asiático trouxeram plantações asiáticas consigo quando se estabeleceram na África”, escrevem os autores do artigo que descreve a descoberta, publicado no periódico PNAS. “Essas plantações oferecem a primeira, até onde sabemos, janela arqueológica confiável para a colonização de Madagáscar”. O trabalho prossegue: “Os dados sugerem, ainda, que o assentamento inicial de povos do Sudeste Asiático na África não se limitou a Madagáscar, mas se estendeu às Ilhas Comoros”.

Valor-p na mira da ‘Science’ Artigo publicado na revista Science vem a se somar ao coro de críticas ao uso indiscriminado do critério estatístico do “valor-p” como determinante em publicações científicas. Assinado por Steven Goodman, da Universidade Stanford, o texto condena a “noção equivocada” de que “a divisa entre uma alegação cientificamente justificada e uma injustificada é definida por se o valor-p cruzou a ‘linha luminosa’ da significância, excluindo-se considerações externas como evidências anteriores, compreensão do mecanismo ou conduta e desenho experimental”. Referindo-se a um nível de probabilidade – por exemplo, “p < 0,05” – o valor-p aparece rotineiramente em artigos científicos e costuma ser interpretado como a chance de os resultados apresentados terem sido causados por mero acaso, e não por um fenômeno real. Essa interpretação foi atacada, em março deste ano, pela Associação de Estatística dos Estados Unidos (ASA, na sigla em inglês), ao afirmar, em nota que “isoladamente, um valor-p não oferece uma boa medida da evidência a respeito de um modelo ou hipótese”. No artigo para a Science, Goodman afirma que o estatístico R.A. Fisher (18901962), responsável pela introdução do valor-p, defendia seu uso como “uma de diversas ferramentas para auxiliar o processo fluido e indutivo do raciocínio científico – e não como um substituto desse processo. Fisher usava ‘significância’ apenas para indicar que uma observação merecia ser acompanhada”.

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador-Geral Alvaro Penteado Crósta Pró-reitora de Desenvolvimento Universitário Teresa Dib Zambon Atvars Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários João Frederico da Costa Azevedo Meyer Pró-reitora de Pesquisa Gláucia Maria Pastore Pró-reitora de Pós-Graduação Rachel Meneguello Pró-reitor de Graduação Luís Alberto Magna Chefe de Gabinete Paulo Cesar Montagner

Elaborado pela Assessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Periodicidade semanal. Correspondência e sugestões Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (019) 3521-5108, 3521-5109, 3521-5111. Site http://www.unicamp.br/ju e-mail leitorju@reitoria.unicamp.br. Twitter http://twitter.com/jornaldaunicamp Assessor Chefe Clayton Levy Editor Álvaro Kassab Chefia de reportagem Raquel do Carmo Santos Reportagem Carlos Orsi, Carmo Gallo Netto, Isabel Gardenal, Luiz Sugimoto, Manuel Alves Filho, Patrícia Lauretti e Silvio Anunciação Fotos Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti Editor de Arte Luis Paulo Silva Editoração André da Silva Vieira Vida Acadêmica Hélio Costa Júnior Atendimento à imprensa Ronei Thezolin, Gabriela Villen, Valerio Freire Paiva e Eliane Fonseca Serviços técnicos Dulcinéa Bordignon Impressão Triunfal Gráfica e Editora: (018) 3322-5775 Publicidade JCPR Publicidade e Propaganda: (019) 3383-2918. Assine o jornal on line: www.unicamp.br/assineju


3 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

Pesquisas revelam dados importantes sobre ciclos evolutivo e populacional

Cientistas sequenciam

DNA de grupo de insetos Fotos: Ana Carolina Martins Junqueira

SILVIO ANUNCIAÇÃO silviojp@reitoria.unicamp.br

o ano 2000, o grupo liderado pela professora da Unicamp Ana Maria Lima de Azeredo Espin foi o primeiro no país a sequenciar o DNA mitocondrial (encontrado no interior da mitocôndria) de uma espécie de inseto: a mosca-da-bicheira (Cochliomyia hominivorax), considerada uma das mais nocivas pragas da pecuária na América do Sul. Agora, passados 16 anos, a docente e sua equipe conseguem, pela primeira vez, sequenciar o DNA mitocondrial completo de diversas espécies do grupo Schizophora, que inclui 78 famílias da ordem Diptera (moscas e mosquitos), entre elas a mosca-varejeira (Chrysomya megacephala), a mosca-doméstica (Musca domestica), a mosca-das-frutas (Drosophila melanogaster) e a própria mosca-da-bicheira. O estudo, que integrou parte do pósdoutorado da bióloga Ana Carolina Martins Junqueira, então sob a supervisão de Azeredo Espin, traz uma série de dados novos sobre a história evolutiva e populacional deste diverso grupo de insetos. Os resultados da pesquisa foram publicados no periódico de acesso livre Scientific Reports (http://www.nature.com/articles/ srep21762), pertencente ao grupo Nature. Ana Junqueira desenvolveu seu pósdoutorado no Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp. Atualmente, ela é pesquisadora do Singapore Centre for Environmental Life Sciences Engineering, da Nanyang Technological University, em Singapura. Além de Ana Junqueira, também assinam o artigo a professora Ana Maria Azeredo Espin, que atua no CBMEG e no Departamento de Genética, Evolução e Bioagentes do Instituto de Biologia (IB); o

As moscas varejeira (à esquerda) e doméstica: sequenciamento permitirá conhecer hábitos dos insetos

doutorando da Unicamp Daniel Fernando Paulo; o pós-doutorando Marco Antonio Tonus Marinho, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto; a pesquisadora Lynn Tomsho, da Universidade Estadual da Pensilvânia (Estados Unidos); Aakrosh Ratan, da Universidade de Virginia (Estados Unidos); e os pesquisadores Daniela Drautz-Moses, Rikky Purbojati e Stephan Schuster, da Nanyang Technological University (NTU). O estudo foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Utilizando diferentes estratégias de sequenciamento e análise, foi possível estimar que o grupo Schizophora surgiu entre 65 e 70 milhões de anos atrás, no mesmo período em que os dinossauros “não-avianos” desapareceram. Os pesquisadores acreditam que o surgimento desse grupo de insetos, concomitante ao desaparecimento dos dinossauros, não é mera coincidência. Fotos: Antonio Scarpinetti

A professora Ana Maria Lima de Azeredo Espin: “O genoma mitocondrial tem sido muito utilizado para o entendimento da história evolutiva de grupos animais”

A bióloga Ana Carolina Martins Junqueira: “É preciso saber como a espécie está distribuída e estruturada para pensar nas estratégias que serão utilizadas como controle”

“Toda vez que há uma extinção em massa, alguns grupos conseguem expandir a sua diversidade porque novos nichos ecológicos são abertos”, aponta Ana Carolina Junqueira. De acordo com ela, os resultados acerca do surgimento desse grupo corroboram os dados da literatura científica sobre o tema. “Nós conseguimos datar também o aparecimento da família Calliphoridae há 22 milhões de anos, do qual as moscas-varejeiras são integrantes”, revela. A pesquisadora informa que o surgimento dessa família ocorreu após um período de seca que abateu o planeta, levando ao surgimento de um novo bioma, a tundra. Este novo ambiente possibilitou, por sua vez, o surgimento dos mamíferos pastadores, que são herbívoros. A mosca-da-bicheira (Cochliomyia hominivorax), que pertence à família Calliphoridae, tornou-se, milhões de anos depois (cerca de 7 milhões de anos atrás), um dos principais parasitas de mamíferos, causando severas infestações conhecidas como miíases. “Nós acreditamos que a evolução dessa família está muito relacionada a essa abertura de nicho, com uma nova vegetação que passou a existir. Foi a partir daí que surgiram os mamíferos pastadores que, por sua vez, deram origem aos carnívoros. Tudo isso gerou uma intensificação da produção de matéria orgânica, que é o principal alimento das moscas-varejeiras. É daí que essas moscas proliferaram e a evolução delas está muito ligada à própria diversificação de mamíferos”, sugere. A professora da Unicamp, Ana Maria Lima de Azeredo Espin, ressalta que foram empregadas diferentes técnicas da área conhecida como mitogenômica para sequenciar de modo simultâneo o DNA mitocondrial deste grupo de insetos. Segundo os pesquisadores, este é o estudo que mais descreve genomas mitocondriais completos de um grupo de insetos até o momento. Ao todo foram sequenciados 91 genomas de 32 espécies diferentes. “Ao invés de trabalharmos com o DNA nuclear, nós utilizamos o DNA mitocondrial. A vantagem é que o genoma mitocondrial tem um tamanho menor em relação ao nuclear e isso possibilita que este genoma possa ser sequenciado completamente em menor tempo e a um custo relativamente baixo. O genoma mitocondrial tem sido muito utilizado para o entendimento da história evolutiva de grupos animais, inclusive de humanos”, explica a docente. Com as técnicas empregadas, foi possível otimizar a escala de análise do genoma mitocondrial de insetos. “Isso é fundamental porque, com as novas plataformas de sequenciamento, nós conseguimos melhorar a escala de conhecimento desse grupo de insetos, do qual se tinha poucos dados disponíveis.” Os insetos foram coletados em diferentes regiões do mundo, incluindo Estados Unidos, Austrália, Cingapura, São Paulo e Amazônia. Em relação ao aspecto populacional, Ana Junqueira destaca que há resultados importantes sobre a mosca-varejeira. Conforme a pesquisadora, a variabilidade genética desta espécie é muito reduzida, semelhante às encontradas em espécies em

extinção. “Isso sugere que essa espécie é muito parecida no mundo inteiro, mas ao contrário de estar em extinção, ela é uma espécie em expansão, com grande poder de invasão e adaptação”, indica. A mosca-varejeira é um vetor mecânico de patógenos, acrescenta a pesquisadora. “Ela se alimenta de matéria orgânica em decomposição, podendo carregar bactérias e vírus desses ambientes, facilitando a disseminação de doenças. Daí a importância de estudos como este. Sempre que existe a necessidade de desenvolver projetos ou programas de controle de vetores, como se faz para o Aedes aegypti (mosquito transmissor dos vírus da dengue, chikungunya e zika), por exemplo, são necessários dados populacionais. É preciso saber como a espécie está distribuída e estruturada para pensar nas estratégias que serão utilizadas como controle”, exemplifica. Pesquisas em andamento já estão sendo conduzidas para sequenciar também o DNA nuclear da mosca-varejeira, informa a bióloga. A perspectiva é ter o chamado ‘genoma de referência’. “Com o genoma nuclear vamos tentar entender, por exemplo, porque essas moscas não ficam doentes, apesar do ambiente extremamente patogênico em que elas vivem. Será que existe algo do sistema imune que as protejam contra essa quantidade de bactérias?”, indaga a pesquisadora Ana Junqueira. Neste ponto, a professora da Unicamp informa que o grupo também aprovou um projeto em colaboração entre a Unicamp e NTU para o sequenciamento do genoma nuclear da mosca-da-bicheira. A pesquisa, de acordo com ela, será fundamental para o desenvolvimento de estratégias de controle na agropecuária nacional, já que esta mosca tem se mostrado muito resistente a inseticidas. “O estudo buscará compreender também quais são as diferenças entre as duas moscas da mesma família, a da bicheira e a varejeira, já que uma é parasita de animais e a outra é um vetor de patógenos.” O aluno Daniel Fernando Paulo, que desenvolve doutorado sob a orientação de Azeredo Espin, acrescenta que a diferença de hábitos alimentares entre essas duas espécies é respaldada pelas análises evolutivas. “Utilizando os dados deste estudo em conjunto com as informações funcionais e regulatórias do genoma nuclear dessas espécies, nós poderemos inferir como estes hábitos alimentares surgiram, como eles evoluíram e como podemos ‘controlá-los’. Este estudo abre uma série de outras linhas de pesquisa que poderão ser exploradas no futuro”, prevê.

Publicação Junqueira, A. C. M. et al. Large-scale mitogenomics enables insights into Schizophora (Diptera) radiation and population diversity. Sci. Rep. 6, 21762; doi: 10.1038/srep21762 (2016).


4 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

Melhor e mais longevo Fotos: Antoninho Perri

Metodologia melhora a qualidade nutricional e prolonga o prazo de validade de alimentos industrializados CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

professor Marcelo Cristianini, do Departamento de Tecnologia de Alimentos, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, mantém linha de pesquisa em que se dedica a estudar o efeito do emprego da alta pressão isostática (HPP – High Pressure Processing) na extensão da vida de prateleira de alimentos processados, com vistas a manter-lhes também as características nutricionais e sensoriais mais próximas possíveis do alimento in natura. O processamento à alta pressão isostática consiste na aplicação uniforme de determinadas pressões em um produto. O trabalho desenvolvido é praticamente inédito no Brasil e, quanto se sabe, o equipamento piloto de pesquisa utilizado no laboratório da FEA é único do tipo na América Latina. A pesquisa atende aos anseios de consumidores que procuram cada vez mais alimentos industrializados com maior retenção de nutrientes, com garantia de segurança do alimento e preservação das características originais como sabor, cor, textura. Hoje os processos convencionais de produção de alimentos, que possibilitam a extensão de vida de prateleira, utilizam tecnologias que de alguma forma degradam nutrientes e alteram suas propriedades sensoriais. Os habitantes do Nordeste brasileiro, por exemplo, tendem a rejeitar a poupa de açaí industrializado, que não tem nem a cor nem o paladar do produto natural que consomem. A água de coco verde encontrada nas praias brasileiras, e seus frequentadores sabem disso, tem características bem diferentes daquelas vendidas nos supermercados. O que faz essa diferença e como reduzi-la? Para permitir o transporte dos alimentos, sua manutenção nos pontos de venda e garantir a extensão do tempo de utilização pelo consumidor, de forma a manter a segurança do alimento, as indústrias utilizam a pasteurização térmica convencional, realizada em geral entre 70 e 90 graus Celsius. Esse processo visa diminuir a carga de microrganismos deteriorantes e eliminar os de caráter patogênico, que são os causadores de doenças. A redução dos microrganismos deteriorantes permite ampliar os prazos de validade para consumo, desde que respeitadas as condições de estocagem adequadas. A utilização de altas temperaturas modifica algumas características nutricionais e sensoriais, que podem ser facilmente percebidas nos sucos e, principalmente na água de coco, mas também em outros produtos industrializados prontos para consumo como os sucos e polpas de frutas, produtos lácteos e outros. Mas mais que isso, leva à perda de preciosos nutrientes, como os compostos bioativos.

ALTERNATIVA Para contornar esses problemas a tecnologia da alta pressão (HPP) vem sendo apresentada como um método promissor para a eliminação ou redução de microrganismos, causando danos mínimos aos produtos e preservando suas características nutricionais. Trata-se de um processo de alto potencial para o caso de alimentos termossensíveis e consiste em colocar o alimento já em sua embalagem final em uma câmara na qual são submetidos a pressões elevadas, até o nível desejado, que pode atingir valores seis a sete mil vezes maiores que a atmosférica, por injeção de um fluido, como a água, pela ação de um pistão.

O professor Marcelo Cristianini, coordenador das pesquisas, e o equipamento utilizado no laboratório da FEA (destaque): pioneirismo na América Latina

Nesse processamento, o alimento já em sua embalagem final é colocado dentro de uma câmara e submetido durante três a cinco minutos à pressão desejada. Esse processo de pasteurização, geralmente realizado a temperaturas abaixo de 20 graus Celsius, evita a perda de compostos termossensíveis e, mantendo a integridade dos componentes, garante aos alimentos propriedades próximas e semelhantes aos produtos in natura, não alterando significativamente suas características sensoriais. Além do que, eliminando os microrganismos patogênicos e diminuindo os deteriorantes, permite obter produtos em que os prazos de validade são pelo menos duplicados, possibilitando que cheguem a centros de venda mais distantes dos locais de origem e, ampliando o tempo de prateleira, minimiza perdas de produção, flexibilizando ainda o uso do consumidor, diminuindo desperdícios. Como exemplos, o docente cita os casos do queijo Minas Frescal e a água de coco: “As nossas pesquisas mostram que a água de coco assim processada pode atingir validade de três a seis meses. No caso do queijo fresco, que não resiste um mês, conseguimos estender o prazo de validade para pelo menos três meses. O mesmo ocorre com os produtos cárneos fatiados e o blanquet de peru, por exemplo”.

OUTRAS VANTAGENS Mas além dessas, existem outras importantes vantagens decorrentes do tratamento por HPP nos produtos processados: a possibilidade da redução de sal e até de aditivos utilizados como conservantes, que desempenham papel chave sobre a estabilidade microbiológica e sua simples redução pode resultar em produtos instáveis. De fato, hoje os produtos embutidos têm uma quantidade de sal muito grande que, aliado ao uso de conservantes, lhes garante a conservação. O processamento por HPP permitiu a redução de sal de até 25% em um embutido de Peru fatiado, sem comprometer a aceitação do consumidor e estendendo a vida de prateleira. Isto atende as recomendações, que ocorrem em nível mundial, para diminuição do consumo de sódio, o maior responsável pela hipertensão e problemas coronários. Outro aspecto benéfico é o da possibilidade de reduzir ou até eliminar conservantes, que constituem

também uma das grandes preocupações dos organismos de saúde em todo o mundo. O método por HPP vem sendo utilizado já há algum tempo em vários países, mas no Brasil começou a ser empregado por algumas poucas empresas apenas no ano passado. Este fato justifica sobremaneira a pesquisa que, além disso, atende à necessidade de se desenvolver o emprego da tecnologia para produtos tipicamente nacionais ou mais amplamente adaptados às condições brasileiras, diversas das dos outros países em que esses procedimentos já são estudados e empregados em maior escala. Esse processamento, que garante a melhoria de segurança dos alimentos devido à inativação de organismos deteriorantes e patogênicos - que possibilita a diminuição da adição de sal e até a eliminação de conservantes, neste caso chamados de alimentos clean label - pode ser realizado nas próprias embalagens destinadas ao consumidor, independentemente do seu tamanho e geometria, o que minimiza riscos de contaminação; adota tecnologia sustentável, livre de resíduos; e atende cada vez mais à demanda global, que anseia por saúde e bem estar através do consumo de produtos com apelo “all natural”. O método permite ainda a ampliação de mercados externos com a inclusão de países que adotam regulamentações para controle de patogênicos, caso dos EUA e de nações europeias, face ainda à extensão de vida de prateleira; aprimoramento da qualidade; maior tolerância na flutuação de temperatura na distribuição e exposição; e redução de sinérese, ou seja, da liberação de líquidos que alteram o paladar, típico do queijo tipo Minas Frescal. Resumindo, Cristianini enfatiza: “A tecnologia por HPP permite obter produtos em que são preservados os aspectos nutricionais, com sabores próximos dos alimentos in natura, possibilita a diminuição do uso de sal, nos industrializados que o exigem, e até a redução e eliminação de conservantes. Essas são as principais preocupações de nossa linha de pesquisa”.

EMPREGOS O pesquisador vem empregando esse processamento em queijos tipo Minas Frescal; sucos e poupas de frutos; suco de laranja fresco; extratos hidrossolúveis, como deveriam ser denominados os popularmente conhecidos leites de soja, de caju, de aveia, etc.; smoothies, que são mistos de leite com frutas; água de coco, que enfrenta hoje um boom de consumo; embutidos e respectivos fatiados; feijão carioca; misturas de vegetais; produtos nutracêuticos, assim denominados porque apresentam benefícios à saúde, incluindo a prevenção e/ou tratamento de doenças.

Em relação ao açaí, por exemplo, o seu laboratório conseguiu pasteurizar a poupa mantendo-lhe as características mais próximas do produto in natura, o que atrai inclusive os que estão acostumados a utilizar o próprio fruto. Mais recentemente o docente orientou dissertação de mestrado em que foi estudado o efeito do processamento por HPP nas características do queijo Minas Frescal, que está entre os produtos lácteos mais consumidos no Brasil, mas que apresenta características intrínsecas muito favoráveis ao desenvolvimento de microrganismos. O objetivo do estudo foi o de avaliar o efeito da HPP na inativação de Listeria innocua, Escherichia coli e Lactobacillus pantarum - as duas primeiras bactérias patogênicas e a última deteriorante, seus microrganismos mais representativos - e determinar a vida de prateleira dos produtos submetidos ao processo. Os resultados foram promissores em relação ao aumento da vida de prateleira e à garantia de segurança do alimento. A água de coco, uma bebida isotônica natural, tem tido, por sua vez, relevante e crescente demanda no mercado. Apesar dos processos térmicos do seu processamento revelarem-se capazes de inativar enzimas e microrganismos, provocam efeitos deletérios nas suas propriedades sensoriais e nutricionais, justificando o estudo de suas substituições por HPP. Neste caso, a investigação concentrou-se na inativação das enzimas polifenoloxidase e peroxidase e dos microrganismos Lactobacillus fructivorans, Saccharomyces cerevisiae e Eschrichia coli quando submetidos, em vários intervalos de tempos, a diferentes pressões e temperaturas. No caso, os resultados se mostraram também muito significativos na amostra processada em relação às características nutricionais e sensoriais, quando comparada com a amostra controle, e verificou-se também um considerável aumento da vida de prateleira.

OUTRA LINHA Outra linha de pesquisa orientada pelo docente trata do processamento de carnes frescas. Em seu laboratório tem-se estudado a redução da carga contaminante de carnes frescas e o amaciamento de cortes. O processamento por HPP acelerou o amaciamento de cortes comerciais diminuindo o tempo de processamento sem alterar as características do produto final. Estabelecendo um paralelo, nos processos convencionais de maturação a carne é embalada a vácuo e deixada na geladeira por cerca de um mês para atuação das enzimas que levam ao seu amaciamento. “Conseguimos fazer isso, mesmo com carnes menos nobres, em tempo mais curto”, diz ele.


5 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

Dissertação revisita trajetória de

Maria da Conceição Tavares

Estudo faz apanhado da obra de uma das fundadoras do Instituto de Economia da Unicamp LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

issertação de mestrado apresentada no Instituto de Economia (IE) faz uma análise do conjunto da obra de Maria da Conceição Tavares, uma das mais influentes teóricas da área econômica e consagrada na literatura por suas análises originais e instigantes nas áreas de economia brasileira, economia política e economia política internacional. Intitulada “O desenvolvimento capitalista na obra de Maria da Conceição Tavares: influências teóricas, economia política e pensamento econômico”, a pesquisa é de autoria de Paulo César das Neves Sanna Robilloti, que teve a orientação do professor Pedro Paulo Zahluth Bastos. Lembrando que Conceição Tavares é uma das fundadoras do IE da Unicamp e responsável pela definição de grandes linhas de pesquisa no Instituto, Paulo Robilloti considera seu trabalho inédito no sentido de sistematizar toda a obra da economista. “Há dissertações que cobrem algumas fases de sua trajetória, mas esta foi a primeira a trabalhar o pensamento econômico de Conceição Tavares como um grande bloco, oferecendo um mapa-guia de seu pensamento a outros pesquisadores. A maior dificuldade que encontrei é o fato de a autora estar inserida em um contexto histórico, institucional e intelectual muito complexo – e sem um domínio básico deste contexto seria muito difícil apontar as suas contribuições teóricas ao debate econômico e social latino-americano.” O autor da dissertação periodiza o pensamento de Conceição Tavares em três fases: da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), onde atuou de 1963 a 1972; do Desenvolvimento Capitalista no Brasil, de 1973 a 1985; e da Economia Política Internacional, de 1985 aos dias atuais. Os artigos que mereceram atenção especial foram: da fase cepalina, o clássico Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil e Além da estagnação (escrito em colaboração com José Serra); da segunda fase, o ensaio Distribuição de renda, acumulação e padrões de industrialização (de 1973, precursor da sua tese de livre-docência), Acumulação de capital e industrialização no Brasil (1974) e Ciclo e crise (1978). Segundo Robilloti, os trabalhos de Maria da Conceição Tavares emergem no contexto do pós-guerra, como discípula de economistas latino-americanos como Celso Furtado, Raúl Prebisch e Aníbal Pinto. “Ela se insere no cenário econômico em um momento de pessimismo dos cepalinos em relação aos projetos nacionais de desenvolvimento que julgavam imprescindíveis: nos maiores países da região (Brasil, Argentina, Chile e México), houve um aprofundamento das relações industriais, mas sem a superação do subdesenvolvimento; ao contrário, as sociedades se tornaram ainda mais desiguais.” O economista observa que o processo de industrialização desencadeou uma forte concentração de renda e, em sua opinião, Aníbal Pinto é o cepalino que melhor aborda criticamente como os projetos nacionais foram estruturados na América Latina de modo a intensificar essa tendência. “Houve uma preocupação fundamental em abrir as economias desses países para as multinacionais, sem que as massas fossem incorporadas a tais processos; multinacionais que, segundo diagnóstico da Cepal, traziam o capital e tecnologias de produção superintensivas que não permitiam a plena utilização de mão de obra, gerando um exército ocioso.”

Foto: Neldo Cantanti

Maria da Conceição Tavares em 2004 (à esq.) e 2008 (acima), em eventos na Unicamp

o que se produzia: nos anos 60 e 70, uma parcela irrisória da população tinha acesso a bens como automóveis e eletrodomésticos, produzia-se para as classes mais altas.” O autor da dissertação ressalta outro fator importante apontado por Aníbal Pinto, que é a atuação do Estado, com uma política econômica que propiciava a concentração social, regional e setorial de renda. “No Brasil, poucos estavam inseridos neste mundo da produção e do consumo. Para os cepalinos, a questão fundamental desses projetos de industrialização era da soberania, de terem suas dinâmicas internas desvinculadas ao cenário externo. Por conta das tecnologias intensivas e do capital estrangeiros, existia uma enorme população ociosa que, não sendo incorporada, deprimia os salários.” Robilloti registra que no artigo de 1972, durante o milagre econômico sustentado pelo golpe militar e que foi altamente prejudicial no aspecto social, Conceição Tavares vai discordar da visão do mestre Celso Furtado de que aquele sistema, excluindo as massas, não garantia taxas elevadas de crescimento e tendia à estagnação. “Ela afirma que a industrialização promovida com elevados níveis de desigualdade e, portanto, de concentração de renda, não trava o crescimento econômico. Seu raciocínio é engenhoso: seria justamente a concentração de renda em favor dos grandes grupos que daria dinamismo à economia; que não se tratava de um problema do ponto de vista econômico, e sim do social.” Neste mesmo artigo, acrescenta Robilloti, Conceição Tavares inverte a visão de que o crescimento econômico se dava com retorFoto: Antoninho Perri

RESGATE CEPALINO

É neste momento do debate, conforme Paulo Robilloti, que Conceição Tavares oferece uma primeira contribuição importante, realizando um apanhado de tudo que o fora discutido dentro da Cepal e resgatando o pensamento da entidade sobre a estrutura e dinâmica do processo de industrialização até aquele momento. “Para o pensamento cepalino, a questão não era apenas como se produzia (usando tecnologia intensiva), mas

Foto: Antonio Scarpinetti

Paulo César das Neves Sanna Robilloti, autor da dissertação: “Se o século 20 foi muito efervescente no campo das ideias, hoje Maria da Conceição Tavares se vê na era da distopia, sem grandes ambições”

nos macroeconômicos decrescentes. “A autora explica a desaceleração dos anos 70 com o movimento cíclico da economia, lembrando que houve grande crescimento durante o Plano de Metas e não seria possível sustentar aquele nível de investimento ad eternum: concluído os investimentos na indústria pesada (a automobilística era a menina dos olhos do momento), a economia naturalmente desaceleraria. E reitera o argumento de que a questão não era como se produzia, mas o quê e para quem se produzia.” O pesquisador vê nas duas teses defendidas por Conceição Tavares na UFRJ, “Acumulação de capital...” e “Ciclo e crise...”, o estado da arte do seu pensamento. “Essas teses representam o que chamo de fase da maturidade da autora. No que diz respeito à teoria, ela se apresenta como uma economista e intelectual refinadíssima, que já se diferenciava no debate econômico. Tomando as críticas à Cepal no artigo de 72, Conceição adiciona elementos da economia política, tais como Marx, Keynes, Kalecki, Steindl e outros autores que permitem aprofundar seu olhar crítico sobre a estrutura e dinâmica do capitalismo, para depois desta ‘limpeza conceitual’ (na expressão do professor Pedro Paulo Bastos), repensar a economia brasileira à luz destes teóricos. A tese de 78 é uma crítica extraordinária em 120 páginas, demonstrando elevada capacidade de síntese da autora. Um dos motivos de meu trabalho ter ficado extenso é porque procurei explicar muitos pontos que estavam sintetizados demais.”

MUDANÇA DE EIXO

Paulo Robilloti conta que, a partir dos anos 80, o pensamento de Conceição Tavares sofre uma mudança de eixo, caracterizando a terceira fase do pensamento da autora, a mais atual, marcada pelo interesse dos rumos do capitalismo mundial e da chamada globalização financeira. “A autora apresenta uma importante interpretação da economia internacional, dando origem a um amplo debate sobre os problemas do neoliberalismo, tanto do ponto de vista global como nacional, especificamente. Seu artigo A retomada da hegemonia norte-americana, de 1985, deu início a uma nova linha de pesquisa na área da Economia Política Internacional, que tomaria forma nos anos 90 e orientaria a pesquisa da autora e de um conjunto de economistas e cientistas sociais da Unicamp e UFRJ”. As preocupações com a economia brasileira também estão presentes nesta fase, na qual a autora resgata e aprofunda questões apenas indicadas na segunda fase, especialmente os aspectos políticos e as lutas de classes. De acordo com o autor da dissertação, quando chegam os anos 90, década de quebradeira de países na América Latina seguida de estabilização da economia com ele-

vado custo social, aflora a fase de militância de Conceição Tavares. “Da mesma maneira como militou contra os militares na condução de uma política econômica perversa, ela vai acusar a irresponsabilidade social, abordando problemas políticos, institucionais, constitucionais e o conservadorismo, deixando de enfatizar os aspectos industriais, produtivistas e cíclicos da economia. Eleita deputada, nunca deixou de tratar de economia, mas subordinando-a à questão social.” O economista incluiu na dissertação uma entrevista feita pessoalmente com Conceição Tavares, em que ela demonstra um instante de euforia ao falar sobre a chegada de Lula ao poder e de sua pregação para que o presidente governasse para as massas, desatando alianças com elites econômicas e financeiras. “Em seguida, veio o pessimismo diante da política econômica conservadora mantida pelo governo petista. Apesar da importância dada às políticas sociais, ela se tornou crítica ferrenha das políticas econômicas neoliberais implementadas durante o governo Lula. Sobre Dilma, não fala muito.” Paulo Robilloti lembra que, entre os membros da sua banca, estavam Ricardo Bielschowsky, professor da UFRJ e um dos maiores teóricos do pensamento econômico brasileiro, que considera Conceição Tavares a grande intérprete da dinâmica capitalista no Brasil de 1930 a 1980; e José Carlos Braga, professor da Unicamp e discípulo da economista, afirmando que ela sempre trazia a questão social no cerne das discussões e apontando como uma de suas maiores contribuições o método de criticar a teoria econômica à luz da história econômica. “Mas hoje está triste, desiludida com a política econômica. Se o século 20 foi muito efervescente no campo das ideias, hoje ela se vê na era da distopia, sem grandes ambições. Disse em outra entrevista que não queria morrer triste, como morreu seu mestre Furtado em 2004, depois que o PT chegou ao poder; que nasceu numa crise, a de 1930, e não queria morrer em outra crise.”

Publicação Dissertação: “O desenvolvimento capitalista na obra de Maria da Conceição Tavares: influências teóricas, economia política e pensamento econômico” Autor: Paulo César das Neves Sanna Robilloti Orientador: Pedro Paulo Zahluth Bastos Unidade: Instituto de Economia (IE)


6

Campinas, 6 a 1

Projeto sobre biossegurança estuda implicações de contaminações e oferece cursos para profissionais que atuam em salões de Campinas CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

s profissionais dos institutos de embelezamento que você frequenta como manicures, pedicuros e podólogas, submetem os instrumentos que utilizam a processos de limpeza e esterilização adequados antes do uso? Se os instrumentos perfurocortantes como alicates de unha e cutícula, espátulas de metal, dentre outros, que provocam abrasões na derme ou epiderme, não forem devidamente processados há o risco de transmissão de microrganismo como vírus, fungos e bactérias. Podem também gerar infecções e se constituírem em veículos para a transmissão de doenças infectocontagiosas como as onicomicoses, as hepatites B e C, as quais se têm proliferado de forma alarmante, e até o vírus HIV. Como os salões de beleza podem evitar a transmissão desses agentes infectantes? A literatura considera que a esterilização desses instrumentos deve ser antecedida por sua lavagem com detergente enzimático, escova e enxague abundante para que os resíduos orgânicos não fiquem neles impregnados. Depois de secos devem ser embalados antes do processo de esterilização, o que impede a reprodução de todos os organismos presentes. A esterilização pode ser realizada com a utilização de calor seco, em estufa ou forno de Pasteur, a 1700 ºC durante 60 minutos; mas pode ser feita usando-se vapor saturado sob pressão, em autoclaves, a 1340 ºC por 15 minutos. As embalagens adequadas utilizadas nos dois casos devem ser abertas apenas por ocasião do uso dos instrumentos, com técnica asséptica, para evitar eventuais contaminações. No salão de beleza que você frequenta adotam-se esses procedimentos? Essas preocupações aliadas à grande procura por serviços de embelezamento suscitam ações de prevenção e promoção da saúde. Em decorrência, desde 2005, vêm sendo desenvolvidos na Unicamp trabalhos que têm o intuito de verificar como é realizado o processamento dos instrumentos perfurocortantes usados em institutos de beleza. Nesses estudos foi elaborado um questionário que permite identificar como ocorre o processamento de alicates de unha e de cutícula, espátulas de metal e outras ferramentas em seus locais de uso. Os dados obtidos a partir do questionário, aplicado em dois municípios do Estado de São Paulo e devidamente validado, mostraram que a forma como manicures, pedicuros e podólogos realizam o processamento dos instrumentos apresenta falhas, não garantindo seu uso com segurança. A partir daí nasceu, na Faculdade de Enfermagem (FEnf) da Unicamp, o projeto “Biossegurança na prestação de serviços de beleza e podologia”, coordenado pela professora Maria Isabel Pedreira de Freitas. O seu objetivo foi o de promover uma mudança de comportamento através de oferecimento de curso para os profissionais dos salões de beleza de Campinas. Para tanto, a docente organizou uma equipe de múltiplas capacitações e experiências. Dela fazem parte o médico Carlos Emílio Levy, professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, responsável pelo Laboratório de Patologia Clínica do HC; a enfermeira Maria Filomena Gouveia de Vilela, da FEnf; a professora Dirce Zan da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp; a farmacêutica Juliana Rossato Braga, que atua na formação de profissionais do ramo da beleza no Serviço Nacional do Comercio - Senac-Jundiaí; a enfermeira Vanessa Vilas Boas, da Comissão de Controle de Infecções Hospitalares, do Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti (Caism) da Unicamp; e as graduandas da FEnf Ágatha de Souza Melo Pincelli, Amanda Stepnanie de Souza, Talita Rodrigues Nicácio e Thais Aparecida Porcari. O projeto foi patrocinado pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac).

Pesquisas expõe

de doenças em

O INÍCIO A ideia, que culminou na realização do trabalho surgiu em 2005, a partir de um artigo publicado pela Fapesp, de autoria do infectologista Roberto Focaccia, da USP, chamando a atenção sobre suspeita de que o aumento exponencial da hepatite estivesse ocorrendo por transmissão em barbearias e manicures. Logo depois, pesquisa realizada por uma orientada do professor revela que cerca de 30% das manicures de São Paulo tinham contraído hepatite B. Além disso, estudo desenvolvido em prisões do Canadá, com vistas a determinar as causas da vertiginosa incidência de hepatites e de Aids entre os prisioneiros, constata que estes se faziam tatuagens mutuamente em condições precárias de higiene. Já em 2006, a aluna Carolina Seleguini Pearson, em trabalho de conclusão de curso, realizou levantamento em nove institutos de beleza do município de Jundiaí com o objetivo de construir, validar e aplicar um questionário sobre limpeza, desinfecção, esterilização e armazenamento de instrumentos utilizados em institutos de beleza para identificar como são realizados esses processamentos pelos seus profissionais. Em 2013, esse questionário foi retomado pela graduanda da FEnf Talita Rodrigues Nicácio, do Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS), em trabalho de Iniciação Científica, com o objetivo de avaliar como estava sendo realizado o processamento de instrumentos críticos em 19 institutos de embelezamento da região central de Campinas. Na ocasião ela identificou a quantidade de salões que constavam do cadastro do Sistema de Informação em Vigilância Sanitária do município. A constatação foi a de que apenas 346 deles estavam cadastrados. Ao agrupar os dados obtidos no final de 2012 e no início de 2014, a autora concluiu que apenas 21% dos institutos de beleza estudados realizavam o processamento dos instrumentos em todas as etapas e 74% deles realizavam a limpeza com água que, se bem feita, pode remover os microorganismos presentes, apesar de não suficiente. Embora 68% possuíssem estufa e 32%, autoclave, nem sempre as utilizavam corretamente, pois, em 66% dos casos, a estufa era aberta antes do tempo devido. Além do que, conforme mostra a literatura, a lavagem adequada é essencial antes da

esterilização para a remoção total da carga microbiana, mesmo porque se não realizada ou ineficiente a sujidade remanescente pode impedir a desinfecção e esterilização por limitar a ação dos agentes esterilizantes devido à formação de biofilme. Por outro lado, falhas no processo de esterilização impedem que ocorra a desnaturação e inativação de células microbianas. Ou seja, as etapas realizadas sem critério não garantem que a instrumentação possa ser utilizada de modo seguro. Com base nos resultados mostrados no questionário, Isabel concluiu que há deficiências importantes nos procedimentos de limpeza, desinfecção e esterilização dos instrumentos usados, o que oferece risco de transmissão de doenças. Durante a coleta de dados Talita identificou um ponto

comum entre os ocupacionais: o interesse em conhecer a forma correta de preparar o material que usam de forma a garantir suas seguranças e dos seus clientes.

AGENTES INFECTANTES O médico Carlos Emilio Levy, do Departamento de Patologia Clínica, do HC da Unicamp, lembra que o HIV e as hepatites B e C, além de terem como vias de contaminação o compartilhamento de seringas, as relações sexuais, acidentes com perfurocortantes em serviços de saúde, tatuagens, agulhas de acupuntura não devidamente esterilizados, também podem se propagar através de instrumentos contaminados com sangue não devidamente esterilizados utilizados por manicures, pedicures e podólogos.

Da direita para a esquerda, a professora Maria Isabel Pedreira de Freitas, coordenadora do projeto, o professor Carlos Emílio Levy, a professora Maria Filomena Gouveia de Vilela, a farmacêutica Juliana Rossato Braga e as graduandas Ágatha de Souza Melo Pincelli, Talita Rodrigues Nicácio e Thais Aparecida Porcari: pesquisa e conscientização


7

12 de junho de 2016

em riscos de transmissão

m serviços de beleza Fotos: Antonio Scarpinetti

As onicomicoses ou infecções fúngicas por dermatófitos ou fungos do gênero Cândida, ou ainda por bactérias como o Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes ou Pseudomonas aeruginosa, constituem doenças localizadas e de efeitos mais estéticos, mas delas podem resultar alteração da forma ou perda total da unha e até exigir drenagem de abscessos.

O CURSO O quadro levantado tornou evidente a necessidade de pensar e executar intervenções para capacitar esses profissionais. Daí a ideia do curso. A equipe do projeto discutiu então as delimitações dos temas a serem abordados, ocasião em que a professora Dirce Zan sugeriu metodologia mais participativa e destacou a importância de

utilizar dados originários da realidade pesquisada em que as profissionais dos salões de beleza estão inseridas. Depois de cuidadoso preparo, o curso foi ministrado em novembro de 2015 na FEnf, com a participação de 15 ocupacionais que atuam em diferentes salões de beleza da região central de Campinas e que haviam respondido o questionário inicial. O curso teve como escopo ministrar conceitos básicos de microbiologia, apresentar dados epidemiológicos e de algumas doenças infecciosas que podem ser transmitidas nos institutos de beleza. A programação incluiu também uma visita ao Laboratório Experimental para Estudo de Reprocessamento de Artigos Odonto-Médico-Hospitalares e Análises Microbiológicas (Labex), montado com recursos da Fapesp e mantido pela coordenadora do projeto com pesquisas financiadas, em que foram ministradas noções de transmissão de infecção e apresentadas as etapas a serem seguidas para o processamento dos instrumentos usados nos institutos de beleza. O curso se iniciou com o médico Carlos Emilio Levy abordando aspectos gerais dos microrganismos na natureza e passíveis de transmissão em institutos de beleza. A seguir, a enfermeira Maria Filomena Gouveia Vilela deu informações epidemiológicas sobre as hepatites B e C no Brasil e em Campinas. Na sequência, a farmacêutica Juliana Rossato Braga falou sobre onicomicoses. Depois dessas exposições os participantes foram conduzidos ao Lapex, instalado no HC, quando tiveram oportunidade de observar, através de lupa que permite aumento de 40 vezes, os instrumentos que utilizam e que haviam trazido, conforme lhes fora previamente solicitado. Foi quando as profissionais tiveram sua primeira explosão de surpresa ao se depararem com resíduos em seus instrumentos, vários dos quais ainda novos. Deram-se conta então de que o processamento incorreto não leva à remoção dos resíduos dos materiais. Elas assistiram ainda duas dramatizações protagonizadas por Ágata, Thais, Talita e Juliana, que teve o intuito de mostrar o que ocorre de correto e incorreto nas atividades de seus dia a dia. A identificação dos problemas por parte das participantes foi imediata. Seguiu-se uma plenária em que elas puderam identificar questões que

permeiam suas realidades. Foi nessa fase, diz Isabel, que elas manifestaram a segunda surpresa: a de constatar que as informações que haviam recebido ao longo do curso deixavam clara a necessidade de seguir as recomendações para não colocarem em risco os clientes ao processarem adequadamente os instrumentos. Seguiu-se então exposição da professora Isabel sobre as etapas do processamento dos materiais, com demonstração de cada passo. Finalmente as participantes foram convidadas a responder um questionário de avaliação sobre o curso quando puderam e explicitar contribuições dos seus interesses e se comprometeram a trazer para o próximo curso duas colegas.

IMPRESSÕES A professora Isabel considera que os objetivos do curso foram plenamente atingidos com a participação muito ativa das ocupacionais. “Todas manifestaram desejo de voltar a participar do curso deste ano e saíram com o compromisso de trazer com elas mais duas pessoas, ou seja, elas que falam a linguagem das colegas, vão se tornar facilitadoras e multiplicadoras”, diz. O professor Carlos Levy destaca a forma como o curso foi organizado: “Houve a preocupação de saber o que essas profissionais queriam, o que sabiam e o que desejavam aprender. Procuramos chegar ao nível delas

Alicate usado por manicures: esterilização e embalagem correta são fundamentais na prevenção

A enfermeira Vanessa Vilas Boas, da Comissão de Controle de Infecções Hospitalares do Caism, examina instrumentos usados em serviços de beleza, no Laboratório de Patologia Clínica do HC

utilizando os recursos de que dispunham. A troca dessas experiências foi muito rica”. Filomena destaca a importância de a universidade contribuir de forma relevante para a sociedade e aprender as metodologias mais indicadas para atingir o público externo: “As manicures saíram daqui muito motivadas, entendendo que trabalham com uma atividade em que, além de trazer beleza, conforto e de se constituir em uma fonte de renda, podem contribuir para prevenir doenças”. Juliana confessa que se deparou “com um universo em que as pessoas não conhecem porque não têm acesso às informações. Elas se sensibilizaram particularmente quando descobriram a origem das micoses que tinham contraído e que podem ser as primeiras vítimas de processamentos não adequados”. Talita enfatiza o retorno da pesquisa para a sociedade de forma que “seus resultados possam ser utilizados para divulgar e reproduzir esses conhecimentos, consolidando mudanças de atitudes que contribuam para diminuição dos riscos de doenças”. Isabel conclui: “Aprendemos que, além das informações e do treinamento que possam ser transmitidos por profissionais de saúde, existem muitos fatores intervenientes como mercado de trabalho, patrões que nem sempre estão dispostos a gastar, e efetiva vigilância sanitária”.


8 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

Cabral no presente LUIZ GUILHERME BARBOSA luizguilhermebarbosa@hotmail.com

ue a poesia de João Cabral de Melo Neto tenha iniciado sua trajetória a partir de um diálogo com o Simbolismo em Pedra do sono, que A educação pela pedra seja “bem obscuro e gaguejante”, que em O cão sem plumas se leia a deglutição antropofágica do cygne de Mallarmé pelo signo “cão” de Pernambuco, que o branco, a pureza, o açúcar e o livro sobre o açúcar de Gilberto Freyre, primo distante do poeta, sirvam de fundo à interpretação de um poema como “Psicanálise do açúcar” – esses gestos de leitura, surpreendentes para um leitor acostumado ao Cabral geômetra, luminoso, formalista, matinal, concreto, serialista, vêm ao encontro daqueles que não abrem mão e não fecham os olhos para ler, atentos, um Cabral que, poeta, é poeta da subjetividade. Como, em alguma medida, os poemas de João Cabral leram sua leitora? Como imaginar a imaginação de João Cabral? Daí que o título do livro de Cristina Henrique da Costa, Imaginando João Cabral imaginando, exponha menos a subjetividade de quem o lê, e mais um Cabral que pouco se deixou ler enquanto produzia sua obra. O poeta, por exemplo, ao grafar, em título de estreia, a Pedra do sono, ecoasse talvez o que repetia em entrevistas acerca da poesia, que lhe provocava a “perda do sono”. Que a pedra fosse uma objetivação, em trocadilho, da perda, e que ambas fossem um acordar do “sono de pedra”, isso testemunha o emaranhado “complexo

de ver” que configura a obra cabralina não como um desejo de ver claro, mas, antes, um desejo secreto de ser punido pelos olhos. Além da leitura nova que faz de Pedra do sono, a leitura que Cristina Henrique da Costa desenvolve de O cão sem plumas é forte. Primeiro texto do poeta em que aparece a palavra “real”, é também o primeiro poema da obra de Cabral no qual o sujeito poético deixa de ser pensado como origem – mesmo que secreta – da palavra, e passa a se constituir na “convivência metafórica” com a linguagem. Diferença figurada entre sujeito e linguagem, o poema é produto de imaginação. Sem as plumas do cisne que se imagina à revelia do lago, no poema de Mallarmé, o cão, no poema de Cabral, atravessa o poema – e a linguagem poética – em sua crueza monossilábica e metafórica, “como vivo, como ‘dentro’ (da sala, do bolso), como vivo e debaixo (dos lençóis, da camisa e da pele)”. Desmistificar os signos, destronar o cisne, o símbolo, para, em nome do animal, atravessar o poema como o rio, o Capibaribe, um rio real, atravessa a cidade. “Por isso, dizer: é urgente acrescentar ao rol dos feitos antropofágicos da nossa cultura, ao lado do bispo Sardinha, a data de 1949, ano da morte definitiva do cisne e da deglutição de Mallarmé”. Outro exemplo, que também destaca Cristina Henrique da Costa, está na relação poética com a psicanálise. O “Pernambuco que nenhum Pernambucano reconhece” de Cabral (“The return of the native”) é irrecuperável, e procurar recuperá-lo (trazer de volta ou restaurá-lo) está fora de questão. Mortos – Pernambuco, seus cemitérios, sua paisagem humana – revelam que “a questão da

herança dos valores na poesia cabralina passa pelo processo paradoxal, como muitos outros, de uma identificação subjetiva radical que é ao mesmo tempo a recusa da objetivação da identificação”. Assim é que, em “Psicanálise do açúcar”, o açúcar de usina, industrializado, “mostra a mais instável das brancuras”, apenas entrevista pela gente do Recife. Pois mesmo o açúcar branco, de usina, impõe “mínima censura” sobre “o tal fundo mascavo [que] logo aflora”. Seja de usina, por “gente indústria”, ou de banguê, por “gente agricultura”, o risco está posto. No caso último, não há jeito: “o barrento da pré-infância logo aflora”. Aporética, a psicanálise cabralina revela “uma coincidência paradoxal entre o real e o negativo”, de modo que o seu olhar para a modernidade, no que ela tem de transformação técnica do trabalho e da vida, é de “decepção”. Para Cristina Henrique da Costa, na poesia de Cabral, a modernidade projeta um movimento retornante ao arcaico, conferindo à história movimento cíclico inútil, afinal “o passado é sem futuro real, e o futuro é sem passado dizível”. No presente, esta poesia. Fazendo jus ao poeta subjetivo, na contramão da tradição crítica que leu a poesia de João Cabral como depuração da modernidade, Imaginando João Cabral imaginando lega uma consistente interpretação do poeta que segue fazendo do português uma língua mais difícil de dizer, que, por isso, pede uma leitura, como a de Cristina Henrique da Costa, a contrapelo da história. Luiz Guilherme Barbosa é escritor, professor do Colégio Pedro II e doutorando em Teoria Literária pela UFRJ.

SERVIÇO

Título: Imaginando João Cabral imaginando Autora: Cristina Henrique da Costa Editora da Unicamp Páginas: 456 Área de interesse: Teoria literária Preço: R$ 60,00 www.editoraunicamp.com.br

Unicamp premia inventores Foto: Pedro Amatuzzi

Promovido pela Agência de Inovação Inova, Prêmio fomenta proteção e transferência de tecnologia

MAIS DESAFIOS PELA FRENTE

JULIANA EWERS Especial para o JU

m reconhecimento aos anos de pesquisa e à colaboração ao ecossistema inovador da Unicamp, a Agência de Inovação Inova concedeu, no último dia 23, prêmio a 146 inventores ligados à Universidade que foram destaque em 2015, no que tange proteção e transferência de tecnologia. Os prêmios foram divididos em quatro categorias: Destaque na Proteção à Propriedade Intelectual, que indicou a unidade da Unicamp com maior número de patentes depositadas; Tecnologia Absorvida pelo Mercado, que reconheceu o licenciamento que concluiu o ciclo da inovação; Patentes Concedidas; e Tecnologias Licenciadas. Na abertura do evento, o professor Milton Mori, diretor-executivo da Inova Unicamp, ressaltou a importância de reconhecer as boas experiências da Universidade para fomentar ainda mais a cultura de inovação e avançar na promoção do desenvolvimento científico e tecnológico. “Outro ponto muito importante é chegar à ponta da cadeia. Ao fazer essas tecnologias virarem negócio estaremos também gerando empregos, riquezas e qualidade de vida. Isso também é parte do nosso trabalho”, afirmou. O primeiro prêmio da cerimônia foi dado à “Unidade de Destaque na Proteção à Propriedade Intelectual”. Pelo segundo ano consecutivo, o IQ (Instituto de Quí-

a Agência tem com a comunidade da Unicamp e perceber o quanto ela tem sido exitosa. “Esse é um trabalho constante, do dia a dia, de acompanhar e mapear projetos de pesquisa e identificar tecnologias passíveis de serem patenteadas. É motivo de grande orgulho para nós”, afirma. No ano passado, foram concedidas 35 patentes da Unicamp pelo Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Industrial). Atualmente, a universidade conta com 984 patentes ativas em seu portfólio.

Pesquisadores contemplados com o Prêmio Inventores Unicamp, em cerimônia que ocorreu dia 23

mica) foi agraciado com o troféu, recebido pelo professor Lauro Tatsuo Kubota, diretor do instituto. “Para nós, é uma honra muito grande receber mais uma vez esse prêmio como unidade de destaque. Ainda mais pelo fato de sabermos que, ano a ano, as unidades têm apresentado desempenhos melhores na proteção de tecnologias e, mesmo assim, continuamos nessa posição de destaque”, salientou. O IQ foi o vencedor nessa categoria pois teve 12 patentes depositadas em 2015, além de 77 premiados, entre pesquisadores e professores. Na categoria “Tecnologia Absorvida pelo Mercado”, os vencedores foram a professora Lireny Gonçalves e o pesquisador Renato Grimaldi, da FEA (Faculdade de Engenharia de Alimentos) com a tecnologia “Uso de emulsificantes como agentes estruturantes de óleos vegetais – LOW SAT”, licenciada pela Cargill e que pode ser aplicada a recheio de biscoitos, massas, sorvetes, entre outros. “É muito gratificante receber esse reconhecimen-

to, porque são anos de dedicação e muita pesquisa para se chegar a esse resultado”, afirmou a professora ao ressaltar os dez anos de trabalho focados na área de óleo e gorduras. “Saímos de uma escala super pequena, laboratorial mesmo. Ver o impacto dessa pesquisa, ao vê-la na indústria, é motivo de grande orgulho para nós”, completou Grimaldi.

RECONHECIMENTO

E DESAFIOS

Na opinião da diretora de Propriedade Intelectual da Inova Unicamp, Patrícia Leal Gestic, o prêmio representa um duplo reconhecimento. O primeiro deles diz respeito ao trabalho que docentes e pesquisadores vêm desenvolvendo ao longo dos anos e que coloca a Unicamp na posição em que está hoje no que se refere à proteção de suas tecnologias. A universidade é a terceira maior patenteadora do Brasil. Outro é colher os frutos da boa relação que

Com tantas novas tecnologias sendo incorporadas à Vitrine Tecnológica da Universidade ano após ano, o desafio agora é licencia-las ao mercado. Segundo a diretora de Parcerias da Inova Unicamp, Iara Ferreira, o licenciamento da tecnologia da professora Lireny Gonçalves e do pesquisador Renato Grimaldi, que foi premiado durante o evento, é um grande exemplo de interação entre o setor empresarial e a universidade. “Nosso objetivo é conseguir mais casos como esse. Por isso, trabalhamos ativamente na prospecção de empresas parceiras”, reforça. Em 2015, a Agência de Inovação Inova Unicamp bateu recorde de licenciamentos. Foram 15 contratos assinados, totalizando 71 vigentes. Ao todo, eles dizem respeito a 125 tecnologias. Ainda no ano passado, 71% das ofertas tecnológicas foram feitas para empresas no Brasil e os outros 29% para empresas do exterior.

O PRÊMIO O Prêmio Inventores Unicamp surgiu no ano de 2004 e é uma cerimônia realizada pela Reitoria da Unicamp e pela Agência de Inovação Inova Unicamp com o intuito de homenagear os pesquisadores da Unicamp (professores e funcionários) envolvidos em atividades de proteção e transferência de tecnologia e, com isso, promover o estímulo à inovação junto à comunidade acadêmica.


9 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

Jogos e brincadeiras

subvertem dogmas das escolas Fotos: Antonio Scarpinetti

Estudo feito no Prodecad mostra a importância do tempo de recreio ISABEL GARDENAL bel@unicamp.br

s escolas têm diminuído visivelmente o tempo de recreio das crianças e os adultos têm dirigido até mesmo o seu horário livre. Estudo de mestrado realizado no Programa de Integração e Desenvolvimento da Criança e do Adolescente (Prodecad) da Unicamp mostrou que para 70% das crianças o melhor lugar para brincar e o lugar em que mais brincam em seu horário livre é o Prodecad, que integra a Divisão de Educação Infantil e Complementar (Dedic). “A Unicamp vem na contramão do processo, dando maior liberdade às crianças e mostrando sua função social”, realçou Débora Jaqueline Farias Fabiani, professora de educação física da Dedic e autora da pesquisa. O horário livre da Divisão de Educação Infantil e Complementar produz um ambiente propício ao jogo. É desafiador, provoca desequilíbrio e conflitos, mas gera oportunidades para novos aprendizados. Foi o que concluiu Débora, que desenvolveu seu estudo no programa de pós-graduação da Faculdade de Educação Física (FEF) em conjunto com a Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA). “O destaque do trabalho foi ouvir as crianças e tê-las considerado sujeitos histórico-culturais de direito que podem e devem falar de suas manifestações”, ressaltou a autora. “As pesquisas em geral só as observam, fazem inferências, mas não as escutam.” Esse estudo foi feito no Prodecad nos meses de abril e maio de 2015, durante oito observações nos horários livres. Foram cerca de 50 minutos em cada observação. A autora entrevistou 15 crianças e três educadores. Catorze pais responderam a um questionário com uma questão aberta perguntando sobre a rotina das crianças durante a semana e os finais de semana. As crianças tinham idade entre seis e dez anos, a maioria delas eram mulheres (53%), frequentavam o sistema formal quatro horas na Unicamp e, no contraturno, eram acolhidas no Prodecad, onde permaneciam duas horas. Eram filhas de funcionários e estudantes da instituição. Algumas já estavam ambientadas a essa rotina, uma vez que estavam nesse sistema desde bebês. “Dentro das duas horas que permanecem no Prodecad (educação não formal), elas também têm o horário do almoço e da escovação. Então o tempo de brincar se reduz a 45 minutos. Mesmo assim, responderam que lá é o melhor lugar para brincar e isso é muito importante para elas e para a instituição, que oferece esse diferencial”, assinalou Débora. A pesquisadora defende que é fundamental que as crianças tenham autonomia, mesmo com restrições para escolher as brincadeiras, seus parceiros, tendo o educador apenas como um suporte dessas relações com o mundo material, simbólico. “O tempo livre é necessário”, sustentou.

Publicação Dissertação: “O jogo no horário livre: a educação física na educação não formal” Autora: Débora Jaqueline Farias Fabiani Orientador: Alcides José Scaglia Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF) e Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA)

Crianças brincam no pátio do Prodecad, que integra a Divisão de Educação Infantil e Complementar da Unicamp: maior liberdade e privilegiando atividades lúdicas

BRINCADEIRAS

O jogo é uma atividade complexa que permite às crianças se apropriar da cultura e ressignificá-la. “Na perspectiva estudada, observamos crianças no horário livre e buscamos descobrir o conceito que elas tinham de jogo, do que brincavam, quais os lugares que mais brincavam, quais brincadeiras faziam, com quem faziam e, se aprendiam a brincar, o que aprendiam. Usamos o método de entrevistaconversa”, contou a mestranda. A criança era entrevistada individualmente. A abordagem começava com a pergunta sobre o que ela estava brincando. A entrevista, que durava de cinco a 12 minutos, seguia um roteiro preestabelecido, porém flexível. A criança respondia às questões e podia continuar a conversa, que era gravada com tablet. As próprias entrevistadas podiam gravar suas vozes. As crianças com seis a dez anos em geral falaram que brincar era uma forma de expressão e de comunicação com o mundo. Estava atrelada à diversão em relação ao outro. Brincar para elas era um encontro, era relacional. Enfatizaram que o melhor lugar para brincar de todos de sua vida era o Prodecad, por causa do parque, da areia, da possibilidade de brincar de verdade, de correr, de se divertir e também pela liberdade de jogar futebol. As que tinham entre seis e oito anos brincavam mais no parque e de jogos de “faz de conta”. Recriavam personagens e às vezes transgrediam regras sociais. A maioria dos meninos escolhiam o futebol. Já as crianças de nove a dez anos preferiam mais atividades esportivas e jogos de tabuleiro. “É interessante que, por faixa etária, elas acabavam se agrupando. Mas isso não impedia que se juntassem, brincassem no mesmo espaço e em conjunto”, relatou Débora. Os educadores também responderam a entrevistas semiestruturadas. Sua formação era Pedagogia. Para eles, jogo era uma expressão e uma forma de comunicação com o mundo. Essas respostas se assemelharam às das crianças. Eles disseram ainda que, no jogo, as crianças produzem as culturas da infância. Salientaram que o seu papel nesse espaço livre é o de mediador, de incentivador e de suporte à criança.

a criança encontrar nele um ambiente ideal para satisfazer seus desejos. Foi ainda feito um inquérito com os pais e verificou-se que haveria outros espaços nos quais as crianças poderiam brincar. Todavia, elegeram o Prodecad como o melhor espaço exatamente pela não intervenção”, salientou Alcides Scaglia. “Lúdico é liberdade de expressão. No momento em que brincam livremente, elas vivem o lúdico.” O orientador comentou que essa pesquisa se distingue das demais pelo fato de ter sido feita em ambiente não formal. Fora do país, a França é um dos paradigmas do brincar mais espontâneo e Gilles Brougère é uma das maiores expressões em brinquedos e jogos da atualidade. No Brasil, a Unicamp é a referência, embasada nas experiências de professores como João Batista Freire (aposentado da FEF) e Nelson Carvalho Marcelino. Alcides Scaglia destacou que o jogo é curioso por ser “subversivo”. A liberdade que provém dele permite que as crianças ressignifiquem constantemente a cultura lúdica. Ao viver esse ambiente do jogo, elas podem construir o que teóricos chamam de perspectiva de co-construção. A criança não é alguém que absorve a cultura, entrando nela de cabeça, sem filtro, sem crivo. Quando as crianças são muito dirigidas no brincar, talvez esteja sendo formada uma geração que perde a chance de desenvolver seu papel social de protagonista do seu próprio jogo e que acaba jogando o jogo do adulto, tornando-se coadjuvante. “Quando é protagonista, desenvolve seu espírito crítico, sua criatividade, a possibilidade de ser alguém no mundo, que se move e que tem desejo de ser alguém que ela é no jogo”, disse o docente. Qual é o prazer do jogo? Ele responde que é o prazer da criança viver algo irreal e expressar com segurança seus desejos que no mundo real são impedidos. “Quando aprende no jogo, esse exercício é transferido para sua vida. E é nesse sentido que a criança é subversiva. Ela não aceita mais imposições”, garantiu Alcides Scaglia.

DESENVOLVIMENTO

Como educadora, Débora observa sempre o espírito crítico das crianças e defende que a liberdade para o jogo influi em todos os aspectos da vida. “Mas não é só a criança que desenvolve o jogo, entretanto acaba manifestando mais esse lado, até pelas possibilidades que o mundo adulto restringe”, expôs. “O adulto deveria jogar mais.” Alguns defendem que o jogo é um treino para a vida. “Só que isso pode gerar um problema, pois temos uma tendência a olhar para a criança e ver o adulto que será. Pensamos no Vir-a-Ser. Ela já é. Essa é a chave da investigação”, revelou o orientador. Ao estudar o horário livre, descobriu-se que não se deve olhar para os jogos que elas estão fazendo numa perspectiva funcional. “Não estamos preocupados se esse jogo serve para aprender matemática. É consequência, não fim. O fim do jogo livre é ele mesmo. É autotélico. Essa é a essência do jogo. Ele não serve para nada, mesmo que uma pessoa de fora esteja investigando e percebendo que ali estão ocorrendo aprendizados”, assinalou o docente. Débora acrescentou que é até perigoso pensar no jogo de maneira funcional. Muitas vezes, quando a educação leva o jogo para dentro da escola, ela só olha isso e destrói o seu prazer. Contudo, é possível ver inclusive aprendizagens nele, o que muitas vezes não acontece em termos de motivação quando o jogo é regrado pelo educador sem considerar os seres do jogo, no caso as crianças, e dirigido de forma excessiva. “Essa é a virtude de investigar o horário livre em um ambiente não formal. O ‘ser do jogo’ é tomado pelo ‘senhor do jogo’. Quando uma criança participa de um jogo dirigido pelo professor, nem sempre é tomada por ele. A forma como é conduzido acaba com sua essência: que é o fato de ser imprevisível”, explanou a autora. Vocês aprendem no jogo? O que aprendem? As crianças demonstraram aprender as competências necessárias para se manter no jogo. “Falaram que aprendem um drible, a jogar”, afirmou a mestranda. “Já, para o educador, a criança aprende a conviver no jogo. Esse educador passa então a encontrar aprendizagem em tudo e a fazer inferências. Não que isso não ocorra, porém este não é o fim do jogo.” O adulto, ressaltou ela, possui um olhar pedagogizado do jogo. Por isso começa a encontrar aprendizagens, até para se justificar. Por que o jogo está aqui? Porque ele serve para isso, para aquilo. O adulto encontrou competências para a vida e a criança para se manter no jogo pelo próprio jogo. “Ouvir a criança faz com que se compreenda o jogo de verdade porque ela é o ser do jogo”, salientou Alcides Scaglia, que é corresponsável pelas pesquisas no Lepe (Laboratório de Estudos em Pedagogia do Esporte). Essas pesquisas são realizadas em duas linhas: a pedagogia do esporte, que estuda as questões do jogo na perspectiva metodológica (de ensino do futebol, do voleibol, do judô, etc.); e a linha da pedagogia do jogo, na qual se insere a pesquisa da Débora.

PEDAGOGIA

De acordo com Alcides José Scaglia, docente da FCA e orientador da dissertação, o esporte é antes de tudo um jogo. Mas nesse estudo um dos problemas identificados atualmente foi a falta de espaços para que as crianças brinquem espontaneamente. “Também notamos essa febre de dirigir as crianças nas festas de aniversário (que contam com monitores), nos hotéis (pela equipe de recreacionistas) e nos espaços dedicados a elas. Os pais matriculam os filhos em escolas de futebol, natação, sempre guiados pelo adulto”, lamentou o professor. A sociedade impede que a criança tenha sua espontaneidade. E um dos aspectos mais relevantes do jogo é a possibilidade de

Débora Jaqueline Farias Fabiani, autora da pesquisa, e o professor Alcides José Scaglia: 15 crianças e três educadores foram entrevistados, e 14 pais responderam a um questionário


10 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

Painel da semana 

Painel da semana  Semana do Meio Ambiente - A Unicamp, por meio do Grupo Gestor Universidade

Sustentável (GGUS), órgão da Coordenadoria Geral da Universidade (CGU), organiza, entre 6 e 10 de junho, a Semana do Meio Ambiente com o tema “Unicamp construindo uma trajetória sustentável”. A abertura oficial do evento ocorre no Espaço Cultural Casa do Lago, às 9 horas. Das 9h30 às 11h30, Maria Luiza Appy e Maria Angelina Pereira, diretoras da Escola Paulista de Biodanza, proferem a palestra “Biodanza: inteligência afetiva e a sua contribuição para uma vida sustentável”. A Casa do Lago fica à Avenida Érico Veríssimo 1011, no campus da Unicamp. Acesse a programação no link http://www.cgu.unicamp.br/ ggus/sma2016/documentos/programacaosma2016.pdf  Mãos que alimentam - O Espaço Cultural Casa do Lago sedia, em sua Galeria, de 10 a 23 de junho, a exposição de fotos “Mãos que alimentam”, do jornalista Ronei Aparecido Thezolin, funcionário da Assessoria de Comunicação (Ascom) da Unicamp. Visitas podem ser feitas de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 22 horas, na Av. Érico Veríssimo 1011, no campus universitário. Mais informações pelo e-mail casadolago@reitoria.unicamp.br ou telefone 19-3521-7017.  Educação inclusiva no contexto universitário - No dia 11 de junho, às 8h30, no auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, acontece o Simpósio Educação Inclusiva no Contexto Universitário com o tema: “Implicações Práticas da Educação Bilíngue para Surdos no Ensino Superior”. O encontro é proposto pela Pró-Reitoria de Graduação (PRG), que convida toda a comunidade acadêmica à reflexão e debate sobre o tema inclusão no ensino superior. As inscrições podem ser feitas no site http://www.sei. prg.unicamp.br/. Acesse o programa completo no link http://www.sei.prg.unicamp.br/index. php/programacao

Eventos futuros  Perspectivas Unicamp 50 Anos - Com o tema “Arte, Ciência e Cultura”, as me-

sas-redondas do evento acontecem em 15 de junho, às 9 horas, no Centro de Convenções da Unicamp. O objetivo é reunir nomes importantes para discutir os temas “Virtualidade e ubiquidade na construção da memória cultural” e “Criatividade em arte e ciência: desafios do século XXI”. Inscrições e outras informações no site http://www.50anos.unicamp.br/eventos/58/arte-ciencia-e-cultura  Educorp e Abec promovem curso e seminário - A Escola de Educação Corporativa da Unicamp (Educorp) e a Associação Brasileira de Editores Científicos (Abec

Teses da semana 

Eventos futuros 

Brasil) promovem, de 22 a 24 de junho, o XXIV Curso de Editoração Científica e o IX Seminário Satélite para Editores Plenos. A abertura oficial será no dia 22, às 8h30, no auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Para participar do curso é necessário que os participantes já tenham conhecimentos sobre tópicos fundamentais de editoração científica. Outras informações no link http://xxivcurso.abecbrasil.org.br/  5º Cinfotec - A Coordenadoria de Tecnologia da Informação e Comunicação da Unicamp promove o 5º Cinfotec Unicamp - Comunicação, Informação e Tecnologia, dias 22 e 23 de junho, no Centro de Convenções. O objetivo é reunir os profissionais de TIC da Unicamp para compartilhamento de experiências e casos de sucesso e oferecer oportunidades de atualização profissional em assuntos de destaque em tecnologia da informação e comunicação. Mais detalhes no site do evento: http://www.ctic.unicamp.br/cinfotec, telefone 19-3521-2220 ou e-mail simoneft@unicamp.br  Galeria de Arte recebe projetos para 2017 - A Galeria de Arte do Instituto de Artes (GAIA) da Unicamp receberá, até 24 de junho, projetos de exposições de arte contemporânea e de atividades culturais a serem realizadas em 2017. A seleção será feita pelo Conselho da GAIA com resultado a ser disponibilizado em 8 de julho, na página eletrônica do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Os arquivos para encaminhamento dos projetos estão no link http://www.iar.unicamp.br/evento/convocatoria-gaiaunicamp-2017. Mais detalhes podem ser obtidos pelo e-mail galeria@iar.unicamp.br ou telefone 19-3521-6561.

Teses da semana  Ciências Médicas: “Etiologia da perda auditiva em neonatos diagnósticados em

um programa de Triagem Auditiva Neonatal” (mestrado). Candidata: Katia Cristina Costa. Orientadora: professora Edi Lúcia Sartorato. Dia 6 de junho de 2016, às 9h30 horas, no anfiteatro do CBMEG.  Computação: “Estudos computacionais para o problema de roteamento em arcos capacitado e aberto” (mestrado). Candidato: Rafael Kendy Arakaki. Orientador: professor Fábio Luiz Usberti. Dia 8 de junho de 2016, às 14 horas, no auditório do IC 2do IC. “Uma abordagem de computação suave para o aprendizado de agregação de listas” (mestrado). Candidato: Javier Alvaro Vargas Muñoz. Orientador: professor Ricardo da Silva Torres. Dia 9 de junho de 2016, às 10 horas, no auditório do IC. “Computação sobre dados cifrados em GPGPUs” (mestrado). Candidato: Pedro Geraldo Morelli Rodrigues Alves. Orientador: professor Diego de Freitas Aranha. Dia 9 de junho de 2016, às 14 horas, na sala 353 do IC. “Detecção de pornografia em vídeos através de técnicas de aprendizado profundo e informações de movimento” (mestrado). Candidato: Mauricio Lisboa Perez. Orientador: professor Anderson de Rezende Rocha. Dia 9 de junho de 2016, às 14 horas, no auditório do IC.

Destaque do Portal 

“Uma PaaS para computar o escalonamento de recursos em provedores de IaaS considerando diferentes requisitos dos usuários” (doutorado). Candidato: Cristiano Costa Argemon Vieira. Orientador: professor Edmundo Roberto Mauro Madeira. Dia 10 de junho de 2016, às 13 horas, no auditório do IC2 do IC.  Economia: “A controvérsia sobre as águas: uma proposta de integração institucional e de políticas públicas para o segmento de águas minerais no âmbito da gestão de recursos hídricos” (doutorado). Candidato: Pedro dos Santos Portugal Júnior. Orientador: professor Bastiaan Philip Reydon. Dia 9 de junho de 2016, às 9 horas, na sala 23 do pavilhão Pósgraduação do IE. “O Estado e o setor privado de saúde no caminho da desestruturação gradual do SUS” (mestrado). Candidata: Letícia Bona Travagin. Orientador: professor Eduardo Fagnani. Dia 10 de junho de 2016, às 14 horas, na sala 36 do pavilhão de Pós-graduação do IE.  Educação Física: “Aperfeiçoando o imperfeito: a ação sindical dos jogadores de futebol no período pós Lei Pelé” (doutorado). Candidata: Mariana Zuaneti Martins. Orientadora: professora Heloisa Helena Baldy dos Reis. Dia 10 de junho de 2016, às 14 horas, no auditório da FEF.  Engenharia Mecânica: “Análise da influência das características do pneu na estabilidade do fenômeno Shimmy em motocicletas” (mestrado). Candidato: Heron José Dionísio. Orientador: professor Franco Giuseppe Dedini. Dia 10 de junho de 2016, às 14 horas, na sala KD da FEM.  Engenharia Química: “Síntese, caracterização e processamento de polímeros biorreabsorvíveis para uso na engenharia de tecidos (tissue engineering)” (doutorado). Candidata: Ana Flávia Pattaro. Orientador: professor Rubens Maciel Filho. Dia 7 de junho de 2016, às 14 horas, na sala de defesa de teses do bloco D da FEQ. “Projetos construção de dispositivo microfluídico baseado em gradiente de concentração convectivo para determinaçao do crescimento de células bacterianas” (mestrado). Candidata: Franciele Flores Vit. Orientadora: professora Lucimara Gaziola de La Torre. Dia 9 de junho de 2016, às 14 horas, na sala de defesa de teses do bloco D da FEQ.  Física: “Propriedades mecânicas e térmicas de grafinos e grafidinos” (mestrado). Candidato: Sergio Andrés Hernández Sandoval. Orientador: professor Alexandre Fontes da Fonseca. Dia 10 de junho de 2016, às 10 horas, no auditório da Pós-graduação do IFGW.  Linguagem: “Nanossintaxe dos domínios verbal e preposicional nas construções de inversão locativa do português” (doutorado). Candidato: Marcos Eroni Pires. Orientadora: professora Charlotte Marie Chambelland Galves. Dia 6 de junho de 2016, às 13 horas, no anfiteatro do IEL.  Odontologia: “Mecanismos envolvidos no efeito anti-inflamatório periférico do tramadol na articulação temporomandibular de ratos” (doutorado). Candidata: Simone Monaliza Silva Lamana. Orientadora: professora Juliana Trindade Clemente Napimoga. Dia 7 de junho de 2016, às 8h30, na sala de seminários do Departamento de Morfologia da FOP.  Química: “Estudos dos metabólitos voláteis de fungos inibidores de fitopatógenos em plantas por HS-SPME e GCxGC-QMS” (mestrado). Candidata: Mayra Fontes Furlan. Orientador: professor Fabio Augusto. Dia 10 de junho de 2016, às 9 horas, na sala IQ17 do IQ.

Destaque do Portal

Alunos do Cotuca ganham prêmios

em feira internacional nos EUA

Fotos: Divulgação

Laura Rubia Paixão Boscolo e Rafael Eiki Matheus Imamura, alunos do Cotuca, durante e depois da premiação, em Phoenix, Estados Unidos

s alunos Rafael Eiki Matheus Imamura, 19, e Laura Rubia Paixão Boscolo, 18, juntamente com a professora e orientadora do projeto, Andréia Cristina de Souza, participaram de feira internacional em Phoenix, Estados Unidos, onde apresentaram seu projeto de conclusão de curso, o Projeto Yarner. Durante a realização da feira, os alunos ganharam quatro prêmios. Rafael conta que a experiência de participar da feira foi melhor do que o esperado. Para Laura, “foi Incrível. Conhecemos jovens cientistas e engenheiros do mundo todo, conversamos com prêmios Nobel e tivemos contato com

empresas e organizações de renome. Eles nos deram opiniões e novas ideias para o projeto”. Os dois destacam ainda a variedade e qualidade dos projetos apresentados na feira. “Um dos exemplos é um projeto dos Estados Unidos, que consistiu no desenvolvimento de um software para detecção de Alzheimer pela análise do olho do paciente”, fala Rafael. O projeto Yarner foi desenvolvido como um aplicativo interativo em que o usuário pode criar e montar histórias, podendo conceber o seu próprio livro digital. Ele venceu os prêmios: “Systems Software – Fourth Award”; “GoDaddy – Prêmio Web Innovator Award”; “Oracle Academy – Prêmio

Award for outstanding project in the systems software category”; e premiação especial da Organização dos Estados Americanos (OEA). Entre os 50 melhores das Américas pelo Departamento de Desenvolvimento Humano, Educação e Emprego da OEA. A feira ocorreu entre os dias 8 e 13 de maio e contou com a participação de 1.700 estudantes de 77 países. No total, a delegação brasileira foi a quinta mais premiada da feira, ficando atrás apenas de EUA, Canadá, Taiwan e Alemanha. Os estudantes brasileiros conquistaram, ao todo, 12 prêmios. (Rafael Dall’Anese)


11 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

Estudo investiga disfunções

em rede cerebral após AVC CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

issertação desenvolvida pela psicóloga Jéssica Elias Vicentini e orientada pelo professor Li Li Min, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, teve como objetivo principal investigar se os sintomas de depressão e ansiedade, que podem acometer pacientes após um mês do Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico, estavam associados a alterações na conectividade funcional de Default Mode Network (DMN), uma rede cerebral de modo padrão, em uma tradução livre. Estudos mais recentes vêm dando maior importância às redes funcionais, ou seja, a áreas do cérebro que atuam em sincronia e estão relacionadas a determinadas funções. Entre essas redes, a DMN é a mais proeminente durante o estado de repouso, isto é, quando a atenção do indivíduo não está voltada ao meio externo como, por exemplo, ao realizar uma tarefa. Essa particular condição vem sendo associada ao pensamento intrínseco, mais precisamente, à percepção sobre si e sobre os outros. Mais recentemente alterações da DMN estão sendo relacionadas a transtornos psiquiátricos. Apesar de vasta a literatura sobre essa correspondência, existe apenas um estudo que reporta a associação entre alterações da DMN e sintomas de depressão e ansiedade na população que sofreu AVC. Estas constatações levaram a autora a investigar eventuais mecanismos desencadeados nessa rede após um AVC. Moveram-na, ainda, à execução do projeto outros fatos: a depressão e ansiedade pós-AVC trazem um impacto na qualidade de vida, na recuperação e no retorno ao trabalho dos pacientes; enquanto na população em geral a frequência da depressão e ansiedade gira em torno de 10%, nos vitimados por AVC, essa porcentagem chega a 33% para a depressão e 20% para a ansiedade; e os mecanismos envolvidos no aparecimento desses sintomas ainda não foram esclarecidos. A propósito, a pesquisadora constata que, embora existam muitos estudos focados no prejuízo estrutural causado pelo AVC no cérebro - como região afetada e dimensão da lesão/isquemia, tomadas como parâmetros para justificar o aparecimento destes sintomas psiquiátricos, outras pesquisas mostram que não há como relacionar apenas essas causas aos efeitos decorrentes. A importância do estudo é ressaltada quando se sabe que o AVC é a doença que mais afeta a população do mundo, em que uma em cada seis pessoas sofrerá AVC. Por ano são 15 milhões de primeiros casos e 5,7 milhões de mortes. No Brasil constitui a primeira causa de morte e incapacitação física em pessoas acima de 40 anos. Para doenças cerebrovasculares a taxa no país ultrapassa a 50 óbitos a cada 100 mil habitantes. Essa proporção é um pouco superior à observada em países desenvolvidos em função da negligência dos fatores de risco como hipertensão arterial, colesterol alto, diabetes, consumo excessivo de sal, obesidade, abuso de álcool, uso de fumo, dieta inadequada.

Publicação Dissertação: “Sintomas de depressão e ansiedade estão associados a alterações na conectividade funcional da Default Mode Network em pacientes com AVC isquêmico subagudo” Autora: Jéssica Elias Vicentini Orientador: Li Li Min Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)

ÂMBITO DA PESQUISA Existem dois tipos de AVC: o isquêmico - que acontece quando há oclusão do vaso, interrompendo a passagem do sangue, e o hemorrágico – em que ocorre seu rompimento. Como o AVC isquêmico corresponde a cerca de 80% dos casos, é sobre essa população que se concentrou o estudo. Esclareça-se, ainda, que no AVC isquêmico podem ser distinguidos quatro estágios: hiperagudo – primeiras seis horas; agudo – primeiras 24 horas; subagudo – primeira semana a três meses; e crônico – três meses em diante. O estudo concentrou-se no primeiro mês do AVC subagudo, período inicial de recuperação, que pode estar menos influenciado por fatores psicossociais. Em relação aos impactos decorrentes do AVC, Jéssica esclarece que 3/4 dos pacientes acusam prejuízo físico como perda de força e sensibilidade; em torno de 20% a 80% deles apresentam limitações cognitivas e 30% desenvolve demência; 1/4 são acometidos por problemas de linguagem e afasias; pelo menos 1/3 manifesta problemas emocionais como depressão e a ansiedade, e foi nestes que se concentrou a pesquisa. Este último aspecto é geralmente negligenciado face à necessidade imediata de tratar a parte motora, visível, mesmo porque é mais difícil realizar uma investigação das condições emocionais do paciente, que pode estar deprimido ou ansioso. Nesse período, diz ela, de fato são muito importantes os exercícios de fisioterapia e fonoaudiologia, embora o acompanhamento dos aspectos emocionais desses pacientes não devesse ser ignorado porque as pesquisas mostram que a recuperação não depende apenas da atividade motora mas também das condições psicológicas do paciente.

PONTOS DE PARTIDA Com base em revisão de literatura, a autora constatou que a localização do AVC e a dimensão da área atingida são de fato importantes para explicar o aparecimento de sintomas psicológicos, mesmo porque se sabe que existem regiões cerebrais que estão relacionadas às manifestações emocionais do indivíduo. Mas entre os estudos ela encontrou também evidências de que não eram apenas esses fatores que poderiam justificar essas ocorrências e, portanto, precisava-se pensar além: “Mesmo porque, hoje as teorias são muito menos localizacionistas do que eram no passado e, mesmo lá, já existiam pesquisadores que viam o cérebro como um todo, como um sistema

Psicóloga analisa correlação entre depressão e ansiedade e alterações funcionais orquestrado, que trabalha em conjunto. Então parti da hipótese de que a depressão e a ansiedade decorrentes do pós-AVC estariam mais relacionadas a redes cerebrais, ou seja, a uma mudança que ocorreria no cérebro de uma forma conjunta e não em uma região especifica”, esclarece a autora. Daí o conceito de conectividade. A hipótese era então de que além da lesão havia um comprometimento em redes funcionais, alterando o modo de como as regiões que constituem essas redes funcionavam. Ou melhor, as alterações em redes funcionais poderiam ser mais críticas que a localização da lesão no desenvolvimento de depressão e ansiedade pós-AVC. Em vista disso, a hipótese de partida era a de que os sintomas de depressão e ansiedade estariam relacionados com alterações em redes funcionais já no primeiro mês pós-AVC, período em que o trabalho se concentrou. Mas secundariamente a pesquisadora se colocava outra questão: haveria alterações de rede diferentes relacionadas aos sintomas de depressão e de ansiedade? Com vistas a esses questionamentos Jéssica retomou as conclusões de um artigo mais recente que defendia essas ideias e utilizou recursos oferecidos pela ressonância magnética funcional que, possibilitando a medida da atividade neural, mostra como os neurônios se comunicam. Trata-se de uma técnica não invasiva, rápida e altamente aplicada nos últimos anos. Para a aplicação da metodologia adotada os pacientes afetados e os do grupo de controle passaram primeiramente por avaliação neuropsicológica, em que são escalonados sintomas de depressão, ansiedade e outros transtornos psiquiátricos e realizada triagem sobre cognição geral, para depois serem submetidos à ressonância magnética funcional. Foi empregada então a técnica de ressonância magnética chamada resting state, ou seja, em estado de repouso. O resting state é um método que tem a função de medir a atividade neural intrínseca e espontânea,

sem que o indivíduo tenha sua atenção voltada ao meio externo, com vistas, por exemplo, à realização de tarefas específicas. Nessas condições o cérebro continua funcionando, fazendo conexões, mesmo não estando ligado a evento específico. A Default Mode Network (DMN) é uma das redes mais proeminentes em resting state e parece estar relacionada a processos autorreferenciais, como memória autobiográfica, possibilidade de vislumbrar o futuro, modo de pensar sobre si e sobre os outros e tem papel importante nos transtornos emocionais, corroborando o fato de que, por exemplo, na depressão o indivíduo age de forma intrínseca, desenvolvendo pensamentos negativos, sentimentos de culpa, inutilidade e na ansiedade pode haver um estado de alerta em excesso.

PONTOS DE CHEGADA Os resultados mostraram que os pacientes acometidos de AVC e com sintomas de depressão e/ou ansiedade apresentaram um aumento na conectividade funcional da rede estudada (DMN) quando comparados aos pacientes que sofreram AVC mas não apresentaram esses sintomas. Esse aumento na conectividade funcional da DMN tem sido observado também em pacientes depressivos. Jéssica conjecturou então que “esse aumento de conectividade pode decorrer do fato de essa rede estar relacionada a processos autobiográficos e pensamento intrínseco, justamente os aspectos excessivos quando há sintomas de depressão e/ou ansiedade, evidenciando o envolvimento da DMN no aparecimento desses transtornos pós-AVC”. Ela considerou então que alterações da DMN estão envolvidas na sintomatologia da depressão e/ou ansiedade após o AVC, conclusão corroborada por um número relativamente extenso de pesquisas em depressão e ansiedade na população geral que permitem relacionar o aumento da conectividade funcional da DMN e os sintomas de depressão e ansiedade. Em relação ao segundo objetivo do estudo, os sintomas de depressão e ansiedade parecem ter padrões de alteração distintos, embora ambos devam estar relacionados a alterações na DMN. Segundo a pesquisadora, trata-se do primeiro estudo a reportar a associação entre alterações na DMD e o aparecimento de sintomas de depressão já no primeiro mês do período subagudo, após o AVC, abrindo o leque sobre os mecanismos subjacentes no aparecimento desses sintomas psiquiátricos. Foto: Antonio Scarpinetti

Jéssica Elias Vicentini, autora do estudo: localização do AVC e a dimensão da área atingida são importantes para explicar o aparecimento de sintomas psicológicos


12 Campinas, 6 a 12 de junho de 2016

De Dante a Ridley Scott Foto: Reprodução

PATRÍCIA LAURETTI patricia.lauretti@reitoria.unicamp.br

que é o inferno na vida das pessoas senão o aqui e o agora? A questão existencial tratada de várias formas nas artes inspirou o pesquisador Paulo de Tarso Coutinho Viana de Souza na dissertação “As novas topografias do inferno: de Dante a Blade Runner”, defendida no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. O trabalho procura mostrar, como escreve o autor no resumo da dissertação, que “ao contrário do que se pensa o inferno não desapareceu, ele continua sendo representado por roteiristas, diretores de cinema, desenhistas de quadrinhos e game designers. Sua representação mudou. O inferno deixou de ser um lugar para onde se vai e passou a ser aquele onde se está”. Ridley Scott, diretor do cultuado filme Blade Runner – O Caçador de Androides soube como poucos eleger as imagens mais fidedignas das profundezas. Um cenário de horror foi projetado pelo cineasta, há 34 anos, para descrever o futuro (agora bem próximo) de 2019. Seres humanos e replicantes viviam o colapso da civilização na cidade de Los Angeles, então irreconhecível. Um lugar onde as pessoas não são pessoas, onde o sol não brilha e onde o ar é impossível de se respirar e que é alimentado pelos desastres do mundo moderno. “Desordem genética, poluição, sujeira e escuridão fazem parte das alegorias do inferno de hoje”, complementa. Arquiteto de múltiplos interesses, Paulo de Tarso voltou à universidade 30 anos depois de ter se formado. Estava em dúvida quanto ao tema da pesquisa: se analisava os anúncios de acompanhantes que coleciona há décadas, ou se partia para o inferno. Escolhida a segunda opção, foi buscar as raízes do projeto na obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri. A primeira parte da série de poemas do século 14, denominada mesmo de Inferno, descreve em detalhes a tal topografia das profundezas, dividida em nove “círculos”. O matemático Antônio Manetti e o cientista Galileu Galilei posteriormente ocuparam-se de fazer as operações que determinassem o local exato da queda de Lúcifer. De acordo com Dante, a queda do anjo traidor abre o gigantesco funil cuja boca corresponde ao diâmetro da terra e o final, que corresponde ao nono ciclo do inferno, ao centro do globo. “A construção de Dante é tão monumental que ainda que os críticos falem sobre o purgatório e o paraíso, o inferno é uma obra-prima e se tornou um grande paradoxo para nós porque é um lugar que não existe controlando a vida das pessoas de um lugar que existe”. Sem esconder a ironia, Paulo de Tarso afirmou que até se deu o trabalho de calcular o número de corpos que cabem no inferno: 9 sextilhões, ou seja, nove seguido de 23 zeros. Segundo ele, ainda em tom jocoso, “há espaço suficiente para acomodar

Cena do filme “Blade Runner”, de Ridley Scott: representações do inferno

toda a Humanidade e com mais conforto térmico que o céu, uma vez que, levando em conta as descrições de temperatura, o clima das trevas seria mais ameno que o do céu, mais próximo do sol”.

INFERNO NO CINEMA De Dante ao cineasta Ridley Scottt, a escolha de Blade Runner tem a ver com a simbologia nada óbvia, para o pesquisador, do processo de entender a culpa e o pecado. “O diretor do filme tem uma forma de ver o mundo que é semelhante à de Dante. Ambos consideram que existe um lugar onde você vai pagar, vai penar por atos que você cometeu”. A diferença entre os dois é que o cineasta, ao contrário do poeta, não acredita na redenção. O filme teve como inspiração o livro Androides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip K. Dick. Mas Paulo de Tarso afirma que há muito pouco em comum entre filme e livro. Este é o ponto de partida para as análises que o pesquisador faz das “camadas de significado” presentes no filme. “A história do livro se passa em São Francisco, enquanto em Blade Runner tudo acontece em Los Angeles, que é a ‘cidade dos anjos’, ou dos anjos caídos, como Lúcifer”. Paulo de Tarso chama a atenção para a primeira cena do filme, outra lembrança que remete a Lúcifer. “Vemos inúmeras tochas de usinas, refinarias, o fogo que representa o anjo que transporta a luz”. Outro sinal é o nome da maquete que aparece no início do filme, nomeada de Hades, ou seja, o inferno para os gregos, segundo o pesquisador. Os balões de propaganda para que as pessoas deixem a Terra também são vistos por Paulo de Tarso como indícios de que a história se passa no inferno.

Outra questão é a citação de três zonas no filme: três, cinco e nove. “Em Dante, o terceiro círculo é o dos glutões, que comem em excesso. A segunda cena do filme é personagem de Harrisson Ford aguardando para ser chamado para comer. Ele diz que quer dois, o chinês retruca ‘um é o suficiente’. Eles estão na zona três. A zona cinco corresponde ao quinto círculo de Dante, dos avaros e dos pródigos, e é onde está sediada a empresa que é a dona dos androides”. Também a batalha final do filme ocorre na zona nove, correspondente do nono círculo em Dante, que é dos traidores. “A gente sabe que uma das colocações do diretor foi a de que, provavelmente, o personagem de Harrison Ford era um replicante que matava outros replicantes e, portanto, um traidor da própria raça”, observa o autor da pesquisa. No Inferno de Dante, o último círculo é coberto de gelo formado pelas lágrimas daqueles que sofrem nos círculos anteriores. Não por acaso, afirma Paulo de Tarso, a última cena do filme faz referências às lágrimas na chuva. Há ainda uma única aparição suspeita do sol, se pondo a oeste, em uma construção egípcia. “Na cultura egípcia, que foi a que mais desenvolveu o conceito de pós-morte, o inferno ficava onde o sol se punha. Tudo isso não está no filme ao acaso. O diretor não constrói um edifício com características egípcias, e põe uma personagem do lado de uma figura egípcia à toa. Ele faz aquilo para te dar pistas, indícios”. Para o pesquisador, o diretor de cinema tem um objetivo claro. “Ridley Scott diz que o filme é um bolo de 700 camadas de significação. É disso que eu fui atrás. Na tese mostro que a ideia dele era criar o inferno na Terra em 2019, que os erros que nós estamos cometendo agora nós pagaremos no futuro com o inferno na Terra”, reflete.

O pesquisador justifica que precisou construir uma história do inferno para entender os enigmas do filme de Ridley Scott. “Há uma grande questão ontológica que permeia toda essa discussão que é de onde vim e para onde vou. Todo artista tenta dar alguma explicação que possa aplacar essa dúvida. Eu procurei entender o impacto da ideia de inferno na vida das pessoas, minha ideia era uma escavação para chegar à origem desse lugar tão terrível que fomos capazes de criar. Se o inferno não existe porque eu estaria tão preocupado com ele?” A curiosidade de Paulo de Tarso agora o leva de volta ao Inferno de Dante. Ainda falta calcular como passar de um círculo para outro. O pesquisador mostra o quadro de Sandro Botticelli que ilustra a Divina Comédia e que propõe como solução uma escada. O pesquisador chegou a calcular a quantidade de degraus necessários para se chegar ao nono círculo: quatro milhões. Mas ainda não se convenceu. Está em dúvida agora se os pecadores seriam enviados direto para o círculo correspondente às suas principais faltas ou, o mais possível, que o inferno não seja exatamente um funil, mas uma espiral.

Publicação Dissertação: “Inferno, novas topografias: de Dante a Blade Runner” Autor: Paulo de Tarso Coutinho Viana de Souza Orientador: Ernesto Boccara Unidade: Instituto de Artes (IA)

Foto: Antonio Scarpinetti

O arquiteto Paulo de Tarso Coutinho Viana de Souza, autor da dissertação: “Há no inferno espaço suficiente para acomodar toda a Humanidade”


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.