Ativismo alimentar: um debate além da mesa

Page 1

ATIVISMO ALIMENTAR: UM DEBATE ALÉM DA MESA A luta por uma alimentação sem derivados animais faz parte dos movimentos libertários? Évilin Matos Na cozinha sem micro-ondas, Lis Rosinato, 30 anos, oferta cursos de culinária para turmas de no máximo 10 pessoas. Quando eram ministrados apenas no restaurante vegano Bonobo, nem fogão possuía. Lis é crudívora, come alimentos crus há dois anos. Aderiu ao movimento para não sentir mais dor. Quando pesava 100 quilos sofria de depressão, ansiedade, Síndrome do Intestino Irritável, diabetes, colesterol e triglicerídeos altos, acúmulo de gordura no fígado, Síndrome do Ovário Policístico, hipotireoidismo, dor de cabeça, rinite, dermatites de contato, ressecamento da pele, oleosidade no rosto, descamação, micoses, gastrite, esteatose hepática, anemia, desregulação hormonal. “Eu tinha praticamente um remédio para cada órgão do corpo”, lembra Lis Rosinato.

Ela conheceu o crudivorismo no documentário Morrendo por não saber – sobre a dieta alimentar criada pelo médico alemão Max Gerson (1881-1959). Começou introduzindo 40% de alimentos crus na rotina. Com o início das melhoras, largou o emprego e vendeu o carro para custear uma viagem a São Paulo e ao Rio de Janeiro para aprender mais sobre a alimentação. “Quando se tem uma alimentação vegana ou crudívora melhoramos num todo. É como se fosse só um remédio que te alivia de tudo. Essa é a principal diferença da medicina ocidental para essa medicina alimentar. A gente cura não só o corpo como a parte psicológica”, enfatiza.


O veganismo é mais do que uma alimentação saudável, é um movimento que pensa em causas animais, como explica Juliana Abonizio, doutora em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho: “Veganos são vegetarianos estritos, não comem nada de origem animal. Já as pessoas que se dizem vegetarianas, na prática, acabam tendo um leque muito variado de dietas. O veganismo se baseia na não exploração de animais e nem sempre os vegetarianos adotam a dieta por questões relativas aos animais”. Por conta dos cursos de introdução à alimentação, germinação, confeitaria e fermentação que oferta e as receitas crudívoras disponibilizas em sua página, onde se apresenta como Lis Raw, Rosinato foi convidada para palestrar. Nos eventos fala sobre os benefícios da alimentação viva mesclando com outros movimentos que tem em pauta. “Com o veganismo surge questões de libertação, empatia e respeito. Na minha concepção, dizer que é vegana, é automaticamente dizer que é feminista, anti-racista, anti-homofóbica, porque é a igualdade de todo mundo”, observa. Não é de hoje que alimentação sem animais é relacionada a movimentos pela libertação de grupos oprimidos. A brasileira Maria Lacerda de Moura (1887-1945), a inglesa Annie Wood Besant (1847-1933), a americana Clara Barton (1821-1912) e a russa Lou Andreas-Salomé (1861-1937) são exemplos de mulheres que opuseram-se à exploração animal e feminina com uma dieta livre de carne. Na dissertação de mestrado sobre ativismo vegano defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o agora doutorando em Antropologia Social Diêgo Breno Leal Vilela relembra ter se deparado com um cenário de múltiplos engajamentos. Com ativistas afirmando que a luta pelos direitos animais estava engajada com outros movimentos, como, cicloativistas, punks, feministas, anarquistas, queers, entre outros. “No meu entender, possuem o objetivo de enfatizar a existência de conexões entre os vários tipos de opressão. Esse tipo de ativismo tem sido chamado de interseccional. É neste sentido que acredito que o ativismo pelos direitos animais tem dialogado com outros tipos de luta e movimentos sociais”, argumenta. Carol J. Adams denuncia a dominância masculina no livro A Política Sexual da Carne (Editora Alaúde, 2012). A doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Lessa analisou a obra no artigo “Uma teoria feminista-vegana: a política sexual da carne”. “A autora traça o panorama das discussões ao longo do tempo e em diferentes geografias mostrando que as mulheres feministas de diferentes correntes viram na relação um ponto de exploração patriarcal e capitalista. Sua proposta foi marcar o início da discussão pró-feminismo vegano”, esclarece Lessa. Ela explica como Carol relacionou o modo como animais para alimento são vistos com a dominância masculina no Ocidente: os alimentos que compõe uma refeição foram construídos sob normas culturais de gênero. O consumo de carne animal ligou-se à virilidade e à força que estão relacionados ao patriarcado. Também descreve o referencial ausente do animal morto quando se torna uma mercadoria, mantendo-o separado da ideia de animal. As mulheres na cultura ocidental são referenciais ausentes, sendo vistas como um corpo a ser consumido e usado pela publicidade e de muitos outros modos. Carol Adams, segundo o artigo de Lessa, demonstrou o modus operandi que interliga as opressões. Porquês As lutas estão interligadas, mas o que faz com que as pessoas decidam mudar a dieta? Na página opções veganas em Porto Alegre criada no Facebook, várias são as razões apresentadas pelos membros da comunidade para deixar de comer carne:


“Vi um vídeo de um abate e achei cruel demais para satisfazer o prazer humano de ter carne no prato”. “Tornei-me vegana por amor aos animais, por respeito à vida deles”. “Eu li um livro chamado: O amor pelos animais, espírita. Tocou-me de tal forma, que me sinto incapaz de acreditar que já me alimentei deles”. “Desde pequena odiava carne, mas um dia vi meu pai matar um boi e quase morri junto por saber que era dali que vinha a carne que eu comia”. “Porque uma vida não pode ser propriedade de ninguém”. “Porque é insustentável. Porque com o tanto de grãos que se produz no mundo para alimentar animais, acabaríamos com a fome das pessoas. Porque para se produzir um quilo de carne são necessários milhares de litros de água”. Da mesma forma que há um diálogo entre movimentos, há vertentes que defendem lutas separadas, como explica a doutora em Sociologia Juliana Abonizio: “O veganismo é dividido, e uma das vertentes considera que não se deve fazer a intersecção entre os movimentos, pois nos casos em que se fazem, os animais continuam sendo os menos importantes na escala de causas. Já outros, consideram que não adianta lutar pela libertação animal de modo desvinculado da libertação humana. Por exemplo, veganos são contrários à exploração e sofrimento dos animais, são contrários ao sacrifício religioso. O movimento negro vê a luta pela proibição uma perseguição racista, uma vez que querem proibir o sacrifício de religiões de matrizes afro, mas ninguém quer proibir o peru de natal ou o churrasco do domingo”. A estudante de jornalismo Julia Fernandes, 20 anos, é vegetariana há três anos e caminha para tirar todo derivado animal do consumo. Porém, tem como pauta principal o movimento negro. “É um ser vivo, mas não consigo entender a comoção pelo animal que morreu para alimentação e a mesma não surgir pela quantidade de negros que morrem nas periferias. Isso passou a me irritar no movimento. Talvez por eu ser uma mulher negra as questões de gênero e raciais sejam mais importantes para mim”, destaca Julia.


Terceira geração sem carne O porteiro avisa que a campainha não deve ser tocada, porque a bebê Sara de três meses está dormindo. No elevador, aviso por Whatsapp que cheguei. Natasha Martins, mãe de Sara, abre a porta. Porém, ouço um barulho alto tocando no notebook ao lado de Sara. Natasha explica: “É o som do útero. É mais fácil pra ela dormir. Eles não estão acostumados com o silêncio, passaram meses ouvindo só este som.” No útero de sua mãe, Sara não recebeu nenhum derivado da carne. Natasha é vegana há 13 anos. Na gravidez apenas incluiu ovo na dieta. A alimentação livre de derivados animal sofre deficiência da B12 – importante para eritropoiese, metabolismo dos aminoácidos e dos ácidos nucleicos. Para não prejudicar o desenvolvimento da filha e não bater em suas questões éticas, ela passou a comer ovo vindo do sítio do pai onde há galinhas, mas não há galo, logo, não há chance de nascer um pinto.


Ela conheceu a dieta aos oitos anos por intermédio da mãe que segue a linha espiritual Hindu. Aos 12 não via mais graça em comer animais. Natasha conta que parou porque “gostava muito mais de um prato que não tinha carne.” A dieta livre de carne é dividida em ovo-lacto-vegetarianos; lacto-vegetarianos, ovovegetarianos; veganos; vegetarianos macrobióticos, que vivem de grãos integrais, vegetais marinhos e do solo, leguminosas e missô; higienistas naturalistas, que comem alimentos vegetais; crudívoros e frugívoros, que consomem frutas, nozes, sementes e vegetais. Natasha admite que Sara terá uma alimentação vegana enquanto não for capaz de escolher. “É responsabilidade dos pais ter boas escolhas até a criança ter consciência sobre o alimento. É importante explicar o que é galinha. O que ela faz. Ela tem uma


vida. Você está comendo ela morta. É igual a que tem lá no quarto pendurada. Assim como o arroz. Era uma plantinha que nasceu e uma máquina colheu”, esclarece citando o artigo Veganismo: Em Defesa de uma Ética na Relação Entre Humanos e Animais de Joelma Batista Nascimento e Vinicius Gabriel da Silva. No estudo, os autores entendem que questões éticas e morais são significativas para o movimento, pois vão mover pensamentos e atitudes. Natasha faz a relação dos personagens Peppa e Galinha Pintadinha, os animais são apresentados pelos pais como amigos aos filhos, porém, à noite os jantam. “Na infância é quando as crianças estão desenvolvendo as questões éticas e morais. Em uma escala ética, a influência que tem ele conseguir comer o melhor amigo de infância”, questiona. Ela observa que filhos de veganos optam pela dieta por entenderem o que estão comendo. Formada em Nutrição pela Unisinos, Natasha Martins indica que profissionais adeptos à alimentação livre de carne revelam que cerca de 40% da população não vegetariana tem déficit da vitamina B12, mas os exames não são solicitados. A American Dietetic Association (ADA) reuniu em 2003 os principais estudos científicos sobre vegetarianismo. Os resultados encontrados são: níveis sanguíneos de colesterol até 35% mais baixos, menor pressão arterial, redução de até 50% do risco de doença diverticular, redução de até 50% do risco diabetes, menor probabilidade de apresentar pedras na vesícula, menor risco de ter câncer de próstata e intestino grosso. Já o consumo de carne aumentaria em até três vezes as chances de desenvolver demência cerebral, ao passo que a dieta sem derivados animais e com predominância de alimentos crus reduz os sintomas de fibromialgia. Ao invés de cozinhar, a alimentação crudívora germina sementes, como, ervilha, grão de bico, lentilha, quinua feijão. Nesse processo, acontece uma transformação e as proteínas se tornam aminoácidos essenciais. A vitamina C às vezes aumenta em 700%. Esse alimentos são chamados de biogenéticos, ou seja, geram vida. Custo ambiental O clima favorável, solo, água, relevo e luminosidade incentivam a atividade agropecuária no Brasil. Entretanto, a tradicional forma de produção não respeita os limites do ambiente. Um indicativo é a 77° posição no Índice de Desempenho Ambiental (EPI) do País, divulgado em 2014 pelo Fórum Econômico Mundial.


O modelo adotado vem causando problemas irreversíveis devido à destruição de habitats, redução da biodiversidade, contaminação da água, dos ecossistemas e liberação de gases causadores do efeito estufa. O pesquisador do Departamento de Fitossanidade do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (Ufrgs) Fabio Kessler Dal Soglio vem estudando a agroecologia para demonstrar a agricultores, legisladores e consumidores que é possível lucrar sem pôr em risco fauna e flora. “É possível fazer uma agricultura diferente, produtiva e ao mesmo tempo que conserve o ambiente, que mantenha as comunidades, que mantenha a cultura. É preciso que o modelo de desenvolvimento mude”, defende. O Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) divulgou em 2015 um estudo sobre emissões de gases de efeito estufa (GEE) pela agropecuária. Os resultados mostram que o Brasil emitiu cerca de 1,5 bilhão de toneladas de CO2e em 2013, do qual o setor contribuiu com cerca de 30%. As emissões causadas pela agropecuária são distribuídas nos grupos de produção animal e vegetal, uso de fertilizantes nitrogenados na agricultura, disposição de dejetos animais e cultivo de organossolos. A agricultura chega a ser responsável por quase 60% das emissões brasileiras quando relacionadas a emissões provenientes do desmatamento dos ecossistemas naturais, do uso de combustíveis fósseis e do tratamento de efluentes industriais. O crescimento das emissões na agropecuária nas últimas décadas, principalmente no período entre 1990 e 2013, acompanha o aumento da produção agrícola, principalmente das principais commodities brasileiras. O impacto da agropecuária não é exclusividade do Brasil. O documentário Cowspiracy: O Segredo da Sustentabilidade (Cowspiracy: The Sustainability Secret), dirigido pelos ativistas Kip Andersen e Keegan Kuhn em 2014, procurou entender mais sobre a agricultura americana. Segundo informações coletadas, o gás metano do gado tem um impacto maior do que o dióxido de carbono dos veículos. Com isso, não só a pecuária


tem um papel significante no aquecimento global, como também é a principal causa do consumo de recursos naturais e degradação ambiental. Nos Estado Unidos, mais de 378 bilhões de litros de água são usados a cada ano, sendo 55% destinada à agricultura animal. Para obter 114 gramas de hambúrguer, 2.500 litros de água são necessários. A atividade produz 65% do óxido nitroso mundial. Além de ser responsável por boa parte das mudanças climáticas, a criação de animais para alimentação é responsável por 30% do consumo de água mundial e é responsável por 91% da destruição da Amazônia. O site Vegetarian Calculator calcula a economia de recursos que a alimentação vegetariana proporciona. O pesquisador Fabio Kessler, do PGDR da UFRGS, manteve a dieta por cinco anos (60 meses). Segundo o site, foram salvos 1.010 animais, pois ele deixou de comer mais de 442 quilos de carne e, portanto, evitou a emissão de 3.648 quilos de CO2 para atmosfera. Ele confessa que voltou a comer carne em função da cultura gaúcha do churrasco. Voltou a ser onívoro por uma questão social. A cultura por trás da carne De acordo com o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), cerca de 15,2 milhões de pessoas se declaram vegetarianas. Isso corresponde a 8% da população do país. A suposta elitização da dieta dificulta a inserção de membros da classe baixa. A PhD em Sociologia Política e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Elaine de Azevedo vê que o fato de poucas pessoas serem adeptas a novas propostas dietéticas ocasiona em preços elevados. “Toda nova mercadoria nasce elitizada. Os primeiros computadores, as primeiras televisões eram elitizadas, porque poucas pessoas tinham acesso a elas. No caso do alimento orgânico, do alimento local, esse conceito ainda é elitizado, porque ainda existe pouca mobilização em direção a ele, ele é minoria. Ele é de poucas pessoas”, enfatiza. Em restaurantes e bares há menos opções destinadas a vegetarianos do que onívoros no cardápio. Em contrapartida, o restaurante Govinda, em Porto Alegre, serve há mais de 20 anos pratos vegetarianos inspirados na alimentação indiana. Cereais, grãos, leguminosas, verduras, frutas, açúcares naturais, integrais, leite e derivados são os produtos utilizados para compor uma refeição. Segundo o sócio do estabelecimento, Lila Das, 63 anos, a dieta beneficia o corpo e a alma. O Hare Krishna dispensa os animais por pregar a interação entre os seres. Na visão oriental, todos seres vivos têm alma. Acreditam na transmigração, ou seja, pode estar em uma forma superior ou inferior, esse ciclo chama-se Samsara. A alma condicionada em um corpo vegetal estaria com uma cobertura de consciência maior. Na forma humana, ela obtém poder da razão.


“O movimento vegano surgiu como uma resposta à exploração animal, porque no Ocidente quase que absolutamente os animais são explorados. Alguém pode falar que a planta que comemos tem vida. A questão é o sofrimento. O vegetal não tem sistema nervoso central desenvolvido, é diferente cortar o galho de uma árvore e cortar o membro de um animal”, explica Lila Das que começou a estudar em meados de 1970 a macrobiótica e no final da década tornou-se vegetariano. Suas duas filhas nunca ingeriram carne. A nutricionista Natasha Martins liga não só a vida espiritual como a física em opções alimentares. Destaca a importância cultural de manter o hábito de comer: “Quando um paciente diz que quer ser vegetariano, eu questiono muito sobre o porquê. Precisa ser algo natural. Ele precisa chegar em uma etapa na qual não necessite mais de carne. Por exemplo, para um gaudério que é tão cultural fazer o churrasco nos finais de semana com a família, o quão importante para ele é a carne. Eu tento refletir sobre a importância na vida e na rotina dele, é um outro tipo de pensamento não só fisiológico”. Natasha vendia há dois anos, em parceria com outra nutricionista e uma amiga, refeições veganas com sobremesa por R$ 10. Segundo ela, o lucro com a venda era alto, por terem uma ligação com uma feira orgânica e usarem talos e grãos. A nutricionista avalia que almoço vegano tem uma economia. Os preços elevados estão nos lanches, porque há poucas opções no mercado, ou seja, precisa ser feito em casa ou pagar alguém para fazê-lo. “Comida de homem” Voltando ao livro A Política Sexual da Carne, de Carol Adams. A obra traz um contexto histórico para tentar compreender como tribos do mundo inteiro estabeleciam restrições ao consumo de carne para mulher. Na Indonésia, a carne é considerada do homem. Em


festas, a distribuição é feita de acordo com número de homens por família, a mulher só pode consumi-la caso o marido permita. Na Etiópia, os Kufa puniam com a escravidão as mulheres que comiam frango. Em algumas regiões da Ásia as mulheres são proibidas de comer peixe, frutos do mar, frango e ovos. Na África equatorial o frango é proibido para mulheres. Na tribo Mbum Kpau não comem frango, cabra, perdiz e outros animais de caça. Em contrapartida, os homens da tribo Nuer acham que comer ovos leva à efeminação. Culturalmente a carne está ligada à virilidade. Viril, segundo os dicionários, é relativo a varão, masculino, varonil. Carne ligou-se ao homem, assim como vegetais ligaram-se a mulher. Simone de Beauvoir, na obra O Segundo Sexo (Editora Nova Fronteira, 1949) elucida como teria iniciado a relação de comida com os gêneros: “Na Idade da Pedra, quando a terra era comum a todos os membros do clã, o caráter rudimentar da pá, da enxada primitiva, limitava as possibilidades agrícolas: as forças femininas estavam na medida do trabalho exigido pelo cultivo dos jardins”. A escritora admite que há igualdade nessa divisão de trabalho, pois o homem caça e pesca enquanto a mulher os prepara. Entretanto, ao não sair do lar exclui-se do meio público, pertencendo apenas ao privado: “Um trabalho intensivo é exigido para desbravar florestas, tornar os campos produtivos. O homem recorre, então, ao serviço de outros homens que reduz à escravidão. A propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher.”

A atribuição de força ligada à carne gera preconceito com homens vegetarianos. Alan Dal Pizzol, 23 anos, não come carne há quatro anos. Como mantinha contato com os animais não se sentia confortável em comer carne animal. “Sempre tive pena de comer.


Fui parando aos poucos o consumo, levou dois anos para parar completamente. Não é justo com os animais, não é justo fazer eles sofrerem só pelo prazer. Não é preciso construir crueldade se podemos substituir”, pondera. No início, “a família não entendia muito bem, mas não me obrigavam. Respeitavam”. Porém, logo ele se deparou com situações de discriminação por não estar comendo “comida de homem”. Churrasco, dizem, seria a comida do homem de verdade. Alan compreende que há muito desconhecimento sobre a dieta, ele próprio teve de pesquisar em vários portais, mas só sanou suas dúvidas com outros vegetarianos. Formou-se em Publicidade pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó) em 2014 e ano passado iniciou o mestrado em Ciências da Comunicação pela Unisinos. Observa que morando próximo da Capital, manter a dieta ficou mais fácil por ter mais opções em supermercados e restaurantes. Além disso, mantém contato com um grupo maior de adeptos que aderiram por questões políticas ao movimento. De seres vivos a mercadorias No dia 8 de outubro de 2016, a repórter Bruna Karpinski e o fotógrafo André Ávila publicaram no jornal Zero Hora a reportagem Caminho da dor mostrando como foi realizado o transporte de 67 bovinos de uma propriedade em Rosário do Sul até o frigorífico Marfrig em Alegrete. Não é a primeira vez que Bruna informa como os animais param de respirar e chegam ao prato. Quando trabalhou no caderno Correio Rural, no Correio do Povo, acompanhou o abate halal de aves . O método é uma exigência de países muçulmanos que importam carne. Entre as diferenças estão: matar o animal direcionado para Meca – cidade no oeste da Arábia Saudita – com uma facada na jugular. O inspetor responsável em fiscalizar o processo espantou-se com a força das repórteres, pois não reclamaram do cheiro. Bruna tentou conhecer o abate halal de bovinos, mas nenhum frigorífico aceitou receber a equipe. “Dizem que jorra sangue para todo lado”, relembra a repórter que hoje trabalha no Zero Hora.


Embora o abate seja tido como o mais difícil de encarar, o transporte bovino, considerado arcaico por especialista, tirou as lágrimas da repórter: “Enquanto o fotógrafo registrava a agressão aos bois, me afastei, por mais que o longe não fosse tão longe assim”. A equipe chegou ao local às 9h30min e só retornaram ao hotel às 20h30, ao longo dos 184 quilômetros os animais sofreram maus tratos, como choque e chutes. “No abate o animal morre na hora, mas no transporte são horas de sofrimento”, lamenta Bruna que confessa ter enxergado a carne de uma forma diferente no supermercado. “Não que eu vá virar vegetariana, mas estou diminuindo a carne”, revela. Ela admite que houve dificuldade em encontrar uma empresa que permitisse ser acompanhada. Por conta da reportagem os responsáveis afirmaram que teriam um tratamento mais adequado. “Antes do carregamento, gravamos eles falando que cumprem com a legislação e não dão choque. Após a fala, mostramos o momento em que dão choque no boi. Não precisava”, constata a repórter. A identificação dos responsáveis foi um ponto debatido pela equipe. Segundo ela, as agressões não são só realizadas por aquela empresa, como foi confirmado a partir dos depoimentos de especialistas. “Seria injusto identificar as pessoas que nos permitiram conhecer o processo, se eles só fazem parte de uma cadeia que não vê como tão errado é chutar, machucar o boi, porque ele vai morrer. É isso que eles pensam”, afirma Bruna Karpinski. Além de prejudicial ao animal, os machucados acarretam em menos dinheiro no bolso do produtor, uma vez que as partes com ferimentos são removidas e o criador não recebe pelo que é jogado fora. O pecuarista não é responsável pelo transporte, há um terceiro que faz o intermédio entre a fazenda e a empresa. Segundo a Marfrig, um treinamento para o manejo do gado é fornecido. Em função da reportagem de Bruna, a Assembléia Legislativa do Estado deverá realizar em breve uma audiência pública para discutir o Transporte de Cargas Vivas. A ética ecocêntrica A partir de estudos realizados em arcadas dentárias foi possível chegar à conclusão que o ser humano ingere carne há mais de 1 milhão de anos. Os Australopithecus Boesie teriam iniciado a alimentação. Com o domínio do fogo e de armas, o Homo Neanderthalensis passou a consumir em maior quantidade. A ideia de igualdade entre os seres começou a ser explorada em meados de 1800 pelo filósofo Aldo Leopold que concebeu a ética ecocêntrica, na qual reconhece que todas as espécies são resultantes de um processo evolucionário e são ligados a suas propostas de vidas. No entanto, já haviam culturas que tinham uma relação diferente com os animais, como explica a PhD em Sociologia Política Elaine de Azevedo. “Na Antiga Índia existia um olhar de que os animais estavam em evolução e por isso não deveriam ser mortos. Os antigos poetas e filósofos gregos tinham uma perspectiva de vegetarianismo. Havia grupos de sábios vegetarianos desde a idade clássica até os períodos helenísticos”, afirma Azevedo.


Em 1847, a palavra vegetariano começou a ser utilizada. Antes disso “pitagórico” designava pessoas que não se alimentavam de carne. Na tradução de dicionário, vegetariano é um indivíduo que se alimenta de vegetais. Os ativistas contestam, afirmando que no latim vegetussignifica sadio, bom, fresco e enérgico. O antropólogo Philippe Descola estudou a cosmologia dos Achuar da Amazônia equatoriana e constatou não haver diferenças de natureza entre humanos, plantas e animais. Todos são considerados de maneira análoga. Os Ojibwa, caçadores do Canadá subártico, pesquisados pelo antropólogo Tim Ingold, mostram a qualidade de pessoa não como uma prerrogativa humana, mas destinada aos animais também.

Povos orientais têm uma relação diferente com o abate. O documentário Terráqueos (produzido e dirigido por Shaun Monson em 2005), denuncia a morte de golfinhos no Japão. Na Índia, o abate de gado é proibido. Para não ser considerado crime, os animais não recebem comida e água até morrerem e a pele ser vendida. Se matar animais, independente da forma, para consumo próprio é considerado crueldade, nessas regiões todo o processo pode ser observado, ao passo que a carne, no Ocidente, é encontrada pronta para consumo no açougue. O Doutor em Filosofia e professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) Jorge Antonio Torres Machado compara essa relação com o tráfico de drogas. “O contato que a maioria das pessoas têm com a carne animal é no supermercado. Pode ser comparado com o tráfico, pois a pessoa que compra uma droga não está convivendo com a violência. Há no supermercado a carne embalada, simplesmente há o esquecimento de enxergar todo o processo”, destaca. Um das explicações possíveis para a existência de regiões com divergências de pensamento é a diferenciação entre alimento e comida: o primeiro, o alimento, é comível; já a comida é culturalmente comível. Em regiões orientais, por exemplo, gatos


e cães são vistos como alimento, diferente do Ocidente. Outro exemplo é a carne de cavalo. Pensamentos distintos sobre comida ainda estão presentes nas culturas contemporâneas. A professora da UFMT Juliana Abonizio esclarece os conceitos: “A distinção é feita pelo (antropólogo Roberto) DaMatta. Ele pensa o alimento como aquilo que é relativo à nutrição, já a comida seria a consideração cultural daquilo que alimenta. Penso que cada cultura e cada subcultura numa sociedade multifacetada tenha suas próprias crenças nutricionais e considere de modo diferente aquilo que é ou não comida. É uma coisa que se liga a modos de pensar, mas também a modos de fazer, questões geracionais e histórias familiares”.

Direitos dos Animais O Brasil possui em seu ordenamento jurídico leis que visam a proteção de animais. Para explicar aos alunos de Direito sobre essa legislação e levantar pesquisas conjuntas à área de Filosofia, Biologia e Educação, desde agosto de 2016 a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) possui o Grupo de Pesquisa de Direitos dos Animais (GPDA). A doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) Nina Trícia Disconzi Rodrigues e a especialista em Direito Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Waleska Mendes Cardoso são responsáveis pelas atividades.

A iniciativa “Os direitos animais à luz da Constituição: interpretações possíveis para a efetivação dos direitos animais na sociedade brasileira” foi criada com objetivo de estudar a temática, desenvolver pesquisas e levar o assunto à comunidade. Para isso, já foram promovidos dois cines debates. O primeiro simpósio do assunto está sendo organizado. Até agora, quatro alunas fazem parte oficialmente do projeto. “No Brasil, há falta de vontade, falta de informação e falta de força para lutar contra o grande poderio econômico que explora os animais”, denuncia Waleska Cardoso nesta entrevista por e-mail concedida ao blog de jornalismo ambiental da UniRitter. No Brasil o que motiva uma legislação mais efetiva contra maus tratos animais? Waleska Mendes Cardoso – É difícil afirmar categoricamente o que motiva uma legislação. Mas no caso do artigo 225, parágrafo primeiro, inciso VII da Constituição Federal, a inserção dos animais no texto e a proibição da crueldade contra eles foi fruto


da luta da sociedade civil organizada em defesa dos animais. O debate aqui no Brasil, por mais que não tenha tomado todos os espaços acadêmicos, já acontece há pelo menos duas décadas. A criminalização da crueldade contra os animais na lei dos crimes ambientais também resultou do trabalho de professores e ativistas. Recentemente participei do V Congresso Mundial de Bioética e Direitos Animais, em Curitiba, lá inúmeros profissionais já estão levando as discussões teóricas à prática, ajuizando ações e criando políticas públicas em favor dos animais. Não ignorando as pressões econômicas e políticas, o que motiva as legislações e o direito em geral, são as lutas sociais. Os animais domésticos e os destinados à alimentação são vistos, pelo olhar humano, de formas discrepantes. Pela legislação, há diferença? Waleska – Não há uma diferenciação explícita nem na Constituição, nem na lei dos crimes ambientais, no que se refere às “destinações” dos animais dadas pelos humanos. Portanto, todos os animais estão protegidos pela legislação. Mas, como quem aplica a lei somos nós, e a sociedade considera os animais como tendo valores e importâncias diferentes, os animais “de fazenda” e de outras explorações acabam ficando invisíveis. No entanto, pode-se ver pelas decisões do STF, por exemplo, que estes mesmos animais têm sido protegidos quando da proibição das vaquejadas, farras do boi e rinhas de galo. A proteção é ampla, basta ser efetivada. Quais são os critérios para abrir um abatedouro? Waleska – Os abatedouros precisam ter um veterinário responsável. O Conselho Federal de Medicina Veterinária possui um “Guia de boas práticas para eutanásia em animais”. A Resolução nº 714/02, do CFMV “dispõe sobre procedimentos e métodos de eutanásia em animais”. Nesta resolução, há técnicas aceitáveis para o que chamam de abate humanitário, que, na teoria, causaria menos sofrimento aos animais. Também a Instrução Normativa 003, de 17/00, do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, exige certos padrões para a insensibilização dos animais “de abate” para dar-lhes uma morte “humanitária”. Os abatedouros são fiscalizados por Inspeção Federal do Ministério da Agricultura. Também são normas aplicáveis a estes estabelecimentos as Portarias do Ministério da Agricultura: Inspeção de Carnes – Padronização de Técnicas, Instalações e Equipamentos, I – Bovinos: Currais seus Anexos – Sala de Matança – 1971, DIPOA/Ministério da Agricultura, Brasil; Portaria N.º 711, de 01/11/95, publicada no DOU de 03/11/95, Normas Técnicas de Instalações e Equipamentos para Abate e Industrialização de Suínos, Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária, Brasil; Portaria N.º 210/98, publicada no DOU de 26/98, republicada no DOU de 05/99, Regulamento Técnico da Inspeção Tecnológica e Higiênico-Sanitária de Carnes de Aves, Ministério da Agricultura e do Abastecimento, Brasil. São feitas vistorias? Waleska – Sim, mas certas práticas são consideradas normais. E a fiscalização nunca é constante. Não há como fiscalizar o que ocorre diariamente. Além disso, há muitos abatedouros clandestinos que não sofrem qualquer fiscalização e possivelmente não utilizam estas técnicas de “abate humanitário”. Há uma definição que diferencia a morte da tortura do animal destinado à alimentação? Waleska – Na verdade, a lei dos crimes ambientais não excetua este tipo de prática que fazemos com os animais para a indústria. Em tese, seria tudo considerado crime ambiental. Há apenas três exceções sobre o crime de maus tratos que pode resultar em morte: Art. 37. Não é crime o abate de animal, quando realizado:


I – em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; II – para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente; IV – por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente. Em relação ao uso de animais para teste, qual órgão é responsável pela fiscalização? Waleska – Há o Conselho Nacional de Experimentação Animal, criado pela lei 11794/08. E cada instituição deve ter uma Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA). Em tese, estas comissões deveriam decidir pela aceitação de pesquisas éticas em relação aos animais, mas acabam fazendo, praticamente, juízos técnicos. Não se discute o experimento do ponto de vista ético. Se descoberto crueldade em testes, há alguma punição? Waleska – O parágrafo primeiro do Artigo 32 da Lei dos Crimes Ambientais faz referência a “quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”. O grande problema da ação penal, nestes casos, é a falta de preparação do autor da ação. O ideal é que o Ministério Público Estadual e o Federal fossem assistidos por pesquisadores que entendem de técnicas alternativas. Qual a maior deficiência do País na defesa de animais? Waleska – Falta de vontade, falta de informação e falta de força para lutar contra o grande poderio econômico que explora os animais.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.