Ecce Bestia: Libertinagem com animais

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EZIO FLAVIO BAZZO

ECCE BESTIA Libertinagem com animais


© 2009, Ezio Flavio Bazzo Obra publicada originalmente no Brasil, 2001

Segunda Edição Produzida em Londres - 2009

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Dedicatória

Não poderia deixar de dedicar este trabalho, em primeiro lugar, àqueles que até hoje não conseguem ouvir o cacarejar de uma galinha, o relincho de uma égua ou os berros de uma cabra sem sentirem um furacão de volúpia pelo corpo. Em segundo lugar, às mulheres. Tanto às ingênuas e confinadas donas de casa como às ferozes e combatentes feministas. Sim, a elas que, durante séculos, não se importaram com a praxis bestial dos homens e nem se negaram a viver ao lado deles, ocupando um lugar que, pouco antes, fôra ocupado por uma vaca, por uma ovelha ou por qualquer outro ser do bestiário universal.


Quando estiver na cama e ouvir o latido dos cães no campo, esconde-te sob as cobertas e não zombe daquilo que eles fazem, pois eles, como você, como eu e como todos os seres de cara pálida e alongada, têm uma sede insaciável de infinito. Isidore Ducasse

“Escolhia a ovelha que lhe parecia mais bonita, virava-a de barriga para cima para sentir no ventre a turgidez das mamas e, baixando a calça a meia coxa, gozava dela apressadamente, enquanto o rebanho, em pleno sol, esperava que o pastor abrisse a porteira...” Gavino Ledda

“Sim minha cara, um jumento. Tínhamos dois deles bem adestrados, bem dóceis. Não queríamos ceder em nada às damas romanas que se serviam deles em suas saturnais...” Musset

“L’odeur vulvaire des femmes, et même des petites filles, semble delectable à tous chiens gros e petits, qui peuvent être les premiers solliciteurs.” Gerard Zwan


«Bestialismo» Esta palavra é uma das inúmeras que compõem o vocabulário universal de infâmias e de perversões. Por mais que os interessados e os envolvidos tentem dar-lhe apenas uma função descritiva, ela continua sendo essencialmente uma palavra valorativa. Isto é, leva em si um valor intrigante, uma moral e um preconceito. Os manuais de psiquiatria mais obscuros, os saberes psicológicos mais inoperantes e os catecismos papais mais estéreis reservam para os zoófilos, para aqueles que praticam atos libidinosos com animais, uma cadeira cativa lá entre os tarados, os perversos, invertidos, transviados, excêntricos e psicopatas. Mas, curiosamente, nem todo mundo pensa assim. "Por razões estéticas limitaríamos com gosto aos doentes mentais esta e outras aberrações do instinto sexual, mas isto não é possível. A experiência nos ensina que em tais enfermos não se observam aberrações sexuais diferentes das que aparecem em indivíduos saudáveis, em raças e em classes sociais inteiras” declara Freud em seus Estudos sobre aberrações sexuais.”1 E é de se acreditar que ele sabia o que estava dizendo e também porquê o estava dizendo. A prática sexual com animais é algo que os etnólogos tem observado em praticamente todas as culturas e em todo o mundo. Levi Strauss as relata em Tristes trópicos; Clastres na crônica sobre os índios Guayakis, Gavino Ledda em seu polemico Pai Patrão,2 Marie-Christine Anest em sua pesquisa na Grécia etc, etc. Adianto: a questão primordial deste trabalho não é exercitar babacamente algum tipo de moralismo e muito menos fazer uma ode à depravação. Se «transar» ou «foder» com vacas, galinhas, cabras, cavalos, patos, cachorros, bodes, asnos, cisnes, macacos, porcos-espinhos etc., é um crime esdrúxulo, uma degeneração perdulária e um pecado mortal dos mais graves, que cada um desses libertinos trate de resolver sua culpa, ele próprio,

1Freud,S. Três ensaios para uma teoria sexual (As aberrações sexuais) Obras Completas, Tomo

II, p.1180. Biblioteca Nueva-Madrid 1973. 2 Durante a elaboração deste trabalho fui à casa de Gavino Ledda, na pequena aldeia de Síligo, na

Sardenha e pude discutir com ele as transas sexuais que, no livro citado, ele relata ter tido com animais. Soube que a Itália em geral e a Sardenha em particular ficaram indignadas quando seu livro teve um sucesso estrondoso em todo o mundo e foi até transformado em filme. Os intelectuais e os professores universitários acostumados a passar a vida inteira sobre as mesmas vinte páginas ou a produzir textos que nem eles próprios conseguem ler, tentaram a todo custo desqualificá-lo, mas em vão. Hoje, passados vinte e cinco anos, se constata que foi uma babaquice absurda terem acreditado que as brutalidades de um pai sardo e o bestialismo de um adolescente pastoreador pudessem comprometer e desestabilizar o carola e hipócrita país do catolicismo.


com a Justiça, com a Natureza ou com seu Demiurgo. Minha intenção é de «navegar» um pouco pela «paixão animal» desses hominídeos e, se possível, entender por que é que se conscientemente, fazem tanta questão de colocar-se bem acima das bestas, inconscientemente, na intimidade, precisam buscar lá no estábulo ou lá no galinheiro a sua auto-estima, o seu gozo e a realização de seus desejos? E é bom deixar claro desde já, que esse «costume», essa «licenciosidade» e essa «viciosidade», que não é de hoje e nem de ontem, parece ser tão antiga quanto os órgãos sexuais, quanto os primeiros tremores da pica e quanto às primeiras comichões da xota. O petroglifo encontrado em Ti-N-Lalan (3º milênio a.C.), reproduzindo um animal híbrido penetrando uma mulher, assim como a gravura da Idade da Pedra, encontrada numa caverna italiana (VII séc.a.c.) com um homem fodendo uma mula testemunham esta idéia. Os «documentos» mais remotos que se conhece de uma maneira ou de outra também mencionam esse tipo de «cretinização». Registros da antiguidade falam de sacerdotes que, no interior dos templos, treinavam as mais diversas espécies de animais para transarem em público com mulheres, para sodomizarem homens e serem por eles sodomizados. Em 1562, quando os soldados italianos sitiaram a cidade de Lyon, sob o comando do Duque de Nemours, havia com eles uma tropa de cabras bem tratadas, cobertas com capas de veludo verde e enfeites de ouro que, entre uma batalha e outra, lhes serviam de amantes3. Plutarco, em seu trabalho intitulado Da sagacidade dos animais faz o relato malicioso de uma mulher egípcia que dormia com um crocodilo4 e de outras que se entregavam à pica sagrada dos bodes e aos caprichos luxuriosos do bico sagrado de Mendes.5 Em outubro de 1601, segundo o Dictionaire des fantasmes et perversiones6, uma mulher e um cachorro surpreendidos tendo um relacionamento sexual foram queimados. O mesmo texto fala de um sujeito chamado Jacques Ferron, que em 1750 foi enforcado por ter tido sexo com uma mula. Era conhecido no Egito o adestramento de cabras para, nos rituais de fertilidade se ter relação sexual com elas. Nesse mesmo país, com o pretexto de fortalecer a virilidade os homens transavam com crocodilos, -como conseguiam é que gostaria de saber. Se na reconhecida pesquisa norte americana de Kinsey constatou que entre os jovens que viviam no meio rural, 50% já havia tido um «caso» com

3 Ver historia del erotismo, Lo Duca, Siglo Veinte Ed. P.119 Buenos Aires. 4 Idem, p.28 5 IN Mantegazza, Pablo. Los amores de los hombres. Orientacion Integral Humana, p.107, Buenos

Aires 1946 6 Love, B. Brenda. Editions Blanche, Paris 1992


uma vaca ou com um outro animal, então podemos imaginar como deve ter sido até hoje a iniciação sexual de boa parte da população dos países predominantemente agrícolas como o Brasil.7 Na "Pesquisa a respeito dos hábitos e atitudes sexuais dos brasileiros", no meio urbano, (Cultrix 1983), a pergunta: você teve, alguma vez, quando criança, relações sexuais com animais? teve 29% de respostas positivas de parte dos homens. As mulheres, como sempre, ficaram em silêncio.8 É evidente que se a pesquisa tivesse sido realizada no campo ou nas pequenas cidades, a porcentagem teria sido levada lá para as nuvens. No livro de Delcio Monteiro de Lima, Comportamento sexual dos brasileiros, (Francisco Alves 1977), nenhuma palavra sobre bestialismo. Em A primeira vez à brasileira, de Studart Cunha, também não. Os homens dizem repetidamente terem se iniciado com prostitutas ou com domésticas e as mulheres com seus primeiros namorados. Na página 77, pelo menos uma menção à luxúria no mundo animal, feita por Elke Maravilha. "Eu via o cavalo morder o pescoço de sua companheira –escreve ela- e não sabia se aquilo era carinho. Na fazenda, os adultos também não se importam muito em ocultar transas sexuais dos olhos das crianças; não fecham as portas. Não procuram isolamento. São um pouco como os cavalos e os bodes." 9 Sabe-se que entre os povos Crow, não se tinha nenhum preconceito contra o bestialismo e mantinham relações não apenas com os animais domésticos, mas também com os selvagens, alces, castores, caribus, logo após terem sido mortos na caça. Em seu Menino do engenho, Lins do Rego não se envergonha de relatar que de vez em quando iam ao curral para «fazer porcaria». O Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, ao qual sempre recorro, me dá uma informação interessante sobre o assunto: "Para o interior do Brasil a cópula com animais é raramente uma depravação genesíaca. Quase sempre é o uso de uma tradição terapêutica, teimosamente defendida e secreta. As afecções venéreas, dizem, transmitem-se ao animal que serve de fêmea, pela emissão do esperma. Chama-se bestialidade fazê matrimonho cum animá. Por se tratar de depravação, o nome será: comê bicho bruto.””10 Algumas culturas acreditaram durante muito tempo e talvez até hoje que a

7 Segundo um livreiro da cidade, nascido e crescido no meio rural, com quem dialoguei longo

tempo sobre o assunto, 99% dos homens do meio rural brasileiro tem uma atividade sexual intensa com animais. Machos ou fêmeas, isso é secundário, basta que tenha um buraco e pronto! 8 Historicamente a igreja aparece com seus gerentes sempre insistindo para que os pastores

homens fossem substituídos por pastores-moças, a fim de evitar o risco de zoofilia. É evidente que através da confissão ou das próprias experiências, os padres sabiam das orgias que aconteciam lá na solidão das pradarias. Ver Brenda, Dic. citado. 9 de Heloneida Studart e Wilson Cunha, Nosso Tempo, p. 77, SP, 1977 10 Ediouro Publicações, pp.161,567 RJ.


gonorréia e outras doenças poderiam ser curadas se o doente as transmitisse a uma mula, a uma vaca ou a uma égua, através de uma relação sexual. 11 Se por um lado alguns estudos realizados por David Forbes, no Peru, chegaram a levantar suspeitas de que a sífilis era uma doença típica da alpaca que teria sido transmitida ao homem através do sexo, por outro, na Hungria, se estudou essa mesma doença nos eqüinos com o enfoque na hipótese contrária, isto é, de que teria sido transmitida a eles pelos homens. 12 Segundo o Novo Dictionnaire de la sexualité,13nem a sífilis e nem a gonorréia são transmitidas nessas relações. O risco não vai além das parasitoses e das dermatoses. Da mesma maneira, segundo esse dicionário, não é possível que haja algum tipo de cruzamento entre os «fluidos» humanos e os «fluidos» animais, já que são de naturezas diferentes. Entre os árabes que «mourizaram» a Espanha, acreditava-se que nenhuma peregrinação a Meca seria completa, se durante a viagem o peregrino não tivesse intercurso sexual com seus jovens cameleiros e com os próprios camelos. “Apesar de entre os muçulmanos, a bestialidade ser punida com pena de morte, sabe-se que os meninos Rif sodomizavam fêmeas de asnos e enfiavam o pênis no monte de esterco fresco desse animal, com a crença de que isto aumentaria o tamanho de seus pênis. 14 O padre e cronista Jerônimo de Barrio Nuevo, fez o registro da execução de dois fazendeiros em 1659, um dos quais por ter se apaixonado por sua mula e o outro por viver enrabichado com sua porca"15 O poeta inglês Lord Georges Herbert (século XVII), relata em Uma noite num harém mouro, a união de uma mulher com um garanhão.16 No livro invejável de Emanuel Araújo, intitulado O Teatro

11 Esta crença, segundo Gilberto Freyre, não envolvia apenas animais, mas também mulheres

virgens e negras. “Por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem...” Casa Grande & Senzala, José Olympio, 2º volume, p. 529, RJ 1946 12 "Forbes que viveu longo tempo no Peru, estudando geologia, relata que naquele país se difundia

a crença de que a sífilis era uma enfermidade especial da alpaca e que destes animais foi sendo transmitida ao homem por vícios contra-natura. Regia assim mesmo no Peru uma antiga lei que proibia aos célibes albergar alpacas em suas casas. Nas ilhas Chinchas, foram encontradas efígies humanas de madeira, que levavam uma corda ao pescoço e uma serpente devorando seu membro viril. Forbes e W. Franks supõem que se tenha querido representar a introdução da sífilis por intermédio dos prisioneiros." Ver Pablo Mantegazza, Idem, .p.105 e 106. 13 Pierre et Marie Habert, Solar, p.124, Paris 1997 14 Gregersen, Edgar, Práticas sexuais, Roca, p.209. SP, 1983 15 Tannahill, Reay. Sexo na história. Francisco Alves, p.310,311. RJ 1983 16 Brenda, Idem.


dos Vícios17 (livro que gostaria imensamente de ter escrito) encontro na página 223, duas confissões de bestialismo entre nosso povo, uma durante a primeira visita do Santo Ofício ao Brasil e a outra por volta de 1791. Na primeira, Heitor Gonçalves teve que se explicar aos inquisitores porque havia «dormido carnalmente» com ovelhas, burras, vacas e éguas. Na segunda, um escravo chamado Manoel foi surpreendido trepando com uma jumenta e um tal de Eusébio amancebado com uma porca.18 Françoise Grenand, em Et l'homme devint jaguar,19 falando do universo imaginário e cotidiano dos índios Wayãpi, da Guiana, relata entre outras lendas de zoofilia, a de uma mulher que morava sozinha com seu cachorro e que teve um filho e uma filha com ele. Entre os povos Ijo os contatos com animais faziam parte do ritual masculino. Todo menino, num determinado momento, devia copular com sucesso, com um carneiro especialmente selecionado, perante um círculo de indivíduos mais idosos que testemunhavam seu desempenho. Entre os Yoruba, havia o costume de um jovem caçador ter que copular com o primeiro antílope que matasse...”20 Em algumas regiões do México circulam lendas e crenças sobre a existência de relacionamentos sexuais entre homens e animais. Em Cuernavaca –por exemplo- as manchas que os índios Pintos levam no corpo são atribuídas às relações sexuais que eles têm com as fêmeas de crocodilo. “On a trouvé aussi des documents d’après lesquels des indiens ont été condamnés à mort pour commerce sexuel avec des caimans femelles.”21 Todo mundo já ouviu falar dos puteiros europeus e orientais que ofereciam aos clientes a possibilidade de ao invés de uma mulher, enrabar um ganso, um pato ou um peru. Entre os apetrechos que o bordel oferecia ao zoófilo estava uma navalha com a qual ele decapitava a ave no momento do orgasmo. Diziam que as reações musculares na cloaca do animal que morria

17 José Olympio Editora, RJ, 1993. 18 Segundo a informação de Jean Real, no livro L’homme et la bête, Stock, p.162, Paris 1999, as

primeiras oito porcas foram introduzidas na América latina por Cristovão Colombo, através do Haiti e da Ilha de Santo Domingo, em 1493. Cortês levou algumas para o México em 1527 e Fernando de Soto desembarcou 13 na Flórida, em 1539. 19 L'Harmattan, (Zoophilie et asticots) pp.230,231,232, Paris 1982 20 Gregersen, Edgar, Idem, p.289. 21 Ver Théodor Kaehlig, Vanderungen in México, vol. 2. Wurzburg, p.112. Citado por Krafft-

Ebing. Idem, p.369.


propiciava uma espécie diferente de gozo.22 Neste ponto, fica evidente, por um lado, a analogia entre bestialismo e sadismo e por outro, a explicação do desejo de torcer o pescoço da mulher durante ou após a relação, que alguns homens sentem. E por falar em México e em puteiros, na fronteira dos EEUU com aquele país eram conhecidos os concursos entre as putas para ver quem suportava mais centímetros do órgão de um asno. As mulheres se deixavam penetrar e cabia a um juiz amarrar um lenço no pau do jegue, indicando quanto havia penetrado na vagina da mulher. Em seguida o animal penetrava soberbamente outra, e outra, e mais outra. 23 Quando li essa história, fiquei me perguntando se o Pe. Antonio Vieira sabia desse tipo de «uso» que era feito do burro, quando escreveu O jumento, Nosso irmão.24 Aqui na capital federal, não faz muito tempo, os jornais noticiaram com uma certa timidez, um caso de bestialismo, não com um asno, mas com um cachorro. Em umas poucas linhas trataram dos pontos cruciais sobre o affair entre um soldado e um cão, onde este era o protagonista principal. O caso veio a público porque o «membro» do pastor alemão não desintumesceu e o soldado, que nunca havia ouvido falar de escalacro,25 se apavorou, transmitiu seu desespero ao cão e os bombeiros acabaram tendo que prestar-lhe socorro. No exótico mundo da zoofilia, as relações com cachorros (cynophilie) parece ser a predominante, quem quiser comprovar, basta ir às páginas pornográficas da internet. Michel Dansel, em seu livro No Père Lachaise, Paris, 1973, citado por Brenda, relata que uma mulher ia a esse sofisticado cemitério parisiense com seu cachorro e transava sexualmente com ele no meio das tumbas. Uma prostituta de São Francisco além de se fazer enrabar em público por um cachorro, proclamava aos quatro ventos que a mulher que tivesse experimentado transar com um Terre-Neuve, jamais se contentaria com um homem. Ué!, mas a zoofilia não parecia ser uma perversão predominantemente masculina? Pelo que se vê e pelos relatos em questão parece que não. Uma estória clandestina afirma que até a insaciável Catarina da Rússia morreu esmagada quando tentava unir-se sexualmente a um cavalo. As más línguas chegaram a dizer que a grande Sarah Bernhardt se relacionava com um crocodilo. Parece difícil, mas nos

22 Segundo Mantegazza, também "os chineses se fizeram célebres por seus amores com gansos,

aos quais lhes cortavam cruelmente o pescoço durante a ejaculação para gozar dos espasmos do esfíncter anal na agonia das vítimas." Idem, 23 Brenda, idem. 24 Trata-se realmente do Pe. Antonio Vieira, mas vigário de Icó, Ceará, e não o Vieira que todo

mundo conhece. Livraria Freitas Bastos, RJ, 1964. 25 Palavra que se refere ao pênis aprisionado na vagina ou no ânus durante o ato sexual. Fato

comum no mundo animal, principalmente entre os cães, que possuem um osso dentro do pênis.


próprios relatos de Richard Burton aparece essa prática entre alguns nativos do Oriente Médio que teriam sexo com a fêmea do crocodilo que, de barriga para cima fica completamente indefesa. 26 A lenda mais excitante é a que se refere à Cleópatra que, depois de aprisionar abelhas em caixinhas as colocava sobre o clitóris. A vibração dos insetos confinados produzia nela os efeitos de um vibrador.27 Sobre o bestialismo feminino, Mantegazza, deixando escapar seu romantismo e seu moralismo italiano escreve: "Hoje, depois de transcorridos tantos séculos, o cachorro é freqüentemente objeto de voluptuosidade para as viúvas de amor, para as prisioneiras domésticas e para as luxuriosas. Mais de uma vez, adoráveis senhoras das altas classes sociais européias que invejamos e desejamos, adoram seu cachorrinho por razões que não confessariam a nenhum ser vivente. E às vezes, nem é um «cachorrinho», e então a perversão, desgraçadamente é ainda mais baixa. E no lugar de um tribadismo animal temos diante de nossos olhos um exemplo de contato sexual animalesco, de conúbio sacrílego entre a mais bela das criaturas com o mais odioso e o mais fétido dos animais domésticos." 28 A ausência de referências ao bestialismo no Talmud, segundo estudiosos, se deve ao fato de que, em hipótese nenhuma um judeu deve se expor à suspeição de ser um praticante da pederastia (Qiddushin 82a). “Por outro lado, uma viúva é proibida de manter um cachorro de estimação, esta proibição é baseada no princípio de que «a esposa de César deve estar acima de qualquer suspeita...»29 Bem… Eu, que não tenho uma visão antropocêntrica, nem animalcêntrica e muito menos teocêntrica do mundo e que até o presente momento, só comi vacas, porcas, ovelhas e galinhas em restaurantes, no espeto ou ao molho pardo, assumo a empreitada de especular sobre este assunto sem grandes constrangimentos. A única coisa que me compromete é de ordem zodiacal, já que o animal de meu signo é o centauro, parente do Minotauro. Meio gente, meio cavalo. Cérebro humano e pica de animal. 30 Mas isto não vem ao caso. Ou vem? Em função da evidente desproporção

26 Gregersen, Edgar. Idem, p.289. 27 Brenda, idem. 28 Idem, p.107 29 Gregersen, Edgar. Idem, p.209 30 O Minotauro, como todo mundo sabe, tinha corpo humano e cabeça de touro. Segundo a lenda,

Minos o manteve preso num labirinto na ilha grega de Creta e só o alimentava uma vez cada nove anos. Com quê? Com meninas virgens atenienses.


entre praticantes zoófilos masculinos e femininos, me permito fazer as seguintes indagações: Se este comportamento não é visto como uma perversão, como afirmam alguns doutores, por que tanto tabu e tanto silêncio a respeito? Por que essa temática não é tema de monografias e nem aparece nos jornais como aparece o homossexualismo, o estupro e a pedofilia, por exemplo? Por que as feministas, as especialistas em gênero, os educadores sexuais, etc, seguem obstinados em «não-saber» e em não dar um pio a respeito deste assunto, mesmo quando é de conhecimento público que a grande maioria dos homens do meio rural se iniciam sexualmente com animais? E aqui é bom fazer uma pausa para lembrar que o Brasil é um país essencialmente rural, e que em Brasília, por exemplo- a grande maioria dos moradores com mais de 50 anos, inclusive os intelectuais, teve vivências de roça e de fazenda. O mesmo se pode dizer do Congresso Nacional, onde são poucos os que não são provenientes do campo. Falando da iniciação sexual dos meninos no nordeste brasileiro, Mário Souto Maior escreve: “...começa a praticar o onanismo e a procurar as suas primeiras amantes entre a vacas mansas, as galinhas do terreiro e as comadres –cabras que tudo dão à família nordestina: o leite, a carne e até mesmo o próprio sexo. A cabra, além de ser amiga das mulheres rurais, entrando em casa como uma pessoa da família e com nome até de gente, às vezes MULHERIZA-SE em amiga secreta de muito menino de engenho.”31 E este texto me remete a necessariamente ao de Casa Grande & Senzala, onde o G. Freire já afirmava que “Até as vezes da égua o boi fez nas almanjarras. Até as vezes da besta e até mesmo as vezes da mulher para o menino do engenho...”32 Sendo assim, com isto já mais do que lembrado, como é que esse «ato» e esse «ultraje», esse «crime da civilização» como o consideram alguns povos indianos, conseguiu ser tão bem digerido, tão tolerado e tão bem elaborado pelas sociedades, a ponto das mulheres virem, durante séculos, ocupando no casamento o espaço antes ocupado por uma mula ou por uma vaca, sem grandes escândalos? 33 Lembro neste momento de uma mulher gorducha, numa feira de livros anarquistas no Canadá, que levava sobre as tetas enormes um botom com a seguinte inscrição em inglês: EU TENHO UMA VAGINA. Um sujeito que a olhava com a mesma admiração que eu, me cochichou com uma certa truculência: ter uma vagina não basta, pois isto até minha cadela tem!, e explodiu numa gargalhada.

31 Souto Maior, Mário. Folclorerotismo, Ed. Pirata, p.13. Recife, 1980 32 Citado por Souto Maior, M. Idem. 33 Gavino Ledda menciona o caso de um pastor que foi levado por seu patrão a um bordel na

cidade de Sassari para estar pela primeira vez com uma mulher, e que quando voltou, ao ser indagado por outros pastores como era transar com uma mulher, foi curto e grosso: -Eh! Tutt’altra cosa è, È senza coda! (Eh! É bem diferente. Não tem rabo!) Pai Patrão, Rizzoli, p.p.100,101. Milano 1998.


Foram inúmeras as razões que me levaram a dedicar-me a este assunto bestial. Os primeiros pensamentos e as primeiras horas investidas neste projeto aconteceram logo depois de conhecer o cemitério de animais do Distrito Federal e de concluir uma leitura casual de Aristóteles, o badalado filósofo grego que o mundo ocidental não se cansa de plagiar, de arremedar e nem de citar. Considerado um marco na História Natural, Aristóteles, curiosamente- ao invés de ir vagabundear pela solidão de Patmos, pelas margens do Mediterrâneo, pelos campos de Mikonos ou dar uns mergulhos no mar Egeu, perdeu alguns de seus preciosos dias na composição da História dos Animais, desses nossos companheiros de infortúnio contra os quais, a fome, a moral e a canalhice humana têm engendrado crimes hediondos. Apesar dos equívocos do velho filósofo sobre alguns assuntos relacionados à biologia e à anatomia animal,34 todo mundo sabe que suas teorias a respeito tiveram uma influência imensa durante toda a Idade Média... Como dizia, minha idéia inicial era escrever algumas páginas sobre a existência do cemitério animal. Depois passei a interessar-me pela idiossincrasia, pelo sofrimento e pelas «cerimônias de adeus» dos donos dos animais falecidos e, claro, pela traição implacável da qual os bichos domésticos foram vítimas ao longo dos séculos. Entretanto, a conversa casual com um budista zoólatra, fanático tranqüilo e freqüentador assíduo do cemitério, colocou sob o «foco de interesse» também a questão da zoofilia, do bestialismo ou dos vulgarmente chamados «barranqueiros», aqueles que esporadicamente ou mesmo por toda a vida têm relações luxuriosas com animais. Sobre o assunto, para início de conversa, duas dúvidas: essa prática seria apenas mais uma expressão do machismo planetário ou a ponta sutil de um iceberg psicótico? Segundo o psiquiatra sueco Lars Ullerstam, trata-se apenas de um costume universal e de todos os tempos, não caracterizando vício algum e muito menos tara.35 Mas como saber se esse senhor está falando em nome da ciência ou de seus próprios complexos? 36 -Você já leu Leda and the Swan, de Yeats? Perguntou-me de sopetão o budista.

34"Além de não diferenciar uma veia de uma artéria, Aristóteles acreditava que em seu interior

corria ar e não sangue" Brun,Jean. Aristote et le Lycée. PUF, p.83. Paris 1961. E foi ele também quem observou que “a mulher é a única fêmea, junto com a jumenta, que «aceita o coito» durante a gravidez, porque não há risco da concepção de um segundo feto...” Ver PORNÉIA, Aline Rousselle, Ed. Brasiliense, p.43. SP 1984. 35 Mencionado por Harvo Okavara em O sexo é plutiforme. Cultrix, idem, p.95 36 No famoso CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) que vai sendo alterada conforme o

«poder» e o «interesse» dos colaboradores da OMS, a atividade sexual com um animal está no item F65.8 (Outros transtornos de preferência sexual)


Não! Respondi-lhe com a mesma pressa. -É um poema sobre bestialismo – completou. -Yeats? -Sim.Yeats foi quem escreveu o conhecido fragmento: "Al corazón le dimos fantasias y ese alimento lo volvió brutal!". -Não, não li. –fiz questão de repetir. Como percebi que ele só havia feito essa pergunta sobre Yeats para rebaixar-me, dei-lhe xucramente o troco. E você, que por debaixo desse disfarce de monge parece ocultar um fanático pela Dolce Vita, já fez corpo-a-corpo com algum animal? Com uma vaca, por exemplo? Já passou o sarrafo numa cabrita? Já levou uma cadela para um drive-in? -Me respeite! Gritou. Como não consegui disfarçar meu riso ele atacou enfurecido: -Cuidado com esse sorriso de besta! Você que já conhece Puig sabe que na maior parte das vezes sorrir é uma porra, é falso e vazio. 37 Saiba que não tenho nenhum compromisso com os priapistas… Sou um homem que medita… voltado para o espírito… E pouco me importa que o mundo profano me considere pusilânime! Você já ouviu falar dos Chirigana? Pois bem, entre eles a prática do bestialismo é desconhecida! Você já ouviu falar dos Danis da Nova Guiné? Quase não têm relações sexuais durante a vida e são uns exemplos de saúde mentais. Muito cuidado! W. Reich pode não ter sido a última palavra neste sentido! A luxúria pode ser uma bola de sabão, uma alienação para otários… Fez um pequeno intervalo como se estivesse fazendo algum «contato» interno e continuou: -A luxúria, o sexo, a trepação compulsiva é como um osso coberto de sangue. Você o joga a um cachorro e ele o roerá até decepcionar-se… A luxúria é a víbora oculta na flor e envenena aqueles que vêm à procura da beleza… É a trepadeira que se enreda na árvore sufocando-a… Seguiu falando no mesmo tom sobre a «transmigração das almas» por mais uns vinte minutos. Provoquei-o sobre o assunto de minha pesquisa e ele respondeu-me categórico: -Como negar, se até o Ferreira de Castro, em seu Floresta virgem, inclui um relato dos seringueiros do Amazonas copulando com jumentos, 38 se na Oceania as enguias tem fama de fazerem as mulheres felizes e quando se sabe, segundo Darwin, que os homens e os chimpanzés têm ancestrais comuns? Claro que o bestialismo é uma realidade! Seria idiota se o ignorasse!

37 Em Maldição Eterna para quem ler estas páginas Nova Fronteira, p.14, RJ 1983. 38 Ver Villeneuve, Roland.. Le Museé de la Bestialité. Éditions Veyrier, pp102, 103, Paris 1973.


Não nego que uma besta procure outra besta para nela descarregar seus impulsos bestiais! É tão real como a punheta, aliás, ambos são instrumentos de uma «prática de emergência». Mas insisto: não tenho nada com isso! Não me interesso por essa questão... Nos últimos anos, sinto-me um pouco como Saint Fond: “Se levanto os olhos para o universo, vejo o mal, a desordem e o crime reinando como déspotas por toda parte. Se volto o olhar para o ser mais interessante deste universo, vejo-o igualmente empedernido de vícios, de contradições, de infâmias...” Para mim toda e qualquer relação íntima com animais tem um fundo de feitiçaria e de bruxaria. Qualquer um que tenha sido criança neste país, traz em seu inconsciente as ameaças, os horrores e as torturas associadas a animais. Em todas havia um fundo perverso e sexual. Quem se interessa por essas bruxarias e mandingas eróticas deve voltar a ler Casa grande & senzala...“39 Mas repito, isso não tem nada a ver comigo. Prefiro gastar meu tempo com outro tipo de reflexões... -Por exemplo. -Por exemplo,? A transmigração das almas! -Você acredita realmente nisto? -Lógico! Se os ossos deixados por um só pitt-bull, através das infindáveis transmigrações fossem acumulados, sua pilha seria mais alta que uma montanha. Se todo o leite materno, bebido durante este período, fosse armazenado, ter-se-ia um volume maior do que o do oceano. Despediu-se me recomendando, a princípio, que lesse A doutrina de Buda, de Kyokay Bukkyo. Mas logo em seguida, lembrando-se do assunto anterior ironizou: Tenho certeza que entre Buda e Casa grande & Senzala você ficará com a segunda. Eu, que sempre detestei que me recomendassem esta ou aquela leitura, principalmente quando se trata de esotéricos, fiquei olhando-o de longe que passeava rígido por entre as lápides com uma expressão facial crepuscular e depois, não resistindo aos meus impulsos anti-humanóides e extremistas me

39Na hora não demonstrei o menor interesse por sua indicação bibliográfica, mas quando cheguei

em casa, abri o livro do Freyre e li: “Mas o grosso das crenças e práticas da magia sexual que se desenvolveram no Brasil foram coloridas pelo intenso misticismo do negro; algumas trazidas por ele da África, outras africanas apenas na técnica, servindo-se de bichos e ervas indígenas (...) O sapo tornou-se também, na magia sexual afro-brasileira, o protetor da mulher infiel que, para enganar o marido, basta tomar uma agulha enfiada em retrós verde, fazer com ela uma cruz no rosto do indivíduo adormecido e coser depois os olhos do sapo. Por outro lado, para conservar o amante sob seu jugo precisa apenas a mulher de viver com um sapo debaixo da cama, dentro de uma panela(...) E o menino brasileiro dos tempos coloniais viu-se rodeado de maiores e mais terríveis mal-assombrados que todos os outros meninos do mundo. Nas praias o homem-marinho, terrível devorador de dedos, nariz e piroca de gente. No mato, o sací-pererê, o caipora, o homem de pés às avessas, o boi-tatá. Por toda parte a cabra-cabriola, a mula-sem-cabeça, o tutúmarambá. Nos riachos e lagoas, a mãe-d’água. À beira dos rios, o sapo cururú(...) E o Quibungo? Este então, veio inteiro da África para o Brasil. Um bicho horrivel. Metade gente, metade animal...”Idem, pp.541, 542, 546.


permiti resmungar: até quando o cotidiano nos obrigará a suportar e a conviver com esse "mesmo estremecimento da larva sobre o versátil pó da terra?"40 Como se tivesse ouvido minhas reflexões, gritou três vezes de lá entre as tumbas: -“Que a terra te seja leve! Para que os cães possam te desenterrar...”41

40 Vargas Vila em: Do rosal pensante. 41 Pierre Louys, As canções de Bilitis Ed Paraula, p.156. Porto Alegre, 1984.


(II) “Rien n’est aussi impénétrable pour nous que cette vie animale dont nous sommesun prolongement.”

G. Bataille Quatro e trinta e cinco da madrugada. Um sonho mixado a um pesadelo fezme saltar e cair sentado no centro da cama. Havia lido até tarde Os sete loucos de Arlt. Talvez tivesse alguma coisa a ver. Cliquei o abatjour da cabeceira e anotei de memória: "Nossa cidade, a cidade dos Reis, será de mármore branco e ficará à beira do mar. Terá um diâmetro de sete léguas e cúpulas de cobre rosado, lagos e bosques. Ali viverão os santos do ofício, os patriarcas astuciosos, os magos fraudulentos, as deusas apócrifas. Toda ciência será magia. Os médicos sairão pelos caminhos disfarçados de anjos, e quando os homens se multiplicarem em excesso, por castigo de seus crimes dragões voadores luminosos derramarão pelos ares vibriões de cólera asiática"42 O vizinho do apartamento de cima aperta a descarga e um furacão de merda despenca pelos tubos verticais que passam pelo interior de minha parede indo em linha reta até a garagem. Enfiei-me de corpo inteiro sob os lençóis e quando acordei o sol já havia esquentado a parte metálica de minha vidraça. Vou para a mesa de estudos e retomo o assunto do bestialismo. Antes de tocar nas folhas em desordem, faço-me a seguinte pergunta: Em que ponto, afinal, os homens (a cultura) se separaram dos animais (a natureza)? A resposta que meu cérebro fornece à minha interrogação é uma mistura de Rousseau e de L. Strauss, que anoto, provisoriamente, mesmo não sendo lá muito de meu gosto: quando surgiu a linguagem! Mais tarde, o emprego da metáfora foi o rompimento definitivo. “Adão e Eva foram criados como selvagens ignorantes no paraíso, num mundo em que os animais falavam e eram companheiros dos homens; foi através do pecado que eles adquiriram o conhecimento e se tornaram humanos, diferentes e superiores aos animais.” 43 É necessário admitir que se a fábula em questão tem algum sentido, o pecado foi um «bem», um ato revolucionário e não um «mal», já que empurrou os homens para a «humanidade» e para fora de um paraíso recheado de mediocridade e de hipocrisia! Não podemos esquecer que “todo o bem

4242 Arlt, Roberto. Os sete loucos. Francisco Alves, p. 186, RJ. 1982. 43 Leach, Edmund. As idéias de Levi-Strauss. Cultrix, p.38. São Paulo 1973.


procede do INSTINTO e é por conseguinte, leve, necessário e espontâneo.” 44 Ou não? E depois, que pecado teria sido esse? Teria Adão enrabado alguma cabrita celeste, como protesto à sua mulher, que insistia em coçar a cabeça e a permanecer de pernas fechadas? E será que vem daí a idéia de que “a sexualidade é composta de fricções e de fantasmas”, como pensa Helen Singer Kaplan?45 Nos cadernos negros e cinzas da história remota e da história que praticamente ainda nem foi contada, é possível perceber que no meio de tanta banalidade, com raras exceções, a mesma postura que a sociedade tinha com relação à sodomia entre pessoas, a tinha também com relação à zoofilia, e que ambas eram tratadas com as mesmas ameaças e com os mesmos castigos: felação, sodomia e zoofilia eram consideradas pecados contra a natureza. "No Concílio de Ankara, em 314 d.C., -segundo relata Tannahil- foram expedidas duas regras sobre o assunto, cujo fraseado não ficou inteiramente claro. Eruditos modernos acreditam que a preocupação era unicamente com os zoofilíacos, «aqueles que cometiam fornicação com animais», mas na igreja ocidental primitiva, tais normas foram tomadas como também se referindo a homossexuais. Resultando daí que as penalidades previstas aos zoofilíacos passaram a ser uma referência também para o tratamento que era destinado aos homossexuais.”46 Bem mais tarde, lá pelos anos 1583, quem estivesse entre os azarados ameríndios peruanos47 poderia ouvir, todos os dias e a todas as horas, a mesma prédica rançosa e as mesmas ameaças saídas da boca dos padres católicos espanhóis. Tratava-se de um sermão direto, nada prolixo, cuidadosamente elaborado e aprovado agora pelos integrantes do Terceiro Concílio Provincial de Lima, com a finalidade de coibir entre os nativos atos considerados pecaminosos para a igreja, principalmente os ligados à sodomia e à zoofilia. Não deviam ter lido Aristóteles que insistia: “podes expulsar a natureza com o forcado, ela sempre voltará”. Vejam como o texto é impressionante, e depois viajem ao Peru, para constatar como, apesar dos quatrocentos e tantos anos, seus efeitos ainda estão presentes no inconsciente

44 Nietzsche, F. O crepúsculo dos ídolos. Hemus, p.41, SP 1984. 45 Citado por Bonnard,Marc e Schouman, Michel, em Histoires du pénis. Éditions du Rocher, p.

49. Paris 1999. Curiosamente esta idéia do amor também pode ser encontrada em Spinosa. “O amor –escreve ele- é um titilar (fazer carícias, fazer cócegas), com a idéia concomitante de uma causa externa”. 46 Tannahil, Reay. O sexo na história. Francisco Alves, p.170. RJ 1983. 47 Terem dado ao país o nome de Perú, não teria sido uma sutileza dos padres para indicar um país

de zoófilos?


daquele povo.48 […Se, entre vocês, houver alguém que pratique a sodomia com homem, menino ou animal, saibam que, por causa disso, fogo e enxofre caíram do céu e queimaram as belas cidades de Sodoma e Gomorra, que ficaram em cinzas. Saibam que isto é punido com a morte, sob as justas leis de nossos Reis espanhóis… Saibam que o motivo pelo qual Deus permitiu que vocês, os índios, fossem tão afligidos e humilhados por outras nações foi devido a esse vício de seus ancestrais, ainda praticado por muitos entre vocês… DEUS LIQUIDARÁ TODOS VOCES e já está fazendo isto, porque não se regeneraram. Acabem com as bebedeiras e os festins, que são o terreno propício para esses vícios abomináveis, removam suas camas, os homens e os meninos, não durmam misturados como porcos, mas cada um sozinho, não cantem nem digam palavras sujas, não tentem sua carne com as próprias mãos, porque isto também é pecado, merecendo a morte e o inferno.]49 O costume e o prazer de incluir uma lhama ou uma vicunha entre suas preferências amorosas (independente de caracterizar um adultério, um incesto, ninfomania ou outra transgressão qualquer) devia ser tão freqüente entre os nossos «irmãos» & «irmãs»50 do Novo Mundo, que os padres, no tête-à-tête do confessionário, chegaram até a adotar uma pergunta especifica: -Pecou com algum animal?51 E quando o «confessante», levado por seus medos imaginários, era ingênuo o suficiente para relatar seu vício, a igreja fazia cair sobre ele os tormentos do inferno. Sabe-se que naquele tempo, como hoje, “a igreja combatia as paixões através do método da extirpação radical; seu sistema, seu

48 Curiosamente, entre uns sites pornográficos encontrei este: Comunidade peruana pró zoofilia.

Liguei para meu amigo nascido e criado naquele país, e ele me afirmou que só tomou conhecimento da existência do bestialismo quando veio viver no Brasil. 49 Tannahill, Reay. Idem p.326. 50 As relações femininas, todo mundo sabe, e não apenas com animais, são sempre cercadas de

mais sutilezas e de mais segredos que as dos homens. No texto de P.Louys, Bilitis apaixonada exclama: “Num recinto três vezes misterioso, onde os homens jamais penetram, nós te festejamos, Astartéia da Noite. Mãe do Mundo, Fonte da Vida dos Deuses!”.Canções de Bilitis, Idem, p.123. 51 “Seja qual for a espécie de animal não muda a natureza do pecado, e a diferença de sexo não

agrava em nada o delito, uma vez que a malícia está no fato de ser um ato anti-natural. Não é portanto necessário esclarecer ao confessor a espécie, o sexo e outras especificidades da besta com a qual se copulou, mas é fundamental esclarecer se o ato implicou derramamento de sêmen ou não.” In Manuel secret des confesseurs. Filipacchi, 1974. Citado por Brenda no dicionário já mencionado, p.385.


tratamento, era a castração. Não se perguntava jamais: como se espiritualiza, embeleza e diviniza um desejo? Em todas as épocas o peso da disciplina foi posto a serviço do extermínio da sensualidade, do orgulho, do desejo de dominar, de possuir e de vingar-se. Mas atacar a paixão na sua raiz é atacar a raiz da vida; o processo da igreja é nocivo à vida”, escreveu Nietzsche em seu Crepúsculo dos ídolos.52 Francisco Guerra, um estudioso da cerâmica e da arte peruana, analisando 100 pequenos potes de argila ilustrados com imagens eróticas, observou que 6% deles faziam referência à prática da zoofilia. Mulheres fazendo sexo com um jaguar, com um cachorro e em três casos com corvosmarinhos.53 Apesar de toda essa aparente licenciosidade artística, entre os Incas não era permitido aos condutores de llamas realizar expedições desacompanhados tinham que serem escoltados por suas esposas - relata Gregersen. Nesse mesmo país quem fosse surpreendido em transações amorosas com algum animal, fosse aos pés de Machu-Pichu54 ou entre os penhascos gelados e românticos dos Andes, era arrastado pelas ruas dos vilarejos, enforcado e queimado com todas as suas roupas, para simbolizar perante os outros pecadores a sua completa destruição. Uma pesquisa recente realizada na Grécia, em Chipre e nas ilhas gregas de Corfu e Creta, pela etnóloga francesa Marie-Christine Anest,55 traz

52 Nietzsche, idem, p.34 53 Idem, p.322 54Sempre que escrevo ou vejo esta palavra rabiscada em algum lugar, sou subitamente tomado por

memórias e imagens dos anos 70 quando manadas de adolescentes do mundo inteiro viajavam para lá para participar da festa aborígene ao Sol. A calça jeans boca de sino arrastando na lama ou na neve, as botas ressecadas, as cabeleiras, a maconha, o ácido-lisérgico, anéis, colares, meninas esotéricas escalando a montanha, travels-cheques falsificados, os exércitos das ditaduras sulamericanas soltos pelos Andes e pela Amazônia como feras sanguinárias. Mas os fuzis não eram a última palavra para nada. Alguém, por mais ingênuo que fosse, sempre sabia cantar uma ou duas estrofes da musiquinha-mor do Geraldo Vandré “...Vem vamos embora que esperar não é saber...”, enquanto a «pedagogia» dos milicos e de seus instrutores gringos seguia propiciando mais Drogas, Sexo e Alienação do que o nacionalismo falso e babaca que se propunha. A fé numa geração de comediantes, tanto de direita como de esquerda, que não fez merda nenhuma e que foi se degenerando e se prostituindo com o tempo... Não te lembras? Por que fazem trinta anos? É fácil, estão todos aí, na tua frente, no Congresso Nacional, nos partidos, nos sindicatos, na presidência das multinacionais e nos guetos onde habita a elite mais corrupta e mais reacionária do mundo. Ainda comediantes, claro, só que agora, com outro texto decorado. Falsários, mitômanos e crápulas!... Pela manhã o sol batendo de cheio nos paredões e nas ruínas incas... uma mulher falando de amor em quéchua... Mais tarde, a lua cruzando a solidão andina sem pressa e sem nenhuma das megalomania dos homens... 55 Zoofilie, homosexualité, rites de passage et initiation masculine dans la Grèce contemporaine.

L’harmattan, Paris 1994.


informações importantes e curiosas sobre a prática e o papel da zoofilia na iniciação sexual dos adolescentes masculinos. Quando o ato de bestialismo envolve atores infanto-juvenis, é tolerado sem problemas fazendo, inclusive, parte da cultura folclórica e dos rituais de iniciação dos meninos daqueles países, mas quando é um adulto que vai copular com um animal, então o bestialismo é considerado crime e punido judicialmente, escreve ela. A autora não faz referência nenhuma à zoofilia feminina, à transa de mulheres com animais, menciona apenas a ignorância do universo feminino sobre este assunto. “As mulheres das comunidades em questão ignoram quase que totalmente a existência e os pormenores dessas práticas, a literatura e a transmissão oral poética dos saberes associados a estas tradições secretas, próprias de pessoas mais velhas e do sexo masculino.” 56 Para a autora, que pesquisou o papel e o significado tanto da prática da zoofilia como do homossexualismo na iniciação dos meninos daquelas regiões, enquanto “a homossexualidade masculina infanto-juvenil se apresenta como uma prática que visa o conhecimento do próprio sexo e ao aumento da virilidade, a zoofilia se apresenta como uma aproximação ao outro sexo como espécie e mundo diferente, representante da natureza como um todo”, 57 blá, blá, blá... É interessante como os professores e os teóricos em geral vão enrolando os leitores e a si mesmos com análises, com chavões e truques acadêmicos, levando o interessado cada vez mais distante daquilo que importa, neste caso, a «trepada» e a «volúpia» com o animal que, por mais “normal” que seja, se estivesse presente na consciência da sociedade, inviabilizaria absolutamente todos os projetos. Platão mentiu quando afirmou que a volúpia era a coisa mais vã do mundo. Pelo contrário, ela é a usina que move todas as coisas que estão no mundo. Com os dados inquestionáveis da freqüência bestial dos homens, fico me perguntando como é que um Nietzsche chegou a idealizar um Super-Homem sabendo disso? Como é que os líderes religiosos se atrevem a fazer seus discursos prosaicos e megalomaníacos com relação às possibilidades humanas, sabendo disto? E como é que a burguesia teve o descaramento de inventar o amor quando seus representantes voltavam para casa impregnados do cheiro das cabritas ou dos galinheiros? 58 Independente de teus gostos e até de tuas taras, leitor, seja sincero: não te parece que a

56 Anest, obra citada, p.9 57 Idem, p.8 58 “O ato sexual com uma galinha, na prática ou em sonhos, tem um sentido claramente

incestuoso: a gente fala freqüentemente de uma «mãe-galinha».” Ver Christian de Goustine. Rêves et sexualite. Ed. de Presse et D’information, p.82, Paris 1976. Num livreto artesanal de Jeová Franklin, publicado aqui em Brasília, intitulado: Senhora minha madrinha, há o relato de um menino que faz sexo com uma galinha: “...segurei firme a pedrês e corri direto para casa, cumprir minha sina, em baixo do umbuzeiro. Cumpri. Ainda com as calças caídas nos pés, curtindo manso o tédio e desânimo da culpa...”


imagem de um homem trepando com uma galinha ou de uma mulher trepando com um bode (por mais excitante que isso possa ser) dinamita todos os alicerces falsos e mentirosos da civilização? Coloca em evidência um impulso «naturalmente» patológico, um delito truculento semelhante e tão desestabilizador como o da pedofilia e o da necrofilia? Os carroceiros de Brasília dificilmente usam um garanhão para puxar suas carroças. Ou são animais capados ou éguas. Éguas mansas, de olhar religioso e nádegas esqueléticas de tanta fome e de tanto chicote. São homens que não se assustam com essa temática e apesar da ignorância e da ausência de conhecimentos formais, são herdeiros de um «saber» cultural e malicioso de fazer inveja aos nossos «bocas-sujas» executivos. Fico impressionado com o uso dos verbos trepar, cavalgar e montar, quando o assunto é sexo, mesmo na fala precária deles. Conhecem lendas, anedotas e histórias de todos os tipos, das quais, evidentemente, nunca são os protagonistas principais. Fazem ironia com a história de um «boiola» que, no matagal que fica nos fundos da OMS, foi surpreendido esfregando a bunda no saco de um potrinho.59 Falam da mulher de um deles que gostava de montar apenas para excitar-se. Talvez não seja por acaso que a equitação tenha feito tanto sucesso entre o mundo feminino. De pernas abertas fazendo corpo-a-corpo com o cavalo, com as partes mais íntimas sendo friccionadas no lombo do animal, seria quase impossível à mulher não se deparar com o próprio desejo, por mais negado que este esteja, principalmente, em se tratando de adolescentes, ou de mulheres punheteiras que ainda não se atreveram a despachar o tesão do clitóris para toda a vagina. 60 Conheceram uma madame que, em sua chácara, adorava passear entre seus cavalos, mas sempre que via um deles trepando numa égua, caia em prantos. 61 Num tom quase de denúncia, de intriga e de fuxico mencionam o colega J. que quando sua égua empaca, enfia o punho no traseiro dela. Por iniciativa própria, e com um tom quase religioso na voz,

59 “Le symbolisme et la pratique du cheval sont très présents dans les rites initiatiques. Il s’agit

pour une part de traditions homosexuelles. (...) Des témoignages médiévaux sur les Germains pourraient indiquer l’existence de pratiques homosexuelles faisant intervenir non plus l’exercice, mais l’image du cheval...” Marc-André Wagner, em Éros & Hippos, idem, pp.. 77, 78, 79. 60 “Les jambes serrées sont la source d’un plaisir clitoridien léger, peut-être plus d’ailleurs pour

les jeunes filles, nous apprennent les sexologues, que pour les femmes qui ont enfanté, à la sexualité davantage vaginale... (...) La danse classique, elle, bloque le bassin et cette rigidité peut à la longue occasionner une certaine frigidité: l’équitation, elle, libère le bassin, et le roule”. Dominique Bourlet, em Éros & Hippos, idem, p.135. 61 “Uma crônica inglesa do século XIII acusa a mulher do rei Edgar de feitiçaria e de, através da

magia, metamorfosear-se em cavalo. Um padre a teria visto correndo e saltando, se exibindo em posturas «sexis» entre outros cavalos.” Citado por Armelle le Bras-Chopard, em Éros&Hippos. Maison des cultures du monde, p.75, Paris 2001.


comentam que quem sabe cuidar de bichos nunca deixa que um animal macho copule com sua mãe, ou com sua filha. 62 Um deles, procedente do nordeste do país, relata um ritual afrodisíaco de seus bisavós, que consistia em comer o pênis de um jumento.63 Entre os guardadores de rebanhos, quem ingerisse aquele salsichão cru, sem cebola e sem nada, passava a ter sorte no amor e a ter a potência de um garanhão. Enquanto riem às gargalhadas, vou observando com que obsessão os mitos, as lendas, as mentiras e as fantasias bestiais ligadas tanto ao «amor» como ao «sexo» se repetem a nível universal... Uma velhinha milionária de Manhattan, normalmente pensa e é regida pelos mesmos fetiches e fantasmas de outra que vive em condições paupérrimas às margens de um afluente qualquer no coração da selva amazônica. Se isto, por um lado, me tranqüiliza por ver que a existência tem lá suas imparcialidades, por outro me apavora por perceber a magnitude dos limites a que a espécie está submetida. “Se na hierarquia das mentiras a VIDA ocupa o primeiro posto, o AMOR a sucede imediatamente, mentira na mentira –escreve Cioran. Expressão de nossa posição híbrida, se protege por uma auréola de beatitudes e de tormentos graças ao qual encontramos em outro um substituto de nós mesmos... (...) O amor adormece o conhecimento e o conhecimento desperto mata o amor. A irrealidade não pode triunfar indefinidamente, nem sequer disfarçada sob a aparência da mais exaltante mentira. E por outro lado, quem é que teria ilusão suficiente de achar que pode encontrar no outro aquilo que buscou inutilmente em si mesmo? Uma cólica intestinal pode nos dar o que o universo inteiro não soube nos oferecer. E, entretanto, é este o fundamento desta anomalia corrente e sobrenatural: resolver entre dois – ou mais bem, suspender – todos os enigmas; a favor de uma impostura, esquecer esta ficção em que flutua a vida; com um duplo arrulho encher o vazio geral; e –paródia do êxtase -, afogar-se, finalmente no suor de um cúmplice qualquer...”64

62 Em sua História dos Animais, Aristóteles faz referência a uma jumenta que ao perceber que

havia sido possuída por seu próprio filho, se suicida, saltando num abismo. 63 Nas 307 páginas do livro onde o Pe. Antonio Vieira faz a apologia do jumento, nenhuma

menção à zoofilia. (asnofilia). Faz todos os elogios possíveis ao burro, desde seu papel crucial no nascimento do cristianismo (levou Maria e José de um lado para outro da Palestina, serviu de aquecedor na manjedoura de Belém, etc) até na economia do nordeste, mas não se atreve sequer a nomear o ato sexual entre esse animal e os “filhos-de-deus”. O máximo que se permite no campo do sexual, é mencionar o culto pagão a Príapo, que tinha como símbolo o pênis de um jumento, que ficava exposto para adoração. (O que, admitamos, talvez já seja demais para um padre do interior do Ceará.) 64 Cioran, E.M. Breviario de podredumbre. Taurus, pp.104, 105. Madrid 1977


(III) “Yo planeo en el cielo, semejante al halcón de Horus; mis gritos son tan agudos como los de un ganso selvaje. Desciendo revoloteando hacia la Region de Los Muertos y llego a ella el Dia de Gran Fiesta... Horror!.. Horror!.. No! No! Yo no como de esas repugnantes basuras!”

Cap. LXII (Libro de los muertos)

Apesar de ter dormido apenas umas poucas horas, acordei sutilmente maníaco, louco para ir à luta. O canil, o cemitério, o zôo e a Associação de Defesa dos Animais teriam prioridade. Um livro sobre quadrúpedes deve ser escrito onde os quadrúpedes estão, não é assim que ensinam os manuais modernos de antropologia e de etnologia? Talvez nenhum desses lugares tenha muito a ver com o assunto predominante deste trabalho, mas todo mundo sabe que os títulos de meus livros nunca tiveram muito a ver com o conteúdo. Se ninguém reclamou até agora, é porque devem intuir o rigor de minha indisciplina… O dia estava cheio de luzes e de excitações misteriosas. De minha varanda podia ver uma faixa cinza de neblina correndo por sobre o lago norte, no meio da qual dois ou três pelicanos davam rasantes como se quisessem umedecer as asas e lubrificar os músculos. A noite, antes de deitarme, havia deixado de lado o livro de Arlt e lido umas três ou quatro páginas de Morte a Crédito, de Céline e agora, enquanto ensaboava-me o rosto, algumas frases soltas desse cínico anti-semita iam ecoando no interior de meu cérebro. “...Marco Aurélio Atropelado! Amaldiçoado! Perseguido! Quase sucumbindo ao peso dos complôs...mais abjetos... das piores perfídias... O que foi que fez? Retirou-se. Abandonou os degraus do “Fórum” aos abutres!... Foi a solidão, ao exílio! que ele pediu consolo! Uma nova coragem!... Sim!... Ele refletia sozinho!... Sem ninguém!... Não buscava os sufrágios dos cães raivosos!...Não!... Ah! Que palinódia assustadora!... E o puro Vergniaud? O inefável? Na hora da carnificina, quando os chacais se reuniam em torno da carniça? Quando aquele cheiro acre subia... Que fazia ele, o mais puro dos puros?... O próprio cérebro da sabedoria?... Naqueles minutos de saque em que cada mentira vale uma vida?... Desmentir-se com palavras? Renegar-se? Comer aquela imundície?... Não! Galgou sozinho o seu calvário!... Só, lá em cima!... Em destaque!... Como um prelúdio do grande silêncio. Calou-se!...” No rádio, uma música quase imperceptível de Cesária Évora. Estou caindo no mundo! -cochichei no ouvido esquerdo de minha companheira que com a cabeça enfiada sob os travesseiros, parecia disposta a ficar deitada por


mais uns mil anos. -Para onde? resmungou ela. -Para o canil… -O que? A história do novo livro? -gritou indignada, colocando-se de quatro ao longo da cama e me olhando como se nunca me tivesse visto. Não seja idiota! Você não percebeu ainda que ninguém está interessado em seus escritos? Que ninguém está nem aí para essa tua obsessão livresca? Nem o mundo acadêmico, nem o mundo dos leitores ocasionais, nem o exército imenso de semi-analfabetos e muito menos os críticos de plantão? Caia na real! Quem é que vai se interessar por um livro sobre fornicação e, ainda por cima, com animais? Quem é que está interessado em mais esse tipo de perversão sexual? Homens trepando com galinhas, cadelas, cabras e até cisnes? Mulheres se entregando à bestialidade de um pastor alemão, de um macaco ou até mesmo de um asno? Faça-me o favor! Mais obsceno do que um homem trepando com uma cabra ou de um cão praticando cunnilingus numa menina, só mesmo Lot trepando com as próprias filhas! Se o mundo já não aguenta mais conviver nem mesmo com as orgias, com as imoralidades e com as putarias praticadas entre os próprios seres humanos, para que é que você vai trazer para a consciência popular a perversão e as orgias 65 do bestialismo? E depois, me diga uma coisa: teu projeto não era escrever sobre os Bebês de Pedra?66 Por que esta mudança? Desista! Vão pensar que você é mais um desses zoomaníacos que fundam ONGs por aí! Vamos gastar esse dinheiro em barris de vinho ou em hotéis cinco estrelas no Havaí! Guarde essa energia para investí-la em paixões mais humanas durante o terceiro milênio! Olhe para a figura do Garcia Marques, do Saramago, do Gunter Gras ou de outros escritores… Mas olhe bem, para ver além das máscaras, além das fotos/divulgação e além dos elogios que os editores compram dos jornalistas. São todos homens acabados! Essa relação simbiótica com o papel, com o texto e com as letras, somada à posição corporal que essa profissão exige, leva qualquer um à cegueira e à ruína. Pode-se até ganhar muito dinheiro e fama… mas de que servem essas coisas para um homem acabado? (Ao perceber que estou quase sorrindo, fala ainda mais indignada) E não

65 Assim que ela pronunciou a palavra orgias, veio-me em mente outro relato de Bilitis, fazendo

referência a uma noitada cuja alegoria principal foi a de Pasiphae: “...mandara fazer em Kition duas máscaras, de vaca e de touro, para ela e Kharmatides. Usava chifres terríveis e uma cauda peluda no posterior(...)Seus mugidos e nossos cantos e as danças de nossos quadris duraram mais do que a noite...” P.Louys, Idem, p. 147. 66 Estava se referindo a um assunto que dias antes eu havia mostrado interesse em pesquisar. São

conhecidos por «bebês de pedra» aqueles fetos que morrem no útero e que ali permanecem durante muito tempo sem que a mãe se dê conta. Sob o efeito natural dos sais de cálcio esses fetos mortos vão se transformando em puro osso. Há relatos médicos que falam de um desses bebês que foi retirado do útero de uma mulher de 61 anos.


fique aí rindo desse jeito, como se eu fosse uma selvagem castradora e você uma vítima genial, o supra sumo da intelectualidade. Porque você sabe que o intelectualismo neste país não é coisa da qual alguém possa se vangloriar. Você já está grisalho de saber que nesta pátria devassa, desde um ofício de meia página até a literatura mais cortejada só é admitida quando sai da caneta de sujeitos carecas, mornos, conciliatórios, com um curriculum vitae recheado de funções públicas, falcatruas e cumplicidades. Você sabe que de letras e de livros, neste país, só se pode viver quando se faz literatura infantil, quando se escreve misticismos ou quando já não se tem vergonha de leiloar as tripas num dos tantos cassinos de imposturas que, disfarçados sob o couro mal curtido e fétido das editoras, do marketing publicitário ou da bajulação asquerosa, sabe quando e como traficar influências... Fiquei boquiaberto. Eu que nunca levei a sério esses meus rabiscos, que nunca joguei uma página no lixo por achá-la mal escrita, incompleta ou num estilo antiquado, que nunca fiquei em dúvida sobre usar uma palavra ou outra e que nunca pensei em ganhar dinheiro com isto, fiquei atônito diante da importância quase metafísica que ela parecia estar dando ao meu trabalho. Mas como tirar-lhe a razão? Como discordar de que os textos infano-juvenis que circulam por nossas escolas parecem ter sido escritos mais para crianças maluquinhas e retardadas do que para crianças saudáveis, normais e rebeldes? Ficou em silêncio por uns instantes como se tivesse repentinamente se sentido culpada e em seguida completou: -Tudo bem! Se teu narcisismo é mais forte que tua razão, vá em frente, vá criar o teu novo bestiário, mas desta vez não conte comigo para acompanhar-te a nenhuma catacumba, a nenhuma comunidade alternativa, a nenhuma zona, a nenhum hospício, e principalmente a nenhum cemitério…Ok? Atirou-me a camiseta, saltou da cama nua e visivelmente irritada bateu atrás de sí a porta do banheiro. Talvez ela tenha razão. Pensei. Mas desta vez gostaria de escrever um livro arrebatador. Que não tenha mais de sessenta ou setenta páginas, mas que mereça um index e que desestabilize o universo, pelo menos o universo egocêntrico, miserável e vil da grande maioria... Sei que não é fácil. Que não basta apenas querer. Que não basta ter uma inteligência razoável, uma boa biblioteca e uma homérica obsessão. Os grandes textos quase sempre são construídos à custa de material inconsciente, de desejos, de traumas, de afetos perdidos e soltos no mundo interior do escritor. Material este que vai influenciando as frases, as associações de idéias, os diálogos, a ironia e a lógica do assunto que está sendo tratado. Afetos que por estarem fora do nosso alcance, nunca nos permitem saber com antecedência se nosso trabalho será algo respeitável ou outra vez um montão de asneiras inqualificáveis. Livre arbítrio? Livre arbítrio porra nenhuma! Não se é livre para nada, nem mesmo para se decidir que hora cagar! Que hora peidar! Que hora levantar o pau! «Liberdade de ação»; «força de vontade»; «responsabilidade»... Tudo


papo furado de padres e de teólogos que passaram os últimos milênios culpabilizando a humanidade. Tudo papo furado desses putos que, “por meio da idéia do mundo moral prosseguem contaminando a inocência do devir com o pecado e o castigo. –Por isso, nunca é demais repetir-: O cristianismo é uma metafísica de vergugos”.67 Sentado no banco de trás, tentando identificar obsessivamente a fronteira entre o sujeito de Néanderthal e o sujeito Sapiens, o ponto crucial da dicotomia homem/animal, observo que o taxista é um «ser híbrido», com orelhas parecidas às de um tigre e o perfil idêntico ao de um avestruz. -Como Stefan Kanfer estou convencido de que algumas pessoas nasceram para serem animais mas, por algum capricho genético, ou por azar, se converteram em seres humanos.68 O pintor Le Brum, em 1671 chamou atenção para as semelhanças físicas que freqüentemente encontrava entre homens e animais: “...il déduit de ces ressemblances un système «d’inclinations naturelles», une théorie des penchants selon les traits bestiaux des physionomies.” 69 Tamborila os dedos curtos e grossos na esfera do volante enquanto o semáforo não abre e, apesar de gabar-se de ter chegado em Brasília quase junto com um tal Sayão, nunca ouviu falar que aqui na capital federal existe um cemitério -provisório, é verdade- exclusivo para animais. Enfiou os nove reais no bolso da camisa, zerou o taxímetro e abriu-me a porta, de bom humor, mas sem cerimônia alguma a uns poucos metros da entrada para a biblioteca do Buriti, onde uma funcionária agitada e simpática, esforçava-se, desde o dia anterior, para localizar no Diário Oficial de 29 de setembro de 1998 a Lei número 2.095.70 Quando a encontrou, deu um gritinho histérico, repetiu a palavra «Yes»71 umas três vezes e fez o seguinte comentário: -Sabia que este jornal é o mais lido de todos aqui na cidade? Mais do que a Folha, mais até do que o Correio, mais do que a Tribuna, mais do que o

67 Nietzsche, ídem, p.47. 68 La marca del gitano. Editorial Ultramar, p.27, Madrid, 1979. 69 Dupé, Gilbert. La sexualité insolite. Collection Cypris, p.125. Paris 1970. 70Art 17 - O Governo do Distrito Federal destinará área de terreno para construção de cemitério

de animais de estimação, cujo funcionamento será disciplinado em regulamento próprio. (Diário Oficial do DF, 29 de setembro de 1998). 71 Cacoete verbal de uma época que se sente fascinada falando duas ou três palavras no idioma

dos imperialista.


Jornal de Brasília, mais do que o Globo, mais até do que o Magazine Litteráire... uma leitura inútil, é verdade, mas necessária. Depois, ao perceber que a lei em questão tratava, entre outras coisas, da criação de um cemitério para animais, não se conteve e sem tirar os olhos daquelas páginas mal impressas, perguntou com uma certa candura: -Mas já não existe um cemitério para animais na cidade? -Existe, respondo-lhe, mas nasceu de improviso. Agora estão querendo construir um oficial… -Pobres animais! Murmurou. –para em seguida deixando-se levar por uma certa incontinência verbal completar- Já estavam no mundo bem antes de nós! Foram traídos, subjugados, feitos nossos escravos... Apesar de todo mundo achar que são máquinas, robôts sem alma, tenho certeza que sofrem tanto ou mais que a gente... (“O sofrimento implica que o homem e o animal compartilham essa qualidade essencial.”)72 A sala estava agitada. Funcionários, chefetes e vassalos de todos os tipos apareciam de todos os lados com pilhas de fotocópias, com calhamaços de jornais, com a ponta dos contracheques aparecendo no bolso da camisa. Doutor prá cá, doutor prá lá. O Brasil é o país do mundo onde a grande maioria dos chamados «doutores» não concluiu nem o segundo grau. Como não encontrou o instrumento adequado, abriu o clipe que prendia umas folhas às outras com a ponta de uma caneta enquanto me confidenciava: -Já tive um cachorrinho, um petit uáu que morreu de uma febre desconhecida. Chamava-se Lampião. Moro em Lago Azul/GO, fiz um buraco bem fundo, enrolei-o num tapete que minha tia havia trazido do Marrocos e o enterrei num terreno baldio nos fundos de minha casa, mas o vizinho foi lá e o desenterrou. Sabe por que? Porque começou a trovejar e a chover muito. Diz ele que enterrar cachorro é um ato nefasto, que faz chover, cair raios sobre a casa de quem o enterrou e mesmo sobre a casa dos vizinhos... Como é possível, um homem de quarenta e tantos anos ser tão supersticioso? E por que um cachorro não teria o direito de ser enterrado? 73 -Foi desenterrado quantos dias depois? perguntei.

72 Ver Lestel, Dominique. L’animalité. Hatier, p.34. Paris 1996. 73 O filósofo Jeremy Bentham foi um dos primeiros pensadores a afirmar que os animais têm

direitos. “Extremista em suas posições, ele não hesita em comparar a situação dos animais à dos escravos, prevendo inclusive, que da mesma maneira que os escravos foram liberados de suas correntes os animais também o serão um dia.” Lestel, idem, p.35


-Uns cinco dias. Já estava fedendo. Nem tive coragem de abrir o tapete, joguei um pouco de areia para afugentar as moscas e ficou lá, insepulto e ao sol... Poderia ter entrado na justiça contra ele, mas odeio a xaropada e os rituais judiciários... Com tantos assuntos importantes, já pensou entrar na justiça por causa de um cachorro, de um ser que nem alma tem? Aqui, para tudo você precisa contratar um advogado, marcar audiências, pagar um puto desses para te fazer uma petição de três ou quatro linhas... E depois, os advogados de acusação, os de defesa e os juízes sempre são amigos, se encontram escondidos de seus clientes, bebem juntos e tramam o desfecho final do processo. Nenhum processo é real, tudo é armado, teatralizado, planejado... E os clientes, que não sabem nada do mundo forense e nem da burocracia judicial, acabam ficando felizes pelo simples fato de continuarem soltos, livres, "perdoados" pelos magistrados, pseudos representantes de deus na terra. Sinceramente: quanto mais velha fico, mais vou admirando os animais e mais vou me tornando convicta de que os homens pertencem a uma categoria ordinária que oscila a vida inteira de um altruísmo ridículo a uma misantropia psicótica. De um humanismo falso a um animalismo e a uma metamorfose irreal. “O homem e a besta se associaram para formar os corpos das divindades egípcias, gregas ou romanas. O Anjo e o Diabo... escreveu Jean Real.74 O mundo mitigo oriental, grego e ocidental está impregnado dessas transmutações infanto-juvenis. “Posseidom assume a aparência de um cavalo para transar com Medusa; depois a de um jumento para se unir a Déméter. Cronos se transforma em cavalo para seduzir Philyre e as divindades do vento fazem o mesmo para fecundar as éguas.” 75 Ovídio, em sua Metamorfose, relata que “Jupiter enamorado de Io, para livrá-la do ciúmes de Juno (sua mulher oficial), a transforma numa vaca e a deixa sob os cuidados de Argos.”76 Apesar de todo o preconceito contra os burocratas, achei fascinante o discurso dessa mulher que espontânea e naturalmente intrometeu-se no trajeto de minha pesquisa nesta manhã nublada do primeiro dia de setembro, a ponto de fazer-me «viajar» pelos poderes de Posseidom e pelas malandragens de Júpiter. Pensei até em chamá-la para um canto da biblioteca e relatar-lhe em voz baixa as diretrizes de meu projeto, mas intuí que ela nunca se interessaria verdadeiramente por um assunto relacionado com literatura, cemitérios e muito menos com bestialidades. Ou estaria redondamente enganado e ela, como tantas outras, já teria apertado em êxtase um cãozinho felpudo entre as coxas? Difícil adivinhar! Afinal, era apenas uma funcionária pública, e eu,

74 Jean Real, idem, p.69. 75 Marc-André Wagner. Éros &Hippos, Maison des cultures du monde, pp.71,72. Paris 2001. 76 Ovidio. A Arte de amar y las metamorfosis. Ed. Ibéria, p.93, Barcelona, 1955.


mais do que ninguém, sei o quanto o cérebro atrofia entre as altas paredes dos ministérios; o quanto os bagos murcham por detrás das mesas dos tribunais e a que grau o interesse pelo mundo é destruído no interior das saletas infames e mórbidas das secretarias. Ao voltar para meu escritório a questão de um cachorro ter alma ou não ficou me incomodando por um longo tempo, até que resolvi ligar para meu amigo D. filósofo meio esclerosado que mora num desses condomínios irregulares. Um sujeito que devora livros, que já foi acusado até de sofrer de «pigmalionismo»77 e que perdeu seu emprego exatamente por falar compulsivamente sobre os gregos. -Fulano, (falei secamente) você que além de gateiro é especialista em atenienses, pode me esclarecer em poucas palavras a questão da alma? O que era a alma para aqueles pederastas e comedores de olivas? Existia a hipótese de uma alma animal? -Ué! Entrou para a SRPPC? -Não, é só curiosidade! -Curiosidade? -Estou desenvolvendo uma pesquisa sobre bestialismo, essa prática conhecida modernamente por zoofilia. -Está querendo tentar com as éguas? Você conhece a estória da égua do dente de ouro?78 Sexo com animais! Sabe de uma coisa? Já sonhei que estava fornicando com uma vitela. As imagens eram mutantes. Ao mesmo tempo que era uma vitela de quatro patas, também era minha mulher. No final do sonho, já era um ser híbrido, quase como um minotauro feminino, corpo de gente e cabeça de vaca.79 Caralho! Como é possível chegar a tanto! Será

77 Pigmalião, como todo mundo sabe, foi o rei de Tiro que fez degolar secretamente Siqueu

para apoderar-se de seus ricos tesouros. Entretanto, no vocabulário psicológico (não sei por que) a palavra pigmalionismo se refere a uma perversão sexual que consiste em satisfazer a libido sobre estátuas ou outras obras do gênero, feitas pelo próprio paciente.  Sociedade Real Para a Prevenção da Crueldade com os animais 78 Estava se referindo a um pequeno conto do livro de Julio A. Rodrigues de Souza, intitulado

Recordações de Chico tropeiro (Publicitan Editora, RJ, 1977): “...Pedro Calango tinha extrema amizade a essa égua. Diziam até que fazia mais carinho a ela que a Maria do Córrego, sua amásia em Pilão Queimado. E tinha lá suas razões para essa predileção...” pp.28,29. 79 O tabu do bestialismo é tão rigoroso que mesmo em psicoterapia dificilmente as pessoas se

atrevem a relatar sonhos dessa natureza, apesar de serem comuns e freqüentes. Em seu trabalho sobre o assunto, Goustine, no livro já citado, menciona alguns desses sonhos confidenciados por seus pacientes. Um homem sonha que está copulando com uma galinha; uma mulher que está sendo enrabada por um touro; outra que está na cama com seu cachorro; outra que está deitada a beira mar e é possuída por uma gaivota. Um sujeito com tendências homossexuais sonha que está prestes a ser enrabado por um animal parecido a um urso, mas que pode ser um macaco ou um lobo. Um paciente sádico sonha que está conduzindo um bode para possuir uma menina, etc. etc.


que sou um marido-animal? Ou ela que é uma esposa-besta?80 Esta não é outra maneira de saquear o mundo animal! Tenho um vizinho de condomínio que já transou seriamente com uma égua, e não foi uma vez, duas vezes, uma semana. Foi durante muitos anos. Quando lhe perguntei por que não tentava com prostitutas, ficou escandalizado. Quis saber por que é que eu achava que uma puta poderia ser mais interessante que uma égua. Aos meus argumentos, retrucou: Detesto essa putaiada fedida, doente, bêbada, cheia de gonorréia... Essas mulheres trepam com pessoas que é até impossível acreditar... Eu que, como você sabe Bazzo, tenho uma visão diferente dessas mulheres, o interrompi e perguntei se não estava exagerando, ao que, mais excitado ainda, esbravejou: -Exagerando nada! Entre seus clientes há sempre leprosos, sifilíticos, loucos, tarados, cocainômanos fedorentos, prefeitos do país inteiro e até criminosos que fogem dos presídios goianos e correm imediatamente para cá... Não rejeitam nada nem ninguém! Uma delas, com um olhar sinistro e com praticamente a idade de minha égua, já estava com o corpo todo marcado por socos e navalhaços. Sua quitinete na 411 norte, tinha sinais de balas nas paredes... Uma vida infame, movida a dor e a crimes... Confesso que até já tentei, mas quando me dei conta de toda essa nojeira, voltei correndo para minha égua... Nos meses de inverno quando as tardes no planalto central ficam encantadoras, e quando centenas de flores exóticas explodem misteriosamente da terra árida e muda, gostava de comê-la lá entre as pastagens, ou sobre uma pedra ou apoiado numa dessas arvorezinhas monstruosas do cerrado. E ela nunca foi tão inocente como os inimigos dessa prática gostam de afirmar. Pobres animais! Abuso da natureza! Crime contra os irmãos irracionais! Tudo mentira e demagogia! Minha égua sabia o que estava fazendo e gostava tanto quanto eu. Depois que a penetrava e apoiavame sobre sua coluna dorsal até alcançar suas crinas, ela fazia questão de virar a cabeça e ficar me olhando com seus dois olhos imensos que, mais de uma vez, vi se encherem de lágrimas ao mesmo tempo em que seu interior se contraia de êxtase... Depois saía troteando feliz até a límpida cachoeira que despencava de uns oito metros quase sem fazer barulho... Molhava as crinas, movia bruscamente a cabeça de um lado a outro, soltava um breve relincho

80 Apesar da brincadeira de meu interlocutor, essa questão é mais séria e mais universal do que

parece. Em A psicanálise dos contos de fadas, num capítulo que trata do tema «O noivo-animal», Bruno Bettelheim dá uma informação interessante: “Nas sociedades pré-literatas, as estórias de maridos-animais e de esposas-animais têm traços totêmicos. Por exemplo, entre os Lalangues em Java, acredita-se que uma princesa tomou um cachorro como marido e do casamento nasceu um filho que é ancestral da tribo. Também num conto de fadas Iorubá, uma tartaruga casa-se com uma donzela e desta forma introduz a cópula no mundo, mostrando a relação íntima entre a idéia do noivo animal e a cópula.” Paz e Terra, p.325, São Paulo 1990.


como se estivesse me dando adeus, e sumia de vista confundindo-se com a cor mostarda do dia que desfalecia... De início, apesar da poesia de sua fala, tive até pena dele, mas depois fui esforçando-me para compreender suas razões e suas paixões. Não tem sentido escandalizar-se com uma estória destas só porque a «cultura» e a «civilização» prefere um casalzinho de homo-sapiens, mesmo quando o sujeito está assumindo um papel de besta e a mulher ocupando uma posição abominável. E depois, num país rural e brutal como o nosso, deveríamos ter condições para engolir qualquer tipo de desvio, principalmente um desses, não é verdade? Agora, você sabe o que é ter um familiar que sofre de acrotomofilia? O acrotomófilo - você sabe - é aquele sujeito que só consegue se excitar fantasiando que o parceiro ou a parceira é mutilado… Isto não parece coisa de filme de Terror? Mas deixa isso prá lá! Cada um com a sua lassidão e com a sua merda! Respondendo a tua pergunta Bazzo, segundo a teo-zoologia delirante do mundo antigo, o animal teria três almas: a sensitiva, a racional e a vegetativa. Mas essa questão animalesca é outra coisa. Sobre a alma verdadeiramente, todos os sistemas religiosos dos últimos dois mil anos, se apropriaram da definição aristotélica. Isto, para não falar até de alguns sistemas psicológicos que, durante muito tempo, foram mais aristotélicos do que o próprio Aristóteles. E para constatar isto, basta ver a metafísica teológica ou a escolástica medieval; o naturismo renascentista e o espiritualismo moderno. Mas por sorte, a Grécia antiga não era representada só por Aristóteles. Para Anaxímenes e para Diógenes -por exemplo- a alma era ar. Para os pitagóricos era harmonia. Para Heráclito era fogo. Para Demócrito era formada por átomos esféricos. Já Platão, mais astuto e vaselina, se contentava em afirmar apenas que a alma se movia por si só. Para os estóicos a alma era um sopro congênito ou um flatus (peido) de deus. De Sócrates, por mais que você estranhe, não gosto de falar. Um homem que se resigna a beber cicuta por ordem do Estado não merece ser lembrado. E aqui, se você me permite, quero lembrar Êxodo, o grande Êxodo que viveu lá pelo VI século antes de Cristo. Foi ele que, através de suas fábulas, deu ALMA e HUMANIDADE aos animais. Foi um dos personagens gregos mais queridos, muito mais até que os filósofos de carteirinha que acabo de mencionar. E sabe porque o destruíram? “Atreveu-se a criticar o Oráculo de Delfos e seus energúmenos. Acusou publicamente os sacerdotes de Apolo de cobiça e de corrupção. Eles receberam o ataque em silêncio, mas quando Êxodo ousou ir ao templo de Delfos, esconderam um cálice de ouro em suas bagagens. Investigaram-no à saída e o acusaram de haver roubado um vaso sagrado do templo...”81 Me diga Bazzo: como é que nossa espécie conseguiu sobreviver

81 Citado por Pe.Vieira, idem, p.41.


tanto tempo submersa nesse mar de aleivosia? 82 Para mim, concluindo o papo anterior, e se é que minha opinião te interessa, a alma é uma meia libra de pressão introjetada nas veias para pressionar o sangue. Uma falha qualquer nesse mecanismo e pronto: tanto o sujeito como suas definições supersticiosas pifam, somem, desaparecem do mapa mundi. Vão para o nada, onde não há nem velhinhos barbudos e iluminados, nem ranger de dentes. Você sabe o que é o NADA? É a ausência de tudo! Lugar onde não há porra nenhuma. E é por isso que como você sabe, sempre caguei sobre Aristóteles, esse tataravó do cristianismo; assim como sobre Leibniz com sua mônada esclerótica e Descartes com sua consciência. E foi pela mesma razão que nunca poupei Kant e nem Hegel, esses avós dementes do espírito subjetivo! (subjetivo ou objetivo?).83 Quando algum professor travestido pela modernidade mas ancorado no sectarismo dos anos trinta me obrigava a dissertar sobre esses homens, fazia questão de jogar-lhes na cara algum parágrafo ou alguma página de Aluísio de Azevedo. Sim, O Cortiço, para mim, foi mil vezes mais importante que A crítica da razão prática e que

82 Eu que recém havia chegado de uma viagem pelos locais históricos da Grécia, inclusive pelas

ruínas e pedras do Templo de Delfos, lembrei das palavras da guía que, em sua fala decorada, fazia questão de acusar os romanos de haver rapinado todas as riquezas que ali estavam depositadas em homenagem aos deuses. Segundo uma das tantas lendas gregas, numa das noites que a senhora Atia passou no templo de Apolo para pagar uma promessa, entre um cochilo e outro percebeu que estava sendo possuída por uma imensa serpente. A barriga cresceu e ela deu ao mundo um menino chamado Augusto. 83 Depois de alguns dias, recebi dele este texto em forma de bilhete: [e para aqueles que

continuam pensando que o nepotismo e a submissão dos intelectuais ao poder é uma prática apenas de países miseráveis e de intelectuais-menores, esta revelação, sobre a miséria pessoal de Hegel pode ser transcendente. Leia: Em junho de 1822 Hegel (o famoso e mistificado Hegel) escrevia ao Ministro A. Altenstein, (o mesmo que lhe havia facilitado o ingresso como professor na Universidade de Berlin) pedindo-lhe favores pessoais, que envolviam sua mulher e seus dois filhos. Hegel estava preocupado com a possibilidade de perder o emprego e, conseqüentemente, o seguro que vinha pagando regularmente na Universidade. "si je ne mourais pas professeur de l'Université royale - escrevia ele -, mes versements à la caisse de veuves de l'Université seraient entièrement perdus; la seconde, c'est que, du fait de mon assurance à la caisse générale des veuves, ma future veuve et mes enfants ne pourraient compter sur un secours gracieux de sa Majesté royale" Atendido pelo Ministro em sua iniciativa nepotista, Hegel lhe envia outra carta, esta em agradecimento, datada em julho de 1822, onde coloca seu trabalho à disposição do Estado e do governo Real, com a seguinte conclusão: "... votre excellence m'a parfaitement tranquillisé à cet égard par ses bienveillantes promesses, et après que des preuves multiples et non équivoques m'ont procuré la conviction réconfortant que d'éventuelles inquiétudes des autorités supérieures de l'État à l'égard de la philosophie - inquiétudes qui peuvent être facilement occasionnées par des tendances fausses au sein de celles-ci - non seulement sont restées étrangères à mon activité publique en tant que professeur, mais qu'encore j'ai travaillé pour ma part, non sans approbation et non sans succès, à aider la jeunesse qui etude ici à conceloir des pensées justes, et à me rendre digne da la confiance de votre Excellence et du gouvernement royal]. Citado por Derrida, Jacques, Du droit à la philosophie, Galilée, pp. 197, e 200. Paris, 1990.


todos os volumes das Leçons sur l’histoire de la philosophie. Para mim, que havia sido abortado de uma pequena cidade e empurrado para a alta rotatividade das pensões, das espeluncas e dos albergues, o Cortiço era uma leitura quase terapêutica, uma espécie de espelho através do qual eu ia fazendo contato comigo mesmo, com minha história e principalmente com as origens de minha miséria. Ia aprendendo a compreender aquilo que comumente não se compreende e a interessar-me cada vez mais pelas lições ocultas atrás dos grandes títulos, por debaixo das frases eloqüentes, por entre as linhas dos textos mistificados por uns e denegridos por outro. Começou a fazer um contato mais real com meus desejos e a dar-lhes um significado novo, diferente e mais potente. Fui descobrindo lenta e solidamente que da vida em si, com raríssimas exceções, se podia esperar as mais vãs, fúteis e ignominiosas surpresas e aprendendo que –descontando as calúnias do Aluísio contra os animais- neste país administrado por fidalgos degenerados, monarcas usureiros e por párocos astuciosos “em cada folha que se pisa há debaixo um réptil venenoso, como em cada flor que desabotoa e em cada moscardo que adeja há um vírus de lascívia...”84

84 Azevedo, Aluísio. O cortiço. Ed. Nova Cultural Ltda, p.176. SP 1987.


(IV) “Como reír después de toda la miseria con la que nos han envenenado esos espíritus seráficos, sérios, tristes, sufrientes, solemnes, de caras pálidas y mandíbulas salientes? Entiendo la traición que los inspiró y les perdono su genio. Pero es difícil liberarse de todo el dolor que han creado...”

Henry Miller No pavilhão de controle de zoonoses do canil, o homem que está ao telefone, neste sábado, é um sujeito seco, duro, desconfiado e de poucas palavras que usa um chapéu de safári enterrado até a metade das orelhas. Olha-me de cima abaixo quando lhe dizem que estou fazendo um livro sobre os animais, como quem está sempre prevenido com a imprensa e com os ecologistas. As ligações de moradores não param. Muita gente querendo informações sobre a «raiva», sobre a captura e enterro de animais, etc. A mão direita brincando com uma caneta e com sua doutorice, como se fosse um assistente ou um psicólogo social, tenta, antes de tudo, acalmar os clientes. À pessoa que estava buscando ajuda para recapturar um cão que havia saltado a cerca e se refugiado num quintal vizinho, perguntou com autoridade: -Tem alguma cadela por perto? Soltaram bombas por aí? Está bem alimentado? Vão com calma. Joguem água nele com uma mangueira e não esqueçam que quando agredido um «cachorrinho» vira um «animal!». Nesse dia circulei brevemente pelo cemitério, onde dei de cara com a tumba de um cão chamado Alef. Alef com «f» e não com «ph», como no dicionário hebraico ou como na obra do escritor argentino cego. Tumba que, misteriosamente, em minhas outras visitas nunca mais localizei. Um homem de uns cinqüenta anos falava alto com o coveiro surdo, ao mesmo tempo em que lavava a lápide de sua cadelinha Jennifer, a quem chamava de filha. Jennifer passou vinte dias internada num hospital e acabou morrendo de uma infecção uterina. Sua uréia chegou a 340. A data de nascimento dela (dia e mês) é a mesma da minha, diz ele meio emocionado. Construiu para ela um cercado de 16 metros quadrados, pintado de rosa e exibe sobre o cimento uma foto à cores da morta. Se não me engano, foi lá por 1860 que se desenvolveu o costume ocidental de enterrar os animais de estimação em jardins ou nos fundos das casas. Apesar de estar usando o verbo «enterrar», à época, quando se tratava de um animal, só era permitido usar a palavra «escavar». Enterrar era um verbo que estava reservado para os cristãos batizados. Com tantos séculos de imposturas e de imbecilidades religiosas, parece cada vez mais evidente que


a vida finda ali onde inicia o Reino de Deus! Mas voltando aos animais domésticos, nos textos contidos na História da vida privada, vol.4, p.p.482,484, vemos que foi Luís XVI e sua Corte quem começou a desmantelar os preconceitos e as paranóias cristãs a respeito deles. "É necessário deixar muito bem clara a fronteira que existe entre os homens e entre os animais, mas muito mais clara ainda a que existe entre os homens e Deus!" O animal-máquina de Descartes também começa a ser visto com menos credibilidade e começa-se a compreender o «mal entendido» e a babaquice carola que há por detrás dos ditos «animais impuros». O homem não deixa de ser um canalha predador, mas possibilita a abertura do espaço para uma relação de solidariedade e até de afeto com alguns animais. "Foi se o tempo em que Malebranche dava pontapés no ventre da gata grávida, surdo aos gritos que atribuía aos espíritos animais.85 A afeição que Rousseau dedicou ao seu cão fizera escola nos salões; deixara-se de considerar o animal como um boneco vivo para ver nele um indivíduo digno de sentimentos.(…) Atribui-se desta maneira uma nova função ao animal no espaço doméstico: mediar a propedêutica do sentimento.”86 Principalmente os cachorros e os gatos domésticos começam a ter o Contrato Animal respeitado. Com os avanços no campo das infecções, (Pasteur, a penicilina, etc) os animais passam a ser tocados com menos medo e sem luvas, ganham espaços próprios nos trens e um pouco mais tarde até cemitérios. Os maus tratos, tão comuns, passam, por primeira vez a ser considerados crimes. Com a autorização formal do veterinário voltei alguns dias depois. Entrei silencioso como um necromante e ébrio de curiosidade naquele espaço público e privado ao mesmo tempo. A solidão era indizível e quase absoluta naquela hora crepuscular. Além dos pequenos monumentos, das fotos dos falecidos e do matagal que invade o território dos esquifes, ouvia latidos e via ao longe, de um lado a Granja do Torto e do outro a cidade, com seus vivos, com seus semi-vivos e com seus mortos vivos. Um cemitério para animais! Até pouco tempo atrás, uma idéia destas não passaria de um exotismo, de um contra senso e de uma heresia. Minhas botas se enterravam parcialmente na terra fúnebre e meu passo vacilava, como tomado por uma súbita superstição que detonava em mim uma fobia qualquer que nem tinha consciência, algo como um presságio primitivo, como uma culpa. Admito que quando criança, ao mesmo tempo em que me horrorizava com a carnificina e a matança de animais que a italianada promovia, tinha um prazer sádico em, eu próprio, assassinar outros tipos de animais menores. Andorinhas, lebres, macacos,

85 Anest, obra citada p. 39, relata que na ilha de Creta os meninos gostam de transar com gatas,

principalmente por sua elasticidade. Para não correrem o risco de serem mordidos ou arranhados, dão um jeito de colocar o animal dentro de uma bola de couro, de tal maneira que fique só seu traseiro e o rabo para fora. 86 Companhia das Letras, São Paulo 1994.


ratos, gaviões, borboletas, serpentes, aranhas. Perversão que provavelmente provinha do catolicismo. Herança sórdida, quase como uma leucemia, da qual as crianças não conseguem fugir. 87 Animais são animais, e Homens são Homens! O que é do homem o bicho não come!, vomitava o padre para seu «rebanho». E perante deus, -não havia dúvida- a diferença entre uns e outros era infinita, tanto que na lenda bíblica das dez pragas, quase todas envolvem animais, como vilões ou como vítimas. 88 Sinto que algo parecido ao sadismo daquele tempo emerge agora dentro de mim, não relacionado aos animais aqui enterrados ou às suas ossadas, mas aos signos católicos -cruzes, imagens, pensamentos, velas, escapulários, estatuetas de São Francisco de Assisespalhadas por sobre os ataúdes profanos de cadelas atropeladas e de gatos envenenados. Não posso negar que tudo isto me causa uma certa satisfação. Um cemitério para animais, para «bestas desalmadas» e repleto de ícones religiosos! Será que isto significa, finalmente, a falência definitiva e a capitulação das leis papais, da neurastenia dos bispos e da fobia dos padres ao Reino Animal? E digo isto porque até bem pouco tempo atrás podíamos ler no Dicionário Católico que os animais não possuíam direitos, que os brutos foram feitos para servir os homens e que estes têm sobre eles os mesmos direitos que tem em relação às plantas e às pedras. “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus e sobre todo o animal que se move sobre a terra...” Gênesis, 1,28. Isto, sem lembrar as peripécias criminosas da inquisição quando as pessoas que tinham amizade por animais ou que eram suspeitas de terem com eles algum tipo de intimidade sexual eram torturadas, saqueadas e queimadas vivas.89 Ignomínia! Nos períodos mais obscuros da história européia, ninguém duvidava da existência das bruxas e tampouco do poder zoomórfico delas, isto é, de transformarem-se em animais. Cachorros, gatos, sapos, ratos

87 Sabe-se que o filho de Ivã (O terrível) tinha ereções e até ejaculações enquanto assistia ao

sacrifício de bodes, galinhas, gansos ou outros animais domésticos. 88 Já na primeira praga Deus, com seus invejáveis poderes, mata os peixes de todos os rios do

Egito. Em seguida, como o faraó não se rende, Deus o castiga com uma invasão de rãs. Mais tarde manda sobre o Egito uma epidemia de piolhos e depois uma de moscas. Mas como o faraó que é «muito macho» resiste, Deus, meio frustrado, lança sobre os rebanhos egípcios uma peste que destrói cavalos, jumentos, bois, ovelhas e camelos e mais tarde, antes da praga das trevas, um exército faminto de gafanhotos… Bah! Por um lado, haja maldade, inveja e pequenez para agir com tanto rancor e por outro, haja ingenuidade para acreditar numa historieta debilóide dessas! 89 A igreja católica via esse tipo de transação sexual com tanto horror que suas leis determinavam

categoricamente que o pecador fosse queimado vivo e que não se deixasse permanecer dele nenhuma memória.


e corujas eram os animais preferidos daquelas pobres mulheres, caricaturadas como velhas solteironas, corcundas de nariz imenso e histéricas que alimentaram durante anos as fogueiras do fanatismo religioso. Enganados pelo clero, o populacho acreditava que esses e outros animais eram gerados através da relação sexual entre a bruxa e o diabo, e que das misturas de fluidos animais e fluidos humanos nasciam seres monstruosos. 90 Basta folhear por alto as brochuras daquela época para perceber que o século XVI já começou com uma verdadeira epidemia de crenças, paranóias e superstições ligadas aos animais e ao sobrenatural. No centro de tudo sempre o quê? Sempre quem? O Diabo. O Demônio! Satanás! Exu! Que nunca foi mais do que o descaramento e a culpabilidade dos líderes religiosos projetada. Se a esquizofrenia é o curinga da psiquiatria moderna o diabo é o curinga da igreja. Precisam dele para respirar! Para acordar todas as manhãs e comer salame com pão integral! Não viveriam sem ele. E o marketing desse mito foi tão bem feito que, sinceramente, na sua ausência, até para nós a vida seria um tédio. Satã SuperStar! Satã sempre presente, e sempre mixado a alguma espécie de animal «inferior», sempre vadiando pelo mundo, disfarçado num potro fogoso e pronto para detonar e para atormentar a obra máxima de Deus: o HOMEM! A humanidade! A fé! E foi sob esse clima demente e persecutório que as histórias de licantropia se disseminaram por todos os cantos e ocuparam um lugar importante não apenas no imaginário desprezível do populacho, mas inclusive na literatura e na arte culta como a de Bosch, Brughel, etc. O diabo -diziam- se transforma mais freqüentemente em lobo porque o lobo, isolado ou em matilha, era para eles um animal feroz, dedicado a carnificinas, protótipo do animal devorador. Para os demonólogos do século XVI, a metamorfose em lobo ocorria de maneira involuntária através do incubo, da possessão e do bestialismo. 91 Segundo São Tomas de Aquino, o demônio recebia a «semente» humana através do súcubo e a transmitia através do incubo, gerando assim crianças vorazes, cruéis e futuras feiticeiras.92 Tudo mentira! E foi precisamente de histórias como estas que

90 Entre as lendas que correm pelo mundo sobre este assunto, fala-se de uma criança nascida em

1100, em Liege, na Bélgica, que teria a metade do corpo de homem e a outra de um porco. De uma outra criança, nascida em 1493 na qual a parte inferior era de um cachorro. No ano de 1500, um pastor de ovelhas havia engravidado uma cabra cujo feto tinha a cabeça humana. Uma menina sueca foi possuída por um urso e dessa relação nasce um filho peludo. Em 1683 foi condenada a morte uma mulher que teve sexo com um felino e que teve um filho com cabeça de gato. Ver p. 130 do livro de Dupé, já citado. 91 E para que se veja como os medos e os mitos são eternos e universais, Levi-Strauss, falando de

sua experiência entre os Nambikwaras faz este pequeno relato que, de uma certa maneira tem a ver com a zoofilia: “Depois da morte, as almas dos homens encarnam-se nos jaguares; mas as das mulheres e das crianças são levadas para a atmosfera onde se dissipam para todo o sempre”. Tristes trópicos, p.356. 92 Ver a revista Historia Hors série, nº35, p.100. Paris 1974.


com o tempo foi se estruturando, propagando, justificando e racionalizando a maldade e a crueldade contra todos os tipos de animais. E essa rejeição chegou a tanto, que quando no século XIX, começaram a surgir entidades protetoras de animais em vários lugares do mundo, o papa Pio IX teve a ousadia de recusar-se a autorizar que uma delas funcionasse em Roma. 93 Talvez, por um lado, para tentar esquecer que a palavra JUMENTO aparecer 130 vezes na bíblia e por outro, que na Idade Média chegou-se até a rezar missa para o jumento, com corpo presente e tudo. E vou citar aqui o Pe. Antonio Vieira, para que os leitores beatos não me acusem de estar inventando: “Em determinado dia do ano, variando conforme o lugar, escolhia-se um jumento, que o povo levava processionalmente à igreja, pelas ruas atapetadas de flores e ramos. O clero, em vestes litúrgicas, cantando, vinha recebê-lo à porta do templo. Entravam todos com o animal na igreja e o colocavam diante do altar, ao lado do Evangelho, Celebrava-se então a Missa do Jumento, com Intróito, Kyrie e Gloria, que terminavam com um coro, imitando o relincho do jumento. Ao fim da missa, em lugar do “Ite Missa est”, o sacerdote, voltado para o povo, cantava três vezes: Hin!Han! que o povo respondia da mesma forma.”94 Loucura? Idiotice! Paganismo de quinta qualidade! Isto e muito mais. Teratologia! Uma confraria, um estado, uma constituição e um mundo de monstros! De espíritos atormentados pelo simples nascimento. Uma fila de espera para o nada, um caldeirão de ódio, uma estufa de dementes, onde o bestialismo é apenas uma gota d’água num mar morto! Uma metáfora da pobreza dessa manada em desespero que finge 24 horas por dia! Uma mãe grávida tropeçando nos escombros de sua própria placenta sem conseguir esquivar-se dos socos do mundo... 6 bilhões de bundões unidos por uma corrente de inveja, de rancor e de porra! As unhas cravadas em si mesmo, um cálice de vinho apenas para saciar as cáries e os tumores que crescem ao longo de um corpo erigido numa triste e obscura adega de paus d’água. A cabeça de um porco sangrante numa baixela de prata, uma azeitona no lugar das córneas, uma rodela de salmão no ôco do cérebro. Fetichismo de salsichas! Um casal que vomita com a mesma coreografia. O homem que morre de tanto asco mas que antes ordena que o incinerem entre pneus e as sobras de seus livros. Nas chamas enegrecidas o coice que arrancará os miolos do demiurgo de plantão assim como dos outros suínos do paraíso! Enfileirados os falcões se lançam contra o rochedo seco, fervente, contaminado mais pelo césio de Goiás do que pelas irradiações de Chernobyl.

93Ver o livro de Desmond Morris, intitulado O Contrato Animal. Ed. Record, RJ 1990 94 Idem, p.274


A fumaça de um cigarro que sobe dançando por entre as varandas pode ser a família real nepalesa disfarçada, esfumaçada depois de ter passado pelas balas pontiagudas e mais velozes que a luz. Shiva de cócoras sobre toda aquela nojeira sanguinolenta! Maconha, fumo de rolo, folhas de veneno! Repito: Teratologia! Um mundo de monstros! Se destruo o objeto de meu amor é para que ele não floresça em outro jardim, num éden que não me pertence e ao qual não posso entrar com minhas próprias pernas... Mau caratismo é pouco! Aleivosia! Um estômago cheio de ácido sulfúrico! As bestas rosnam no interior da floresta negra que uma velha asquerosa, de mil anos, mastiga na confeitaria da esquina. Os flocos amassados entre uma gengiva e outra... o «bolo alimentar» descendo lentamente pelo túnel que vai dar exatamente lá nos porões do inferno intestinal... Saravá!


(V) “... Preparo dentro de mim um lugar delicioso e feroz de onde ficarei olhando, sem receio, o furor dos homens.”

Jean Genet Uma coruja grasnou desafiadoramente lá pelos lados do Lago Norte. Percebo que estou acordando cada vez mais cedo e que com mais freqüência me surpreendo pensando em coisas à-toa. Alguém deixou um recado em minha secretária eletrônica, informando que o prefeito de uma pequena cidade mineira resolveu dar uma cabra a cada família que mantenha seu filho na escola. Num tom de deboche concluiu: leite e sexo! Este recado até que foi simpático, comparado a alguns que me tiram do sério. Para garantir meu bom humor cotidiano, costumo praticar logo que salto da cama, junto a um pedaço de gorgonzola, a recomendação de Emil Zola: quem não deseja ver nada mais asqueroso durante o dia, deve começar ingerindo um sapo no café da manhã. Na visita seguinte, cheguei ao canil antes dos coveiros e dos outros funcionários. No portão principal cadeados e correntes. O latido rouco de um cão saúda (ou amaldiçoa) o romper da aurora. Pelo estado de suas cordas vocais deve ter latido a noite inteira. Outros latidos. Uns agudos, outros graves, outros infantis. Uns abafados por uma traquéia doente, outros sem ritmo, outros como verdadeiros uivos. Depois, sem razão aparente, um silêncio de deserto. Num dos cepos da cerca um gavião olhando a esmo e com um inseto entre as unhas. De nublada a manhã passou para chuvosa. Os dois coveiros que chegaram apressados fumavam lá junto às tumbas, enquanto iam replantando violetas e conjecturando sobre as «chuvas fora de época». Nuvens esquisitas vão cautelosamente de um lado a outro da circunferência cinza, engendrando imagens de pilastras rústicas e disformes, parecidas a brinquedos, que descambam em direção ao QG do exército. Um arco-íris de apenas três cores aparece e desaparece como uma miragem. Estaria indicando um novo dilúvio? Retiro a capa preta que trago na bolsa e com ela jogada sobre os ombros enfio-me sob uma árvore de folhas largas que cresceu por acaso ao lado de uma das covas mais antigas, onde o budista havia rabiscado com giz: "Mesmo que seus inimigos lhes cortem as cabeças, suas mentes devem permanecer inabaláveis." Um imenso louva-a-deus disfarçado entre os ramos me ameaça com suas duas patas raptoriais. Afasto-me um pouco e observo-o nervoso, de joelhos, em sua posição de adoração. Deve vir daí o nome que os «insetólogos» lhe deram... No túmulo cravado junto à cerca, uma camélia de uns sete anos plantada num urinol esmaltado... E o arco-íris continua lá, uma ponta saindo dos telhados do motel do Posto Colorado e a outra mergulhando nos fundos do aeroporto, entre os reservatórios de


querozene vistoriados por um funcionário da Infraero e entre o rabo e as turbinas trovejantes dos aviões colombianos, franceses, nacionais e turcos que fazem manobras nesse momento... Na literatura babilônica -recordo- o arcoíris é interpretado como sinal de ira, de pavor e de mau agouro, enfim, como uma artimanha de Tiranna, a deusa portadora de desgraças... Já, segundo as crenças judaicas, significa paz, sinal de aliança entre deus e o homem, blá, blá, blá... Me enfureci de repente, quando percebi que estava novamente fazendo esse malabarismo «eruditóide». Caralho! Será que quem escreve, por mais consciente que seja, está sempre sujeito a entrar nessa neurose babaca de «eruditizar» as paixões, os sentimentos e mesmo as besteiras triviais do cotidiano? Porra, se não estou reescrevendo o Livro dos mortos e se não tenho nada a ver com os babilônicos nem com os zoroastristas, por quê trazer essas lembranças esotéricas e místicas neste momento? Claro que só podem ser estratégias e canalhadas sutis para seduzir os mitômanos da cidade, esses grupelhos de acadêmicos e de executivos travados que adoram eleger um forasteiro e um «porralouca» qualquer para colocá-lo depois e em segredo, na cúspide de suas obsessões. Já trouxeram o Mandela para dar conferências, o Chomsky, o Morin, o Touraine, o ex-ditador da Nicarágua, o Kissinger, o Dalai-Lama, vários pastores norte-americanos, empresários, uma vintena de feministas européias, (um bordel inteiro de especialistas em «gênero»), os líderes do Timor Leste, um charlatão de Bombaim, etc, etc... mas ao mesmo tempo dão asilo ao Strossner e nunca se atreveram a dar voz à mulher louca, formada em letras que fica ali no semáforo da 402 norte rindo aos motoristas e muito menos ao Rei Shalud, pseudônimo de Erinaldo de Souza, vindo do Rio Grande do Norte, poliglota, estudante de medicina e autor de A Viúva e o Fidalgo. Morou alguns meses nos matagais da UnB, confinado a uma barraca preta de uns dois metros quadrados e à uma psicose devastadora, de onde raramente saía para recolher restos de comida no lixão da SAB ou para estacionar faminto na entrada do bandejão. Detestava o corpo docente (o corpo bundão) que perverteu a função acadêmica, traiu os alunos e a universidade, para galgar postos e chefias burocráticas que lhe garantirá a rapina dos cofres, consultorias fantasmas e a mediocrização do saber. Apesar de sua «loucura», sabia mais do que qualquer outro que quando os professores se pervertem, quando viram prostitutas enlouquecidas pelos salários e pelas vantagens indiretas que o silêncio e a servilidade garantem, não sobra quase mais nada. A sociedade vai ficando burra, esquizóide, incapacitada de pensar, de reinventar as questões mais insignificantes do diaa-dia e mesmo de limpar-se o traseiro. Num de seus cadernos, leio com dificuldade numa letra cheia de curvas e de obstáculos uma citação que não sei se é de Nietzsche ou do professor Milton Santos: “De vez em quando me aproximo das universidades: que atmosfera respiram esses sábios, que espiritualidade vazia, satisfeita, entibiada! (...) Há dezoito anos não me canso de proclamar a influência deprimente de nosso cientificismo atual sobre o espírito. (...) São necessários educadores educados, espíritos nobres e superiores que saibam afirmar-se a cada momento por meio da palavra e por meio do silêncio, seres de uma cultura madura e dulcificada, não esses sábios


brutamontes que o Instituto e a Universidade oferecem hoje como enfermeiros superiores...” Os poucos que o conheceram e que com ele trocaram algumas palavras, ainda se lembram de sua erudição, de seu estupor, de seu olhar que parecia estar sempre além das coisas que olhava e de sua marcha, às vezes desesperada pelas ruas desta cidade de concursados públicos. Ia devagar por sob as árvores -relata o Lunde95 - levando seus manuscritos dentro de uma pasta antiga, como se fossem relíquias, papiros com fórmulas sagradas e no bolso da camiseta já sem cor, a tradução de dois poemas de Sylvia Plath: Febre-40 graus e Carta de amor. Tinha com Sylvia Plath uma identificação quase mórbida. Identificação que só mais tarde, no dia 25 de maio de 1998, quando lançou-se pela janela do quinto andar da casa paterna, foi ficar realmente evidente. Um trovão treme as ervas sob meus pés e logo em seguida uma tormenta se abate sobre a cidade e sobre este cemitério. Um funcionário chega apressado sob a chuva para cobrir com uma lona marrom uma cova recém feita. Tem alguma coisa de granfino e fala sozinho quase aos gritos sem notar minha presença. Um raio, a voz do coveiro e o louva deus que ainda continua de joelhos! Sinto como se meus pensamentos estivessem meio extraviados! Não posso negar que este é um de meus momentos mais transcendentes! O isolamento mais duro e a solidão mais completa ao alcance da minha mão… No fundo de meu cérebro a voz do budista recitando Yeats, em castelhano: "Al corazón le dimos fantasías y ese alimento lo volvió brutal!" Uma cortina cinza desceu sobre os prédios da asa norte. O arco-íris volatizou-se, deixando para trás apenas o reflexo de duas ou três colorações secundárias. O toc toc de uma goteira às minhas costas mixada aos latidos melancólicos que saem das paredes do canil, como se fossem maldições e ameaças. Talvez a guerra seja realmente -como insinuava J. Renard- “a revanche das bestas que nós já matamos…” Ou, por que não das bestas violadas, estupadras e degoladas nas orgias secretas que SADE, em seus 120 dias de Sodoma sabe descrever tão realisticamente: “...Fode um peru cuja cabeça está entre as coxas de uma mulher. Na hora da descarga, a mulher corta a cabeça do peru; Fode uma cabra por trás. enquanto o chicoteiam. Faz um filho na cabra, e o fode também, embora este seja um monstro; Fode bodes; Quer ver uma mulher sendo masturbada por um cão e depois mata o

95Aqui em Brasília, a pessoa que esteve mais próxima do Erinaldo, (Rei Shalud) foi o jornalista e

professor do CEUB Lunde Braghini Junior. Interessado com aquilo que ocorre nos «subterrâneos» da cidade, Braghini preservou cuidadosamente, daquele personagem maluco, os textos originais que teve acesso, inclusive uma cópia da peça para teatro de marionetes escrita por Shalud e intitulada A viúva e o Fidalgo. Texto inspirado na obra de Kleist.


cão sobre o ventre da mulher; Enraba um cisne e o estrangula enquanto descarrega; Fode uma égua; Fecha uma mulher num cesto que é fodida por um touro; Tem uma cobra ensinada que se enfia no seu ânus e o sodomiza, enquanto que ele fode um gato; Fode uma jumenta, fazendo-se enrabar por um jumento; Fode as narinas de uma cabra, que lhe lambe os culhões enquanto isto; Enraba um carneiro, enquanto um cão lhe lambe o cu; Obriga uma puta a masturbar um asno na sua frente; Fode o cu de um cisne. O animal está encerrado num cesto, e atormentam-no enquanto isto para que seu cu se contraia etc.”96 Que o sadismo é impressionante ninguém discute, mas será que a guerra é realmente uma revanche dos animais que já exploramos e que já matamos? Será que os «espíritus» deles também ficariam girando por aí, até voltarem para um ajuste de contas? Apesar de não creer neste tipo de bobagens, sei que algumas tribus totemistas acreditam piamente que cada um de seus indivíduos tem a mesma origem de seus animais totêmicos. “Quando um desses animais aparecia para alguém –escrevia Freud- essa aparição era interpretada por eles como um sinal de morte, como se o animal estivesse vindo buscar um de seus parentes.”97 Besteiras! Crendices e animismo persecutório desses pobres selvículas que, vivendo como os próprios animais, já começavam a sentir os malefícios da ambigüidade humana.

96 Coordenada-Editora de Brasília, pp.346,347. Brasília 1969.Brasília, 97 Freud, S. Idem, Vol.II p.1813.


(VI) “...na desinvoltura da puta, no anonimato racionalizado do arranjo prostitutivo, é a si mesmo que o homem amaldiçoa, é a unicidade e a pequenez de seu próprio erotismo que ele execra.”

Bruckner/Finkielkraut Ali ficam os cães recém capturados e na frente os disponíveis para doação. Estes aqui ainda estão sendo observados e os do box ao lado parecem estar entrando numa fase terminal. Se não se alimentarem até amanhã serão sacrificados -ia me explicando o funcionário no interior do canil. Doentes terminais! Cães em estado terminal? Nos acostumamos a ouvir essa frase apenas relacionada a seres humanos. Todo mundo já viu um sujeito estirado sobre lençóis amarelados, com tubos que lhe entram pelas narinas, agulhas enfiadas nas veias miúdas das mãos e com o tal soro fisiológico pingando, apenas para dar tempo ao tempo, para dar chances aos parentes de providenciar a funerária, comprar a graspa e os outros trâmites. Por mais que todo mundo saiba que esses procedimentos médico-hospitalares são sempre a senha final, ninguém se atreve a dar tudo por acabado. Sempre há uma chispa ou uma simulação de esperança, não necessariamente de que o sujeito sobreviva, mas de que algo metafísico aconteça para minimizar o horror que a morte provoca… Por mais que se intelectualize é uma sensação estranha ouvir falar de doentes terminais, de sacrifício e até mesmo de eutanásia no mundo animal. Em minha infância os cachorros e gatos envelheciam, adoeciam e morriam solitários nos fundos de uma lanchonete, imprensados sob um assoalho ou atropelados por um caminhão. Lembro que os motoristas ficavam furiosos porque esses acidentes esmerdeavam os pneus com as entranhas dos bichos… Se naquele tempo só conseguia achar graça, hoje, lembrando, me encho de fúria e compreendo porque até o positivista August Comte, justificou a necessidade de uma noção de morte eterna para os «seres irremediavelmente malvados»98. Um latido, um ganido, um uivo melancólico pela metade. O funcionário me olha como quem diz: esse já era! Entramos no barracão. Tenho a sensação de entrar numa prisão ou mais bem numa FEBEM. Os cães me parecem presos, crianças que por uma circunstância qualquer foram

98 Assunto mencionado por Georges Minois em seu livro Histoire de L’enfer. PUF, p,123, Paris

1994


traídas, lançadas no olho da rua, desqualificadas por seus familiares, pelos homo-sapiens e pela civilização inteira. Ao ver-nos, os recém capturados mostram os dentes, os mais inconseqüentes ainda abanam o rabo e levantam as orelhas, mas na grande maioria o olhar é de depressão e de horror. Uns com o rabo amputado, outros com as orelhas mutiladas, olham fixamente dentro de meus olhos como se me implorassem algo ou como se me acusassem de alguma coisa. Sim, eram olhares de ódio misturados à submissão. Talvez porque eu tanto poderia ser aquele que irá executá-los como algum solitário deprimido que veio para oferecer-lhes um «novo lar». É impressionante a semelhança com a visita a um presídio! De todas as raças, idades, cores e tamanhos, capturados em lugares completamente diferentes, até que se toleram de maneira admirável ali no espaço limitado do box. Uns dormem, outros se movem compulsivamente, outros latem sem parar, outros tentam abrir brechas no alambrado… Caminho entre as celas coletivas com o sentimento de um carcereiro e de um monstro. Um medo absurdo de repente me seca a garganta. Rosnares, latidos, gritos agudos de um cãozinho minúsculo que está apavorado. Há cheiro de morte e de brutalidade no ar! O container colocado na porta dos fundos está repleto de despojos e de cães que foram executados nesta manhã. Todos com o crânio aberto para a retirada do cérebro. É importante saber a origem das doenças! –Alertou-me o moço responsável-. Descobri como é estranha a sensação de ser olhado por uns vinte, trinta ou cinqüenta cães ao mesmo tempo. 99 Parece que querem adivinhar em minhas expressões os seus destinos. O maxilar inferior tremulo. Um cão magricela, com manchas marrons nas costelas tenta enrabar uma cadelinha preta com o olhar visivelmente melancólico. Seu pau vermelho vertendo um líquido incolor é desproporcional ao seu tamanho. Esse, pelo menos, não parece lá muito preocupado com a câmara de gás instalada a uns vinte metros dali: um cubóide cinza de concreto, de mais ou menos um metro e meio quadrado, ao lado de um motor diesel e uma caixa de água. Três minutos e pronto! Aos poucos vão se acostumando com minha presença, baixando o olhar e sendo tomados por uma indiferença e por uma tristeza profunda. É evidente que sabem seu destino. Um latido desesperado e de surpresa me dá um choque nos ossos e um nó na garganta. "Apenas vendo o sujeito que sofre -escreve Rousseau em seu essai sur l’origine des languesdificilmente os senhores ficarão emocionados a ponto de chorar; mas dêemlhe algum tempo para que ele expresse tudo o que sente, e sem tardar irão desmanchar-se em lágrimas.”100Quem é que poderia imaginar que esses

99 Tive uma experiência semelhante numa aldeia dos machacalis, quando um índio levou um tiro

de um fazendeiro e morreu. Ao entardecer tentei entrar na casa onde o corpo estava sendo velado e fui literalmente barrado e empurrado para trás pelos gritos e pelos olhares das mulheres que velavam o cadáver. 100 Citado por Anne Vincent Buffault, em História das lágrimas. Paz e Terra, p 54 RJ 1988


pequenos lobos asiáticos, domesticados lá pela era paleolítica viessem a se transformar nisso aí? Segundo um pesquisador de Oxford, os cães pressentem a aproximação do perigo por meio de infinitas vibrações que atravessam seu corpo e que nenhum aparelho pode registrá-las. Este tipo de especulação a respeito dos animais, mais especialmente a respeito dos cães, vieram se arrastando pelos séculos. Para muitos, os animais não possuíam inteligência nem sensibilidade alguma. Segundo Descartes "eles não agiam levados por inteligência mas simplesmente em virtude da disposição de seus órgãos. Para ele os animais comiam sem prazer, gritavam sem sentir dor e cresciam sem perceber. Buffon, ao contrário, acreditava que os animais, apesar de não terem consciência da vida passada a tinham com relação à vida presente. Ernest Haecker desenvolveu a teoria «panpsiquista» da bondade suprema, segundo a qual os animais terão uma recompensa na vida futura. Só bem mais tarde se concluiu que os macacos e os cães também choram sob o efeito da dor.”101 -Se não comer até hoje à tarde -repete o responsável, apontando para um rotweil preto que apesar de vir se arrastando até as grades tem um porte exuberante - será sacrificado. «Sacrificado!» Eis aí uma das palavras mais presentes no Antigo Testamento O cão me olha nos olhos com subserviência! Estremeço! Penso imediatamente em Olga Benário sendo levada para as câmaras de Bernburg! Nos pogroms russos! em Dachau! Auschwitz! Foi no dia 1º de setembro de 1939 que Hitler, através da operação T4 autorizou a utilização de câmaras de gás. Inicialmente para dar sumiço aos doentes incuráveis e aos doentes mentais. Depois, essa modalidade de crime foi estendida para todos os tipos de prisioneiros que, nas carrocerias de caminhões eram asfixiados pelo gás dos motores. A semelhança entre aquele método e este é abrumadora! O que se poderia fazer? Sei que em cidades de Minas e de outros estados onde o método é ainda mais draconiano, são eliminados através de eletrochoques. Um grampo de bateria na pata e a tomada conectada na alta tensão. Na Paraíba, relatava o coveiro, matam dezenas de uma só vez e a pauladas. Levam os bichos para um lugar apropriado e os matam a pauladas! A mulher que contou isso a ele, assistiu uma dessas chacinas, um desses rituais sacrílegos e ficou horrorizada não apenas com o desespero dos animais, mas com os gritos e a disputa dos verdugos: Deixa esse comigo! Esse é meu! Observe como vou esbugalhar os miolos daquela cadela com uma única paulada! O rotweil me olha quase implorando clemência. Desvio novamente o olhar, envergonhado e cheio de culpa. Enquanto os funcionários correm para o almoço permaneço sozinho naquele ambiente triste de cadeia, de prisão e de hospital medieval, rabiscando impressões em minha caderneta e recordando trechos do Diário de um Cachorro escrito em Leipzig em 1892,

101 Cassinelli, Bruno. Histoire de la folie. Bocca Frères Editeurs, p.p. 140, 141, 144. Paris 1975


por Oskar Panizza: "Je ne sais toujours pas comment font les gens pour se comprendre, Il est vrai qu ils rapprochent souvent leurs têtes et qu ils découvrent leurs dents du haut: cependant leurs nez me semblent trop courts pour qu ils puissent se reconnaître, ainsi que nous autres. De surcroît leurs bouches fomentent un satané vacarme, un véritable tir nourri, bientôt suivi de gesticulations fébriles. Mais ils ne se comprennent pas pour autant puisque ces discussions durent des heures, s échauffent - ils se mettent à trépigner, à se secouer, à se donner des coups, à se tirer la langue, pour finalement se séparer, haletants, la gueule fumante. Race pitoyable, il te faut fendre l air par de grands gestes et convulser ta face pour exprimer tes désirs." -Estes são os chamados «carrinhos do sacrifício» -me explica um outro funcionário que passava por lá e que, com certeza, deve ter percebido todo o meu espanto. Os cães indicados para o sacrifício são colocados dentro deles (sete, oito, até vinte se forem pequenos) e depois empurrados para dentro da câmara de gás! Os grandes costumam morrer sem nenhum escândalo, mas freqüentemente os pequenos latem e choramingam! Pede para acompanhá-lo e me leva até um freezer onde um cão imenso, sacrificado nesta manhã, espera pela necropsia. O frio da geladeira e o cheiro de carne putrefata me revoluciona o estomago! Me pergunto novamente quando e por que o vínculo que havia entre eles e nós foi dissolvido? Quando é que a vida começou realmente a ser este duelo interminável entre consciência e brutalidade; entre domesticação e selvageria; entre humano e animal; entre Tanatos e Eros? Ou será que esse antagonismo nunca existiu, que tudo foi sempre uma farsa, e que mesmo o tal de Eros nunca foi mais do que o Ereos? 102 Segundo um texto de D.Morris, a transação lúdica (perversa ou de qualquer outra natureza) entre o cão e o homem parece ter iniciado há mais de dez mil anos atrás. "Numa tumba do Oriente Médio -relata- datando do décimo milênio a.C. foi descoberto o esqueleto curvado de uma mulher de idade que está com a mão repousando sobre o esqueleto de um cachorrinho de três a cinco meses. Como sabemos que a mulher provem de uma cultura que não comia cães, parece que o cachorrinho era mantido como um companheiro, e um companheiro que mereceu um enterro especial com a mulher idosa.”103 No Egito, segundo Herôdotos, as cadelas mortas eram enterradas em esquifes sagrados, enquanto os ursos e os lobos eram enterrados naturalmente no lugar onde eram encontrados mortos. Já os gatos, mereciam uma distinção: eram levados para

102 Termo cunhado por Bernard de Gordon para referir-se a concepção de que o amor é uma

espécie de doença mental. 103 D.Morris, idem. P.138


edifícios sagrados, embalsamados e enterrados na cidade de Bubástis. 104 Para a limpeza de um box os cães são remanejados para outros. Os latidos vão deixando lugar a inesperados gritos de desconforto. De vez em quando a voz ameaçadora e os berros dos funcionários. É impressionante observar com que facilidade eles remanejam os cães daqui para lá ou viceversa, apenas com ordens e com as batidas do cambão no piso. Cachorros enormes que até ontem deviam guardar ferozmente suas casas, suas chácaras, ou andar em matilhas pelos fundos dos restaurantes da Asa Sul, agora parecem ovelhas adestradas. Nos poucos dias que passam aqui, submergem completamente na subserviência e na baixeza… Os adestradores se orgulham disso! Acham que estão contribuindo com o conforto da humanidade e promovendo uma melhoria no mundo! Só que "chamar melhoramento a isto, ou a domesticação de um animal -escrevia Nietzsche- soa aos nossos ouvidos quase como uma brincadeira. Duvido muito que o animal acabe melhorando. O que acontece é que acaba debilitado e que é feito menos perigoso. Com o sentimento deprimente do medo, com a dor e as feridas faz-se dele um animal enfermo". E é evidente que algo semelhante acontece com os homens. O sentimento de potência e de amor próprio que naturalmente deveria regulamentar a vida das pessoas vai sendo pauperizado, desqualificado, culpabilizado e pisoteado, até que o sujeito fique de quatro e reconheça o poder do adestrador. E o mais impressionante disso tudo, é que o «educador», "aquele que corrompeu e humilhou o homem, ainda tenha o descaramento de reclamar o mérito por tê-lo «tornado melhor»."105 Zoofilia, bestialismo, pedofilismo, gerontofilismo e outros barbarismos! É evidente que os próprios animais devem zombar de nossa pretendida civilidade! Imaginem só o que deve pensar uma mula durante o tempo em que está sendo enrabada por um deputado, por um vigário ou por um sindicalista que, inclusive, já está atrasado para a assembléia! Imaginem o que deve pensar o dober alemão enquanto cavalga uma donzela tímida e cheia de pudor! A cabrita106 que está substituindo a mulher do pastoreiro! A galinha com dois ou três adolescentes em fila... O mais surrealista disto tudo, é que nunca se ouviu um pio das mulheres, nem das pobres donas de casa e nem das

104 Herôdotos. História. Editora Universidade de Brasília, p.110, BSB, 1988. 105 F.Nietzsche. Crepúsculo dos Idolos, HEMUS, p50. SP 1984 106 “A relação com cabrita é feita individualmente, já que ela pode morrer se submetida a cópulas

sucessivas com o homem. A relação sexual com a cabrita é considerada difícil, uma vez que ao sentir o órgão sexual do homem ela se contrai, posicionando-se de maneira oposta à lordose. Os garotos mais experientes explicam que para evitar esse problema, e para fazer com que a vagina do animal se descontraia é necessário puxar uma pequena pele, um pequeno apêndice situado na entrada do orifício.” Anest, idem, p.40.


mais ferrenhas feministas sobre esta questão. Simplesmente ocupam os lugares que um pouco antes haviam sido ocupados por uma vaca ou por uma porca, se escondem sob o manto hipócrita do amor e da necessidade e pronto! Os heterossexuais com suas éguas; os homossexuais com seus cachorros; os bissexuais enrabando suas mulheres ao mesmo tempo em que são enrabados pelo collie de estimação; voyeristas e mixoscopistas107 com seus binóculos voltados para os currais;108 os sádicos torturando seus cavalos; os perversos polimorfos tocando punheta para o cão ou enfiando o dedo na vulva da cadelinha pedigree. Beijos na boca de cabras montanhesas, poemas de amor a um gorila imaginário que escala o desejo feminino atolado em proibições. O mundo alucinado no meio de uma torneia sem fim. Rios de esperma e cachoeiras de líquidos íntimos, tudo sob o mais rigoroso sigilo. O perímetro sexual domando todas as espécies e inventando posições, gêneros, desculpas, falsificações. Dr. há alguma diferença entre pedofilia e zoofilia? A história tem sido uma corrente de abusos, de morticínios e de crimes covardes contra os animais, seguidos pateticamente por um ritual hipócrita que os converte em totem. Na China, no Egito, na Grécia… nos templos e nas casas dos novos ricos do mundo inteiro, cabeças de animais dependuradas 109 por puro capricho ou como mascote, insinuando uma fútil e falsa relação com o sagrado. Enquanto isto, a imagem de um homem bem barbeado copulando com uma vaca ou a de uma mulher de salto alto abrindo as pernas para um bode, seria sacrílega o suficiente para desagregar novamente o universo. Nenhuma doutrina e nenhuma filosofia resistiriam essa imagem se ela fosse explicitada. O mundo, esse oceano de falsidades, desabaria, passaria a olharse de soslaio... Um relincho tremeria a terra e um bééeeebbééeeebbéeeeee infartaria a espécie. Entre os hititas, a zoofilia que era vista sem grandes problemas no período nômade, com o sedentarismo, começou a ser encarada como um crime e a ser punida até com a pena de morte. Se o relacionamento sexual

107 "A mixoscopia (sinônimo de voyerismo) é outro modo de obter gratificação sexual sem

envolver as complexidades de uma relação verdadeira -escreve Anthony Storr, em Desvios sexuais, Zahar Editores, p. 91 RJ 1967. (…) O desejo de ver outras pessoas ou animais em atividade sexual é tão generalizado que possivelmente não se pode considerar a mixoscopia como uma anormalidade, exceto quando se torna um substituto principal de métodos mais convencionais de gratificação. Em certo estudo 65% dos homens admitiam uma atividade de mixoscopia, enquanto 83% gostariam de tê-lo feito." 108 “Basta que dois cães ou dois pássaros familiares copulem, para que toda a gente pare e

contemple a operação com uma atenção fascinada”. Levi-Strauss, falando dos Nambikwaras, idem, p.34. 109 “...As catedrais góticas da Europa como a de Chatres, Reims e outras tinham esculturas de

cabeça de jumento nos seus pórticos.” Pe. A.Vieira, idem, p.273.


entre homens e animais é uma prática anterior até mesmo ao aparecimento de Lylith, será então que o Deus-mor não colocou a mulher no cenário universal apenas com o objetivo de interditar essa barbárie? Para o homem pastoril, que vagava semanas e meses atrás de seu rebanho, talvez nada fosse mais natural do que entregar-se a algum ato de luxúria com suas cabras, ovelhas ou vacas, naquele silêncio e naquela solidão imaginável! Talvez até sua mulher achasse conveniente essa parceria, pois assim podia poupar-se um pouco do excesso de luxúria do marido, do companheiro ou do dono, excesso que a vida campestre, a boa alimentação e o sono normal sempre proporcionam. E foi exatamente para soterrar esse tesão interminável que os padres e os teólogos da anti-sexualidade construíram um cardápio sexual inacreditável: abstenção sexual nas quintas-feiras, em memória à prisão de Cristo; nas sextas-feiras em memória de sua morte; aos sábados, em louvor à Virgem Maria; aos domingos, em homenagem à Ressurreição e às segundas-feiras, em comemoração aos mortos. Às terças e às quartas eram sabotadas por outros feriados. Idealistas, santos, beatas, ecologistas, coroinhas, moralistas, etc., durante todo esse tempo, não se cansaram de simular horror à zoofilia e ao bestialismo. Provavelmente tenham razão! Uma vez que o sexo, em todas suas possibilidades, desestabiliza os projetos carolas de civilização e de sociedade, e que é quase impossível entregar-se a esta necessidade insaciável (seja com uma princesa ou com uma cabra) sem ter que descer aos abismos da irracionalidade, da perversão e do desvario polimorfo. 110 Recordo: Zoófilo neste trabalho não é uma denominação ingênua dada àqueles que devotam apenas amizade aos animais, (como Brigite Bardot, em Paris, ou minha vizinha alemã no México, que abrigava em seu pequeno apartamento uns 78 gatos além de um São Bernardo de uns quarenta quilos) mas àqueles que têm relação sexual com eles.111 Uma adolescente que cresceu no campo me relata que antes mesmo do pai ou de um tio arrastar os meninos para um puteiro eles já treparam com as galinhas, com as cabras, e até mesmo com as vacas da casa. Parece o fim do mundo? E é! Só que como defesa ninguém vê. Se o sexo em si já encontra obstáculos para ser mencionado, imaginem as dificuldades que cada sujeito (zoófilo ou não) deve ter no âmago de sua

110 Mas para não cair no vício abominável do sectarismo, é necessário lembrar ao leitor que nem

todo mundo pensa assim. Em seu livro As minorias eróticas -por exemplo-, Lars Ullerstam faz uma apologia descarada do bestialismo. “Não é tempo de nos livrarmos desse jugo moral? – pergunta-. O único remédio válido é, aparentemente, dar à zoofilia as mesmas condições de realização que ao coito entre um homem e uma mulher.” IMAGO, p.113, RJ 1967. 111Tratando da zoofilia sexual e da zoofilia não sexual, “Magnam descreveu a zoofilomania entre

os problemas mentais dos degenerados. Ele menciona vários casos onde mulheres manifestavam seu amor e sua piedade pelos animais a um tal ponto que podiam ser caracterizados como doença mental”. Krafft-Ebing, Psychopathia sexualis, tomo 2, Editions Payot, p.p.366,367. Paris 1999


«psique» para entregar-se a esta temática. A grande maioria desses «executivos» e desses «pais de família» que andam por aí bem penteadinhos, assoando o nariz por qualquer coisa, com as unhas esmaltadas e as cuequinhas de seda, fingindo moralidade e pudor, certamente já esteve um dia prevaricando nos galinheiros e nas estrebarias de alguma granja. E não é por acaso que as piadas, as anedotas, os filmes e os sites de mulheres transando com animais estão obsessivamente presente nas sessões masculinas de perversidades. Um cãozinho praticando cunnilingus, um cachorro sobre uma cinquentona ou sobre uma ninfeta de quatro, um asno sobre uma mulher tresloucada etc. Uma amiga me relata indignada que seu parceiro, um sujeito acima de qualquer suspeita, a chama de «minha vaquinha» sempre que está ejaculando. Reli o Guardador de Rebanhos e o Pastor Amoroso do Fernando Pessoa achando que ele, sendo de um país exótico e pastoril poderia ter tocado no assunto ou, ele mesmo, entre um poema e outro, enrabado uma cabra. Nada! Não consegue ir além daquele discurso melancólico dos broxas. Vejam como é que se escreve quando se esta fixado na pré-genitalidade: “...Não tenho ambição nem desejos, ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho, E se desejo às vezes, por imaginar, ser cordeirinho...” 112 blá... blá... blá... E é importante notar que esta psycopathia sexualis aparece com uma freqüência incrível, tanto na literatura profana como nos textos sagrados. Num dos contos mais conhecidos de Balzac, Uma paixão no deserto (1832) um soldado francês tem uma relação amorosa com uma pantera. “Mas havia tanta graça e juventude nos seus contornos! Seu talhe roliço era lindo como o de uma mulher. O loiro pêlo das costas se casava por finas tonalidades ao branco fosco que distinguia as coxas. A luz profusamente lançada pelo sol fazia brilhar aquele ouro vivo, aquelas manchas pardas, de maneira a lhes das indefiníveis encantos. O provençal e a pantera olharam-se um e outro com um ar de inteligência; a faceira estremeceu quando sentiu as unhas do amigo arranhando-lhe o crânio, seus olhos brilharam como dois relâmpagos, depois fechou-os fortemente”.113 E quem, em sua adolescência, não levou para a cama ou para o banheiro o livro Gamiani, de Alfred de Musset? Além das orgias com as freiras e com os monges, Musset leva suas personagens a transar com um macaco e com um jumento. “O macaco pendurou-se nas grades e exibiu o pau de tal forma que «Santa», levada por sua loucura, perdeu a cabeça. Força uma das barras da jaula até conseguir o espaço suficiente para deixar-se penetrar por aqueles vinte centímetros bem pronunciados(...)Levantou a saia com ar

112 Obra Poética, Nova Aguiar, p.203 RJ, 1986 113 Balzac, H. A comédia humana, vol.XII, Ed. Globo, p.604. Porto Alegre, 1954


decidido, dorso inclinado rumo a ponta temível. Trava-se a luta, desferem-se os golpes, o animal se torna igual ao homem. «Santa» é bestializada, desvirginada, deflorada –“ensimiada”.114 Montaigne em seus Ensaios, Tomo II, p.p.327-328, José Olympio Ed. RJ 1861, faz uma referência ao amor dos homens pelos animais e vice-versa. Escreve ele: "E assim como se tem achado furiosos desejos que arrastaram homens ao amor dos brutos, também os brutos se acham às vezes enamorados por nosso amor e admitem afeições monstruosas de uma a outra espécie. Deu prova disso o elefante rival de Aristófanes, o gramático, no amor de uma rapariga na cidade de Alexandria, o qual em nada lhe ficava atrás nas oficiosidades de um pretendente bem apaixonado; pois passeando pelo mercado de frutas, agarrava algumas com a trompa e para ela as levava, nem a perdia de vista a não ser o menos que podia, e às vezes lhe enfiava a trompa por debaixo da blusa e lhe apalpava as maminhas." Na obra chata e espasmódica de Dante, podemos ver o pecado da bestialidade presente no Esquema do Inferno. No Canto XXVI do Purgatório, Verso 40 pode-se ler: "e l’altra: ne la vacca entra Pasife, perché l torello a sua lussuria corra! (referência a Pasifaé, esposa do rei Minos, que colocou-se de quatro dentro de uma vaca de madeira para ser enrabada pelo touro). 115 E são infindáveis as referências e as citações a respeito da «luxúria animal». Se tivesse saco e paciência e se dependesse desse ofício para viver, iria mais a fundo e citaria alguma coisa do Bocage (Decamerom); do Pierre Louys (Lêda); de Ovídio (Metamorfose); de Lucios de Patra (0 asno de ouro); de Sade (120 dias de Sodoma ); de Voltaire (O touro branco) e, claro, da Bela e a fera etc. sem esquecer, evidentemente, de Bataille e de Apollinaire. 116 No estudo publicado em 1980 por Nancy Friday117 sobre fantasias sexuais masculinas, num capítulo intitulado animais, podemos ver o quanto estes povoam o imaginário masculino e feminino e o quanto compartilham da

114 Ver Gamiani ou duas noites de orgia. Ed. Imaginário, pp.69,70. São Paulo 1998 115 Alighieri, D. Inferno, p.21 - Purgatório, p.170. Editora 34, SP. 1998 (É interessante notar que

de tanto que essa anedota interfere no imaginário masculino, ela foi contada, escrita e reescrita várias vezes, por Virgilio, Ovidio, Petrônio, Platão, Plutarco, Voltaire, Picasso, Sade, etc, etc. Será que a fantasia desses eruditos era ser o touro ou a rainha?) 116 Minha decepção com o Bestiário de G.Apollinaire (TEA S.p.A Milano, 1996) e com ele

próprio foi total. Parece mais um catecismo católico do que outra coisa. Mas isto ficou esclarecido para mim quando descobri que ele era italiano. Tentou esconder essa trágica descendência, naturalizando-se francês, em 09-03-1916. Não adiantou! 117 DIFEL, pp.17-30, São Paulo 1981


alucinante viagem humana em busca do prazer. Nas treze páginas que compõem esse capítulo há várias declarações de homens e mesmo de mulheres que «perderam» a virgindade com animais. Gerald, um dos colaboradores relata: "comecei experimentando vacas. Primeiro, bezerras de um ano, mas estas eram apertadas demais e não paravam quietas. Passei a foder vacas mais velhas, algumas das quais pareciam apreciar a foda tanto quanto eu". (p217). Buck vai mais além: "Descobri que os cães são oralmente excitáveis, tanto pelo homem quanto pela mulher. O bom e velho «Rower» fica tão excitado quando me lambe o pau como quando lambe a boceta de minha esposa." (p220). "Quando garoto -declara outro confidente- mantinha relações sexuais regulares com nossas porcas e vacas. Minha esposa confessou que perdeu a virgindade transando com um animal de estimação da família, um grande cachorro collie." (p223). Segundo a pesquisadora, a freqüência com que as mulheres se entregam a práticas sexuais com animais é igual ou até maior do que a dos homens, pois os animais oferecem algo crucial para o mundo feminino: sigilo, segurança e o descompromisso de combinar sexo com amor. Entre os textos que tentaram culpabilizar, coibir, ou mesmo regulamentar o bestialismo, tenho sobre a mesa o Êxodo. Na parte que trata da propriedade (XXII-19), está escrito: «Todo aquele que se deitar com animal, certamente morrerá». Mais adiante, no Terceiro Livro de Moisés chamado Levítico (XIX-23) a proibição se repete: «Nem te deitarás com um animal, para te contaminares com ele; nem a mulher se porá perante um animal, para ajuntar-se com ele.» Virando a página lá está o tabu novamente: (XX-15) «Quando também um homem se deitar com um animal, certamente morrerá; e matareis o animal». (XX-16) «Também a mulher que se chegar a algum animal para ter ajuntamento com ele, aquela mulher matarás com o animal; certamente morrerão; o seu sangue é sobre eles». Entre os turcos o bestialismo só era considerado crime se envolvesse animais comestíveis. E esse mesmo tipo de «julgamento» que varia conforme o caso aparece também entre outros povos. Entre os hititas, já citados «Se um touro montar num homem, o touro morrerá mas o homem não. Se um cachaço montar num homem isto não constitui um delito. Se um homem copular com um cavalo ou com um asno, não há delito, mas ele não poderá se aproximar do rei e nem vir a ser padre». 118 Mais recentemente, no Livro Verde do Ayatola Khomein encontro várias recomendações para lidar com animais que foram sodomizados por homens. 119

118

Ver Le musée de la bestialité, Roland Villeneuve, Éditions Veyrier, p.47. Paris 1973. 119 O livro verde do Aiatolá Khomeini, Record, p43. RJ. 1979


"A carne de cavalo, de mula e de burro não é recomendável. Fica estritamente proibido o seu consumo se o animal tiver sido sodomizado, quando vivo, por um homem." (…) "Quando se comete um ato de sodomia com um boi, um carneiro ou um camelo, a sua urina e os seus excrementos ficam impuros e nem mesmo o seu leite pode ser consumido. Torna-se, pois, necessário matar o animal o mais depressa possível e queimá-lo, fazendo aquele que o sodomizou pagar o preço do animal ao seu proprietário." Mais adiante, na página 67, falando da ablução, o líder iraniano alerta: "No caso de um homem -que Deus o guarde disso!- fornicar com um animal e ejacular, a ablução será necessária." Só hoje tive tempo de folhear com mais atenção a relíquia que o carteiro deixou à minha porta no mês passado, relíquia que me foi enviada de Paris, por um livreiro de Saint Michel. O livro intitulado La sexualité insolite, é de Gilbert Dupé, foi publicado pela Collection Cypris, em 1970 e traz um capítulo de 9 páginas sobre Bestialismo. Além de assuntos que já eram de meu conhecimento o livro contém informações preciosas que quero mencionar. “Frederico o Grande ao ser informado que um soldado de cavalaria havia praticado coito com um jumento limitou-se a escrever: «Esse individuo é um porco. Que seja transferido para a infantaria»(...) O Dr. Guon menciona um fotógrafo suíço que transava com uma cabrita no «ambiente poético e invernal de um chalet de montanha»(...) O criminologista Paul de River cita uma menina de fazenda que costumava assistir os cruzamentos dos jumentos e das vacas. Seu primeiro e único amante foi um cachorro que dormia em sua cama e com o qual tinha relações regulares (...) Na Jordânia, freqüentemente surgem casos de relacionamento entre moças camponesas e animais domésticos(...) Segundo Mirabeau, todos os pastores dos Pirineus praticam o bestialismo. Uma das mais esquisitas práticas zoófilas é a de se servir das narinas de filhote de veado e fazer com que ao mesmo tempo o animal fique lambendo os testículos(...) Segundo os padres bascos, é sabido que nas regiões de montanha cada pastor tem sua cabrita favorita.(...)O bestialismo cantado pelos poetas e evocados pela mitologia (Leda-Pasiphaé) é considerado como um crime abominável. O Dr. Hesnard o considera como uma fantasia mais ou menos repugnante e ridícula. Esse mesmo Dr Hesnard, de quem nunca ouvi falar, afirma que “entre os envolvidos com atos de bestialismo freqüentemente se encontram sujeitos desequilibrados, perversos e débeis mentais, movidos por uma imensa necessidade genital, originada por transtornos de sua sexualidade.”120 Plutarco, que esteve sempre atento às coisas bizarras de seu tempo, fez este registro um pouco deprimido pela

120 Dupé, Idem, p.p.126,127,128.


própria moralidade: “Em diversos lugares, a luxúria excede-se a maneira de uma torrente e incorre nas mais lamentáveis vergonhas e nos mais desvarios mais absurdos, ultrajando a natureza com o delírio do desejo bestial; pois de muitos indivíduos é sabido que procuram a satisfação de seu instinto sexual em várias fêmeas de animais.”121 E a pedofilia? Alguma analogia entre pedofilia e bestialismo? Não seria o bestialismo uma forma substitutiva da pedofilia? Ninguém pode negar que o animal tem algo da criança. É fácil de ser enganado, corrompido, seduzido, explorado. Além disso, mantém em sigilo o crime... Ou teria mais a ver com o incesto? A mãe ou a irmã projetada na vaca ou na cabra? Qual dos dois têm mais peso na escala quase metafísica dos tabus? O bestialismo ou o incesto? Na Universidade Nacional Autônoma do México, por pouco não fui expulso de um curso psicanalítico quando, «em tom de provocação», perguntei por que a mãe não poderia ser a iniciadora sexual ideal para o menino e o pai o iniciador ideal para a menina? 122 Todo mundo se escandalizou. A professora, que era judia, depois de sugerir-me quase num sussurro que não me esquecesse de mencionar tal assunto em minha análise pessoal, lembrou a toda turma que: “...a atitude incestuosa com respeito aos pais é o Complexo Central de todas as neuroses”.123 Foi ali, naquele momento que percebi o quanto a «coisa» era realmente grave e o quanto os Institutos psicanalíticos estavam cheios de «membros» traumatizados. Freud, em seu artigo intitulado O horror ao incesto, faz um levantamento parcial pelo mundo da etnologia e mostra as artimanhas e os truques que já os selvagens usavam para evitar que os filhos transassem entre si ou com os pais. “Entre os

121 Citado por Barre M.L. e Famim, C. Museu secreto de Nápoles Livraria Odeon, p.32 RJ (sem

data) 122 Quando fiz aquela pergunta irreverente, tinha em mente a história do velho Lot que passou o

ferro em suas duas filhas depois de fazê-las beber uns tragos de vinho. Lembrava vagamente de uma lenda contada por Aristóteles ou outro grego qualquer, sobre o caso de um garanhão que se suicidou ao descobrir que havia trepado com a égua-mãe. Conhecia casos e mais casos universais de relacionamentos «malditos» entre pais e filhas e até mesmo um de filho com mãe, aqui no Distrito Federal. Tratava-se de uma hippie dos anos 70 que gostava de colocar seu filhinho de uns seis anos deitado nu, de pintinho duro sobre sua vagina. (ou isto não pode ser enquadrado como incesto?). Vi este tipo de comportamento também entre os membros de uma tribo no interior da Bahia, onde a mãe «masturbava» o filhinho para que ele «parasse de chorar». Sabia que a psicanalista francesa Marie Bonaparte havia relatado em seu estudo sobre a sexualidade feminina, o caso de três moças que tiveram as primeiras e «boas» relações sexuais com irmãos sem nenhum problema. Sabia que entre os faraós era comum o casamento com as próprias filhas. Sabia que nas próprias monarquias européias, durante séculos, casavam-se entre irmãos e que lá no interior do Paraná, numa das tantas fazendas de café, um homem rústico e autoritário desvirginou todas as suas filhas. Quando o fato se tornava público, dava um jeito de enviá-las para um convento onde as freiras, «sabiamente» tomavam conta delas... 123 Freud, S. Idem, p.1758


Basoga, tribo negra que habita na região das nascentes do Nilo, - escreve - o homem só pode falar com sua sogra se estiverem em ambientes diferentes, em condições que um não veja o outro. Entre esse mesmo povo, até o incesto entre animais domésticos é castigado...”124 Para Lombroso –aquele italiano que teorizou um montão de coisas absurdas no século passado- “um delito análogo ao bestialismo homem/animal/ é o relacionamento sexual entre o cisne e a gansa ou entre o bison e a vaca” – escreveu.

124 Freud, S. Idem, p.1755


(VII) "A verdade que não destrói a «criatura» não é uma verdade...”

Maitre Eckhart De minhas memórias infantis lembro com horror dos dias em que imolavam um porco. Seus gritos, seus dentes e seus olhos em desespero. Alguém enfiando-lhe uma faca na direção do coração, o primeiro jato de sangue jorrando à distancia e o restante recolhido num balde para ser comido juntamente com o fígado, os rins, as tripas e as orelhas do animal. Quase consigo ouvir o borbulhar da água fervendo num panelão imenso, como o das feiticeiras! Água que serviria para «barbear» e lavar aquele pobre ser que talvez tenha até chegado a acreditar que seu destino poderia ser menos trágico. Apesar do catolicismo neurótico, as cenas eram típicas de um festim e de uma oferenda pagã, já que beato nenhum se atreveria a oferecer um Porco a Deus. Esse animal, pelo qual todo mundo lambe os bigodes, era considerado um «bicho impuro» para os egípcios, e os porqueiros eram estigmatizados e não podiam entrar em nenhum dos templos daquele povo panteísta. Viviam isolados com seus suínos e com seus filhos que casavam-se entre eles, já que os egípcios, em hipótese nenhuma, davam suas filhas em casamento a um criador de porcos. Uns dez anos antes dessas vivências infantis a que me refiro, George Orwel havia escrito Animal farm (A revolução dos bichos), onde coloca na boca de um porco um discurso meio marxista e meio cristão: "Camaradas! O Homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem e a causa principal da fome e da sobrevarga de trabalho desaparecerá para sempre!"125 Recordo ainda e também com horror, da voz da solteirona que, enfurnada nos fundos da sacristia, lia para um grupo de crianças a parte do Levitico onde Deus orientava a Moisés sobre os pormenores do sacrifício de um novilho: "E os anciãos da congregação porão as suas mãos sobre a cabeça do novilho perante o Senhor; e degolar-se-á o novilho perante o Senhor. Então o sacerdote ungido trará do sangue do novilho à tenda da congregação e o sacerdote molhará o seu dedo naquele sangue e o espargirá sete vezes perante o Senhor, diante do véu. E daquele sangue porá sobre as pontas do altar, que está perante a face do Senhor, na tenda da congregação; e todo o resto do sangue derramará à base do altar do holocausto, que está diante da

125 Círculo do livro, p. 9 São Paulo (sem data de publicação)


porta da tenda da congregação. E tirará dele toda a sua gordura, e queimá-la-á sobre o altar. E fará a este novilho como fez ao novilho da expiação; depois o levará para fora do arraial e o queimará como queimou o primeiro novilho; é expiação do pecado da congregação" etc, etc.126 Não tenho dúvidas de que meu desprezo por qualquer tipo de religião e de divindade, nasceu lá naquelas leituras sanguinolentas, macabras e perversas levadas a cabo em tardes intermináveis de minha infância, tempo em que, sobre a escrivaninha paterna, ao lado de uma Olivetti, um provérbio salomônico completava o sadismo e o desprezo cultural pelos animais: "O açoite é para o cavalo, o freio para o jumento e a vara para as costas dos tolos". Lembro que entre os mais velhos corria a crença de que a Mula-sem-cabeça era, na verdade, uma mulher libertina que por transar com o padre, foi punida com essa transformação. Mas não é só isso que me recordo agora, cercado de livros e de defesas intelectuais, no sexto andar deste prédio silencioso! Quem cresceu numa cidadezinha como aquela, sabe que os trezentos e sessenta e cinco dias do ano, para os animais domésticos e para a natureza em geral são de completa orgia. Já acordava com os pardais e as andorinhas trepando no alto dos telhados. Depois o galo, os cachorros, os gatos, os porcos, os coelhos, os touros… O sexo estava presente em quase tudo e posso afirmar que esses animais fizeram mais por minha libido e por meu erotismo do que a obra de Adelaide Carrarro, de Sade e os textos do Bataille, juntos... Nas manhãs frias, cobertas de geada, quando o céu parecia mais um paredão de safira mexicana, ficava longo tempo encostado junto ao alambrado, as mãos no bolso de um casacão de lã feito em casa, vendo o galo, com suas esporas pontudas trepar com o harém inteiro. Bastava um sinal seu para que as galinhas se colocassem de cócoras, piassem como filhotes e levantassem o rabo. Arrogante, cheio de amor próprio, riscava as unhas no gelo, prendia a crista dela com o bico e como um equilibrista de circo colocava-se em êxtase sobre suas asas semi abertas por uns segundos. Quando alguém me chamava para o café ou para a escola, quase sempre me surpreendia «viajando» por um mundo de obscenidades e com o pau explodindo por debaixo das cuecas. Das conversas de adultos que conseguia ouvir, fui concluindo que a fantasia sexual masculina era ter a potência de um cachaço, o pau de um cavalo e a disposição de um galo! Mas será que isto tinha alguma coisa a ver com as fantasias das mulheres? Uma das historinhas eróticas de então contava que

126 Uns 42 anos depois assisti ao vivo um ritual macabro e idiota desses na cidade de Katmandu,

no Nepal. Por uma questão de segundos, tive a sensação de que os olhos do animal e os meus se cruzaram. Meu corpo arrepiou-se. Se tivesse certeza que sairia de lá com vida, teria interferido violentamente em sua defesa. Tolice de adolescente, -previniu-me minha companheira- este pelo menos está sendo assassinado em sacrifício, existe uma ilusão subjacente ao crime. O pior são aqueles milhares que, em todos os cantos do mundo, marcham diária e comercialmente para os matadouros. Um tiro de 45 na cabeça! Um choque elétrico no cérebro! Uma faca na garganta e pronto! Vinte minutos mais tarde já estão empacotados e sendo vendidos nos freezers dos Carrefours. Bah! Existe alguém que não veja a vida com horror?


uma mulher esplendorosa, vestida de preto e de olheiras profundas, comprava semanalmente testículos de touro no açougue da cidade. Curioso, o açougueiro resolveu segui-la e descobriu que no porão de sua casa, aquela mulher alimentava um gorila imenso, com quem fazia sexo todos os dias até desmaiar… Outras lendas falavam de homens ou mesmo de mulheres que iam mamar nas tetas das vacas ou das cabras enquanto se masturbavam... Bem mais tarde, quando conheci os textos de Pierre Louys, fiquei fascinado com uma fala de Bilitis, que insinuava aquelas mesmas fantasias e mais, que aquela historinha do gorila fazia parte das Mil e Uma Noites. “logo mais irei ao estábulo. Darei às cabras pasto e flores, e o odre de água fresca tirada do poço, do qual beberei junto com elas. Depois as amarrarei no poste para ordenhar seus suaves mamilos mornos, se os cabritos não ficarem com ciúmes, sugarei com eles as tetas amaciadas...”127 Um senhor classe média, formado em medicina, pai de cinco ou seis filhas, que também veio do meio rural, ficou inquieto quando soube que eu estava realizando este trabalho. Segundo ele, sua inquietude se devia ao fato de ter sido informado que eu estava fazendo apologia do sexo com animais, o que não podia tolerar, pois já achava uma loucura que uma de suas filhas fosse abertamente discípula de Safo. 128 Enviou-me amavelmente, através de

127 As canções de Bilitis. Idem, p.31. 128 Se fizermos um paralelo entre homossexualismo e bestialismo, o primeiro passa a ser visto

como realmente é: uma fixação infantil aos fascínios da punheta mútua, uma brincadeira de crianças enclausuradas, uma necessidade compulsiva de ver o «pintinho», o «cuzinho» ou a «xotinha» do Outro. Um pacto consigo mesmo de não «fazer-outras crianças» para permanecer ocupando infinitamente aquele lugar de pura fantasia e de pura mentira. Observem adultos já velhos brincando de médico ou de professor na obscuridade dos bares. Um tocando o «pintinho» do outro por debaixo da mesa, beijos na boca, o dedo no ânus, vulva com vulva... líquidos iguais não formarão ser nenhum! Entre homens e animais também não. Premissa que parece fundamental! O bestialismo também como uma brincadeira... Afinal, não são todos (vacas, cabras, cadelas, éguas, gansos, etc) os mesmos animaizinhos dos contos de fadas? Busca-se outro homem quando se tem horror à mulher! Já que a buceta é experimentada como uma aranha que decepará a cabeça do pau com suas afiadas e invisíveis «mandíbulas»! Busca-se outra mulher, quando se tem horror ao homem! Já que o pau é imaginado como uma serpente que cravará suas agulhas venenosas lá no interior do canal vaginal. Busca-se um animal quando o Outro é uma ameaça ou uma impossibilidade. A besta não fala. Não exige performance alguma. Não tem a maioria dos mecanismos que o zoófilo teme encontrar num ser de sua mesma espécie... Enfim, parece que o fascínio pelos estábulos e pelas saunas, é que ali se pode colocar em cena os aspectos mais psicóticos da pré-genitalidade sem cair nas inúmeras armadilhas da cultura e sem ter que depararse com o inferno das incompatibilidades. Para Schopenhauer a pederastia tinha uma finalidade natural: evitar que os fracos, os degenerados e os doentes se reproduzissem. Acreditando que a pederastia era uma prática basicamente de jovens (imaturos) e de velhos (decadentes) Schopenhauer considera que já que o sêmen de uns como de outros (pelas vias normais) iria produzir uma descendência decadente, a Natureza, de forma preventiva, lhes brindava com a perversão. Enquanto copulavam entre eles, a espécie estaria a salvo. Ver: Schopenhauer, Arthur. O instinto sexual, Ed. O livreiro, p.95. SP (sem data de publicação)


carta registrada, o tomo 2 de Psychopathia sexualis, do Dr. R. von KrafftEbing,129 um clássico que ninguém pode ignorar. Da página 356 a 370 onde assunto é dedicado à zoofilia, o que há de mais importante para este trabalho, além dos relatos de casos, é a classificação que o Dr. Krafft faz das relações entre homens e animais. Para ele existe o bestialismo, a zoofilia erótica e a zooerastia. Onde o bestialismo seria um ato sexual isolado com o animal; zoofilia erótica quando o animal exerce sobre o sujeito uma ação afrodisíaca a ponto de o conduzir ao fetichismo, 130 E por zooerastia, -diferentemente do bestialismo onde o ato teria sido casual- Krafft entende aqueles casos onde a relação sexual praticada com animais tem uma origem patológica, uma tara hereditária, uma neurose constitucional e uma incapacidade de relacionar-se sexualmente com as mulheres. “Creio que se pode reduzir esta questão a duas concepções: o bestialismo e a zoofilia erótica. A gente pode distinguir estas duas taras da mesma maneira que a gente distingue a perversidade e a perversão. A primeira se refere ao ato e a segundo ao sentimento e ao instinto”.131 Como exemplo de zoofilia erótica Krafft relata o caso de um homem de 40 anos que teve por primeira vez uma relação sexual com uma vaca aos 15 anos, depois com outros animais e que as continuava tendo até aquele momento, sem contudo conseguir relacionar-se com mulheres, já que não sentia tesão por elas. Um outro caso citado pelo autor, é o de um jovem de 16 anos «de excelente família» que tinha uma queda amorosa/sexual por um porco. Sim, seus sonhos eróticos eram acompanhados de representações onde sempre aparecia esse animal. Como o adolescente se interessava por agricultura, foi estudar numa escola especial onde, poucos dias depois de estar ali roubou um porco. E o fato se repetiu. Transferido para uma escola particular, a primeira coisa que fez, ao sair, foi roubar dinheiro e ir comprar um porco. Uma mulher de 26 anos, que sofria de depressão, costumava masturbar-se fantasiando uma relação sexual com um macaco. A observação nº 319 menciona o caso de um homem de 26 anos que aos 15, ao montar num cavalo teve uma ejaculação. Nas férias que passava no campo, onde os cavalos circulavam livremente pela noite, ficava excitado imaginando o perigo que esses animais selvagens representavam. Observação 321: Uma

129 Editions Payot, Paris 1950 130“Les caresses prodiguées aux animaux domestiques peuvent, en cas d’éveil anormalement

précoce de la vie sexuelle provoquée probablement par des sensations de contact; il peut s’être établi une association entre ces deux faits, et cette association s’est affermie par la repétition.” Krafft-Ebing, Obra citada p.359. 131 Kraff, idem. p.356.


mulher de 36 anos, mãe de oito filhos acusa seu marido de exigir que ela tivesse relação sexual com um cachorro. A mulher ficava de quatro, o homem excitava o cachorro, colocava suas patas sobre as costas da mulher e depois ajudava o animal a enfiar o pênis em sua vagina. Antes do cachorro ejacular, o marido assumia seu lugar e penetrava a «esposa». Quando a mulher tentou suicidar-se com um tiro na cabeça e o caso tornou-se público, ela foi condenada a seis semanas de prisão e ele a dez. Outro caso que Krafft considera de psicopatia sexual, é o de um homem de 47 anos, casado há 12, com três filhos que em função de sua insaciável sexualidade, além de outras mulheres, passa a ter relações sexuais com vários animais domésticos. Segundo a denúncia de sua mulher, ele tinha relações com uma cadela, com uma cabrita e quase todos os dias com uma porca. Como os exames psiquiátricos não apontaram nenhum sintoma mórbido, foi condenado apenas a 45 dias de prisão. O relato mais absurdo, mais cômico e mais mirabolante de todos é o de pederastia passiva, de um homem solteiro de 42 anos com um touro. A explicação do sujeito, foi que enquanto limpava a manjedoura, foi surpreendido pelo touro que enfiou-lhe astutamente o órgão no ânus. Num hospital, foi constatado que seu reto havia sido perfurado. Foi condenado a dois meses de prisão por ultrajar os «bons costumes». A observação nº 326 do Dr. Krafft, refere-se ao que ele chama de zoosadismo. Um adolescente de 16 anos que enfiou várias vezes um pedaço de pau ou a própria mão no ânus de oito vacas. Não foi punido em função dos laudos psiquiátricos que o consideravam uma pessoa psiquicamente afetada. Por fim, a descrição de um homem de 47 anos que é surpreendido no estábulo, só de camisa no meio das bezerras.132 Apesar de negar qualquer ato imoral contra a natureza, e de afirmar ter apenas abraçado os animais, foi condenado a um ano de reclusão. Roland Villeneuve, em seu Museu do bestialismo,133 dedica um capítulo aos processos judiciais/religiosos não apenas contra as pessoas que praticavam bestialismo, mas inclusive contra os animais envolvidos na relação, animais que poderiam sem encarcerados e condenados, dependendo da interpretação dos juízes e dos padres, até à pena capital. Regidos pelo pensamento de Locke, segundo o qual “os animais não eram privados nem de

132 “«Il baiserait une chèvre avec un tablier», é uma expressão utilizada para falar do

temperamento sexual de um homem particularmente ardente.” Ver Anest, idem, p.23. 133 Das 297 ilustrações de bestialismo contidas nesse livro, 99% são de mulheres com animais,

principalmente com aves, caprinos, eqüinos, cobras, cães, felinos, macacos, touros, felinos e outros. Como é sabido que o bestialismo masculino é mais freqüente que o feminino, por que essa distorção? Tudo bem, os pintores e os desenhistas são, na grande maioria homens, mas por que não ilustram a si mesmos com os animais? Será que quando estão trepando com um animal o fazem como se este fosse uma mulher, ou quando estão trepando com uma mulher se imaginam como animais? Ou há nisso tudo um outro tipo de fantasia que, em hipótese alguma se ousa mencionar?


sentimentos e nem de razão, e que a única coisa que os distinguia dos homens era a sua impossibilidade de formular idéias”, os idiotas de plantão daquele momento histórico que envergonhará a humanidade por mais um milhão de anos, chegaram a julgar uma porca e a condená-la à morte por enforcamento. O livro está cheio de revelações que, ao mesmo tempo que parecem inacreditáveis, nos fazem compreender a imbecilização universal a que estamos submetidos ainda hoje. Qualquer sujeito que se dedicasse a estudar o nosso passado (regido sempre pelos «nobres» e pelas «igrejas») se converteria compulsivamente num assassino ou, pelo menos, num terrorista.


(VIII) “...Je jalouse le sort des plus vils animaux/Qui peuvent se plonger dans un sommeil stupide/Tant l’écheveau du temps lentement se dévide”.

Baudelaire Homo habilis! Homo erectus! Homo ludens! Homo sapiens! Homo corruptus! Homo intelectualóides! Homo mentirosus! Homo invejosus! Homo histericus! Homo pederasta! Homo beatus! Homo hijo de puta! Homo bestial! etc. etc. Nas ruas de quase todas as cidades do mundo os montículos de merda tornam as calçadas escorregadias. Mulheres sonolentas levam seus cãezinhos de luxo para respirar e defecar no parque, onde um professor de jiu jitsu transpira narcisismo atrás de um cão imenso que vai mijando em todos os postes. Penteados, banhos, coleiras, perfumes, escova de dentes, partos sem dor, batismo, árvore genealógica, brinquinhos de metal nobre, amuletos, batismo em casa de umbanda, herança genética, controle de colesterol, alimentos balanceados, cristéis, sais minerais, vermífugos… Pelo animal se pode ter uma idéia do caráter e da condição financeira do dono. Com o tempo, um vai incorporando para sí os movimentos, as máscaras e os DESEJOS do outro… resultando daí homens cachorros e cachorros homens! Estaríamos agora diante de uma idiota desumanização dos homens e de uma estúpida desanimalização dos animais? E conseqüentemente, a caminho de uma complicação de todas as nossas ambigüidades? 134 Espio pelo janela e estão lá estirados na área de serviço se lambendo as patas. Outros cochilam apoiados às grades das varandas! Imóveis, quase como se estivessem empalhados no pequeno espaço dos apartamentos. Servem de companhia, de guias para cegos, de guardas, de amantes e até para combater a depressão dos donos. Sabe-se que muitos solitários e pirados deixam de matar-se para atenderem às demandas silenciosas de seus animais. Em frente ao hospital universitário um cachorro extraviado troteia inseguro. A proximidade de algumas pessoas o faz parar bruscamente como se intuísse alguma agressão ou tivesse pisado em brasas. É visível a sua inexperiência com a cidade e com a rua movimentada. A fome o obriga a cheirar o pacote que um doente jogou junto à cerca. Levanta as orelhas com a passagem de um ônibus e reinicia o trote junto ao meio fio. Uma motocicleta quase o atropela, o escapamento de uma caminhonete lança em seus olhos uma nuvem de fumaça. Esta cada vez

134 Citado por R.Jacard, in L exil intérieur, PUF, p. 17 Paris 1975.


mais confuso e arrisca o inevitável: a pista. Nos primeiros três passos é atingido por um carro em alta velocidade e só tem tempo de soltar em grito parecido ao de uma criança. Instintivamente tenta levantar-se de onde foi atirado, mas é surpreendido por outro veículo que lhe acerta em cheio a cabeça e que o lança para mais longe ainda, o lado direito da pista, justamente sob as rodas de um ônibus escolar. É o fim! Cinco minutos depois, só restam seus ossos amassados e seu couro espichado no meio do asfalto fervilhante das quinze horas. Ninguém viu! Ninguém foi! Ninguém tem nada a ver com isso! As estudantes de uma escola pública, essas virgenzinhas tresloucadas, passam rápidas, com um lenço no nariz e as tripas revoltas! Um livreiro enviou-me, por fax, um conto de Kafka intitulado Os chacais e os árabes, O corvo, de Poe e O corvo dos irmãos Grimm. Outro ofereceu-me gratuitamente A revolução dos bichos, de Orwel. A dona de um antiquário fez chegar às minhas mãos dois contos eróticos associados à zoofilia, contos tão bem escritos que perto deles os da Anais Nin parecem fábulas para seminaristas. O Chiquinho presenteou-me com uma seleção de Contos de Fadas indianos. Uma adolescente deixou na portaria de meu prédio o texto teatral do Ary Pára-raios, intitulado: O bicho homem e outros bichos. Uma senhora de quase noventa anos, colaboradora, segundo ela, de um Dicionário de História Natural, enviou-me uma pergunta que até hoje não respondi: "você sabe por que os romanos chamavam Simão aos golfinhos; Loiro aos papagaios; Boirisco aos bois; Bichano aos gatos; Mémé aos carneiros; Jeríco aos burros; Chibinha às cabras; Piléca aos cavalos ordinários; Vicente aos corvos e Tótó aos cachorros?" A Lígia enviou-me a pintura de Lucian Freud, onde aparece uma mulher nua e um cão preto na mesma cama. O Jorge Brito, da livraria Armazém do livro usado, emprestoume uns oito títulos sobre o assunto, inclusive o Museu Secreto de Nápoles e uma fita de vídeo, onde um «cigano» trepa com galinhas, éguas e deixa um cavalo fazer-lhe uma felação. Recebi cartas e e-mails de outros estados sugerindo a leitura de livros que não têm nada a ver com este trabalho, tipo: O beijo da mulher aranha, do Puig; Cavalo selvagem, de Mishima; Zen e as aves de rapina, do Merton; etc. Alguém mencionou O Asno de Ouro do Maquiavel e O asno de Vitor Hugo. Uma professora de biologia enviou-me um bilhete falando de Darwin e insinuando que, além de ter manifestado seu racismo contra uma senhora negra, havia ficado «entusiasmado» com as mulas que o transportaram pelo interior da Argentina e do Chile. Como ela me forneceu a referência da obra e inclusive as páginas, fui conferir. O elogio às mulas, feito pelo naturalista, não tem nenhuma conotação zoófila e a referência ao racismo é a seguinte: "Encontramos perto de Mendonza, uma negra muito gorda e baixa, que ia montada numa besta. Tinha um papo tão volumoso que era quase impossível evitar-se olhá-la. Mas meus dois companheiros, a título de desculpas, saudaram-na segundo a maneira usual, tirando-lhe o chapéu. Onde se encontraria entre as classes mais baixas e mais


altas da Europa, quem mostrasse tanta delicadeza sentimental para com uma pobre e mísera criatura de uma raça degradada?"135 Por fim, um sujeito que passou há pouco tempo por Puerto Rico, ligou-me para confirmar que lá, o Art. 104 prevê dois anos de cadeia para quem for pego transando com um animal. Mas independente do material que foi chegando à minha mesa, a verdade é que os cachorros vagabundos da rua, os gatos noturnos, os cavalos dos carroceiros, as pombas da praça do Congresso, as andorinhas que dão rasante no minhocão da UnB, as corujas na porta de suas tocas ali na 104… toda essa bicharada passou a povoar meu universo neste mês nada ensolarado, quando a ambigüidade climática lança uma enxurrada de raios sobre a cidade… Os zoófilos mais experientes nem se envergonham de contar que, quando vão foder algum animal levam uma toalha ou um pedaço de papelão para previnir-se contra «um acidente fecal». Ninguém sabe se por prazer ou por dor, os animais costumam cagar durante o ato. INTER URINAS ET FAECES lembra Freud, mencionando a relação íntima do excremento com o sexo. Por mais que se possa escrever e dizer sobre o assunto, a verdade é que uma pesquisa sobre zoofilia não é fácil. No nível da brincadeira, da gozação e da ironia, até que todo mundo tem alguma coisa a dizer, mas só até aí. Posso afirmar que visitei 60% das livrarias de Roma, incluindo os sebos que ficam nos arredores da Estação Termini, e não consegui absolutamente nada. Os livreiros pareciam não gostar deste assunto. Você leitor, concordará comigo que não é possível acreditar que não conhecessem algo relacionado ao tema, principalmente porque Gavino Ledda -o ex-pastor de ovelhas que relatou abertamente suas experiências zoófilas- é italiano (da Sardenha). Quando o livro (Pai patrão, 1975) foi publicado e depois transformado em filme, não apenas os sardos mas os italianos em geral ficaram furiosos com a confissão do autor, como se ela colocasse em cheque a moral nacional. Idiotas! Como se não tivesse existido uma Cleópatra e como se a própria cidade de Roma (igrejas, templos, arquitetura, etc) não fosse literalmente um bestiário. Sim, por todos os lados, de Roma, se pode ver ícones religiosos híbridos: santas com cães, vacas com deuses, cabras com padres, corujas com freiras, ratos com soldados, morcegos entre as cruzadas, pombas sobre os altares, carneiros sacrificados, touros, asnos etc, etc. Difícil identificar a fronteira entre uma relação místico-religiosa e uma relação prostitutiva com toda esta fauna. Desci de trem até Civitavechia e tomei um navio para a Sardenha. O papo dos livreiros de lá foi o mesmo. Só fui descobrir o livro de Gavino, através de um agente de viagens de Cagliari. Bastou que eu mencionasse o «bestialismo», para que ele se lembrasse de imediato do Pai Patrão, o que torna mais esquisito ainda o silêncio e a «ignorância» dos livreiros sobre a temática.

135 Darwim,C. Viagem de um naturalista ao redor do mundo. Cia Brasil Editora S.A. pp.304-305.

RJ 1937


Numa livraria de Oristano o vendedor, de origem catalã, empenhou-se em minimizar as revelações zoófilas contidas em Padre Patrone. Quando lhe relatei que os soldados italianos que em 1562 sitiaram a cidade de Lyon, levavam com eles uma tropa de cabras e que essas cabras eram suas amantes, ficou de boca aberta e foi logo tratando de fechar a livraria. Moralistas de merda! Parece que não se lembram na rainha Joana, de Nápoles. 136 No albergue, pedi uma jarra de vinho tinto, aproximei-me um pouco do aquecedor elétrico e fui devorando com certa dificuldade o livro do Gavino, em italiano, em busca de suas «confissões zoófilas». Na página 99, o relato do pastorzinho enrabando sua jumenta: “O jovem pastor de uns 14 anos estava tentando, mas não alcançava a fêmea. Então aproximou-se de um montão de pedras, onde subiu. Agora a altura lhe permitiu a junção. Abaixou a calça e «cavalgou» a besta com ar arrojado, como se aquilo fizesse parte de seu direito de propriedade. Agitou-se um pouco e logo se acalmou, abraçando a amante, quase deitado em cima dela, depois de satisfeito.” 137 O autor declara que a maioria dos pastores tinha relações sexuais com animais, de preferência com cabras e com ovelhas. 138 Faz referência também a uma experiência, aos dez anos, num galinheiro de Síligo: “Éramos três. Uma vez lá dentro, no meio dos cacarejos das galinhas assustadas, cada um escolheu a sua e a usou, entre gargalhadas. -Compadre, esta de pescoço pelado é quentinha que é uma maravilha. Cada um quis experimentar: de fato, era verdade”.139

Se na Itália o assunto é negado, em Paris já é tratado de outra maneira. Consegui discutir sobre a questão num mercado de livros raros e usados, onde descobri uma preciosidade: A vida sexual de Robinson

136 “Até hoje, para referir-se a uma mulher sexualmente insaciável (se é que existe) os napolitanos

usam sarcasticamente esta frase: «Essa acabará como a rainha Joana!». Segundo as lendas, Joana 1ª, rainha de Nápoles (1326-1382), depois de transar com quase todos os homens da cidade, ordenou a um de seus especialistas em cavalos, que criasse as condições necessárias para que ela tivesse sexo com o melhor garanhão de seu reino. Durante a cópula, o súdito não sendo tão eficiente como era de se esperar, não conseguiu controlar o garanhão que a fez passar por horríveis sofrimentos.” Ver Maria Franchini, Jeanne, reine de Naples et des écuries. Em Éros & Hippos, idem, p.p. 119, 120. 137 Padre Patrone e Recanto. Rizzoli, p.99, Milano 1998 138 “...Então, circulando pelo rebanho amontoado, escolhia a ovelha mais bonita, virava-a de

barriga para cima para sentir no ventre a turgidez das mamas e, baixando a calça a meia coxa, gozava dela apressadamente, enquanto o rebanho, em pleno sol, esperava que o pastor abrisse a porteira. Naqueles momentos, nem mesmo um tiro de canhão conseguiria distrair o amante que inventava a mulher.” Ledda, idem, p.81 139 Ledda, idem, p.p.81,82


Crusoé. Também com os bouquinistas do Sena e até mesmo com alguns livreiros mais jovens de livrarias tradicionais o assunto pôde ser tratado com «normalidade».140 Que são raras as publicações sobre o assunto, isto é pensamento unânime. Nos arquivos das bibliotecas e nos computadores das livrarias dois únicos títulos explícitos. Trata-se do livro magnífico de Roland Villeneuve Le musée de la bestialité, e o da etnóloga Marie-Christine Anest, que passou vários anos realizando sua pesquisa na Grécia, intitulado: Zoophilie, homosexualité, rites de passage et initiation masculine dans la Grèce contemporaine,141 talvez um dos trabalhos mais interessantes e atualizados no gênero. Sublinhei e resenhei as páginas que tratam especificamente da zoofilia, fugindo das partes mais acadêmicas sem contudo prejudicar em nada a obra da autora e agora as sintetizo a você, leitor, que talvez domine este assunto melhor do que qualquer etnólogo. Ou não? A autora constata a dificuldade que é pesquisar este assunto, principalmente pela cumplicidade que se estabelece tanto entre os zoófilos grupais como entre os zoófilos individualistas. Ninguém fala nada e quando alguém resolve falar sobre o assunto, o protagonista é sempre outro; II. Normalmente as mulheres não têm acesso aos detalhes da prática zoófila, e às vezes a informação nenhuma, mesmo quando os envolvidos são seus filhos, maridos, irmãos etc; Na verdade não dão muita importância ao assunto que toma um significado cômico e de burla. Afinal, -como se diz- os homens necessitam «descarregar», principalmente os solteiros. A autora ouviu até histórias de soldados gregos que na fronteira com a Albânia não só praticavam o bestialismo, mas que também copulavam com a terra. Sim, com a terra, fazendo buracos na areia ou mesmo enfiando o pau em formigueiros. (Alguém tem dúvida sobre a demência masculina e de que grande parte de sua sexualidade é patológica?) III. “Il baiserait une chèvre avec un tablier” est une expression utilisée pour parler du tempéramente sexuel d’un homme particulièrement ardent” (Anest, p.23) IV. Poesias, versos, poemas, panegíricos aos animais mais cotados no mundo do bestialismo (me refiro à mula, à vaca, à porca), são comuns no universo da cultura erótica popular grega. Aqui no Brasil, na literatura de cordel, segundo o Jorge Brito, também.142 V. Em Creta e em Chipre a zoofilia é levada a cabo em grupos,

140 Segundo uma jornalista brasiliense, que viveu um bom tempo na França, uma lenda que corre

em Paris assegura que 9o% dos atendimentos dos bombeiros durante a noite é a mulheres que ficaram com seus cães «entalados». 141 L’Harmattan, Paris 1994. 142 Numa adaptação do texto de Giovanni Bocaccio A mulher que queria ser égua (Luzeiro

Editora Limitada, SP, 1977), o mandinqueiro Zelão vive com uma égua chamada Rosinha. “Minha


formados por 5 a 10 garotos de 5 a 17 anos (a autora identifica uma certa analogia nesses grupos entre a prática da zoofilia e a do homossexualismo) e é mais praticada nos meses de férias escolares... Acredita-se lá na Grécia, como lá em São Luiz do Maranhão, que transar com uma mula é garantia suficiente para se ter uma virilidade semelhante à do asno, desse animal que historicamente sempre esteve presente no imaginário perverso da humanidade. “...Sim minha cara, um jumento. Tínhamos dois deles bem adestrados, bem dóceis. Não queríamos ceder em nada às damas romanas que se serviam deles em suas saturnais...” escreveu Musset. No livro que já mencionei intitulado La vie sexuelle de Robinson Crusoé,143o autor faz uma compensação ao Robinson praticamente assexuado de Daniel Defoe, inventando um Robinson tarado, devasso, pan sexual, libidinoso e zoófilo, que trepa com quase toda a fauna da ilha. E não apenas com as fêmeas, mas também com os machos, chegando a ser enrabado por um macaco. Nem o Sexta-Feira escapa de sua sexualidade de náufrago. Traduzido em vários países, só nos EEUU o livro foi vendido aos milhões. Haveria algum interesse especial por parte dos leitores? Por que não escrever também alguma coisa sobre a vida sexual do Tarzan? Segundo Gall, para escrever seu Robinson Crusoé, Defoe inspirou-se no Diário de Alexander Selkirk, um marinheiro escocês que ficou durante quatro anos sozinho na ilha de Juan Fernandez. De volta à Inglaterra, Selkirk não se envergonhava de contar nos bares de Londres e de Aberdeeen, seus amores bestiais ocorridos no período do isolamento. Pois bem, nesta nova versão, nosso Crusoé transbordando libido por todos os lados, transa com todos os animais que pode. Cabras, periquitos, gatos do mato, macacos etc. Aproveitando umas roupas femininas que não foram para o fundo do mar, veste suas cabras como as mulheres que conhecia no continente e assim aperfeiçoa suas transas amorosas na solidão da geografia e do vício. “...A l’une, il mit une culotte rose à grands volants, qui bâillait sur sa croupe et se tendait sur ses mameles. Celles-ici, ainsi gainées par de la soie souvent humide, affectaient des formes étranges. Il serra autour des cuisses d’une

égua não é égua. É uma linda rapariga! (...) Durante o dia, Rosinha, para trabalhar para mim, eu transformo em égua, e ela nunca acha ruim. De noite, volta a ser moça e me dá um prazer sem fim...” pp.13,14. Bettelheim em seu estudo psicanalítico sobre os contos de fadas relata estórias análogas. Entre os Bantu - um crocodilo é trazido à forma humana por uma donzela que lambe o rosto dele. Noutros contos a fera aparece sob forma de porco, leão, urso, asno, sapo, cabras, etc... que recobram a forma humana devido ao amor de uma donzela.” Obra citada, p.p.324,325. 143 Gall, Michel. Jean-Claude Simoen, Paris 1977.


autre de lourdes jarreteles brodées d’or sur le dessus et molletonnées intérieurement de taffetas à pois bleus...”144 Aproveitando o «clima» meio perverso e meio psicopatológico que o autor atribui ao pobre Crusoé, vale a pena mencionar algumas doenças e alguns transtornos «psiquiátricos» apresentados por animais domésticos, transtornos que possivelmente tenham suas origens no adestramento e nos milhares de anos de convívio com os homens. Casos de epilepsia, bulimia, sadismo, homossexualismo, histeria, ninfomania, masturbação obsessiva, perversões, estados maníacos e outros são freqüentemente observados em cães, cavalos, vacas, gatos, ratos etc. “O instinto de nutrição se perverte muito facilmente. Naqueles animais que sofrem de epilepsia, se apresenta freqüentemente uma excessiva voracidade: a bulimia. Os carneiros que têm o intestino doente comem a própria lã. Os periquitos se arrancam as penas. Os cavalos se tornam carnívoros e chegam a comer ratos, pássaros ou carne crua. (...) A alteração do instinto maternal também é muito comum entre os cachorros, os ratos e os porcos que matam e comem suas crias. Em termos de perversão sexual, a frigidez é comum entre os cachorros e os cavalos. Entre as vacas se tem registro de uma espécie de histeria que pode lembrar a ninfomania. A masturbação é comum entre várias espécies de mamíferos. Há casos também de repulsão sexual entre os cachorros e entre os gatos. O comportamento agressivo com mordidas durante o ato sexual expressa o sadismo de alguns cães. Certos animais têm uma tendência a querer manter relações sexuais com animais de outra espécie. Um cão com uma galinha, por exemplo.”145 É difícil saber se algumas destas «loucuras» também são encontradas lá entre os animais selvagens, mas isto é secundário. O que é certo, naquilo que se refere às psicopatias observadas nos domésticos, é que não dá para escamotear e muito menos negar a influência malsã do mau caratismo e da ambigüidade humana sobre eles.

144 Gall, idem, p.39. 145 Cassinelli, Bruno. Histoire de la folie. Bocca Frères Editeurs, p.158, p.159 Paris 1939


(IX) “Toda sensualidade é dor. Uma dor especial, é verdade.” E.M.Cioran

Passaram-se uns cinco longos meses. A cidade ora parece um campo de refugiados, ora uma chácara dessas que os padres alugam para promover seus «retiros espirituais». Driblei a indignação e o tédio cotidiano mergulhando em livros e em projetos que, para realizar, precisaria viver oitocentos anos. Tive que abandonar temporariamente esta pesquisa para concluir uma outra história relacionada à Dymphne, a santa protetora dos loucos. Mas agora posso retomar o assunto e redigir as últimas quarenta páginas. Estamos nos dias finais do ano 2000. A histeria é geral em direção ao «Terceiro Milênio». Os comerciantes fazem o que querem com a população previamente anestesiada e posta de joelhos pela televisão, pelas rádios, pelos jornais, enfim, pelo câncer publicitário. É até difícil escrever sobre tema tão repetitivo e tão inútil. Observem como esses idiotas, depois de meia hora de demagogia pacifista exibem uma propaganda de armas! Depois de uma verborréia hipócrita em favor da saúde pública, exibem uma propaganda de cachaça e de cigarros e que depois de um apelo à moralidade exibem o traseiro e a vulva das vedetes de turno. Observem leitores como os meios de comunicação levam em si um paradoxo odioso a ponto de, imediatamente depois de frisar a importância da ciência, permitem que um pastor debilóide entre no ar e fique vomitando suas asneiras teológicas sobre a cidade o tempo que quiser! Todo mundo sabe que o poder de sugestão das publicidades somados à ingenuidade generalizada transforma o país num sanatório geral, e que a necessidade de dar presentes e inclusive de recebê-los, principalmente nestas datas, é um assunto que só a psicopatologia pode explicar. Mas não é fácil resistir! Quem tentar manter-se à margem dessa patifaria «festiva» verá o quanto é pesada e maligna a moral vigente. Pelo menos no mundo dos cães e das vacas, além do susto do foguetório, não aconteceu nada. Imaginem que um ditadorzinho qualquer, um desses anões que infernizaram a América Latina nos últimos séculos decidisse que estamos entrando não no ano 3000 mas no ano 7000! Quem é que iria dar-lhe um soco na cara e interná-lo num manicômio? Ninguém! E depois, que nosso tempo seja regido pelo calendário gregoriano, judeu, chinês ou o das putas da Tailândia em que isto alteraria o nosso dia-adia, a nossa libido e o nosso destino? Em absolutamente nada! Raçazinha abominável! Em seu Crepúsculo dos ídolos Nietzsche, talvez, exatamente por isso, recomendava: "É necessário ser filósofo, é necessário ser múmia, é necessário representar o monoteísmo com uma mímica de coveiro."


Bem, mas voltando ao tema, à relação entre os «brutos» e os «delicados», basta folhear por alto as brochuras de história para constatar que o século XVI desde os primeiros dias, experimentou uma verdadeira epidemia de crenças, superstições e paranóias ligadas ao sobrenatural e ao diabo, um diabo que poderia se apresentar sob a forma do animal que quisesse, sempre com a intenção de detonar e de atormentar a «grande obra divina»: o homem. E foi nesse ambiente atrasado, inóspito e estúpido que as lendas e a psicose da licantropia de disseminou por todos os lugarejos e ocupou um espaço importante não apenas no imaginário popular, mas inclusive na literatura e nos pincéis de pintores como Bosch e como Brueghel. O diabo -acreditavamse transformava em qualquer tipo de animal, mas preferia assumir a forma de um lobo, porque o lobo ainda era visto como o mais malvado e devorador dos animais. Para os demonólogos de então, essa metamorfose ocorria de forma involuntária através do incubo, da possessão e do bestialismo. Segundo São Tomas de Aquino o demônio se apresentava como mulher para receber a «semente» (secubo) e depois, como homem, a transmitia a outra mulher (incubo), engendrando assim crianças vorazes e cruéis que seriam feiticeiras ou lobisomens no futuro.146 Nos primeiros dias do ano 2001 a Secretária de Defesa dos Animais do Rio, a senhora M.L.F nomeou Doca, um pastor alemão como chefe de gabinete. Questionada pelos opositores sobre as funções do cão no novo cargo e o montante das despesas públicas que ele representaria, ela deu uma resposta quase angelical: "Relaxem, o cão não receberá gratificação nenhuma." Escândalo? Ora! Quem é que não lembra que Calígula nomeou cônsul a seu cavalo? Vim ao zoológico para reler com calma e num lugar adequado as 21 páginas sobre a loucura animal, fotocopiadas do livro de Bruno Cassineli. Para ser fiel aos meus impulsos, deveria plagiá-las na íntegra, mas seria escandaloso demais. Além da ética existem direitos autorais, punições, enrascadas jurídicas, regras acadêmicas e livrescas que devem ser respeitadas. Sorte que existe a paráfrase! Esse meio permitido de plagiar disfarçadamente. Para apagar os vestígios de meu furto começo a frase de trás para frente, da última linha para a primeira. Abro um dicionário e vou garimpando sinônimos. Vou às obras que o texto cita e me aproprio da fonte. Escrevo exatamente o que ele escreveu mas de maneira simplória, incluindo uma gíria, um palavrão, uma metáfora que meus leitores já sabem que é de meu uso. Ou então tempero o assunto com mais erudição do que o normal, dando um jeito de associar ao tema uma idéia do Bachelard ou de Paul Ricoeur. Finjo que estou especulando, que lembro de alguma teoria antiga e coloco um ponto de interrogação onde não havia dúvida alguma. Identifico uma frase central e sobre ela desenvolvo meia página. Depois que vejo a metamorfose concluída,

146 Ver a revista Historia Hors Série nº 35, p.100-Paris 1974


leio o texto em voz alta para checar se "está a minha cara". Nas partes onde ecoa ainda a voz do autor original, faço uma marca com tinta vermelha e dedico mais alguns minutos na sua descaracterização completa. Releio o texto inteiro como o mesmo êxtase do ladrão que conta os pacotes de notas. Confiro exaustivamente para ver se as informações e as idéias desejadas estão preservadas e se os leitores vão ter alguma dúvida sobre a autoria delas e só fico satisfeito, seguro de mim, quando percebo que não há nem sombras do trabalho alheio. Bruno Cassineli, no caso, foi banido do planeta. Mau caratismo! Cleptomania! Furto literário! Claro. Mas isto foi tudo o que consegui aprender nos longos créditos de Iniciação à Ciência, ao Método Científico e mesmo nas intermináveis noites de insônia que precederam minhas «teses»… O cheiro dos herbívoros pode ser sentido já nos primeiros passos depois da bilheteria, principalmente o das zebras e o das antas. Anta! Tapir ou tapira! Sempre achei esquisito esse animal, com esse focinho longo e essa cabeça estreita! De sua presença no mundo da zoofilia só me recordo de um texto do psicanalista argentino Rascovsky, intitulado Filicídio e a civilização indígena. Trata-se de uma lenda munducuru onde um pai, para castigar o filho que não o obedece e continua fornicando com as mulheres da aldeia, o transforma num tapir. Este, assim que se percebe transformado num animal, corre em direção a um riacho onde as mulheres costumam ir todos os dias buscar água e banhar-se. Diariamente as espreita por entre as folhagens até que elas o chamam: Anyocaitche! Anyocaitche! Então salta para a água e copula com elas...147 É impressionante como esta história estava completamente esquecida, bastou que eu me deparasse com uma anta para lembrá-la! Não faz muito tempo, ia-se aos asilos de loucos como hoje se vem ao zoo, unicamente para ver aqueles que estavam do outro lado das grades! Instintivamente desço em direção ao fosso dos felinos, onde uma onça pintada desfila compulsivamente de um lado a outro, com a língua para fora e visivelmente incomodada com o sol das 16:30. Seus braços parecem os de um pugilista e alguma coisa no designer de sua pele me causa arrepios. Lá no canil a câmara de gás, aqui no zoológico o campo de concentração! Não tenho dúvida de que todas as justificativas para manter esses animais enjaulados é mentirosa e estúpida. Crianças de todas as idades se acotovelam diante do serpentário e falam coisas absurdas contra as pobres serpentes, esses animaizinhos malditos que foram a obsessão poética até de Paul Valéry. “No momento mesmo em que escrevo isto, e que esmago com desgosto e cólera esse passado tão recente, a serpente se reergue; eu a sinto, com toda a

147 Rascovsky, Arnaldo. O assassinato dos filhos (Filicídio). Editora Documentário, p.105, RJ

1973.


sua força, mais viva do que nunca, prestes a morder meu coração e a moer entre as suas espiras o meu peito...”148 A leitura dos nomes científicos de cada uma, em latim, me causa um delicioso deleite. Drymarchon corais; Boa constrictor; Corallus hortulanos; Philodryas Nattereri; Spilotes Pullatus; Bothrops Moojeni; Bothrops Alternatus (Urutu); Crotalus Durissus (Cascavel); Micrurus Frontalis, etc. Um dos bugios lembra a foto de meu bisavô lá num cemitério italiano. Ao redor do espaço reservado a uma sucuri (Eunectes Murinus), as frases mais curiosas, como esta, de uma criança para outra: -Minha mãe não veio porque não quer ver a cobra se mexendo!149 De uma mãe para sua filhinha: -Olha la! Que delícia, filha! Bem na entrada do buraco, a cabeça da cobra! (E depois não querem que as filhas se percam precocemente!) 150 Por mais que se negue, 90 por cento da estrutura mental das pessoas em geral é infantil. É difícil, se não impossível, amadurecer. Parece que a vida e mesmo o universo em sí conspiram contra a maturidade emocional e contra a autonomia intelectual das pessoas. Os macacos não perdem a chance de exibirem-se. Se fosse espírita, ficaria sempre inquieto diante deles, pois poderiam ser a reencarnação de um faraó, do Getulio Vargas, da Sheron Tate, ou de um de nossos mais ferozes inimigos. O babuíno Sagrado faz seu cooper no perímetro da ilha, sempre com seu traseiro escandaloso e indecente exposto, como se o estivesse oferecendo a algum zoófilo. Penso nas histórias fantasmáticas de bestialismo onde o King Kong sempre rapta e enraba uma loirinha qualquer. Sobre a ponta de um galho que emerge das águas, dois arapapás, cor de ébano, com seus afiados bicos e imóveis como se fossem de granito. Uma prática zoófila de mulheres com aves dessa família, consiste em colocar grãos de milho, arroz, ou outros na vagina e incentivar o animal

148 Citado por Augusto dos Anjos em: Paul Valéry: a serpente e o pensar. E. Brasiliense, p.115,

SP. 1984. 149Pode-se chamar ofidiofilia a prática sexual com serpentes. Apesar de para alguns não passar de

um animal gelado e asqueroso, a serpente tem ocupado um lugar privilegiado no mundo da sensualidade e do erotismo. “A lenda bíblica de uma serpente induzindo Eva ao pecado colaborou para que as cobras tivessem um significado especial junto às mulheres. Mosaicos romanos mostram mulheres introduzindo serpentes na vagina, começando pela cabeça, prática que os filmes pornográficos continuam explorando.” Brenda, Idem 150 “Existe uma categoria de mulheres que freqüentam os jardins zoológicos para se ocupar dos

animais de uma maneira que insinua alguma conotação com a psicosexualidade. Talvez esse amor pelos animais não seja de natureza erótica, mas é uma substituição de uma vida sexual que, por alguma circunstância está proibida ou interditada para essas pessoas.” Krafft-Ebing. Idem, p.368.


faminto a comê-los. Subo para a Galeria da Ásia onde estão os pavões. É com eles e não com os macacos que mais nos parecemos. A arara Canindé, aquela que abre as asas quando caga, vem até a tela para afiar o bico. Dois urubus-rei (Sarcoramphus papa) com suas cristas de galinha me olham pensativos. As aves sempre estiveram no cardápio dos zoófilos. As pobres galinhas em primeiro lugar, depois os gansos, os cisnes e etc. Anest descreve em seu livro sobre a zoofilia na Grécia, p.38, a história de um grupo de adolescentes que assiste a um dos membros copulando com uma galinha depois a matam, a cozinham e a comem. Outros textos relatam histórias de mulheres que enfiam a cabeça de aves na vagina. O maior zoológico de que se tem notícias foi segundo Morris- o do tirano Montezuma. Aproveitando-se dos privilégios de imperador do mundo asteca, montou para seu deleite uma "magnífica coleção de aves de rapina e animais carniceiros que era cuidada por nada menos que 600 guardiães. (…) Quinhentos perus eram mortos diariamente para alimentar suas aves de rapina e especula-se que seus felinos alimentavam-se até de carne humana. Uma testemunha ocular relatou: [essas bestas e os répteis horríveis são mantidos ali para fazer companhia aos deuses demoníacos, e quando esses animais rugem e silvam o Palácio parece o próprio inferno]. O ambiente não poderia ter sido abrandado pelo fato de o imperador [manter homens e mulheres monstruosos, alguns aleijados, outros anões ou corcundas] em seu zoológico, assim como uma coleção de albinos humanos.”151 Chego à piscina das ariranhas. Animais escorregadios e de dentes de aço que em 1977 detonaram o sargento Hollembach. O mandaram para a tumba mas ao mesmo tempo lhe garantiram a honra de dar seu nome ao zoo. Enquanto as observo que mergulham veloz e falsamente, lembro dos pescadores do Golfo Arábico que têm relação sexual com as focas depois de mortas. Necrobestialismo. Justificam essa patologia dizendo que se não copularem com elas, outras focas os lançarão para o fundo do mar. E esse costume é tão presente naquela cultura que quando vão vender esses animais, os compradores os fazem jurar sobre o Corão que não mantiveram relação sexual com eles. Diante de fatos como estes, me diga uma coisa leitor: você acredita, confia, tem algum tipo de esperança numa espécie dessas? O veadinho aproxima-se com as orelhas em pé e os olhinhos feminis. O costume de chamar pejorativamente os homossexuais masculinos de veados nasceu do fato de que o macho desta espécie, para proteger sua fêmea grávida de um outro mais forte que ele, lhe oferece gentil e covardemente o cu. O poema anti-semita abaixo, publicado em 1898, intitulado O VEADO DE OURO e assinado por um tal de Patrinus, acusava os judeus de um idealismo puramente mercantil e bestial:

151 Idem, p.44


“Tout s’y marqua d’un double sceau / tout y trahit l’or et le veau: si le premier les métallise / le second les animalise / en sorte que leur idéal est mercantile ou bestial”152 Uma cabrita preta circula por fora das cercas. Eis aí a iniciadora sexual de grande parte de nossos «cidadãos»! Em O grande mentecapto, (livro que para ler tive que fazer um esforço extra-humano) seu autor, relatando as peripécias do menino Geraldo Viramundo escreve: “...quis pegar a irmã mais nova e depois teve remorso, perdeu a virgindade numa cabrita...” 153 As duas bolotas oculares do jacaré papo amarelo bóiam na superfície da água ao mesmo tempo em que o canto agudo e histérico do maçarico-real (Theresticus caerulescens) ecoa por todo o zoológico. Esse é um dos únicos animais que dividem entre o casal a tarefa de chocar os ovos. De todos os bichos visitados, não tenho dúvidas, o corujão orelhudo (Bubo Virginianus) é o que mais me fascina. Empoleirado em seu trapézio, quase consegue hipnotizar-me com seu cinismo e parece pronto para lançar-se sobre mim e arrancar-me os olhos. Tenho certeza que não deve ser um objeto apenas do bestialismo mas também do satanismo. Os padres da inquisição tinham razão: ele é o demônio perfeito. Tenho certeza que à noite sai por aí degenerando almas e levando beatos à perdição… Já no final de meu trottoir, um pouco depois do curral das zebras, uma das surpresas típicas desta cidade: uma estátua de São Francisco de Assis servindo de poleiro para vários pássaros e guardada por um cão policial. Se isto não bastasse, entalhado no bronze, abaixo de seus pés, umas quatro ou cinco bobagens evangélicas. Não tenho dúvida de que a liberdade de crença comprometerá não só a saúde mental do povo, mas inclusive o seu meio ambiente!154 E foi nesse momento que me veio à mente uma ironia do Mencken sobre os visitadores de zoológicos. Diz ele, com sua fala venenosa:"O tipo de sujeito que gosta de passar o tempo contemplando um camelo babar, araras matraqueando ou um lagarto comendo moscas é exatamente o tipo de sujeito cuja debilidade mental deve ser combatida, não estimulada." No portão de saída, uma professora com ares e gestos infantis pastoreia um grupo de alunos do primeiro grau, contando-lhes em voz alta um

152Rouart, Marie-France. L’ántisemitisme dans la littérature populaire. Berg International

Éditeurs, p.100, p.101. Paris 2001. 153 Sabino, F. Record, p.9. RJ 1998. 154 E a contaminação do mundo por essa verminose religiosa, se deve basicamente àquilo que

dizia Diderot: “...É a preferência dada à prova histórica sobre as demais que deu curso a tantas falsas religiões. Uma vez estabelecido que o testemunho dos homens devia prevalecer sobre o testemunho da razão, a porta estava aberta a todos os absurdos; e a autoridade substituída em toda parte aos princípios mais evidentes, fez do universo uma escola de mentira.”


dos infinitos contos de fadas que todos conhecem. Diminuí o passo para ouvíla por mais tempo enquanto pensava: existirá alguma relação inconsciente entre as fantasias infantis, os contos de fadas e o bestialismo? Será que os primeiros anseios perversos com animais, não teriam sido semeados nos primeiros anos de vida das crianças e através dos contos de fadas? E quem escreve esses contos, não estaria motivado e mobilizado por suas próprias fantasias bestiais sublimadas? “São muito mais numerosos e populares os contos que –sem referir-se à repressão que origina uma atitude negativa para com o sexo- simplesmente ensinam que para amar é absolutamente necessário uma modificação radical das atitudes prévias quanto ao sexo –escreve Bettelheim. Como sempre nos contos de fadas, os contos expressam o que deve suceder, com imagens muito marcantes: uma fera que se transforma numa pessoa magnífica. Embora diferentes, estas estórias apresentam uma característica em comum: o parceiro sexual é vivenciado de início como um animal...”155

155 Bettelheim, idem, p.322.


(X) “Se siete compassionevoli con i crudeli terminerete essendo crudeli con i compassionevoli.”

Talmud Hoje é quase como um dia «santo». Quarta-feira! O dia de ir assistir às execuções no canil! Seria hipócrita se negasse um frio nas extremidades e uma incômoda taquicardia. A caminho ouço o noticiário completo sobre os funerais do Cabilla lá na África negra. Levou uma rajada de metralhadora de um de seus homens de confiança! O dia está fresco, as chuvas da noite lavaram as calçadas, as paredes dos prédios e o imenso out-door de uma faculdade privada. Trouxe o flash na bolsa, com a esperança de poder fotografar a passagem daqueles pobres animais para o nada. Já adquiri status para entrar pelo portão principal sem que o guarda se atreva a interceptar-me. Na entrada do canil os funcionários recém chegados brincam entre eles com histórias de futebol, tragos, amores e outras futilidades. O «bourreau» de botas brancas de borracha e com um avental verde sorri com simpatia ao reconhecer-me. -Tudo bem? Pergunto -Tudo bem! Daqui a pouco vai haver sacrifício. Se você quiser assistir tem que ter autorização da doutora… -Já tenho autorização do chefe geral… -Mas vai fotografar? -Se for possível… -Só com autorização da doutora. Percebi que está com medo que eu seja um dos mercenários da comunicação. Pega o papel de minha mão e vai ao telefone. Ouço-o dizendo que sou professor da universidade, que trabalho com saúde mental, que tenho aspecto de um senhor… e recebe assim mesmo a proibição. Fotografar não! Se quiser assistir, tudo bem! Apesar de hoje a quantidade de cães ser menor do que no outro dia que estive aqui, o cheiro de merda parece estar muito mais forte! -Deste box vão todos para o saco, menos aquele ali. O guapequinha felizardo, era quase do tamanho de um rato, cinza, de olhos vivos e com uma orelha mutilada. Encarei-o por uns segundos e não consegui conter uma careta de ironia ao associar aquele momento de horror e sua sorte, com o pensamento oriental que diz: "se te insultam, fique feliz por não te baterem; se te batem, fique feliz por não te matarem, e se te matarem, fique feliz por, finalmente, deixar um mundo tão pouco hospitaleiro."


Os «condenados» são uns quinze cães normais, de todos os tamanhos. Uns estão até alegres, outros desconfiados, outros de mau humor. Uma cadela imensa parece estar mal. Cães que foram recolhidos em zonas de risco e que os donos não vieram buscá-los. Cinco funcionários se movem quase automaticamente. Trazem o carrinho azul de sacrifício para a porta do box 14, cada um pega seu cambão e, às ordens do «chefe» vão pegando um por um e colocando dentro do carrinho gradeado que os levará para a escuridão da câmara de gás. Repito: É impressionante a passividade dos cães. Nenhum pio. Nenhum urro! Nenhum protesto. Com essas mandíbulas poderiam fazer um estrago imenso! Num espaço de mais ou menos um metro quadrado vão ficando amontoados e imóveis. Será que acreditam que irão ser levados de volta para seus antigos endereços? Segundo Bruno Cassinelli, "os cachorros provenientes de uma raça pura, (não é o caso) após um determinado número de gerações, são acometidos de um grande nervosismo, chegando até a serem comparáveis aos dementes e aos loucos. Este fenômeno aparece principalmente naqueles cães criados de maneira artificial e alimentados de maneira diferente de seus ancestrais.” 156 Uma cachorra com três filhotinhos de um mês foi poupada. A arrastaram para o box ao lado, com dois filhotes agarrados às tetas como Rômulo e Remo. Fecha-se a portinhola superior do carrinho que é levado para a câmara que já espera de porta aberta. No fundo dela, trevas e poluição. Os cães estão todos curiosos. Caminho ao redor do carrinho olhando um por um nos olhos. Nenhum sinal de desespero. Parecem felizes, talvez, por finalmente, caírem fora desta civilização asquerosa! Os funcionários me olham como se esperassem minha autorização para empurrar o carrinho para dentro. Não esperem isso de mim, pensei! O último a lançarme um olhar de curiosidade foi um cãozinho minúsculo que estava quase sufocado sob as patas de um vira-latas corpulento de uns cinqüenta quilos. A porta foi fechada com segurança pelo chefe e o mecanismo acionado. O motor pegou no primeiro toque do arranque. Senti meu coração fora de ritmo! Um funcionário apertou o acelerador enquanto outro brincava dizendo: -Na quarta-feira que vem será a missa de sétimo dia! Todos riram e se foram. Fiquei por uns minutos ao lado da câmara de gás. O barulho do motor fazia aquele momento ainda mais macabro. Aproximei o ouvido da porta para ver se ouvia alguma coisa. O interior da câmara parecia estar mergulhado num silêncio absoluto! É isto que se chama fim! Para muita gente não é fácil sustentar a convicção de que a vida é só isto! E o pior, como alertava Cioran, é descobrir que a gente nunca demandou verdadeiramente liberdade ou outra coisa, mas apenas a ilusão de liberdade e a ilusão de outra coisa! Foi por esta ilusão -diz ele- que a humanidade se debateu inutilmente durante séculos! É meio estranho mencionar Cioran num

156 Idem. P.154


canil, principalmente num canil onde se abate os cachorros numa máquina como esta! Também entre os Tupinambás o ritual de execução dos inimigos era, no mínimo, curioso. Enquanto o prisioneiro era amarrado ia gritando estas palavras fantásticas para aquele que o preparava para a execução: “...Também eu, valente que sou, já amarrei e matei vossos maiores! (...) Comi teu pai, matei e moquei a teus irmãos; comi tantos homens e mulheres, filhos de vos outros Tupinambás, a que capturei na guerra, que nem posso dizer-lhes os nomes; e fiquem certos de que para vingar a minha morte os Maracajás da nação a que pertenço hão de comer ainda tantos de vós quantos possam agarrar...”157 Sobre o assunto contido na fala desse Maracajás Montaigne, em seus Ensaios, faz referência a uma canção de semelhante transcendência que diz: “Que venham logo todos devorar-me, pois comerão assim seus pais e avós que serviram de alimento ao meu corpo; ignoram que nestes músculos, nesta carne e nestas veias, a substância de seus antepassados ainda se encontra; saboreiem-na pois que nisto tudo ainda acharão o sabor de sua própria carne...” Já estão adormecendo, gritou-me o responsável. Mais três minutos e pronto! Três minutos que foram uns quinze. Fiquei circulando pelo pavilhão sem conseguir desligar-me do ruído do motor. No vigamento que sustenta o teto, uma pomba «encorujada». Na área de autópsias, um cão petrificado de patas para o ar. No box 8, um poodle pedófilo tentava a todo custo enrabar um filhotinho de uns quarenta dias. A mãe, com os úberes cheios, assistia esse assédio sem nenhum protesto. Enquanto observava aquela descarada tentativa de abuso entendi porque os teólogos sempre insistiram na «posição natural», isto é, papai-mamãe, para o sexo. As outras eram pecaminosas porque assemelhavam coreograficamente os homens aos animais. Hipócritas! "Senhor, dai-me castidade… mas não já!" suplicava Santo Agostinho. A espera durou quase uma eternidade. Devem ter esquecido, pensava. Finalmente me chamam. O maldito motor silencia. A porta é aberta e o carrinho puxado para fora. A primeira impressão é a de um carrinho cheio de peles. Casacos de peles, estolas…. O cheiro de escapamento fere as narinas. Aquela quantidade de cachorros que ocupava todo o carrinho, agora está compacta, da metade do espaço para baixo, como se tivessem se aconchegado uns aos outros, em busca de ar, durante o sufocamento. O velho Goethe, ao morrer, implorava aos presentes que abrissem as janelas porque queria mais

157 Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, Vol.VII, Livraria Martins, p.177, São Paulo 1941.


luz! Esses pobres animais, se pudessem, teriam gritado apenas por mais ar! Línguas arroxeadas para fora, saliva de uns escorrendo pelo corpo dos outros, os olhos fechados ou semi-abertos, os testículos relaxados. Alguns defecaram uma pasta esverdeada e quase todos estão com pelo menos uma pata para for a das grades. Adotados, Adestrados, amados, rejeitados, abusados, escravizados, enjaulados, acorrentados, feitos de cobaia e por fim encaminhados ao matadouro. Tudo sob o pretexto de preservar a comunidade de doenças que eles, talvez, nunca teriam conhecido em sua condição natural! Difícil saber de onde provém tanto ódio, tanta crueldade e tanta indiferença! O carrinho é empurrado sem cerimônia alguma até o pátio do lado de fora onde dois funcionários com luvas e máscaras jogam os cadáveres, um por um, para dentro de um container.158 -Nunca aconteceu de algum ter ficado vivo? -De jeito nenhum! Por isso que são deixados lá por mais de três minutos. Depois de todo esse tempo respirando aquele gás, não tem Cristo que resista! Para não mentir, uma única vez, há muito tempo, um cãozinho «vira-latas» permaneceu vivo. Não sei se a câmara não estava funcionando direito ou se o bichinho realmente era mais forte que os outros... Só sei que foi necessário dar-lhe duas ou três pauladas na cabeça... E agora? Pergunto. -O carro do lixo passará por aqui lá pelas onze horas. Serão jogados lá no lixão da estrutural. Vale a pena ir até lá, para ver os abutres devorá-los. Parece que sabem que todos os dias vão ter cachorros para comer. Começam pelos olhos e pelo «toba». Estes, com certeza, não vão morder mais ninguém! -ironiza um dos funcionários e depois se explica: -Digo isto porque ontem, numa padaria do Gama um cachorro vagabundo cravou os dentes afiados no calcanhar de uma cabeleireira. Foi só gritos e garrafas lançadas contra o animal que se refugiou no interior do motor da geladeira. Alguém aconselhou a mulher que derramasse cachaça sobre a ferida e a ir tomar imediatamente uma vacina. Segundo o padeiro, uma «porrada» de pessoas são mordidas todos os dias159.

158Enquanto admirava com náuseas aquelas cenas macabras, lembrava do ensaio fotográfico de

Philip Blemkinsop, produzido na fronteira entre a Thailândia e o Laos, sobre essa temática. Lá os cães são eliminados a pauladas e suas peles aproveitadas. Uma das fotos vinha acompanhada de uma crônica de Tha Lae, escrita em 1996, intitulada Abattoirs pour chiens. Leiam: “A première vue, on dirait que les pieux de l’enclos de cette oubliette cacine ont fini par prendre la forme des chiens qu’ils retiennent dans ce couloir de la mort. Ces poils qui surgissent de pores mystérieuses, semblant pousser a leurs extrémites, en témoignent. Des poils de chien, emmêles et collés par une immonde glue de sang et de salive, recuite aux rayons d’un soleil parfaitement innocent...” Natan, Paris, 2000. 159 Mais tarde descobri que ele não estava exagerando. Segundo A FNS, em 1999 400 mil

brasileiros passaram pelos caninos dos caninos e quase todos, curiosamente, mordidos na cabeça.


Abutres! Depois daquela liturgia macabra, só faltavam realmente os abutres! Amenizo meus sentimentos racionalizando: na África, esses comedores de carniça são considerados como seres que conhecem o segredo da transformação de matéria comum em ouro. No Egito, até as rainhas usavam uma touca protetora na qual havia o desenho de um abutre. É imensa e repetitiva a participação dos animais em praticamente todos os assuntos da vida humana. Desde os horóscopos, as cosmogonias, os tabus, os fetiches, os totens… até as fábulas e os mitos. No horóscopo chinês –por exemplo- os signos são todos representados por animais. No azteca, dos vinte signos onze são animais e no nosso, basta abrir os jornais para conferir, temos os peixes, o escorpião, o touro, o leão, o centauro etc Os pecados capitais, idem. Neste trabalho que tenho em mãos, de autor desconhecido, a soberba é representada pelo Leão; a inveja pela serpente; a ira pelo unicórnio; a luxúria pelo escorpião; a avarícia pela raposa; a gula pela gazela e a preguiça pelo urso. Segundo Freud, "os animais devem grande parte da significação que alcançaram em fábulas e em mitos à naturalidade com que mostram às pessoas cheias de curiosidade, seus órgãos genitais e suas funções sexuais" (Caso Juanito, p. 1367). No antigo Egito, acreditava-se que era um touro que guardava a entrada do paraíso e no Irã que uma serpente protegia a árvore da vida. Da mesma maneira, um dragão defendia o ouro nos Jardins de Hespérides e um lagarto enorme tinha uma função parecida nas águas do Vourakaska. Delírios de nativos ignorantes? Sim. Mas que foram se perpetuando e ganhando lugar no DNA dessa civilização zodiacal. Na China de Mao, em um determinado momento a fome chegou a tanto, que comeram quase todos os cachorros e quase todos os gatos! Agora estão dando cabo dos gafanhotos, das cobras, dos macacos e dos ratos. Lá naquele país imenso, onde passei vinte dias «nomadeando», Marc Boulet relata que viu, precisamente em Hong Kong, (então China capitalista) um velhinho praticando coito com um cachorro. Ali também uma lenda arcaica diz que "uma rapariga ficou grávida com a saliva de um dragão." Em outra: (…) que Tai-Kong foi ver o que se passava com sua mulher e viu um dragão escamoso por cima dela. Depois ficou grávida e deu à luz a Kao-Tsu. Muitos reis, santos e heróis asiáticos segundo essas lendas, nasceram de animais

É evidente que um dia, quando os homens menos esperarem, um dia nem tão distante como se pensa, os cães farão uma chacina geral. Pela manhã, cada morador encontrará seu porteiro e seu síndico trucidados. E quando descer para a garagem, perceberá que cada carro está com seu motorista degolado ao volante e que as ruas estão tomadas por cães de todos os tamanhos, com os dentes ensangüentados. Nenhum pedestre tem chance de sobreviver. E todos os que param no semáforo são arrancados para for a de seus veículos e nocauteados em segundos… Uma multidão de cães furiosos rosna por todos os lados. Ataca escolas, quartéis, supermercados. A terra tornouse um canil imenso onde os gritos das vítimas só são menores que os latidos e que o matraquear das mandíbulas. Cãezinhos que até ontem desfilavam submissos com suas madames e que não se opunham ao cunnilingus forçado, hoje estão transformados em pequenas feras sedentas. É o fim do reinado do homem sobre a terra. A vingança tão esperada! Agora os cães, principalmente os pitt bola assumiram o comando de tudo…


aquáticos. Na Índia, (parcialmente destruída por um terremoto) esses personagens superiores surgiam do espírito de uma serpente. 160 Outras orgias, principalmente entre povos africanos são realizadas com o pretexto de que é necessário reanimar a terra e excitar o céu para que a hierogamia cósmica -a chuva- se faça nas melhores condições, para que os cereais cresçam e dêem fruto, para que as mulheres gerem filhos, para que os animais se multipliquem e para que os mortos possam saciar a sua vacuidade com a força vital. 161 Tudo mentira! Nós que não temos compromisso com absolutamente nada, sabemos que tudo isto é mentira. Os tabus, os folclores, as lendas, as anedotas, os contos de fadas, as religiões, os costumes, os rituais de iniciação, os modelos familiares, a arquitetura das aldeias e das mansões, os preceitos morais, as orações etc, etc, tudo está a serviço de uma única coisa: DISFARÇAR, ESCAMOTEAR e NEGAR o desejo. Quem é que desconhece os relatos esdrúxulos dos «solitários», «místicos» «ascéticos», ou «santos» do passado? Desses idiotas que, ao terem a primeira ereção, corriam para o deserto e que lá permaneciam, às vezes, até cinqüenta anos, de pau duro, comendo areia dormindo sobre pedras e implorando para que deus os fizesse broxa? Um tal de Santo Antonio, cada vez que sonhava que uma princesa nua abria-lhe a braguilha, aplicava um ferro em brasa sobre seu próprio corpo. Um outro desses pirados, um tal de Pachon, para tentar evitar que seu pau endurecesse, fechou-se na jaula de uma hiena e colocou uma víbora sobre seus órgãos sexuais. Evagre passou noites inteiras num poço gelado. Filomoro amarrou-se com correntes. Um outro desses monstros da fé, que consentiu certa noite em hospedar uma mulher que se perdera no deserto, passou toda a noite queimando-se os dedos no lume da vela para não cair em tentação. O abade Sereno, que rogava a Deus que o fizesse eunuco, viu um anjo lhe abrir o corpo e extrair dele um tumor. O abade Elias fugiu de um monastério feminino que ele próprio havia fundado: “Três anjos o seguraram, um pelas mãos, um pelos pés, e o terceiro, com uma navalha, cortou-lhe os testículos...”162 Se naquela época a OMS já tivesse editado o CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde), eles próprios teriam tido a chance de se enquadrarem no F09.

160 Elia de,Márcia. Tratado de história das religiões. Ed. Cosmos p.252, p.253. 1970 Lisboa. 161 Elia de, M. Idem. P.423. 162 Roselle, A. Idem, p.p.180, 181


(XI) "Os maus instintos não querem empurrar-nos para o pecado, mas fazer com que mergulhemos no desespero através do pecado…"

M. Buber O coveiro de plantão acaba de esmagar a cabeça de uma jararaca que estava no interior de um cupinzeiro. Trabalha aqui há mais de quinze anos e já presenciou coisas verdadeiramente insólitas. O santo protetor dos animais segundo ele- não é São Francisco de Assis como pensei no início, mas São Lázaro, aquele leproso que deixava os cachorros lamberem suas feridas. O budista zoolatra estaciona sua bicicleta numa árvore e se aproxima ofegante. O coveiro apenas o cumprimenta e continua: -No pé daquela árvore enterrei uma Sheep dog e sua cria de quatro meses que foram atacadas por abelhas africanas. Ali está uma pastora alemã. Uns meses depois o dono veio visitá-la e trouxe com ele o cão que era seu macho. A cena foi incrível! Ao lado do túmulo o dono chorava e o cão uivava… O budista que já devia ter ouvido aquela história mais de uma vez, intrometeu-se na conversa para recitar, em inglês, quatro linhas de seu preferido poeta irlandês: Old lovers yet may have / All that time deniedGrave is heaped on grave / That they be satisfied-163 Duas lágrimas brotaram do fundo de seu crânio! Como percebeu que naquele idioma nem eu e nem o coveiro havíamos entendido nada, repetiu o texto, com o mesmo sentimento, só que agora em castelhano: Los viejos amantes pueden tener / Todo lo que el tiempo les negóLas tumbas se amontonan sobre las tumbas / Para que ellos estén satisfechos-. Agachado e de cabeça baixa, o coveiro ouviu atentamente o texto, inspirou fundo como se precisasse de mais ar, deu uma cuspida de meia tonelada, retomou seu trabalho e seguiu relatando: Muitas pessoas trazem seus animais mortos dentro de caixões para crianças. Dêem uma olhada

163 W.B.Yeats (1865-1939)


panorâmica e vejam como se parece a um cemitério infantil! Naquele cercado ali está enterrado um basse. Na hora de enterrá-lo sua dona se jogava sobre ele e não permitia que o enterro fosse feito. Quando foi enxugar as lágrimas com a blusa, deixou as tetas de fora. Dois mamilos saudáveis, rosados e apetitosos! Todo mundo que estava aqui ficou excitado, tanto por ver seus mamilos como por deduzir que aquele cachorrinho safado devia lamber o corpo dela...164 (...)Muitas destas covas têm profundidade para enterrar outros cachorros ou outros animais da família. Além de gatos e cachorros, estão enterrados aqui alguns papagaios, um coelho e até um ratinho hamster… Enquanto falava ia revirando a terra com uma enxada afiada e de seu nariz iam caindo grossos pingos de suor. Os nomes dos cães e gatos mortos escritos no cimento ou no granito dão uma idéia do imaginário e do ego e dos donos: Na tumba de um pastor alemão chamado Barone, a data de nascimento e de morte (18-1-1983/15-5-1992) é seguida de um texto em italiano: "Babbo, ti ricorderemo sempre per questi anni di fedeltà e felicità che ci hai dato, la tua compagnia ci mancherà moltissimo, non ti dimenticheremo mai. Chi sempre ti ha voluto bene…" Outras tumbas exibem além das fotos, datas e frases de reconhecimento, promessas de amor eterno, etc. Em algumas, flores de plástico ou flores naturais. Outras com decorações na própria lápide, cercados de madeira, cruzes, restos de velas perfumadas, estatuetas da iconografia cristã, uma luva branca, outra estatueta, vasinhos com flores amarelas, ervas nativas, coraçõezinhos riscados no cimento, uma faixa com dizeres de adeus, uma coroa, uma cama, uma indicação que ali está enterrado um felino, outra lápide, esta com fotos de uma cadela de raça e outro epitáfio no idioma de Pasolini: Alla mia Kendina, una grandissima amica fedele, compagna di tutti I giorni e tutte le ore, la tua mancanza à molto grande e sempre presente, non ti dimenticherò mai, com amore. É interessante -observa o coveiro- a ênfase que os dois epitáfios em italianos dão à fidelidade. Dou uma volta pelas tumbas anotando os nomes: Madona; Alfa; Neguinha; Xuxa; Kendy; Pluto; Juninho; Bilu; Gandhi; Vicky; Flay; Gaby; Polynha; Athena; Kate; Xuxa; Payka; Ottiuchu; Rebequinha; Shaolin; Ledy; Sniff; Tati; Dunga; Nuninha; Joyse; Kandy; Xuxa; Whisky; Czar; Carina; Ralfinha; Snake; Nego; Fritz;

164 Já no século XVI a igreja com seus misóginos declarou guerra contra às mulheres que

mostravam suas tetas e seus mamilos «para atrair aqueles que lhe agradavam». Vejam o sermão de um desses canonistas chamado Jean Polman: [Os mundanos, os carnais, os filhos da Babilônia lançam olhares lascivos em direção ao alvo desse peito aberto; eles lançam pensamentos carnais sobre esses dois montes de carne; eles abrigam desejos vis na concavidade desse seio nu; eles lançam suas cobiças nesses montículos salientes; eles fazem repousar sua concupiscência nesse leito e covil de tetas e aí cometem lascívias interiores]. Ver O tribunal da impotência, de Pierre Darmon, Paz e Terra, p.250 RJ. 1988. Mas a repressão desses misógenos internacionais não deve ter funcionado como se esperava, pois aqui no Brasil, lá pelo Séc. XVII e XVIII, segundo relatos de viajantes, até as freiras que viviam em claustros, "usavam hábitos com mangas tão folgadas que deixavam ver, não só os braços nus, como um colo em geral muito alvo, cheiroso e arfante". Ver Abelardo Romero em Origem da imoralidade no Brasil Ed. Conquista, p.201. Rio de Janeiro, 1967.


Randin; Hoffer; Gato Velho; Luma; Paco; Jennifer; Mimosa; Bambino; Vick; Tony etc, etc. Muitas cadelas batizadas como Xuxa e bem lá no meio do mato, a tumba de um cão soberbo chamado Jupiter.165 Jupiter -lembro- foi um Deus grego que se metamorfoseou em cisne para transar com Leda. No livro de Roland Villeneuve, Le musée de la bestialité, que já citei, esse assunto é apresentado umas 19 vezes em pinturas, gravuras e esculturas. Segundo o anedotário clássico, Jupiter, (o Dom Juan entre os deuses gregos) que antes de uma divindade havia sido um cisne, para fins libidinosos, reassumia a forma antiga. Saturno se transformava em cavalo, outros em touro, dragão, serpentes etc. Na região amazônica, apesar de não ter nada a ver com os gregos, algo parecido acontece com relação ao golfinho que, de vez em quando, se transformaria em homem ou em mulher para seduzir e abusar sexualmente dos pobres ribeirinhos. Aquilo que para os antigos gregos e romanos era visto como uma transação divina e portanto, legítima, a partir da Idade Média passa a ser visto como uma lascívia bizarra e como uma grave transgressão… Despedi-me, achando que com as informações que havia obtido, poderia escrever uma página transcendente… Quando atravessava a cerca de arame, ouvi a voz do budista me chamando: Bazzo, preciso confidenciar-lhe uma coisa... -O que que foi? Perguntei. Quase entre lágrimas contou-me que seu mestre havia se convertido a outra seita. -A qual? -A dos Testemunhas de Jeová! Esforcei-me para não explodir numa gargalhada. O sol parecia uma brasa no fundo de seus olhos! Deu uns dez passos em círculo, como se estivesse sentindo ânsia de vômito ou os sinais que antecedem uma crise epiléptica. Deteve-se subitamente. Quase catatônico, com as duas mãos na cabeça ficou ausente por uns segundos. Recuperou o brio. Voltou-se bruscamente na minha direção para perguntar-me: -O que você faria? -Acompanharia o mestre! Respondi na bucha. -Para onde? -Nem que fosse para o inferno! -Não seja cínico! Este momento é decisivo para minha vida… -Cínico é seu mestre! Mas quer saber verdadeiramente o que penso de todos esses idiotas religiosos? Da democracia religiosa? De todas as religiões espalhadas pelo planeta? -Diga, seu ateu filho de uma puta! Ordenou-me furioso.

165 O cachorro do velho Arthur Schopenhauer se chamava Atma (Alma Universal, na filosofia

bramânica)


-São um insulto à dignidade humana!166 -Camaleão trapaceiro! Esbravejou. Em seguida, com uma expressão de ameaça completou: -Quem se esforça para esquecer que há uma mina enterrada em seu quintal, um dia pisará nela e saltará pelos ares… morrerá ou, no mínimo, experimentará os horrores da mutilação… -Não seja «mais um» beato imbecil! Retruquei-lhe. Como percebi que ficou assustado e que teve uma regressão súbita, aproveitei para fazê-lo conhecer um parágrafo de Giorgio Cesarano: Independente de você ser budista ou Testemunha de Jeová, cara, é bom que saiba que "Não é possível nenhuma pacificação com o presente. Aqueles que ousam amar-se, desconhecem o labirinto no qual se entranham. Tudo aquilo que um momento de liberdade conquista um momento de incerteza revoga, um momento de covardia destrói!”167 A cortina que foi cuidadosamente fechada não cumpre bem seu papel e a silhueta de um homem gorducho pode ser vista da janela do outro andar. Deixou de sair de casa nos últimos dois anos. A data coincide com o boom da internet no Brasil. Sexo virtual! Todo mundo sabe. A máquina vem facilitar a esquizofrenia contemporânea. A mão esquerda no teclado e a direita manipulando um pênis que há muito não é premiado com a calidez e nem com o abraço de uma xota. Mas o surrealismo não para por aí: os sites mais freqüentados são os de bestialismo. O mercado conhece muito bem seu público e investe naquelas perversões mais transcendentes. Um porco copulando com uma mulher; um jegue sendo masturbado por uma loirinha recém saída do banho; uma senhora vampiresca lambendo a ponta do pênis de um cão labrador. Se tudo isto excita, talvez seja porque faça conexão imediata com as fantasias incestuosas inconscientes dos clientes. O relógio de uma igreja badala duas horas da manhã, e o gordo continua em seu posto, com o pênis avermelhado de tanta fricção. De um site para outro, de uma fantasia para outra, vai devorando a noite que leva dentro de si, insistindo numa ode à sombra e em ficar com o virtual em vez de lançar-se de uma vez por todas sobre a carne vibrante, contaminada, é verdade, por taras milenares. O monitor como a entrada da caverna que o conduzirá de volta ao bestiário celestial. Assume o papel de símio por uns momentos! Os movimentos vão ficando mais rápidos, as veias do pescoço engrossam, solta uns uivos estranhos e o sêmen se embrenha por entre as teclas. As banhas tresloucadas não sabem de que se trata, mas parecem pedir mais bestialidades, mais comida, mais selvageria, mais frenesi... Depois, enquanto se limpa, lança um

166 Afirmação do prêmio nobel de física, 1979, Steven Weinberg, durante conferência em

Washington. 167 A insurreição erótica. Antígona, p.56. Lisboa 1979.


olhar de vitória sobre si mesmo, sobre seu membro já flácido, sobre sua compulsão, sobre seu desejo, sobre a besta enfiada sob sua epiderme, sob sua derme e no tutano de seus ossos, de onde o espreitará para sempre, fazendo-o lembrar, todas as horas, que tudo nele está irremediavelmente destinado ao apodrecimento... Recuso uma passagem para ir ao festival das ONGs em Porto Alegre. Não por moralismo nem por sectarismo... apenas por preferir olhar as coisas de longe. É fascinante ver os anarquistas e os vagabundos das Américas cruzando as fronteiras e trazendo bombas, sonhos e decepções dentro de suas malas, principalmente com a corja política que administra este lado do mundo há uns quinhentos anos. Um deles chegou até a exibir-me um projeto intitulado: Os demônios de guarda. Trata-se de um grupo clandestino, de oito pessoas, super treinadas, que executariam sem piedade todos os tiranos e corruptos do país. Tinham um tribunal de ética que, à margem da juizada demente, julgaria caso por caso. Uma vez concluído que o fulano de tal havia se apropriado de dinheiro público, ele e sua família seriam barbaramente eliminados. Confesso que fiquei excitado. Se as utopias nunca serviram para nada, pelo menos continuam universalmente causando um certo fascínio. E um homem fascinado, mesmo que seja um pateta, sempre é mais interessante que um outro, soterrado sob os entulhos da rabugice. Se tivesse ido, seria mais para ver o teatro, as megalomanias, as bravatas, os discursos messiânicos, e as elucubrações filosóficas mais alcoólicas do que dialéticas dos participantes. Vejo as imagens, os ícones, a expressão corporal dos «delegados» e sinto que o projeto hippie ainda sobrevive, e que ele me interessa muito mais do que a liturgia salvacionista dos velhos cães revolucionários... Por mais que se critique a cidade, o neoliberalismo, a globalização, o FMI e todas as outras merdas mundiais, a verdade é que é em nosso íntimo, que estamos ficando cada dia mais miseráveis, mais bundões e mais parecidos à plebe melíflua e rabugenta… A verdade é que é em nosso íntimo que estamos ficando cada dia mais dependentes e domesticados pela possibilidade de ficar velhos, chatos, impotentes, indesejáveis, tetraplégicos ou parkinsonianos, dementes e cadáveres! É o horror de imaginar-se abandonado pelas amantes, pelos herdeiros, pelos pastores e pelos sindicalistas que construíram impérios com nosso dízimo, que nos transforma em reacionários! Observem como naquilo que diz respeito às «ciências humanas» as coisas não mudaram quase nada nos últimos séculos. São sempre cem ou duzentos sujeitos que verdadeiramente constroem, para bem ou para mal, o amanhã… O restante é «pólvora molhada» que não faz mais do que se acotovelar nos imensos aglomerados. Triturar alimentos! Produzir adubo! Gastar tempo com intrigas! Arrastar capital, títulos e dinheiro de um lado a outro como se isso tivesse importância alguma! Você que até hoje tem dificuldades para escutar-me, fume seu baseado, tome seu trago ou seu prosac e depois reprise pelo menos o seu dia de ontem, das sete da manhã à meia noite e trinta. Tente! Não resista! Não cuspa sobre esta página só porque ela foi escrita para roubar-te o fôlego! Olhe para trás! Apenas uma vez, apenas


hoje! Verá que além das brigas domésticas e dos transtornos emocionais, em tua história só há registros de atos e de movimentos compulsivos, irracionais e idiotas! Ou não? Só há registro de infidelidades neuróticas e banais, compromissos bancários, hospitalares e condominiais! Ou não? Tudo muito miserável, pobre e detestável! Nada feito de pau duro ou de vulva inchada, de nariz levantado e de olhos para além das fronteiras! Só pau murcho, vulva ressecada, cabeça baixa e tédio… Ou não? Mas este é outro assunto. Vamos voltar aos animais, à zoofilia e à «filosofia»… No único domingo que fui ao Café de Phares em Paris, o assunto tratado pelos «filósofos dominicais» foi o medo. Lembro como se tivesse sido ontem, da expressão soberba da turista argentina que num instante de silêncio absoluto, para desqualificar a fala de um francês esbravejou: para mi, lo que importa, verdadiramente, es tratar del miedo del miedo de tener miedo! Demorei uns segundos para entender a frase. De início achei que a palavra «miedo» havia sido pronunciada em exagero, mas não. Na mesa ao lado, um velho robusto e indiferente à discussão sobre o medo orientava um casal que estava com um gato enfermo. Abri minha caderneta e anotei quase toda a sua fala. -Antes de mais nada quero lembrar-lhes que “se o homem domesticou o cão, o gato domesticou o homem.” 168 O gato vive em média uma quinzena de anos e, na maioria dos casos, ele morre docemente de sua bela morte. Entretanto, se ele ficar doente e estiver sofrendo, o veterinário os aconselhará uma eutanásia, através de uma injeção de anestésico que o fará dormir definitivamente, e sem dor. Não recusem a priori esta solução e deixem que o veterinário os aconselhe. Se vocês tiverem um jardim em casa ou um terreno no campo, podem enterrar o gato numa fossa bem profunda e longe das casas. A incineração dos animais, menos cara que um lugar no cemitério, está se tornando uma prática cada vez mais freqüente, principalmente na região parisiense. Ela é coletiva e custa, em média, 300 francos. Individualmente custa 500. A vantagem da incineração individual, é que vocês podem recuperar as cinzas de vosso animal. Tomou um trago de café, fez um bochecho e depois de um silêncio quase fúnebre recomendou que para maiores informações o casal recorresse ao Larousse, páginas 290, 291 publicado em Paris em 1996. Fiquei imaginando como seria a reação do casal se ele lhes tivesse recomendado uma câmara de gás! Como uma retribuição aos conselhos do velho, o marido da mulher passou a relatar que entre os índios Plains (não consegui saber que índios são esses) se tem o costume de usar uma cinta de cobra sobre o umbigo, a qual funciona como amuleto contraceptivo. O velho

168 Marcel Maus. Manuel d’ethnographie, Payot, p.63, Paris 1967.


resmungou alguma coisa, tomou mais um gole de café, voltou a bochechar e acrescentou: Esse era também um antigo costume romano. Amarravam um tubo de marfim no pé esquerdo, contendo o fígado de um gato ou parte do útero de uma leoa. -No pé esquerdo de quem? Perguntou distraída e ingenuamente a mulher, o que fez os três explodirem numa súbita e única gargalhada. Como se precisasse superar aquele pequeno impasse, ela aproximou-se mais do velho gatófilo e confidenciou-lhe: Quando estive ao norte da Escandinávia, ouvi dizer que lá existe uma sociedade de caçadores (Lapps), estritamente monogâmica, que em certa época do ano usa órgãos sexuais de garanhões em rituais de magia… Aparentemente não tem nada a ver com zoofilia, mas... -Usa como? Interessou-se o velho. Quando ela ia responder-lhe, fez-se ouvir a voz do Marc Sautet, que era quem promovia aqueles debates filosóficos com o público: "O filósofo quer saber, mas não quer ser tapeado -diz ele. E, se há uma coisa a ser ensinada, é esta: é preciso empenho, método, atenção, concentração e calma, mas é também preciso o inverso - o confronto com o real, o convívio na multidão, o enfrentamento daqueles que pretendem iludir os outros. Meditação e luta. Silêncio e alarido. A solidão e a ágora.”169 No instante de silêncio que se fez após a fala do filósofo, o velho inclinou-se maliciosamente na direção de seus dois interlocutores e perguntou: -Diante do bestialismo universal, o que é que sobra da filosofia? Sem esperar resposta prosseguiu: Desde os primórdios do mundo a putaria com animais esteve presente. Eva flertou com a serpente; Leda foi fodida por um cisne; Pasifaé foi enrabada pelo touro de Creta. “Todo mundo sabe que Semíramis se entregava ao ardor de um fogoso cavalo; que Ariston de Efeso servia-se das mansas bestas, e que Fulvio, mais exigente, com as briosas éguas. Mais singular ainda foi o caso do famoso orador Hortênsio, que amou cegamente uma lampréia e que quando esta morreu, usou luto e chorou sua morte por longos dias...170 Nas Mil e uma noites, uma menina trepa com um bode; um príncipe se casa com uma tartaruga; uma mulher vive com um urso e uma adolescente fornica com um macaco gigante etc... Ah, e ia me esquecendo de Lautréamont, o melhor de todos os escritores que, em seus CANTOS A MALDOROR inventa uma relação amorosa com um tubarão fêmea: “...Em meio à tempestade que continuava, à luz dos relâmpagos, tendo

169 Sautet, Marc. Um café para Sócrates. José Olympio Ed. p.14. RJ. 1999. 170 Barre, ML e Famim, C. Museu secreto de Nápoles, Livraria Odeon, p.32 RJ (sem data)


por leito nupcial a onda espumosa, transportados por uma corrente submarina como em um berço, rodando sobre si mesmos até as profundidades abismais, se uniram em um abraço prolongado, casto e horroroso! 171 E isto é apenas o que me lembro... sem mencionar o festival de metamorfoses que além de Ovídio, ilustram a comédia humana. No Inferno de Dante, vocês devem lembrar-se que Buoso se transforma numa serpente. Numa novela de David Garnet a mulher do protagonista principal se transforma numa elegante raposa que, apesar da condição, continua fazendo o papel de esposa. Kafka, em sua obra prima, faz um sujeito transformar-se em verme. “...A antiga bíblia já tinha comparado o homem ao verme mas Kafka tem a trágica temeridade de fazer ver o verme no homem, não o homem imaginário e simbólico mas um verdadeiro verme flácido e imundo que se arrasta no pavimento de um quarto de solteiro e que por fim, depois de morto, acaba por ser lançado furtivamente no caixote de lixo...” 172 Concluiu a frase, olhou no relógio comprimindo as pálpebras e os três levantaram-se ao mesmo tempo. Os dois homens saíram na frente, por entre as cadeiras em desordem e ela atrás, lançando olhares de lascívia e rebolando um traseiro robusto, confinado dentro de uma calça branca que deixava visível a peça minúscula e íntima que usava. Surpreendi-me sentindo uma espécie de tremor nos testículos e indagando: será que essa atração machista e metafísica pela bunda feminina não é uma reminiscência filogenética das experiências que nossos pais, avôs e bisavôs tiveram lá nos currais, lá nas estrebarias e lá nos campos? Algo, no meu íntimo, me dizia que estava exagerando. Tudo bem. Mas ninguém pode negar que algumas mulheres, quando ficam de quatro, parecem verdadeiras vacas. “E é indiscutível –como escreve- Ariel Arango- que diante de uma mulher ajoelhada que oferece generosa e provocante um soberbo cu, como nos famosos afrescos pompeanos da Casa dos Vettii, o homem sente um definido e certeiro desejo de penetrá-la violentamente. A esplêndida plenitude de um cu feminino é sempre irresistível...”173

171 Lautréamont, Conde. Cantos de Maldoror. Premia Editora S.A, Canto Segundo, pp.85,86.

México 1979. 172 Papini, Giovanni. La spia del mondo. Edição livros do Brasil, pp.318, 319. Lisboa (sem data) 173 Arango, C.Ariel. Os palavrões. Editora brasiliense, p.61. SP 1991.


(XII) "Que haverá mais digno de vitupério do que o vício? E eu, para não ser vituperado, fazia-me cada vez mais vicioso! Se não cometesse pecado com que igualasse os mais corrompidos, fingia ter cometido o que não praticara, para que não parecesse mais abjeto quanto mais inocente, e mais vil quanto mais casto...”

Santo Agostinho Visivelmente intimidado e «pisando em ovos», entrei no acampamento cigano instalado num terreno baldio do Núcleo Bandeirante, pensando em arrancar deles algumas informações sobre animais. Quem é que não tem em sua memória a imagem de um cigano fazendo um urso equilibrar-se sobre um barril? Um cavalo dançar Schubert e um cachorro saltar por dentro de um círculo em chamas? Por coincidência estavam falando sobre o menino chileno que havia sido encontrado vivendo numa caverna com uma matilha de cães.174 Não tive tempo de dar mais de dez palavras e ouvi da matriarca a seguinte proposta: -Tudo bem! Nós ajudamos você a escrever seu bestiário, mas cada informação de um cigano lhe custará um dente de ouro! Fugi horrorizado! Nessa mesma tarde virei minha biblioteca de pernas para o ar até encontrar o livro do Pierre Derlon, 175 de onde extraí, gratuitamente, os saberes que seguem: "Os ciganos ao mesmo tempo que respeitam também temem a águia. Ela representa para eles a força e a violência. Já o corvo é visto como um enviado da sabedoria. Dizem que quando um corvo falha à lei, se suicida, deixando-se cair com uma velocidade vertiginosa. Alguns ciganos criavam ratos para sua guarda pessoal, à noite. Os pequenos roedores davam gritos estridentes quando um estranho tentava aproximar-se. Mas o animal com que

174 O tema: «crianças selvagens». histórico ou mitológico, sempre esteve presente na trajetória da

humanidade. Crianças que de repente aparecem no meio de animais como um deles, e que ninguém sabe explicar em que condições a adoção e a desumanização aconteceram. É bom lembrar que a igreja sempre tentou fazer os beatos acreditarem que de uma relação sexual entre um ser humano e um animal poderia surgir um ser híbrido, um demônio, um feiticeiro. Para registrar os casos mais conhecidos internacionalmente de «crianças selvagens» vou ao livrinho do Lestel, às pp.9 e 10 e copio: “A criança-lobo de Hasse, 1344; a criança-urso da Lituania, 1661; a criança-cabrito da Irlanda, 1672; o selvagem Peter, de Hannover, 1724; as crianças-lo de Midnapore, 1820; a criança-lobo da Índia, 1852.” 175 Tradições ocultas dos ciganos. DIFEL, pp.107 a 113. RJ. 1975


sempre se identificaram foi o lobo (não o nosso lobo Guará, mas aquele da Europa Central). Contam que quando o velho chefe da horda enfrenta um jovem num combate corpo a corpo e vence-o em força, se arregaça os beiços descobrindo as presas em busca da carótida do vencido, está apenas simulando a ação de matar. Sabe que é vitorioso e contenta-se com urinar. Mas se por infelicidade o jovem lobo é mais forte, cederá a ele o seu lugar e se tornará um solitário ou um lobo patriarca, respeitado pela horda.” É sabido que em alguns sanatórios do século passado se castravam os doentes mentais numa tentativa de curá-los. Um jornal de hoje, em sua página dedicada aos cães, oferece aos leitores o resultado de uma pesquisa feita com cães machos no hospital veterinário da Universidade da Califórnia, em conjunto com a Universidade de Michigan. A pesquisa pretende mostrar as mudanças comportamentais que a castração provoca nesses animais. Diz a pesquisa dos castradores: 94% das tentativas de fuga cessaram com a castração; 67% dos cães pararam com a mania de montar nas pernas das pessoas e 63% dos animais deixaram de lado a agressividade gratuita depois de submetidos à cirurgia. Numa coluna ao lado intitulada idéias erradas sobre a castração, entre outras coisas se pode ler que castrar não causa problema algum ao animal, pelo contrário, o livra dos riscos de ter alguma doença no útero, nos ovários e nos testículos. Que a falta de prática sexual não causa sofrimento algum, já que o que leva o cão a se acasalar não é o desejo mas exclusivamente o instinto de procriar etc, etc. É curioso que no interior daqueles sanatórios absurdos do passado se justificava a castração dos doentes exatamente com os mesmos argumentos. Fico indignado com tamanha brutalidade! Escrevo uma carta para o referido jornal, em defesa da virilidade dos cães. Uma ode à cópula dos cachorros! Um «artistazinho» metido a intelectual acha minhas palavras muito duras e me acusa de ser um gangster letrado. Não me abalo! Deixo-o esperneando por uns momentos e depois lhe recito o último parágrafo de um texto da portuguesa Diana Felgueiras: "Ao compensar a ausência de vida e de desejo com a produção em série de mercadorias culturais, o intelectual e o artista não passam, na atualidade, de grandes fabricantes de imagens. Como de uma vida vazia só o nada resulta, obrigam-se à tensão fictícia, ao elogio da impotência e do sofrimento. Covardes no que diz respeito à lucidez crítica sobre a própria vida e o mundo, pois isso exigiria um «pôr-se em causa», ato perigoso para sua sobrevivência. Como especialistas, trabalham com afinco na defesa das mundaneidades. Teóricos do beco sem saída, poetas do embaraço existencial, pintores de tela branca, todos sobrevivendo da crise, todos defendendo a permanência essencial desta sociedade, a única onde têm razão de existir. Publicistas do conhecido, aventureiros do banal, são os mais fiéis defensores da tristeza. Grandes advogados do possível e polícias da subjetividade. Falsos cantores do amor, os seus encontros são intervalos cíclicos purgativos, findos os quais voltam, ressentidos e amargos, para a segurança edipiana do lar e do


cônjuge. Pela pobreza e mentira de suas vidas, o artista e o intelectual são qualificados aperfeiçoadores da miséria."176 Quando pronunciei a última palavra, percebi que ele já havia desligado. Mesmo assim, repeti em voz alta a última frase: Pela pobreza e mentira de suas vidas, o artista e o intelectual são grandes aperfeiçoadores da miséria! Violação e estupro de animais! Os porcos endemonhiados da bíblia! A ausência de genitais nos personagens da Disney! Lupanar: lugar de putas, mas que etimologicamente quer dizer lugar de lobas. Uma alegria estranha que quase me expõe ao perigo. Quando produzo um livro entro em êxtase e em transe! O vento e o acaso me colocam diante de tudo o que preciso conhecer. Poderia dar um basta! Interromper. Contentar-me com as cento e dezenove páginas já escritas. Mas o livro de Léo Campion ainda está aberto sobre a mesa de vidro. São 2:45 da madrugada. Umas borboletas minúsculas brincam ao redor de minha caneta que corre em círculos por sobre o papel. Leio: “...O imperador Constantino Copronyme se unia carnalmente com suas belas mulas. Quando se celebravam os Mistérios Orficos de Samothrace, os homens e os animais participavam de orgias públicas (...) Luis de Gonzaga, duque de Nevers, casado com Henriqueta de Clèves em 1565, tinha três porcas como amantes...”177 Por fim, nos classificados da revista Hara Kiri, 1961, esta preciosidade: “Cultivateur, 40 ans, vivant seul, sérieux, économe, sentiments délicats, épouserait jolie chèvre, bonne éducation, haute moralité, présentée par parents...”178 E se não bastasse o tabu que existe ao redor do bestialismo, minha pesquisa esbarrou também em outro: o dos cabelos grisalhos. Tentei saber a opinião de um grupo de adolescentes que estudava sob uma árvore no Campus da UnB e ouvi deles, surpreso: -Zoofilia? Não temos interesse nenhum sobre zoofilia. Além disso, detestamos homens e mulheres de cabelos brancos. Não queremos nada com esse exército de cabeças brancas, essa velharada energúmeno que nos legou um país de bosta desses! Vocês são detestáveis porque não fizeram porra nenhuma para garantir às gerações que viriam depois da vossa uma vida minimamente melhor. Passaram todas aquelas décadas fazendo o quê?

176 Prolegômenos portugueses a uma revolta sobre o amor, do livro A insurreição erótica. Idem,

p.p.84,85. 177 Campion, Léo. Idem, p. 95 178 Campion, Léo. Idem, p.96


Lambendo o próprio umbigo? Dormindo? Vendo Silvio Santos? Comendo pipoca? Cumprindo ordens dos milicos? Se corrompendo? Dando cobertura a executivos ladrões? Dando o rabo para vossos chefes e batendo continência para qualquer filho-da-puta que aparecesse fardado ou engravatado à porta de vossa casa? Covardes! Inúteis! Rebanho de búfalos aposentados! Religiosos e esotéricos abomináveis! Se tivéssemos acesso ao poder, apesar dos cabelos brancos, lhes daríamos um coice na bunda, lhes cancelaríamos as pensões, as aposentadorias, os descontos e os privilégios que desfrutam ocultos atrás da máscara da velhice. Chega! O baile de máscaras terminou meu caro velho. Agora não adianta vir entrevistar adolescentes, «colher a opinião dos jovens»; saber o que pensam disto ou daquilo. Os cabelos brancos, para nós, não significam apenas a entrada para a senilidade e para a demência, mas principalmente a marca de uma geração de panacas que atolou essa nação infeliz num oceano de excrementos... Em dois momentos de sua fala senti que me faltou ar. Que os músculos de minhas pernas amoleceram, que uma película cinza caiu sobre minha retina e uma pedra áspera de deserto instalou-se bem no centro de minha garganta. Apesar da vergonha e do sentimento de rejeição, enxergueime neles há uns trinta e cinco anos atrás. Caralho! E o que havia acontecido comigo nesses anos todos? Enquanto fingia levar na brincadeira o que havia ouvido e tentava internamente conseguir forças para não ser ainda mais ridicularizado, um deles, que até então não havia dito uma palavra, olhou-me de soslaio, enfiou a mão numa bolsa preta e dela tirou uma corrente de uns oitenta centímetros. Enrolou uma parte no punho direito, levantou-se e pronunciou secamente esta frase: E caia fora daqui antes que nossa civilidade acabe!


(XIII) “Ó volúpia, ó inferno / ó sentidos, ó amor / insaciáveis e invencíveis...”

A. Schopenhauer

Na Corte Romana o bestialismo só era perdoado mediante pagamento de uma pesada multa e na França era castigado com a pena de morte. E a condenação não visava apenas o sujeito, mas inclusive o animal com o qual ele havia copulado. Em 1465, um tal de Gillet Soulart foi queimado vivo junto com sua porca. Guyot Vuide, em 1546 foi enforcado e posteriormente queimado por ter transado com uma vaca que, aliás, foi sacrificada antes dele. Jean de la Soille, foi queimado vivo em 1556 juntamente com uma mula. Na Inglaterra é considerado crime e o transgressor pode pegar até trinta anos de cadeia. Na Nova Zelândia, até sete anos e no Canadá dez. Nos EEUU, em estados como o Alabama, Arkansas, California, Delaware, Georgia, Idaho, Illinois, Indiana, Kansas, Louisiana, Maine etc., também é considerado delito e o zoófilo além de pagar multa vai para a cadeia. Perdi umas duas horas lendo a Constituição brasileira de 1988 onde não encontrei nenhuma referência à zoofilia e nem ao bestialismo. No Art. 225 - VII, é mencionada apenas a «crueldade contra animais». Me dizem que no Código Penal existe alguma coisa. Nada. O Art. 162 e o 164 fazem referência a animais mas só do ponto de vista econômico. É crime suprimir ou alterar a marca do gado ou deixá-lo invadir propriedades alheias. O Decreto nº 19.988 de dezembro de 1988, que regulamenta a Lei nº 2.095 de setembro de 1988, que estabelece "diretrizes relativas à proteção e à defesa dos animais, bem como a prevenção e ao controle de zoonoses no Distrito Federal", não faz nenhuma menção ao bestialismo. Num dos item das chamadas Disposições Preliminares, referindo-se a maus tratos dos animais, esse Decreto faz referência a outro, agora federal, de nº24645, de 10 de julho de 1934, que prevê sanções para tudo, menos para zoofilia. Nos dezenove artigos, nenhuma palavra sobre sexo com animais. Absolutamente nada sobre bestialismo! Incrível! Como no Decreto já citado, neste também tudo se resume nas expressões «maus tratos» ou «atos de abuso». Será que os que escreveram a lei introjeraram aí o que procuramos? Curiosamente, na Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO em Bruxelas, em 27 de janeiro de 1978, a palavra bestialismo também está ausente. Será que esta ausência sugere ignorância? Pudor? Moralismo? Ou culpa? Ligo para a Sociedade Protetora dos Animais. A mulher simpática que atende, ao invés de falar dos bichos, descamba para um assunto relacionado à sua filha, extremamente jovem que, não faz muito, detonou-se um tiro no


coração. Estremeço! Mesmo tendo sido pego de surpresa, sinto que instintivamente me solidarizo com o desespero velado e escamoteado daquela mulher! Deixo-a falar porque conheço a dor, porque sei a importância das palavras e de como a dor e a fúria são drenadas através do texto dito ou escrito! É até provável que a fala tenha surgido mais com esta finalidade do que a de possibilitar a comunicação entre Um e Outro! Meu interlocutor não precisa ser necessariamente de carne e osso e nem deve necessariamente estar me ouvindo! Falo apenas por falar! De mim para mim! Falo como cuspo e como vomito e o efeito é surpreendentemente imediato! Aos 50 anos não é difícil para um homem identificar por todos os lados desespero e mortes! Suicídios, homicídios, genocídios! Nem é necessário ler Schopenhauer, Levinas, Cioran, Freud, Nordau, Vargas Vila ou os Anais do Congresso Nacional para tornar-se um ermitão pessimista! E o otimismo de alguns novos ricos no contexto atual, convenhamos, só pode ser uma turvação aguda da consciência ou até mesmo uma indicação de demência. Mesmo que nunca nos tenhamos dado conta, uma guerra aberta e bizarra veio sendo travada entre os homens e os animais durante séculos. Se nós os perseguimos com rifles, os enjaulamos em zoológicos, os adestramos e os exploramos sexualmente, como «mão de obra» e como mercadoria de açougues, eles, por sua vez, sempre souberam como nos retribuir com a mesma moeda. Os ratos e os pombos sempre estiveram por detrás de todas as pestes, tanto da que relata Camus como da que inventa Defoe! Os macacos ainda estão entre os maiores suspeitos da transmissão da AIDS! A vaca louca está causando estragos nos cofres e na confiabilidade da Inglaterra! 179 A peste suína já atormentou os criadores de porcos de todo o mundo! A febre aftosa está no auge na Inglaterra! O mosquito da malária e o da dengue não param de fazer vítimas! A tularemia, a brucelose, a leptospirose... As baratas! Os ácaros! As pulgas! Os morcegos! Os escorpiões! Sem falar, evidentemente, dos micróbios, das bactérias, dos fungos etc, etc, que levam para a tumba milhões e milhões de homo-sapiens por dia. Se fizesse uma estatística comparativa entre os mortos de um lado (matadouros, florestas, zoológicos,

179 Nesta semana a paranóia nacional está toda dirigida para o boicote à carne brasileira decretado

pelo Canadá. Motivo: medo da vaca louca. Eis aí novamente a vingança da vaca. E é interessante notar que esse conflito colocou no cenário nacional um tipo novo e desconhecido de «agitadores»: os pecuaristas. Que, aliás, muita gente deve se lembrar, são quase todos, com exceção de uns «novos ricos», descendentes diretos dos antigos e bem conhecidos barões do café dos anos 50. Barões do café metamorfoseados em barões de vacas! Vê-los engravatados jogando whisky e patos canadenses no lixo e desde sua finesse pseudo-européia falando de vacas, é quase como entrar num transe metafísico. Até o presidente da república, que nunca havia sido tão direto a respeito de nada, nem mesmo com respeito às denúncias de vacas, açougues e carnes clandestinas entre nós, esbravejou em defesa dos negócios dos ricos fazendeiros. Quanto ao populacho, apesar dos impulsos nacionalistóides que ameaçam vir à tona, é bom cair na real e aproveitar para ver o quanto as regras do jogo estatal são diferentes quando o que está em questão é o bolso e a dignidade das elites.


canis, esgotos etc) com os do outro (hospitais, casas de repouso, residências, aldeias etc) talvez se chegasse à conclusão de que não há bom prognóstico para nenhum lado. E não precisa ser um grande infectologista e nem um emérito ecologista para compreender que enquanto não for feita uma resignificação no Contrato entre as partes, a carnificina continuará. De vez em quando é inevitável sair da psychopathia sexualis para dar uma olhada na psychopathia política. E os rufiões ainda estão todos lá, com seus terninhos feitos sob medida, os sapatos pontiagudos, as abotoaduras visíveis quando passam a mão na careca ou na testa... Abraços, confidências, cochichos, coreografia esquizóide e a «segurança» típica de quem já engavetou um milhão de dólares ilicitamente! E mais: sempre que podem exibem seus guarda-costas e seus trinta advogados prontos para impetrar um habeas-corpus aqui e um sursis acolá. Antes, costumava chamá-los de «ratos». A partir de agora, em respeito àqueles roedores, os acusarei sempre de serem «homens». A biblioteca da UnB parece um forno barulhento e mal iluminado. Além disso, as cadeiras são horríveis e as mesas piores ainda. É evidente que estas são condições ideais para levar os alunos tanto a terem problemas ortopédicos como a odiarem os livros e o «saber». Um administrador minimamente ilustrado instalaria aqui, mesas como as que vi na Biblioteca Nacional do Canadá, de vinte ou trinta lugares, feitas com madeira pesada, cadeiras clássicas com estofamentos, lâmpadas individuais, incensos de sândalo, ar condicionado e etc. Mas a burrice do terceiro mundo parece incurável! Estou aqui a esta hora fuçando a obra de História do velho Herôdotos, quem já citei três ou quatro vezes lá nas páginas anteriores. Um professor que me viu retirando a obra da estante perguntou-me se meu interesse era pela guerra entre os Persas e os Gregos. Ficou surpreso quando lhe disse que minha curiosidade era apenas pelos quatro ou cinco parágrafos contidos no LIVRO II, sobre os animais sagrados, Ler a história da forma que a conta Herôdotos, é um verdadeiro deleite, mesmo para quem não tem lá muita afinidade e nem grandes inclinações para com esta área. E não é difícil perceber a decadência historiográfica que veio acontecendo daquela época (445 a.C) até hoje. De sua vagabundagem pelo Egito Herôdotos deixou umas três páginas preciosas sobre a relação daquele povo com os animais. Gatos, cães, falcões, crocodilos, serpentes, hipopótamos, lontras, a enguia, os pássaros íbis e fênix etc, todos sagrados. Apesar do calor e do desconforto vou tentar fazer um pequeno release destas páginas. I. As pessoas são designadas responsáveis pela alimentação desta ou daquela espécie de animais, designação que é transmitida de pai para filho. Família X preserva o animal Y, por exemplo; II. Como cada animal é consagrado a um deus, quando precisam pagar promessas, rezam ao deus a quem o animal que está sob sua guarda é consagrado; III. Matar intencionalmente um desses animais significa ser condenado à morte. Se a morte do animal foi por acidente, a pena é mais branda e é decidida pelos


sacerdotes. Entretanto, se a vítima for um íbis ou um falcão, o sujeito terá que passar inexoravelmente pela pena máxima; IV. Os gatos têm uma importância tão especial para os egípcios, que numa situação de incêndio -por exemplo-, se preocupam mais em socorrê-los do que em apagar o fogo. Se um deles acaba perecendo, se sentem profundamente abatidos e se entregam a grandes lamentações…

Neste ponto da leitura, fui interrompido por aquele livreiro que, como já falei, foi criado no meio rural e que tem muito a dizer sobre o bestialismo. Abandonei Herôdotos e saímos para a sombra do bambuzal. Sem nenhum constrangimento, começou a dar-me uma série de informações sobre as experiências de sua infância, informações preciosas que fui anotando rigorosamente na memória.

1. Não deixe de ouvir a música que o Luis Gonzaga fez para o Gonzaguinha, chamada "Me empresta essa égua!" 2. No interior de Minas é comum falar assim de uma égua ou mula: «É tão mansa que não pode ver um cupinzeiro»! Quando alguém passa montado numa égua, se pergunta: «Já vai… é»? 3. Cu de jumento é impenetrável! Quem conseguia sodomizar esse animal passava a ter fama de ser o mais viril. 4. Cu de galinha é o que tem uma temperatura mais alta. 5. A vulva da porca em cio é a mais interessante de todas do mundo animal. Assim como a da ovelha é a pior. 6. Lá no campo todo mundo entende a frase: «Jumenta empaca no caminho fundo»! 7. A égua, quando não quer, é como mulher: dá coice. 8. Cansei de ver meus primos comendo vacas deitadas. Elas lá ruminando, com suas bucetas horríveis, 180 e eles de joelhos atrás delas…

180 É curioso e incompreensível que muitos homens e muitas mulheres achem a buceta um órgão

feio e às vezes, até repugnante. Seria um conflito puramente estético ou mais bem o resultado de uma «lavagem cerebral» anti-sexual? “Os genitais –escrevia o velho rabino Freud- não acompanharam a evolução geral das formas humanas em direção à beleza, conservam sua animalidade primitiva...” Idem p.1716.


9. Num dia que demorei um pouco mais no trato com os animais, minha avó não acreditou nas minhas justificativas e acusou-me: deixa de ser mentiroso! Você tá é com "relaxo" com as carneiras! Fiquei muito envergonhado e quase cheguei a retrucar--lhe: a senhora também vovó, não perde a oportunidade de assistir um garanhão trepando numa égua! 181 10. Não sei se você sabe que alguns camponeses precisam ajudar o macho cobrir a fêmea. Pois bem, muitos deles costumavam masturbar-se enquanto ajudavam um touro a enrabar uma vaca… Você já leu A terra, de Emil Zola? Nessa obra ele faz um relato sobre este assunto. 182 Fiquei intrigado com uma mulher com quem tive um caso há pouco tempo. Depois da relação sexual ela insistia em dizer que pelo tipo de minha virilidade eu deveria ter sido iniciado com animais. Será que fica algum vestígio? Ou será que ela estava «jogando verde» para saber mais sobre meu passado? Com esta pergunta, colocou um ponto final em sua narrativa, pediu-me para mantê-lo no anonimato, subiu na moto e desapareceu. Voltei para a biblioteca e para o livro de Herôdotos o tempo suficiente para ler que os caprinos em geral também eram animais sagrados no Egito. Os machos muito mais que as fêmeas. Quando morria um bode, toda a cidade era obrigada a usar luto. "No meu tempo -escreve o historiador- ocorreu um fato monstruoso na província de Mendésia: uma mulher teve relações sexuais com um bode em público."183 Enquanto copiava taquigraficamente esta frase, ia pensando como seria curioso apresentar a Herôdotos as confissões sacrílegas do meu amigo zoófilo…

181 John Aubrey escreve a respeito do voyerismo da Condêssa de Pembroke: "Ela era muito

obscena e inventara que na primavera, quando os garanhões estavam para cruzar com as éguas, eles deviam ser trazidos para determinada parte da casa, de onde ela os via através de uma guarita e satisfazia-se com seus jogos; e então praticava jogos semelhantes com os seus garanhões." In Storr, idem. 182 Fui checar e encontrei nas páginas 14,15 do Vol.I da obra citada, publicada pela editora

Guimarães & Cia, Lisboa, a seguinte descrição: "Então ele avançou, colou-se contra ela, pousou a cabeça sobre a garupa da vaca numa curta e rude pressão; e, com a língua pendente, desviou-lhe a cauda, lambeu-a até às coxas: enquanto, consentindo em tudo, ela continuava sempre imóvel, com a pele percorrida por um frêmito…(…) Mas ela era tão alta, tão larga para ele, cuja raça era menos forte, que o macho não podia chegar-lhe.(…) Francisca, numa atitude calma e atenta avançou para os animais. O cuidado que a preocupava tornava-lhe mais escuro o negro dos olhos, entreabria-lhe os lábios vermelhos na face imóvel. Um momento levantou o braço num grande gesto, agarrou em cheio o membro do touro, encaminhou-o. E quando ele se sentiu a direito, reunindo as forças, penetrou num só impulso dos rins, a fundo. Depois, saiu logo. Estava pronto: fôra como o golpe do plantador que enterra um grão. Solidamente, na fertilidade impassível da terra." 183 Idem, p. 104.


Nas grades que cercam a Igreja Cristã e Evangélica de Brasília, uma faixa anunciando para quarta-feira uma palestra intitulada: Como vencer o vício do sexo. O pastor responsável por este projeto não estava preocupado apenas com os pedófilos, os punheteiros inveterados da internet e os adúlteros, mas também com os que praticam o bestialismo. Ligo uma semana depois para saber algo sobre o assunto e ele me responde gentilmente que esta parte da palestra foi vista apenas superficialmente. Não houve nenhuma manifestação dos participantes sobre esse vício. Menciona as passagens bíblicas onde o assunto é tratado, alguns casos que conhece, os filmes pornôs e um na TV onde garotos brincavam «de comer galinhas». Participo-lhe alguns dos dados mais escabrosos que já disponho sobre o assunto, tanto a nível nacional como internacional, mas ele não parece abalar-se. Quer saber qual o enfoque que darei ao meu trabalho e quando poderá ter acesso ao livro. Depois despede-se desejando que Deus me abençoe. Sempre que discuto questões como estas com religiosos ou com moralistas, penso na frase do velho Sêneca: “Grande é a diferença entre não querer o pecado e não saber pecar...”


(XV) "Se não há homens, a mênade de Priapo está disposta a entregar-se a um asno vigoroso…"

Juvenal Sexo com animais? Bestialismo? Zoofilia? Sobre esse assunto só sei que Set, o deus egípcio, foi retratado com a cabeça de um jegue… Brincou a professora de «gênero», encenando um cacoete e querendo dar um clima de absoluta normalidade ao tema. Mesmo sabendo que ela estava blefando, permaneci em silêncio e ela continuou. Para princípio de conversa, apesar de ser gritante a diferença entre zoófilos e zoófilas, a quantidade de ilustrações, fotos e filmes com mulheres tendo relações com animais é dominante. Por que será? Eu, em particular, quase não vejo ilustrações de homens trepando com vacas ou com éguas, enquanto que vejo por todos os lados mulheres com cachorros, jumentos e até com cobras. Isto não lhe parece algo desleal? Seria apenas a projeção do desejo e das fantasias dos pintores e dos desenhistas masculinos? Mas e por que os homens gostariam tanto de ver as mulheres transando com animais? Estariam se identificando com os animais ou com elas? Podemos dizer que isto é quase que um assunto exclusivamente masculino, ou não? Você como homem deve saber mais do que eu sobre essa temática, não é? Claro que pode até haver um número X de mulheres que se entrega a essa perversão, mas duvido que seja mais do que uma louca aqui, uma alienada ali… uma débil mental acolá… Agora entre os homens, talvez não se encontre um sequer que não tenha cometido esse deslize. Mas quer saber de uma coisa? Não me assusto! Não me abalo! Sinceramente, admitir que meu próprio marido, meu pai ou meus filhos já tenham trepado com uma cabra ou com uma galinha… é para mim algo mais cômico do que trágico! Bestialismo por bestialismo, o que existe de mais estranho do que um homem comendo uma puta? De um homem comendo outro homem? De um homem enfiando o punho inteiro no ânus de outro homem? Do que um satanista idolatrando e beijando o cu de um cachorro num ritual de magia negra? E preste atenção! Não estou contrapondo o «normal» ao «patológico», mas apenas fazendo menção à estética do obsceno, ao natural e ao terrivelmente bizarro. E depois, meu amigo, mesmo sabendo que o «bestialismo» é universal, você sabe melhor do que qualquer um que, tratando-se do Brasil, este país foi sempre um imenso laboratório para as mais variadas perversões… Sade na Bastilha e as suas loucuras sendo «experimentadas» aqui no Novo Mundo… Neste momento abriu sua bolsa preta, retirou dela uma apostila de umas quarenta folhas, abriu-a já nas últimas páginas e com ar de satisfação sugeriu-me: dê uma olhada nisto! Como estava sem óculos e me senti envergonhado de ler com o texto praticamente colado ao rosto, pedi a ela que o fizesse. Acomodou-se na cadeira, empurrou a xícara de café mais


para o centro da mesa e com voz baixa, como se não quisesse ser ouvida pelas pessoas das outras mesas foi lendo: [A âncora do diabo, no dizer de frei Jaboatão, já estava aferrada nos corações, até nos dos índios. E muito antes da chegada dos brancos.(…)Barré, que veio com Villegagnom ao Brasil em 1557, quando viu o comportamento das mulheres nativas, descreveu-as como «cadelas selvagens» (…) Nóbrega foi o primeiro a informar que os colonos tinham índios por mulheres…(…) Léry revelou que quando um índio brigava com outro o chamava de tivira, que no tupi costeiro quer dizer sodomita, invertido, puto. Palavra que na tradução literal quer dizer «homem do traseiro rôto».(…) Pierre Moreau escreveu que em Pernambuco "todos levavam vida escandalosa: judeus, cristãos, portugueses, holandeses, inglêses, franceses, alemães, negros, brasileiros, tapuias, mulatos, mamelucos e crioulos. E tudo isso sem falar em incestos e pecados contra a natureza…" (…) Em 1635 o Conselho Político do Recife reconhecia: o Brasil era uma cloaca. (…) Os bordéis do Recife eram tão amplos que não se sabia ao certo onde terminavam. Pelo levantamento predial que se fez em 1654, verificou-se que ainda havia mulheres suspeitas que ocupavam quartos nos sobrados da cidade, pagando o aluguel em florins, e não em moeda portuguesa, já de curso na época.(…) John Luccock, passando pelo Rio no princípio do século passado, chegou a considerar aquela cidade a mais suja das associações humanas no mundo. (…) Victor Jacquemont, que passou três semanas entre os cariocas, em 1828, declarou que jamais tivera o desgosto de ver uma gente tão indecente. (…) Froger ao visitar o Rio, no séc. XVII, descreveu aquele povo como sendo de uma semvergonhice acima de qualquer cálculo.(…) O padre Pompeu, de Parnaíba, negociava com gado e fazia agiotagem (…) Frei Francisco de Menezes e Frei Conrado, os dois de Minas Gerais, chegaram a exercer o monopólio do fumo e da cachaça, vivendo ambos na orgia. (…) O conde de Suzannet chegou a declarar em 1845 que não havia nada mais desprezível do que um padre brasileiro…].184 Pronunciou a última palavra com um visível ar de deboche. Guardou a apostila, passou seu braço esquerdo por meus ombros e como se precisasse consolar-me concluiu: Portanto, meu amigo, o bestialismo de um pobre homem (às vezes bêbado, ou sob a síndrome de abstinência) que invade um galinheiro ou uma estrebaria, não é nada! É apenas a erupção de um mar de vícios ignorado ou esquecido sobre o qual está construída a nossa recente história e a nossa breve existência… A propósito, no livro O menino do engenho, de Lins do Rego, há uma referência ao bestialismo…Será que tem alguma coisa a ver com seu sobrenome? "Concorríamos também no amor

184 Ver o livro de Abelardo Romero, já citado e um dos melhores livros publicados no Brasil até o

momento.


com os touros e os pais-de-chiqueiro - escrevia o inicialmente promotor público de Manhuaçu (MG), posteriormente fiscal de bancos em Alagoas e mais tarde, fiscal do imposto de consumo, no RJ., José Lins do Rego Cavalcanti -. Tínhamos as nossas cabras e as nossas vacas para encontros de lubricidade. A promiscuidade selvagem do curral arrastava a nossa infância às experiências de prazeres que não tínhamos idade de gozar.(…)…à boca da noite, quando o gado chegado do pastoreador descansava, uns deitados e outros parados a olhar o chão, eu vi o primo Silvino trepado na cerca, procurando pôr-se por cima de uma vaca mansinha. Nós todos ficávamos de longe, mudos e sôfregos, como se fôssemos cúmplices de um crime." 185 Cúmplices de um crime? Este sentimento de culpa, presente em quase todo mundo e não apenas associado ao bestialismo, mas ao sexo em geral, me remete a um dos primeiros autores de minha vida: "Todos os seres vivos, plantas e animais consideram a cópula (a expressão é dele) como a mais vital e tomam a natureza inteira por testemunha: as flores pela magnificência de suas côres e de seus perfumes; os pássaros pelo canto ressonante; os insetos luzentes pelo brilho radiante; os mamíferos pelo ruído na busca amorosa e no tumulto dos combates… e só o homem tem de envergonhar-se do seu mais poderoso sentimento e dissimular o gozo como se fôra crime” escrevia Max Nordau. 186

No outro dia, neste mesmo café, um homem que havia escutado nossa conversa pediu-me licença, sentou-se ao meu lado e, com a maior cara de pau foi falando: Professor, gostaria de perguntar-lhe uma coisa: aquele assunto que você estava falando ontem com a professora Y, aquilo é crime? Podia têlo acusado de haver se intrometido num assunto que não lhe dizia respeito, mas resolvi ser mais zen do que o zen e lhe respondi perguntando: -Na Inglaterra pode dar até trinta anos… no Brasil parece que não… por quê? -Por quê? Curiosidade! Porque na prática conheço muito bem esse assunto. Vivi praticamente amasiado com uma ovelha por uns cinco anos. E não era adolescente não, já era casado. Era uma ovelha fantástica, quase como a Doly. Fazer amor com ela me proporcionava além de mais prazer uma série de vantagens se comparada à relação com minha mulher. Nunca estava com dor de cabeça, -por exemplo- nem com cólicas, corrimento ou tensão prémenstrual. Nunca condicionava a trepada com «ir jantar no Piantela». Nunca me arrastava ao coitus interruptus, nem tinha fobia de engravidar. Nunca fazia cara feia quando minha ejaculação, eventualmente era precoce ou demorada demais; nunca insistiu, no meio da transa, para que eu jurasse que a

185 José Olympio Editora, p.65. RJ. 2001. 186 As mentiras convencionais da nossa civilização. Edições Brasil, p.227, São Paulo 1960.


amava mais do que qualquer outra coisa no mundo; nunca resmungou porque meu pau estava maior ou menor do que quando nos casamos; nunca me acusou de querer apenas meter, gozar e pronto. Depois que terminávamos, nunca insistia para que eu ficasse ao seu lado até o amanhecer e nunca ameaçou ligar para um número qualquer que encontrasse em minha bolsa… nem nunca obrigou-me a passar noites inteiras ouvindo-a relatar suas brigas e suas neuroses relacionadas ao trabalho. Nunca, na nossa convivência, manifestou a mínima necessidade de disputar e de competir comigo e muito menos de dar continuidade a processos edipianos que iniciaram lá no passado, com seu pai, seus irmãos, tios etc. Enfim, foi sempre digna de minha mais sincera lealdade… -E a sua mulher sabia disso? -De quê? -Que você fazia sexo com a ovelha? -Sabia! Sabia mas fingia não saber. Minha sogra, que era uma víbora de uns 130 quilos, que tinha vínculos parentais com os mais legítimos mafiosos de Palermo e que era misógina, ela sim é que costumava fazer ironia ao redor deste assunto. Sempre que podia me chamava de «sporcaccione. Um dia que cheguei mais tarde, ouvi que resmungava à minha mulher: vai… vai abrir a porta para teu «sporcaccione», que deve ter ido novamente em busca do «piacevole brividino della cochonnerie». 187 Minha mulher, pelo menos aparentemente, parecia indiferente. Talvez até achasse bom a minha infidelidade zoófila, pois assim se via livre das insistências de meu desejo… -E a misoginia? -De minha sogra? -É… -Bem, digo que ela era misógena por um verso de G.G.Belli 188 que ela sempre repetia. Em tom de brincadeira, mas repetia. Ouça-o: "Os pobres estão feitos todos de merda, mas esta mistura de imundície se consola de sua própria baixeza ao descobrir algo mais imundo, uma espécie de modelo de sujeira, a mulher." -Misógena e fascista! -Lhe digo-Pois é… Ela própria já havia feito com seu marido o que sua filha vinha fazendo comigo...

187 Ver Italo Calvino no prólogo do livro de Guido Almansi, La estética de lo obsceno, Akal

Editor, p.8 Madrid 1977 188 G.G.Belli (1791-1863) Citado por Almansi, idem, p.21 (No mês de maio de 2001, visitei o

túmulo desse cínico lá no Cemitério Verano de Roma).


-O que? -Tornando-me impotente. -Impotente? Sim, mas só com ela. Com as «outras» e com minha ovelha nunca falhei. Descobri que as mulheres se sentem vitoriosas quando o marido ou o amante broxa, fica impotente. E sabe qual é a receita que elas usam? Dizer NÃO sistematicamente na cama e ter o máximo de condescendência na mesa. -Não entendi. -Não oferecer nada na cama e muito na mesa! Nada de sexo e tudo de colesteróis, de açúcares e gorduras... Reprimir o sexo e incentivar a fome... Entende? No máximo dois anos são suficientes para nocautear o desejo do sujeito e para transformá-lo num obeso. E quem é que com trinta ou quarenta quilos a mais, consegue fazer contato com uma libido soterrada, negada, reprimida e perdida no meio das banhas? Por mais ridículo que pareça, descobri que mais de 80% das mulheres gostariam de viver com um homem broxa ou semi-broxa... -Calma aí, calma aí... Não dá para generalizar desse jeito! Com esse papo você está sendo tão misógino quanto tua sogra! -Claro que não! Isto não tem nada de misoginia. Misógeno é aquele que tem nojo de mulher, o que não é meu caso. Estou apenas afirmando que elas preferem jantares, boutiques, batizados, brinquinhos, festas, igrejas, clubes, salões, academias... e as tardes inteiras para dormir. Sexo? Dói, engravida, amolece as tetas! O esperma mancha os lençóis, parece pus, dá nojo! -Mas não são todas! retruco. Mas quase! Só se salvam num extremo as ninfetas (onde o sexo se reduz basicamente ao clitóris) e noutro as já bem vividas, onde o sexo é mais um truque para amenizar a solidão do que para gozar... -Você está exagerando! Se fosse assim seria muito melancólico... -Mas é! -E o futuro, visto desde esta perspectiva? -O futuro é do onanismo, da masturbação e da punheta! Observe como o negócio que mais progride nesta época de globalização são os Sex-Shops. Bonecas e xotas de borracha para os homens e cacetes infláveis para as mulheres. Nem sei como ainda não estão produzindo cabras e vacas artificiais! Você, que como eu, mora nestes cortiços brasilienses, preste atenção como não se ouvem mais os berros de casais trepando. Os gritos de mulheres rasgando travesseiros e o de homens urrando sobre elas. Nem mais ecos daqueles palavrões obscenos (buceta, cu, caralho, tetas, rabo etc) que ricocheteavam por entre as paredes e pelos vãos que existem entre uns banheiros e outros. O barulho das linguas, o choque entre o púbis de um e o púbis ou as nádegas do outro... Uma masoquista implorando mais pica e mais


chicote, enquanto um tarado, com meio litro de cachaça no estômago goza e a chama de «minha vaca» e de «minha égua». Isto são coisas do passado. Agora, o que se ouve? Só suspiros, sussurros, gritinhos e a respiração ofegante de nossos ilustres e solitários punheteiros... Despediu-se cheio de formalidades e desceu para os lados do Restaurante Universitário. Enquanto me refazia de todo aquele papo, pensava na acusação das putas romanas às mulheres «certinhas» de então: Vocês fodem como cadelas mas, durante a foda, ficam mudas como pedras!


(XVI) “...Entrevejo a possibilidade de unificar alguns conhecimentos para melhor compreensão dessa coisa amorfa, instável, abjeta, gloriosa que é o homem.”

Samuel Rawet Imediatamente depois de saber que pesquisadores sul africanos encontraram resquícios de «drogas» nos cachimbos de Shakespeare, retirei da estante sua obra e, sem disfarçar um certo cinismo, abri ao azar o volume I da edição de 1988 da Nova Aguiar. Página 549. Hamlet, príncipe da Dinamarca, e li: [Lembrar-me de ti! Sim, tu, pobre espectro, enquanto a memória tiver assento neste mundo enlouquecido! Lembrar-me de ti! Sim, da tabuleta de minha memória apagarei qualquer lembrança trivial e vã, todas as sentenças dos livros, todas as idéias, todas as impressões passadas que a juventude e a observação haviam tido o cuidado de ali copiar! E só teu mandamento viverá no livro e no volume do meu cérebro, sem mistura de matéria vil] De Shakespeare, com relação aos animais, recordo a frase: "Faze que nasçam entre eles as querelas que os destruam, a fim de que os animais possam conquistar o império do mundo!" Com relação à zoofilia, me vêem à mente o jumento que em O sonho de uma noite de verão namora Titânia, e a fala de Píramo: -Oh, por que forjaste o leão, natureza? Pois o leão infame aqui deflorou minha amada.189 Um mendigo atravessa a rua quase em frente ao Teatro Mapati empurrando todos seus pertences sobre um carrinho de mercado. Atrás vão seus quatro filhos, esqueléticos e uma mulher visivelmente irritada. No outro lado da cerca rosna um perdigueiro branco de uns cinqüenta quilos. O homem esfarrapado estaciona e como se tivesse aceitado a provocação, balbucia uma frase incompreensível. Apesar do rosnar ameaçador do cachorro, fica olhando-o nos olhos… Os filhos se aproximam numa seqüência de passos do mais original vagabundismo e demonstram uma genuína curiosidade tanto pelo pai como pelo cão… A mulher alcança a cerca e se apóia nela como se estivesse com tonturas. Depois movimenta-se entre o marido e o animal numa

189 Obras Completas, Vol II, Ed. Nova Fronteira S.A, p. 432. RJ 1988.


performance teatral e, do nada, lhe dirige esta frase enigmática: «Não levarás à casa do Senhor o ganho de uma prostituta ou o salário de um cão!» No almoço, a mulher de uns 28 anos que mastiga 60 vezes cada garfada de arroz integral confessa: -Virei vegetariana depois que descobri que meus irmãos e primos «comiam» as galinhas e as cabras de nossa casa! A mesma galinha que vi tendo sexo com eles num sábado à noite, no outro dia, que era Páscoa, a vi assada no centro da mesa. Vomitei, mas nunca contei a ninguém esta história. Um eminente professor também revelou-me por telefone que quando criança «comia» as galinhas de sua casa e que sua avó, mais sábia do que religiosa, fingia escandalizar-se com o fato. Outro senhor, comerciante bem sucedido, justifica a sua iniciação sexual com cabritas reclamando da falta de mulheres no meio rural: -Ou se come as irmãs, a viúva, o velho «maricón» que toda cidadezinha tem, ou se vai assaltar os currais de madrugada! A humanidade já teve tempo suficiente tanto para compreender que não adianta reprimir ou megar os nossos impulsos, como para saber que nem só de punheta vive o homem! Em Bucarest, Brigite Bardot, «amante dos animais», negocia com o prefeito Traian Basescu uma chance para os duzentos mil cães de rua que estão prestes a serem executados. Numa foto da agência Reuters a velha atriz aparece com sua boca enrugada beijando um vira-latas branco. Propôs às autoridades daquele país que o dia 08 de março, dia internacional da mulher, seja considerado o dia dos cães na Romênia. Será que tem alguma insinuação maldosa nessa proposta? Em que momento e em que situação de sua vida essa «mulher dos cães» resolveu dedicar-se tão feroz e tão docemente a eles? No famoso estudo conhecido como «O homem dos lobos» Freud relata o caso de um menino de um ano e meio que ao assistir os pais fazendo sexo na posição dos cães, sabota o ato cagando na cama. Freud não teve dúvidas quanto à identificação do menino com a mãe. Se tivesse se identificado com o pai – diz- teria urinado e não cagado. Muita metafísica de uma vez só? Admito. Mas não se pode fazer nada! Às vezes, de um momento para outro, por mais seleto e rigoroso que seja nosso entorno intelectual, tudo parece mergulhar num caldeirão de esoterismos! Uma das igrejas do Mestre Senhor da Terceira Quadratura, um dia depois de inaugurada recebeu, ironicamente, uma insólita visita: uma cadela marrom, mordida por todo o corpo, banhada em suores e muito bem acompanhada por seus cinco ou seis pretendentes que transbordavam lubricidade. Ocuparam os degraus de entrada onde a mulher da limpeza havia deixado momentaneamente um caixote de papelão, um paletó do pastor e uma bíblia. E não houve quem os fizesse ir em busca de um lugar mais adequado. Quando percebi a cena, estacionei do outro lado da calçada e observei que


cercada por toda aquela libido flotante, intercalava rosnares com seduções, ameaças e promessas, ora empinando o traseiro, ora passando-se a língua na vulva, para em seguida disfarçar seu desejo com o rabo. Segundos depois, como se estivesse sendo regida por uma força incontrolável tornava a repetir o mesmo processo, agora já dando sinais de sua escolha e a qual macho estaria reservada a lascívia. Quando parti, o clima parecia estar no auge, com ela mais meiga, pisando em nuvens, abrindo e fechando os lábios de seu tesouro e exibindo descaradamente o seu clitóris. Bestia senza pace! blasfemaria Dante.


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