Ezio Flavio Bazzo
NECROCÍDIO "40 jours et 52 photographies dans les cimetières de Paris"
DA ANTA CASA EDITORA
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NECROCÍDIO 40 jours et 52 photographies dans les cimitières de Paris Ezio Flavio Bazzo, 1992 Fotos: Ezio Flavio Bazzo Editoração Eletrônica: Nelson Romcy Shirlei Moreth Projeto Gráfico: KleberLima Fotos do Autor: Claudia Neves Lopes Revisão: A.C. Naves
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Pactuário É evidente que não estás comprando este livro por acaso. Durante sua realização, bem como das fotos que o documentam, dei de cara com o preconceito e com o receio doentio que todos têm da morte. As epígrafes nas tumbas dizem quase tudo. Até o mau-caratismo e a indigência ética têm suas raízes fincadas nela. Morrer é degradar-se até o âmago! Eu que o escrevi, morrerei; tu que o lerás, morrerás também. Não importa se eu continuo correndo atrás de sombras e se tu repousas ávido em tua cátedra. Todas as veredas e todos os atalhos conduzem-nos ao mesmo lugar sem que nenhum desses "consórcios" de fanáticos tenha podido, até agora, desviar dessa rota. Leia-o com calma. Não é propriamente um livro; nem um álbum; nem um muro de maldições inúteis. Gostaria imensamente que pactuasses comigo e que ordenasses aos teus lacaios que, com tua morte, o depositassem junto a teu esquife... DA ANTA CASA EDITORA Cx. Postal- 04527 Brasília 1992 Impresso no Brasil
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Dedico estas imagens a (todo o mundo), menos aos mortos que fingem estar vivos e aos vivos que se fazem de mortos. Essa legião de bufões e de tartufos não merece nenhum tipo de condolências.
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"Não estou em meu leito de morte mas vou me carregando de anos... Tenho uma modesta coleção de automóveis antigos [...] O carro que mais amo é um Dodge de 1937 [...] sempre que olho este imenso automóvel, sinto-me estupendamente bem [...] Em vez de um ataúde, quisera estar sentado ao volante e depositado assim na terra" 1
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Carta a Ann Landers, The Boston Globe, 25 de fevereiro de 1974. Citado no livro de Emily
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TROTTOIR FUNERÁRIO "Pourquoi pleurez-vous, m'avez-vous cru immortel?" Louis XIV
Por fim arrumei o cinismo que me faltava e travestido de abutre sobrevoei a solidão misteriosa dos cemitérios. Com minhas potentes asas pude deslizar furtivamente durante quarenta dias e quarenta noites por sobre a beleza dos túmulos brilhosos, das crateras enegrecidas, das lápides cor-de-rosa que enfeitam e que contaminam Paris, com seus bairros sóbrios, com seus guetos, suas catedrais, seus imigrados, seu Bois de Bologne repleto de putas e de putos prontos para, amanhã, também beberem as águas frescas da região dos mortos. Com meu olfato apurado localizei as mais recentes carniças, tanto nos cemitérios dos ricos como nos dos pobres, nas catacumbas, nos poços, no panteão, na cidade inteira onde os trens cruzavam e sobrepunham-se em fúria através dos subterrâneos, chegando às vezes a passar rente aos milhões de mortos, com seus crânios idênticos e seus dentes sem gengivas. Durante quarenta dias, que foram como quarenta séculos, pude finalmente suavizar meu preconceito infantil contra a morte, contra a putrefação, contra a idiotização que ela representa, e deixeime flutuar, mergulhar, dançar com os esqueletos mudos, com as caveiras corroídas e com o "nada" que envolve os cadáveres. Morri um pouco, para colocar-me à altura ou à baixeza dos mortos e intensifiquei a vitalidade de meu humor para assim poder permanecer por mais tempo deste lado da trama. Em outras palavras: voltei de meu voo mais consciente e mais certo de que não sou mais do que 70 quilos de adubo natural e que a terra os requisitará no momento em que melhor lhe aprouver. Voei alto, altíssimo, dei a volta por cima de todos os pilares do Universo e não identifiquei nenhum vestígio do "além tumba", só apalpei o "aquém", os limites da bioquímica e do corpo, cujo destino último é a poeira, os pedregulhos que absorverão suas banhas, seus óleos e suas perversões2. 2
"Com a morte, a circulação e a respiração são abolidas; o coração detido em diástole; a cavidade torácica, em expiração (daí as expressões "expirar" ou ainda "dar o último
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suspiro" utilizadas como sinônimos de morrer). - Os músculos relaxam-se, bem como os esfíncteres: o cadáver "esvazia-se" espontaneamente de todos os excrementos. Sejam quais forem as condições da morte, os olhos abertos ou semifechados apresentam um aspecto vítreo, a pupila surge dilatada. - O corpo ainda momo e mole, é de uma palidez de cera. Esta lassidão muscular dura 4 a 5 horas. - Ao fim de 5 a 6 horas, o cadáver fica rígido, sob o efeito do ácido láctico que se acumula nos tecidos. - Ao fim de 24 horas surge uma lividez cadavérica: manchas vermelho-escuras ou violáceas, devido à acumulação do sangue, incoagulável, então, nas partes mais baixas do corpo deitado (nuca, ombros, nádegas) e que estão em contato com a cama ou o leito do caixão. Depois, a rigidez cadavérica desaparece. É então que se deve proceder à inumação ou à cremação. - No caso de o corpo não ser queimado, começará a necrosar-se (putrefação). Os primeiros sinais da necrose são a produção de gás e de líquidos pútridos de um odor insuportável. - Se o cadáver demora a ser enterrado, atrairá as moscas azuis, que vão pousar nas aberturas naturais (em particular, narinas e boca). Estas moscas nunca são atraídas pelo vivo. A sua presença permite fazer imediatamente o diagnóstico de morte, mesmo que à distância, num indivíduo encontrado inanimado ao ar livre. - Pouco depois, surgem grandes manchas verdes de putrefação, em particular no abdômen. Estas manchas espalham-se progressivamente por todo o organismo. Devem-se à multiplicação das bactérias que vivem normalmente no intestino, mas que já não são contidas pelas defesas imunitárias. - Mais tarde, o corpo desidrata-se, a pele fica mirrada e apergaminhada, como que tendida, arrepelada sobre os ossos. - As células nervosas não sobrevivem senão alguns minutos à anoxia. Depois delas, degeneram as células hepáticas, renais, glandulares. Os últimos sobreviventes são os epitélios (2 a 3 dias). Os cabelos, os pelos, as unhas, continuam a crescer durante algum tempo, até sucumbirem também. Num indivíduo que se barbeie todos os dias, o comprimento dos pelos do queixo pode dar uma ideia sobre a época em que ocorreu a morte. Do ponto de vista macroscópico, alguns órgãos, apesar de gravemente lesados e totalmente não funcionais, mantêm a sua forma anatômica, antes de ficarem reduzidos a uma sopa infecta que encherá, provisoriamente, o crânio, o tórax, o abdômen. O fígado desaparece à terceira semana, o coração e o útero entre o quinto e o sexto meses. - Se fizermos o inventário de todos os organismos, denominados xenontes (bactérias, cogumelos, vírus, parasitas), que possui um indivíduo normal, podemos contar entre 100 e 200 espécies diferentes, conforme os casos. - No estado normal, mesmo os cadáveres enterrados são vítimas de inúmeros predadores, que conseguem introduzir-se sempre nos túmulos mais bem fechados: pequenas aranhas, como os acarídeos e os miriápodes, insetos e mesmo ratos. - No plano químico, a água constitucional regressa ao solo, levando com ela sais dissolvidos e bactérias. Os glicídios são decompostos em álcoois, cetonas, ácidos orgânicos, que vão também para a terra. Alguns degradam-se até ao estado ~e gás carbônico que se espalha pela atmosfera. As gorduras, relativamente estáveis, concentram-se em estalactites que pendem, moles e enormes, nos rebordos dos caixões. É a adipocera, ou "manteiga dos cadáveres", bem conhecida dos coveiros, resultante da saponificação das gorduras humanas.
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Com tudo isto, construí uma obra mortuária, um cemitério impresso, uma nação de almas mortas, uma antropologia das cinzas e das sombras. Fiz um panteão de bolso, dedicado tanto aos necrófilos como aos necrófobos, assim como a todos os que se esforçam para aparentar indiferença, porque a todos chegará o dia e a hora de confessar que já não é possível esconder-se por debaixo dos chapéus, por detrás dos bigodes, dos óculos, dos cartões de crédito ou de qualquer outra das mentiras originais e até bem sucedidas de cada um. Exumei em diversos cemitérios parisienses e joguei nessa fossa comum, todos juntos e misturados, os mais diversos "tipos", para que se conheçam melhor e para que possam ajustar contas, discutir suas poesias, suas ideologias, seus postulados científicos, enfim, suas mais vertiginosas paixões, transformadas pelos vivos em ciência ou em arte. Em outras palavras: com a habilidade de um cafetão, armei para essas celebridades uma suruba inesquecível. Allan Kardec ao lado de Breton; Baudelaire sobre Augusto Comte; Verlaine aos pés de Edit Piaf; Pinel de cara com Jim Morrison. Como já disse, fui exumando e jogando-os nas profundezas da fossa comum: Artaud, Tristan Tzara, Cortázar, Voltaire, Moliére, Victor Hugo, La Fontaine, Debussy, Manet, Puccini, Balzac, Becket...os ossos e o pó de todos esses criadores formando uma massa escura e disforme. Apollinaire no mesmo saco que Charcot; a caveira de Chopin repousando ao lado da de Descartes; Diderot, Eluart, Isadora Duncan, Heine, MerleauPonty ... a fossa transbordou várias vezes, mas eu esperava um ou dois dias e voltava a atirar para dentro dela os restos desses homens e dessas mulheres. Pascal, Sartre, Claud Bernard, Renan, Proust, Rabelais, Sainte-Beuve, Stendhal, Wilde, Zola e outros. Quis ir até Dannemois e trazer Cocteau, mas faltaram-me os 100 francos para o trem. Quis incluir o pó de Foucault, de Genet, de Sade e de Bataille, mas não consegui descobrir onde estão sepultados. Os livreiros não sabem e a prefeitura de Paris precisa consultar os astros antes de abrir a boca. Repito: isto não é apenas um livro, um roteiro turístico de cemitérios como os que se pode comprar nas ferroviárias parisienses, é um monumento mortuário como L'Arche du Triumphe ou mesmo - Ao fim de cerca de um ano, o cadáver não é mais do que um esqueleto descamado, ao qual se agarram ainda alguns pedaços de tecidos (ligamentos, tendões, restos de grandes vasos) mais ou menos parasitados por alguns coleópteros ou acarídeos. A desunião dos ossos demora 4 a 5 anos. Quanto aos ossos propriamente ditos, podem desaparecer por descalcificação e dissolução na água da chuva. Os dentes são os últimos restos a desaparecer: atravessam, por vezes, milênios." (Extraído do livro O SEXO E A MORTE, de Jacques Ruffié, Publicação Dom Quixote, Lisboa, 1987, pp.230, 231,232,233.)
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como Les Catacombes. Não é apenas um arquivo jornalístico ou fotográfico de um narcisista, nem o roteiro burguês de um diplomata entediado. É um olho mágico através do qual os mortos te olharão diretamente nos olhos e ficarão atentos aos movimentos de tua boca enquanto o estiveres lendo. A partir de agora, tua estante não será apenas uma biblioteca, mas também um imenso e fantástico cemitério, um cemitério vivo que povoará teus jantares e também teus sonhos. Quando levantares de madrugada para ir ao banheiro e vires um movimento qualquer no meio das prateleiras, saibas que são eles querendo regressar a seus túmulos de origem. Não querem estar numa fossa comunal, porque o pó dos outros os incomoda. São todos aristocratas como tu e como eu, e só suportam os outros enquanto as devidas distâncias forem rigorosamente mantidas. Paris, 8/2/92
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1 Mesmo que nunca tenhas colocado um pé fora de tua casa e mesmo que nunca tenhas passado um inverno em Paris, basta que possuas um freezer para ter uma ideia exata de como as coisas andam por aqui, neste dia 4 de janeiro, quando atravesso a rua Edgar Quinet para iniciar meu trabalho no cemitério de Montparnasse. Poderia ter começado por qualquer outro, mas inconscientemente devo ter querido homenagear Baudelaire, Sartre, Cesar Vallejo ou outro dos cadáveres que repousam aqui. É importante esclarecer que não sou nenhum papa-defuntos, que não tenho nenhuma fixação por cruzes, que não pretendo ser coveiro nem roubar os dentes de ouro daqueles que, de uma maneira ou de outra, já “dançaram”. É evidente que caminhar por entre estes monumentos, uns velhíssimos, outros recém-inaugurados, me proporciona uma espécie de glória, algo semelhante ao que se sente quando se passeia pelas estantes de uma imensa biblioteca, buscando nomes conhecidos e famosos. São apenas cinco horas da tarde, mas com o inverno Paris já está praticamente submersa no capuz da noite. As árvores secas, os gatos, as sombras e as folhas que rastejam de mármore em mármore colocam-me de sobressalto. A mão esquerda congelada procurando um foco difícil e a direita disparando o clique sobre os espectros. Uma velha maltrapilha alimenta três gatos mansos e gordos que desfilam delicados por sobre o mausoléu de uma família enterrada em 1903. Logo à direita, num túmulo simples, com algumas flores deixadas por turistas, o nome de Sartre e de Simone. Dedico-lhes a primeira foto, dando-lhe como pano de fundo os ramos gélidos das árvores da rua Edgar Quinet. No outro lado, um monumento horrível à Sainte Beuve, e mais acima, o que de mais belo existe aqui, dedicado ao autor de Flores do Mal: Baudelaire. Sem dúvidas, o príncipe deste cemitério. Dificilmente trarão para cá um morto mais ilustre e que possa desbanca-lo. Faço as últimas fotos já com o flash e quando estou caminhando para o portão de saída, deparo-me com uma fila de automóveis pretos e luxuosos que trazem um novo hóspede para este lugar estranhamente simpático. Nos bancos traseiros, familiares sóbrios, metidos em peles e em chapéus, parecem censurar minha câmera. Que pretensão a deles! Se nem os mortos inquietaram-se com meu projeto, por que teriam os vivos que se meterem nisto? Cemitério de Montparnasse 4-1-92 - 17h30
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2 Se existe uma pergunta que os franceses e talvez todos os povos do mundo não desejam ouvir é sobre cemitérios. Por quê? Porque é bom esquecer e mesmo negar que num determinado lugar da cidade os muros altos separam os vivos dos mortos. Com um mapa de Paris sob o braço, tomo a direção Kremlin La Bicêtre, onde está um dos tantos cemitérios comunais desta cidade. Entro nele e sou tomado imediatamente por seu silêncio misterioso. Absolutamente silencioso, com as mesmas árvores que os outros, com os mesmos pássaros de canto agudo e assustador. Dois funcionários ingênuos e bem barbeados, com suas picaretas e com seus cigarros sem filtro, remexem as lápides e os ramalhetes de flores secas com a mesma indiferença com que os estivadores abrem e fecham um fardo de bacalhau e não dão a mínima importância ao meu ziguezague por entre e por sobre os mortos. De uma tumba recém-ocupada escapa um fedor de carnes apodrecidas. O grande pânico da morte está relacionado basicamente com a consciência do apodrecimento. No capítulo XXXIX do Livro dos Mortos, encontrei um canto ou uma súplica que caracteriza bem o medo que os egípcios tinham dessa decomposição: “!Oh tú, inmóvil e inerte como Osiris, cuyos miembros están helados, sal de tu inmovilidad, para que tus miembros no se pudran!, que no se separen de tu cuerpo y te abandonen!, que mi cuerpo no se pudra! Pués yo soy Osiris...” O silêncio pesa sobre meu crânio! Os coveiros ainda estão lá, e além deles não há nenhum outro vivo por aqui. Começa a aparecer uma neblina fria e úmida. Estar vivo ou morto parece ser só uma questão de tempo ou até mesmo de opção. Se a vida tumular oferecesse alguma vantagem, meio mundo já teria saltado para ela. Ou não? Kremlin La Bicêtre
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3 Certamente conheces pessoas que gostam de gabar-se por já terem passado por Paris, por já terem se hospedado num hotel de 400 francos ao dia, com direito a brioches, chocolate e uma camareira portuguesa. Pois bem, esses patetas acordam ao meio-dia e correm ao Louvre, embrenham-se na direção do Arco do Triunfo e da Torre Heifel, vão de táxi ao museu de Rodhin, passam na cafeteria do G. Pompidou para fumar um charuto, jantam em Montparnasse e acabam a noite num cabaré de Pigalle torrando milhares de francos e apaixonando-se pelas bailarinas ou pelos porteiros dos bordéis. Certamente conheces muitos brasileiros que já fizeram essa maratona e que ainda pretendem repeti-la anualmente, mas isto não é nada, curioso mesmo é conhecer aqueles intelectuais que afirmam só poder criar quando estão hospedados aqui, num belo apartamento e que, de preferência, tenha uma varanda para o Sena. Por falar nisto, viram o Chico e o Jorge olhando vitrines e comendo sanduíche grego em Saint Michel, sem falar nos milhares de outros brasileiros, menos ilustres, lógico, que também passeiam e vivem por aqui. Fazendo o quê? De tudo o que se possa imaginar: limpando a merda dos franceses; fazendo teses que já foram feitas; cuidando de crianças loirinhas e gorduchas, enquanto as suas ficaram no Brasil cheias de lombrigas; dando o cu no Bois de Bologne ou simplesmente mofando em espeluncas próximas à estação de Belleville. É interessante lembrar que Paris sempre atraiu tanto a gentalha como a aristocracia brasileira e, principalmente, aqueles que, como diz Emil Farhat, não trabalham há mais de quinhentos anos. Aqui seria fácil caçá-los, pois exibem-se sem guarda-costas nos cafés e nas galerias com as carteiras estufadas de dólares, como se os tivessem roubado não aí, mas em outro planeta. Certamente já ouviste histórias de todos os tipos, desde a mile-uma-noites parisienses, dos festins promovidos pelos diplomatas do Terceiro e do Quarto mundo, das trocas de favores entre os monsieurs séniles da École R.B, até os prejuízos que esses "representantes" abomináveis promovem aqui, no meio de tantos vinhos e de tantos queijos. É importante anotar: cada cafezinho diplomático em Montparnasse representa uma criança nordestina a menos no mapa nacional. Mas isto nada tem a ver com os cemitérios de Paris, tem a ver com as fossas improvisadas daí, aquelas que os esquadrões cavam às pressas, e com a indigência popular que, inexoravelmente, explodirá um dia numa chacina sem precedentes. Brasileiros, portugueses, negros, árabes, asiáticos e outros ''bichos'' do gênero aqui
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são tratados mais ou menos como criminosos. Mas Paris não é apenas a vitrine e o bordel de que sempre tivemos notícias, não é apenas um paraíso de franceses malhumorados nem um inferno de imigrados, Paris é também o que quero mostrar neste trabalho: um gigantesco cemitério. Aqui, além dos cemitérios tradicionais, todos os lados estão minados de mausoléus, tumbas, sarcófagos, catacumbas e outros monumentos aos mortos. A cidade das luzes - cantada e idealizada pelos nossos Novos Ricos - é muito mais uma cidade de sombras. Só em Denfer-Rocherau, nos túneis das catacumbas, repousam seis milhões de crânios e doze milhões de ossos longos. Sim, estão lá, na maior promiscuidade, empilhados como lenha. E isto não é tudo: dentro das igrejas de Paris, existem mais, muito mais mortos do que se imagina, e quem quiser certificar-se disto, que visite a Catedral de, Notre Dame, a igreja de Saint Eustache, a de Saint Germain-Des-Prés, Saint Roch, Saint Séverin, Saint Sulpice e tantas outras dispersas por aqui. Edifícios públicos como o Arco do Triunfo, o Panteão, a Bastilha, etc., também conservam seus mortos ilustres, com fogo, incenso, medalhas e tudo o que o judaísmo, o cristianismo e o Estado francês recomenda. Dos cemitérios, o mais conhecido e visitado pela turistada em geral e pelos melancólicos, em particular, é o Père Lachaise, onde está o corpo de JIM MORRISON. Ao redor de sua tumba, sentados aqui e acolá, seus discípulos o homenageiam com garrafas de cerveja ou mesmo com seringas. Na tumba de CHOPIN, de WILDE, de BALZAC, de EDITII PIAF, sempre se podem encontrar flores frescas e versos histéricos deixados pelos vivos. Em tudo está claro o domínio dos mortos sobre os vivos! E é estranho constatar que até hoje não tenhamos percebido que a morte oferece muito mais vantagens que a vida. Por exemplo, muitos dos que aqui estão enterrados e que foram consagrados como "pessoas ilustres", se tivessem vivido mais, poderiam ter colocado tudo a perder. Poderiam ter sucumbido à crueldade da crítica invejosa, naufragado no fel mortal do populacho improdutivo ou simplesmente despencado no abismo do tempo e voltado para o meio do rebanho. Foi a morte que os eternizou como talentos, gênios, malabaristas, bufões e até grandes canalhas. E duvido que se lhes fosse devolvida a vida, eles a aceitassem. Estão mortos, mas não são ingênuos nem burros! Afinal, é cômodo, muito cômodo estar reduzido a pó, protegido pelo melhor dos mármores, num quartier cujo metro quadrado é um dos mais caros da França e, ainda por cima, receber visitas e flores todos os dias e ver os editores do mundo inteiro digladiando-se para rapinar um copirraite aqui, outro ali e mais outro acolá. Não tenho dúvidas de que tanto a Hachete como a Gallimard são fortunas fabricadas sobre a poeira destes mortos.
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Posters, fotos, chaveiros, discos, textos, milhares de porcarias inúteis mas que dão dinheiro às hienas sociais e que perpetuam o nome dos cadáveres. Caminhando aqui, neste paraíso dos mortos, tenho uma estupenda certeza: o mais medíocre deles desfruta do "absurdo universal" mil vezes mais intensamente que o mais fanático e privilegiado dos vivos. Duas mulheres com tipo de feiticeiras aproximam-se do mausoléu de Alan Kardec, depositam as mãos sobre seu busto e murmuram bobagens. Que estariam pedindo ao homem que engendrou a anedota do espiritismo? Desembainho minha Canon propositadamente sob seus olhos, para irritá-las. Retiram as mãos curtas do mármore marrom e esquivam-se por detrás da lápide. Que porra de fé é essa? Miguel Asturias; Apollinaire; Augusto Comte; Delacroix; Isadora Duncan; Eluard; Gay Lussac; Moliére; Merleau-Ponty; Proust; Pinel; Max Erost; Sara Bernhardt... um pelotão de talentos espalhado e perdido no meio de generais, de anônimos e de outros mortos que, segundo as inscrições, morreram pela França. Procuro por quatro nomes que não constam em nenhum mapa: Jean Genet, Michel Foucault, Sade e Bataille. A temperatura descende e o vento arrasta consigo um turbilhão de folhas secas. Caminho sem parar. Não sou um turista e minha visita não é a visita submissa nem tímida de quem veio resmungar uma Salve Rainha em latim. Sei muito bem que um abismo atrai outro abismo, e vim mais bem para desafiá-los, para alertá-los de que suas obras não tiveram os fins propostos e de que o mundo segue desvairado na mais trágica ignorância. Dirijo-me a eles, não de joelhos, mas com minha bota direita sobre suas tumbas. E sei que me entenderão, porque não é justo escrever, compor, pintar-e-bordar, e depois simplesmente morrer, deixando aos vivos o duro e difícil encargo de decifrar e de viver suas obras. Subo pela escadaria secular à minha direita e chego ao ponto mais elevado do cemitério, de onde tenho uma visão espetacular das tumbas e dos monumentos. Outra vez o silêncio! Uma paz estranha me amolece os dedos e me relaxa o rosto. Um homem velho aparece lá longe e vai lentamente pelo meio das cruzes e das árvores desfolhadas como quem não veio aqui para nada, nem para visitar as "almas", nem para acostumar-se ao ambiente. Poderia ser o próprio Victor Hugo, Aragon, ou mesmo o Oscar Wilde. Faz uma pequena
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parada na esquina de um monumento esverdeado pelos séculos, muda bruscamente de direção e desaparece. Père Lachaise
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4 Neste período do ano, Paris amanhece praticamente às dez horas e às cinco da tarde já volta a estar submersa num negror cinza. Nas ruas, o frio seco acelera o passo dos seres, intensifica o cheiro do café nos bares e empalidece o rosto dos motoristas. Se um dia o sol resolver não mais lançar suas labaredas sobre este pobre planeta, cada um de nós se transformará rapidamente numa estátua de gelo. Imagino como seria Paris com seus garçons congelados. Os livreiros, os policiais, os comandantes da Air France, os professores calvos da Sorbonne, o bairro judeu, e o negro que vende crepes, todos mumificados e transformados em bibelôs em seus postos de serviço... Mas apesar do impressionismo dessa imagem, ela não pode nem ser comparada à que teríamos se, pelo contrário, o sol resolvesse intensificar seu fogo sobre nós. Cada ser seria transformado numa brasa incandescente que se locomoveria em desespero. O mundo se iluminaria numa verdadeira festa que duraria apenas uns minutos e que selaria definitivamente a existência. O metrô desliza morno: Port Royal, Luxembourg, St.Michel, Les Halles, e em cada estação grupos de mendigos dormem amontoados ou discutem ebriamente com suas garrafas de vinho tinto nas mãos, ou até mesmo com suas latinhas de éter, que levam seguidamente às narinas e as inspiram mortalmente. Com o frio, todos correm para cá e aqui passam o dia em discussões ou em meditações inúteis e inacabáveis. Entre eles, nenhum negro e nenhum árabe, são todos "arianos", sujeitos que, se Hitler tivesse passado pelos russos, poderiam hoje ser pastores ou ministros. Para cagar e vomitar, costumam descer as escadas que dão ingresso ao túnel escuro e perigoso por onde passam em fúria os vagões. Frequentemente os milhares de quilos dos trens esmagam seus corpos sarnentos e a França nem toma conhecimento. Se o vômito ou a cólica chega de surpresa, então vomitam ou cagam ali mesmo no estreito "hangar" onde os passageiros se acotovelam. Os restos de comida e o vinho de oito francos não combinam em seus estômagos corroídos. Litros e litros de adrenalina! A vida marginal é movida a adrenalina e a desespero! Nenhum organismo resiste a esse holocausto interior. Em todos os cemitérios que passei, não vi nenhuma tumba e nenhum monumento a estes bufões populares. É que eles só provocam o ódio e o desespero dos modernistas, dos almofadinhas e dos tartufos que mergulham em perfumes e dançam ao redor dos espelhos.
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De quando em quando, quando menos espero, a minha mente reprisa as visões dos cemitérios, exibindo cada túmulo e cada morto nas posições mais diferentes. Com minha lente especial distorci e desarrumei todas as formas. Fiz as hastes da cruz de um defunto cravarem-se no túmulo de outro. Fiz as árvores enfileirarem-se em círculos, os nomes ficarem ilegíveis ou então exóticos como os anúncios de Pigalle. Soprei as folhas e o lixo para os degraus mais altos da capela, fiz os gatos parecerem monstros e os coveiros confundirem-se com os minúsculos pontos perdidos no meio das pedras... vi cada ângulo na sua forma original e na infinita possibilidade de sua perversão. Transformei a simetria plana, medrosa, ocidental, num túnel de estalactites duras e sensuais, que a um simples movimento de minha mão sobre a lente. mudam de cor e despencam umas sobre as outras como pilastras de algodão, como arcas de espuma, como carrocerias de alfinetes ou como turbantes ensanguentados. Fiz os braços do cristo rebentarem os pregos, a Torre de Montparnasse inclinar-se até o esqueleto de um general, os turistas sebosos e artificiais parecerem putos cancerosos ou intelectuais desvairados. Fiz uma plástica na cara de Cortázar, implantando-lhe todos os perfis possíveis e imagináveis, fazendo do bilhete deixado sobre sua tumba uma partitura eslava. Transformei o crânio de um parente de Napoleão num barril de pólvora seca, cheio de ranhuras, por onde escapam, faíscas e uma fumaça cor de leite. Ao companheiro Tzara, depositado humildemente na Divisão número 8, dei-lhe a chance de ver sua tumba transformada num mausoléu luxuoso e místico, onde predominavam as pedrarias tibetanas e as formas circulares... e, no meio de todas estas visões, constantemente uma voz que recita a frase colocada no umbral das catacumbas: ARRÊTE: C'EST ICI L'EMPIRE DE LA MORT! É fácil, muito fácil enlouquecer num cemitério! Por isso os muros, por isso a amnésia, por isso o inconsciente. A mulher que experimenta esse dilúvio comigo deixou de acompanhar-me. Os mortos não lhe fazem bem e ela prefere ver os vivos que comem em Montparnasse ou que leem Le Monde num bar esfumaçado. Ela adora uma Chernobil de cigarros! O ídolo maior dos franceses não é o Dr. Pinel como se poderia pensar, mas o monsieur Nicot, esse demente que introduziu o fumo na França. Sepultado não muito longe de Augusto Comte, Pinel repousa numa tumba praticamente abandonada e esquecida, onde nem seu nome aparece com clareza. Florezinhas ingênuas e bilhetinhos hebefrênicos sobre
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algumas sepulturas. Sobre outras, até bonecos de pano, cartas, repolhos, fotos, beijos com batom em folhas brancas, daquelas que se usa para secar lágrimas ou para absorver sêmen. Este é o espetáculo dos vivos, dos vivos que a todo custo querem desovar suas angústias e suas neuroses sobre os mortos. E os mortos, por estarem mortos, por não fazerem mais parte de absolutamente nada, por não serem mais do que cinzas, por não ressuscitarem jamais, aceitam tudo em silêncio, como se fossem gigantes dotados de um "espírito" todo poderoso ou de uma compaixão cínica e sem limites. Cafeteria de Mabillon 10/1/92-13h4
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5 De entre as tumbas do cemitério de Gentilly, posso ver as varandas e as janelas da Maison du Brésil. Fundada ainda no tempo de Juscelino e construída em parceria por Lúcio Costa e Le Corbusier, esse prédio de cinco andares distingue-se dos outros construídos ali na Cité Universitaire, com a mesma finalidade, por ser de um mau gosto nojento. Conhecê-la por dentro e viver nela alguns meses nos dá a noção exata de como é cruel e incurável o ódio que os políticos e os burocratas brasileiros sentem pelo povo. O que poderia ser uma casa confortável e até luxuosa, como a dos outros países, não passa de um pavilhão feito às pressas e sobre o qual jogou-se todas as cores possíveis, criando uma imagem carnavalesca, vulgar e simbolicamente preconceituosa. Parecido aos presídios franceses, esse prédio foi construído de forma tal que ao menor descuido de seus moradores pode transformar-se num favelão ou num Bangu 3. Impressionante! Verdadeiramente impressionante a safadeza, a incompetência e a burrice dos homens que até hoje administraram essa pátria. O mínimo que deveríamos fazer para vingar-nos seria violar suas tumbas, recolher suas caveiras de entre o pó e arremessá-las com violência contra a calçada. E depois cuspir sobre os cacos, pintá-los de vermelho, recolhê-los numa bolsa plástica e jogá-los nas privadas, naquelas privadas antigas onde o vaso é aberto e o excremento do cliente cai dois ou três metros na vertical, como um meteorito no final de sua trajetória. Cemitério de Gentilly 12/1/1992
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6 40 jours dans les cimitières de Paris! Isto pode parecer uma brincadeira, um esnobismo, uma bobagem satírica, uma maneira de fazer-se exótico, de aparecer, etc. Mas não é apenas isto. É isto e muito mais... É um cara-a-cara com a morte, com a putrefação de todas as vaidades, com a caverna que dá ingresso aos subterrâneos das cidades mortuárias e aos labirintos de nosso medo, de nossa desesperação, das causas legítimas de nossa loucura. É uma aventura improvisada que me coloca frente a uma população maior que a dos vivos, que se desintegra nos subsolos e que desaparece no abismo escuro e silencioso do nada. Além disso, não deixa de ser também uma espécie de ensaio para com o nosso próprio fim, tanto do meu, que estou aqui quase congelado, como do teu, que estás aí bebericando uma cerveja ou vendo o Faustão. Um dia nós também pifaremos e teremos que passar necessariamente pelo escândalo vergonhoso do funeral e pelo trágico momento que é a descida ao buraco. Um coveiro qualquer instalará o último tijolo que separará nosso cadáver do mundo dos vivos e do sol, e lá ficaremos sem remédio, até que o planeta reabsorva nossas banhas, nossas lágrimas e nosso cálcio. Dez ou doze dias depois, e tudo estará esquecido: as roupas do morto serão doadas aos indigentes; os livros serão roubados pelos amigos e pelas visitas; as fotos serão escondidas, os sapatos jogados fora, a carteira de trabalho incinerada... Nada mais interessa aos vivos, nem ao mundo. Um homem só vale enquanto estiver produzindo, mesmo que esteja produzindo apenas merda, mas tem que produzir. A fúria do cotidiano não poupa nada, faz de tudo e de todos um inferno de escravatura, um pavilhão de suor e de fome. Os vivos precisam viver, ir até o fim, comer, pagar aluguel, discutir ideias, aliar-se à colmeia insaciável com todas suas monstruosas mentiras e esperanças. Não gostas deste assunto? Compraste o livro errado? Desperdiçaste vinte reais? Terás que escondê-lo de teus filhos? Tudo isso porque não passas de uma cápsula de medo! Porque não és mais do que cinco metros de tripas recheadas e um milhão de filamentos e de encruzilhadas nervosas que se desintegram em poucas horas. Aferrado aos negócios, aos alunos, aos subalternos, aos compromissos diários, às ficções desse manicômio, vives a mais louca das experiências: A DE ESTAR VIVO E DE NÃO SABER ATÉ
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QUANDO! Por mais fanático que sejas, sabes tanto quanto eu que tua obsessão intelectual, que tua riqueza, tua religião, teu poder e todas tuas falácias não te prolongarão a vida nem mesmo por uns segundos e que nada, absolutamente nada, te possibilitará o passeio eterno pelas montanhas perfumadas... nem no Éden, nem no Hades! Terás, portanto, que te acostumar ao Nada, ao desaparecimento pura e simplesmente. Nenhum céu e nenhum inferno onde possas reservar uma poltrona, uma cama, um quarto-e-sala. E é exatamente aí nessa certeza que está a raiz de todas as patologias humanas. O indivíduo sabe que não terá nenhum tipo de continuidade, porque cada uma de suas células obrigam-no cotidianamente a esse saber. Compaixão! Este é um planeta que precisa apenas de compaixão!, e a turba, pelo menos de um monstro que lhe afague os cabelos, que lhe passe suavemente as mãos pelos ombros e que a deixe soluçar à vontade... Indo da tumba de Paul Verlaine à de André Breton, aqui no cemitério de Batignolles, suavizo meu preconceito contra os homens e contra as mulheres, faço-me mais tolerante com a imbecilidade e com a vaidade, doenças até justificáveis diante desse espetáculo de silêncio e de estrume. Cemitério de Batignolles 14/1/1992
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7 Paris com sol é outra coisa! Encostei o nariz na vidraça e o vi nascendo como um pneu em chamas; como um exorbitante semáforo fechado; como se a bandeira japonesa tivesse sido definitivamente levantada sobre a Europa. É quase impossível flertar com esta cidade em tempos de inverno, pois a paixão é uma coisa, no mínimo, primaveril, uma "folie" de verão, de calor entrando pelos poros. O frio faz dessa antiga aldeia dos parissi, uma província de portas fechadas, de roupas úmidas e de solidão. Até o Sena, com sua simpatia costumeira, assusta quando os termômetros marcam -7 graus, e não há nenhum sax improvisando melancolias, nem violinos exibindo Vivaldi em suas margens. Só a pressa dos franceses e a sofreguidão étnica dos imigrados. Com menos de três milhões de habitantes, Paris é facilmente atravessada de bicicleta ou mesmo a pé. As estações do metrô são mais próximas entre si do que se imagina e os cemitérios começam a crescer para baixo, em poços que avançam para o centro da terra. Descobri o óbvio: existe em Paris mais, muito mais mortos que vivos. Os séculos, as guerras e o ódio contra as crianças fizeram surgir esta estatística e esta curiosidade. Com o mármore e com o cimento utilizado nas tumbas, se poderia construir dois ou três quarteirões de edifícios amplos e modernos para abrigar os negros e os outros estrangeiros que aqui vivem na penúria. Um crematório em La Chapelle, um em Mairie D'lvry e outro em Boulogne resolveria a questão e, inclusive, daria ao governo e à França de Miterrand um dígito em suas poupanças. Mas a vaidade dos homens é tão crônica e tão indiscutível que perdura até depois da morte. Um exemplo desse sentimento (essencialmente humano) está aqui no cemitério de Bagneux, que ocupa uns 60 hectares com suas tumbas de até quatro metros quadrados, cada uma querendo exibir mais religiosidade, mais luxo e mais reconhecimento que a outra. Os familiares e os amigos fazem tudo para tentar exorcizar suas culpas perante o morto e para manter acesa a chama no meio da ventania e da tempestade que se abate cotidianamente sobre eles. Nas Divisões destinadas aos mortos judeus, um exagero de fotos, de estrelas de David, de juramentos de fidelidade e de solidariedade. Não é difícil detectar a magnitude da culpa.
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Escrevemos aos mortos promessas e declarações que nunca nos atrevemos a dizer e muito menos a cumprir enquanto eles estavam vivos, e lhes pagamos um "aluguel-perpétuo" aqui, sem lembrar que em vida os expulsamos de nossa casa ou lhes negamos uma semana de moradia num de nossos apartamentos fechados. Tudo isto porque somos uma espécie esquizóide, cômica, burra, desprezível e digna de um belo e abrangente holocausto, e ele virá, porque os mortos estão planejando sua vinda. Quando o subsolo das cidades e dos campos estiver entulhado de ossos e de poeira, e quando os cemitérios já não suportarem mais tantas mentiras e tantas palhaçadas, então a vida ficará ainda mais incômoda e a mente poderá entrar em colapso, conhecer um novo impasse, tão novo que aquilo que hoje se conhece por loucura não será mais do que um sintoma elementar... Ou talvez não. Pode ser que nada disso venha acontecer e que todo esse teatro siga imutável por mais alguns milênios. Pode ser que um novo Napoleão cresça no ventre de uma dessas mocinhas de Nanterre e que meta um trator sobre toda essa podridão de corpos, para depois construir sobre ela um novo Arco ou uma nova Disneylândia. E duvido que os parisii reajam contrariamente e com sinceridade, que façam uma manifestação a favor dos esquifes e contra a suntuosidade do novo monumento nacional e da nova roda gigante. Ainda vivemos o tempo em que era certo e seguro dizer: o povo só quer pão e circo! Salame e TV! Vinho e livros! E, como disse Henrique IV, depois de converter-se ao cristianismo, por puro interesse político: Paris vaut bien une messe (Paris, vale bem uma missa). Troteio por sobre as lápides ensolaradas como um cão louco! Faço à minha maneira uma antropologia dos mortos, dos objetos deixados sobre as caixas de pedra, da simetria das cruzes, do esquecimento que reina sobre alguns "camaradas" que bateram as botas ainda no século XVII. Faço à minha maneira uma sociologia das sombras, uma arqueologia da dor, uma paleontologia das dentaduras e uma metafísica do pó e do nada. Imagino anéis, relógios, tesouros, ratos e sapatos intactos, sem falar dos parafusos de platina e dos olhos de vidro. Amo os cadáveres, esses milhões de cadáveres como o mais ilustre dos necrófilos, e ao mesmo tempo cuspo sobre os pavilhões escuros e tenebrosos da morte, como o árabe que ontem cuspiu sobre a mesa de um bar em Montmartre. Sinto medo e arrasto os pés frios no tapete de folhas, e por entre os blocos levantam voo pássaros gordos e vadios. As árvores nuas estendem sobre mim seus galhos intactos e de longe surge o ruído de uma broca. Olho o sol, os muros que quase chegam ao primeiro andar dos edifícios e a cabeça de um monumento caída no meio da estreita passagem. Sem perceber, repito em pensamentos uma
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frase de André Malraux: LA TRAGÉDIE DE LA MORT EST EN CECI QU'ELLE TRANSFORME LA VIE EN DESTIN. Cemitério de Bagneux 20/1/92-11h
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8 Cruzei a cidade inteira perseguido pelo pensamento escrito na tumba de Cesar Vallejo, lá no cemitério de Montparnasse: “No dia em que nasci Deus devia estar enfermo". Filho de mãe e pai peruanos (onde nasceu) veio como tantos outros viver a penúria parisiense. A moda era conseguir uma passagem para cá, perambular pelas galerias e pelos cafés, discutir arte, literatura, espiritismo, passar fome, contrair tuberculose, escrever cartas aos que um dia poderiam publicá-las, e depois morrer. O rosário de dores que descrevia nas cartas a seu amigo Pablo era de um desconsolo e de um masoquismo abrumador. "He estado en cama, y, en medio de mis crisis nerviosas... único refugio de mis angustias incurables. Hoy me he levantado. Fiebre, un montón de dolencias" (...) Vuelvo a creer en Nuestro Señor Jesucristo. Vuelvo a ser religioso, pero tomando la religión como el supremo consuelo de esta vida. Sí. Sí, debe haber otro mundo de refugio para los que mucho sufren en la tierra. De otra manera, no se concibe la existencia." Descendente de índios, latino-americano, sem dinheiro, comunista, e ainda por cima absurdamente sensível, como costumam ser os poetas, não podia esperar nada diferente: sucumbiu prematuramente sob a xenofobia e sob as patas dos franceses. Nem sei como o enterraram em Montparnasse. Segundo uma carta de seu amigo Gonzalo, no enterro estavam presentes, além de Tristan Tzara, Aragon, Malraux e outros artistas daquela época. Hoje, todos defuntos. Num restaurante ao lado do Centro G. Pompidou, um guisado com arroz, pimentão e vinho, tudo dedicado cordialmente aos cadáveres parisienses. Logo depois, descubro por acaso um cemitério que não consta em nenhum documento que conheço - trata-se do cemitério muçulmano. Saltei na estação Bobigny-Pablo Picasso, caminhei uns dois
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mil metros até chegar a um cruzamento de viadutos, dobrei à esquerda, caminhei mais uns vinte minutos e deparei-me com um portal branco através do qual pude ver uma mesquita também branca, com sua abóboda azul-celeste. No umbral de entrada, em árabe e em francês, uma inscrição proibindo o ingresso de cachorros. Entrei. Se em qualquer cemitério o "astral" tende a baixar, neste aqui a situação é muito mais depressiva. Tudo se encontra no mais absoluto abandono. Muitas tumbas abertas, muitas cobertas pela vegetação, outras desmoronadas sobre si mesmas ou sobre o caminho. As tumbas são de cimento bruto e, no lugar da cruz cristã ou da estrela de David, cada um desses míseros monumentos exibe uma estrela de cinco pontas ao lado de uma meia lua, o que lembra o símbolo cigano ou a bandeira de uma das nações do mundo árabe. Logo à direita, um quarteirão quase que exclusivo para sepulturas de crianças, para o exército infantil árabe que ainda morre por negligência. A pobreza é um monstro que fulmina grande parte da humanidade e o pior, é que é uma pobreza irreal, forjada por gangues de políticos e de executivos criminosos. Os organismos internacionais, que teoricamente tratam da questão infantil no mundo, estão totalmente entregues a máfias de intelectuais falsos, de administradores canalhas, de burocratas sujos e ladrões, de pederastas desprezíveis que não fazem mais do que trocar favores entre si. Passam a vida em conferências, em viagens, em encontros, em reuniões, rapinando dólares aqui e dólares acolá, enriquecendo-se à custa de demagogias e de truques, de pesquisas ficcionais e de relatórios imbecis e inúteis. Tudo isso com a cumplicidade de jornalistas oportunistas, de escritores vaidosos, de damas ignorantes e analfabetas que colecionam vestidos e sapatos. Que bosta de civilização! Que bosta de sociedade! Que bosta de humanismo! Caminho pelo meio desses túmulos literalmente sem donos, e vou vendo as datas, os dias de vida das crianças. Não me atrevo a fotografar nada, o vento frio me corta as orelhas, por todos os lados há montes de lixo... Além dos muros, parece funcionar um parque industrial, ouço o barulho de máquinas, e a fala insistente dos trabalhadores. Não estou bem, sinto-me rondando uma armadilha perigosa e não entendo por que todo esse abandono. Porque são trabalhadores anônimos?! Clandestinos?! Imigrados pobres?! Ou porque o Alcorão não prescreve maiores cuidados para com os mortos?! É bem provável. Afinal, os mortos estão mortos e é premente e urgente esquecê-los. O cuidado fanático com eles desgasta a vida e os aporrinha. Aproximo-me de um túmulo entreaberto, em cujo interior tenho a impressão de ver um pé apodrecido e envolto parcialmente por uma meia corroída. Olho para todos os lados, tudo
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está calmo. Lá longe, quase junto à porta de saída, a mesquita pintada de azul e branco. Caminho em sua direção com um vazio interior profundo. Procuro saber o que está acontecendo, acelero o passo, olho para trás mais de uma vez, ganho a rua, desço até a estação do metrô e quando finalmente salto para dentro do vagão, permito-me resmungar a frase de um poeta egípcio: "A morte (está) diante de mim hoje, como um homem que sonha em ver sua casa depois de ter passado muitos anos encarcerado". Metrô Bobigny-Pablo Picasso 22/1/92 - 16h.
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9 Neva em Tolouse e em quase toda a região dos Pirineus. Paris vai de -1 a - 7 graus. O vinho fica cada vez melhor e a cama mais convidativa. Na lista, ainda uma infinidade de cemitérios: D'auteuil; Belleville; Bercy; Calvaire; Charonne; Grenelle; De la Villette; Picpus; Saint- Vicent; Saint-Quen; Thiais, etc., sem falar da tumba de Napoleão exposta no interior da Église Saint Louis des Invalides. Nos intervalos, focinhando sebos e livrarias, descobri um livro titulado A Farsa da Literatura. Também caminhei por Strasburgo e Saint Denis, para dar uma olhada nas putas e em seus clientes. Estavam lá, todas de prontidão, o olhar de lince, os casacões de peles comprados nas lojas de roupas usadas, os seios enormes e brancos para fora, apesar do frio, e os cabelos sempre pintados de loiro. É quase impossível imaginar uma puta francesa que não tenha os cabelos e os pentelhos loiros, por isso elas os pintam e assim agradam os lobos árabes, asiáticos, latinos e mesmo franceses que vão ali, pelo menos uma vez por semana, para foder, descarregar o sêmen, sentir os estremecimentos da ejaculação, rever a buceta e o corpo feminino com todos os mistérios que o caracterizam (mistérios imaginários, evidentemente). Visitei também o Museu D'UMMO. Visitar os museus aqui é como visitar um presídio onde os ladrões estão exibindo os objetos e os lucros conseguidos com seus assaltos. Máscaras impressionantes vindas da África, da China, da índia, uma cabeça de pedra roubada na Ilha da Páscoa, a Porta do Sol rapinada inteira da nação boliviana, estatuetas de Madagascar, instrumentos musicais primitivos, vestimentas árabes, chinelos judeus, peças de ferro, de bronze, de madeira... tudo de uma delicadeza e de um gosto estupendo. Tudo roubado ou, na melhor das hipóteses, trocado por um isqueiro, por uma agulha ou por um fósforo. A civilização é uma piada asquerosa! A ética nunca foi mais do que um fiasco, uma orgia, um porre de sem-vergonhas e de doutores. Para mim, ARTE é só a Arte Primitiva, o resto é vaidade, pretensão intelectual, competição entre narcisistas, jogo e demagogia infames. Tive tempo de "infiltrar-me" numa manifestação política contra o racismo e especificamente contra Le Pen. Saiu às 15 horas da Bastille e desfilou em direção a La Nation, com mais de 60 organizações que teoricamente defendem os Direitos dos Homens. Apesar do oba-oba, do exibicionismo, do estrelismo, do revolucionismo, da megalomania e do fanatismo que sempre impera
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nesse tipo de "festas", as bandeiras levantadas, os slogans, os gritos, as músicas e os discursos faziam os corações vibrarem. Todos os seres anseiam por uma revolução radical, por uma mudança de 180 graus nas condições de vida no planeta e mesmo no universo, mas é só um anseio, só uma quimera que não poderá acontecer jamais, porque os próprios idealistas levam em si os males que gostariam de extirpar nos outros. Empurrões, cotoveladas, discussões, bandeiras que vão aparecendo no monumento central, faixas levantadas por negros, lésbicas, turcos, gregos, armênios, árabes, asiáticos, punks, anarquistas, socialistas, comunistas... tudo toma ares de uma grande marcha, de uma grande manifestação popular que duas ou três horas depois terá se esfumado. Mas apesar de tudo, do frio e do teatro, as imagens e a história proporcionam a todos uma tarde agradável e digna de Paris. Quando vires para cá, é bom que lembres também dos mortos. Em vez de ires apenas de uma botique a outra, de um restaurante a outro e de um museu a outro como um alienado, é bom que lembres que em cada esquina desta cidade já esteve montada uma guilhotina, e que a conhecida Revolução dos franceses foi uma chacina sem igual. A pretensão de Liberdade, Igualdade e Fraternidade foi construída sobre crânios decepados. Já fui vê-los no cemitério de Picpus, onde pelos menos mil e trezentos apodreceram. Enfia em tua cabeça de uma vez por todas que Paris não é apenas o Boulevard das boutiques, o quartier dos perfumes, a Ópera lotada de turistas ou o que o Le Figaro mostra em suas páginas, é muito mais, e só não sabemos ainda com a profundidade que deveríamos saber porque não costumamos dar a palavra aos mortos. Na rua Amelot, 145, a Livraria Libertária, com seus vendedores míopes e mal-educados, dá provas de que o comércio subverte absolutamente tudo. Não sei como ainda não começaram a vender as cinzas de Bakunin e os pentelhos de Proudhon. Cité Universitaire 29/1/92
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10 "Oh mágico sonho! Oh ave confortável, que pousas sobre o tormentoso mar da mente até que ela se cale e sossegue!" Keats
No Hotel de Ville, onde está situada a Mairie de Paris, busquei informações sobre Genet, Foucault, Sade e Bataille. Mandaram-me para a rua Curial 5, metrô Riquet, onde uma velhinha amável fez várias ligações e concluiu que nenhum dos quatro estava enterrado no município de Paris. Ou estão nos cemitérios da periferia ou no de outras cidades da França, como van Gogh e Cocteau. Mais tarde descobri que Genet está enterrado num cemitério espanhol em Tanger (Marrocos) e que Sade está no interior da França. Voltei ao cemitério de Montparnasse em busca da tumba de Proudhon, a qual, segundo o Guide de Marcel Le Clere, estaria ali na Segunda Divisão. Esta deve ser a quarta ou quinta vez que venho aqui e o porteiro parece reconhecer-me. Esfrega uma mão na outra, ri, confere seu caderno e me assegura (com um hálito de álcool) que o velho anarquista não está enterrado neste cemitério. Tenho tempo, todo o tempo do mundo e resolvo inspecionar tumba por tumba na Segunda Divisão, umas já abandonadas pelas famílias proprietárias, outras ainda cobertas de flores frescas. O dia está claro, claríssimo, e o cemitério enche-se de sombras móveis que ora estão de um lado, ora de outro. Por mais que se esteja "familiarizado" com o ambiente, é difícil passear por aqui, é difícil relaxar completamente e por muito tempo, pois sempre surge um ruído novo ou uma movimentação qualquer que nos assusta. O medo infantil de cemitérios fica disfarçado no inconsciente dos homens e manifesta-se na primeira oportunidade. A fauna e a flora aqui dentro são ricas e variadas, tanto é que já vi gatos, pombas, uns pássaros pretos que ainda não sei o nome, moscas, e até minhocas nas raízes de uma plantinha parecida com begônia. Se fosse botânico, faria um dia um levantamento das plantas, ervas, flores, etc., que simbolicamente estão relacionadas com a morte sei que são muitas, e que talvez o narciso seja a principal delas. [Plantam-se narcisos sobre os túmulos. Simbolizam o entorpecimento da morte, mas uma morte que não é talvez senão um sono].
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As folhas das árvores caíram aqui também e criaram um tapete natural sobre os mortos e sobre o caminho que separa uma tumba da outra. Meus ouvidos esforçam-se para distinguir o ruído de meus próprios passos daqueles que às vezes me chegam de longe, de uma janela lá no alto ou de uma estação de metrô. Descobri por acaso o túmulo de Honoré Champion, dei uma volta pelo da Simone e do Sartre, olhei de longe o de Baudelaire e despachei um cascudo na esfinge de um parente de Napoleão. Outra coisa curiosa que descobri aqui dentro é que, daqui do meio dos monumentos aos mortos, às vezes vemos alguém a uns cinco metros de nós, mas basta que ele ou nós nos movimentemos um ou dois passos para que o outro se esfume. Tentei encontrar um jovem que sumiu num piscar de olhos, mas não vi mais nem sua sombra. Este tipo de fato é que deve ter dado margem às lendas de espectros e de fantasmas. Nada de Proudhon! Desse monsieur que sabia que a ropriedade é um roubo e que foi o precursor da Seguridade Social. Claro que ele nem devia sonhar com as aberrações do futuro e muito menos que lá num país da América Latina fosse nomeado um boxeador para administrar este assunto. Montparnasse 30/1/1992
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11 O trem mergulha na neblina sem alterar em nada sua suavidade e sua marcha, enquanto por debaixo dos assentos "emerge" um calor voluptuoso. Vamos em silêncio, ela e eu, em busca da tumba de van Gogh. Acabamos de saltar da cama, ela antes de mim, quase sonâmbula de tanto vinho e de tanto gozo. Esta vez foi ela quem tomou a iniciativa, enquanto eu fingia que dormia: brincou com meu pau, lambeu-o, apertou-o com uma certa violência e depois encostouse nele com as pernas abertas, a buceta úmida e o introduziu em si bruscamente. Abri os olhos e a vi de boca entreaberta, os dentes e os lábios manchados de vinho, as pupilas dilatadas, séria. Rolei para a esquerda, fiquei com as costas cravadas no colchão vagabundo e a recebi de cócoras sobre meu membro rígido. Ela subia e descia sobre ele com uma delicadeza indescritível e com um calor quase impossível para uma manhã invernal como esta. Minhas duas mãos em seus seios davam-lhe um certo equilíbrio e permitiam que ela seguisse sua dança amorosa. Bastava que eu levantasse um pouco minha cabeça para ver os lábios de sua xota subirem até a cabeça de meu pau e descerem em velocidade até a raiz de meus pentelhos. A cama rangia, um debilóide ligou uma TV num tom acima do normal, minha boca foi ficando seca, o quadro de Gauguin acima de nossas cabeças mudou de posição várias vezes, senti que ela estava fora de si, que estava literalmente perdida e mergulhei num redemoinho de contrações e num derrame interminável... Agora estávamos um frente ao outro, sem palavras. Numa cidadezinha a trinta quilômetros de Paris viveu por uns meses o maluco van Gogh. Foram apenas setenta dias em Auvers-sur-Oise, nos quais pintou setenta telas e depois deu-se um tiro. Subimos a ladeira, passamos pela igreja cuja pintura o popularizou, entramos no pequeno cemitério e localizamos sua tumba bem junto ao muro e ao lado de seu irmão Theo. Como a região é agrícola, o cemitério está situado no meio de plantações de trigo, onde estão expostos dois de seus quadros, um deles, Corvos do trigal, sua última obra (1890). Um frio seco atravessa minhas carnes e belisca meus ossos, lambuzei meus tênis de barro, tomamos um café expresso, entramos numa livraria de obras antigas e passeamos pela ponte que cruza o rio Oise. Estou leve, praticamente sem saber onde estou. Passaria a vida inteira assim, de um anonimato a outro, de um país a outro, como um furacão caribenho, sem ter que me digladiar com a turba calhorda, sem ter que
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mergulhar vergonhosamente num trabalho inútil, numa sociedade hipocondríaca e nojenta. Cruzei a linha do retomo, agora amo as pulsações da lua, a distância das galáxias, a mão dela que me fez uma carícia inigualável. O contato com a morte me revigora, me dá lucidez, me enche de paixão e me inebria, ao mesmo tempo que me lança vertiginosamente contra os trilhos dos trens! É preciso ir ao fundo das tumbas para poder levitar sobre essa porcalhada fascista, sobre esses comerciantezinhos nojosos, sobre essa imundície patriótica! Na estação, um termômetro marca zero grau. Seus lábios carnudos estão ressecados e ela caminha de cá para lá, amaldiçoa a ausência do sol, lança sobre mim as chamas de um ciúme inventado, me enche de promessas e de amor. O trem chega como se fosse uma miragem. Não temos bilhetes, viajamos na ilegalidade, somos do Terceiro Mundo, odiamos simpaticamente Le Pen. Voltamos para Paris, que já está mergulhada na noite. Van Gogh está fotografado, o vale do rio Oise não sairá nunca mais de nossas memórias. Vagão número 4, Auvers-sur-Oise/Paris.
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12 Caso já tenhas estudado a história da loucura, a vida de Freud, ou a vagabundagem em Paris, com certeza já deves ter conhecimento da existência do Hospital da Salpêtrière. O avistei ainda da janela do trem. Estava lá, com seu aspecto parecido ao de um imenso seminário ou a de um imenso presídio, cujos pavilhões desembocavam todos na Chapelle St. Louis, que aparecia no meio de tudo como um monstruoso cogumelo. Depois, tomei a rua que desce pela direita e caminhei ao lado de ambulâncias que entravam e saíam por portões amplos e seculares, até deparar-me com uma pequena porta de madeira rústica. Empurrei-a com o ombro e vi-me num ambiente estranho, mergulhado na penumbra. literalmente nua, misteriosa e empoeirada, essa capela é algo à parte. O tempo lá dentro é algo visível e material, muito mais palpável que o tempo dos relógios e sua aparência de abandono insinua todo o passado macabro daquele hospital. Foi lá na Salpêtrière onde se ensaiou pela primeira vez os tratamentos à loucura, às doenças nervosas, psicológicas e até mesmo sociais. Paris no século XVI possuía um exército de mais ou menos quarenta mil vagabundos, mendigos, indigentes, famintos que um dia ou outro acabavam sendo encaminhados para lá, para "tratamento". Uma pastilha, um xarope, uma imersão, uma surra com um rosário, anos e anos numa solitária, tudo era experimentado com os pobres e mesmo com os remediados. Até o século XVIII e XIX, esse imenso hospital foi um dos únicos hospícios para os pobres da França, e nele os que ingressavam, pagavam caro. Imagens mutiladas, a espessura das paredes e um espaço demasiadamente grande para umas poucas cadeiras de palha, para uns poucos bancos grudados às paredes, para uns confessionários vazios, no escuro. O piso de pedras retangulares e assimétricas estava gasto, ao contrário das abóbodas, intactas e soberbas. Que loucuras aquele ambiente já presenciou! Trezentos anos de paixões sem freio, de histerias incuráveis, de exorcismos malfeitos! Durante o tempo em que passei lá dentro não apareceu ninguém, a não ser os três sujeitos e uma senhora que saíam no exato momento que eu entrava. Ainda pude observar que todos eles ostentavam o tipo clássico e bizarro dos psicanalistas: as mãos nos bolsos do sobretudo, o olhar artificial de observação, o passo fingidamente seguro, as olheiras disfarçadas, o perfume de um
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sabonete que a polícia costuma usar. Todos eles gostam de ir ali para prestar uma homenagem ao velho Freud, pois foi ali que ele iniciouse, ao lado de Charcot e das histéricas da época. Alguém tossiu enquanto eu examinava uma das salas paralelas e sua rouquidão ecoou de parede em parede. Imaginei como seria um negro tocando sax bem aos pés de Santo André, ou um táxi com a buzina enguiçada junto à entrada da sacristia. Saí por uma das quatro portas e vi-me num pátio aberto, com algumas árvores sem folhas, uma placa que indicava o Departamento de Neurochirurgie, bem como o nome do médico de plantão: Dr. Philippon. Passei em frente a École des Infirmieres, cruzei com vários homens vestidos de branco que iam de um pavilhão a outro, com seus passos mórbidos e com os aventais não tão limpos. Um certo estremecimento percorria minha espinha, descendo para meu estômago, não sei se de frio, por causa do cheiro de alguma química, ou de ansiedade. No outro lado, pátios enormes com bancos rasurados, pavilhões, famílias chegando com seus doentes para uma simples triagem ou para internamento. Circulei de um lado a outro sem ser importunado, deixando meus olhos vagabundearem. As ambulâncias pareciam estar todas em movimento, homens caminhavam de mãos nos bolsos, com os olhos cravados na calçada, alguém se nega a receber uma injeção e depois chora alto... Uma seta indica a saída para a rua Bruant. Me dirigi para lá, cruzando em frente ao pavilhão Antonio Gosset, e anotei o nome do médico Kieffer, que era o plantonista daquela hora. Um gordo caminhava em minha frente, levado pela mão por um senhor bem mais velho que ele. Em seu olho esquerdo havia as marcas de agressão. Fui caminhando e imaginando como devia ser um dia comum naqueles pátios, durante o século XVIII: os doentes soltos por ali, as filas para ingressar na capela, para comer, ou mesmo para voltar às ruas. Descansei propositadamente num daqueles bancos frios, onde milhares e milhares de outros seres devem ter descasado e senti-me um deles à mercê da rotina burocrática e do pseudo saber científico. Lembrei-me, consolado, que a loucura tem, durante todos esses séculos, cuspido sobre todos os métodos e sobre todas as ciências que tentaram "controlá-la", e de que ainda segue incólume, sem alterar um milímetro de sua rota, dando chances para que os demagogos e os charlatães ganhem dinheiro à sua sombra. Vi num relógio imenso que era quase meio-dia. Segui minha caminhada em direção ao portão de saída, onde estavam duas mulheres falando alto, quase gritando. O francês é uma língua bárbara, o frio me abre o apetite, a Salpêtrière ficou para trás com seus séculos
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e com sua história hedionda. Gare Austerlitz 12h15
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13 "Que homem, num desses momentos de tristeza que enchem a vida, não desejou a morte e que homem não se teria dado a morte, se isso dependesse de um simples ato de sua vontade?" J. P. Marat Um personagem que gostaria de ter conhecido ou de pelo menos ter visto tomando uma cerveja no Mac Donald's de Montparnasse é esse tal de Marat. Apunhalado na banheira, por Carlota Corday, em 19 de julho de 1793, esse sujeito foi um dos primeiros revolucionários que cuspiu sobre as monarquias e sobre os cléricos. Na origem, diz Marat, todos os reis e príncipes foram chefes de bandidos e todas as religiões auxiliam o despotismo. Marx, Bakunin, Proudhon e todos os construtores das teorias libertárias plagiaram um pouco as ideias desse aventureiro que tinha consciência de que "é sempre por veredas semeadas de flores que os exploradores conduzem o povo à escravidão". Acabo de visitar o cemitério de Picpus, onde estão duas fossas coletivas, com 1.306 pessoas que foram guilhotinadas ali na praça da Nation e levadas para lá, em pilhas, sobre carroças. Imagino uma carroça abarrotada só de cabeças e outra com os corpos mutilados! O passo dos cavalos e o rastro de sangue. Eram os burgueses roubando o poder da nobreza e substituindo as formas abertas de opressão por outras mais sutis. O ódio dos nobres, dos burgueses e dos proletários é o mesmo: a fera sanguinária que se oculta nos DNAs da espécie não se altera, apenas se maquila. Portanto, é chegado o momento de vomitar sobre todos os criminosos, pertençam eles à casta que for, pois não serão os reis, os banqueiros nem os sindicalistas que irão nos dar esperanças. Picpus(l5h)
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''A morte é a destruição violenta do erro fundamental de nosso ser, o grande desengano." A. Schopenhauer
Cruzei o Sena umas mil vezes, ora apressado, ora solto e vagabundo, com a bolsa da câmera maltratando meu ombro esquerdo, um punhado de francos no bolso do casaco de couro, os pensamentos indo e vindo aos pulos. Trabalhar sobre a morte é meio complicado, porque os mortos passam a seguir-nos e os vivos perdem radicalmente o valor. A morte é um golpe intolerável. Ter consciência de apodrecer é demais para um animal tão frágil e dependente como o homem. O poder satânico da morte está na capacidade que ela possui de destruir em pedaços um Ego que foi pacientemente montado, de interromper as ilusões, os sonhos, as fantasias dionisíacas e, finalmente, porque ela retira o morto bruscamente do mercado, do cenário onde uma plateia imensa ainda segue uivando e tagarelando. Essa saída humilhante e catastrófica é a última e mais brutal agressão que o indivíduo experimenta antes de sumir do mapa. Se por um lado as regras da sedução, da elegância, da higiene sugerem o ocultamento de nossas entranhas (catarro, merda, peidos, remela, urina, corrimento, chulé, hálito, suor e mesmo o sono), por outro, a morte expõe abertamente ao mundo toda nossa imundície, inclusive, com uma espécie de ironia. Por isso, morrer é cair vertiginosamente na mais indesejável de todas as situações, já que o morto configura na íntegra o perfil do idiota, do mentecapto e daquele que não pode nem menear a cabeça para servir, nem levantar os punhos para rebelar-se. Uma estátua, pelo menos, é feita de material que não perece e que não fede, enquanto o morto, logo cobre-se de vermes e produz uma asquerosa carniça... Circulei um bom tempo por entre as esculturas de Rodhin, e elas fizeram-me perceber claramente essa inferioridade. Aqueles pés enormes e sólidos, os músculos pujantes, o pescoço robusto, os olhos
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protegidos por uma carcaça indestrutível... Admirando-as, senti uma espécie de fascínio, não propriamente pela arte que representam, mas por sua duração no tempo e por sua imunidade. É provável que a população de Paris se renove cinquenta ou cem vezes, enquanto elas continuarão exibindo vitalidade. Mesmo expostas ao frio, ao calor, às chuvas, à neve, aos ventos da noite, mesmo assim avançam sobre o tempo e sobre a história quase como numa afronta a quem as esculpiu. Se de Rodin hoje não restam nem as cinzas, o mármore, o bronze e mesmo o gesso trabalhado por suas mãos estão intactos. E não adianta cantar hosanas nem predicar que a obra vale pelo autor: vale porra nenhuma! E depois, a questão não é se vale ou se não vale, o problema é ser carne, sangue, nervos e glândulas, tudo fácil e vergonhosamente perecível. Paris está linda! Se não fosse a monotonia que a caracteriza e a estabilidade de todas as coisas, seria um êxtase morar sob uma destas pontes. Faz quinze anos que me hospedei numa espelunca da rua Max Dormoy, voltei lá, e tudo segue exatamente igual: a mesma camareira, o mesmo porteiro árabe, a mesma torneira que de tanto pingar me fez arremessar sobre ela uma cadeira. Passam-se mil anos e Paris não se altera, a disposição dos sapatos nas vitrines é a mesma; os motoristas dos ônibus e dos trens já estão caducos e nunca mudaram de posto; a mesma família vende crepes há uns duzentos anos em Saint Germain; os atores não se cansam de representar Moliére, de ouvir Ravel, de cultuar Bonaparte. Que roda d'água obsessiva! Se a superficialidade, a desordem e a instabilidade brasileira me esquarteja, esta rotina me estrangula. Ela se parece com a morte, pela certeza e pela desilusão que antecipadamente garante... Mas Paris é Paris! E hoje há sol! Até encontrei um ex-ministro brasileiro. Estava acompanhado por sua velha. Ria de tudo, tirou o chapéu para que eu o reconhecesse, recomendou-me a visita a uma determinada igreja e seguiu lento pelo boulevard. Devem "esconder" o dinheiro aqui, ou na Espanha, ou mesmo no Paraguai. As autoridades de todos os países são cúmplices nesse tipo de assunto, não se traem jamais, dividem o planeta como as hienas dividem um búfalo retardatário. E seus filhos gastarão tudo em cassinos depois de suas mortes! A nojenta estrutura monárquica ainda está em vigor no mundo, e eu começo a ter dúvidas sobre meu sentimento por eles. Se os odiasse de verdade, teria aproveitado esta oportunidade e saltado sobre seu pescoço e metidolhe oito vezes o canivete no ventre. Não o fiz. Também ri, mostrei os dentes como um cão tolerante, estendi-lhe a mão, chamei-o de ministro e sequer cuspi quando ele me recomendou uma visita à Igreja
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de Saint Severino Desci a escada rolante de Les Halles, onde um exército de punks estava estacionado com seus cachorros, suas botas, suas correntes, seus penteados e sua sujeira. Pediram-me dinheiro, sem imaginar que o dinheiro é meu deus e que ninguém, hoje em dia, é demente o bastante para ser ateu. Neguei. Olhei-os com desdém. Como iria abrir mão de meu deus, se não abro mão nem do oxigênio que me cabe? Querem dinheiro? Assaltem o Banco da França ou sequestrem a primeira dama, sugeri-lhes pausadamente, em português. Hoje é fácil passar do ateísmo à fé, basta ter coragem e sorte. Um assalto bem sucedido faz de qualquer degenerado um guru, um místico, um sábio e até um enviado. Por outro lado, aqui na França, onde o salário mínimo e o saláriodesemprego são iguais a cinco mil francos, não é difícil cair na beatitude. Só persistem no ateísmo, hoje em dia, os indigentes e aqueles bitolados pela renúncia e pela demagogia. Aeroporto de Orly 9/2/1992
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NECROfilia NECROfobia
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É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz perder para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis. E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão de vosso quarto, despertardes, com a embriagues já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder: - É a hora da embriagues! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. CHARLES BAUDELAIRE
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Acendo, apago - envergonhado, permaneço de pé frente à janela, vou de uma janela a outra, apoiando-me nos móveis. Um instante vejo o céu, os diferentes céus, logo se fazem rostos, agonias, os diferentes amores, felicidades também, também houve felicidades, desgraçadamente. Momentos de uma vida, da minha, entre outras, claro que sim, por fim. Felicidades, que felicidades, mas que mortes, que amores, ao momento o soube, era demasiadamente tarde. Ah, amar, morrendo, e ver morrer, os seres rapidamente queridos, e serem felizes, porque, ah, não vale à pena. Não, mas agora, só permanecer aí, de pé frente à janela, com uma mão sobre a parede, a outra agarrada à camisa, e ver o céu, um pouco parado, mas não, soluços e espasmos, mar de uma infância, de outros céus, outro corpo. SAMUEL BECKET
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Os mortos estavam ainda quentes, o sangue ainda fluido sobre as lajes; mas já mortos, mortos para sempre, e os vivos continuavam a viver como se não devessem morrer nunca; transportavam através de sua vida os cadáveres dóceis. Os sinos dobravam e de todas as ruas surgiam bandos que agitavam bandeiras e tochas; as tochas iluminavam com luz vermelha as lajes molhadas. O cortejo aumentava de minuto em minuto; o bulevar estava submerso por uma maré escura, sempre igual a si mesma, de pé, intacta, a imensa maré humana. Não faltava ali uma só gota d'água; a peste passara, a cólera, a fome, as fogueiras, os trucidamentos, as guerras, as revoluções, e ela estava inteira, os mortos embaixo da terra, os vivos sobre a terra, sempre a mesma espuma. SIMONE DE BEAUVOIR
Silêncio lunar sob o sol: efígies grosseiras de gesso, em círculo no deserto, lembrarão às espécies futuras o que foi a raça humana. JEAN PAUL SARTRE
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Sim, a partida estava perdida, bem perdida: nem sequer me restava, nas condições em que chegava o desenlace, o orgulho de havê-la jogado. Sob meus olhos as árvores, os livros, as pessoas flutuavam, um punhal no coração. André Breton
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Princípio da sessão: curar a enfermidade. Um estado de ânimo podia apoderar-se de um povo agoniado por acontecimentos históricos ou morrendo em uma paisagem viciada. Tratam de liberar-se do destino, a morte, o terror. Buscam a possessão, a visita dos deuses e os poderes, uma 'reconquista da fonte da vida em mãos dos demônios. A cura não se arranca do êxtase. Curam a enfermidade ou evitam seu aparecimento, reestabelecem os enfermos, e recuperam a alma, roubada. JIM MORRISON
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Tudo o que abandona o domínio da percepção ordenada e clara das coisas escritas, tudo o que visa a criar uma desordem das aparências, introduz uma dúvida na posição das imagens do espírito em relação umas às outras; tudo o que desordena a relação entre as coisas conferindo ao perturbado pensamento um aspecto mais vasto ainda de verdade e violência, tudo isto oferece à morte uma saída, põe-nos em contato com os mais refinados estados do espírito em cujo interior a morte se exprime. Por isso quem sonha sem deplorar os seus sonhos, sem trazer uma sensação de atroz nostalgia desses mergulhos em fecunda inconsciência, é porco. O sonho é verdadeiro. Todos os sonhos são verdadeiros. Tenho a sensação de asperezas, paisagens como que esculpidas, pedaços de terra ondulantes cobertos por uma espécie de areia fresca cujo sentido quer dizer: "pesar, decepção, abandono, ruptura, quando é que voltamos a ver-nos?" Nada faz lembrar tanto o amor como o apelo de certas paisagens vistas em sonho, como o que rodeia certas colinas e é uma espécie de argila material cuja forma diríamos moldada pelo pensamento. Quando é que voltamos a ver-nos? Quando é que o sabor terroso dos teus lábios voltará a roçar a ansiedade do meu espírito? A terra é como um turbilhão de lábios mortais. A vida escava-nos à frente o abismo de todas as carícias que faltaram. Que fazer ao nosso lado o anjo que não soube aparecer? As nossas sensações serão todas intelectuais de vez, e os nossos sonhos não chegarão a incendiar-se numa alma cuja emoção nos vai ajudar a morrer? Que morte será esta onde nunca estamos sós, onde o amor não sabe mostrar-nos o caminho? A. ARTAUD
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A verdade deste mundo é a morte. Verdade que precisa ser encarada por uma humanidade fundamentalmente ocupada em fazer sua digestão. L. F. CÉLINE
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Oh! de que me servem luzes tão tardias e tão dolorosamente adquiridas sobre meu destino e sobre as paixões alheias da qual é obra? Aprendi a melhor conhecer os homens apenas para melhor sentir a infelicidade em que me mergulharam, sem que esse conhecimento, revelando-me todas suas armadilhas, me tenha podido evitar alguma. Por que não permaneci sempre nessa fraca mas doce confiança que me tomou durante tantos anos a presa e o joguete de meus barulhentos amigos sem que, envolvido por todas as suas tramas, dela tivesse a menor suspeita! Enganado, era sua vítima, é verdade, mas julgava-me amado por eles e meu coração desfrutava da amizade que me haviam inspirado, atribuindo-lhes a mesma em relação a mim. Essas doces ilusões estão destruídas. A triste verdade, que o tempo e a razão me revelaram, fazendo-me sentir minha infelicidade, fez-me ver que ela não tinha remédio e que somente me restava resignar-me ao fato. Assim, todas as experiências de minha idade, no meu estado, não têm para mim nenhuma utilidade presente e nenhum proveito para o porvir. Entramos na liça ao nascer, dela saímos ao morrer. Todos os velhos dão mais apreço à vida do que as crianças e a deixam com maior má vontade do que os jovens. E que, como todos os seus trabalhos tiveram essa mesma vida por objetivo, veem, no final, que perderam seus esforços. Todos os seus cuidados, todos os seus bens, todos os frutos de suas laboriosas vigílias, tudo deixam quando se vão. Não pensaram em adquirir alguma coisa, durante a vida, que possam levar com a morte. J. J. ROUSSEAU
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A máscara cai, a realidade permanece. LUCRÉCIO
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A morte: algo extranatural e não sobrenatural. Vitória do artifício sobre a natureza, tanto mais significativa quanto maior for sua intervenção sobre um dos terrenos que a ideia de natureza reivindica como próprios. Nesse momento é quando a natureza empreende sua última e suprema tarefa que revela seu caráter fantasmagórico, em uma estranha execução na qual desaparecem simultaneamente a vítima e o verdugo. Malefício que pesa sobre a condição humana o de perecer sob os golpes de uma sombra: dever sua morte ao fictício (à sorte) e não ao natural (à necessidade) agrega uma humilhação à tristeza da renúncia forçada à vida CLÉMENT ROSSET
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A vida não passa de uma profecia que se cumpre; tu morrerás, diz o berço ao Homem; e o Homem morre; e duas coisas se abrem ao mesmo tempo: o ventre que se dilacera para parir e a sepultura que se prepara para devorar o ser que nasce; que importa a duração da travessia entre esses dois infinitos? A trajetória de uma flecha que vai ao coração do Nada; e morre nele... VARGAS VILA
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Qual fosse um cão ladrão, dali, triste, se esquiva; Como uma ovelha exausta, ela jaz palpitante; Desgostoso, se odeia e a seu negro atentado; Com as unhas, fere ela a carne, em desespero; De medo de seu crime a suar, foge, trêmulo; Fica ela a maldizer aquela noite horrenda; Ele corre e maldiz seu prazer sujo e vão. W. SHAKESPEARE
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Tudo o que fazemos na vida, mesmo o amor, o fazemos no comboio expresso que rola para a morte... COCTEAU
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A arte ótima será aquela que apresenta conscientemente, em seu conteúdo, os milhares de problemas do cotidiano, uma arte que tenha sido visivelmente abalada pelas explosões da última semana, uma arte que esteja sempre tentando juntar os membros estilhaçados no desastre da véspera Os artistas melhores, os mais extraordinários, serão aqueles que, a cada momento, arrancam os frangalhos de seus corpos para fora da frenética catarata da vida, que com mãos e corações ensanguentados se agarram à inteligência do seu tempo. MAX ERNEST
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A separação é irremediável; estou afastado de tudo, somente o olhar me liga às coisas. Não me será concedido apoiar os pés em um solo firme e seguro, nem construir com minhas mãos uma morada de pedra, nem comer em paz os alimentos cozidos no fogo doméstico. Logo dirigiremos a proa para o lado que nenhuma ribeira limita, e sob as formidáveis velas, nosso passo em meio a essa eternidade monstruosa só será marcado pelas luzes que se perdem na borrasca. J. J. ARREOLA
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Tenho o sentimento de que dentro de pouco tempo tudo deve acabar. As minhas imprudências são graves e sei que a catástrofe de asas de luz será o resultado de um pequeno, pequeníssimo erro. Mas, enquanto espero como uma graça a infelicidade, é bom que me empenhe nos jogos habituais do mundo. Quero me realizar num dos destinos mais raros. Vejo indistintamente o que ele será, quero-o não como uma curva graciosa ligeiramente inclinada para a noite, mas com uma beleza nunca vista, bela por causa do perigo que o trabalha, o transtorna, o mina. Oh, faça com que eu seja toda a beleza! Irei depressa ou devagar, mas hei de ousar o que for necessário. Destruirei as aparências, as lonas cairão queimadas e aparecerei uma noite, na palma das mãos de vocês, tranquilo e puro como uma estatueta de vidro. Vocês me verão. A minha volta, não existirá mais nada. JEAN GENET
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O que distingue o homem dos outros animais é que de uma forma ou de outra ele conserva seus mortos. E por que será que tão futilmente os protege? A consciência infeliz recua ante sua própria aniquilação... O gorila, o chimpanzé, o orangotango e sua espécie devem encarar o homem como um animal débil e vacilante, cujo exótico costume é armazenar seus mortos. UNAMUNO
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Quando se faz uma pessoa fixar o olhar no sol que cresta a carnificina diária que ocorre na terra, os acidentes ridículos, a absoluta fragilidade da vida, a impotência dos que ela julgava mais poderosos, que consolo você poderá dar-lhe? Luis Buñuel gosta de colocar um cão louco em seus filmes como contraponto da rotina diária, segura da vida reprimida. O sentido desse simbolismo é que não importa o que os homens finjam, estão apenas separados por um fragmento acidental, da total falibilidade. O artista disfarça a incongruência que é a pulsação da loucura mas tem consciência disso. Que faria o homem comum com uma plena consciência do absurdo? Ele modelou seu caráter exatamente com o fim de interpô-lo entre si e os fatos da vida; este é seu tour de force especial que lhe permite ignorar incoerências, alimentar-se de impossibilidades, ser bem sucedido na cegueira. Ele consegue, por conseguinte, uma vitória peculiarmente humana: a capacidade de ser superior ao terror. Sartre chamou o homem de "uma paixão inútil" por estar tão irremediavelmente embaraçado, tão iludido a respeito de sua verdadeira situação. Ele quer ser um deus, tendo apenas o equipamento de um animal, e por isso se regala com fantasias. ERNEST BECKER
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Ninguém tem segurança fora da "fé" de estar desperto ou dormindo; uma vez que durante o sono não se crê menos firmemente estar desperto que quando se está desperto efetivamente... De modo que se a metade da vida se passa dormindo por própria confissão... quem sabe se esta outra metade da vida em que acreditamos estar despertos não é um sono um pouco diferente do primeiro, do qual despertamos quando acreditamos dormir? PASCAL
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O ser de que gozais é metade vida, metade morte. Desde o primeiro dia do nascimento, começais a morrer tanto como a viver. Cada momento que vives é roubado à vida; e correu à sua custa. A obra incessante da vida é construir a morte. Estais na vida, porque depois da vida estais depois da morte. Ou, se assim o preferis, estais mortos depois da vida, mas durante a vida estais morrendo; e a morte afeta mais rudemente o moribundo que o morto, e mais vivamente e essencialmente. Se vos aproveitastes da vida, já estais fartos: ide-vos embora satisfeitos. E, se não soubestes aproveitá-la, se vos foi inútil, que importa perdê-la? Que mais quereis. Se vivestes um dia, já vistes tudo: um dia é igual a todos os dias. Esse sol, essa lua, essas estrelas, essa disposição, tudo é o mesmo que vossos antepassados gozaram e que há de entreter os vossos tataranetos. M. S. DE MONTAIGNE
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Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham nessa imundície pedregosa? Filho do homem, não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol, e as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o canto dos grilos, E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas uma sombra medra sob esta rocha escarlate. Tu que estiveste comigo nas galerias de Mylae! O cadáver que plantaste ano passado em teu jardim já começou a brotar? Dará flores este ano? Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito? Conserva o Cão à distância, esse amigo do homem, ou ele virá com suas unhas outra vez desenterrá-lo! “Tu! Hypocrite lecteur! mon semblable, mon frere!” T. S. ELIOT
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A vida, que nos parece uma coisa agradável e festiva, não é senão o começo de nossa agonia, isto é, de uma agonia continuada, posto que a humanidade morre para renascer e renasce para morrer de novo. OS UPANISHADS
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Pela roda sem fim, de nascimento e morte, buscando em vão, eu me impus ligeireza para encontrar o construtor deste edifício. Nascimento incessante! Que infelicidade! Oh, construtor! Te descobri! Jamais reerguerás este edifício! Todas as vigas agora estão quebradas! E o teto pontiagudo jaz em ruínas. BUDISMO ZEN
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A ansiedade do destino e da morte é a mais básica, mais universal e inescapável. Todas as tentativas de negá-la são fúteis. Mesmo se os assim chamados argumentos em favor da "imortalidade da alma" tivessem poder argumentativo (que eles não têm) não convenceriam existencialmente. Pois existencialmente todo o mundo tem certeza da completa perda, do EU que a extinção biológica implica (...) e que o destino não produziria uma ansiedade inevitável se não tivesse a morte por trás de si. PAUL TILLICH
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Experimento uma alegria melancólica de viver em meio a essa confusão de vielas, de necessidade e de vozes; quantos prazeres, impaciências, desejo, quanta sede da vida e embriaguez de vida surgem aqui a cada momento! E todavia logo o silêncio se fará sobre todas essas pessoas ruidosas, vivas e contentes da vida. Atrás de cada um ergue-se sua sombra, um escuro companheiro de jornada. É sempre como o último instante anterior à partida de um navio de imigrantes; mais coisas a serem ditas que nunca, o oceano e seu silêncio vazio esperam impacientemente atrás de todo esse ruído tão ávidos, tão certos de sua presa! E todos, todos imaginam que o passado é nada ou que o passado é coisa pouca e que o futuro próximo é tudo: essa angústia, esses gritos, essa necessidade de ensurdecer e de explorar que os domina. Cada um quer ser o primeiro nesse futuro e entretanto a morte e o silêncio da morte são as únicas certezas que têm em comum! Como é estranho que essa única certeza, essa única comunhão seja quase impotente para agir sobre os homens e que eles estejam tão longe de sentir essa fraternidade da morte! Sou feliz ao constatar que os homens recusam absolutamente conceber a ideia da morte, e gostaria ainda mais de contribuir para isso, tomando-lhes cem vezes mais digna de ser pensada, a ideia da vida FRIEDRICH WlLHELM NIETZSCHE
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É verdade que se vive sobre a terra? Não para sempre na terra: só por um pouco. Mesmo que seja de jade se quebra mesmo que seja de ouro se despedaça, mesmo que seja de plumas de quetzal se desfaz, não para sempre na terra: só por um pouco. Sim, um dia nos vamos, numa noite descemos à região do mistério, aqui só viemos para conhecer-nos, só estamos de passagem sobre a terra. Em paz e em prazer passemos nossa vida: venham e gozemos! Que não o façam os que vivem enraivecidos: a terra é muita extensa! Oxalá se vivesse para sempre, oxalá não tivéssemos que morrer! DA FILOSOFIA NÁHUATL
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Nós pensamos raramente por nossa sorte e salvação que cada um de nós é um futuro cadáver que se move, por um certo tempo ainda, no meio de uma multidão de futuros cadáveres. Mesmo o rapazinho fresco e florescente, mesmo a rapariga ufana e ridente estão condenados a tornar-se, e por vezes até antes dos velhos, pobres corpos pálidos, frios, em via de putrefação. Nós estamos todos em agonia. A agonia, isto é, a quotidiana luta contra a morte, pode ser mais ou menos longa, pode durar poucas semanas ou muitos anos mas todos os dias a morte consome e corrói alguma coisa de nós e o último ato é igual para todos, a imobilidade e a dissolução. Cada um de nós tem dentro de si desde hoje, mesmo jovem, o gérmen que por fim o matará. Os anos decorridos são uma conta já paga à morte e os anos que restam são preparação e espera da morte. Mas, por sorte, pouquíssimos pensam nestas verdades e mesmo esses pouquíssimos pensam nisso poucas vezes, por poucos minutos, e em todas as outras horas, embora sabendo aquelas terríveis verdades, recusam-se a crê-las. GIOVANNI PAPINI
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Desde esse momento tenho visto a morte com a intenção evidente de povoar as tumbas, assolar os campos de batalha adubados com carne humana e fazer brotar flores matutinas sobre as fúnebres ossadas. Desde esse momento tenho assistido às revoluções de nosso globo; os terremotos, os vulcões com sua lava abrasadora, o simum do deserto e os naufrágios da tempestade tiveram em mim uma testemunha imperturbável. Desde esse momento tenho visto muitas gerações humanas elevar pela manhã suas asas e seus olhos para o espaço, com a alegria ingênua da crisálida que saúda sua última metamorfose e morre ao entardecer, antes do pôr do sol, com a cabeça inclinada como flores murchas que oscilam ao som queixoso do vento. ISIDORE DUCASSE
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A vida, longe de ser, como pensava Bichat, o conjunto das funções que resistem à morte; é, mais bem, o conjunto das funções que nos arrastam a ela... De que serve fixar nossos pensamentos sobre uma tumba, seja a que for, e apostar em nossa podridão? Espiritualmente degradante, o macabro nos faz desembocar no desgaste de nossas glândulas, na pestilência e nas imundícies de nossa dissolução. Quem pretende estar vivo, só o está na medida em que tenha escamoteado ou superado a ideia de seu cadáver. E. M. CIORAN
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Se as farmácias vendessem uma droga para morrer, todos os intelectuais já teriam morrido. ISADORA DUNCAN
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O que é este meu nada, comparado com o estupor que vos espera? Será que isto ainda é vida? Quem sabe? Aqui estamos, enfim, e é tudo o que se pode dizer. Chega-se onde se pensa. Sim. Vai-se. Chega-se. E o barco afunda-se, a pique... RIMBAUD
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Vou para onde a paixão me leva, imagino-me tal como sou, divulgo meus pensamentos custe o que custar; desprezo as conveniências e oportunidades, acho os homens feios e seus chefes horrorosos; só me acuso de alguns favores para as mulheres bonitas! E semeio cantando! (...) Eu me suicidarei porque sou livre. E não considero a liberdade uma palavra vã: estendo-a, pelo contrário, até o direito de me tirar a vida, de julgá-la infeliz para sempre. ERNEST COEURDEROY
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Não falo do fato de ser morto, que não suscita problemas a quem tenha a sorte banal de ser corajoso, mas da morte que aflora em tudo o que é mais forte que o homem, no envelhecimento e mesmo na metamorfose da terra. A terra sugere a morte por seu torpor milenário como por sua metamorfose, mesmo quando sua metamorfose é obra do homem e sobretudo o irremediável, aquele: não saberás jamais o que tudo isso quer dizer... O homem é um acaso e, essencialmente, o mundo é feito de esquecimento. ANDRÉ MALRAUX
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Como selar um vácuo selando um vácuo? Como injetar o nada em toda essa merda? Como penetrar num mundo desaparecido? Nenhum mijo, merda, esmegma, esperma, mucóide, viscóide, macio ou rijo, ou mesmo lágrimas de olhos, ouvidos, traseiro, xota, cacete, narinas, de homem ou de crocodilo, tartaruga, ou filha, que feche o buraco. Já se ultrapassou tal possibilidade, o último e desesperado amplexo. Entrar no que se foi. Garanto que sim. O medonho já aconteceu. R. D. LAlNG
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Como a tempestade que rebenta e, depois de alguns minutos de espera insuportável, devasta todo um campo em ambiente meio escuro, com trombas de águas loucas e trovoada, a própria vida está agora a vacilar e, com essa mesma forma doentia e profundamente perturbada, atinge um nível onde só existe vazio alucinante, um cheiro da morte que nos fica na garganta... GEORGES BATAILLE
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O desprezo à morte não está disputando com o culto que lhe professamos. Ela está presente em nossas festas, em nossos jogos, em nossos amores e em nossos pensamentos. Morrer e matar são ideias que poucas vezes nos abandonam. A morte nos seduz. A fascinação que exerce sobre nós talvez brote de nosso hermetismo e da fúria com que o quebramos. A pressão de nossa vitalidade obrigada a expressar-se em formas que a traem explica o caráter mortal, agressivo ou suicida de nossas explosões. Quando explodimos, tocamos o ponto mais alto da tensão, roçamos o vértice vibrante da vida. E ali, na altura do frenesi, sentimos o mal-estar: a morte nos atrai. Por outro lado, a morte nos vinga da vida, a despe de todas suas vaidades e pretensões e a converte no que é: uns ossos aderentes e uma máscara assustadora. Em um mundo fechado e sem saída, onde tudo é morte, o único valioso é a própria morte. OCTAVIO PAZ
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Desde esse dia, o sol, a lua, as estrelas podem aparecer e desaparecer quando e como queiram, porque eu já não sei quando é dia nem quando é noite; quando faz sol ou faz lua, pois para mim desapareceu o universo inteiro... O céu e a terra se movem, e suas forças atuam ao meu redor, e eu não vejo nada mais do que um monstro devorador, sempre digerindo e devorando... GOETHE
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Magra imortalidade, negra e dourada, consoladora horrivelmente laureada, que da morte faz um seio materno, a bela mentira e o piedoso ardil! Quem não conhece e quem não recusa esse crânio vazio e esse riso eterno... PAUL VALÉRY
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LAPIDÁRIO BIBLIOGRÁFICO Se ainda estás vivo e pretendes mergulhar nos assuntos referentes ao fim, ao nada, à decomposição, em uma palavra: ao vergonhoso desastre que nos espera, através dos documentos abaixo relacionados poderás ter pelo menos uma ideia vaga, fria, mil vezes mais medíocre que o verdadeiro abismo, mas que te colocará outra vez sobre a ponta da agulha. Se já estás morto, nada mais poderá acontecer contigo. RIBERA, Jose Manuel. Reflexiones sobre la propia muerte. Madrid: Editorial Mezquita, 1982. RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983. ARCE, Javier. Funus Imperatorum ; los funeraless de os emperadores romanos. Madrid: Alianza Editorial, 1988. JANKÉLÉVITICH. La morte. Paris: Flammarion, l977. CARO, Tito Lucrécio. Da natureza. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1962. LEPP, Ignace. Psicoanálisis de la muerte. Buenos Aires: Ediciones Carlos Lohlé, 1967. ROSS, Elisabeth Kubler. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1991. VÁRIOS. Morte e suicídio. Petrópolis: Vozes, 1978. ANÔNIMO. El libro de los muertos. Barcelona: Producciones Editoriales, 1978. WEIL, Pierre. Fronteiras da evolução e da morte. Petrópolis: Vozes, 1979. ARIES, Philippe. O homem perante a morte I e II. Portugal: Publicações Europa-América, 1988. DURKHEIM, Emile. O suicídio. Lisboa: Editorial Presença, 1987.
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