Para antes que a gente vire pó

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Ezio Flavio Bazzo

Para antes que a gente vire pó (breviário de errância)

Eve and Cain / Walt Stetson, 1888

Brasília DF – 2011


Copyright © LER Editora, 2011 LER Editora Ltda. SIG Quadra 04 Lote 283 – 1º Andar Tel.: (61) 3362-0008 – Fax: (61) 3233-3771 lgeeditora@lgeeditora.com.br www.lgeeditora.com.br Editor Antonio Carlos A. Navarro Autor Ezio Flavio Bazzo Designer da capa Marcus Polo Rocha Duarte Programação visual Samuel Tabosa de Castro Impressão e acabamento LER Editora Ltda. Pintura da capa Caim fugindo com seus filhos / Cormon 1880 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Bazzo, Ezio Flavio. Para antes que a gente vire pó (breviário de errância) . / Ezio Flavio Bazzo; Brasília : LER Editora, 2011. 184 p. il.; 21 cm

1. Literatura, sociologia, psicologia, Brasil. I. Título. CDU 82; 821 316 159.9


Eva com Caim e Abel Francesco Bacchiachia



Os que não creem em sua imortalidade fazem justiça a si mesmos! C. Baudelaire

Fervor demoníaco, esta é a principal nuança de minha religiosidade. E.M. Cioran



Infância de Caim (em mármore) Antônio Teixeira Lopes (1866)


Caim e Abel Mosaico, arte bizantina normanda do sĂŠculo XI, XII


Querem saber a história abreviada de quase toda a nossa miséria? Ei-la: havia um homem natural. No âmago desse homem foi introduzido um homem artificial, e ele desencadeou no interior da caverna uma guerra civil que se prolonga até hoje. Denis Diderot

Quanto mais bebe, tanto mais sedenta é a mente pecaminosa. Cada copo que traz aos lábios conta mais uma gota daquele veneno que lhe aumenta a sede. Vilém Flusser



[1] “A gente mata um homem, a gente é um assassino. A gente mata milhões de homens, a gente é um conquistador. A gente mata a todos, a gente é um Deus”. J. Rostand

...Não foi do dia para a noite que a espécie chegou a esse nível bestial e dramático de organização, a esse grau de mediocridade crepuscular e a essa condição indecente de sofrimento. Fez-se a arma, a roupa, o sapato, o chapéu, o relógio, as tesouras, os óculos, o remédio, a comida em caixas, as malas, os semáforos, os meios de transporte para poupar as pernas e os tendões. Fez-se a casa e depois fizeram com que ela subisse na vertical, e aí precisou inventar as escadas, as janelas, os caibros, os telhados. Os violinos, as cordas, as almas. Vieram as xícaras e os líquidos feitos de raízes e de sementes, o açúcar e alguns animais embalsamados para o acompanha­mento. A escrita, o livro, o taxi, o relógio e as horas, o salto alto e as meias-liga para criar também a ilusão. Fez-se o berço e a lápide para o cadáver, a bicicleta, a agulha para furar a língua e as orelhas. Eliminou-se o braquiossauro, surgiu o vagabundo dogmático. Fez-se a gravata, o pente, a umbrela. E fez-se o frio e o fogo que precisou ser condensado e domado. Surgiram os idiomas e as ruas, as perpétuas ruminações, as moedas e os bancos para armazenar o dinheiro. Portsoken Street diz a placa pregada no cimento. Band-aid para os calos e capas para a chuva que bate intempestiva na vidraça. O vidro, o cigarro chegando aos lábios, um véu sobre a cabeça cheia de buracos. Tattoo, a marca de Caim! A mão administrando tudo e nos seus dedos se introduziram anéis de diamantes. A chave presa a uma corrente, o pescoço cheio de penduricalhos sacrossantos. A fala, a letra, a pizza exposta no mesmo andar do campanário. 122. Fez-se os números, deu-se nome aos porcos e placas aos taxis. Pedestrians look both ways em letras brancas e fundo vermelho. Um pingo fura a vidraça e transborda o capuchino. Um abatjour e o tubo de alumínio que o suporta. O salão grená! 11


Desvendou-se o pulmão e a pneumonia. As horas, o dedo indicador em riste e o riso de dois bêbados. Look rigth escrito no concreto do piso. Look. Os olhos e os colírios para combater as poeiras glaciais, as coxas com suas varizes para correr da chuva e para proteger a vulva. As gotas descendo pela careca e contraindo a massa no interior do crânio e o Juízo Final estampado na cara de um salsicheiro. O breviário de errância lambuzado de vinho, Caim descendo as escadarias da toalete para ladies. O farol e sua linguagem, as palavras falsificadas, o volante do lado oposto ao do coração. A disritmia, a pequenez e a mania de grandeza. E fez-se a noz-vômica e a anestesia. A seringa a ampola e a veia. Um, dois três, quatro e pronto: decolamos no nada. O salto para o nada que é o sono multiplicado por um bilhão. O “Eu”, a “Personalidade”, a “Alma”, o “Ser”, o ‘Corpo”, as “Crenças”, as “Prepotências” nada pode competir com uma simples ampola de três centímetros, capacidade demoníaca do homem!!! E o veículo mais potente de todos é a maca, com a leveza de suas rodas deslizando no concreto de nuvens... Vertigem pagã! O encanto chacinado! Uma buzina. Londres arcaica e fashion que se espreme sobre si mesma. Fez-se também o ziguezague de olhos e de raças. No mapa a conexão entre os vultos que se encontram para rir, rir de que caveira estressada? Caim e os meteoritos. O paletó indo sozinho para o escritório, no bolso de dentro a poção pessoal de veneno e os cânones da putaria conjuntural. Foi-se a chuva, fez-se o sol. Taxi! Palavra enigmática. Voltou a chuva! Onde está o escafandro? A nuca encostada na cripta. As pilhas já estão pela metade. Fez-se a esquina e o cruzamento, os pacotes para transportar o pão miserável de todos os dias. Next please! A voz da moça do café que é de outra tribo. Tacapes! Setas envenenadas! Os cílios de duas polegadas. Um dia, certamente, ela trocará o next pelo last. Um japonês pisando numa poça de água, cada um tem a sua tsunami. Os desníveis existem apesar de ter-se feito os centímetros e a boca de cristal. Next please! O next sou eu, minha câmera digital e minha segunda caneca de café. Next! Next please! Next um caralho! Amanhã será last! No meio de todos esses objetos, essas coisas, esses 12


instrumentos, esses signos, esses significantes, essas senhas, ilicitudes, marcas e álibis, o sistema, fantasma e onipresente que não é um ser com dna, se parece mais a uma serpente de aço, sem núcleo cercada de serviçais e que vai se esticando, esticando, esticando. Os lacáios em sua auto-ignorância morrem e passam enquanto o sistema, com sua vastidão e com um disco lunar sobre a cabeça vai se desenvolvendo como uma doença progressiva, uma verruga, um tumor no interior da alma. São esses imensos blocos de concreto cheios de bandeiras, brasões e de códigos, cada vez mais altos, densos e sem identidade. Onde é a entrada moço? Quem esteve aqui? Quem fez isto ou aquilo? A ordem veio de onde? Tudo há dois mil anos atrás? Não há registro do essencial, só a visão pueril fica nos arquivos de ferro ou nos discos rígidos para dar o que fazer aos professores de história e de “humanidades”. As catedrais, as masmorras, o cheiro e os pingentes da camareira tcheca, os bancos, a filosofia e a ditadura dos mercados, a terra inteira sendo devorada por seus vermes. Um mundo de pancrácios! A música do congo fazendo vibrar minhas células tupinambás. Aqui nos “céus” de Londres um trânsito intenso de aviões que vão para onde? Dá para adivinhar o que cada passageiro leva na mala, nos bolsos e no cérebro e a quantas anda sua ansiedade, o que fará em seu destino, como e quando voltará. E depois desses serão outros caixeiros-viajantes como eles, com as mesmas coisas nos bolsos, nas malas e nos cérebros. Há uma indústria imensa de aviões, de malas, de fobias e de pessoas funcionando a todo vapor, e tudo para seguir girando na cegueira dessa urucubaca e ao redor do essencial, sem a coragem radical para o pouso definitivo. Hare hare, krisna hare!!! Lá vão sete ou oito sujeitos quase hermafroditas vestidos de rosa e saltitantes, rebolando e tocando sininhos por Piccadilly... Krisna, Krisna, Krisna hare. Mas, cadê o Krisna? Atravessam a avenida pacificamente sabendo que mais lá na frente vão encontrar-se com a facção dos da Jihad Islâmica, e que mais na frente ainda se juntarão aos da Opus Dei, e mais adiante ainda aos Filhos de Jeová, aos maronitas, aos do Reino dos últimos dias, aos mórmons, aos Filhos de Maria e com outros também 13


temerosos do demônio e todos empenhados em heroicizar-se mutuamente. Aleluia! Aleluia! que lá vem agora uma manifestação dos monarquistas, outra dos democratas, outra dos republicanos, outra dos socialistas, outra dos ditadores esclarecidos, outra dos da pornocracia e várias dos pseudo libertários de todo o orbe. Não imaginam que de um janelão de mármore da City um banqueiro sóbrio e entediado assiste a tudo, e que só ele sabe até onde e até quando essa palhaçada democrática & holística toda deve e pode durar... A rua ainda está lá. O paredão, o raio, a mulher dúbia que se agarra ao guarda-chuva. Next please! Os badalos de um sino, gente de todo o zodíaco, o relógio, a hora, um anônimo que menciona a meretriz da Babilônia e a errância intemporal. Alguém executa no violino Meditação, da Ópera Thais enquanto um Caim superstar cobre a cabeça com um chapéu de colono escocês e se embrenha no meio da tempestade resmungando uma frase longa e incompreensível. Os vagões vão cambaleando do aeroporto em direção a estação de Earls Court. Londres parece estar mais clara e mais radiante do que nunca. Checo mentalmente meus papéis, meu hálito, o passaporte, a grana. Tudo está em seu devido lugar. O homem da frente vai lendo uma pequena coletânea de Tales de Mileto. Começo por lembrar a mim mesmo que já não sou um adolescente e que apesar dos músculos, dos ossos, do cérebro e da pica estarem intactos, posso pifar de um momento para outro já que algum dos tantos males incuráveis pode muito bem estar sendo gerado no segredo de minhas entranhas. Para morrer basta estar vivo resmungavam os velhotes hipocondríacos de minha infância. Mas acredito ou me iludo que minha saúde está intacta, apenas meu coração dispara quando exagero na cafeína (disse cafeína e não cocaína), vai a mil por segundo, dá saltos e rodopios, levando-me a pensar como Salomão que aquele que confia em seu próprio coração é uma besta. Também meu braço direito, dependendo do enredo, fica incomodo, principalmente quando vou além do tempo no violino ou quando escrevo por longo tempo. São os malditos tendões disse-me um ortopedista de fundo de quintal. Não seriam as horas de voo? Estive duas vezes em seu consultório e ele repetiu as mesmas 14


frases sem olhar-me nos olhos. Cheguei a indagar-me se essas bolotas gelatinosas que levamos implantadas no crânio não foram colocadas aí apenas para decoração ou, na melhor das hipóteses, com a finalidade de focar apenas dos joelhos para baixo de nossos interlocutores. Por quê não, não é? Ah, males do violino! Coisas de músicos! De escrivães! Ou de tenistas, ou de lavadeiras, ou de motoristas de caminhão. Até os punheteiros têm tendinites, ouvi sua assistente na sala ao lado cochichando para outra mulher. As mulheres adoram imaginar um macho tipo orangotango esfolando o ganso em sua solidão urbana. Não porque se excitem com isso, mas por uma espécie de vingança. Quanto mais o macho for perverso e ridicularizado maior a ilusão de igualar-se a ele em “direitos” e em “idiotices”. Alongamentos, bolsa de gelo intercalada com bolsa de água quente, suco de limão como anti-inflamatório, benzeduras, rezas, hormônios etc., etc. Quando se morria com cinquenta anos não se chegava a conhecer esses incômodos. Morria-se intacto! Agora as coisas são diferentes, a longevidade é um presente de grego às manadas, uma cortesia da indústria de fraldas e de medicamentos ao rebanho fóbico e hipocondríaco... Chegará o dia em que o mundo sentirá saudades e nostalgia das fatais picadas de cobras e de escorpiões assim como do velho infarto, aquele que chegava fulminante e retirava o sujeito do cenário ainda cheio de projetos e de dignidade. O risível é que devemos essa sobrevida incômoda muito mais ao sabão, à penicilina, ao Sal de frutas, ao óleo de rícino e até mesmo ao mertiolate de que à medicina e à filosofia. Já estive neste país e nesta cidade outras vezes, sempre como um alienígena ou mesmo como um pária e é até possível que as pensões mais vagabundas daqui ainda tenham em seus cadernos a memória de meu nome. Reconheço que a monarquia sempre fez mal para minhas entranhas. Até hoje minhas tripas parecem não lidar bem com essa anomalia. Uma coroa, seja de brilhantes, de louros ou de espinhos sempre me alerta para a farsa. Na verdade, nunca fiz questão de incluir esse país nas minhas rotas. Sempre desviei desse porto como quem desvia de um iceberg traiçoeiro e fatal. Sempre caguei para os Beatles 15


e para a Rainha, mas não nego a simpatia por mister Bin, pelos vikings, pelos piratas e muito mais ainda por Shakespeare, esse louco que colocou até sua própria existência em xeque. Existiu? Não existiu? Trata-se de um pseudônimo? Questionam os vagabundos das letras. Claro que além deles, a existência de Lord Byron também deu a este país uma luz especial. Seu texto blasfemo sobre Caim fez parte do material que derreti para compor este trabalho. A primeira vez que tentei aportar por aqui, tempos em que tudo era festa, até mesmo ser preso, acabei na “prisão” de um desses aeroportos. Dois três dias ali com a escória planetária e depois o repatriamento. Motivo: sempre o mesmo: nada de dinheiro nos bolsos e um visto do Marrocos ainda fresco no passaporte. Marrocos! Naquela época – diziam – era comum se transportar haxixe de Tanger para Amsterdam, via Dover e em potes de marmelada. E eu com isso? Nunca precisei de uma mentira irrefutável! Os guardas me apalparam, reviraram meus cacarecos ligaram para a Rainha e interditaram minha agenda sonambúlica. Do Principio do prazer bruscamente para o Principio da realidade! As fronteiras de fora confrontadas com as fronteiras de dentro. Entre mim e o que realmente sou – diria Fernando Pessoa – apareceu a escuridão. O passaporte! Não, não era uma invenção antiga o tal passaporte. Foi depois da denominada Segunda Grande Guerra que as policias e as elites mapearam com mais rigor as estradas do mundo, minaram as beiradas de todos os abismos e marcaram o gado. Em minhas gavetas tenho uns sete ou oito, todos abarrotados de carimbos, selos e repatriamentos. Estrangeiro! Cigano! Forasteiro! Um passo a mais e epa! Pare aí! Não se mexa! Policia! Mãos na nuca!!! Seus documentos! Tudo documentado. Do nascimento à morte. Aqui o berço, acolá a lápide. Um mundo de misérias jurídicas e de larvas burocráticas! Há alguns anos havia jurado em nome do olhar de ternura de meu cachorro que ao completar sessenta anos inventaria, por minha própria conta, uma espécie de ano sabático e de aposentadoria eterna. Mudaria de nome, apagaria todos os vestígios de minha história, queimaria minha biblioteca e me mandaria definitivamente pelos estradões do mundo 16


numa tentativa de “esconjurar o mal”. Chega! Dizia. Essa sociedade manicômio, desprovida de propósito e vazia de sentido (como diria Schopenhauer) já não é mais suportável. Preciso cair fora, poupar-me das horas e dos urros dessa legião de políticos desgraçados, borrar para sempre de meu cotidiano a ideia senil de cidadania. Nunca mais ouvir falar em religião, em pátria, em trabalho e em responsabilidades. As entranhas do inferno deveriam ser mais aprazíveis que o drama desse planeta de múmias onde a mediocridade, os livros sagrados, a políticagem e principalmente lendas como a de Caim vinham transtornando tudo e todos durante séculos. Desde longa data sonhava em dizer adeus a esse mundo simplório e contaminado pela suposta inveja e pelo hipotético e criminoso legado de Caim, daquele filho bastardo de Adão e Eva que, num momento de verdade escarnecida e de lucidez extremada, teria eliminado 1/5 da humanidade com uma única bordoada. Se retardei meu projeto e se tive que mutilá-lo foi porque no meio do caminho haviam as correntes invisíveis, as víboras furiosas, as cercas e os arames farpados. Como saltá-los sem perecer? Cheguei aqui um dia depois do príncipe descabaçar oficialmente a condessa. Além das manchetes, de uns babacas e de alguns estrangeiros que vieram especialmente para as bodas e para as cerimônias, não se fala mais sobre o assunto. Que é uma estupidez todo mundo sabe, mas se não fossem rituais insólitos como esse, talvez o Reino Unido não tivesse se mantido até hoje na cúspide dos impérios. Claro que os mísseis e as toneladas de diamantes rapinados da África ajudam, e muito. Mesmo assim, é apenas Londres. Grandiosa, imponente e claro, mãe de todos os impérios. Os indianos, os argentinos e os aborígenes australianos que o digam. Paris, imbatível no campo das letras, dos livros, das teses e de outras masturbações intelectivas, se comparada à Londres, pareceria uma aldeia de poetas e de bebedores de absinto... Os indianos, os chineses, africanos negros, espanhóis, italianos e os povos do Magreb etc., marcam presença em tudo por aqui, claro que no mundo underground e sempre sob o mau olhado dos lordes. Por incrível que pareça, me dou bem com essa gente pagã, 17


apátrida e filhos legítimos de Caim que não têm nem uma pedra onde descansar o pescoço e nem papel para limpar-se. Para esquentar as canelas vim caminhando de Padingtton até aqui no Chinatown. Agora, um café em frente ao Apollo Theatre. Lá longe uma cúpula bizantina. De vez em quando uma sirene causando sobressalto a todos os bandidos das redondezas. Saber que há câmeras por todos os lados não deve ser muito agradável, nem mesmo para o mais servil e para o mais estúpido dos patriotas. Os taxis lembram os “diablos rojos” do Panamá. Quem trocar as batatas fritas por uma salada grega pode até comer de vez em quando nas biroscas Fish&chips sem ter um infarto e sem sair daqui pesando meia tonelada. Os turistas passam clicando o celular e a galope numa espécie de transe. O que será que procuram realmente? Eu, na verdade, estou em busca apenas de uma toalete. Aqueles que gostam de conhecer as cidades a pé, sair de casa pela manhã e só voltar a noite, é bom já nos primeiros dias ir mapeando as toaletes disponíveis nos trajetos de vagabundagem e de errância. Apesar de Londres ser muito bem servida de mijatórios, dependendo de onde você está, da temperatura (e da idade que você tem) o risco de mijar nas calças sempre existe. A toalete da Art Galery, por estar nas proximidades de Piccadilly etc é uma das minhas preferidas e das de mais fácil acesso por aqui. Entra-se no salão principal, dobra-se à direita em direção ao café, desce-se por uma escada preta de granito, dobra-se agora à esquerda, desce-se uns degraus e pronto. Ufa! Nada melhor que uma boa mijada! Muito boa também é a do British museum, ali onde o velho Marx escreveu praticamente toda sua obra. Algumas estações de metrô têm as suas, o Museu Sherlock Holmes também, modesta mas util. As do Strabuch café têm me quebrado o galho várias vezes. A do Mac Donald de Paddington foi de máxima importância depois de ter ingerido um café americano que aqui é mais ou menos um litro. Quem já viveu em outras grandes cidades percebe logo que os ingleses deram uma atenção especial a essa necessidade ignóbil e sucateada do ser humano. Fico sempre tentando entender como a humanidade adaptou-se tão facilmente a esse ridículo papel de alambique e 18


a esse destino mórbido e vagabundo de subdesenvolvimento... Frequentemente há indicações nas ruas tipo: toaletes a 100 metros. Toalete no Hyde Park, no andar de cima etc. A de um restaurante asiático perto do cemitério Thompson só se pode usar se for também comer ou beber alguma coisa. Beber? Ora minha senhora? Estou a fim de fazer exatamente o contrário!!! A do Restaurante Mr. WU no Chinatown, que fica no andar de cima é bom usá-la antes de sair, mas sempre depois de já ter comido. No Covent Garden, há várias. Em frente a The Royal Courts of Justice existem duas subterrâneas, uma para ladies e outra para gentlemen. A única até agora que tive que pagar (50 pounds) vejam que descaramento, foi a que fica na Catedral Saint Paul, onde uma placa indica que ela e outros locais sagrados dali são administrados por uma tal de Paternoster Lodge. Ora, Pater nostre! E no rabo, não vai nada??? Lá vem o bus 23. É nesse que vou sem ter a mínima ideia para onde. As manchetes dos jornais são unânimes: apagaram o Bin Laden. Bin Laden, o irmão legítimo de Caim... Todo o mundo imperialista está se iludindo de que, daqui para diante, será possível dormir em paz... Vã ilusão na terra da Pop-art. Caim! Vim a esta cidade com o pretexto de garimpar suas impressões digitais, algumas de suas imagens e de concluir este trabalho sobre esse personagem em suas sagas mil e em sua inarredável caminhada1. E digo pretexto, porque é evidente que poderia ter concluído essa estória e essa memória ultrajada em qualquer lugar, em Planaltina de Goiás, na garagem de casa, na privada, na Feira do rolo ou mesmo entre um semáforo e outro... Longe de ser o pecado capital ou a entidade terrificante que os pastores, os rabinos, os padres, os filósofos, os empresários e executivos “bem sucedidos” e outros moralistas costumam apregoar de dentro de suas sotainas, a inveja (cujo patrono seria Caim) pode ser nosso mais puro e mais autêntico termômetro de alerta para com as malandragens instituídas, para com a 1 Ao saberem que estava escrevendo sobre Caim, várias pessoas me alertaram que um português, um tal de Saramago acabara de lançar um livro sobre o mesmo assunto. Melhor – retruquei-lhes. Ao invés de um abacaxi, teremos dois. E depois, aqui entre nós, nada é mais desprezível, cretina e cainesca de que uma comparação ou uma disputa intelectual.

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covardia moral e para com as ignominias sociais. (Diga-me a quem invejas que saberei o nome de mais um ladrão e impostor!). Daí o reconhecimento – mesmo tardio – de que Caim foi nosso primeiro herói iconoclasta, nosso primeiro homem de exceção, nosso titã e justiceiro pré-histórico, o mais macho dos homens e o primeiro sujeito a dizer audazmente um não, tanto a Deus como a toda imbecilidade e a toda neurose viciada e repetitiva que viria atormentar a família nuclear pelos séculos afora. A proposição socrática do “conhece-te a ti mesmo” gravada numa parede do templo de Delos, não é nada diante da pergunta de Caim: “por que esse crápula e não eu?”. 2 Acusado secularmente de ser a bile negra, de cometer o primeiro crime da espécie, de ter tentado sabotar o projeto divino e de ser o patrono dos ressentidos e dos invejosos, Caim, o protagonista principal dessa anedota infame, foi apenas o bode expiatório de uma ideação educativa falida, bem como a primeira vítima tanto da soberba divina como da baixeza familiar, da ignorância dos pais e de um moralismo putrefato, abstrato e esdrúxulo. Moralismo que, aliás, vem até hoje engendrando a matriz do “cidadão perdulário”, do sujeito bonzinho e piedoso, do burocrata sórdido e mascarado, do gestor mentiroso e hienizado,3 do vivaldino político e enfim, do bundão vulgar e atual, conhecido e respeitado por quase todos, aquele mini estelionatário que, ainda escravo da Puta da Babilônia e em franca degenerescência se esforça para ocultar o quão insossa é a vida e para dar a impressão de ser uma alma voltada para o céu, para o social e para a paz, mas que, na verdade, conserva viva e latente em sua memória apenas a nostalgia da trapaça e do inferno.4

2 Por que esse palhaço com cara de crocodilo, e não eu? Por que essa megera ignorante, esse puxa-saco mentiroso, essa hiena descadeirada, esse estelionatário horripilante, esse estúpido de nível superior e não eu? Por que esses trogloditas, essa quadrilha de farsantes, esses canastrões desmiolados, esses burros de gravata, essas serpentes do entardecer, esses pulhas de porta de cadeia e de fundos de igreja e não eu? 3 Quem teve intimidade com o serviço público concorda plenamente com Paul Masson: “Os funcionários são como os livros de bibliotecas: os que estão em lugares mais altos são os que menos prestam”. 4 Ver Ernest de Gengenbach, Judas ou o vampiro surrealista, & etc Editora, p. 33, Lisboa 1970.

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Caim conduzindo Abel para a morte / James Tissot


Caim mata Abel / pintura do sĂŠculo XV


Caim e Abel /John Cheere



[2] “Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se procederes mal, eis que o pecado jaz à porta.” (Esta ideia é do Genesis 6 e 7 do Cap. 4, mas poderia muito bem ser de Skinner)

Envergonho-me por fazer alusão à anedota sinistra e deplorável do Gênesis logo nas primeiras páginas, mas é que ela está instalada como um cancro no cérebro e no inconsciente da humanidade e de suas marionetes, incrustrada nos nervos, nos ossos e no plasma de gerações e mais gerações, tanto nas hordas da ralé idólatra como nos antros da canalha esclarecida e da qual se poderia dizer aquilo que Shakespeare disse de Macbeth: “uma lenda contada por um idiota, cheia de ruídos e fúria sem nenhum significado”. Que a Bíblia seja o livro mais vendido do planeta, azar da espécie, azar nosso! E depois, em se tratando de manuais sobre, digamos, veneno para ratos ou raticidas também são incontáveis os best sellers. Gosto de pensar que foi Caim que tornou públicos os arcanos de todas as confrarias, que fez da Babilônia a antítese de Jerusalém e da alma um esconderijo de ácaros, sem falar de que foi de suas mãos que saiu o envenenamento de todos os batistérios, inclusive os aqui da Abadia de Westminster. Gosto de associar Caim ao que atribuíam ao diabo lá pelo século XV e XVI: feiticeiro, ilusionista que pode fazer as casas pegarem fogo, alguém ganhar ou perder uma guerra, transformar homens em ratos, piorar o negrume das noites, alterar a faculdade mental, generalizar o suicídio e outros superpoderes, mas vou ser mais lacônico sobre este assunto, pois já gastei cinco ou seis páginas inutilmente sobre isso em outro texto.5 Apesar de todas as teorias evolucionistas não existe ninguém que tenha sido poupado em algum momento de sua vida da lenda pueril do criacionismo e que não tenha ouvido dizer que Caim foi o filho bandido e psicopata de Adão e Eva, casal que por luxúria e leviandade, havia sido 5 Ver: Mendigos, párias ou heróis da cultura? De p. 29 a 39. LGE Editora, Brasília DF, 2009.

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despejado do paraíso com um pontapé no rabo e sem a mínima chance de barganha. Mas pelo menos o diminuto mundo pensante sabe que Caim foi vítima de uma armação divina, de uma mãe fútil e esquizoide, de um pai bundão e ausente e de um irmão narcisista. O resto é apenas o resto. O resto é a prostituição social e política vigente, a agonia das cidades, os corpos e os carros se esquivando de outros corpos e de outros carros ébrios e em desatino. Está na moda falar e dissertar sobre cidades, entretanto nunca ouvi alguém mencionar que Caim foi o fundador da primeira delas: Enoch. Caim, esse exemplo para todas as circunstâncias que descolou-se do Velho Testamento e está agora por todos os lados, principalmente dando ordens nos porões dos cinco poderes. Foi ele, inclusive, que traçou o mapa de Brasília. Dom Bosco era um Caim travestido e seu sonho mentiroso é tipicamente uma artimanha cainesca. Nós que nunca levamos a sério o tal cambalacho onírico, que nunca achamos que o JK foi um estadista, nem que seu arquiteto foi gênio e muito menos que um governador possa governar diferentemente de outro governador independentemente da coleira que cada um leve ao pescoço, nós que nunca tivemos – pelo menos conscientemente – a intenção de compactuar ou legitimar a megalomania desses homens, nós não nos cansamos de ver a cidade de Brasília – apesar dos conhecidos ufanistas de plantão – como um aborto burocrático; como um equívoco urbanístico de primeira ordem e como um delirium tremens levado às últimas consequências por uma elite gabola, febril e gananciosa que, louca por copiar as falácias de Le Corbusier e por encher definitivamente os cofres de dinheiro, inventou esse quartel de caixotes verticais, de ruas vazias e de espaços empoeirados. Pretensamente motivada por um ideal místico/ funcionalista/ cartesiano/ stalinista de segunda ordem, na verdade, essas paredes rachadas, esse asfalto esburacado, essas moradias minúsculas, essas janelas que não deixam passar mais do que a cabeça de seus inquilinos são os símbolos maiores de uma encefalopatia corrupta e masoquista que, se por um lado tem fomentado a autofagia e institucionalizado a mediocridade, por outro têm garantido aos gatunos de turno a legitimação 26


de um poder e de uma riqueza sem origens e sem fundamento. Como a Transamazônica que atraiu para si milhares de famílias e de aventureiros para depois traí-los e imolá-los na solidão da selva, a Capital Federal levou para lá escravos e lunáticos de todas as partes para enjaulá-los a uma arquitetura no mínimo abusiva e imbecilizante, e para subjugá-los a uma ordem tão totalitária como ilegítima. – Ai meu Deus! Mas aqui tudo é calmo... espaçoso... verde... A qualidade de vida é quase um sonho... A lua parece nascer ali entre os braços da estátua da justiça... no centro da Praça dos Três Poderes... Os primeiros raios da manhã, quase como uma benção, despertam os Ministros, os Generais, os Presidentes e seus lacaios... Tudo aqui é Zen... Com suas trezentas e tantas seitas a cidade transborda energia cósmica! Os discos voadores dão rasantes por sobre a Papuda como se quisessem convencer aqueles guardas e aqueles presidiários que será aqui, neste paraíso de politicagens, a megalópole-chave do Terceiro Milênio.... É assim que cacarejam obsessivamente os descendentes ingênuos de Caim e as vítimas prematuras dessa engenharia monstruosa. E o quê mais? lhes perguntamos nós. Desde quando isto é suficiente para quem está vivo? Para quem tem os olhos postos para além do planalto, da planície e da manada? Desde quando isto é suficiente para quem tem consciência de que em outros pontos de um planeta imaginário as cidades fervilham, as noites transbordam de prazeres, de cultura, de rebeliões, de intimidades e de asco, muito asco contra qualquer um dos conhecidos e melancólicos regimes? Para aqueles que, pela razão que for, “amam” a frieza daquelas lajes, a superficialidade daqueles telhados, o tédio daquelas construções literalmente inacabadas, a monotonia das Superquadras e a mesmice interminável dos botecos, a eles peço que olhem atentamente para todos os lados até perceberem o quanto ela se parece a uma imensa fazenda. Ao invés de carroças, muitíssimos carros; ao invés de vacas e cabras, multidões que só nos horários intermediários aparecem em rebanhos nas esplanadas e nos shoppings, mas que logo desaparecem, voltam a se enclausurar nas estrebarias estatais, em seus estábulos executivos para ruminar 27


papéis, processos, propinas, novelas e intrigas domésticas. Olhai, olhai das janelas minúsculas de vossas prisões ou de vossas improvisadas varandas e vereis por todos os lados um prado imenso, gramados queimados pelo sol maldito de Goiás, um deserto igual aquele por onde Caim rastejou e deambulou com os pés apodrecidos, com poeira nas narinas durante o verão e barro nos joelhos durante as chuvaradas das outras estações. Carroças com seus animais anêmicos e tuberculosos, automóveis velhos, aos pedaços, soltando fumaça pelos pneus e pela lataria ou então recém importados e reluzentes que deslizam em todas as direções em busca de retornos inexistentes. Um trator que fura a terra vermelha e ao seu redor uma legião de dementes que vendem seus glóbulos e sua honra na edificação de outras tantas colmeias. Colmeias para a classe média, para os proletários e “paus-de-arara” disfarçados. O caminhão do lixo vai espalhando seus sacos pretos repletos de dejetos pelo asfalto, pelos balões e pelas esquinas, onde cinco ou seis taxistas esperam seus clientes sob uma choupana improvisada. É a diversidade arquitetônica, resmunga outro teólogo ecologista. Na TV, um corrupto chora e entre lágrimas, lembra que seu pai foi um dos fundadores e construtores da cidade. E daí? Deveria ser condenado! Mas não foi. O governo se compadece e os suplentes o inocentam, dando margem à dedução de que uma vilania de origens congênitas teria se metamorfoseado numa vilania urbana. Não adianta insistir: um verme não condena outro verme! Pela manhã o governador de plantão, perfumado e sob sua careca monstruosa viaja de helicóptero para evitar a plebe, a ralé, os eleitores e as retas dessa máquina urbana. Brasília! Chandigarh! Mas sem ilusões! A periferia de Paris, aqui de Londres, da Alemanha Oriental, Miami, qualquer lugar que tenha pobres, corruptos e indigentes pode ser digno de uma “Vile-Machine”, de uma cidade laboratório, de um zoológico humano cujas jaulas, se não têm serventia para proteger, pelo menos ativam a bestialidade sociológica do “modernismo”. Mas existe a culpa, essa enfermidade cristã. Nem mesmo os arquitetos mais cínicos dessas colmeias escapam ao sentimento de culpabilidade. Em suas crises fóbicas e em seus remorsos 28


parecem intuir e temer que o lobo Guará ainda possa, um dia, revirar suas tumbas para banquetear seus ossos. O próprio Niemayer, falando de sua obra para a opinião internacional, chegou a desculpar-se: Me sinto deprimido. Construí edifícios para os poderosos. Nada além disso. Nunca pude trabalhar para as classes desfavorecidas, para o mundo dos pobres que constitui a grande parte de meus irmãos brasileiros”. Mesmo que seja demagogia tardia, vale! Se não construiu nada que servisse para os pobres foi porque não quis, porque não viu irmão nenhum no meio das massas marginalizadas, dos rebanhos catatônicos, cainescos e sem voz que, não conhecendo a analogia que existe entre doença e mito, sempre serviu de instrumento para a mistificação de todos os tipos de charlatanismos. Enquanto na Coréia – por exemplo – se pode beber a água do rio que cruza silencioso a cidade a água do lago que enfeita a retaguarda das mansões dos suplentes é ainda um reservatório de stronzo, de turd e de merde... E é até compreensível que uma cidade que milita contra si mesma feche suas livrarias e suas bibliotecas com o pôr-do-sol, marginalize seus expoentes culturais, fomente a teologia em detrimento da antropologia e clame embasbacada pela multiplicação da polícia ao invés de investir na conquista de seu próprio desejo e de sua própria liberdade.. Não, não... me desculpem, mas isto ainda não é uma cidade! É mais bem um laboratório luciferiano; uma Serra Pelada sem sombras de minérios, uma aldeota senil, um engendro monstruoso planejado para nutrir-se das entranhas de seus próprios habitantes, com suas nostalgias, suas falácias e seus pesares incuráveis... Mas voltando a Caim, depois de mais um conflito com a mãe e com o irmão, olhou para as montanhas que corriam ao longo de seu latifúndio (para o portuguesinho antropofágico Oswald de Andrade, Caim teria sido o primeiro burguês que demarcou a terra e que fez a primeira cerca da história), coçou o saco, intuiu que tudo era provisório, que a terra viria a ser um inferno de golpistas voluptuosos e sentiu um amor súbito, agreste e profundo pela revolta. Enquanto esgueiravase daquele lugar teve uma espécie de premonição na qual antevia que dali a milhares de anos, por causa daquela querela 29


estúpida a humanidade rancorosa teria que viver encharcada de Ritalina e de Prozac angustiada tanto (por estar) como (de estar) no mundo. Mas isto não o assustou e jurou que esmagaria assim mesmo os miolos daquele pequeno e endeusado impostor. Como matar ainda não era crime e como intuía que o irmão tirano não era como o demônio que poderia ser expulso só pelo jejum e pela oração,6 a partir daquele momento, Abel, o filhinho mimado, o dândi entrincheirado nas tetas sedutoras da mamãe, estaria literalmente marcado para morrer. Caminhou pelas encostas vazias daquele mundo inimaginável, como o primeiro e mais autêntico evangelista da cólera, fez contato com as misérias secretas que corrompem o próprio ser, chorou, masturbou-se,7 jogou umas castanhas para um abutre, emagreceu, refletiu, teve insônia, filosofou (talvez tenha sido o verdadeiro avô da filosofia) e concluiu que realmente Adão era um bundão submisso, um pai só de fachada8 e seu irmão um crápula. Um mau caráter, um idólatra estúpido, o inventor dos partidos e da política, um esotérico de bosta, em síntese, 6 Gostaria que não te irritasses com tantas citações, leitor. Conheço todos os preconceitos que existem sobre esse vício de citar, mas até hoje eles não me convenceram e muito menos me intimidaram. Acho o máximo poder incluir aqui as palavras, os dizeres, as reflexões, as desesperanças de outros loucos que nunca vi e que nem sei realmente se existiram. Inclusive, às vezes chego a pensar que só escrevo como pretexto para poder citar a outros autores. E isto me parece mais do que normal, uma vez que os textos não nos pertencem, que da primeira à última linha tudo é plágio, parafraseamento, imitação, inspiração de algum outro mundo ou de algum outro trabalho. Por isso, um livro nunca é um livro, é sempre um mosaico, uma parede restaurada, um saco de gatos mesmo quando, por astúcia e por mau caráter seus autores e seus editores sempre juram e apostam numa suposta originalidade ou num dissimulado travestimento. 7 Roberto Schwartz cita um texto de Michael Lovy sobre Caim e Eva que merece ser mencionado aqui. “Ato I: Adão surpreende Caim tentando fazer o amor com Eva e dá uma tremenda surra 
no filho. Ato II: Depois da sova: Caim pergunta a Adão: “mas pai, quando Deus ainda não tinha formado minha mãe com sua costela, como é que você fazia?”. Adão, com ar culpado, olha as mãos. Fim da tragédia. 8 Roberto Sicuteri resgata textos delirantes, onde se diz, por exemplo, que no Gênesis I., Adão foi macho e fêmea (como as lombrigas) e mais, que aparece nos comentários rabínicos, embora velado, o segredo de que Adão vivia sexualmente promíscuo com animais. Ver Lilith a lua negra, p. 25. Como se vê, nossas origens parecem ter sido pra lá de caóticas e pra lá de perversas. Enfim, Adão, que não se manifestou diante da desgraça que se abatia sobre seus filhos inaugurava naquele momento a indiferença paterna, o perfil do pai submisso e ausente. O mesmo glutão que até hoje, por comodismo, deixa os filhos a cargo das mães, quase sempre Medeias alucinadas que vão aniquilá-los.

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o clássico filho-da-puta que viria – mais tarde – povoar a terra. Aquele filho-de-uma-puta que no passado vivia berrando pelas ruas que os banqueiros deveriam ser todos enforcados, que atirou mais de uma bomba nas vidraças das agencias nacionais e estrangeiras e que agora, misteriosamente, os considera “um mal necessário” e até mesmo o “pilar central da democracia” ou mesmo da plutocracia. Da sacristia de uma catedral de vidros azuis vem o coro lamuriento e masoquista que repete: SALVE Regina, Mater misericordiae, vita, dulcedo, et spes nostra salve. Ad te clamamus, exsules filii Hevae;Ad te suspiramus, gementes et flentes in hac lacrimarum valle. Eia ergo, advocata nostra illos tuos misericordes oculos ad nos converte. Et Jesum, benedictum fructum ventris tui, nobis post hoc exilium ostende. O clemens, O pia, O dulcis Virgo Maria. Ora pro nobis, sancta Dei Genitrix... Palavras. Nada mais que palavras de desespero existencial, frases esquizoides, aberrantes e sem nenhuma razão. Voltando a Caim e aos motivos de sua sina, dizem que certa vez, quando matou um leão com as unhas e com seu cajado, – fato que naquele momento pré-histórico ou mesmo a histórico era uma façanha e tanto – ao invés de Eva reconhecer sua bravura, o fez apenas lembrar e admitir impropriamente que Abel, com sua funda, era tão ou mais hábil do que ele –. Como se vê, a burrice e a malignidade materna, bem como a familhitis, já existiam e se proliferavam pelo mundo. Sempre que Abel regressando do pastoreio e de sua rotina ordinária aparecia lá no meio do rebanho, Eva corria em sua direção e, estrepitosamente, o abraçava e beijava com imenso contentamento. – Deus está contigo!!! Deus está contigo!!! costumava repetir – no meio dos berros das fadigadas e torpes ovelhas, fomentando a inveja e a intriga entre eles. Poderia até tê-lo salvado da indignação e do espírito justiceiro de Caim se conseguisse calar a boca ou se ao menos o tivesse aconselhado a levar no pescoço ou no bolso uma daquelas pedras negras de turmalina que, segundo os velhos hippies e os astrólogos, têm um poder 31


tremendo contra todos os tipos de violência. Mas era apenas uma pobre ignorante, uma histérica engendrada um pouco antes com uma costela de seu marido e seduzida logo depois por uma serpente.9 Apenas um pilar da família nuclear,10 uma reprodutora que por imaturidade e despreparo, ao invés de apaziguar, ateava fogo na relação dos filhos. Na primeira oportunidade Caim assassinou seu irmão. Nas pinturas e desenhos através dos quais a imagem do assassinato foi representada, o instrumento do crime é ora um porrete, ora uma pedra, ora um osso, ora um estilete de madeira, ora uma enxada etc. Já que tudo é ficção, por que será que nenhum pintor ainda se atreveu a colocar nas mãos de Caim uma espada de samurai, uma corrente punk, uma AR15 ou um fuzil russo? – Que fizeste? O sangue de teu irmão manchou a terra e clama por mim – Sussurrou-lhe austera e persecutoriamente o Senhor. O grande, enigmático e hipotético Criador do universo, aquele ser assustador que os Astecas esculpiam em seus templos e que Michelangelo pintou no teto da Capela Sistina.11 E foi com essa pergunta meramente retórica, cheia de falsidade e de malícia feita da penumbra de seu esconderijo que realmente foi inaugurada a saga da desfaçatez, a Corte Suprema, o judiciário e o mau caráter no mundo. Se já sabia de tudo, inclusive que ele próprio era o principal responsável por aquela tragédia, para que perguntar? 9 E teria sido Lilith e o demônio que, através da serpente, excitaram e seduziram a Eva. Foi dessa transa e dessa infidelidade que nasceu Caim. (fontes apócrifas). 10 Considerando que Adão, Eva & filhos foi uma montagem artificial, uma experiência e um arranjo fatídico e esdrúxulo de “Deus”, quem realmente pode ser considerado o genuíno fundador da família nuclear que conhecemos, dessa aberração melancólica, desse núcleo hipocondríaco, de sadomasoquistas e dessa usina de cardiopatas é Caim. 11 Mais tarde, por questões fúteis, esse mesmo Deus, cumpliciado com Moisés lançará uma dezena de pragas contra o Egito e seu povo. Ele que parecia ter se escandalizado tanto com o assassinato de Abel, transformou os rios do Egito em puro sangue. Logo em seguida, não satisfeito, lançou sobre os sobreviventes a praga das rãs. Depois a de piolhos, logo em seguida a das moscas. Não realizado com tanta crueldade contra os homens, tratou de atingir com a peste também aos animais. E a peste foi seguida por uma epidemia de sarna que se transformava e feridas. Depois caiu sobre aquela nação uma chuva de saraiva, uma invasão de gafanhotos e, por fim, Deus lançou a praga das trevas que deixou o Egito em total escuridão por três dias. Quem achar que isso é instinto criminoso demais para um Deus e que posso estar exagerando, que consulte Êxodo 8 em diante.

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– Caim, onde está Abel, teu irmão? Insistia o Senhor. – Sei lá! Não me encha o saco!!! Deve estar no céu!!! Por acaso sou eu guardador de meu irmão? Respondeu-lhe secamente Caim. E poderia ter dito muito mais. Você que supostamente é onisciente e que passa o dia vigiando os outros é que devia saber por onde anda essa tua prole “desfigurada e abortiva”. Abel não é meu filho, não sou sua babá e, além disso, nunca gostei dele que veio roubar-me o afeto materno12 e sua vida nunca me interessou para nada. Mas não o fez. Ficou calado mesmo percebendo de imediato que, como milhares de adolescentes hoje em dia, havia sido empurrado para o crime. E mais, que a maneira como o demiurgo estava testando seu caráter, era uma canalhice inescrupulosa e sem precedentes. Aproveitou para lembrar que não era ele o primeiro criminoso, já que Abel, dias antes, sob seus olhos e com sua aprovação havia assassinado o cordeiro da oferenda. Mas, tudo inútil. Apenas palavras. Compreendendo que não se podia esperar outra coisa de um Deus viciado em gordura animal, que a fé era em si mesma uma patologia e uma forma de artritismo intelectual, que ser primogênito era algo terrível,13 que vivia num mundo de negócios absurdos, de bajulação e de delongas inúteis e sem serventia onde tanto o amor divino como o amor materno eram balelas e que na vida nada é retificável, Caim, o primeiro grande maldito e desertor que se tem notícia, ligou o “foda-se”, deu lhes as costas e, sem impetrar nenhum recurso, caiu no mundo levando com ele uma irmã, sob o rótulo de arruaceiro, disposto a percorrer todos os desertos, até mesmo os impossíveis. Segundo outros coautores dessa lenda, Abel teria uma irmã gêmea e que inclusive vivia maritalmente com ele. Essa hipótese compromete ainda mais a Abel e torna 12 Segundo Roheim, “Para resolver o problema do ciúmes entre irmãos, a mãe da Austrália Central come (canibalismo) cada segundo filho, partilhando-o com a criança mais velha. Este costume não só “deixa a criança continuar ‘comendo’ a mãe, mas até a autoriza comer o irmão mais novo”. Ver As origens do amor e do ódio, Suttie, p. 94. 13 O mito de Caim e Abel se repete sistematicamente no seio das famílias nucleares (claro que não de maneira tão radical) e é difícil resolver o problema da primogenitura versus ultimogenitura. Quanto à punição no caso Caim é a expulsão de casa e a recusa de a terra lhe dar os seus frutos. Ver Suttie, idem, p. 109, 110.

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mais compreensível ainda o fratricídio. Não é difícil imaginar como devia ser grave, a abstinência sexual dos dois irmãos naquele contexto a histórico e quão terríveis os crimes que estariam dispostos a praticar pela conquista da segunda xota do universo. Aliás, segunda não, terceira, pois já existia a de Lilith, daquela mulher diabólica anterior a Eva que, com razão, se negou a ser simplesmente a mulherzinha de Adão. Na primeira semana de caminhada tiveram fodas incestuosas e homéricas. Quando cansaram de trepar e o tédio caiu sobre eles fincaram estacas na areia e deram início a primeira vila que se tem notícia. Deus o viu partir e tomado por um sentimento de incompetência, de fracasso e de culpa, constatando que em sua obra não havia nem vestígios de excelência, arrependeu-se de ter criado o homem e até mesmo de ele próprio ter nascido.14 O sol londrino parece o sol marroquino. Um saxofonista lá na esquina da Galeria de Belas Artes, um acrobata na boca do metrô da esquina, dois policias marchando a passos lentos de lá para cá a espera de algum chamado ou de algum forasteiro que lhes atire uma garrafa nas costas. A mendigada, os sem documentos e um ou outro terrorista fracassado se encostam nas paredes de mármore fumegantes e ficam ali até que o álcool vagabundo evapore de suas tripas. Todos os dias jogolhes uma moeda de duas libras. Me olham com nojo. São os mais legítimos descendentes do primeiro matador da história. Tenho com eles uma relação ambígua e eles comigo idem. Lá no Brasil um deles que nem me conhecia ao ver-me transpirando numa fila de banco para pagar impostos aproximou-se rindo e provocou-me: – Pensei que havias abandonado esta aldeia de farsantes... 14 Não pensem que estou inventando, se informem com o pastor da esquina ou confiram lá em Gênesis VI, 6. E vejam a interpretação do erudito Padre Antônio Vieira feita num Sermão do Primeiro domingo do Advento: “Se Caim não matara a Abel, haviam de nascer de Abel quase tantas outras gerações como nasceram de Adão, com que dobradamente se propagasse o género humano; e o sangue ou sangues de todos estes homens que haviam de nascer de Abel, e não nasceram, eram os que clamaram a Deus e pediam vingança contra Caim; porque, matando Caim e arrancando da terra a árvore de que eles haviam de nascer, o mesmo dano lhes fez que se os matara. De sorte que Caim parecia homicida de um só homem, e era homicida de um género humano; o pecado era um, as consequências infinitas”.

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Em seguida inclinou a cabeça para ver o documento que eu segurava na mão e ao identificá-lo explodiu numa gargalhada: – IPVA, cara? Que merda e que idiotice é essa??? Passei-lhe o documento e ele, com expressão de nojo foi lendo: – Seguro obrigatório... Licenciamento anual... IPVA primeira cota, segunda cota, terceira cota... Multas por atraso... multas por excesso de velocidade, multa por ter tomado uns tragos antes de dirigir... Gargalhou novamente, devolveu-me o DAR e falou em bom tom: – Cambada de ovelhas e de idiotas!!! Além de pagarem mil vezes mais do que valem essas latarias velhas, ainda devem pagar por tudo isso? E mais, todos os anos, aos proxenetas do Estado. Não é possível! Isso é modernidade? Isso é liberdade? Se fosse uma vez na vida, ainda, ainda... Ladroeira imperialista! Aliás, você conhece alguém que esteja preocupado com a fome e com a mortandade do Sudão e da Etiópia? Bateu no vidro do balcão e falou para o caixa: – Reserve o lugar desse otário aí na fila que vou levá-lo lá na calçada por um minuto. No meio fio apontou para a Esplanada dos Ministérios entulhada de fumaça e de automóveis de todos os tamanhos e cores e praguejou com voz propositalmente esganiçada: – Que tal? Veja que belo espetáculo de desdita! Já viste tantos imbecis juntos, encolerizados, estressados, buzinando, a bunda suada, com os olhos cravados no relógio, nas estrelas, nos semáforos, nos congestionamentos intermináveis??? Que idiotice é essa? E observe que quanto maior a idiotice maior o carro!!! Diga-me uma coisa cidadão: essa anomalia é genética ou cultural? E saber que poderia estar todo mundo caminhando tranquilo por aí, coçando o saco, cheirando rapé, andando de bicicleta, ou de carruagem... Voltando ao banco, depois de dar um tchau ao gerente riu cinicamente em minha direção e recitou esta frase de Aristóteles: “buena suerte é quando a flecha mata o companheiro que está junto a nós”. Muitos, em suas desgraceira, são até esotéricos, acreditam em tudo o que ouvem, principalmente nas coisas que insinuem algo de trágico ou de sinistro. O fim do mundo em 2012, por exemplo. Repetem aí pelos becos, nos fundos dos restaurantes 35


do chinatown e pelos parques que, segundo o calendário e as crenças dos astecas o ano de 2012 será um ano de surpresas para nosso planeta, ano em que conheceremos o esplendor do caos e ano em que quase todos (não importa nosso signo) voaremos em desespero e aos pedaços pelos ares... Fui pesquisar e vi que realmente o tal calendário sugere que o universo se colocará em cólera em 2012, que os mares sairão de seus berços, que estrelas e meteoritos incendiários despencarão aqui e ali, que as praias desaparecerão, que os ventos levarão nossas casas como se fossem penicos de plástico etc. etc. Pode até ser que tenham razão, mas bem que aqueles simplórios selvícolas poderiam ter previsto pelo menos a chegada dos bandidos europeus em suas terras e tribos evitando assim a humilhação de que foram vítimas, impedindo que um bando de espanhóis bárbaros pisoteassem o crânio de suas crianças, comessem suas mulheres e os cortassem em pedaços para alimentar seus cachorros. O curioso é que muita gente que conheço, inclusive gente culta, pretensamente culta, já está ansiosa olhando para os “céus” em busca dos meteoritos que se espatifarão no quintal de suas casas, olhando 24 horas para o mar em busca dos tsunamis que invadirão suas coberturas, suas garagens e suas igrejas... Estão certos de que os demônios que rondam por aí – todos adestrados por Caim – invadirão a terra para comer o cu das beatas, mijarão em nossas caixas-d’água e envenenarão nossas padarias. Os padres e os pastores, finalmente, serão enforcados com seus cintos ou mesmo com suas cuecas. Nada escapará da esperteza dos espíritos, de seus olhos sem pupila e de suas mãos amputadas. Há gente que não dorme esperando de terno e gravata e de malas prontas por alguma mensagem na escuridão da noite, por alguma estrela guia ou por alguma inscrição reveladora rabiscada no meio das nuvens, prontos para correrem para alguma montanha. Mas não há montanhas! Só há desfiladeiros e abismos! Muitos intelectuais já empacotaram suas bibliotecas, principalmente as obras raras trazidas de vários cantos do mundo, algumas impressas até em pergaminho. As joias, os diamantes e as esmeraldas as mulheres as condicionam em caixinhas de isopor para que, em última 36


análise, fiquem boiando pelo planeta. Algumas até as enrolam em papel de seda e as enfiam no fundo da xota. Finalmente alguma utilidade para esse lugar quase sacralizado! Quando o dilúvio acabar, alguém as encontrará e as penhorará na Caixa Econômica para comprar comida, velas, manteiga, outras bíblias e outros rosarios. A catástrofe lhes parece algo tão certo e tão inquestionável que estão até vendendo suas casas a beira-mar e migrando para regiões inóspitas, quanto mais sertão melhor, tanto aqui na Inglaterra, como lá na Grécia, no Brasil e até na Bolívia. A propósito: se alguém que mora em Búzios, Ipanema, Ilha Bela, San Torino, Bahamas ou lugares parecidos quiser negociar suas casas ou seus apartamentos em troca de amparo espiritual ou de orações, pode entrar em contato através desta editora. Não, não há remédio para tanta idiotice e para tantas inverdades! Quê fazer com tanta mentira? Nos últimos anos voltei várias vezes a ler Sur un prétendu droit de mentir par humanité, trabalho de Kant, numa tentativa de acalmar minha fúria com relação às mentiras políticas e às que vêm diariamente embutidas na vida doméstica, mas principalmente na Publicidade e na Propaganda, nessas duas escolas de mentirosos e de cínicos. O resultado, como se percebe, não tem sido lá grande coisa! A publicidade enganosa permanece no ar, segue sendo exibida pela mídia, juntamente com outras sobre automóveis, café, aço, comidas, remédios, cursos, viagens, sapatos, seguros, jornais. Tudo falso e mentiroso. Nossos produtos isso! Nossos produtos aquilo! Nosso governo isto, nosso governo aquilo! Tudo mentira! Da igreja ao bordel, do público ao privado, da putaria à purificação do espírito, da ética à prédica… Sempre a mesma horda de porcos chauvinistas que vai com suas mandíbulas grunhindo, rindo e devorando tudo por onde passa.. Eu minto, tu mentes ele mente! Propaganda: arte de propagar mentiras! Usina de falsificações, religião do engano, da má índole e a alma dos negócios. Vilania coloquial! Vomitório! Pênico! Escudo! Relho! Ante sala da infâmia! Protocolo do escárnio! Covil de dissimulados! Triunfo da ambiguidade! Mãe do estupor! Academia de repugnância! 37


Caim matando Abel / Garcia Hidaldo, 1640-1718

Cain matando Abel - Albrecht D端rer


Caim matando Abel / Leonello Spada



[3] “A história do mundo não é o local da felicidade. Os períodos de bonheur são suas páginas em branco”. Hegel, em Philosophie de l’histoire

Faço quase propositalmente uma salada, um saco de gatos e um mosaico de cidades, países, continentes, purgatórios, viagens, oceanos, acontecimentos, registros, interpretações, confissões, glosas de mil autores e memórias neste livro, muito mais para dispersar do que para aglutinar, cabe a você leitor, antes de virar pó, acostumar-se ou não a essa desordem e a essa errância. Aqui tanto as viseiras como as poses de sapiência são plenamente dispensáveis, já que o elogio ou a crítica são igualmente abomináveis. Repito: não sou um homem de “premiações”. Não brigo por uma vírgula nem por uma palavra escrita com Z quando as regras obrigam que seja com S. A neurose dos eruditos e dos intelectuais não me diz respeito. Se for necessário, sou capaz de usar meus livros e toda minha “obra” para acender uma fogueira e nela cozinhar um caldeirão de batatas. Não conheço e não frequento a casa de outros marqueteiros, não vou tomar chá na suíte de nenhum poeta aposentado, não troco correspondência pensando na posteridade, não pactuo com bundão nenhum do mundo das letras, não queimo incenso a ninguém e vomitaria se soubesse que alguém, por equívoco ou doença o faz em minha homenagem. Odeio trapacear aos outros e muito mais ainda a mim próprio! Ninguém das hordas de puxa-sacos que proliferam por aí se atreveu até hoje a oferecer-me um “prêmio”, um certificado, uma caneta, um busto de Ruy Barbosa ou de Stalin por alguma bobagem que escrevi. Sabem o que penso disso e sabem também que todo sujeito que é premiado por alguma coisa, principalmente por seu trabalho escrito, é um bosta comensurável, um indigente imoral, um merda idêntico aos jurados que o premiaram. É bom repetir que não pretendo “salvar a humanidade” com meus rabiscos 41


e nem mesmo proporcionar alguns minutos de alívio à turba desesperada. Se é que minhas palavras servem para alguma coisa, se é que minhas frases causam alguma coisa em alguém, não deve ser nada de bom, nada recomendável nem mesmo pelos manuais vagabundos de autoajuda. Nem sei como sucumbi aos prazeres, aos vícios e aos horrores dos rabiscos e da escrita. No início, ainda criança desvairada, desejava escrever apenas historinhas de pequenos bandidos locais, fazer uma ode aos desertores escolares, um elogio definitivo aos que roubavam orquídeas das cercas da casa vizinha e aos de minha idade que jogavam merda nos professores ou que paralisavam histericamente as pernas para não marchar nos dias festivos da pátria. Mas tudo era tão vago e tão provisório que escrevia algumas coisas pela manhã e a tarde limpava-me o cu com elas. E foi daí que basicamente por tédio fui me enredando, enchendo minha casa de papéis, de fantasmas e de escritos de outros sujeitos que nunca havia visto, identificando-me com ideias de mentecaptos, com expressões e valentias de delirantes, com medos e revoltas de malucos, com idealismos fajutos e desesperanças de lunáticos. Como já relatei em algum lugar, vim ao mundo por acaso em 08-12-1949 numa região montanhosa e repleta de pinheirais no interior de Santa Catarina (nomes de santas é que não faltam em minha biografia), lugarejo que nem constava no mapa e onde o idioma falado, tanto em casa como nas ruas era o de Paganini. Meu bisavô Matteo havia abandonado a cidade de Fonzaso, quase na fronteira com a Alemanha, famosa pela produção de graspa, atravessado os mares e lançado âncoras no RS de onde seus descendentes foram migrando para SC e, mais tarde para o PR. Essa vila onde nasci e deve até ter desaparecido, era constituída por umas vinte ou trinta casas de madeira, com varandas e janelas exatamente como as de Veneza e pintadas sempre com cores exóticas. As imagens mais importantes que consigo resgatar, daqueles anos, são imagens do inverno. A geada nas vidraças. As chaminés fumegantes, o cheiro do pinhão e os gatos, soberbos, transitando por sobre as cercas em busca de um pedaço de sol. Uns quatro anos depois 42


os caminhões e os jipes em caravana escalando as montanhas rumo ao Paraná... A selva ainda intacta, as perobas, as onças rondando os galinheiros, as espingardas sempre carregadas, um tio tocando violino, os festins a cada matança de porcos, as tripas transformadas em salames, o cheiro da xota de uma priminha, os colchões mijados expostos nos telhados e as peças íntimas das irmãs secando nos varais... Depois a escola, os sapatos, o rádio, o incenso das missas, a melancolia dos sinos, todo dia na hora da tal Ave Maria. A adolescência, as punhetas intermináveis, as brigas de rua, a culpa, os embates familiares, as crismas, os casamentos, os revólveres, os tiroteios nos finais de semana, as terras griladas, o Governo Lupião e as escrituras falsas, a desmistificação dos adultos, dos mandamentos, da moral vigente. Da Bíblia para a Enciclopédia, da punheta para os braços e para as coxas das pequenas camareiras. O ginásio, a marcha de Sete de Setembro. A colheita do café. A banda semimarcial. Mussolini. Hitler, as Valsas Vienenses. A dificuldade para falar português. O “rr” enterrado e tatuado na língua. Ser padre ou médico? E a Itália sendo soterrada e negada15 já que ser gringo era quase um crime. A farmácia, as seringas, as bulas, a hipocondria generalizada! A tortura numa cadeia de um vilarejo instalado ao lado da estrada. A cara miserável dos torturadores! A ditadura! A marcha das mulheres indo à igreja com seus véus e seus intestinos presos. Num inesquecível entardecer a mala aos pés. Adio! Arivederci! Curitiba. Colégio Estadual. Colégio Iguaçu. Universidade de Lisboa. Brasil. Londrina. Universidade de La Plata. Londrina. Brasília. Universidade do México. Brasília. Universidade do México, Universidade de Barcelona, Brasília, Universidade de Paris, Brasília. A universidade como um pretexto, porque o saber estava sempre à margem ou ao lado. A rua. O caos. A contramão. As entrelinhas. O inferno desconstruído. A Índia, o Nepal, a China. A grande marcha de cada um. Pukhet um 15 A propósito, eu que sempre estou lhes falando mal e contra a “cidadania”, mal e contra as pátrias carrego no bolso não um, mas dois passaportes, sou “cidadão” duas vezes, devo satisfação e reverência a duas pátrias. Em outras palavras, minha decadência e minha hipocrisia é muito maior que a vossa!

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pouco antes do tsunami. A solidão dos aeroportos e das espeluncas. O texto. O caderno de notificações. O asco pela mesmice. O horror ao trabalho. À alienação. À mentira convencionada. À polícia estatal, à igreja, o superego intransigente e lá no meio das coxas das mulheres, sempre o mesmo cheiro alucinante de outrora. A palavra em movimento. Um mosteiro interior, uma cidade estupenda construída somente de pesadelos. As ruas de Praga... A boca tenebrosa do metrô. Um morto boiando no Volga. A morte. Os cemitérios de Paris, de Istambul, da Bolívia. Cada lápide como um espelho. Devagar por entre os monumentos vendo as botas espelhadas aqui e acolá. Um corvo. Apenas um corvo numa manhã de neve nos arredores de Telavive. Uma rajada de metralhadora e o silêncio. Trinta e cinco, quarenta, cinquenta e oito anos. O rio São Francisco, o Ganges, o Mississipi. Os cabelos grisalhos, um naufrágio nas costas de Petrolina. O sol, o carcará, as moscas lambendo meus dedos... O texto, o caderno de notificações. Vargas Vila revisitado. A máquina fotográfica. Um violino como o Guarnierus do Paganini ou como o do meu tio. Meus dedos loucos e esqueléticos atrás das notas para executar precariamente a doçura de summertime. A famiglia desfeita entre os mares. A psique. Dos gatos soberbos transitando sobre as cercas em busca de um pedaço de sol à psicanálise. Milhares de horas de escuta. Para quê? As dores do mundo escutadas e condensadas no dia-a-dia, ano-a-ano, década-a-década. Curar-se. Curar-se de quê fratelo mio? Eu, como muitos outros, talvez nem tenha verdadeiramente uma biografia – como alertava-me um antropólogo – poderia se falar, mais bem, numa longa, fictícia e estúpida ficha policial. Já é quase madrugada em Londres. Alguns estrangeiros bêbados atravessam a rua resmungando e vão em direção às cercas do Hyde Park. Pela janela deste quartinho de merda vejo o quiosque do indiano com as luzes acesas, mas fechado. Foi esse filho-de-uma-puta que, hoje a tarde, quis cobrar-me uma libra por uma mísera colher de plástico. De quando em quando o gemido de alguns pássaros como se estivessem sendo 44


mordidos por uma ratazana ou mesmo se enrabando. Mas a essa hora? A árvore da frente balança levemente seus galhos como se nela estivesse empoleirado um bando de druidas embebedados. O que há de melhor na insônia – ironizava Cioran – é que ela nos permite mergulhar de vez no território do silêncio. Rumino minhas sementes de girassol. Jogado no piso o jornal francês de ontem com uma manchete sobre a morte do Bin Laden. Meteram-lhe uma bala no meio da testa. Entre o atirador e o morto, quem era mais Caim e mais bandido? Não importa. O que é inegável é que definitivamente “viver faz mal para a saúde”. Ou uma bala na testa ou uma queda, ou uma feijoada pode ser o fim da tão pretendida longevidade. Longevos! O mundo quer cada dia mais chegar a ser uma legião de longevos. Durar. Mesmo aqueles que não sabem o que fazer num simples sábado à tarde e que são o tédio ambulante, mesmo eles lutam com todas as forças para durar. Mas são muitos os obstáculos e as conspirações em contrário. A última notícia que recebi foi me prevenindo de que o bacon e o presunto podem provocar leucemia. Ontem me mandaram uma nota demonstrando que o leite provoca câncer na próstata e na semana passada recebi uma tese cujo autor jurava ser a garrafa plástica da água mineral um veneno mortífero. Já me alertaram de que o uso dos adoçantes artificiais está relacionado às demências, o café aos distúrbios do sono e o vinho à pressão alta e às tremedeiras do Parkinson. Dizem que o chá verde foi semeado na terra por Caim e que dispara o coração de qualquer um, que o cigarro apodrece o pulmão, que a cachaça destrói o sistema nervoso central, que os tomates são autênticas cápsulas de inseticidas, que a pasta de dentes é pura química, que o chocolate é basicamente manteiga e que tem uma fórmula monstruosa, sem falar da cadaverina presente em todas as carnes e que leva os carnívoros à idiotia. Consumir açúcar, sal, refrigerantes, ovos, gorduras, farinhas etc. é obesidade, diabete e impotência certa. E o pior é que eu, do alto de meus 62 anos, acredito em quase tudo isso. E não só acredito como tenho certeza que ter que comer e respirar é uma idiotice e que quase tudo o que ingerimos no nosso dia-a-dia é impróprio, 45


maléfico, quase putrefato e mais, que mesmo a vida é tóxica e que talvez só o jejum absoluto nos pouparia temporariamente da ruína e da devassidão física e mental. Os mais pessimistas – e portanto mais lúcidos – acreditam até que o cérebro, o coração e o resto do corpo são como putas em conchavo e em conluio permanente. Ao sinal de um o outro se destrambelha, se derrete, se dilacera ou se recusa – e vice versa. Como manter esse coágulo que somos em equilíbrio talvez seja a maior de todas as indagações da fisiologia e até da filosofia. Não era por acaso e nem por esnobismo que aquela velha senhora de minha infância, quando via o demônio do entardecer se aproximando, o ranger de dentes das tropas, o mar de lágrimas invadindo os barrancos, a montanha de cadáveres empilhados junto às taipas, gostava de passar a mão pelos cabelos e repetir, quase como se repete um mantra: pobre, miserável e desgraçada gente! Mas nada de sucumbir à consciência desse triste destino – arrematava. Já que não podemos escapar dessa armadilha infame e muito menos apostar numa eternidade, temos a obrigação de saber como ser pródigos com nosso mísero tempo... Para isto, nada melhor que a rua. Em alguns horários, principalmente aos sábados, a linha do metrô Piccadilly Circus fica parecida às do metrô da cidade do México no dia dos mortos. Como é que se chegou a essa inflação de gente no mundo? Parece que os anticoncepcionais e a pederastia, quase generalizada, não estão servindo para nada. O motivo de tanta gente neste dia e horário – me dizem – é que esta linha passa pela Estação Knightsbridge onde fica o conhecido e adorado prédio do Harrod’s. Ahhh, bom! Harrod’s! Por ingenuidade havia escrito que aqui em Londres o melhor que existia era o Museu de História Natural. Bobagem intelectualóide. O que há de mais grandioso e de inigualável aqui, qualquer criança sabe, é o Harrod’s. Charles Darwin ao lado de Henri Charles Harrod’s e de seus sucessores não passa de um camponês pretensioso... Quem já foi à Meca, ao Vaticano ou a Pona (quando o Rajnesh ainda estava vivo) sabe que é incomparável o entusiasmo, a paixão e a loucura 46


dos fiéis de lá com os daqui. Se lá o ópio espiritual bate de cheio na alma fragmentada dos fanáticos e se esfuma, aqui o luxo sólido e o bom gosto concreto impacta diretamente sobre o sistema nervoso central e os ossos dos fiéis. Enfim, esse prédio vitoriano de departamentos que ocupa uma quadra inteira a uns 200 metros da Estação Knightsbridge está lotado o dia inteiro de discípulos fervorosos. Ninguém sabe exatamente como foi que o velho proprietário, um simplório vendedor de verduras e outras quinquilharias como tantos que começaram com uma bodegazinha aqui no Brompson, conseguiu essa façanha. Na entrada uma revista superficial nas bolsas, mas sem paranoia. Depois que o IRA colocou uma bomba ali na calçada os proprietários e a Scotland Yard resolveram prevenir... No Departamento de Comidas, que foi o primeiro que entrei, os romãs, os blackberries e as nectarinas parecem pinturas e os vendedores com seus chapéus e sua presteza parecem realmente de outro mundo. Nem sei como a história de Alice não transcorreu aqui dentro no meio de todas essas maravilhas... As coleções e as latarias dos biscuits da casa além de derreterem ao primeiro contato com a saliva também parecem estar ali mais para decoração de que para outra coisa. Cafés e restaurantes para impressionar. Na rotisserie, ao lado de obras de arte, tem até dois porcos pendurados, as carnes brancas e impecáveis. Impecáveis? Será que essa palavra quer dizer sem pecado? Que seja. Nesse mesmo setor uma caixa exótica com ovos, um de pato, dois de galinhas, dois de faisão e três de codornas. Que maravilha! Quem é que já havia pensado em fazer uma combinação dessas ou algo assim no mundo. Fico imaginando Marx e Engels (que aliás não moravam longe daqui) caminhando no meio de todo esse exagero estético e de toda essa deslavada plusvalia meio boquiabertos e tendo que rever suas teses sobre as artimanhas e as sacações do capitalismo. Se ao invés de um mundo comandado pelo proletariado tivessem pensado em aperfeiçoar as debilidades burguesas, talvez as coisas tivessem dado mais certo. Aliás, o que acreditamos ser luxo e capitalismo aí no Brasil e na América Latina inteira, ainda é apenas um arremedo promovido por meia dúzia de 47


grupos de ladrões e de vivaldinos, algo primitivo e descabido, uma imitação bufa, sem conteúdo e sem história. Foie Gras em vidros de 400 gramas 158,95 libras. Mas existe um outro tipo em latinhas cor-de-rosa com 305 gramas que custa 105 libras. O setor de chás é a nona ou a décima maravilha do mundo, pena que a cafeína costuma colocar meu coração à beira de um infarto. A Opulence Collection com seus devidos acessórios e que leva o nome do malandrão Harrod’s é de tirar o chapéu. Chá em pacotinhos, chá em latas de cinco quilos, chá na quantidade e no aroma que o cliente desejar... Chaleiras parte medievais e parte futuristas, xícaras quase transparentes, mil instrumentozinhos para os obsessivos, os epicuristas e para os hedonistas seguirem se iludindo de que realmente a “felicidade” existe e de que o paraíso é neste mundo mesmo no meio de todo esse lodaçal civilizatório. E tudo, repito, misturado a detalhes em mármore, estátuas egípcias no alto das prateleiras, luzes, o uniforme dos vendedores e, claro, a turba. Foi toda essa opulência e todo esse bom gosto de seu proprietário que fez até a defunta Diana abrir-lhe tímida, mas graciosamente, as pernas... Aliás, desde a morte deles está montado uma espécie de altar ou de “santuário” ali na Arcade Egipcian, com fotos dos dois, signos íntimos, velas queimando etc., mais uma característica de templo ou de catacumba deste monstruoso monumento, ideia astuta da ditadura dos mercados e dos bancos... E a multidão se acotovelando de um lado para o outro, cada um, de seu jeito, tomando consciência de sua pobreza e de sua indigência... Fazem fotos aqui e fotos ali. Ao voltar para a tribo é preciso provar que se esteve na Harrod’s. Na frente a esposa, a mãe, a filha, a cunhada e às vezes até a babá, que vão como antas devorando e comprando tudo e atrás ele, meio barrigudinho, do gênero simpático, com quatro cartões de crédito já a mão, beliscando um caviar aqui e uma azeitona acolá. Normalmente é Chefe de gabinete, DAS6, governador, deputado, juiz, ou presidente de alguma Ong em algum país subdesenvolvido desse miserável planeta. Para a plebe e para os simplórios que vivem se perguntando: com tanto dinheiro já acumulado, por que é que os políticos e 48


os empresários continuam roubando, roubando e roubando? O que querem fazer, afinal, com tanto dinheiro?, eu lhes respondo: vir ao Harrod’s. O luxo é um vício parecido ao da heroína, ele dá não só a sensação, mas também a certeza de estar acima do bem e do mal ao viciado... A moda é, entre todas as religiões, a mais bem sucedida da terra. Um crucifixo, o Corão ou o Talmude perto de um vestido ou de um perfume das grandes marcas não significa absolutamente nada. Caminha-se, caminha-se e passa-se daí para outro Departamento, o de bolsas, denominado – vejam a malandragem dos negociantes – Room of Luxury. Aí sim é que se ouve em coro os murmúrios e a excitação das mulheres. Só que aqui, devo lembrar, o murmúrio é bem diferente do murmúrio que se ouve lá naquela outra loja onde se vendem quase só trapos. Aqui há evidências reais de sensualidade, porque, qualquer um lembra que dinheiro e sexo sempre estiveram vinculados pelos séculos a fora. E depois, quem é que não sabe o significado freudiano de uma bolsa? De uma bolseta? Apesar de fazer de tudo para reprimir um antigo impulso de meu caráter, de vez em quando, no meio de todo esse frenesi, me surpreendo olhando para uma ou outra das mais provocantes e exóticas clientes e me perguntando mentalmente: Quanto esta estará cobrando??? Mais estátuas decorando esse pedaço de parnaso. Sereias, pavões, aves do paraíso, rococós do Oriente Médio, cada sala com um perfume característico e tudo turbinado por uma música de Vivaldi vinda por detrás das imensas colunas. Dizem que Freud e Oscar Wilde passavam por aqui sempre que lhes sobravam algumas libras para torrar. Departamentos de cristais, as vacas sagradas da moda, e das joias, e das canetas, e dos perfumes. Até leões, cobras e barras de ouro dizem que se pode comprar aqui. Tudo, absolutamente tudo. A ideia do fundador era exatamente esta, ter a disposição dos clientes desde agulhas e de botões até elefantes e latifúndios na Amazônia (o cinismo é meu). Depois de horas de inebriamento, quem quiser pode descer ou subir para uma das tantas toaletes. Desci para uma que fica praticamente dentro de um setor de perfumaria. Outro show de “civilização” e de harmonia entre 49


cores, cheiros, formas e luzes. Nenhum vestígio e nenhum estímulo sensorial escatológico. Quem se atreveria soltar um peido ali? Os resíduos fecais, mais do que nunca, devem ser, como Caim, negados e renegados. Talvez aqueles mais pudorosos nem se permitam urinar e muito menos defecar sobre aquelas louçaria. Há o tabu com os dejetos e depois, todo mundo sabe, nada fragmenta mais o ego do burguês do que ter que encarar a própria merda no meio de tanta beleza e de tanto luxo!!! Enquanto mijava ia lembrando de um discurso de Lênin a seus seguidores onde ele prometia que se a revolução desse certo, um dia, o proletariado teria até pênicos de ouro... O designer das torneiras e todos os detalhes pensados. Não há nada que você diga: Ah, se fosse assim ou se fosse um pouco mais para cima ou para baixo, nada. Tudo na medida certa, no tempo certo, na graduação certa. E, para concluir, quando você está saindo, achando que já desfrutou de tudo naquele lugar de tantas e miseráveis intimidades, eis que sobre uma bancada de mármore, rapinado possivelmente das arábias, e sobre uma peça de linho branco te espera um vidro verde de loção Giordio Perla. Quer mais? Em cada uma das quatro saídas (uma cada lado do quarteirão) fica um policial bonachão vestido de verde oliva, com boné e sobretudo da mesma cor que, apesar de lhe dar um aspecto idêntico ao daqueles terríveis generais da Gestapo, pronuncia gentilmente em sua direção um soberbo Thank you very much, mesmo que você não tenha gastado nem meia libra lá dentro. Que fazer, velhos e acabados camaradas? A história foi assim e estas são apenas algumas das malditas sutilezas e das malditas seduções do heroico, cainesco e vitorioso capitalismo... Apoiado numa viga da Southwark bridge vou rabiscando em meu caderno uma espécie de árvore genealógica da nobre Família Caim. É sabido que Caim gerou Enoque; Enoque, Irade; Irade gereou Meujael; Meujael gerou Metusael e Metusael ao também famoso Lameque. Lameque teve dois filhos Jabal e Jubal, este último é considerado o pai de todos os que tocam harpa. Foi Lameque que, como Caim, reimprimiu a desobediência e voltou a fazer “convênio com satanás”, episódio que 50


aporrinhou tanto a Deus que, decepcionado mais uma vez com a espécie amaldiçoou a terra inteira. E estamos aqui atolados no escárnio pagando o pato! Não levem a sério essas balelas, elas não passam de refugos e de literatura de cordel. Em todas as novelas e contos os escritores por vaidade e malandragem colocam uma misteriosa camareira da Martinica, do Marrocos ou do Alentejo. A minha, com seus 28 anos, elegante e de riso malicioso é do Leste europeu e sobe todos os dias as 13:30 em ponto para dar uma geral neste quartinho que mais se parece a uma cela de Guantánamo. Vem com toda a parafernália da modernidade para, no menor tempo possível, deixar o ambiente kleen e perfumado. Hoje, enquanto ela estendia os lençóis rocei acidentalmente em seu traseiro. Ela ficou enrubescida, mas imóvel. Não sei se a espera que eu levantasse seu avental, lambesse seu pescoço e lhe metesse a pica, ou apenas esperando que eu repetisse a impertinência para ter mais elementos para acusar-me de acosso sexual ou de estupro. Recentemente meteram o cara do Wikileaks e até o Presidente do FMI na cadeia por motivos semelhantes. As fraudes nesse assunto são cada dia mais descaradas e as mulheres, ontem idealizadas e quase santas estão cada dia mergulhando mais na transgressão e na delinquência. Enquanto a demi-frigidez feminina lhes dá uma boa soberania sobre seu corpo, o homem, tarado e libidinoso está sempre de joelhos mendigando que uma dessas loucas o deixe penetrála. Um dia ainda pretendo fazer pelo menos um ensaio sobre a heterofobia generalizada no mundo, mas isto não será para agora.16 Reprimi minhas fantasias, calibrei minha câmera, lhe ofereci umas sementes de girassol e desci as escadarias vitorianas e íngremes como Sísifo e com todo o cuidado para, de repente, não deslocar-me um quadril ou quebrar-me o pescoço. 16 E por falar em heterofobia, não são poucos os homossexuais que já rotularam o crime de Caim como o primeiro crime de homofobia. Paranoia à parte, devem ter fontes ultra secretas para saberem das preferências sexuais daqueles selvagens pré-históricos. Mas, não é impossível. Se conseguiram descobrir que até o Zumbi era chegado numa piroca, por que Abel não poderia ser, não é? Não é necessário ser um gênio para entender que no amanhã, pior que a ditadura feminista, só a ditadura homossexual. E que o sexo, paradoxalmente, continuará sendo a principal usina de angústias, obsessões e de desgraças de nossa espécie.

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Pode não ser o programa mais interessante do mundo, mas dar umas voltas pelos prédios em construção aqui na urbe no horário do almoço, nos proporciona o insólito espetáculo proletário da peãozada uniformizada, semicolonizada e sentada nas calçadas ou nos andaimes palitando os dentes e fazendo a sesta. Se poderia dizer que na essência, é uma imagem não apenas pré Marx, mas até mesmo pré Heráclito. Chegam de vários lugares do mundo, principalmente dos países fodidos dos arredores e do leste europeu para negociar seu sangue e suor por um punhado de libras. Neste particular Judas Iscariotes foi mais nocivo e astuto, entre o trabalho e a delação apostou na última. Estão sempre assoviando ou cantarolando alguma canção de seus países tentando dar um clima de normalidade a essa escravidão. Muitas vezes são experiências banais como esta que – como dizia Camus em seu Mito de Sísifo – nos revelam (ou nos fazem relembrar) o absurdo fundamental de nossa condição de condenados e de fodidos da terra.

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Caim matando Abel / Peter Paul Rubens


Caim e Abel Albert-Ernest Carrier Belleuse


[4] “Só em raras ocasiões a mente humana se encontra obcecada por um impulso de matar. Pelo contrário, em muitos casos o homicídio é provocado ou estimulado inconscientemente pela vítima”. David Abrahamsem

Onde está a cólera natural e a consciência negadora dessa gente? Todo sujeito que diz sim a tudo é um bosta. Só da recusa e da negação se pode esperar alguma coisa que subverta a mesmice e o tédio. Rabisco movimentos e impressões raras em minha agenda. Carrego irremediavelmente comigo um sentimento de peso, o de que escrever é sempre uma impostura e uma falcatrua. Portanto, antes que seja tarde, vamos colocarnos de acordo leitor, sobre duas questões: 1) Este palavrório não é necessariamente literatura e nem uma mito poética, muito menos ciência e muito menos ainda prosa poetizada. Apesar de albergar uma discreta hipomania, – repito – não anseio por nenhum prêmio e nem mesmo por algum tipo demagógico de reconhecimento. O truque de besuntar-se mutuamente, dissertar e de especular sobre determinado assunto como se quisesse reinventar a pólvora, provar ou insinuar para uma plateia imaginária que se está além, muito além dele, entre nós não funciona, certo? Já tenho muito que fazer na batalha diária para tentar compreender minimamente a mim mesmo, à minha loucura e para enxergar dois palmos diante de meu nariz. 2) E não se trata tampouco de ensaiar aqui uma obra delirante, uma pedagogia maniqueísta, um bricabraque de novidades, uma Heroika, uma reabilitação ou uma condenação cretina de Caim, pelo contrário. Estamos conversados? Sem complexos e sem humilhação é melhor para todos ir admitindo a ideia de que fomos e de que somos – sabendo ou não – não apenas um poço de inveja e de cobiça, mas inclusive, adeptos da antiga 55


seita dos cainistas.17 E isto, não porque sejamos necessariamente bundões ou uns espermatozoides incuráveis, mas porque a vida em si, o corpo, os ossos, a família, a fábrica, o escritório são um canteiro fértil e engrenagens eficientes de propagação dessa ferida psicopatológica.18 Antes mesmo de nossa concepção, é provável que os óvulos, por um lado e os espermatozoides por outro já tenham experimentado algo parecido a essa discórdia. Por que só esse sapinho nojento e não nós? Deveriam perguntarse em uníssono os milhões e milhões de espermatozoides no útero de Eva que, ao invés do óvulo morno e vibrante foram relegados à “latrina” ou às areias frias e abismais daquele fictício deserto. Na periferia de Londres pode-se ouvir também, como na América Latina ou na Ásia, além do chiar dos sapos os urros da pobreza e da exclusão. Por todos os lados é fácil identificar a maioria dos personagens shakespearianos. Imigrantes e filhos de Caim de todos os cantos da terra vivem por aí, em casebres ou casarões vitorianos mais ou menos como ratos. Ratos saciados, é verdade, mas que um dia poderão atear fogo à cidade. Por enquanto, raramente ouve-se falar de um fratricídio ou de outro tipo de crime. Ninguém esquece por aqui que recentemente a polícia meteu sete ou oito balas no crânio de um brasileiro e pior, por engano. Uma facada eventual aqui, uma paulada acolá e só. É verdade que com a presença do Obama (disse Obama e não Ozama) por aqui a policia esteve excitadíssima. Era sirene pra lá e pra cá o tempo todo, enquanto o Faraó (como o chamam os militantes da jihad islâmica) no ritual clássico de demagogia, 17 Os chamados cainistas faziam parte de uma seita gnóstica que surgiu lá pelo século II e cujos adeptos veneravam a Caim. Para eles, como Abel se mostrou totalmente submisso ao Deus criador da terra, passou a ser visto como a obra de um Deus que eles denominavam Histère. Já Caim, pelo contrário, o assassino número um, teria sido obra da sabedoria e do Princípio Superior, aquele que devia ser venerado como o primeiro dos sábios. Para os cainistas, a busca da perfeição consistia em cometer o máximo de infâmias possíveis. Dizem que uma militante dessa seita, a senhora Quintille, viveu na África no período de 155-220, (época de Tertuliano), e que por ali acabou arregimentando milhares de discípulos. Sorte dela que Maomé ainda não havia aparecido. 18 Como escreveu recentemente Javier Otaola: “no hay nada más eficaz para excitar a nuestros demônios cainitas que negarnos a aceptar que en todos los seres humanos puede aparecer, en un instante, esa terrible elección por el mal”.

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como fez há pouco lá no Brasil, jogava sinuca com a ralé e com os deserdados. Ou a cidade estava cheia de perigos invisíveis para aquele visitante ou era puro histerismo dos “homens da lei” que usavam as sirenes para recalcar ainda mais as massas. Enquanto não forem extintas todas as categorias de policiamento, seria de bom senso que só ingressasse nessa profissão aqueles que já tivessem sido psicanalisados. Não esqueço que entre meus colegas de adolescência os que pretendiam ser ginecologistas eram mais ou menos tarados e os que sonhavam em se tornar policiais tinham na raiz dessa pretensão um imenso desejo de vingança... Diga-me que profissão vais seguir que eu te direi qual é o teu mal!!! Enquanto a noite vai se instalando por sobre o concreto dos muros e vou caminhando sem nenhuma direção prévia por entre aquele casario estranho e silencioso, à margem de imensos conjuntos de moradias vitorianas, aciono lembranças e resgato num piscar de olhos imagens cainescas de minha infância numa casa imensa (pelo menos na memória) onde, depois de quatro escadarias íngremes e barulhentas, chegavase a um sótão sombrio e misterioso onde eram conservados os queijos, as cervejas, os salames, os pães, os vinhos. Já publiquei este texto num livro sobre os mendigos, mas o publicarei novamente aqui, com algumas alterações, mesmo contra o desejo do editor. Era nesse sótão que aconteciam as melhores punhetas e que, uma vez por ano, uns dois meses antes da chegada do inverno, reuniam-se as mulheres e as crianças da casa e mesmo da vizinhança, para espantar os ácaros e preparar travesseiros e cobertores para o frio. Sentados em círculo, com o rádio ligado, retirava-se de dentro deles a lã que era exposta ao sol e seus flocos pacientemente desfiados com a ponta dos dedos. Esse trabalho visava livrá-los da poeira e dos insetos, além de deixar a lã mais macia e mais confortável para os quatro meses de ventos e geadas quase siberianas que nunca atrasavam. Com uns cinco ou seis anos, estava sempre presente àqueles rituais que tinham, para mim, não só algo de lúdico, mas de íntimo e de erótico, como se adivinhasse o cheiro dos corpos da família inteira ali naqueles edredons e naquela lã já não tão branca. Sim, apesar da idade intuía o cheiro dos 57


fluídos corporais, que iam do sangue, às lágrimas, do sêmen aos peidos, de uma erisipela aos pentelhos. Minha própria concepção poderia ter acontecido ali, no meio daqueles flocos de lã e do rastro de alguma pulga... Outros cheiros indicavam a mijada de um gato ou algumas gotas de chá, de elixir paregórico, de óleo de rícino que eventualmente haviam sido derramados por um doente, pelas visitas ou por ancestrais que nem cheguei a conhecer. Numa de minhas brigas diárias ouvi o grito feminino que ordenava: parem com isso! Parecem Caim e Abel!!! Quem seriam esses personagens? Ao invés de Caim e Abel poderiam ter dito: Rômulo e Remo; Castor e Polux, Prometeu e Epimeteu ou dezenas de outras duplas que ensanguentaram a história. Os irmãos Ivan e Aliosha não se mataram entre eles, mas, pior, uniram-se para assassinar o velho Karamazov. Mas as únicas referencias que tinham eram as da Bíblia. Um dia perguntei a uma beata: e se Abel tivesse matado a Caim??? Ou se Abel e Caim tivessem dado um fim a Adão??? Se ao invés do fratricídio tivesse acontecido o parricídio??? Ela não respondeu. As professoras, as devotas e até uma moça que fabricava sorvete artesanalmente referiam-se a Caim com insistência, Caim como o precursor do cassetete, aquele que não era não apenas a metáfora mais popular do mal, mas também do fracasso da família e de sua pretensão de educar. O homem que havia tornado a vida dos terráqueos mais confusa e problemática e o responsável pelas intrigas e homicídios nos bares, pelos porres dominicais, as desavenças entre irmãos, entre vizinhos, entre pais e filhos por uma briga de galos, por um barril de vinho, por um alqueire de terra ou mesmo por uma mulher. Não eram poucas as brigas por herança, as infidelidades, a negligência com os velhos, e atrás da porta do quarto paterno sempre a wingester carregada até a boca. A crueldade com os animais era cotidiana. As vacas com brucelose, os pinhões na chapa, a usura, a pose dos que eram um pouco mais abonados e a lassidão dos vagabundos passeando em seus cavalos que, para mim, eram todos clones do famoso Bucéfalo de Alexandre. A organização daquele germe de acrópole, o desenho das casas e as cores de suas paredes, tudo me parecia uma 58


simplória afronta à modernidade que já explodia em outros cantos do mundo. A mesmice das cozinhas, das privadas, das escadarias, dos oratórios, do tanque, das frases e das crenças, tudo remetia, por uma via ou por outra, ao crime anedótico de Caim. A lenda esdrúxula desses dois fantoches bíblicos passou a fazer parte, aberta ou sutilmente, de quase tudo. Se o vigário repetia todos os domingos, se os professores insistiam na lenda e se ela até constava lá no Gênesis, – palavra que ninguém sabia verdadeiramente o que queria dizer – por que não haveria de ser algo sério, e por que não estaria também nos livretos didáticos e até nos calendários dependurados atrás das portas? Lembro que me incomodava o fato de todas aquelas lendas e todos aqueles crimes fantásticos terem sido sempre escritos e contados por anjos, pelo próprio Deus ou por seus mensageiros. Algo naquela criança gostaria de ouvir a versão dos fatos também da boca de algum anão monstruoso, de Lúcifer, de Belzebu ou até mesmo de Satanás, personagem que atormentava meu imaginário no meio da noite quando, por alguma razão, meu pau de criança fazia levitar as cobertas. Mas não havia a menor possibilidade. A rezadeira sórdida de todos os dias, principalmente nos finais de tarde endereçada aos santos, às virgens e ao papa fazia lembrar a velha de Siracusa que orava pela longa vida de um tirano da época, com medo de que a este pudesse suceder o diabo. Em meus pesadelos de criança, de quando em quando, além das aparições de Satanás surgia uma das tais Cabeças Invejosas, ou Górgonas da mitologia grega que qualquer matuto de então sabia que podiam representar a encarnação do mal. Um sonho com aqueles seres infernais era o alerta para algum perigo, pois toda a população daquele lugarejo estava contaminada pelas leituras delirantes e terríveis do Apocalipse. Ninguém se atrevia a pensar que o João, seu autor era apenas um pirado que, numa crise de sua psicose confinou-se numa caverna de Patmos. Enfim, não havia mais remédio, a merda civilizatória estava feita, estava imortalizado o preconceito, a cegueira, o sectarismo e a dificuldade de pensar qualquer coisa e principalmente os mitos com o próprio cérebro. Caim estava incrustrado no imaginário 59


das massas como um Calígula, como a Besta do Apocalipse e como uma espécie de fantasma que fomentava no espírito das pessoas – como diria Lévinas – a perseverança do mal. E tudo isso, para aquela gente, parecia ser muito pior, não só que a inveja, mas que os sete vícios capitais juntos. Rezas, velas, novenas, promessas, chá de marcela, incursões pelo Parque Nacional, incenso, missas, o estoicismo, as famílias, as solteironas, as viúvas e principalmente as mulheres da zona faziam de tudo para evitar que as trevas ou o crime de Caim viesse descambar sobre a aldeia e manchar a honra dos seus irmão e filhos. Naquele furor e esforço para evitar que o porrete daquele primeiro criminoso fosse arremetido contra a cabeça de um ente querido, contra a cabeça de um dos frutos de seus ventres ou na própria, todos vigiavam a entrada de estranhos na cidade e todos se esforçavam para controlar seus mais verdadeiros instintos e indeléveis desejos, chegando até ao desprimor de negar, estupidamente, a si mesmos. Tudo isso com a ilusão de banir qualquer sinal do abominável mal cainesco: a inveja, o fratricídio e, por tabela, os outros seis pecados capitais que, diante da Invídia, pareciam não significar muito. Mas todo esse esforço não servia para nada, e a luta interior entre os filhos de Deus e os filhos de Caim não tinha fim. A inveja estava bem visível ou mal camuflada por todos os lados, corroendo o estômago e as tripas da comunidade. Um comerciante fazendo macumba contra outro; um alfaiate querendo que o outro falisse; um bandido querendo que o outro fosse baleado; um bêbado querendo beber mais do que o outro; um carpinteiro invejando a construção feita pelo colega; um padre desqualificando o sermão do coroinha; a costureira tal invejando e desejando a decadência da outra. Uns querendo que o câncer se instalasse antes na próstata dos outros, uma solteirona febril de jalousie pela recém casada, a recém casada morta de ciúmes da irmã grávida; pais de uns depreciando os filhos dos outros... E tudo isto constituindo verdadeiros infernos mentais, adoecendo, envenenando, destruindo todas as relações e a mínima chance de ver florescer no meio daquela tirania, pelo menos uma horda virtuosa. E quando o badalo do 60


único sino dava aquelas batidas duras e intermitentes todos já sabiam que alguém da comunidade havia batido as botas. A casa do morto repleta de vizinhos e curiosos, as roupas pretas, uma mão segurando a outra às costas. Depois a procissão sob o sol ou no meio das ventanias geladas até o pequeno cemitério instalado na parte mais alta do vilarejo. Um negrume vindo do além encobria tudo de horror e de desesperança. Na cara de cada um daqueles personagens estava sempre bem visível tanto o temor da morte como o temor à vida. A consciência da miserabilidade humana parecia se ampliar a cada morto que era enterrado. Não éramos nada, bosta nenhuma, nem sequer como fênix, a ave mitológica grega que além de viver por séculos, incendiava o próprio corpo quando achava que era conveniente e em seguida renascia mais soberana ainda das próprias cinzas. Nas noites intermináveis de tempestades e de ventanias, quando as paredes ameaçavam ruir sob o bombardeio de tantos raios, sempre havia alguém queimando ramos de oliveira pela casa e lembrando não apenas de Noé e do Dilúvio, mas de que Caim tornou-se o primeiro vampiro terrestre. Que era o rufião-mor da stregoneria, que circulou pelo mundo amigado com uma feiticeira, que iniciou vários outros vampiros e que depois desapareceu misteriosamente. Onde estaria? No coração dos homens, repetiam na igreja ingênuos coroinhas e os sádicos padres. Cusparadas nas paredes, no chão batido das estradas, nas tábuas da lei dispostas nos botecos, nas privadas e nos barrotes das capelas. Alguns dentre eles gostariam de ter a permissão divina para eliminar de forma radical todo o vício pessoal identificado malignamente no Outro, principalmente quando o Outro era um pobre nativo. Matar. Varrer do mapa todo o sujeito afetado pelo mal, pela fraqueza, pela frouxidão espiritual, enfim, qualquer um que os fizesse lembrar que – como também escreveu João do Rio – “desde Caim o homem traz na pele o gosto apavorador do assassinato”. Ansiavam por um poder semelhante ao que tiveram os inquisidores. Mas era aí que se deparavam com uma contradição e com uma interdição divina que não compreendiam e que na intimidade, não aceitavam. 61


Segundo o padre e segundo a Bíblia, Deus teria feito a seguinte ameaça: “Quem matar Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança!”. – Que merda de proteção é essa! Bradavam aqueles exilados italianos depois de uma garrafa e meia de vinho ou de quatro dedos de graspa sem muitos recursos culturais para a subjetividade. Aqueles homens simplórios que haviam chegado há mais de meio século no Brasil, depois de uma vida miserável na Itália e uma travessia épica de meses em navios precários e por um mar quase sempre revolto. Chegaram à selva gaúcha ou catarinense cheios de ressentimento e alguns nem ocultavam seu rancor, sua inveja neurótica e sua ira contra os poderes daquela nação que os havia banido e mesmo contra um ou outro membro da comunidade ou da própria família. Como não sentir inveja e ódio dos monarcas e dos grandes latifundiários a quem tiveram que vender suas propriedades antes de lançarem-se ao mar? E mesmo dos próprios companheiros de infortúnio que, ao invés da desolação brasileira, foram bem mais afortunados, desembarcando ao “leste do Éden”, nas promissoras terras da Amérika, símbolo da Nova Jerusalém? Deslocavam com facilidade essa fúria interior a seus filhos e a pessoas semi-pagãs que instintiva e naturalmente não estavam nem aí para seus delírios e que cagavam sobre seus preceitos e ideais europeus de comunidade, de ordem e progresso, de submissão e de fé. Proibidos pelo poder maior de levar à prática sua ira e sua sede de vingança contra o homo pecatoris, quando embriagados, longe do padre, dos filhos e de suas mulheres, livres das feições cerimoniosas, se davam o direito de esbravejar: – Porco Can! Como é possível que Deus, que foi tão duro com Caim logo após o crime, tenha amolecido desse jeito? Que tenha lhe concedido esse habeas corpus e sem petição alguma? Como resposta o eco da interdição divina: – Sobre aquele que matar Caim, recairá sobre ele sete vezes a vingança!19 19 Existe atualmente em Roma uma associação que luta contra a pena de morte e que se chama: Nessuno tocchi Caino (Ninguém toque em Caim).

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– Se temos que respeitar? Tudo bem... Mas, catzo! Que porra é essa? Que julgamento foi aquele? Deus teria se equivocado? Seria tão idiota como sua Criação? Teve acesso a outras informações sobre a intimidade daquela pequena família e mudou de opinião? É possível pensar um Deus indeciso e ambíguo? Teria compreendido que Caim fora vítima de uma injustiça materna e que matou Abel em legítima defesa de sua autoestima? Teria Deus compreendido que na opção profissional de Caim e Abel qualquer um já poderia perceber quem dos dois tinha verdadeiramente um caráter mais ético e útil para o futuro da humanidade? Ou Deus nutria uma simpatia especial e secreta por Caim? A Caim que, como agricultor, ao contrário de Abel, que inaugurava com seu pastoreio os futuros malefícios dos grandes rebanhos, da reprodução planejada de animais para a carnificina dos açougues, para a comilança de carne e para a sangueira que é hoje o mundo, lançava sobre o planeta as sementes do vegetarianismo, do respeito pelos animais, pelas raízes de bardana, pela alquimia e pela agricultura? Teria Deus compreendido que Caim era o cara verdadeiramente amoroso e legal, o anti-idiota – tanto é que sua irmã decidiu acompanhá-lo no degredo –, ao contrário de Abel, que se revelou um manipulador de afetos, o inventor do sacrifício de animais, da zoofilia, da idolatria, o patrono dos pecuaristas do agronegócio e da bajulação esotérica? Quando o efeito do vinho passava e as sinapses voltavam ao ritmo normal... Ah! Como aqueles pobres blasfemadores se sentiam oprimidos pela culpa de suas sacrílegas especulações e pelo olho onipotente e persecutório de Deus que parecia lembrar-lhes que quando se julga algo é outra coisa que se está julgando. Mesmo os mais jovens e os mais instruídos, que haviam chegado a pensar que, no fundo, tudo o que provém da fé é pecado, não se atreviam, por nada daquele mundo, colocar suas vontades acima da vontade suprema da Santíssima Trindade. Apesar da distância, o Vaticano conseguia exercer sobre eles a mesma vigilância e a mesma opressão de quando viviam no Vêneto ou no Tirol. Se não queriam ou não podiam buscar explicações com o padre, o faziam com um ex filósofo meio louco, para quem Caim tinha 63


mais ou menos o mesmo significado que Aladim, aquele filho de alfaiate dos Contos de Mil e Uma noites. Sofrendo de hérnia inguinal e morando no porão da igreja levava um símbolo esotérico de metal luzidio ao pescoço e sempre lhes repetia a mesma história tanto com relação à oferta de Caim como em relação aos Sete Pecados Capitais: – “Não sejamos hipócritas – resmungava –. A oferta de Caim foi rejeitada porque nela não havia vestígios de sangue. Todos sabemos que o deus daquela época era sanguinário. Com relação aos Pecados Capitais, tudo começou com um monge grego (345-399) um tal de Evagrius de Pontus – dizia. Observando o comportamento de sua gente nas aldeias daquela época e plagiando a lenda de Pandora, o monge listou oito sentimentos humanos que lhe pareciam a base do desrespeito a Deus e das discórdias entre as pessoas. A inveja ainda não constava na lista desse grego, foi o Papa Gregório, lá pelo final do século VI que a incluiu, baseado no que via e ouvia nas “sacristias” da época. Mais tarde, no século XVII, o grande Tomás de Aquino substituiu o quarto pecado, que era a melancolia, por um chamado Preguiça.” Apesar das teias de aranha e das condições insalubres onde essa conversa era travada, todos o ouviam falar e filosofar pacientemente, principalmente quando ele entrava na parte dos pecados perdoáveis e dos imperdoáveis, quando lhes assegurava que Caim era fruto de uma relação carnal enquanto que Abel havia sido gerado pela força do Espírito Santo ou então, quando lhes repetia a anedota do Démon soufrant. Tratava-se de uma história na qual um demônio encontrava outro demônio que chorava, rolava pelo chão e que gritava como se estivesse com uma dor sem igual. De que sofres tu? Pergunta-lhe então o primeiro demônio. Ao que o outro responde em prantos: tenho um anjo dentro de mim e ele me atormenta! Todos riam às gargalhadas ao final da história, mas logo resgatavam a sobriedade de quando haviam entrado naquele submundo, pois a imagem daquele homem não inspirava quase nada de salutar. Em seu isolamento e em sua velhice ficava cada vez mais visível a espécie de sonambulismo trêmulo e atormentado de que os velhos só acordam na hora da agonia extrema e para morrer. 64


Certa vez lhe perguntaram por que não arrumava uma mulher para lhe fazer companhia, ao que ele respondeu indignado, citando uma frase de Nietzsche: um filósofo casado é uma piada. – “A Soberba –prestem bem atenção – essa é a mãe de todos os pecados.” – Finalizava sua prédica. Alguns voltavam a ensaiar um riso cínico ao ouvir esta última observação, pois traziam na ponta da língua um ditado da região de onde provinham, segundo o qual, o avaro é como o porco, só é bom depois de morto. Não saiam necessariamente daquele lugar – onde havia, sobre um caixote, a estatueta da deusa Themis com os olhos vendados – mais confortados do que quando haviam entrado, mas aquela “prédica” lhes servia pelo menos para compreender melhor a complicação ardilosa de todas as coisas. Apesar de incrementar neles as suspeitas de que o Criador não havia sido lá tão justo como se esperava, como ainda não havia fluoxetina e nem aspirina disponível, iam amiúde e receosos confessar e comungar-se. A comunhão era um ritual tipicamente italiano, durante o qual pediam à trupe celestial que lhes desse, pelo menos, ânimo e coragem para manterem-se dentro dos limites das quatro virtudes cardeais e, se possível, também das quatro virtudes teologais. E seguiam suas pobres vidas naquele nevoento fim de mundo. As mãos calejadas, trepando somente no escuro e apenas para reproduzir, ora cabisbaixos, ora eufóricos e assassinando a tiros um paraguaio cada final de semana. Uns dançando suas músicas trentinas e gritando por Giusseppe Garibaldi, outros por Mussolini, deixando escapar uma blasfêmia aqui e outra ali, reprimindo seus mais legítimos desejos, sufocando a dúvida e a angústia ora no vinho, ora no cigarro e ora no catolicismo, beijando compulsoriamente o escapulário antes de entrar no Parque Nacional, na eminência de qualquer perigo e mesmo antes de saírem de casa para o simples dia-a-dia daquela vã e inesquecível escravidão voluntária... Lembrar de todas essas barbaridades culturais aqui nos arredores de Londres, onde os romanos também dominaram tudo por muito tempo é quase como ingerir um ácido. Como nosso inconsciente e adjacentes é atemporal, sente-se o cheiro, além da polenta e dos 65


lambaris fritos, de algumas daquelas desmioladas experiências. Tive gatos, cachorros, coelhos, porcos, pássaros de todas as cores e até mesmo um macaco que obedecia minhas ordens e que, quando morreu, foi colocado sobre um telhado para que os corvos limpassem seus ossos, em especial seu crânio. Conservei-o durante muito tempo como um gesto de gratidão ou mesmo como vingança. Ah, ia omitindo: tive também um papagaio que sabia pronunciar o nome de Getúlio Vargas e que por coincidência também suicidou-se. E já que caí na questão do suicídio, em todas as línguas os jornais britânicos mencionam o caso do japonês de 102 anos que suicidou-se para não ter que sair de sua casinha situada no perímetro das usinas nucleares danificadas pelo tsunami. Por pudor ou coisa parecida não mencionavam qual o método usado pelo senhor para tirar-se a vida mas, por dedução e por tratar-se de um japonês daquela idade, os suicidólogos acreditam que tenha sido o harakiri. Sempre que se fala em suicídio e em harakiri vem logo a mente o famoso escritor Kimitake Hiratoka (conhecido por Yukio Mishima), autor de Cavalo Selvagem, O som das Ondas, O tempo do pavilhão dourado etc., etc., ele que em 1970 (nessa época o suicida de hoje estava com 61 anos), depois de invadir o Quartel General em Tóquio e ler um discurso em defesa do Imperador, do Japão e de suas tradições suicidou-se diante de uns mil homens. Dizem que acompanhado por dois seguidores, Mishima terminou de ler seu manifesto patriótico, ajoelhou-se quase nu diante daquela “platéia” improvisada, gritou três vezes tenno heika banzai (longa vida ao imperador) e passou-se o punhal pela barriga como manda o código de honra dos samurais e, claro, foi para o beleléu. Matar-se, tudo bem. Mas em nome de um imperador é mais do que bizarro! É curioso que o pretexto de seu suicídio há 41 anos atrás como o do velhinho de hoje, têm, na essência, não só as mesmas raízes, mas também as mesmas ramificações... Algo derivado do apego e do narcisismo, de um enraizamento exagerado, de uma paixão e de um amor fatal por um pedaço de terra, por um barraco, por um passado idilizado e até mesmo por um Senhor. Mishima reclamava a derrota na 66


guerra, as bombas sobre Hiroshima e Nagazaki, a humilhação das tradições milenares e o risco da invasão da superficialidade ocidental em seu país. O suicida de hoje, ainda atordoado pelo tsunami, contrário e resistente às ordens do Estado, não quis abrir mão de seu lugar, preferiu a radiação e mesmo a morte a ter que recuar, abandonar sua aldeia, sua casa, suas raízes cravadas ali naquele terreno durante um século, terreno que, por fatalidade, como Hiroshima de outrora, agora também estava infectado pela futilidade radioativa. Mas voltando às ruas desta agitada monarquia, a caminhada deve ser um movimento lento, curioso, solitário, sem compromisso e sem destino certo... Só assim é que se pode desfrutar das diversidades e das belezas do mundo – Diz Christophe Lamoure em seu Petite philosophie du marcheur. E nada é mais desafiador do que desembarcar num país ou numa cidade que não se conhece, ingressar num beco que não se sabe se tem saída, descer aos abismos dos cortiços aparentemente desabitados como os dos Ciganos do Mar na Ilha de Pukhet, por exemplo. Olha lá aquele gato numa janela! Olha o homem arrastando sua mulher pelos cabelos! Olha a rainha profanada num muro! O policial com vitiligo! O trem cruzando como um raio por debaixo do mundo! Aquela chaleira jogada sobre a galharia seca! Olha o esquilo entrando numa tumba! Aquele brasão da maçonaria que tornou-se um poleiro de corvos. Olha lá a mulher que num braço leva uma bolsa de duas mil libras e no outro um cãozinho com bigodes de rato! Olha o fotógrafo delirante que leva as máquinas como se fossem fuzis! Olha lá duas mulheres de burca conduzindo uma terceira em cadeira de rodas também com o rosto escondido! Olha a fila de mulheres vestidas de bonecas em frente uma boate na esquina de Trafalgar! Olha o magrebino assediando uma japonesa com as coxas para fora! Olha os guarda chuvas vermelhos decorando as vitrines da avenida Regente! Olha um chapéu amassado pelas rodas de uma carrocinha indiana! Olha um doce sírio sendo disputado pelos corvos no balcão de uma padaria! Olha a fila para tomar o trem que vai até a cidade onde nasceu Shakespeare! Olha a senhora espanhola tendo um 67


desmaio por falta de insulina! Olha o mundo se agitando como água numa imensa caçamba sem saber por quê e nem para quê! Olha a quantidade de homens engravatados na portas dos pubs! O homem de dois metros fazendo papel de palhaço diante de uma casa de brinquedos! Olha a polícia abordando dois pequenos ladroezinhos quase na porta da Algerian Coffee Stores! Olha o sem teto dormindo abraçado e amorosamente ao seu imenso cachorro preto nas escadas da Holland House! Olha lá a multidão desesperada que veio ver a ridícula Troca de Armas diante do Palácio da rainha! Olha os punks e fãs de Amy Winihouse lotando a rua principal de Canden Town! Olha o corpo de uma criança saindo num caixão pelos fundos do St Mary’s Hospital! Olha lá Caim Maã, o filho da perdição, fugitivo e vagabundo saltando a janela de um albergue para não ter que pagar a conta e descendo em disparada na direção do mercado de antiguidades de Bermondsey! Dali fez meia volta e seguiu sem rumo por horas até mais ou menos a igreja dos Quakers (Religious Society of Friends). Olhou para o alto daquele templo arquitetonicamente meio indefinido e bradou a conhecida frase de seu comparsa Céline: Viva a Bíblia! Bordel de Deus! Dois carros da polícia passam em alta velocidade com as rodas quase sobre a calçada. Deve ser a Scotland Yard ainda tentando desvendar o “Mistério de Barnes”, a história da empregada que em 1879 assassinou sua rica patroa (Julia Thomas) aqui nos arredores de Londres. Depois de lhe cortar o corpo em pedaços com um machado, a simpática empregada cozinhou as melhores partes e as distribuiu às crianças pobres do bairro como se fosse carne suína. Parte do corpo foi encontrado no Tamisa e recentemente o crânio foi descoberto nos jardins de um pub onde a criminosa ia com frequência tomar uns tragos. Quem é que gostaria de ter uma governanta dessas? Mas evidente que ela não é exceção. Sempre acreditei que quem mata uma galinha com uma faca ou dando-lhe quatro nós no pescoço tem condições psíquicas e físicas para matar um bebê e mesmo toda a família, o bairro inteiro sem nenhum tipo de culpabilidade. Não é possível que a criminalidade dos homens 68


contra os animais e ainda nas proporções que conhecemos continue sendo considerada como “normal”. Mais “normal” e mais compreensível até é a chacina que protagonizamos entre nós mesmos, uns contra os outros, já que motivos não faltam, e que tudo indica que existimos, antes de qualquer outra coisa, para aporrinhar, encher o saco e para desgraçar a vida do outro. Não é mesmo? Mas o animal não, ele não faz parte desse contexto de malignidades, está lá no seu habitat amoral e na sua solidão lutando como qualquer outro para dar conta de seus instintos, manter-se vivo e saciado. Sua existência, ao invés de estressar-nos, nos faz um grande bem, nos facilita a reconciliação e a reparação com uma parte nossa que, por mau caratismo e por uma vaidade vulgar enxotamos de nosso ser. Ser espantalho! Tanto é que continuamos indo aos safáris e aos zoológicos, essas penitenciárias disfarçadas, só para deleitarnos com sua coreografia, sua vida impregnada de aventuras diárias, seus dentes e gengivas impecáveis, seu sono, sua saúde e seu apetite sempre voraz, sua capacidade de eleger um penhasco ou uma árvore e passar toda sua existência lá, olhando as nuvens e o horizonte, abanando o rabo, açoitando os mosquitos com as orelhas, passeando de madrugada pelos abismos e pelas sombras desta amaldiçoada terra.

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Caim matando Abel / Jan Harmensz Muller, sĂŠc. XVI


Século XVII



Caim matando Abel / Monti


Caim e Abel, An么nimo, Mosaico Bizantino


[5] “Por acaso imaginaste, num delírio, que eu iria odiar a vida e retirar-me para o ermo por alguns dos meus sonhos se haverem frustrado? Pois não: aqui me tens e homens farei segundo minha própria imagem: homens que logo serão meus iguais que irão padecer e chorar, gozar e sofrer e, mesmo que forem parias, não se renderão a ti como eu fiz” Goethe (poema sobre Prometeu)

O sol lançava seus raios malditos sobre a terra vermelha e estávamos nas vésperas dos dias de carnaval. Justamente quando ia pela rua associando Caim ao Rei Momo e pensando o quanto alguns sujeitos parecem ter descendido do macaco bem mais recentemente do que outros, deparei-me com um conhecido, simpático e ilustre professor da universidade que veio contar-me suas últimas investidas no mundo das letras e das artes. Como já sabia que seu Curriculum Lates tem umas duzentas páginas e que ele vem há anos – à sombra de Max Weber – tentando construir um mito em volta de seu nome e escrever sua teodiceia da felicidade, fui cuidadoso com as palavras. Não adiantou. Relatou-me dois ou três absurdos de nosso atual judiciário e confessou-me ter ficado horrorizado ao saber que estou rastreando as pegadas do primeiro dos assassinos e mais, com uma intenção apologética. Umas duas horas após o nosso encontro mandou-me um e-mail intitulado distopia e com a informação de que o aristocrata e perverso Masoch (1836-1895), também teve em sua época um projeto parecido ao meu, isto é, compor uma obra, em vários volumes que seria intitulada: O legado de Caim, na qual faria um apanhado das misérias e da condição humana. Sem querer ser paranoide me perguntei: Teria o nobre professor alguma intenção maligna em associarme a nome tão conhecido no mundo das psicopatologias? 75


Estaria sendo – inconscientemente –, um exemplo vivo da jalousie cainesca? Do ciúme, dos zelos e da rivalidade?20 Estaria ali, naquele pobre e erudito professor o espírito de Caim ou seria o seu avesso? Caim o Homem da areia, mencionado por Freud em seu texto sobre o sinistro, aquele que arranca os olhos das crianças! Caim, Mefistófeles e professor do mal? Caim primeiro arquiteto e primeiro construtor de cidades? Paraninfo de Lucio Costa. Caim grito de todas as favelas e de todos os presídios? Caim pai e senhor de todos os orixás? Caim Artur Bispo do Rosário e porteiro de manicômio? Caim flâneur e contraface do cidadão? Caim morador de um quartinho do Cortiço de Aluísio de Azevedo? Caim gerente do purgatório? Caim penitente perpétuo e exemplar? Caim no lugar do Buda de Vairochana? Caim assistente de Pol Pot e Caim sinônimo de bile negra e da avareza?21 Caim piloto de navios negreiros! Sim, tudo isso. Caim é o grande diabolizador, o herói multifacetado e o legítimo macaco de Darwin! Difícil encontrar um aprendiz de pensador ou um aprendiz de poeta que não tenha aproveitado esta lenda bíblica para, sobre e através dela, divulgar suas ideologias e suas elucubrações meritocráticas. Já mencionei Baudelaire, Lord Byron, Unamuno, Hesse, Machado de Assis, Freud, Dèrrida,

20 Todo mundo sabe que os motivos maiores da inveja não estão relacionados às “coisas materiais”, mas às “coisas intelectuais e espirituais”. Inveja-se muito mais o saber, a genialidade, a lucidez, o talento, a competência e o reconhecimento do Outro, do que seus bens e suas posses. Daí o fato das universidades, do mundo acadêmico e do mundo das artes em geral serem usinas e guetos de afetados. Por que ele e não eu? parece estar escrito na testa dos personagens que dão vida a esse universo. E não há racionalização que resolva esse sofrimento. O que inicialmente é uma crise de inveja, inconsciente e incontrolável, aos poucos se transforma numa crise de raiva e de revolta contra a desigualdade e a diferença, não apenas social, mas biológica e metafísica. Mesmo os supostos ateus, durante uma crise aguda de inveja perversa dão um jeito de lançar sua queixa, e sua indignação contra algo que, imaginam, seria o responsável pela Ordem desse manicômio de desigualdades. 21 “O único vício que conheço no universo é a avareza – dizia Cícero. Todos os outros, não importa os nomes que se lhes deem, não são mais que tonalidades desta. Tudo se resume nesse sutil e pernicioso elemento: o desejo de ter”.

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Victor Hugo22 e até o chato Guimarães Rosa, que num de seus textos insuportáveis crava esta frase: “Vovó Izidra expulsa-o de casa acusando-o de ‘Caim que matou Abel’”. E isso sem falar dos bobalhões de carteirinha, experts em ideias abstratas, com seus instintos de ratos e com suas frases mortas, aqueles que nos longos períodos de detumescência se agrupam em academias, em associações e outros covis para ler a Cabala, ou os próprios poemas. Para exercer um otimismo pueril (para não dizer senil) uns sobre os outros e para elogiar-se mutuamente. Enquanto passam sebo de carneiro nas articulações vão falando, desde sua melúria, em êmulo de Caim e na bondade suprema de Abel, com a mais pura placidez da ingenuidade e com o mesmo ar de deslumbramento ao revês. Não suspeitam que a verdadeira vítima não é quem morre, mas quem mata. São uma espécie de melros ensandecidos que recordam as aves totêmicas de Caim em fuga de si mesmas e de suas encantações voando neuroticamente ao redor de seus poleiros. Prestem atenção como – na essência – as coisas não mudaram muito ou quase nada da época do neolítico até hoje. Em que te diferencias dos selvagens irmão cara pálida? Apesar de todos os malandros esotéricos que andam por aí dourando a pílula e prevaricando, a Nova Ordem Mundial é a mesma dos canibais, só que adornada com luminárias e com usinas nucleares. Num conto de Jorge L. Borges sobre Caim e Abel, esse escritor argentino que, aliás, causou muita inveja no seu meio, inventa um reencontro entre os dois. Caminhando pelo deserto, Caim reconheceu seu irmão pela marca da porretada que lhe havia desfechado na cabeça. Trocam algumas palavras e vão comer alguma coisa juntos. No momento propício Caim indaga a Abel: 22 E os políticos não ficam para trás. Rui Barboza – por exemplo –, em um artigo intitulado Caim publicado no Diário de Notícias, em 02-02-1912, dizia, referindo-se a um adversário políticos: “A tua política, as tuas tramas, as tuas ordens subverteram, ensanguentaram, dinamitaram, bombardearam, incendiaram e saquearam a terra de teu berço. Rasgaste as entranhas à tua mãe, lhe escarras o rosto, e agora exultas sobre a sua agonia (...) Pegas de um espelho, e mira a tua fronte. Lá está, na pinta de sangue dos teus irmãos, o ferrete de Caim e a marca indelével do fratricida”.

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– “Você já me perdoou?” Ao que Abel lhe responde: – “Perdoá-lo? Por quê? Foi você quem me matou ou fui eu que o matei? Os punks, os darks, os góticos, os cultuadores de vampiros, os adeptos da bruxaria, de Emy Winehouse e de Jim Morrison entre tantas outras hordas, têm como texto de cabeceira os livros gnósticos onde Caim é reabilitado, onde comparece como um xamã, uma entidade sagrada que se insinua até nos modernos rituais do Santo Daime... Caim vampiro! Caim amante de Lilith! Caim bisavô das guilhotinas, alquimista, inspirador do MST e das zonas de meretrício. Caim satã de primeira grandeza que habita o ventrículo esquerdo dos seres e a parte sombria da lua! Caim Mi hermano! Mi fratelo! My brother! Mon frére! Caim avô e pai de todos os dejetos e de tudo o que é bárbaro e teratológico... “Du joli, la passion dite amour. Si pás de jalousie, ennui. Si jalousie, enfer bestial!23 Semelhante a Baudelaire, que via os vagabundos, os clochards e os indigentes de Paris apodrecerem sob a mesma maldição lançada sobre Caim, Soares Feitosa escreve em seu poema Nordestes: “Sem casa, porque os tijolos te seriam O barro amassado com os próprios pés, Não os terás, porque teus pés, Filocletes, trazem Todas as chagas desde o Dilúvio, ó filho de Caim!” Caim de mochila pelas estradas do mundo! Caim metáfora do odioso e do malefício absoluto. Caim solitário no meio fio dos estacionamentos tentando exorcizar seu luto e sua melancolia, camaleão desgraçado exposto ao sol e a todo tipo 23 A. Cohen, em Belle du Seigneur.

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de possibilidades de autoextermínio.24 E para que ninguém o pudesse matar, pois a morte viria colocar um fim ao seu castigo de vagar continuamente e sem descanso por sobre a terra, o Demiurgo, num refinamento de sadismo colocou dois pontiagudos chifres na fronte25 daquele jovem fratricida que, aliás, nem era filho de Adão, mas sim da serpente que havia seduzido a Eva. E foram esses mesmos chifres, que bem mais tarde, movendo-se entre as folhagens, permitiram a Lamech, seu bisneto que o confundiu com um animal, disparar uma certeira flecha em direção a seu pescoço. Enquanto o sangue do bisavô assassino jorrava, o atirador recitava, amargurado, a frase que Kant surrupiou dos orientais: às vezes o mal é bem e às vezes o bem é mal. Não existe melhor imagem para representar a suruba cultural que é Londres do que uma mulher com burca e uma com as tetas brancas ao sol compartindo o mesmo narguilé na Kendal Street, quase na esquina onde fica o Islamic Bank of Britain. Londres é assim, uma São Paulo com dois mil anos e que deu certo. Ou melhor: São Paulo é assim, uma Londres que deu errado. O Tamisa navegável e o Tiete abarrotado de mierda... O British Museum e seu acervo nos coloca cara a cara com a insignificância e com a brevidade. Recém tomamos consciência de algumas bobagens e já nos vamos... Precisaríamos uns duzentos anos para chegar a ter uma noção mínima das coisas... A casa de Freud na Maresfield Gardens 20, foi literalmente amarrada por fora com umas cordas de navio. Qual seria o significado? É algo que pretende nos remeter ao Real, ao Imaginário ou ao Simbólico??? Saem resmungando os pastores freudianos. Lá dentro uns personagens esquisitos, inclusive do Brézil, todos meio paranoides, todos analisados e todos analisadores... Hoje meu almoço foi mais sofisticado, 24 “Nem sempre Caim foi metáfora do mal absoluto. No séc. XVIII foi mais desgraçado que malvado (...), uma vez desalojado da esfera sagrada, foi entendido como um ser que se rebelava mais contra seu pai que contra seu irmão, como manda o cânone. No final do séc. XIX, Caim odeia por ciúmes, com o que tampouco se livra da pulsão erótica em sua longa trajetória”. J. Ernesto Ayala, em sua crítica ao livro de Ignácio García-Valiño, intitulado Querido Cain. Ver El País, Madrid, 25-11-2006. 25 Seriam os chifres, então, a tal Marca de Caim, sobre a qual tanto se tem especulado?

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disputei um banco na Praça Blomsbury. Uma comida leve (de duas libras) e ao ar livre é a melhor coisa antes de ingressar no mundo indescritível da National Gallery. Um povo tem que ter bagos para montar uma galeria como esta. Enquanto as crianças daqui vêm receber aulas sentadas diante do Cardinal de Richelieu (pintado por Philippe de Champaigne) as nossas vão a escola quase só para comer e para fugir aos tiroteios domésticos. E olhem que os políticos (pelo menos as últimas dez gerações) conhecem muito bem tanto o que acontece por lá como o que acontece aqui). Enquanto procurava Caim e Abel, fui passando por Michelangelo; Sebastiano del Pombo; Mirabello; Dosso Dossi; Lorenzo Costa com seu A concert; Damiano Mazza com sua Ganymede de nádegas apetitosas; Jan Steen e seu The effects of intemperance; Cornelis Van Haarllen e seu Two followers of Cadmus devoured by a dragon; Gerrit van Honthorst, com sua Rainha da Bohemia etc, etc. É gozado que muita gente pintou São Sebastião e cada um colocou as flechas onde bem quis. Chega por hoje. Na rua os tais pubs estão fervilhando. A palavra derivaria de púbis? Esses lugares têm um não sei quê das velhas pulquerias mexicanas onde só entravam machos e onde passavam horas vendo quem bebia mais e quem era mais ágil na pistola... Dois magazines me interessam particularmente aqui nesta cidade: um de esquina que vende somente guarda-chuvas, e um lá pelos lados do Covent Garden especializado em chapéus. Os dois para, além da vaidade teatral de cada um proteger do sol o crânio dos usuários, também da chuva, do frio e até mesmo das irradiações planetárias. Ambos são pra lá de centenários. Quem inventou o chapéu? Os gregos já usavam um tal de Pétaso há milhares de anos. Lá em São Paulo existe a famosa Chapelaria Sombrero de um antigo polonês chamado Samuel Kirszenwurcel que vende os conhecidos Fedora, tipo chapéu do Panamá, mas feito de feltro e conhecidos aqui em Londres por Trilby. Os antigos Borsalinos provindos da Itália eram feitos com pele de coelhos. Meus bisavós e avós aparecem nas fotos com aquelas caras de bandidos e sempre com um marrom escuro ou preto de abas pequenas na cabeça ou na 80


mão esquerda, não sei se eram o tipo casquete, canotier, ou Breton. Vi algumas fotos da italianada chegando no Brasil lá por 1850 e o espetáculo era quase insólito. Aqueles milhares de pessoas com seus bigodinhos apoiadas no convés daqueles barcos sucateados e todos, até as mulheres e as crianças usando chapéu. Cabeças pequenas, cabeças médias, cabeções desproporcionais, e lá dentro o cérebro com suas melecas, sinapses, vícios, dependências, caprichos, misérias e mistérios ainda não desvendados. Lobo temporal, cerebelo, nervo vago, nervo grande hipoglosso. Bulbo raquidiano, lobo frontal. Sede do juízo, da razão e da imaginação! Estaciono frente à vitrine com os tipos mais variados e fico tentando adivinhar: aquele ali era usado pelo Al Capone; aquele outro pelo Churchill; este é a cara de meu bisavô. Este era usado por Pancho Villa; aquele mais nos fundos por Hirohito e pelo Chaplin e este do outro lado pelo Mussolini. E foi exatamente na cabeça que Caim desfechou o golpe fatal. Sabia, por instinto ou por intuição que era o lugar mais vulnerável? Se sabia, o que daria a conotação de um crime doloso, quem colocou em seu cérebro esse saber radical? Se não sabia e o crime foi culposo, não teria bastado doar umas cestas básicas para resolver o problema? E alguém já o havia prevenido de que a fraternidade tinha alguma conveniência e de que matar era crime? E por que ninguém nunca levantou a hipótese do crime ter sido em legítima defesa? Tudo indica que Caim, além do primeiro assassino tenha sido também o primeiro dos bodes expiatórios que se tem notícias! Um homem de uns sessenta anos tem um ataque cardíaco em plena Praça Trafalgar. Um círculo de curiosos se forma ao seu redor. Os bombeiros demoraram sete minutos para chegar e para administrar-lhe oxigênio. Da posição onde eu o via, podia adivinhar o horror que lhe latejava nas faces descoradas. Morrer de uma hora para outra e ainda como forasteiro é inadmissível e o pior, sabendo que Londres continuará sendo Londres, que Paris continuará sendo Paris com suas noites, seus cafés, sua Champanhe, suas livrarias e seu Sena... É até curioso que tendo consciência de tão irremediável destino a humanidade não enlouqueça coletivamente e incendeie de vez a terra... 81


Lorenzo Sabbatini (1530-1577)


Caim matando Abel / Bartolomeu Manfredi



[6] “Por acaso não são sinceras as lágrimas que se derrama no teatro, onde fiéis e público sabem que tudo é mentira?” Soeren Kierkegaard

E não pensem que Caim foi apenas o autor de 120 Dias de Sodoma, não, ele também tinha lá naquele povoado de desvairados mentecaptos uma agência de cáftens. Caim foi nada mais nada menos quem gerou o simpático Grifo com seu corpo meio de leão e meio de águia que simboliza a City de Londres. Foi o primeiro bandido do mundo quem derrotou Don Sebastião na Batalha de Alcácer-quibir, na África em 1578 e foi ele também, por ironia que, para iludir aos portugueses, instituiu o Sebastianismo. Caim no sertão do Cariri vendendo pedras de isqueiro, baralhos, carretéis de linha, fotos de Frei Damião e foices sem cabo sob os umbrais da Igreja de São Francisco. Um dia ali, outro na frente da Igreja Batista Regular e outro no interior da Igreja das dores. Nunca imaginei encontrar Caim travestido de alfaiate, dono de um empório, sapateiro ou indigente, com os cotovelos apoiados na janela do casarão que pertenceu ao Padre Cícero. Caim esteve também lá na Chapada do Araripe há 115 mil anos fotografando as minas de gipsita ou registrando a metamorfose dos celacantos em anfíbios e répteis. Ficou entusiasmado com os corvos planando sobre o chapadão como se fossem verdadeiros pterossauros e mais ainda com as libélulas incrustadas na pedra Cariry... Todas essas errâncias e todas essas vagabundagens me chegam de forma inesperada aqui num café londrino a menos de um quilômetro da antiga casa de Freud. Freud Caim! Caim psicanalisado. Uma bruxa o ajudou a ressignificar seu crime. Fim da análise: matar não é crime! Caim Édipo e anti-édipo. Caim dando aulas para Vinnicott e para Melanie Klein. Caim – segundo Raul Iturra – um thanatos que Freud não usou. Mas não me perguntem o que isso quer dizer. Apesar das agitações de Londres, as memórias e os cheiros me arrastam de volta para o sertão e para a caatinga com seus 85


espinhos e com sua violência nata. Caim, cão do mato, fiel escudeiro do velho Conselheiro, com sua verve contra os canhões republicanos. Caim descendo o Rio São Francisco a nado e matando bicho-barbeiro na unha. Plantador de maconha, remeiro, dono de todas as casas de luz-vermelha da margem esquerda... Foi Caim que deu a ideia de mudar a rota natural das águas para regar as terras dos compadres e das amantes dos compadres. Todo sertanejo sabe que o rio se vingará. Não sabem como, mas sabem que se vingará. As sirenes da polícia outra vez. Porra, parece que a cidade está em guerra? Na rota do turismo londrino muitos, mas muitos italianos. Vão em bandos, quase todos de estatura pequena, falando demasiadamente alto e o assunto em pauta parece ser a sexualidade do velho Berlusconi. Suas aventuras sexuais e principalmente a elegância das clientes de Berlusconi têm feito muita gente suspirar, principalmente lá pelos trópicos. Estaríamos vivendo ainda como na época dos perversos imperadores? Convenhamos que “comer” três, quatro ou cinco, uma atrás da outra – como confessou uma delas – não é para qualquer um. Claro que hoje existe o Viagra, bem diferente da época de Cesar, Constantino Agripa etc., quando tinham que turbinar seus bagos apenas com grão de bico. O escândalo tomou proporções tão inesperadas que até o papa entrou em cena pedindo ao velho fornicador que acalme as bolas e que preserve os “valores espirituais”, como se ninguém lembrasse que em tempos idos, os papas, que não eram apenas porta-vozes divinos, mas também mensageiros da luxuria, faziam o teatro religioso de dia e caiam na putaria a noite. Mas Berlusconi, na cúspide do poder imperial que o povo lhe concedeu, não se abala, sabe que o mundo é um imenso bordel camuflado que gira única e exclusivamente ao redor de xotas e de sexo. Sabe que neste particular toda critica, principalmente advinda de outros “imperadores” está postada sobre a moral e a inveja. Se tivesse que prestar contas a alguém, talvez recitasse a seus lacaios, entre um coitus e outro, apenas esta frase de Jean Genet: Só há alguns fulgores na vida de um homem. Todo o resto é cinza. 86


Nas proximidades do Museu Madame Tusaud’s, aquele das máscaras de cera, existe um café, que prefiro omitir seu nome, cuja toalete parece a antessala de um bordel do século retrasado. Desci as escadarias projetadas na penumbra azul só para dar uma mijada e voltei à superfície o mais rápido possível convicto de que lá havia algo de demoníaco. Tapetes avermelhados, rostos, vasos de porcelanas, uma fermentação mortuária e tétricas cortinas de veludo, idênticas às de um hotel no Cairo onde, mais de uma vez, por uma ou outra acrobata da vulva, arrisquei irresponsavelmente minha tardia adolescência. No outro lado da rua Marylebone gentes de todos os tipos aguardam em fila para ver a invenção da Madame: máscaras mortuárias de personagens da Revolução Francesa, estrelas mundiais da política, da literatura, do crime etc. Caim, curiosamente, não está lá. Bem que poderia estar, e bem ao lado de Elizabeth II, de Lênin, do próprio Jack Estripador ou do grande e imbatível Shakespeare.26 Todos os dias que circulo lá pelos lados da Liverpool Street Station me deparo com uma mulher de beleza especial enrolada em trapos e que dialoga consigo mesma. Abotoa e desabotoa os farrapos, lança para os lados olhares de melancolia e depois senta-se numa pequena mureta de um edifício e fica lá, com as mãos postas como uma intrépida santa da antiguidade. Ela sempre me lembra que foi aqui nesta cidade que Cooper e Laing tentaram olhar a loucura por outro ângulo e com outro prisma, mas que tudo acabou virando poesia. Contra a usina monstruosa que gera o desvario parece que todas as contrainformações são idílicas e inócuas. E depois, se a loucura é a maneira como a pessoa tenta resolver seu conflito com o mundo e consigo mesma, “curá-la” e mandá-la de volta para a realidade não seria a mais abjeta das crueldades??? 26 Em seu livro A nostalgia não é mais o que era, Simone Signoret relata um papo que ouviu de Ehrenbourg, quando Stálin teria convocado os escritores ao Kremlin para um comunicado urgente: “Só há duas maneiras de escrever – disse o ditador. É preciso escrever como Shakespeare ou como Tchekov. Não sou escritor, mas se fosse escreveria como Shakespeare. Mas a vocês aconselho que escrevam como Tchekhov”. Civilização Brasileira, p. 159, RJ, 1987.

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A imponência da Royal Courts of Justice, como as grandes catedrais, serve também para incrementar a pedagogia repressiva. Toda vez que passo acidentalmente por aqui é impossível não lembrar de Swift e das andanças de seu Gulliver que, relatando histórias de seu povo ao chefe dos Houyhnhnm, especificamente sobre justiça, advogados e juízes na Inglaterra, dizia: “Existe entre nós uma quantidade de homens, tão grande como a das lagartas, que são treinados desde muito jovens na arte de provarem que o preto é branco e que o branco é preto, conforme sejam pagos para dizer uma coisa ou outra. Todo o resto do povo é escravo desses homens. Por exemplo, se meu vizinho quer ficar com a minha vaca, contrata um advogado para provar que tem direitos a essa vaca. Nesse caso, tenho que contratar outro advogado para defender também os meus direitos, pois é contrário aos nossos costumes que um homem possa falar em seu próprio nome diante da lei... (...) Os juízes são as pessoas que decidem quem está com a razão num processo. Escolhidos entre os melhores advogados depois de velhos e preguiçosos, são respeitadíssimos não só por seu poder como pela enorme experiência de lutarem contra a verdade e favorecerem a fraude, a calúnia e a opressão... E a conversa prossegue durante muito tempo entre os dois homens de terras tão distantes e diferentes, até que o anfitrião, balançando o focinho falou: esses advogados e esses juízes devem ser pessoas muito cultas e sábias... “Coisa nenhuma! Retrucou Gulliver, indignado. Conhecem apenas seu ofício. Fora dele, compõem a classe mais ignorante e estúpida que conheço, e a mais desprezível no trato diário. São inimigos declarados de todo o saber, de toda a cultura, estando sempre dispostos a torcer a verdade e deformar o raciocínio dos homens. É um presente dos céus que os Houyhnhnms não tenham semelhante flagelo entre eles!”27

27 Swift, Jonatham, Viagens de Gulliver, Nova Cultural, pp. 183,184 São Paulo 1987. A vida pessoal de Swift por si só também foi cainesca, vale a pena pesquisá-la. Surdo e louco, morreu em 19 de outubro de 1745 em Dublin e foi enterrado na Igreja de São Patrício. Em sua lápide há um epitáfio escrito por ele mesmo que diz: [Aqui jaz o corpo de Jonathan Swift, doutor em Teologia e deão desta catedral, onde a colérica indignação não poderá mais dilacerar-lhe o coração. Segue, passante e se puderes, imita a este que se consumiu até o extremo pela causa da liberdade].

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Como por aqui existem monumentos para tudo, procurei algum que homenageasse e lembrasse também esse sábio e louco irlandês, mas não há nada. Será que por vingança? Encontrei o de Sherlock Holmes, o de Thomas Morus, o de Shakespeare, o de Marx, a Casa de Freud etc., etc., mas nenhuma referência a Swift, ele que no mesmo livro, lá na página 180 escreve: “É uma felicidade que a natureza tenha feito os europeus com a boca enterrada na cara, para que só possam morder uns aos outros aos bocadinhos”.

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Caim / Marc Chagal

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Caim matando Abel / Daniele Crespi


[7] “Por ter a dor alheia como fim, E por tua irmandade com Caim, Eu te invoco, e ordeno Que tu mesmo sejas teu próprio inferno”. Lord Byron

Por mais idealista, otimista, guevarista, bakuninista, fidelista, gandhista, descendente de Set e libertário que alguém possa ser, quando tira os cotovelos da janela e o traseiro do sofá para perambular pela América Latina, não terá outra alternativa, senão concluir, desolado (e enojado) que tudo aquilo, apesar do histrionismo e das mentiras dos caudilhos, das estatísticas dos carecas do BID, e das esperanças dos bispos de Cuernavaca continua sendo uma cloaca amorfa e um anti-Éden onde todo mundo é prostituível, onde a vida foi e é cotidianamente anuviada e onde as populações, aos pedaços, não sabem o que fazer para interromper o processo de inveja generalizada, essa verdadeira pulsão de morte e esse estágio doentio de autoflagelo e de autodestruição em que estão mergulhadas.28 As covas coletivas e as ossadas diariamente reveladas no México são um barômetro para esse clima. O barulho, o trânsito, a politicagem, a dissimulação, as seitas, a desordem, a insalubridade, a hipocondria, assim como a mistificação do judiciário, da lei e da democracia. A indigência generalizada, as intrigas interpessoais, o heroísmo,29 a inveja miserável – repito – ao invés da inveja revolucionária, a reeleição secular de corruptos, o delírio de ser algo não sendo nada, 28 Quem já leu os discursos do padre Antônio Vieira, aquele que os avelhantados do senado tanto gostam de citar, deve ter se deparado com esta pérola funesta: “É melhor ser escravo no Brasil e salvar a alma que viver livre na África e perdê-la”. E os escravos ouviam essa infâmia de joelhos e de boca aberta, uns até com facões na cintura, sem reagir para nada. 29 Nas praças centrais sempre se encontra a estátua de alguém em bronze, sobre um cavalo, espada em punho, simulando bravura e soberba. É típica de povos miseráveis essa paixão pelo heroísmo, esse esforço para engendrar um super-homem e para forjar um paralelo entre as bravuras de um sujeito nativo e as lorotas históricas do mundo.

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a fúria, a gatunagem e a crença na República, num deus, nos espíritos e no sobrenatural são os instrumentos mais comuns desse auto-aniquilamento e dessa Idade Média que insiste em não acabar. Santo Dios, esto es una infamia, no es verdad... es una odiosa y equivocada percepción burguesa! Esbraveja um sindicalista decadente (aliado ao governo) com o bigodaço de Stalin e que não queria abrir mão dos privilégios clandestinos e da mamata do ofício. – Dios mio! Resmunga também indignado e ofendido um Zapatista desempregado e formado em filosofia que, aliás, já foi funcionário de uma multinacional e que só virou “combatente” depois que foi demitido. A filosofia acadêmica? Talvez por causa dela Rousseau chegou a dizer que odiava os livros, “só ensinam a falar daquilo que não se sabe”. – Virgem de Guadalupe! Exclama uma beata ignorante que idolatra abertamente a família Bush, os nortes americanos e os estrangeiros em geral e que acredita piamente que a Santíssima Trindade é Colombiana e que a América Latina só não é um paraíso por causa dos pecadores discípulos de Caim. Quando percebeu minha descrença citou esta frase de Gustave Thibon: “No se escapa a Dios. Quien rehúsa ser su hijo sera eternamente su símio”. É incrível que o coração humano não se rebele contra esses dementes que o obrigam a venerar uma abstração. Enquanto ela segue resmungando e quase fora de si, penso na tese de Hilda Hilst de que pelo menos noventa por cento da humanidade é gente muito porca. – Santo Jesus! Brada um outro sectário, este, Boliviano, direitista, nacionalista, que sempre odiou a K. Marx e que é amante incurável das “eleições democráticas”, do subdesenvolvimento e dos dejetos que correm sob as nuvens desde a Tierra del Fuego até as mais longínquas e caóticas províncias mexicanas. A uma de minhas indagações sobre a indigência instituída 94


secularmente na América Latina, respondeu-me, curiosamente, com este pensamento de Artaud: “Cuando veo em Karl Marx o en Lenin la palabra espíritu, yo me digo que hay mugre y revoltijo inmundo y que Dios le há chupado el culo a Lenin y que es así como há pasado siempre...” Os personagens de esquerda e de direita que até os anos 80 eram identificados de longe, agora não são facilmente distinguidos. Um chavão aqui, um fanatismo ali, uma insinuação xiita acolá, ideias ambíguas por todos os lados, revisionismos incompreensíveis e irreais etc., que, na verdade do dia-a-dia os iguala e os confunde como se fossem os mesmos tipos de cães, apenas com coleiras diferentes. Sorte que encontrei também um cético, um admirador do pirata Henry Morgan e o mesmo que me alertou para a possibilidade de Caim já ser maldito antes mesmo de cometer o crime. Estava no hall principal do cassino que fica junto ao Hotel César Park olhando para dezenas de jogadores diante dos caça-níqueis ou das roletas. Aproximou-se de meu ouvido e proferiu: – Queres saber por que a América Latina – esta terra de Caim – está a merda que está? Olhe para esse bando de idiotas. Todos corruptos aqui ou lá em seus países, que vêm tratar suas contas clandestinas neste paraíso fiscal e aproveitam para se divertir com o dinheiro rapinado... Segui sua recomendação e corri os olhos atentamente para cada um daqueles sujeitos entretidos com seus jogos e tive uma espécie de insight: não gosto dessa espécie. Há algo nela que me parece detestável e nefasto em qualquer região da terra. Não sei se a cabeça como um todo, se são seus buracos, as orelhas, o nariz, a boca... Talvez os olhos... O riso de esse ser é sempre assustador e estranho. As mãos. Os dedos curtos são ainda mais bizarros e mais escatológicos que os longos (o que está na mesa de bacará tem seis dedos na mão direita). A coluna vertebral me parece algo horrível. Os braços parecem ter vida própria. O pescoço é algo indescritível. Sorte que essa fobia não é insuportável e que só não me assusto com mais frequência por já estar acostumado. É no mínimo bizarra a maneira como se relacionam e como interagem, como se olham, como lidam 95


com o dinheiro, como sofrem uns diante dos outros... Coçam-se aqui e ali, suam, inquietam-se sem sossego. Isto sem mencionar a fala, a linguagem, a emissão de palavras... Usadas mais para ocultar o discurso do corpo (o corpo não só fala como suplica) do que para outra coisa. – Aquele chinês ali, que parece um Lhasa Apso – falou apertando meu braço – é traficante e prostituidor de meninas da Colômbia, da Nicarágua, da Costa Rica e até mesmo da Amazônia brasileira, para os bordelengos daqui. Aquele mulato ao seu lado é chefe de uma gang que traz ônibus velhos dos EEUU para cá. Aquela mulher gordalhuda é a chefe de uma quadrilha de colarinho branco que cobra propina dos navios que entram no canal. Aquele outro é alto funcionário de um ministério brasileiro, aquele outro é ministro argentino, aquele outro é chefe de uma Ong Colombiana, aquele magricela engravatado é pastor e deputado no Equador. Aquele bigodinho de rato que todos conhecem por madrileno, é o dono da maioria dos hotéis daqui. Aquele com gestos afrescalhados é o nome mais cotado para o Nobel de literatura deste ano30. Aquele com cara de fumador de ópio é um árabe que de vez em quando traz umas falsas odaliscas egípcias para dançarem nos cassinos. Aquele com a barriga de melancia e as orelhas como barbatanas é o padre que ontem rezou a missa na procissão do Cristo Negro de Porto Belo. Enfim, está aí a fina flor da sociedade, o resto é o resto. Ele tinha razão. Todo o dinheiro que é injetado pelos organismos internacionais nos governos, nas Ongs e em outros organismos públicos da América Latina é sistematicamente aviltado e desviado para partidos, famílias, diretores de empresas, de hospitais, de creches, de times de futebol, gestores ministeriais, executivos, lideres religiosos, parlamentares etc. E é por isso que na América Latina inteira as escolas são uns 30 Por falar em Prêmio Nobel, vale a pena mencionar a carta que Gunter Grass enviou recentemente à Israel depois que descobriu-se que ele havia, na juventude, pertencido a uma unidade de elite do regime nazista (a tal Waffen SS). Nessa carta de desculpas, Grass escreveu: “A partir de agora e até o fim de meus dias levarei na fronte a marca de Caim desse duplo S”. Ver o jornal israelense Haaretz, de o9-11-2006. Sinceramente, não lhes parece covardia demasiada para um homem de seu porte? Ou seria apenas a nojenta e típica lengalenga dos escritores?

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lixos, os hospitais são uns lixos as condições de trabalho e de moradia são uns lixos, a vida na caserna é um lixo, os açougues são uns lixos, o judiciário é um lixo, a vida privada é um lixo, as prisões são uns lixos, o parlamento é um lixo, a burocracia é um lixo, o caráter das pessoas é um lixo... Enfim, aquilo que dizia Lord Byron de uma cidade portuguesa: um paraíso na terra deixado aos porcos. Só se salvam as zonas “nobres”, as agências de mármore das financeiras, das multinacionais e as famílias dos executivos que nelas atuam, vivendo como paxás em suas vilas e com seus carros blindados, extorquindo mão de obra quase gratuita, servindo de testa-de-ferro para chacais e subornadores da América inteira, seduzindo, tapeando e enrabando as filhas da plebe e comercializando porcarias desnecessárias com os autóctones.31 Zona Franca? A única zona franca que conheço é a zona de meretrício! Essa legião de mulheres frígidas e miseráveis que succionam a sífilis e que lambem o escroto e o traseiro dos clientes em troca de sua mísera sobrevivência. – Setenta e seis bancos para quê? Vinte e uma universidades para quê – perguntava um dos últimos hippies panamenhos – se o chocolate, o chá, os biscoitos, o fio dental, o rum, o cigarro e até o papel com que as mães de família nativas limpam o ânus, o próprio e o de seus filhos, ainda é produzido por multinacionais alemãs, gringas, belgas, francesas, espanholas...? Não te parece que o corsário Morgan estava certo quando pilhou, pisoteou e incendiou a Cidade Antiga do Panamá? Mesmo assim, nesse frenesi neurótico, as mil e uma Ongs e associações revolucionárias com seus impostores, (supostos voluntários e heróis) regidas pelo Complexo de Caim acreditam estarem semeando franciscanamente os grãos de uma política social libertária e fazendo justiça,32 quando na verdade, estão 31 Ali naquele país como em praticamente todos os da América Latina, você pode chegar nesses bairros ditos áreas nobres, de mansões, de boutiques, de embaixadas etc., e dar voz de prisão a todo mundo. Todos levantarão imediatamente os braços porque sabem que tudo o que possuem foi rapinado, ou por eles próprios ou por seus antecedentes. 32 Para Freud a rivalidade entre os irmãos que quase sempre acontece no interior das famílias é a base da justiça. É ali que o mais velho, sob o sentimento de perda e de abandono passa a exigir dos pais, pelo menos “justiça” na distribuição dos afetos.

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apenas passando o sarrafo nos mais ignorantes, ganhando seus trocados, fazendo teatro e religião. E o religioso – não podemos esquecer – continua sendo aquele sujeito desavergonhado que, por ter consciência de sua deslealdade para consigo e para com os outros, tem que inventar sistematicamente um deus para prostrar-se, para lançar-se de bruços no chão, para desculpar-se e para implorar que este o ajude até a educar os filhos.33 Depois de voltar da Ilha de Taboga, um pequeno povoado junto à montanha com casinhas semelhantes às da Grécia, numa parada de ônibus e no meio de uma barulheira infernal surpreendi-me pensando o que diria Caim ou o homem de Neandertal se entrassem num destes “diablos rojos”, (trazidos como sucatas dos USA) com sessenta ou setenta idiotas se sufocando e se acotovelando mutuamente e por nada? É evidente que o famoso Francisco Pizarro também tinha os genes de Caim. E os cassinos não mudaram em nada suas rotinas e programações em função do incêndio de ontem num desses ônibus a uns mil metros do famoso Crown. Já recolheram as cinzas de dezoito mortos. Não tiveram a mínima chance, pois não havia porta de emergência. O ar condicionado foi novamente a causa. Acreditem, não é só burrice o que massacra e tortura a América Latina, é ódio inconsciente contra si mesmo. A culpabilidade que tanto os caciques panteístas como os invasores cristãos lhes inocularam segue somatizando as mais variadas patologias. E é por isso que todo latino (começando pelos italianos) sonha com seu próprio aniquilamento e com sua própria incineração, de preferência vivo, os olhos virados como os de Santa Tereza, e com um padre lhe administrando a extrema-unção ou enfiando-lhe uma vela no rabo. Parece um horror? São as pernas semiabertas da América Latina. Vejam os filmes, vejam os livros, vejam as músicas, vejam os governantes, vejam a história dos exércitos, vejam os tipos que circulam por aí boxeando, rebolando, gatunando, rezando, discursando, futebolando, emigrando ou se doutorando... Vejam os programas de TV da madrugada. Aquela corja eclética de pregadores, cada 33 Robert G. Ingersoll perguntava-se com razão: “Por que devo permitir que me diga como criar meus filhos o mesmo deus que teve que afogar os dele?”

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um, na verdade, falando de sua latrina interior a uma matilha de hienas silenciosa e entorpecida de louvor. Também já somam cinquenta os mortos por envenenamento aqui em Panamá City. Foram envenenados por um xarope contaminado por dietilenglycol que é distribuído gratuitamente pelo Seguro Social Panamenho... Não seria esta a verdadeira, macabra e secreta função do Estado? Os funerais se sucedem. Que pelo menos, como os romanos escreviam nas tumbas: sit tibi terra Levis (a terra lhes seja leve). – Dios mio! Desculpam-se os médicos, os químicos e os burocratas responsáveis por aquilo que os críticos denominam a fraternidade de Caim, com suas caras de eternas vítimas. “Yo no he visto alma más dolorosa que esa grande y dolorosa alma española, toda la tristeza árida de sus campos castellanos se conglomera en ella. Aun su carcajada es triste, diria Vargas Vila. Obesidade, fumaceira, loteria, casas de penhora, touradas, construção de mais cassinos, a luta e o sonho de ir “vencer” nos EEUU ou na Espanha. A buzinadinha clássica dos taxistas, os shoppings lotados e o ar condicionado, essa geringonça cheia de ácaros, ao alcance de qualquer medíocre e sempre na refrigeração máxima ainda poderá vir a ser usado, como lá na Germânia de Hitler, para eliminar os rebanhos... Mas nada que aflija verdadeiramente, pois por aqui há um pensamento dos valentões latinos que diz: “el que se aflige, se afloja”. Depois que cessam os sons das charangas, os cães uivam como lobos madrugada afora. É notícia de primeira página a santificação Papal de um bispo mexicano... Ninguém se dá conta que, comicamente, a relíquia apresentada foi um osso. A ideologia dessa gente é mais ou menos como a de Alexandre – o grande – aquele que, ansioso diante de um nó górdio, nem tenta desatá-lo, corta-o com a espada. Na vida é necessário fazer atalhos. Por menos que se queira, tudo isto lembra a catadores de papel corrompidos pela escravidão e tudo huele a muchedumbre e a podredumbre! 99


Fizeram um plebiscito para saber se aumentam ou não o Canal que une o Atlântico ao Pacífico. Como isso só beneficiará realmente os grandes armadores, comerciantes e milionários, setenta por cento da população, ingênua e impotente, se absteve de ir às urnas. Mas como o projeto foi aprovado assim mesmo, serão eles, esses pobres eleitores que amanhã estarão lá trabalhando como párias para os magnatas. Es necesário ganar el pan de todos los dias! Oxalá esses crápulas capitalistas sejam agraciados ao mesmo tempo com o império e com o Alzheimer. Pouca gente sabe que o pintor Paul Gauguin, antes de ir para o Taiti (sempre confundo Taiti com Haiti) trabalhou na construção do Canal do Panamá. É quase impossível imaginá-lo no meio da terraplanagem quebrando pedras. Por pouco não foi fisgado pela malária. Chegou a ficar internado num antigo hospital militar na Ilha de Taboga, mas saiu ileso. Disfarçado de cupido negro e de anti-herói, o vendedor de rosas aparece novamente no mesmo bar e no meio daquela corja de bêbados terminais faz a mesma mise-en-scène de ontem. A moça a quem oferece uma rosa abre abobalhadamente os maxilares e seu acompanhante deposita na mão do ladino uma nota de um dólar.34 Só agora percebo que tem vários dentes de ouro. Ele próprio me relata que os povos antigos da mesoamérica incrustavam jade em suas arcadas e que isso dava um poder oculto aos seus dentes e algo fantasmal a suas gargalhadas. No meio de toda essa pachorra e ócio equatorial é visível a sacralização e a mistificação das mães por aqui. Provavelmente isto se deve à militância secular das Filhas de Maria, e da herança de Lilith, Eva, Rebeca, Medeia e Messalina sobre os filhos abobalhados desta pobre, ensolarada e endiabrada América Latina. Por que latina e não hispânica? As loterias, a sorte, a esperança, a fé, o otimismo, as fabulas, o barulho, o calor, a malária, a dengue, o artesanato nas calçadas, a corrida interminável atrás de la plata, do sexo, da rumba, do 34 Misteriosamente essa cena me trouxe à memória o conceito misógino que perdurou até o século XVII (senão até hoje) segundo o qual as mulheres não tinham libido e “a xota era como uma flor privada de sol que não desabrochava nunca.”

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matrimônio, e da eternidade... Caim pisoteado fazendo de tudo para vir a ser uma espécie de Golias. Uma voracidade endêmica. Na mesma catedral em frente ao cassino Crown, com seus sóbrios mosaicos, uma seqüência de casamentos, crismas, batismos e até exéquias... “Esas pompas de jabon – diria Nizan – que inflan los viejos pensadores estallan al soplo del viento que atraviesa los pátios de las fábricas e los bulevares desolados de los Barrios obreros...” Um arroz com pollo, tamal y tajada em pratos de terracota. Especiarias com seus ácaros! Lá longe uma dúzia de arranhacéus sendo construídos pelos gringos. O capital de construção é gringo o capital hoteleiro é espanhol.35 Mesmo assim alguns otários ainda falam da colonização como se fosse coisa do passado. Escolares engravatados, um pastor vendendo gel bento do Egito, frases moralistas na fachada dos ônibus, o maior boxeador panamenho desfilando sorridente em carro aberto pelas avenidas esfumaçadas. Como é que esses analfabetos não enrubescem? Pierrot crucificado e furioso que faz caretas de riso para não explodir em soluços, insistiria Vargas Vila. Americanos aposentados, uma mulher chamada Clistel, canhões que lembram mais a miséria humana do que alguma eventual honraria. Espantalhos. Nada é mais chocante do que ver um índio engravatado, fardado ou de batina, e nas avenidas, os “diablos rojos” soltando fuligem por suas robustas chaminés. Por mais nacionalista e terrícola que o sujeito seja, toda essa desolação meio paraguaia, meio brasileira e meio haitiana faz qualquer um preferir viver num chambre de bonne em Paris, com apenas um punhado de euros por mês, do que viver como um nababo por aqui neste Panamá Velho de Guerra, ninho de piratas e de putas onde Caim gerenciou a abertura do Canal, importou escravos de China e alimentou a febre do ouro na região. Caim ali postado sobre uma canoa aos pedaços com 35 Aqui é pertinente lembrar que Caim não foi apenas o primeiro a matar alguém, mas também o primeiro a conceber a ideia de uma cidade. E se envolveu tanto com ela que chegou a dar-lhe o nome de seu filho Enoch. Esse tataravô de Niemeyer e de todos os arquitetos ficaria horrorizado se visse que foi sua pequena Enoch que deu como resultado a podridão de São Paulo, Shangai, Tóquio e Nova Iorque.

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seus quatro dentes de prata como um vampiro, descascando uma laranja com um enorme canivete. O Cristo negro de Porto Belo! Nos arredores nunca se viu tantos bandidos e assassinos por metro quadrado. Estar vivo por aqui é um milagre! Eis aí o origem da fé descabida desses energúmenos. Que tal a Playa Gorgona? Que tal as Cabañas de las Hadas? Que tal o final de semana no Resort Decameron? Por todos os lados charlatanismo e acefalia intelectual, como se fossem parte das pragas lançadas por Caim antes de iniciar seu roteiro de vagabundo imortal. As índias kunas vendendo as tais molas (trajes) na calçada. No passado andavam nuas com esses desenhos pintados por sobre as tetas, ao lado do púbis e no meio das nádegas. Foi em 1700 que os huguenotes franceses as obrigaram a cobrirem as partes. Notícias dos Nukak Makú lá da Colômbia, o último grupo aborígine nômade do mundo. Agora só resta o sedentarismo e a espera final. Os bêbados estrangeiros em pé no bar dos hotéis com suas meretrizes grudadas em seus bolsos e nos botecos mais fuleros, os mendigos, lúcidos como hienas estendendo-me seus braços ociosos e quase sem veias. Hay que suprimir a los mendigos – dizia a parte cainesca de Nietzsche – porque uno se irrita de darles y se irrita de no darles... Mas isso foi há muito tempo. Há mais tempo do que se pode imaginar. Ébrio de memórias chego até a esquecer das víboras em que eventualmente piso. Londres está aí, a vulva escancarada, ainda como o mais completo compêndio do mundo e como a grande Babilônia cinzenta, para usar as palavras de Henry James.

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Cain and Abel / Maerten Van Heemskerck, 1566

Cain / Robert Minor



[8] “Que a terra e o céu se beijem! Que a mão da natureza não detenha mais as ondas selvagens! A ordem morra! Deixe o mundo de ser, daqui por diante, um palco em que as contendas se sucedem com atos enfadonhos! Que no peito de todos reine o espírito somente do primogênito Caim, que os faça ávidos só de sangue, porque o drama brutal possa chegar ao termo exato e o coveiro dos mortos seja a Noite.” Shakespeare (em Henrique IV)

Enquanto isso, nas trevas britânicas: excuse me!!! Prá lá; Sorry!!! Prá cá. Thank you very much!!! para acolá.... Simplesmente uma compulsão cristã para não incomodar o Outro, ou todo mundo com medo de receber um cruzado no maxilar? Quem quiser ter uma ideia do futuro próximo da espécie precisa entrar no Mac Donald aqui em Westminster, ironicamente ao lado do Restaurante Zen, lá pelo meio dia. Terrível o festim de lambidas, grunhidos e de banhas em efervescência. Ou será que estou exagerando? Será que minha misantropia está cada vez maior? Procuro uma palavra para descrever a cena ignóbil do bando, da turba, da multidão, da horda que se desloca de um ponto turístico para outro e todas me parecem insuficientes. Do lado de lá da ponte o Parlamento e a Abadia, do lado de cá o Mcdonalds, a Roda Gigante, o Carrossel, Salsichas, um carrinho de Super Soft Ice e souvenirs a gosto. A frase dominante: Cash or charge? É o circo mais do que convenientemente montado. Dar uma mordida num Candy Floss, consumir e beijar-se felizes em plena Queen’s Walk com os olhos cravados no Tamisa... Cash or charge? O que mais o populacho poderia desejar? Votar, rezar, comer, divertir-se e ir para o cemitério não é tudo nesta vida? Cash or charge? É pequeno, muito pequeno o número dos donos do planeta, os Estados e as Corporações são seus esconderijos. O restante das massas são tratados com pão e circo, que hoje quer dizer: computadores, celulares, cartões de crédito, cosméticos, passeios, sex-shops e claro: comida. E só um lembrete: O Brasil (e a América Latina inteira) precisarão, isto se acontecer 105


um milagre, uns três mil anos para alcançar a organização e a lógica que há aqui. Nada como almoçar no Bunhill Fields, onde William Blake está enterrado. Muitos executivos, estudantes, madames e até homeless trazem suas comidas para devorá-las aqui nos bancos ao lado das tumbas. Não tem complicação: é só passar no Sainsbury’s que fica em frente (33, Holborn) comprar lá um sanduiche, um suco e uma sobremesa e vir para cá. Gastei 2 libras e almocei confortavelmente sentado no túmulo de Daniel Defou (1660-1731), o tal que escreveu Robinson Crusoé. Claro que comer num cemitério amplia ainda mais o absurdo que é ter que enfiar pedaços de vegetais ou de outros animais para dentro do estômago para sobreviver… Se por alguma razão não necessitássemos mais comer, o mundo – paradoxalmente – entraria em colapso. Tudo gira ao redor da comida, principalmente o turismo e as noitadas. As festas de sábado a noite no perímetro do Covent Garden, Piccadilly, Soho, Chinatown etc., são realmente inigualáveis. Alguns acreditam que existe uma ala do inferno exatamente assim, de pura luxuria, a qual o diabo garante que liberará para seus camaradas. Claro que nos vozeirões dos bebedores e nos gritinhos das moças e dos delicados se pode adivinhar uma certa e exagerada ingenuidade, aquela ingenuidade única de quem nunca viveu na América Latina e que portanto sabe que amanhecerá o dia vivo, sem ter presenciado meia dúzia de baleados ou uma chacina... Enquanto devorava a sobremesa com cobertura de blackberries, uma das típicas pacientes de Freud – que parecem dominar por aqui também – ajoelhou-se diante da tumba de Blake, (1762-1831) resmungou alguma coisa por uns minutos e nem deu a mínima para Defoé.36 Parece que até alguns ossos valem mais que outros ossos. E digo isso apenas por dizer, 36 Cenas como estas, que estão por todos os lados e em todos os continentes, nos fazem pensar que ao contrário do que apregoava Ernest Bloch o homem ainda não abandonou a postura de penitente, ainda vive de joelhos e ainda têm fascínio pelas linhas góticas recourbées et rompues. Ver: Armelle Bras-Chopard, em seu excelente trabalho Le zoo des philosophes, p. 12, PLON, Paris, 2000.

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pois nem sei direito se existe realmente algum osso aí ou se é pura armação dos ingleses para incrementar os negócios. Cash or charge??? Antes de transpor os portões daquele lugar ambiguo me atrevi a rabiscar meu próprio epitáfio. Imaginem esta frase em vermelho numa lápide preta: [de todas minhas viagens esta é a mais longa e a mais underground. Pena não poder relatá-la]. Não posso esquecer que foi também Caim quem edificou o British Museum assim como o metrô londrino, essas duas maravilhas da espécie modernizada. Como é possível que milhares e milhares de vagões lotados se cruzem na escuridão de buracos, tocas e labirintos em alta velocidade, durante décadas, sem que um despedace por acaso ou propositalmente ao outro? Só Freud para explicar. Aliás, como já lhes disse, fui à sua antiga residência, 20 Maresfield Gardens. Está toda amarrada. Algum “artista” passou uma grossa corda pelos telhados, paredes, janelas etc... Devia haver um nó górdio por lá, mas não vi. Coisas de psicanalistas e de artistas. Há quem diga e quem já tenha afirmado inúmeras vezes que os artistas em geral são os legítimos filhos de Caim: pusilânimes, relapsos, cheiradores, fumadores, cagões, melancólicos, sedentários, libidinosos, histericamente agressivos, egoístas e nada fraternos, narcisistas, andarilhos, um poço de bile negra e enfim, os representantes do despotismo e da inveja universal. Mas é tudo preconceito. Racismo. Sexismo. Economicismo. Pouco ou quase nada difere uns sujeitos dos outros. Os transtornos mentais são os mesmos. Todo mundo está na mesma teia de aranha e sabe que quanto mais se agita mais sente aqueles fios de gosma colando-se ao redor de seus maxilares e de seu pescoço. Crença parecida existe a respeito dos lusitanos. Segundo eles próprios – o português seria o povo mais invejoso do planeta. Os defensores dessa tese não só relatam detalhes e sutilezas do inferno cotidiano da vida naquele país, como lembram que a obra prima portuguesa Os lusíadas, começa e termina tratando da inveja. Tomei um chá de cascas de peroba e fui imediatamente conferir o texto de Camões. Lá estava, realmente, a confirmação dessa estranha pequenez. Numa leitura dinâmica, mas substancial, identifiquei 107


o tema já na quarta estrofe, depois, um pouco adiante, na p. 31 – onde Camões trata da inveja e do suposto despeito de Baco com relação aos portugueses. Apressado, fui à última linha e realmente estava lá a frase anunciada: “de sorte que Alexandro em voz se veja sem à dita de Aquiles ter inveja”. Por todos os lados da velha cidade, inclusive do outro lado do simpático Tejo até as ruelas seculares de Évora,37 a “dor de cotovelos” irremediável dos lusitanos. Reflexo da história de Ismael e Isaac, de José e seus irmãos, de Osíris e Seth, dos irmãos Karamazov ou de Joaquim e Abílio? Tudo por culpa do complexo de Caim, ou de um Deus imaginário e engendrado a imagem do homem, obstinado, lamuriento, carnívoro e caprichoso? Acreditem, em Lisboa, a secular capital de nossos “descobridores”, precisamente na rua Ferreira do Zezere, existe até uma pensão chamada Casa da Inveja. Convenhamos, deve ser a única do planeta. Ainda nessa capital, numa visita aos arquivos da Torre do Tombo, tive acesso a um livreto de 28 páginas impresso em Coimbra no ano de 1952, intitulado Caim – poema radiofônico. Nem precisa dizer que seu autor considera Abel um santo e Caim o seu antípoda, O que interessa dessa obra é a revelação que Abel faz a Caim de que a antipatia de Deus por ele era porque Caim vinha nutrindo fantasias sexuais por Eva. Dou a palavra a Abel: “– Não é certo que a beijas de outro modo?! E ela é mãe... A fonte que nos deu este rio de vida, que só tem sua foz na origem... Tu bem sabes que nosso amor não é amor de esposo”. Ao que Caim, indignado e caluniado, retruca: – “És tú, chacal, és tu que assim me acusas?”38 Filmes, livros, bandas de rock, revistas cômicas, pinturas, teses, duplas caipiras, peças teatrais, rapsódias, aforismos, tarôs, vedetes do vício, filosofias, metáforas, magia negra... Enquanto 37 Fui a Évora, em outra época, só para visitar uma exposição de instrumentos de tortura. Dos alicates à guilhotina, tudo tinha a marca e o peso de uma civilização moribunda, odiosa, sanguinolenta e patética. Caim torturador, Caim Borreau, Caim coração de granito! Esta e outras frases domésticas saiam da boca daqueles insólitos portugueses que esperavam numa longa fila pelo espetáculo de maldades. 38 Campos de Figueiredo, Caim, Coimbra Editora, p. 22, Coimbra, Portugal, 1952

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Abel foi consumido pela história e pelos ácaros, Caim (esse filho de Eva com Satã) não para de inspirar e de dar título a novos projetos e paternidade tanto a movimentos moralizantes como a motins insurgentes e contrários ao status quo do mundo.39 Diz-se – por exemplo – que o espiritismo é uma religião ou uma confraria cainesca onde a culpa rege a patética obsessão fraternal de seus membros; que Caim era quem inspirava os surrealistas e os dadaístas; que foi Caim que pilotou os aviões que despedaçaram o World Trade Center, que fundou a magia negra na Índia e quem está disseminando a gripe do frango e o vírus da AIDS no planeta. Que foi o mentor do capitalismo e do comunismo, que esteve sob a pele do minotauro e que foi o primeiro a fazer o longo caminho de Compostela. Que Caim é o pai da raça negra africana já que a cor da pele dos negros seria a marca que Deus colocou nele.40 Diz-se que a marca de Caim é também o cabelo ruivo; o lábio leporino,41 e que os índios brasileiros, os bons selvagens (segundo Montesquieu) com suas perversões morais e corporais, longe de viverem num Éden, eram a prole de Caim pagando seus pecados no meio de uma selva infestada de feras, de mosquitos e de malária. Dizse que Caim, esse príncipe do inferno, foi o inventor das lutas marciais e principalmente da luta com vara; que o Fuher era a sua reencarnação e que seu nome deriva de uma raiz hebraica que também pode significar metalúrgico e “fazedor de espadas”, que deu origem a uma descendência de inventores e de artífices. Em outras palavras, ao homo faber42 (Gênesis, 4, 17-24). Até o 39 Nos anos de exílio voluntário na Ciudad de México, visitava frequentemente um determinado museu só para deleitar-me diante de um quadro específico de David A. Siqueiros intitulado A morte e o sepultamento de Caim (1947). Ao contrário de tudo o que já se havia pintado sobre o tema, Siqueiros pintou um galo pelado, morto e com longas esporas. Para saber o que quis dizer com sua obra, só mesmo invocando-o numa sessão de candomblé ou num ritual espírita. 40 Crença dos adeptos da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos últimos dias (Mórmons) 41 Sinal de nascença, má formação congênita, caracterizada por uma fissura labial que deixa a boca da criança parecida à de uma lebre, Daí o nome. Lebre = lepore. 42 Por sua vez, Seth, o filho de Adão e Eva que veio substituir a Abel teria dado descendência a outro tipo de gente: aos sacerdotes, aos marqueteiros da devoção, o tal homo pius. Mesmo sabendo que nele tudo é falsificação e plágio, recomendo a leitura do Gênesis, 4, 26).

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senhor Villegaignon, (lembram da professorinha do primário falando de Villegaignon?) por suas peripécias pelo Brasil (1555) e por sua ambiguidade com relação ao protestantismo passou a ser chamado de Caim da América pelos colonos franceses que viviam no Rio de Janeiro. Caim sátiro e anjo caído com superpoderes, herói do submundo, do crime e da desobediência civil! Caim prefeito de todos os cortiços, o rei das putas, dos bêbados, dos traficantes, dos excomungados, dos expatriados, dos divorciados, dos Don Juans... Caim na trilha de Jack, o Estripador! Caim ideólogo da pedofilia! Caim todos os Papas! Caim mestre secreto de Bodhidharma, inventor do Koan e do Zen. Caim cafetão, anticristo, antítese de Gandhi, inimigo mortal dos bispos, inspirador de gangues, fabricante de êxtase e de crack... Caim violinista e muito mais transgressor que Prometeu, aquele Titã grego que roubou o fogo divino e o traficou no cambio negro. Caim editor do Malleus Meleficarum, chefão da família dos Rotshilds e o adestrador de todos os cães do mundo!!! Ele que foi castigado com a imortalidade e mais, com a tortura de um abutre que lhe devorava diariamente o fígado, é o mesmo Caim que desmata a Amazônia e que contamina os rios no meio da selva e o mentor do menino de oito anos que numa pequena vila do Pará matou outra criança de três anos com uma porretada na cabeça. – Que fizeste com teu amiguinho Kauã – interroga o delegado de polícia. – “Dei uma paulada na cabeça. Ele caiu e nem chorou. Fui em casa buscar uma faca e cortei a cabeça dele”. Cain inspirador daquele homem de 64 anos que mantinha seu neto, de dois, amarrado com uma corda ao pescoço num canil, ao lado de três pit bulls. – Por que fizeste uma barbaridade destas com teu neto – interroga a polícia. – Porque sou doente, a mãe dele é lelé da cuca e seu pai morreu numa troca de tiros... Respondeu o velho avô. De cambalachos em cambalachos e de tantas especulações calhordas, vamos vendo, por um lado, as mil faces de Caim e 110


por outro, que da bondade à imbecilidade não há senão um passo. Que é ridículo pensar que a lenda de Caim e Abel, por si mesma, esteja na origem da criminalidade, já que, além de tudo, ela é um plágio de tantas outras. Moisés, o suposto engendrador e compilador do Velho Testamento, deve tê-la copiado dos babilônios uma vez que entre eles, muito antes de Caim e Abel já havia a lenda de Emesh e Enten, dois irmãos que também disputam o poder diante do Deus Enlil e que acabam se matando. A fumaceira de um charuto lembra (além de meu pai) a fumaça do sacrifício e que depois do porrete daquele eterno peregrino não veio apenas o dilúvio – como se diz, mas o holocausto inca, asteca, armênio, judeu... o holocausto das vacas, dos frangos, dos porcos e dos faisões, com seus devidos tacapes e facões, as espadas dos samurais, as lanças, as flechas, as espingardas, os 45, os rifles, as metralhadoras, os mísseis, as bombas nucleares, os venenos e as armas químicas. A civilização deve todo o progresso desse arsenal imenso àquele primeiro raizeiro e floricultor porra louca que bateu de frente com as sinistras forças ocultas da época e que, depois do crime, aquele ímpio fugitivo ainda imprimiu no cabo de sua enxada o justo sentimento de todos os libertários: nem deus, nem pátria, nem patrão e nem fraternidade... Apesar de Caim e de todas as cainadas pelo mundo, a uns cinco quilômetros daqui repousa confortavelmente em seu palácio a velha e coitada raposa... A rainha. Agora que todo mundo anda por aí com seus fones enfiados nos tímpanos, com seus óculos escuros e até com burcas, começo a entender melhor aquelas três estatuetas asiáticas que sempre foram um enigma para mim: não escuto, não vejo e não falo. Condição ideal para todos os governos, para todas as corporações e para todas as agremiações seja no mundo da política ou da fé, no mundo dos negócios ou no mundo das máfias. Orwel, convenhamos, foi otimista e até ingênuo com suas previsões no livro 1984, pois o sistema sofisticado de repressão social e de controle do rebanho que já está montado e funcionando, não só aqui, mas pelo planeta a 111


fora, é muito mais avançado. O território onde reina a suposta “democracia”, a suposta “tolerância” e a suposta “liberdade” é rigorosamente demarcado. Imagine uma vaca no pasto, com um número nas ancas e um sininho no pescoço... Imaginou? Pois bem, ali nesse pedaço de chão o populacho pode até ser feliz, basta que não anseie pelo impossível. Do lado de dentro do cercado as multidões podem pintar e bordar, gritar, encher a cara, optar por comprar queijo de cabra ou coalhada grega, atormentar-se mutuamente, fazer plástica, ouvir seus roqueiros preferidos, morder-se as carnes em público, ir cacarejar ideologias baratas no Hyde Park, ficar cantando os Beatles até os noventa anos, fumar seu baseado, ir ver a Troca das Armas e achar o máximo, vestir-se de boneca e ficar desfilando pela Oxford Street como uma débil mental, ler os anarquistas, ir ao Museu de cera abraçar-se a seu ídolo preferido, vestir-se de general alemão ou de Madame Pompidou, desfilar em seus brilhantes automóveis, ir novamente ao Royal Albert Hall, quantas vezes desejar, até encher o saco, para ouvir (ad eternum) as 4 Estações de Vivaldi. Pode ir, inclusive, se você já faz parte da Quarta Idade, jogar bingo no shopping de Elephant & Castle, fotografar, comer à vontade, engordar, trepar, reproduzir-se igual ou até mais que os esquilos do Green Parque, mas, agora... se der um passo para fora desse território, se mijar fora do pênico ou se começar a berrar demais, se der prejuízo a um comerciante, a um banqueiro ou ao Estado... Ah... aí um braço sem nome e sem identidade lhe esmagará imediatamente os miolos e, mais, respaldado na lei. Entendeu, my brother? E por falar em esmagar miolos, não é por acaso que um dos lugares mais concorridos pela turistada às sextas-feiras é a Torre de Londres, antigo centro de tortura do Reino, uma casa de horrores medieval, possivelmente até inspiradora dos centros tupiniquins e latino-americanos de tortura. Para ali eram levados os que discordassem das paixões e das decisões dos monarcas e, claro, de seus lacáios. As celas úmidas e o machado com que se cortava o pescoço dos discordantes devem causar um certo arrepio aos visitantes, ou não? Com outro pacote de sementes de girassol já pela metade atravesso todas as pontes, 112


cuspo nas águas revoltas do Tamisa, dobro aqui e subo ali sem a mais mínima lógica e sem o mais mínimo destino. Atravesso o Brompton Cemetery com seus bandos de corvos que me remetem irremediavelmente a E. Allan Poe.43 Não tenho hora para nada, meu único compromisso é com meus pés que depois de alguns quilômetros pedem para repousar. Vou como um doido engajado na contramão das massas, fotografando bizarrices, gestos de pobres matizes, descuidos e movimentos contrários à gravidade sem esconder meu fascínio e até minha alegria no meio dessa fusão de cristianismo com cartesianismo. Quando as pernas ameaçam desabar me sento neste ou naquele café de cara para uma janela e fico ali o tempo que for necessário apenas olhando o mundo, as gentes que passam com seus cachorros,44 as sombras que vão e que voltam, que somem na esquina, nas bocas do metrô, nas portas silenciosas dos ônibus vermelhos de dois andares como se estivesse montando o esqueleto de um manual de errância ou de Savoir-Vivre. Há uma contradição em mim que os que me conhecem não se cansam de apontar e de criticar a qual ainda não sei explicar: mesmo tendo uma visão apocalíptica da vida e do ser, desde o nascimento até ao ato derradeiro, mesmo concordando com Arlt de que nascer é um pacto monstruoso, estou sempre tomado por uma secreta “felicidade” e por um secreto “deslumbramento” que me enche de tesão e de desejos. Uma frase da qual não tenho a referência bate insistentemente em meu cérebro: “Tu não usarás uma veste de lã e de linho misturados, a lã representa Abel e o linho, Caim.” 43 O CORVO, conto mais do que conhecido e quase medíocre de Poe que não para de ser manipulado e traduzido. Que doença é essa dos intelectuais e dos lite(ratos) que ficam se masturbando sobre desvarios e palavras dos outros e inventando fantasmas onde só há pedras? Um trecho do referido texto traduzido por Fernando Pessoa está assim: “E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
 No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. 
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
 E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
 E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais,
 Libertar-se-á... nunca mais! 44 Segundo fontes confiáveis, lá pelos anos de 1796 havia tantos cachorros aqui pelas ruas de Londres que foi instituído até um imposto sobre eles. Repito: Caim, o herói deste livro, foi o primeiro e o mais hábil adestrador de cães no planeta.

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A potência desta cidade me faz bem. A solidão, o atraso e a desordem dos trópicos ainda haverá de ser agregada aos protocolos internacionais de patologias. Abro meu Secret London, an unusual guide e visito em pensamentos todos aqueles lugares, com seus mistérios e arcanos. Caim deve tê-los conhecido todos, ele que desenhou o abismo como arquétipo da mãe amante e apavorante. Ele que foi o teórico da desobediência civil, contrário à todas as formas de redenção e adversário de qualquer tipo de abnegação. Jung equivocou-se quando elegeu Adão como símbolo do Homem Cósmico. A totalidade primordial de todas as energias psíquicas seria melhor representada por Caim. Caim, repito, Ahsvero, aquele que por ter dado uns cascudos em Jesus durante o interrogatório a que lhe fazia Caifás foi amaldiçoado e obrigado a peregrinar pela terra até o fim do mundo. Que castigo invejável! Caim Herodes! Caim líder dos anões, desses excelentes ferreiros que exercem sua função no centro da terra. São eles que, através do vulcão chileno estão lançando cinzas sobre Buenos Aires. E foi Caim quem inventou a tatuagem e que escreveu também o Apocalipse, esse que é considerado pelos dementes o último livro canônico. Estive pessoalmente lá em Patmos, em sua caverna, a caverna onde o texto foi escrito. Caim, ele próprio era a prostituta da Babilônia, vestida de escarlate e purpura, segurando na mão esquerda uma taça transbordante de abominações. E foi Caim que me vendeu dois bilhetes de Patmos para a Turquia num barco precário que esteve a deriva por horas e que por pouco não foi sepultado no Mar Egeu. Pode-se adjetivar este povo de quase tudo, menos de ingratidão para com seus aliados. Edificaram em bronze até um monumento (Animals in war) aqui numa avenida paralela ao Hyde Park (esse antigo latifúndio da Abadia de Westminster) em homenagem aos animais que os auxiliaram nas guerras mundo a fora. Uma mula, um burro, um cavalo e um cachorro, representam também os ausentes. Que outro povo teve um gesto assim, digamos, de tanta delicadeza? Apesar dos guias e das expectativas, o famoso Market de Portobelo parece nossa Feira do Guará aí na periferia de Brasília, com as mesmas bobagens e as 114


mesmas porcarias globalizadas. Enquanto rabisco estas linhas alguém solta uma exclamação pueril diante de uma camiseta com a inscrição: Humain being. Outra mais infantil ainda: I love Notting Hill!!! Prestem atenção, senhores pedagogos como a infantilização do mundo segue sua marcha a todo vapor. Todo mundo aí se acotovelando como se acreditassem encontrar a Pedra Filosofal. Só os Homens de Estado e os Comerciantes são maduros, pragmáticos, calculistas (a polícia, os fiscais do metrô, os cobradores de impostos, os leões de chácara das boates, os donos dos trustes...) Quando não se fala o idioma do país que se visita, é necessário seguir rigorosamente uma regra básica: ao interagir verbalmente com algum nativo, registre apenas a primeira, a do meio e a última palavra das frases. O resto é lixo. Com essas 3 palavras você terá a compreensão que realmente lhe interessa. Lembre-se da Torre de Babel e que o mundo está cada vez mais tagarela, todos falando ao mesmo tempo como se tivessem esquecido das duas velhas e não tão limpas orelhas. E, depois, prestem atenção como os diálogos realmente verdadeiros e interativos são praticamente só aqueles em que os interlocutores estão brigando ou se amaldiçoando mutuamente... Uma senhora mendiga vasculha suas bolsas e seus bolsos em busca de alguma coisa. Acho que ninguém fez ainda um trabalho acadêmico sobre os bolsos, esses buracos nas vestes e nas roupas onde as pessoas enfiam coisas de todos os tipos. Observem como é algo insólito uma pessoa se apalpando em busca de algo, de um pen drive, de uma moeda, um documento, um mapa, a carteira ou qualquer coisa parecida. Outro senhor que sai da Estação de Oxford Circus – por exemplo – também mete as mãos nos bolsos das calças, depois a direita no bolso do casaco, a esquerda procura o da camisa que está por debaixo de uma blusa. Não encontrando o que busca recorre com os dedos aos pequenos que ficam sobre os grandes e quase sob o cinto. Nada. Mas não desiste porque tem outros na manga da camisa, os detrás das calças, um na cúpula do chapéu, um interno onde leva o dinheiro escondido, outro nas cuecas, outro só para o passaporte etc., etc., etc., Que porra é essa 115


camarada??? Gosto de passar por Marble Arch, e é no boteco que fica em frente que vou tomar minha sopa de missô todas as noites. Por ali, ao lado da escultura de uma imensa cabeça de cavalo sempre estão deitadas ou de cócoras seis ciganas, vivas, ladinas, prontas para lançar-me uma maldição quando advinham minha intenção de fotografá-las. No exato lugar onde está o tal Marble Arch esteve no passado o famoso patíbulo de Tyburn. Já ouviu falar? Não? Melhor. Muitos pescoços passaram ali pelas mãos dos verdugos e pelas cordas. Não é segredo que aqui já se enforcou até crianças. E quem é que filho desses últimos séculos não tem guardada no imaginário aquelas fotos e aqueles desenhos retratando árvores repletas de enforcados? A pedagogia de Piaget, de Maria Montessori, de Paulo Freire e de outros vigários parece não ter tido historicamente nem a metade da eficiência do relho e da vara britânica. Pelo que se vê Caim tem também por aqui mais discípulos do que Michel Jackson e Madonna juntos. O viram dançando carnaval com a comunidade latina em Notting Hill que se o considera, por um lado, como a Atahualpa, o último Imperador do Perú, por outro, também o reconhece como o exterminador Francisco Pizarro. Também foi visto roubando uma cítara da Mesopotâmia num Mercado de Pulgas. Nesse mercado, aliás, os preços são aviltantes e não adianta pechinchar como se faz nos mercados de Istambul ou nos de Marrakesh. Com olhar de múmias os vendedores o mandarão tomar literalmente no cu. Isto porque sabem que não há necessidade de pressa, pois amanhã aparecerá uma maluquete sul americana com vinte cartões de crédito na bolsa que pagará pelo mesmo objeto até mais do que pedem.

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Abel et Cain / Abraaham Bloemaert – 1590



Caim nos EEUU / Siqueiros


Caim e Abel / Pietro Novelli (1603-1647)


[9] “Torna Caim ao Fausto do proscênio. A civilização regressa à taba A força primitiva menoscaba A evolução onímada do gênio”. Augusto dos Anjos

A brisa fresca de março se infiltra pelas vidraças e pelas paredes da cidade quase vazia, muda e quase catatônica no meio das sombras. No outro lado da rua, na janela de seu quarto, uma mulher ainda jovem brinca com um violão nos braços e acena maliciosamente para o primeiro que passa. Assisti aquela cena com um certo prazer, porque, curiosamente, havia acabado de ler em Isaias 23,24-16: “toma a harpa, rodeia a cidade, ó prostituta entregue ao esquecimento, toca bem, canta e repete a ária, para que haja memória de ti”. Com certeza teria sido um deleite testemunhar também aquele último e íntimo duelo e colóquio fraticida entre Caim e Abel. Pelados, cara-a-cara, os olhos injetados de soberba, ambos no último estágio de Crav Magá e no meio daquela solidão estúpida prestes a mataremse a sangue-frio por uma vaidade, por uma teta, por uma brecha peluda no meio das pernas, por uma carência, por uma fumaça, por uma ficção e por outras idiotices tipo: o amor da mãe, o reconhecimento paterno, a predileção, a fraternidade, a benevolência de um deus inexistente e a autoestima... Apenas algumas das incontáveis fantasias pueris e impossíveis de se realizarem.45 Sem os marqueteiros de publicidade, pois aquela era ainda uma época de cérebros atrofiados, a estreia, tanto de deus como da família foi um fiasco e um desastre. Quando aqueles dois pobres seres descobriram que levavam no meio das pernas um apêndice inflável e uma vulva em chamas, sucumbiram. Phoder ou não phoder? Certo ou errado? Bem ou Mal? Sagrado 45 É evidente que Caim e Abel são tratados aqui, não como dois sujeitos, mas como as duas partes de um único ser gretado, dividido, vítima de excisão, fragmentado, esquizofrenizado. E é por isso que essa lenda e esse mito institui e funda o cânone principal das psicoses.

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ou profano? Pecado venial ou uretral? Libertinagem ou amor? Era o maniqueísmo – antes de Maniqueu – e a ambiguidade que caíam sobre suas cabeças como meteoritos. O sexo, a fodeção, a fecundação, o desejo, a fornicação, a soberania sobre o outro, a sedução, as ilações perversas, a mentira, um DAS4, a ganância, a bajulação, a traição, o opróbrio e o crime. Crime que – segundo Hegel – viria a ser a essência da Lei. É curioso que deus tenha ficado tão injuriado e tão hostil com o sangue de Abel e que depois disso tenha silenciado e ficado indiferente com relação a tantas outras matanças, com as chacinas que acontecem ao redor de Brasília – por exemplo –, os gritos dos morros, a sangueira que rola no planeta inteiro há milênios, desde as fronteiras e das aduanas do Éden e do inferno até as periferias de nossas metrópoles e a esquina de nossas casas, sob o olhar jurássico da Lei46 “O tempo, assoma, ali onde se conduz a guerra pela soberania da terra” – lembra Nietzsche. Só um parêntesis: Por que Abel não teria reagido? E por que não poderia ter sido Abel a iniciar a briga, a tentar assassinar Caim e este o matado por legítima defesa? De uma forma ou de outra eles dois são os patronos de toda luta livre, do box e da luta com vara. E será que não entraram no ringue a mando e para deleitar ao Senhor? Se hoje a grande maioria dos idiotas da terra adora assistir a essas peleias, brigas de galos, de canários e de bodes, de cachorros, por que o grande deus não se deleitaria também com tantos coices, arranhões, socos, cabeçadas e pauladas? Será que a indignação, o escândalo e a posterior austeridade com o vencedor não passou de puro teatro divino? Por que lhe concedeu de graça um habeas corpus e proibiu de maneira implacável que alguém o executasse? Por que ligou o foda-se e deu as costas à humanidade? Só sei que se existisse e que se vagabundeasse aqui por este planeta ficaria abismado com tantas chacinas. Se entrando nos morros, nos pronto socorro ou nas delegacias visse as estatísticas cairia de quatro. Ficaria abobalhado e envilecido por compreender que o crime de Caim comparado as desonras 46 “A voz do sangue de teu irmão clama por mim desde a terra (...) que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão” (Gen 4,5 10-11

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e à matança de hoje foi algo até lúdico, uma vez que com o sangue derramado mensalmente nas nossas civilizadas cidades, daria, no mínimo, para encher um Piscinão de Ramos ou mover as turbinas de Itaipu por uma década.47 E tudo isto, nas barbas da estátua de seu filho (o Cristo) que, aliás, dizem ter-se deixado matar para redimir a humanidade, isto é, para acalmar a manada de cavalgaduras, a voracidade pagã e assassina da espécie. Mesmo que tenha sido verdade, foi um gesto prosaico, inútil e em vão!48 Todos os anos esses filhos de Caim reconstituem sadicamente a lenda do calvário e daquele crime, mas a humanidade não se altera em nada, segue se reproduzindo insensível e indiferente, cada vez mais doentia e patamaz. Quem sabe, ainda não tenhamos entendido que o verdadeiro e único objetivo da vida, desse parvo ciclo de nascimentos e falecimentos, seja produzir sêmen, hemoglobina e derivados. Fabricar adubo e sangue incansavelmente, para com ele regar as lamúrias do aprisco e da humanidade e saciar mais esta perversidade terrestre... 49

47 No ano de 2004, quarenta e oito mil pessoas morreram assassinadas no Brasil. Entre os anos de 2002 e 2005 apenas as polícias da cidade do Rio de Janeiro e as da cidade de São Paulo mataram sete mil pessoas. E a sociedade segue cínica, descarada e hipocritamente alimentando a ilusão de que um dia – como ironizava Pitigrilli –o pobre virá a ser gente. Esperar por isso até que é poético, principalmente sob a condição de que permaneça fodido e pobre. Um horror, mas não adianta espernear, pois está implícito nos cânones republicanos que a gata Borralheira não procurará um advogado para defender-se da madrinha, assim como Chapeuzinho Vermelho nunca sacará de um revólver se não quiser ser tratada como louca ou como terrorista. 48 Conta-se que os cainitas (aqueles que veneravam Caim e que possuíam um Evangelho de Judas) tinham uma admiração especial por esse suposto traidor de Cristo. Para eles Judas era o mais respeitável dos descendentes de Caim. Acreditavam que apenas ele sabia em detalhes a verdadeira história da criação dos homens, e que teria sido esta a razão que o fez caguetar Cristo aos inimigos. Pois Cristo queria reconciliar os homens com o deus criador, enquanto que Judas acreditava exatamente no contrário, isto é, que era necessário, para o bem da humanidade, fomentar o ódio dos homens contra o criador, já que ele era o responsável por todas as desgraças do mundo e já que sua obra havia se revelado um horror e uma vergonha. 49 É revelador que uma das palavras mais encontradas nas falas e nos textos de Martinho Lutero seja a palavra sangue. Dizia ele: “É impossível para o cristão e para a verdadeira igreja subsistir sem derramar sangue, pois seu adversário, o diabo, é assassino e mentiroso. A igreja cresce e progride através do sangue, ela está banhada em sangue”.

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Por todos os lados os irmãos continuam disputando e se digladiando como se fosse inadmissível ter vindo ao mundo através do mesmo útero e da mesma xota. Quem teve estômago para ler Manuelzão e Miguilim (Quimarães Rosa), viu que até Nhô Béro e seu irmão Tio Terêz, lá no fim de mundo mineiro, reencenaram parte da briga dos irmãos bíblicos. Bobagens neuróticas de escritores. O truque é sempre escrever com a intenção de alcançar a bílis fétida do populacho leitor. Adeus Argélia! O barco argelino aciona os motores. Releio em voz alta as palavras que Camus coloca na boca de um padre no auge da peste em Oran:“Sabeis agora o que é o pecado, como o souberam Caim e seus filhos, os de antes do Dilúvio, os de Sodoma e Gomorra, o Faraó e Jó e também todos os malditos”. Só faltou dizer que foi Caim que infestou a cidade de ratos. Às vezes parece que a ética, a educação e mesmo a civilização, nestes últimos três mil anos, não fizeram outra coisa além de querer descainizar o mundo. Quanta bobagem e quanta obscuridade neste playground de frajolas! E são criminosos aqueles pastores e aqueles religiosos garganteadores que, temperando o mito com seus medos, suas paranoias, suas estrumeiras e suas doenças pessoais mentem diariamente a seus fiéis sobre a descendência de Caim, que ela teria terminado com o dilúvio e blábláblá. Eles próprios são uma prova em contrário. E é igualmente tola e digna dos irmão Grouxo, – mas pelo menos mais simpática – a versão de que Caim teria morrido quando o teto de sua casa desabou sobre ele. Oh, good bad God! – parafraseando o que Orwel dizia de Kipling50 – como se livrar de todas essas bastardices? Saí do hotel com a mais absoluta intenção de ir ao 23 de Tedworth Square, onde morou o escritor gringo Mark Twain, mas acabei, sem querer, chegando ao Templo tibetano de meditação Kagyu Samye Dzong num bairro que é uma pequena África. Um velhinho demente examina as pedras de uma ruína como numa epifania e como se precisasse certificar-se se aqueles entulhos foram colocados ali na Idade Média ou 50 Good bad poet.

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na Renascença. Muitos negros por aqui e falam alto e dão gargalhadas homéricas como se tivessem 51% das ações do Reino. E para qualquer lado que você olhe todo mundo está brincando com seu celular. Houve e ainda está havendo uma infestação planetária desses aparelhos e de outros semelhantes que tornou bem mais difícil saber quem está em surto maníaco ou tendo alucinações. No passado, quando alguém estava falando sozinho num parque, na privada, no restaurante ou num ônibus já se sabia o que estava acontecendo, agora não. Qualquer idiota se dá o luxo e o direito de ficar gritando e tagarelando ao nosso lado e em qualquer lugar sem o mínimo constrangimento, haja ou não interlocutor do outro lado da “linha”. Já vi inclusive, vários mendigos aqui se comunicando com essas geringonças, sei lá com quem. Um deles, esse devia estar me gozando, falava em seu sapato, a parte do salto ficava na boca e a ponta na orelha. É, mesmo que as massas alienadas não acreditem, as multinacionais pagam profissionais para definir cores, tamanhos, formatos, etc., para melhor iludir a turba, principalmente a turba infanto-juvenil e a turba de todas as idades do “Terceiro Mundo”. A alienação está num nível tão grande e os tipos de aparelhos são tão variados que você pode ficar uma hora encostado num poste falando numa tampinha de garrafa ou na cabeça de um prego que ninguém colocará em dúvida sua saúde mental. Isto não é a liberdade máxima!? Gritam da tribuna os ilegítimos descendentes de Caim. Caim incorrupto como o sal! Caim anti-samaritano! Caim líder da seita ismaelita hachichiyyin (embriagados de haxixe) no Irã e na Síria. Caim serpente de fogo! O mesmo Caim que desfilava com gestos salomônicos vestido uma túnica de organdi, com chifres e cascos nos cortejos de Dionísio, e que sabia, como escreveu Marlow, que esta cidade também já foi um dos lugares mais escuros da terra.

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Abel morto / Bellanger – Museu d’Orsay


Caim / William Blake


Caim amaldiรงoado Joรฃo Maximiano Mafra, 1851


[10] “Essa mulher nua ficou no cimo de um monte. Adão envergonhou-se da nudez e colocou-lhe uma parra. Depois passou Caim e cobriu-a com um velocino alvíssimo”. Mario de Andrade (Em A escrava Isaura que não é Isaura)

No Canadá, aqui em Londres e em vários lugares do mundo, a novidade são as Passeatas das Vadias. Meninas e mulheres que reivindicam “liberdade” de vestirem-se como bem entenderem ou até de “não vestirem-se” sem que isto autorize os estupradores e os tarados a atacá-las. É evidente que essas manifestações, apesar de legítimas, não servem para nada já que os homens estão cada vez mais reféns de sua própria bestialidade e de sua própria testosterona. Como era de se supor a imagem e a má fama de Caim também foi associada às mulheres. Não apenas às de bordéis ou às de beirade-estradas, mas às de todas as categorias do gênero. Aliás, a imagem das mulheres que compõem o elenco bíblico não é nada recomendável e tem sido ao longo dos séculos a fonte inspiradora de todos os tipos de misoginia e de desabafos como este que vi escrito nas escadarias de um cortiço de prostitutas no bairro Gótico de Barcelona: Malditas e manipuladoras filhas de Caim! Dizem até que ao contrário do que se pensa sobre Hera (a deusa que para vingar-se de Zeus teria engravidado sozinha) sua gravidez resultou de um encontro com Caim no final de tarde grego às margens do Mar Egeu. Há até quem diga que foi a parte feminina de Caim quem praticou o homicídio. “La femme est un joli animal, mais c’est un animal”, esbravejava P. J. Proudhon, e na pauta do Concilio de Mâcon de 585 a principal discussão girava ao redor da dúvida se a mulher tinha uma alma ou não. Decidiram que sim, mas com sérias restrições e não por unanimidade. Quem as vê arrogantes na Marcha das Vadias, seminuas, provocantes, desafiadores com as partes essenciais para fora nem pode acreditar que no passado foram comparadas como mulas e tratadas como tal. 129


Um sujeito de nome J. Wier, médico no século XVI, escrevia: “Ce n’est pas sans raison que les latins ont nommé la femme Mulier [...] Quasi venant du mot Mollicies, que signifie mollesse”.51 Temos notícias de Pandora, que lançou os piores males sobre o mundo e de Lilith, a primeira mulher de Adão que se recusou a viver o papel da subserviência marital, escoiceou e caiu fora. Achou demais ter que abrir as pernas diária ou semanalmente para ele sem sentir nada. Sem sentir nada? Esta tese ainda está por ser demonstrada. As teorias freudianas, inspiradas em Aristóteles e reforçadas também pelos praticantes da psicanálise insistem que a mulher não nasce “menina”, mas sim “menino castrado”. Ideia pior que todos os nauseabundos tópicos do Apocalipse! – Se pelo menos tivesse o mesmo êxtase, o mesmo gozo, a mesma crise epileptoide que o homem e se no auge da voluptuosidade derramasse algum tipo de líquido – queixavam-se. Foi substituída por Eva que, como bem sabemos, só deu problemas. Além de induzir Adão à desobediência e ao “erro”, acabou tendo um filho bastardo com a serpente.52 Como se não bastasse essa deslealdade para com Deus e para com Adão, foi ela quem gerou e quem fomentou a disputa e a intriga entre seus dois filhos o que terminou – como é sabido – no assassinato de um deles e na maldição do outro. Entre os inúmeros exemplos de malignidade feminina que a Bíblia e o folclore nos brindam, um dos mais populares é o da grega Pandora com sua caixa 51 Citado por Chopard, idem, p. 255 52 Independente de Eva ter ficado traumatizada ou não com a história da serpente, o que é impressionante é que essa lenda parece ter realmente gerado um conflito sexual real nas mulheres, a ponto de, mesmo na atualidade, a grande maioria delas não ter notícia do gozo e não saber o que fazer quando está com uma pica nas mãos. Duas táticas têm sido mais usadas por elas com o objetivo de lidar e escamotear essa fobia. 1. Valorizar o máximo as “preliminares”, com a esperança de que o tempo se encarregue de nocautear a ereção do companheiro. 2. Recorrer o mais rápido possível ao sexo oral ou introduzir a pica em qualquer outro de seus buracos. Tanto a prática numero 1, como a número 2, tem tido lá seu sucesso mas também tem confundido terrivelmente os homens que, em geral, apesar das bravatas, ainda não têm a mínima ideia sobre a sexualidade feminina. Entretanto – e isto é o que importa – nem uma e nem outra destas astutas evasivas tem algo a ver com fogosidade ou com ninfomania – como pensam alguns tolos – pelo contrário, são apenas técnicas inventadas para lidar com essa secreta e bíblica fobia à serpente.

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de maldades. Depois vem o de Rebecca, mãe dos gêmeos Esaú e Jacó que disputavam ferozmente as vantagens da primogenitura. Ali também ela interfere sorrateiramente para enganar seu marido cego e para beneficiar seu filho preferido, em prejuízo e em detrimento de Esaú. Esse comportamento feminino por um lado e a crença masculina numa suposta hiper sexualidade feminina, por outro, fizeram a igreja e seus guardiões nutrirem uma desconfiança e um ódio mortal pelas mulheres. São Jerônimo –por exemplo – dizia com todas as letras que “a mulher é uma ferramenta de satã e um caminho para o inferno”. Santo Antônio, o preferido de muitas freirinhas que conheci, afirmava: “as imundas regras são simplesmente o espelho de uma alma imunda”. E por fim, o monge beneditino São Odo de Cluny estava convicto de que “abraçar uma mulher era como abraçar um saco de esterco”. Haverá maior manifestação de ódio e de misoginia do que a deste padreco? Se deixarmos de lado a teosofia para passearmos pela filosofia e pela literatura damos de cara com Schopenhauer, com Nietzsche, com Petrônio53 e com uma dezena de outros misóginos clássicos e veteranos que viam no feminino, não necessariamente a marca de Caim, mas uma falta, um destrambelhamento, um transtorno, um frascário e uma infidelidade ambulante.54 Freud e Lacan e toda a corriola de psicanalistas e de trambiqueiros contemporâneos não deixaram por menos, levantaram, entre outras coisas, a terrível hipótese da mulher como estrutura pré-psicótica. Mas também eles sucumbiram, caíram vencidos sob a cegueira e o furor dos próprios bagos e não conseguiram ir muito além das suposições e das reticências. Caim na pele de Mesalina vestindo um 53 Esse crápula inteligente gostava de dizer: “aquele para quem uma mulher não é castigo suficiente, merece várias”. 54 É interessante que a infidelidade amorosa tenha sido associada a chifres, principalmente quando sabemos que vários textos judaicos sugerem que a tal Marca de Caim seria exatamente um par de chifres. Já em Cornus sã, corpus sanu, Fabio di Ojuara ironiza: “Ao levantar-se faça a oração do corno; faça onze embaixadas olhando sempre para debaixo da cama; verifique onze vezes todo seu armário, pode estar faltando alguma coisa ou ele pode estar lá; quando for tomar banho não feche a porta do box, a psicose da traição pode te pegar” In: Sabendo usar... chifre não é problema. P. 35, Natal, 2005.

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tailleur azul! Quem ensinou Pandora a abrir sua caixa! Caim nos disfarces de George Sand, quem tornou algumas mulheres mais fúteis e mais inconstantes que o vento e quem edificou os monumentos megalíticos da Idade da Pedra. E já que estamos falando de mulheres, existe uma loja que vende roupas e bugigangas baratas aqui no principio da Oxford Street que ocupa quase um quarteirão inteiro (uma espécie de anti Harrod’s) que é um laboratório perfeito para quem quiser tentar entender o cérebro feminino e sua relação com a roupa. Se você está querendo se transformar num expert no gênero, antes mesmo de passar lá na livraria Silver Moon (especializada em mulheres e em escritoras feministas) deve passar por aqui. Lotada desde que abre até a hora que fecha é uma romaria e um espetáculo por um lado lamentável e por outro antropologicamente fascinante. Milhares de mulheres de todas as nacionalidades, tipos, classes e pedigrees, de todos os pesos, personalidades, cores, cheiros, tamanhos, línguas, religiões e culturas se esfregando no meio de cabides, de pilhas de calças, blusas, meias, anáguas, etc., etc., etc., numa agonia e numa pressa como se a terra fosse acabar. Umas levam amontoados de peças nos ombros, outras experimentam ali mesmo a que lhe parece a única do Reino Unido. Outras enchem e esvaziam os sacos que a loja oferece. Passam horas escolhendo e depois mudam de ideia, trocam tudo, ligam para alguém para saber se o número é X ou Y. Sentam no chão em duas ou três para mostrar, umas as outras as maravilhas compradas. Se atropelam, é verdade, mas sem estresse, se entendem, se toleram como se soubessem que estão numa histeria coletiva. Umas delicadas, outras brutas esquecem até que são mulheres e ficam em posições estranhas nunca antes permitidas. Um traseiro imenso de uma mulher árabe a disposição, mas sem o mínimo de malícia posta no caminho contrastando com a bunda esquelética de uma irlandesa. As tetas fellinianas de uma portuguesa e as sutis de uma sem nacionalidade no meio das mesmas pencas de retalhos e de bermudões coloridos na maior ingenuidade. Umas visivelmente desvairadas, outras sob controle, outras com um prognóstico nada bom... 132


Experimentam óculos, chapéus e peças íntimas ao mesmo tempo. Resmungam alto, (principalmente no balcão de troca) falam sozinhas, riem enquanto apalpam os tecidos, cada uma expressa alguma coisa em seu idioma, os olhinhos perdidos num fascínio incompreensível e inacreditável. Olho para a escada rolante e lá vem mais um batalhão de recém chegadas, novatas, ansiosas, o bolsão da loja ainda vazio. Mas minha senhora – tenho vontade de intervir – isso custa apenas 4 libras, a fábrica faz dois ou três milhões delas por dia, na mesma cor, nos mesmos tamanhos e – segundo eles – de puro cotton! A senhora pode ir com calma ou até voltar amanhã, que a pilha estará ainda maior e a senhora poderá comprar cinco peças para cada mulher da família... E depois, se não vai mudar nada, absolutamente nada na sua vida, se não vai fazê-la mais feliz comprando ou não, por que é que a senhora está tão ansiosa e tão alucinada??? Acredito que num passado remoto, mas muito remoto mesmo, as vestimentas livraram as mulheres de problemas e de incômodos tão abrumadores (relacionados à carne evidentemente) que até hoje elas continuam tomadas por essa espécie de enlouquecimento e de possessão... Não há outra explicação plausível. À velha indagação de Freud e de seus seguidores: o que quer uma mulher?, eu respondo: roupas... A vidraça semiaberta amanheceu molhada. Um chuvisco comum para o mês de maio atropela os pedestres lá em baixo e a bodega do indiano ladrão já escancarou as portas. Alguém peida no quarto do lado. Fico indignado, mas logo elaboro55 e abro o mapa da cidade sobre a cama para traçar o programa de hoje, sabendo que, como sempre, tudo pode acabar completamente diferente do que o planejado. É só tomar um trem errado e pronto, tudo se modifica e o projeto inicial vai naturalmente para as cucuias. Esses equívocos, por 55 “Se um peido sai sem barulho, é ótimo – recomendava Hipócrates. Entretanto, é muito melhor que saia com ruído do que ficar preso. O velho sábio grego também menciona a Aethon, o tal que fazia mil malabarismos para não peidar nos templos e que saudava a Júpiter apertando as nádegas. Ver: Elias, Norbert, La civilisation des moeurs, Calmann-Lévy, p. 186, Paris, 1969.

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incrível que pareça, têm dado um sabor especial aos meus dias, não apenas aqui, mas no mundo inteiro, graças a eles tenho descoberto coisas inimagináveis, coisas que nunca poderiam ser sequer previstas. Um carro conversível de meio milhão de Euros passa devagar com dois negros na frente fumando charutos e uma loira no banco detrás mostrando os dentes. Não precisa ser racista para entender a bizarrice! Caio na urbe com energia para atravessar o planeta! O mundo misterioso, veloz e subterrâneo do metrô parece uma toca de cupins. Junção de labirintos que se sobrepõem e que se entrecruzam numa loucura para claustrofóbico nenhum se queixar. Somando minhas idas e vindas nos trens da linha amarela, azul, verde, vermelha etc., devo ter dado a volta ao planeta umas quatro vezes nestes dias que estou por aqui. Não necessariamente por que as estações sejam distantes umas das outras, mas por meus vacilos, minhas distrações e por minha preguiça de ficar babacamente decifrando os velhos mapas. As vezes saio da Estação de Belgravia – por exemplo – para ir a Holborn, inicio a leitura de um parágrafo das Viagens de Gulliver e quando me dou conta já estou em Barnsbury. Caralho! Outras vezes quero apenas ir até ali no Hyde Park Corner, tomo o trem aqui em Paddington, vejo duas ou três páginas de um jornal e quando caio na real cheguei em Barbican. E para voltar? Não é simplesmente saltar de um, passar para o outro lado da linha e tomar outro. Não, a coisa não é bem assim, tem mil escadas, várias plataformas e mil complicações no meio do caminho, isto, sem falar dos milhares e milhares de sujeitos que correm de um lado para outro como ratos e daqueles que, como você, está indo e vindo desamparado com um mapa incompreensível entre os dedos... Às vezes ao tentar voltar para Hyde Park Corner que era o destino inicial, posso, por distração, como já aconteceu, acabar em Highgate. Highgate? Casualmente lembro que é no cemitério dali que Karl Marx está enterrado e então fico por ali mesmo, fotografo a tumba, descubro um café, observo uma velhinha regando uma magnólia, entro numa livraria, compro um livro de John Casey intitulado: After lives: a guide to heaven, hell, & 134


purgatory. Dou um tempo numa loja de violinos onde compro uma partitura por 4 libras e fico na área até o anoitecer... Nossas avós não diziam que há males que vêm para bem? Claro que deve haver também bens que vêm para males!!! Mas voltando à Torre de Babel que é o metrô londrino, outro complicador aparece quando você vai pedir uma informação aos funcionários que, apesar de sempre gentis monarquistas, falam Plataform como se estivessem chupando uma pica. Por mais que tenha me esforçado só consigo escutar plafon. Plafon 2, plafon 6. Plafon 4. Plafon um caralho! É plataform!!! Algumas estações são tão profundas que se pifar as usinas geradoras de energia ou se a rainha, pela razão que for, mandar desligar aquela merda toda, demoraríamos anos para escalar novamente aqueles abismos... Em algumas delas desce-se vertiginosamente por um elevador, numa gigantesca caixa de aço com duas portas potentes que se abrem e fecham quando bem entendem. Claro que é preciso ter fé para não sucumbir a alguma fobia e para não desesperar-se. Não fé num deus fictício, evidentemente, mas fé no homem, na máquina, no cérebro de um proletário weberiano que ganha umas duas mil libras por mês... As vezes, quando não tenho nada específico para fazer ou já enchi o saco de tanta cultura, entro na primeira estação que avisto e no primeiro trem que aparece. Se é da North Line, da Metropolitan, direção Victoria, Piccadilly etc., não faz a mínima diferença. Fecho os olhos e até durmo com o balanço e com o barulho das rodas sobre os trilhos. Às vezes, é verdade, me irrita a gravação chata que informa: next station Fulana de tal. Next Station Cicrana de tal... Os ingleses e os europeus em geral (com exceção dos italianos) viajam em silêncio, mas os negros, os árabes, os indianos e etc. vão batendo papos intermináveis e num tom bem acima de 70 decibéis. As vezes, no meio de um cochilo quando ouço por acaso a gravação falar em mudança de trem, salto como todo mundo e saio do underground para a superfície. Seja a estação que for, que beleza! O sol meio caribenho deste mês de maio e ao mesmo tempo uma brisa fria que nos espera em cada uma das sombras dos edifícios ou dos monumentos... Dezenas de ruas para percorrer a pé, devagar, pronto para fotografar uma 135


cena que jamais se repetirá e alheio a todos os protocolos do mundo. Numa dessas saídas ao acaso, saí em Camden Town e seus mercados. Que maravilha! Tudo o que os jovens hippies dos anos 60 sonharam parece estar montado ali numa espécie de Medina monárquica e hipercapitalista. Só não senti mesmo foi o cheiro forte da cannabis daqueles tempos... As ruas cheias como se fosse sempre domingo ou feriado. Aliás, o Primeiro Mundo não estaria sempre de feriado às custas do Terceiro? Bem que os políticos latino americanos poderiam incluir em suas campanhas demagógicas uma nova frase mais ou menos assim: Prometo lutar para transformar a América Latina inteira, do Brasil ao Panamá, numa imensa Inglaterra!!! Não seria o anarquismo idealizado de Proudhon, mas já seria o máximo... E por falar em Proudhon (o anarquista) não podemos esquecer que, curiosamente, apesar dos pesares, esta monarquia deu abrigo a todo tipo de revolucionário, pseudo-revolucionário e refugiados de guerra do mundo inteiro. Caim, com certeza, assim como o Gil e o Caetano ficou exilado aqui. Em se tratando dos dois últimos, fico tentando imaginar, com aqueles músculos e com aquelas ideias, em que é que essa dupla poderia ameaçar os milicos da ditadura... London, London!!! Meninas, mulheres e senhoras de todas as cores, mães, irmãs, amantes e sogras de Caim desfilam inseguras e perfumadas pelos lados do Covent Garden, da Art Gallery e por Piccadilly olhando de soslaio para todos os lados, as mais jovens sempre com aquelas meias sexis e pretas enfiadas propositadamente na xota e nas nádegas além de uma sainha minúscula fingindo cair por sobre tudo...Sempre que ouvires alguém dizer que os ingleses estão em crise econômica e que estão psicologicamente mal, saiba que é blefe. Estão bem, muito bem, saudáveis e sorridentes e não se estressam por quase nada. Só não digo que estão “felizes” para não parecer reacionário e nem ridículo. Não vou mencionar as maravilhas do British Museum e nem as belezas expostas na TATE Gallery porque seria inútil. Mas foi passeando por uma daquelas bandas com os olhos cravados no The derby day, de William Powell; no An iron forge, 136


de Joseph Wrigt; no Endymion porter, de William Dubson etc, que fui imaginando Caim como o famoso Burro vermelho dos egípcios, aquele que ameaçava as almas após a morte. Foi passeando pelo meio de toda aquela beleza que, sem saber porque, fui intuindo Caim incrustrado num dos sete braços do candelabro judaico. Sim, um Caim feito Menorá. E não apenas isso, mas ao mesmo tempo a árvore da luz dos babilônios. Enfim, Caim como o autor e o editor de todos os bestiários. Caim assoprando num chofar no bairro judeu da Sardenha. Caim demagogo, com seu chapéu de peregrino dando as mesmas ordens no altar do judaísmo, na stupa do budismo, na caaba dos islamismo e na sacristia do catolicismo. Caim com a tesoura e excitado fazendo a infubulação das meninas do Magreb. Caim coiote, símbolo de todo mal e de todo o bem… E na sala ao lado, a Arte Contemporânea cada vez mais ridícula e pior. Fios, colagens, dejetos, espelhos, fotos, máscaras, escadas sem degraus, bandeirinhas, tampinhas de garrafa, sofás rasgados, vídeos, efeitos óticos, jogos de palavras, mais colagens, cruzes alteradas no foto shop, papéis velhos, Lênin travestido de Jackson Pollock, um colar dos índios norte americanos e outras bobagens infantis. Sartre ponderaria: “os instrumentos mascaram o nosso abandono”. Por mais que me esforce, sou muito mais o pessoal de 1500, 1600, 1800. Um Van Dych, um Joseph Highmore, um W.Hogarth. Os incomodados que van a chingar sus madres!!! Você pode ir cinquenta vezes sozinho ao Restaurante do Mr. WU, ali na Shaftesbury Avenue esquina com a Wardour Street, que a chinesa que te recepciona vai te perguntar: lugares para quantas pessoas? Hoje que acordei meio mal humorado, que a cidade está um verdadeiro inferno, que as ruas estão iguais às da José Paulino na semana do dias das mães, que as torcidas de um time espanhol e as de um daqui estão gritando pelas ruas como verdadeiros débeis mentais, respondi-lhe cinicamente num idioma meio parecido ao mandarim que costumo inventar quando estou vagabundeando: moça, você não vê que estou acompanhado pelo Chico Xavier e pelo Allan Kardec? Ela, evidentemente, não entendeu o conteúdo, mas desconfiou da 137


forma e me conduziu de imediato e meio chateada a um lugar em pleno sol. – Esse costume de determinar o lugar onde você vai sentar é outra característica da casa – Porra, comida chinesa em pleno sol! Puxei meu mandarim novamente: moça, se eu quisesse almoçar ao sol teria ido para o Ceará... As flores secas que nesta época despencam das árvores por aqui devem ser fatais para os asmáticos! Um gato imenso e cinza dorme sobre um volume de psiquiatria moderna na vitrine de uma pequena, mas charmosa livraria ali pelos lados da Gower Street. Um fio de sol vazado dos prédios da frente lhe iluminavam exatamente o focinho onde se podia perceber o brilho de uma sutil umidade. Suas unhas estavam intactas, vi principalmente a da pata esquerda que estava semiaberta sobre a lombada do livro. Bati levemente na vidraça com uma moeda de duas libras e ele abriu preguiçosamente os olhos, mas sem o mais mínimo entusiasmo. Aqui também o mercado livresco é intenso e o livro como mercadoria superfaturada, fetichizado e sacralizado está por todos os lados. Um abismo entre o hoje e o ontem, neste particular. No início da escrita apenas um ou outro sábio se atrevia a registrar com um espinho, com um fiapo de bambu e até mesmo com sangue suas ideias, seus sentimentos e seus conceitos numa pele de porco, numa pedra ou num pedaço de osso. E o fazia com o maior pudor, sigilo e com a maior cautela, pois sabia que seu gesto poderia definir o amanhã da turba ignorante, genocida e iletrada. Hoje, a banalidade fincou seus alicerces no mundo das letras. Qualquer bobalhão pode encontrar um editor em cada esquina para editar sua obra, mesmo que ela seja, na melhor das hipóteses, apenas medíocre e irrelevante. Fútil década dos Best-sellers de setecentas páginas e principalmente das consentidas Biografias de bandidos. Apesar da monstruosidade da Waterstone’s – por exemplo – com seus quatro andares aqui na Piccadilly, faltalhe clima, cheiro e títulos. Os pequenos livros de cinquenta ou cem páginas, as edições de bolso etc., que são as relíquias e que dão vida a esses ambientes aqui são precárias. Nessa mesma livraria, numa mesa titulada: Latin American Novels 138


com um subtítulo: Magical literatura from South America, havia: Borges, 2; Carlos Fuentes, 3; Juan Rulfo, 1; Garcia Marquez, 3; Vargas Llosa, 2; Roberto Bolaño, 2. Fomos salvos novamente por 2 de Machado de Assis, Dom Casmurro e A chapter of hats (and other stories). Lá no quarto andar, na mesa People Problems, quem manteve presença foi o velho Paulo Freire, com Pedagogy of the oppressed, que pelo menos aí no Brasil, pela situação educativa atual, além de retórica, não deve ter servido para nada. Ou estou desatualizado, senhores educadores? Ao senhor de dois metros de altura que a retirou bruscamente do caminho onde mendigava, a cigana lançou esta maldição no mais arcaico dos dialetos búlgaros: uma tormenta de pedras haverá de despedaçar-lhe absolutamente todos os ossos!!! Apesar dos desejos e das esperanças dos colonizados, as finanças, a qualidade de vida e a ordem vão muito bem por aqui no Reino. No passado, líder máximo do Imperialismo, este Estado já chegou a dominar um quarto da terra e da população do planeta. América, Ásia, Pacífico, África... Daí a riqueza atual não só de seus cofres, mas de seu acervo antropológico, cultural, social etc. Os caibros de ouro que no Brasil saiam das Minas Gerais, de Goiás e de outras províncias nas costas de escravos e de jumentos eram repassados de Portugal para cá quase que diretamente em troca de porcarias e de peças de brechó para o deleite e o desvario das monarquias lusitanas. Quando, finalmente, resolveram promover uma onda de “independências”, foi porque já haviam rapinado a medula daquelas colônias, além, claro, de terem prostituído o idioma nativo e a linguagem de quase todo o mundo. You speak inglês??? Houve alguma resistência como na Índia de Gandhi, mas no geral a passividade foi absoluta. Já não há mais dúvidas sobre a existência de um sentimento ambíguo entre o torturador e a vítima; entre o preso e o carcereiro; entre aquele que humilha e o que é humilhado. Nossa espécie não consegue ser íntegra, tem valores e sentimentos volúveis e flutuantes. Se vende por pouca coisa. Hoje o desejo é um, mas amanhã pode ser radicalmente oposto. Ontem ateu, hoje pastor. Hoje pastor, amanhã funda uma escola de ateísmo. E sempre inventa uma lógica e uma 139


justificativa para esse descaro, coloca a responsabilidade na genética, na ética, na metafísica, nos terremotos sociais, nas almas vagabundas que, despeitadas com os vivos, voltam à terra para causar desordem e perplexidade. As tardes deste mês de maio são cada dia mais douradas e mornas aqui em Londres. Nas coberturas de alguns edifícios o sol se mantém amarelado até mesmo quando lá nos primeiros andares já é quase penumbra. No auge das colônias, como os exércitos e a burocracia estavam por praticamente todo o planeta, da China à Argentina, dizia-se que não havia ocaso solar no Reino Unido. E não havia mesmo. Quando aqui já era noite feita, lá na Nova Zelândia, para onde enviavam seus deportados, lá na terra de Bob Marley ou lá nas Malvinas já havia sol e vice-versa.

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Assassinato de Abel, Michel van Coxcie



[10] Declaro e prometo que combaterei incansavelmente, secreta ou abertamente, sempre que tiver oportunidade, todos os hereges, como é meu dever, para extirpa-los e extermina-los da face da terra, e que não pouparei nem sexo, nem idade e nem condição, e que destruirei, enforcarei, ferverei, estriparei e enterrarei vivos estes infames hereges; rasgarei os estômagos e os ventres de suas mulheres e esmagarei a cabeça de suas crianças contra a parede, para aniquilar sua execrável raça”. (Parte do antigo juramento dos padres jesuítas)

Um casal vestido de preto vai beirando os muros na Sussex Garden e falando sobre febre puerperal. Alguém se lembra do médico húngaro que suspeitou pela primeira vez que as mãos deveriam ser lavadas antes de quase tudo? Esse mesmo homem mandou instalar pias e disponibilizou cloreto de cal para que os médicos se desinfetassem antes de tocar a paciente. Foi acusado de superstição, humilhado e exonerado. As pias foram arrancadas e ele enlouqueceu. Mais tarde o velho Pasteur lhe daria razão, mas já era tarde!56 Na praça onde viveu Bernard Shaw, Virginia Wolf e companhia, um guia de identidade desconhecida está dando uma verdadeira aula de história a seus seguidores do Leste europeu: Londres Romana – dizia –, Londres Medieval, Londres Elisabetana, Londres Georgiana, Londres Vitoriana, só faltou mencionar a Londres Cainesca! Soube também que no porão de uma taberna que existe aqui por perto, Thomas Dylan e Georges Orwel apareciam sistematicamente para tomar uns tragos. Orwel, todo mundo sabe, foi aquele que escreveu, entre outras coisas, Na penúria em Paris e Londres. E por falar em penúria, voltei ao Harrod’s para comprar um presentinho para meu cachorro e todo mundo ainda estava lá se acotovelando. Passa-se um mês por aqui e normalmente não se faz contato 56 Dr. Semmelweis. Ver Céline e seus adoradores, no blog de Luiz Nazario.

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com nenhum nativo, isto é, com nenhum inglês puro sangue. O pessoal de um restaurante é árabe, do outro são indianos, o mais sofisticado um pouco é de franceses, a pizzaria é napolitana, o Chinatown nem precisa falar. O taxista veio da Bulgária, os motoristas dos ônibus são negros, a mulher da lavanderia é alemã, a camareira é de Budapeste, o cara da joalheria é judeu, os leões-de-chácara dos nightclubs são 100% negros, os irmãos da Lan House da esquina são do Marrocos, a senhora mendiga que fica em Marble Arch é cigana da Romênia, os funcionários do metrô são africanos, albaneses etc.; a mulher a quem pago o albergue é de Portugal; o sorveteiro lá de Oxford Circus é brasileiro, as caixas dos mercados são da índia, Ásia em geral ou do Oriente Médio; as moças da profissão milenar ou do lupanar de Babel estão mais globalizadas do que nunca; as loiras lá das boutiques de Piccadilly são russas, as massagistas são tailandesas, os funcionários da rede Pret a manger são da Itália, da Espanha, da República Tcheca, a dançarina de foxtrote no Café Paris é argentina, o barbeiro é grego, dos travestis lá do Soho muitos são brasileiros; os garis são latino americanos, etc., etc., etc., e até a Madame Tussaud (aquela velha do museu de cera) era francesa. Onde estão afinal os puro sangue? Sair daqui dizendo que os ingleses são isto ou são aquilo é de uma ingenuidade sem precedentes!!! O mundo não acabou no dia 21 como esperavam uns idiotas pelo planeta a fora, mas um vulcão dos arredores começou a vomitar novamente e isto pode ser o princípio de nosso acerto de contas definitivo com as cinzas… Um judeu nada ortodoxo vai fazendo uma refeição completa no último banco do ônibus e o faz com tanta espontaneidade e falta de higiene que é difícil – mesmo sem ser antissemita, não olhá-lo com nojo e desprezo. Recordo por acaso que nos dias inesquecíveis e surrealistas que passei em Jerusalém indo do Muro das Lamentações ao Portão dos Detritos, de lá para cá como um trouxa, roçando as virilhas nas do populacho no interior daqueles muros crivados de balas, de estilhaços de bombas e de homens suicidas, tive um contato interessante com um armênio. Ora fazendo 144


fotos, ora idealizando palavras e textos,57 comendo falofel e esfias, fiz amizade com o dono de um pequeno atelier onde se manipulava metais e ferros, com os quais produziam panelas, facas, bacias, luminárias e até pequenos alambiques domésticos. Sempre que cruzava por aquele local e era visto por ele, era logo convidado a entrar para tomar um chá de hortelã ou para dar duas ou três baforadas num velho e fedorento narguilé trazido de sua terra natal. Quando soube que eu estava escrevendo sobre Caim e sobre a inveja, mostrou-me entusiasmado uma gravura de Tubal Caim na parede58 e foi revirar a papelada que estava num baú revestido de cobre e que havia pertencido a seus arquiavós. Colocou um calhamaço de pergaminhos rabiscado frente e verso com tinta vermelha em minhas mãos. Como os rabiscos estavam em árabe fiquei intimidado por não saber se estavam na posição correta ou de ponta cabeça, mas fui logo e gentilmente auxiliado por ele que se sentou a meu lado e foi me dizendo: “– Estes documentos tratam exatamente de Caim. De um diálogo secreto entre Caim e Deus. Claro que são apócrifos. Só tenho simpatia e interesse por documentos apócrifos. São os únicos que escaparam à falsificação da igreja”. Deixou-me ali com os pergaminhos sobre os joelhos enquanto foi atender dois turistas japoneses. Aproveitei para dar mais uma tragada naquele cachimbo fumegante que exalava um cheiro tipicamente mouro. Lá fora, a rua estreita estava congestionada por uma multidão ofegante e heterogênea 57 Foi essa prática compulsiva e esse resquício de uma estranha maldição que levou Lacan a escrever “ce câncer verbal du néologisme...”; Cioran a declarar que somos uma “race de phraseurs, de spermatozoides verbeux, chimiquement liés ao Mot”; e Nietzsche a convencer-nos de que “toutes les figures de la rhétorique – c’est-à-dire l’essence du langage – sont de faux syllogismes. Et c’est avec eux que commence la raison!”. 58 Pelas leituras que fiz, Tubal Caim aparece na literatura às vezes como o próprio Caim e outras como filho de Lamech e de Zillah, portanto neto de Caim. Teria sido ele a orientar seu pai, cego, a lançar uma flecha contra um suposto animal que estava atrás de um arbusto. Esse suposto animal era nada mais nada menos que o velho Caim, quem teve a traqueia atravessada por uma flecha. Para os maçons, por Tubal Caim além de ferreiro ter sido o inventor do compasso, do esquadro e do martelo, seu nome foi incorporado às bobagens da confraria e significa algo como “maçons trabalhando em busca da verdade”.

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que, em seu peregrinismo, quase não saia do lugar e que parecia indiferente aos dois soldados israelitas que, do outro lado, rente às muralhas seculares, brincavam com suas metralhadoras. Percebi que havia voltado a sentar-se a meu lado pelo forte odor de alho que exalava de seu corpo. Com um pequeno estilete deslizando por sobre as letras e com um ar de douto no assunto foi fazendo a leitura. “– Enquanto Adão e Eva se lançavam desesperadamente sobre o corpo morto de Abel, Deus tentava intimidar Caim com as mais variadas maldições e ameaças. Caim, porém, não se intimidou em nenhum momento. E mais, questionou a obra e os poderes divinos. Um Deus que cria um ser que morre com uma simples paulada no occiptal, não tem perfil para ser um Deus...” Repetiu esta última frase como se quisesse me horrorizar e antes de passar para outro pergaminho brincou: Seguimos em frente ou acendemos uma vela para xangô? Sorrio debochadamente e continuou a leitura. DEUS – Transformarei tua vida e a vida de teus descendentes num inferno e num martírio.. Teu corpo será teu suplício. Tudo te doerá ao longo de teus dias. Aquilo que mais te apetecer será exatamente aquilo que mais mal te há de causar. A coluna, os ossos, os dentes, os olhos, os intestinos, as articulações, o estômago, o cérebro. Enlouquecerás! Viverás literalmente cercado pela tua própria merda! Passarás toda tua existência só reparando e apaziguando teu corpo com tuas dores, mesmo sabendo que nada será verdadeiramente terapêutico e que não alcançarás nunca uma real estabilidade. Fracassarás em tudo. No amor, na política, na guerra, na amizade, na sabedoria, na compreensão até mesmo do mais banal dos mistérios. Acordarás cada dia com um transtorno diferente, tua obsessão pela xota será cada vez mais grave, ou então terás fobia por aquilo que as mulheres levam entre as pernas e te deixarás enrabar por outros miseráveis e desesperados como tu para satisfazer-te. Terás que comer de quatro em quatro horas e engordarás. Tua linguagem ficará cada vez mais confusa e caótica, servindo-te apenas para agredir e falar mal dos outros. Surgirão espíritos de porcos, padres e pastores por todos os 146


lados que, com suas mentiras, serão sempre um tormento e um estorvo para ti. Terás que trabalhar e odiarás essa necessidade, não saberás situar-te no tempo e envelhecerás atormentado por tuas lembranças. Tua intenção de agradar será sempre bajulatória e ambígua; tua fidelidade será interpretada como desdém; teu afago perturbará a ponto da mão que pretendia acariciar acabar asfixiando... Serás o perfeito lacáio da justiça e da polícia. Tua vida será uma escola de frustração e conhecerás enfim, o que é o verdadeiro sofrimento de não querer estar mais num determinado lugar sem ter outro onde poder refugiar-se. Envelhecerás, adoecerás e, por covardia, desejarás religar-te a mim, só que já não estarei mais em lugar algum. Morrerás e apodrecerás coberto de terra. CAIM – Eu e meus descendentes inventaremos a ciência, a lógica, as cidades, os esgotos, os analgésicos e as anestesias. Construiremos uma razão que transcenda o bem e o mal. Praticaremos ginásticas, yoga e comeremos ostras para fortificar nossos ossos. Treinaremos dentistas, nutricionistas, oftalmologistas, gastrologistas, neurologistas e psicanalistas. Viveremos de tal maneira que a estabilidade física e moral não nos sirva para nada e onde a culpa e o fracasso só nos farão ficar ainda mais obstinados. Instituiremos o esperanto como idioma universal, a feitiçaria e a capoeira como instrumento de defesa. Da política nefasta engendraremos o anarquismo, reduziremos o amor beato a sexo puro e a amizade a um simples brechó de conveniências. Inventaremos a anorexia, a aposentadoria precoce, o relógio, o ateísmo e o mal de Alzheimer, através do qual, ao invés de carregar a memória com todo esse morticínio hediondo que é a vida, mergulharemos voluntariamente numa penumbra de esquecimento. Não seremos bonzinhos, nem fiéis e nem escravos. Semearemos o caos dentro e fora de cada um. Inventaremos o suicídio e não passaremos em brancas nuvens pela indigência desse circo, pois saberemos administrar com nossas próprias mãos tanto a carícia essencial como os estrangulamentos necessários. E para evitar a promiscuidade de nossa carne e de nosso corpo com a terra – como pretendes – colocaremos a disposição de cada legião de cadáveres um ou 147


mais crematórios. O fogo será nosso cúmplice. As labaredas nos garantirão a assepsia que precisamos. DEUS – Mas nada disso te poupará do estigma, do degredo, da dor e do aniquilamento. CAIM – É verdade, mas saberemos olhar de frente para todo esse populismo ignominioso, para esse cortejo de trapaças, para essa imensa canalhice imposta sobre a humanidade e transformaremos o horror da morte na nossa maior recusa de ti... Como foi ficando visivelmente emocionando e celerado com aquela leitura a ponto de alguns transeuntes já terem se aglomerado na entrada da tenda aproveitei a presença de um novo cliente e me despedi com a desculpa descarada de que tinha um encontro marcado no sinédrio que ficava num subsolo dos arredores do Monte Sion. Militares com seus coturnos e com suas espingardas modernas, os muros milenares, as manchas de sangue pelo caminho do calvário, comidas, é necessário comer, mesmo que seja ao lado de corpos dinamitados. Herança de Caim – dizem. O que quer esse ser, afinal? Como não pode durar para sempre precipita o próprio fim ou a própria desgraça atrás da qual oculta todo seu horror de existir. Quem é que ainda não entendeu que não há maior tédio do que resumir o tempo em semear e colher. A terra está exausta de tantas sementes e de tantas colheitas, de tantos slogans, de tantos livros, dogmas, sonhos e artifícios para amenizar a sinistrose que nos espera lá na esquina. Um sino que gera melancolia. Quem é que viveu sua infância numa aldeia e que não mergulha subitamente na melancolia quando ouve um sino no final das tardes e, muito mais ainda, nos finais de domingo? Entre o sino e seu tocador haveria algo mais que apenas uma corda? Aos loucos ou aos visivelmente perturbados quase sempre se atribui esse papel lá no interior do Brasil e do mundo. Como se fosse um consolo, um remédio, uma terapia. No som de cada badalada se pode projetar todas as nossas queixas e todos os nossos mais incuráveis ressentimentos, e todos, evidentemente, relacionados às imagens fúnebres de si mesmo ou dos outros. 148


Atravesso o portal principal que dizem ter uns dois mil anos, todo crivado de balas, de flechas, de pedradas e de pólvora. As folhas pisoteadas de uma Cabala são arrastadas pela brisa. Quem teria tido esse gesto de transcendência e de cólera? Com certeza foi o mesmo que incendiou a Biblioteca de Alexandria. Um poema em hebraico rabiscado numa parede. Que dirá? O que é um poema senão uma espécie de epitáfio, de manifestação asmática, de pavor só em imaginar o maior de todos os desastres? Um cão vem lamber-me os tornozelos. Não sabe o mal que posso lhe fazer aqui do alto de minha hombridade. Naquela noite tive um longo pesadelo onde reescrevia obsessivamente uma frase de Baudelaire modificando-lhe cretina e dolorosamente uma das últimas palavras.59 Acabo de atravessar novamente Londres a pé. Algumas bolhas nos calcanhares e a urgência por uma toalete. De resto, só benefícios. Sempre que me perguntam por que diabos gosto tanto de viajar e de nomadear pela mesmice do mundo, costumo responder de duas maneiras. Dependendo do interlocutor, digo que é em solidariedade a Caim, àquele que desfechou uma paulada na nuca do irmão, ou então, que estou em busca da Pietra Filosofale. O pior é que algumas dessas toupeiras acreditam. Se é fácil saber onde habitam e fazer contato com os descendentes de Caim, não o é com relação ao refúgio dos representantes de Abel. Vivem ali nas áreas de dez mil dólares o metro quadrado, protegidos por cercas elétricas, câmeras, mármores e lacaios armados. Acordam ao meio dia, vão as patisseries, aos escritórios, às clínicas, às academias, aos salões, às compras... Regam uma orquídea aqui, uma magnólia ali e voltam para diante dos espelhos, do guarda-roupa, da TV e da geladeira. Vivem de ostentação, de intrigas, depilações, missas e joalherias. A família nuclear lhes parece o máximo. O tédio ronda o luxo, o ócio, a riqueza. Plásticas, hormônios, imensos automóveis, lustres de cristais pendurados nos 59 Tratava-se da frase do escritor francês que todos conhecem: “A arte é a infância reencontrada”. No pesadelo eu a reescrevia obsessivamente assim: A arte é uma infâmia reencontrada.

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caibros, festas, desfiles, surtos de caridade, de insegurança e de auto piedade. Cavalos, cães, souvenirs, cristais, esmeraldas, best-sellers, enfermeiros, médicos da família e a mãe sempre lá incentivando a inveja e a disputa entre seus descendentes... Se não estamos mais na época de Caim e Abel, convivemos compulsoriamente com os descendentes de Rothchilds, com os ídolos do futebol, todos analfabetos e todos milionários, com os idiotas de Hollywood, da Mercedes Benz,60 da literatura e da publicidade. Aliás, toda publicidade é Caim e anti-Caim ao mesmo tempo: – Se queres apagar a marca e diferenciar-te dos filhos de Caim sejas assim ou assado – recomendam esses pobres, excêntricos, feios, doentes e aos pedaços. Os prédios, as fábricas e os ministérios dos países pobres estão cheios de serviçais e de peões assalariados, cujas vidas não têm sentido. Gente cuja vida se reduz a uma espera tola e ridícula da velhice, da humilhação, da doença e da morte. Se Abel não usa o porrete como seu irmão, se vale do contrato de trabalho, das leis trabalhistas, da constituição, das encíclicas e do acosso para esfolar suas vítimas. Vencer e ser alguém significa deixar para trás os trejeitos cainianos e travestirse a qualquer custo. Imitar os personagens das novelas e mesmo que na essência se continue Caim para sempre – mal visto, mal dito e mal pago – é crucial confundir-se com Abel. Quando a tática do camaleão falha tudo fica mais difícil e a passagem para as prisões e para as penitenciárias fica mais provável. Lugares malditos lotados desse tipo de homem, iludido, despedaçado e esquizoide, que, se não pediu para nascer, tampouco é audacioso o suficiente como para morrer. Um traste. O autêntico legado da escravidão que, – segundo Joaquim Nabuco – apesar de hereditária, era a verdadeira mancha de Caim que o Brasil levava na fronte.61 As elites vadias e gatunas que não se cansam de falar em democracia, em confraternização e de “lamentar o mal” 60 Janis Joplin 61 Em O abolicionismo, 1883.

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precisam compreender que é hora de começar verdadeiramente a praticá-lo contra si mesmo. Que é tempo de implodir a obra! O jardim calcinado! O porco gordo arquetipal! As banhas pútridas que cobrem os ossos, o homúnculo contrafeito, a mentalidade zebu, a buona vita reles e ordinária que – como dizia Borges – não é mais do que uma superstição estatística. O episódio da cadela japonesa salva num telhado que boiava ao mar foi obra de Caim, o mesmo Caim que moveu as placas teutônicas lá no fundo das águas e que soprou o tsunami sobre as cidades e sobre os de sua raça. Como interpretar a inércia de Buda? Caim dos terremotos, dos incêndios, dos tremores. Caim supremo bem, Caim supremo mal. Foi Caim que cobriu o Haiti de escombros para demonstrar que o vodu e um montículo de merda é a mesma coisa. Além de um corvo que pousou na janela de meu quarto para roubar-me o único pedaço de queijo da semana, até agora não avistei nenhum mosquito, nenhuma barata, nenhuma mosca, nenhuma borboleta, nenhum morcego, nenhuma pulga, nenhuma formiga, nenhum percevejo, nenhum rato, nada. A Peste Negra de 1348 que reduziu a população pela metade parece ter-lhes dado uma boa lição nesse particular, mas, por outro lado, todo mundo correndo desvairadamente. Money, money, money! Os americanos herdaram daqui a ideia obsessiva, demente e suicida de “fazer dinheiro!”. É até difícil andar calmamente e em pleno vagabundeio sem ser atropelado. Sorry... sorry.... sorry... Sorry um caralho! No mínimo acham que você está com algum problema de coluna, com uma hérnia exposta ou com o nervo ciático à flor da pele. Tive uma vizinha que dizia nervo asiático. Será que já era um preconceito inconsciente? Entram correndo nos ônibus, nos taxis e nos trens e saem igualmente correndo. Pressa, muita pressa, todo mundo olhando afobado para os relógios das torres, falando ao celular, lambendo alguma coisa, rindo sozinhos com seus fones de ouvido e se debatendo com a multidão igualmente acelerada... A inglesa que está sentada à minha frente no trem entrou com duas bolsas e fones de ouvido. Abriu imediatamente uma apostila, leu dez linhas e puxou um celular branco do bolso direito. Quando interrompeu a ligação passou a procurar 151


alguma coisa numa das bolsas. Voltou a falar agora através de um celular preto. Desligou e voltou à apostila, olhou no relógio várias vezes. De repente descobre que nem sabe em que estação estamos. Arruma o cabelo, parece que vai descer na próxima mas não desce etc., etc... Ansiedad!!! Quando é que tomaremos consciência de que todos os cofres estão vazios??? Às vezes chego até a olhar pelos lados para saber se tem algum aviso de tsunami, se os irlandeses ou os discípulos do Bin Laden colocaram uma bomba por aí, se está despencando um prédio, se as águas do Tâmisa estão invadindo as cavernas do metrô, se outro incêndio igual ao de 1666 está se espalhando pela urbe ou coisa parecida... Mas, curiosamente, está tudo na mais santa e monárquica ordem. Devagar mesmo só uma velhinha que leva todo seu acervo de porcarias e todo seu patrimônio num carrinho de mercado, os barbudos homeless e alguns imigrantes que estão com a sorte definitivamente lançada, isto é, atravessada por uma lança. Por falar em homeless, depois daquele de Tenerife que na semana passada decapitou uma senhora e saiu correndo do mercado com sua cabeça na mão eu mesmo fiquei mais ligado nos daqui. Descobri casualmente (pelo cheiro) que alguns dormem durante o dia atrás dos bancos de uma igreja que fica ao lado da National Gallery e também lá na Saint James church. Mas voltando a correria cotidiana, se é verdade o que dizem os especialistas, que a obsessão de Don Juan em suas conquistas não era para “pegar mais uma”, mas para, finalmente, “pegar a última”, talvez se possa dizer o mesmo desses apressados. Será que querem chegar mesmo a algum lugar específico, como parece, ou, simbolicamente essa disparada toda é apenas para escapar de si mesmos e portanto um signo de quanto estão querendo é chegar de uma vez por todas “ao fim?”. Como diria João do Rio – o mais genial escritor brasileiro – : “ disparam na mesma ânsia de fechar o mundo, de não perder o tempo, de ganhar, lucrar... (...) os nervos a latejar, as têmporas a bater na ânsia inconsciente de acabar...” Nem preciso lembrar que o Museu de História Natural é o que existe de mais interessante na cidade. Só a imagem do velho Darwin nas escadarias recepcionando a turba – inclusive os 152


criacionistas que, aliás, são a maioria – já é o máximo, um flash na formação intelectual ateísta dos alunos que lotam as galerias. Sugeri várias vezes aos doutores-professores que conheço para que substituam as velhas monografias e as inúteis teses de conclusão de curso pela obrigatoriedade do formando dar a volta ao mundo antes de receber o título. Que nada! – Quem pagaria a conta? Perguntam fingindo-se de bestas. – Ora, quem??? As mesmas instituições que atualmente apoiam apenas os compadres ou apenas os mesmos e picaretas narcisistas de sempre... Mas voltando ao Museu, dediquei este dia apenas à parte dos minerais, isto é, às pedras. Quem é que não se lembra do livro: A vida secreta das pedras, que os esotéricos (mais materialistas) dos anos 80 tinham sempre na mochila? Fotografei as mais luminosas e fui anotando alguns dos nomes que me pareciam mais sugestivos, os geólogos devem saber a que tipo de material eles remetem: Chalibyte; Dolomite; Parkinsonite; Gagarinite; Goethite; Hematite; Sussexite; Papagoite; Miserite; Varulite; Gypsum; Brazilianite; Zapatalite; Apatite; Genthite; Pennine; Saponite; Spinel; Halite; Nagyagite etc. No andar de baixo, no setor dos pássaros, estamos (patrioticamente falando) representados pelo pica-pau, pelo beija-flor e pelo tucano... (por coincidência, três bichos com características particulares relacionadas ao bico). Quando avisaram que o museu iria fechar as portas, saí cheio de contentamento para a grande avenida que fica ao norte e segui a pé, meio sem rumo, ora guiado pela intuição, ora pela lua ainda anêmica, na verdade, apenas uma promessa de lua, que fez-me resmungar novamente um fragmento de João do Rio: “e só, no céu calmo, como uma hóstia de tristeza, a velha lua esticava a triste foice do seu crescente...” Todas as noites londrinas são turbinadas e no lugar onde menos se espera está acontecendo uma festa, uma bebedeira, um Concert, uma orgia dionisíaca. Ali um grupo de alemães que não consegue parar em pé; acolá uma tropa de italianos que vão olhando as estrelas e parlando no volume mais alto; brasileiros de braços dados com a mesma paranoia que sentem lá no país de origem; franceses discretos com crianças no pescoço; 153


mulheres sem nacionalidade, espanhóis que vieram em busca de emprego; gregos fugindo da falência; indianos, árabes, russos, gente de todos os tipos, cores, composturas. O Reino Unido que não caiu na falácia do Euro parece, com sua Libra continuar sendo a Terra Prometida. Uma livraria no caminho. Na primeira prateleira de livros franceses um do tenebroso Gérard de Nerval, Les chimères. Dou uma folheada e encontro está pérola depressiva: “Je suis le ténébreux – le veuf –, l’inconsolé, Le prince d’Aquitaine à la tour abolie: Ma seule étoile est morte, – e mon luth constellé Porte le soleil noir de la mélancolie”.

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[11] Raça de Abel dorme, bebe e come satisfeita porque Deus te ama. Raça de Caim, morre de fome, rasteja na miséria e na lama. Raça de Abel, o teu sacrifício sobe às narinas do Serafim! Raça de Caim, o teu suplício será que algum dia vai ter fim? Raça de Abel, como sempre ganhas, com teu gado e tua plantação. Raça de Caim, tuas entranhas ganem, uivam mais que um velho cão. Raça de Abel nina o corpanzil no aconchego de um lar ancestral. Raça de Caim, no teu covil, treme de frio, velho chacal! Raça de Abel procria e constrói! Teu ouro também se reproduz. Raça de Caim, coração dói; Tanta fome, onde te conduz? Raça de Abel cresce e devora, engorda, parasita daninho! Raça de Caim, estrada a fora, foge tua família sem ninho. Charles Baudelaire (Em Flores do Mal)

Uma caminhada planejada frente à Câmara dos Lordes apenas para materializar a memória e a admiração pelo poeta Lord Byron, autor de Horas ociosas e do Mistério de Caim. Byron, um nômade inveterado, mulherengo e cachaceiro que praticou incesto com a irmã (como Caim) e morreu aos 36 anos lutando contra os turcos pela independência da Grécia. Num fragmento do Ato I de seu texto pode-se ouvir Caim esbravejando: ¡Y esto es vivir! ¡Trabajo! ¿Por qué he de trabajar? Porque mi padre no supo guardar su sitio en el Edén. ¿Y yo qué hice en eso? No había nacido: no elegí nacer: ni amo el esclavo que me encontré al nacer. ¿Por qué él a la serpiente y a la mujer cedió? ¿Y así, por qué sufrir? ¿Qué había en todo esto? Ahí estaba el árbol ¿y por qué no para él? Si no, ¿Por qué ponerlo junto a él donde estaba, en medio, el más hermoso? A todas las preguntas dan la misma respuesta: “Tal fue su voluntad, y EL es bueno.” ¿Y yo cómo lo sé? Poderoso, ¿Ha de ser también bueno? Lo hizo por los frutos – y amargos- con que debo vivir, por una culpa no mía. Caim, o primeiro ser humano a nascer através de um corpo e portanto o primeiro a experimentar a clausura uterina e o canal vaginal. Líder mafioso dos arcanjos, dos querubins e 157


dos Serafins, além de não doar seu coração a deus nenhum,62 povoou a terra de malandros, charlatães e de ateístas. E o dilúvio, planejado para varrer do mapa seus descendentes foi uma falácia. Como ainda não se sabia da existência dos genes, acreditava-se que os descendentes de Set eram filhos de Deus e os descendentes de Cain filhos do homem. Mas tudo já estava contaminado pelo fratricídio e pela insanidade… Como já disse, sinto-me até envergonhado por construir este texto sobre esse mito bíblico tão tolo e tão bizarro. De uma hora para outra Londres escureceu e esfriou. Dois mórmons atravessam a rua em frente a Estação de Paddington e quase são atropelados por um ciclista. Para eles a pele negra é a marca que Deus colocou em Caim. Para outros, a marca seria o gigantismo. Caim Golias! Caim incorporado tanto nos gigantes como nos minúsculos seres descritos por Gulliver. Difícil esquecer que estamos no século XXI. Acabo de receber um alerta contra um vírus que ronda os computadores. Seu nome? Caim. Ave agoureira! Arquétipo conhecido da criminologia. Caim ou Abel? Vive-se oitenta anos fragmentado, dividido, boiando numa alteridade semidemente, querendo ser Um e sendo Outro, querendo ser Outro e sendo Um. Ora sendo Um, ora sendo Outro, não chegando nunca a ser verdadeiramente algo completo. Uma personalidade volúvel, bipolar, escrava de um mito e de uma lenda que insiste em imputar-lhe a maior das culpabilidades. Isto, sem falar dos casos onde o cérebro se move a favor de Abel e os afetos na direção de Caim ou vice-versa. E a mentira e a dissimulação sempre instaladas entre um polo e outro desse pêndulo reloucado, dessa máquina de rosnar e de reclamar. Mau humor, distimia, descontentamento. Os momentos de êxtase são praticamente só a custa de cocaína e de santo daime. Claro que as prosas íntimas e as orações também induzem esses seres híbridos a um pseudo-enlevamento e a uma relação com o caciqueiro do além. Depois a madrugada paralisa tudo com sua peçonha e cada um 62 Caim, – escreveu Santo Agostinho depois de uma vida prenhe de putarias – deu a Deus boa parte de seus bens, mas não deu a ele seu coração. (De Civitate Dei, XV, vii)

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começa a padecer em seus respectivos pesadelos. Sobre o criado mudo A carne. Livro de Julio Ribeiro que foi quase a primeira leitura de minha adolescência. O estou relendo quarenta anos depois. Este que foi minha cabala juvenil. Prova incontestável de que os adolescentes se contentam com qualquer bosta! Gritos. Brigam em outro idioma no saguão do hotel. Estou em outro país, há vinte horas dos tiroteios de minha terra natal. Tenho a impressão de ouvir a palavra salafrário. Empurramse. Exumam antigos ressentimentos. Esmurram as paredes, dizem-se coisas terríveis, mas sublimam o ato primordial, a mão que procura ávida pela carótida do outro. Fratricídio! Toda guerra, seja pessoal ou nacional é fraticida.63 Toda briga e toda desavença envolve um ou mais dos pecados capitais. O ciúme mais do que a inveja. Irmanar o quê neste covil de crueldade?64 Santo Agostinho, esse perverso convertido, não se acanha de, em suas Confissões, assumir que teve ciúmes (desejo de estrangular?) seu irmão de leite. Será que viver é ir fazendo as pazes com o chacal que cada um leva dentro de si? Chegar a ser, em algum momento, o suficientemente descarado para assumir que se é o guardião da tumba e dos ossos de Caim? Será que algum dia a filosofia e a sabedoria poderão vir a ser calmantes para os chiliques para esta fera nefasta e traiçoeira que encarnamos? Dos cento e tantos cemitérios que há em Londres sete são considerados mais importantes, o Highgate, onde está Karl Marx, é um deles, o de Bunhil Fields, que guarda as ossadas de William Blake e de Daniel Defoe, o Kensal Green e o de Brompton, com seus corvos etc. Tenho em meu “Curriculum” os registros dos cemitérios gregos, dos chineses, dos de Buenos Aires, México, Paris, o judeu de Praga, o Kerepeto Temeto de Budapeste, 63 Subjugado e acorrentado na prisão de Guantánamo, um suposto chefe da Al Qaeda (Jalid Sheij Mohamed) acaba de declarar: “A guerra começou desde Adão, quando Caim matou Abel e continuou até a atualidade e nunca vai parar de matar pessoas” Ver El País, Madrid, 16-03-2007. 64 “Cain n’est pás lê frére d’Abel – dizia Emmanuel Lévinas –. La vrai “fraternité” doit se funder après lê scandale de ce meurtre”. In Qui êtes-vous?, p. 109. Citado por Gilles Hanus, em seu artigo L’universel en question.

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os de Roma, os lusitanos, o de Veneza, na ilha onde jazem sem remédio e sem chances de ressurreição as cinzas de Ezra Pound. Conheço o de Goiás Velho onde foi depositado o féretro de Cora Coralina, os de São Paulo, os de animais de Brasília, os de Tanger, onde está o corpo maldito de Jean Genet, os de Barbacena, onde fotografei até caveiras fora das tumbas. Os do Nepal, os do sertão do Cariri, os crematórios de Benares, Macau, Hong Kong, os de Madri e Barcelona, o de Havana etc., etc. Sempre que me perguntam quê obsessão é essa, eu os engano mencionando um suposto interesse pela “arte mortuária” ou outras bobagens da dita pós modernidade. Claro que não tem nada a ver. Interesse pela arte porra nenhuma! Estou apenas tentando acalmar minha curiosidade e minha ansiedade com relação a esse trágico destino e, quem sabe, encontrar elementos para inventar a minha ars moriendi. Mas já sei que não há chances! Apesar de todos os truques físicos e metafísicos engendrados pela cultura para tentar negá-la e ocultá-la, a morte continua sendo a maior de todas as sacanagens que a existência armou em nossa estrada, tanto na dos homens como na dos ratos, dos cachorros, dos percevejos. Morrer e apodrecer é um horror, uma nojeira inqualificável. E não há mentira ou promessa que console os condenados à morte. A hipótese de um Deus ou de outra vida – por exemplo – além de cabotina e descarada agrava ainda mais essa desgraça. Se existisse um arquiteto ou um responsável por essa história toda, é bem provável que seria chicoteado, apedrejado e decapitado pelo populacho. Ou não? No Cemitério de Brompson, os corvos dão um aspecto ainda mais macabro ao ambiente. Voam famintos de tumba em tumba em busca de uma migalha qualquer de osso ou de pele. No Highgate, como já lhes disse, está a tumba de Marx. Paradoxalmente, só ali ele conseguiu livrar-se para sempre dos furúnculos que o atormentaram por toda a vida. A cripta de Alexandre Fleming (o da penicilina) está na Catedral de São Paulo; Tomas Morus (o da Utopia) está na Torre de Londres; na Abadia de Westminster estão Charles Dickens, Lewis Carrol, Rudyard Kipling etc; Peter Sellers (o cômico) está no Golders Green Crematorium. Ali também estão 160


as cinzas de Freud depositadas no interior de um vaso grego e também as da bailarina Anna Pavlova. Michael Faraday (o da eletricidade) está no The West Cemitery; William Hogarth (o pintor) repousa no Chiswick Old Cemetery e no Kensal Green existe um monumento para a Princesa Sophia. O grande Charles Chaplin Senior (music-hall) está no Lambeth Cemetery & Crematorium. O linguista e errante Sir Richard Burton está no St Mary Magdalen’s, Mortlake; Jack Williams (o socialista) aguarda pela revolução no Walthamstow Cemetery. O banqueiro Nathan Meyer Rothschild (esse sim pode considerar-se um vencedor) está no Brady Street Cemetery. Thomas Crapper (o inventor da toalete moderna) descansa no Becknham Crematotium & Cementery, e Anna Sabatini (a música) tem um monumento no Sutton Cemetery.

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Caim depois de matar Abel / Henri Vidal, 1896

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[12] “Perguntem pois ao asno ou ao carneiro de Abraão ou aos viventes que Abel soube oferecer a Deus: eles sabem o que lhes ocorre quando os homens dizem ‘eis-me aqui’a Deus, e depois aceitam sacrificar-se, sacrificar seu sacrifício ou perdoar-se” Jacques Derrida (Em O animal que logo sou)

Com o movimento hippie aniquilado e sepultado, a obra quase completa de Herman Hesse foi ficando no lugar menos acessível da prateleira. A poeira que vem em revoadas até o quinto andar vai aos poucos aterrissando e colorindo suas lombadas onde pequenas aranhas, em sua solidão aracnídea, também excretam de vez em quando sua gosma. É com uma autentica nostalgia que volto às páginas rabiscadas desse autor alemão que em uma de suas obras também ressuscitou a velha lenda cainesca. Sinclair e Demian reencenam a problemática afetiva vivida pelos filhos de Adão. Numa Alemanha ainda fedendo a pólvora e a cadáveres Hesse, para quem todo sentimento é bom, muito bom, até o ódio, até a inveja, até o ciúme, até a crueldade tenta romanticamente conciliar os opostos. O yin com o yang, o bandido com o santo, a puta com a freira... Ao invés de interessar-me pela obra sou tomado por uma curiosidade quase perversa pelas anotações e observações que fiz nas margens e nas entrelinhas deste texto trinta e tantos anos atrás. Londrina não tinha nada de Londres, mas fervilhava de aventuras e de promessas. Mesmo que se vivesse sempre com os bolsos vazios, de migalhas, de pensão em pensão, de biblioteca em biblioteca, nada e nenhum dos problemas cotidianos eram capazes de competir com as artimanhas e o exagero de nossa libido. Cafezais imensos e silenciosos onde à sombra sempre brotavam alucinantes cogumelos. A gritaria das meninas castas em seus uniformes curtos, seus olhares maliciosos no portão dos colégios reavivava em nós a hipótese do inferno eterno mas também a ideia fixa de que a castidade era uma das mais sofisticadas formas de luxúria. O lago 163


imóvel nas noites enluaradas, o som vibrante de um violino vindo de uma pequena varanda e dos arredores o cheiro da selva em chamas, já quase completamente devastada para ser transformada em cafezais. Cada um daqueles fazendeiros ignorantes e barrigudos se achava no direito de derrubar pedaços imensos da floresta quando e como bem entendesse, ao mesmo tempo em que os exércitos e todos os tipos de policiais da região caçavam ecologistas, intelectuais, artistas, comunistas e confiscavam suas bibliotecas, suas agendas, suas vidas. Jamais se viu tanta burrice em tão curto espaço de tempo. Iguais aos antigos inquisidores os militares justificavam seus crimes como se fizessem parte de uma cruzada para eliminar a semente de um Caim sociopata, ateu e anticapitalista. Até donas de casa que não sabiam nem limpar-se o cu cochichavam entre elas sobre um tal Karl Marx que era a reencarnação do demônio. Lênin, então, era um Caim piorado mil vezes e Trotsky, um monstro russo que bebia até sangue menstrual das mulheres e filhas dos ruralistas. Uma mediocridade infame envenenava as ideias e os sentimentos daquela cidade. O medo estava na pauta de todos os dias enquanto bandeiras tremulavam diante das cadeias, das faculdades, dos quartéis e exibiam aquelas duas tolas palavras pirateadas de Augusto Comte: Ordem e Progresso. Só que o que se via por todos os lados era exatamente o oposto: uma zona generalizada, casuísmos sociológicos e celestes por todos os lados, um caipirismo escatológico associado à corrupção fardada que é sempre a mais suja, um provincianismo e um subdesenvolvimento de dar pena, do qual ainda não estamos curados. Para a população, dependendo da crença e da ideologia, Caim eram os generais, os torturadores, os agentes da CIA que se disfarçavam de professores, de hippies, de diretores de teatro, de maconheiros, e até de prostitutas. Sem falar dos empresários que financiaram a repressão e das alas da igreja que confessavam e comungavam os assassinos... Para o outro bando, Caim eram os guerrilheiros, os subversivos, os barbudos, os aliados de Moscou, de Cuba e da Albânia, Marighela, Carlos Prestes e qualquer um que vomitasse ao ver uma patrulha militar ou que manifestasse abertamente sua 164


preferência pelo homo ludens em contraposição ao homo faber. Caim era uma metáfora que servia para denegrir quase tudo. Para uns havia sido ele quem arquitetou a farsa do Cavalo de Tróia, a construção das pirâmides e mesmo os hieróglifos. Para outros a teoria da relatividade e a consequente bomba atômica haviam sido artimanhas suas para, cedo ou tarde, detonar o planeta e outros anexos da obra divina. Até o heroico Simon Bolívar usou Caim como metáfora de mau caráter para atacar a nação peruana. Em uma carta de 1928 dizia: “O Peru é o Caim da América Latina”. Mesmo pessoas cultas que poderiam muito bem valer-se de outras referencias e de outros mitos envolvendo brigas entre irmãos – Etéocle e Polynice por exemplo – insistiam em Caim e Abel.65 Depois aquele circo sanguinário e hermético foi passando, as fantasias caudilhistas se sublimaram, os generais, os torturadores e os presos foram enlouquecendo e morrendo. Finalmente livres, com Deus proscrito e com Satanás aniquilado, os que sobreviveram trocaram de identidade, foram anistiados, receberam indenizações milionárias, se converteram, fizeram plásticas, chegaram ao poder, fundaram jornais e faculdades, descobriram as delícias do dinheiro, trocaram o guarda-roupa, esqueceram todas aquelas bobagens e mergulharam descaradamente no cinismo, na roubalheira, no luxo e na amnésia... Somos de uma espécie tão precária afetivamente que passamos a vida inteira sem ter muita clareza sobre o que queremos e o que sentimos, nos adaptando como camaleões a quase tudo. Mesmo num caso tão extremado como o de Hitler – lembrando de Sandro Toni, em seu ABC de la maldad, p. 224 – “si hubiese ganado hoy diríamos que era un santo hombre”. Mas mesmo no meio daquela mixórdia social e política, quem é que com dezenove anos não arrumaria tempo para ir exibir-se na feira japonesa dos sábados com o Lobo da Estepe lido e relido em baixo do braço? Os cheiros semiorientais, uma trouxa de kobô, bardana, iriko, algas marinhas e humeboshi. No meio de abóboras uma réplica em bambu 65 Na mitologia grega eram filhos de Édipo e de Jocasta. Eles também disputaram “a bala” o trono e o poder de Tebas.

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do vapor Kasato Maru. Sayonará! Atrás daqueles sorrisos budistas as marcas do feudalismo oriental e quase sempre uma gastrite em evolução, sem falar da memória melancólica dos navios superlotados vindos de Tóquio, do preconceito, do desprezo e da humilhação sofrida no Brasil. Um enigma ainda não decifrado pelos sociólogos tem sido o fato de que quanto mais mestiço é um povo mais racismo carrega dentro de si. Quem nunca viajou não tem elementos para saber o genuíno sentimento de um forasteiro. Como fuga e como remédio cavar como tatus e como répteis a terra vermelha e fértil, de madrugada a madrugada, de sol a sol, de mágoa em mágoa. Ganhar muito dinheiro para levantar e modernizar o Japão, dar vida longa a Hiruíto, recuperar Hiroshima66... A primeira pedra de um museu histórico, um templo budista, um pequeno sino trazido de Hokkaido, um lago com carpas e o sonho de ter um filho doutorado em bioquimica. Sayonará! Música de Sakamoto, bolinhos no vapor, shoyu, G. Oshawa e o Cavalo Selvagem de Mishima. Sayonará! Neste mês de maio o sol começa a aparecer sobre Londres já lá pelas 5 da manhã. Alongo as canelas, massageio os pés e caio no mundo como numa homenagem a Caim, esse precursor das grandes caminhadas e das grandes viagens a pé e dos andarilhos. Antes, muito antes de Mao Tse-tung empreender sua Grande Marcha, antes de J. Lacarrière e antes de E. Fisset, Caim já era um trota mundos e já havia inaugurado o gozo dos intermináveis trottoirs a pé.67 66 Apesar de muita gente impulsiva acreditar que só os filhos de Caim poderiam ter lançado as bombas sobre o Japão, a história não deixa dúvidas de que foi o dedo de Abel que pressionou o disparador. A falsidade, a dissimulação, o transtorno imperialista e um narcisismo confundido com patriotismo tem sistematicamente confundido e enganado o populacho. Depois de meio século ainda não foi esclarecida a questão referente ao “dia da infâmia”. Teria sido o dia em que os japoneses atacaram Pearl Harbor – como querem os gringos – ou o dia em que estes lançaram as bombas sobre Nagazaki e Hiroshima? Talvez o mais melancólico dessa idiotice maniqueísta e dessa disputa idiota entre os filhos de Deus e os filhos de Caim, seja concluir que o que houve realmente foi um sutil cruzamento entre os dois bandos. 67 “Pas après pas le tour de la planete”. L’ivresse de la marche, p.31. Émeric Fisset. Transboréal, Paris, 2010.

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Olha lá! Olha lá!, Caim trôpego cruzando neste instante por Piccadilly Circus.Morning, mister Caim! Morning mister Caim!!! Apenas olhou-me arrogante com olhar de cólera e seguiu de cabeça erguida pelos rumos do Covent Garden onde os abutres dividiam uma imensa paella, sem responder-me. E era ele com certeza! Era o próprio. Seu passo era típico do monarca máximo do niilismo, pai de todas as guerras e fundador da misantropia! Em sua expressão ficava claro que ele era quem deu um jeito de fazer Buda nascer por uma flor de lotus. Que foi ele quem cravou a lança no tórax de Cristo, quem arrancou os dentes de Bakunin, quem meteu duas balas nas costelas de Lênin, que cortou a cabeça de Lampião, quem levou o copo de cicuta a Sócrates e quem teve a idéia de implantar uma próstata lá no fundo do reto. Acreditem, era Caim, o vi com meus próprios olhos!!! O legítimo Caim, aquele que abriu as comportas do dilúvio sobre o mundo... E tudo numa boa. Sem estresse, sem culpas e sem fanfarronices. O mesmo que tramou as coordenadas do vazio ontológico, quem fez Einstein engendrar as fórmulas principais da bomba atômica e quem orientou Giordano Bruno a como tirar o sono da cúria romana. Foi ele que ensinou Paganini a tocar só com uma corda e mais, feita com as tripas de sua mulher! Caim Gandhi masoquista! Caim Brigite Bardot: a galinha loura que enganou um bando de trouxas. Caim sempre além do bem e do mal plagiado por Nietzsche. Foi Caim que meteu uma bala na testa dos Kennedy quando eu tinha apenas quinze anos e foi também posseiro e jagunço de meu pai. Ainda o vejo cavalgando uma mula cinza, dois revólveres na cintura, um chapelão de pano enfiado até os olhos e as botas arrastando na poeira. Caim, o inspirador de todos os justiceiros da estória e inclusive quem teve a ideia de aqui nesta cidade monarquista incitar os forasteiros a buscar a iluminação suprema discursando lá no Speakers corner do Hyde Park. Acreditem: Caim passou por Piccadilly Circus neste momento! Ia dentro de uma túnica preta como um demônio e em silêncio. Caim Zen, faquir e membro da máfia nepalesa! Caim Shiva, Vixem e Brahma, o Deus destruidor do 167


mundo, com seus múltiplos braços, uma grinalda de crânio e de serpentes. O conheci em Nova Déli, viajamos juntos para Benares para tocar fogo nos corpos que nos esperavam envoltos em lençóis laranja e amontoados às margens do Ganges e dois dias depois jogamos bacará na mesma mesa num cassino de Macau. Caim patrono de todos os leprosos indianos que com seus dedos mutilados nos acossavam pelos becos implorando por uma migalha ou pedalando seus riquixás no nosso encalço. Caim que matou Abel para apropriar-se de seu rebanho foi o mesmo que, na semana passada administrou a matança de búfalos numa comunidade delirante do Nepal e quem me conduziu pelo Deserto de Merzouga numa Mercedes preta dando voltas no meio das dunas propositadamente para que eu não soubesse mais onde estava minha sanidade. A marca das serpentes na areia fina e tórrida e a morte aparecendo junto com a noite, mas, por sorte, débil como uma rã mutilada. A voz saindo dura e ameaçadora das mesquitas, Caim no alto dos minaretes levando na mão esquerda o mesmo pedaço de osso com que assassinou seu irmão. Caim nos labirintos das medinas, engenheiro, arquiteto e torturador de Guantánamo. Caim vendedor de gafanhotos em Bangcoc e infiltrado no caixão de Mao Tsé Tunga na Praça Tianamen. Caim Judas Iscarioti acumulando moedas por aí; Caim ressentido com José Saramago e com outros padres da literatura, Caim cortador de cana em Cuba, amante de Madonna e o ideólogo do Alzheimer no speakers corner esgrimindo palavras com o Satã de Milton. E por falar em Speakers corner, eis aí um espetáculo imperdível e gratuito dessa espécie, garantido para todas as tardes de domingo lá no Hyde Park, próximo a estação Marble Arch, onde desvairados de todos os tipos ficam discutindo até a exaustão sobre assuntos “transcendentes”. Com algumas exceções os papos e as discussões mais acaloradas são só sobre Deus, Jesus, Jeová, Maomé, Buda, etc., etc. Os árabes – que são a maioria – tendem a misturar politica e negócios com islamismo, mas no geral cada um (judeus, católicos, muçulmanos, budistas, milenaristas, o diabo-a-quatro) está com seu “livro sagrado” aberto, confrontando trechos “sagrados” 168


com os dos outros, interpretando virgulas, inventando bobagens históricas, mostrando contradições, ridicularizando o “adversário”, garantindo que só ele tem a chave do Reino dos céus etc. Curiosamente, não ouvi ninguém mencionar a Caim. O que é mais impressionante nessa turma é a capacidade de suportar a critica. Em alguns momentos tem-se a impressão que irão partir irremediavelmente para pauladas ou facadas, que acontecerá irremediavelmente um crime religioso naquele final de dia, mas logo tudo se esvazia e voltam ao início da discussão dando um show de tolerância e de dialética, mas só até que outro tome a palavra e tudo recomece. Se colocam mutuamente o dedo na cara, fazem bocas, abrem os braços em desespero e em deboche, exibem um trecho sublinhado do Talmude, do Corão ou de outros livretos que nem identifico e todos se amontoam imediatamente para lê-lo. Silêncio por um segundo, logo dez falam ao mesmo tempo. Quem está sobre a escada, sobre um poste ou sobre um caixote ouve atentamente e depois fulmina uma por uma as contestações dos adversários... Quem está a favor do palestrante num momento, alguns minutos depois, por uma palavra a mais ou a menos, já não está mais. Pronunciam My God com uma certeza e com uma prepotência invejável. Cada elemento de nossa espécie desenvolve em si, como desenvolve um braço, um pulmão etc, um “caráter”, uma “personalidade”, um “carma”, um “ego” ao redor do qual passará moendo e remoendo a vida inteira, tentando justificar-se, defender-se, provar-se, convencer-se de que seu mal tem algum sentido e alguma razão. Observem a expressão de um morto (antes das maquiagens funerárias), o rosto é como se fosse o hard disc onde estão contidas todas suas frustradas batalhas. Algumas discussões descambam para o idioma árabe, outras para um inglês africano, outras nem sei para qual dialeto. Mas isto não atrapalha em nada, não é necessário entender o que dizem, só a coreografia e a mise-enscene dos personagens já é uma prova de que alguma coisa não deu certo nesta espécie. A multidão se aglutina ora ao redor de um, depois passa para o outro, participa aqui, participa acolá, sempre com argumentos e com expressões corporais 169


veementes. Curiosamente, não vi nenhum nativo (inglês) branco e luterano metido nessas intermináveis exegeses. Os próprios policiais, mesmo quando os gritos aumentam e as discussões descambam para o caso da Líbia, da Síria etc., ficam só olhando de longe, cheios de tecnologias repressivas e com aquele jeitão de patetas, como se soubessem que todo aquele blábláblá acabará em dois beijinhos nas faces, e que Deus, o Deus de todos os oradores está mesmo é lá nas caixas fortes do Thomas Cook... E depois, – agora me vem esse insigth – pode até ser que toda essa “liberdade” de expressão seja um truque monárquico para dar chances a essa turma de apátridas fazer semanalmente sua santa catarse. Ou não? Quando dá 18:00 horas em ponto os muçulmanos se jogam no chão para a tradicional oração, ficam ali uns segundos, logo se limpam os joelhos e voltam para a defesa do Corão e de Maomé. E lá estão os judeus prontos para contestá-los, os católicos para defender a santificação do prepúcio, uma velhinha demente distribuindo folhetos da virgem, os hare krishnas com seus sininhos infantis, os milenaristas jurando que o mundo irá acabar mesmo, agora dia 21 de maio, um vietnamita que não teve público, e uma senhora elegante e defensora dos animais ela, pelo menos, ao invés de God fala soberbamente em Dog. Vejam que descoberta, as letras são as mesmas!!! Um negro com um chifre no alto da cabeça, um velho anarquista, um grupo de misóginos, um representante dos homeless, dois padres com longos crucifixos sobre a barriga e outros loucos de Deus e Caim no meio de tudo. Se aqui em Londres é assim hoje, na Era do Macintosh, imaginem como deve ter sido essa discussão lá na época que compilaram o Velho e o Novo Testamento onde reinava a mais absoluta ignorância! Imaginem como deve ter sido lá na época em que Noé, descendente de Caim, enfiou um elefante e um búfalo numa gôndola, na época em que inventaram a balela do Messias, na época que Buda, com aquela barriga cheia de vermes, foi abortado das entranhas de um lótus, na época em que Caim (o primeiro macho da humanidade) eliminou um quinto da população com uma única bordoada e na época em que Satã saiu abrindo zonas, farmácias, cachaçarias, lojas de 170


suspensórios, hospícios, livrarias, sacristias, barbearias, e sex shops pelo mundo a fora... Por uma via ou outra sempre acabam me chegando notícias do Brasil e daquela mortandade interminável. Como é possível que um povo, uma nação, uma sociedade consiga viver com tantos assassinatos, roubos, acidentes de automóveis, ruína de prédios, medievalismo das prisões, massacres, religiões, roubalheira, pobreza, mentira, alcoolismo pra lá de patológico, cinismo descarado, falência total da dignidade, máfias de todos os calibres no clero, na política, no comércio, na polícia, no mundo acadêmico, nas transações amorosas? E não haverá remédio para os próximos séculos. Milhares e milhares de bebês, nascem todos os dias nos subúrbios edificados sobre lixões, de pais dementes, aloprados e loucos, crianças que não terão a mais mínima chance de trilhar um caminho diferente daquele da miséria, da degradação e do assassinato. As alas de indigentes nos cemitérios brasileiros já não têm mais espaço. Como cães vadios vão sendo assassinados e jogados até a contra gosto nesses buracos tenebrosos onde a terra que eles nem chegaram realmente a pisar os devorará como se até ela fosse cúmplice de todo esse sistema de ignorância e de ódio. Uma casta odiosa e vil se apoderou de todos os poderes e cega por vaidades e por ficções instituiu a paralisia geral, uma paralisia que só a beneficia, já que a eterniza nos lugares de mando, de prevaricação e de indiferença onde se encontra. Todos os partidos até hoje se revelaram miseráveis e abomináveis. Ninhos de víboras, larápios que como equilibristas se sustentam sobre a mentira e sobre a desfaçatez décadas atrás décadas. O discurso do homem público sempre mais falso e mais comercial até mesmo que o discurso da mulher pública, nele tudo é falsificado e só serve para entorpecer o populacho, também venenoso e abominável que, com seu voto vem engendrando durante séculos esses pântanos de podridão. Mergulhado na nojeira desses pensamentos nem percebo que já cheguei aqui nos arredores da St. James’s Church. É em seu interior que está a pia batismal entalhada no século XVII por Grinling Gibbons, com Adão e Eva (os pais de Caim) em 171


pé ao lado da Árvore da Vida. Dizem que o grande William Blake foi batizado ali. Ele, o artista de todas as áreas que em seus Provérbios do Inferno escreveu: Prisões se constroem com pedras da Lei; Bordéis, os tijolos da Religião...

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Caim em mรกrmore Antonio Canova 1846

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Cain and his chilrem accursed of. God – 1832 Capela do hospital da Salpêtrière – Paris

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[13] “Tenho a mentalidade pacífica. Meus desejos são: uma cabana modesta, telhado de palha, mas uma boa cama, boa comida, leite e manteiga frescos; em frente à janela, flores, em frente à porta, algumas belas árvores. E se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos pendurados nelas. De coração comovido eu haverei de perdoar todas as iniquidades que em vida me infligiram. Temos de perdoar nossos inimigos, porém jamais antes de eles estarem enforcados” Henrique Heine

Quase sonâmbulo, na parte superior destes ônibus vermelhos vou e venho sem destino olhando aqui de cima a multidão que se engolfinha no meio de carros, pacotes, vitrines, sirenes, caminhões de bombeiros, enquanto o motorista faz suas manobras ali no Marble Arch e desce pela Edward road beirando os cafés e restaurantes onde sempre há alguém fazendo fumaça num narguilé. Daqui de cima posso ver com facilidade as manchetes nas bancas de jornais anunciando que explodem bombas e corpos no Afeganistão; que a Líbia de Kadafi está despedaçada; que o Japão ainda recolhe restos de pessoas e de coisas; que o Fidel já é múmia; que o Irã sacraliza seus átomos; que o Brasil engorda seus miseráveis com cestas básicas para dar impressão de desenvolvimento; que a Grécia de Sócrates e mãe de toda a ignomínia política se afunda no esgoto. Um jornal afirma que Portugal respira por tubos e que a Espanha, na essência ainda franquista, prepara-se para receber o Papa... Apesar da sobriedade da mídia cortesã, não me comovo porque sei que tudo é literatura e que o que movimenta o monjolo da vida é a mais pura e a mais insaciável das comilanças. Finge-se que se pretende chegar a algum lugar sabendo que não há esse lugar. Ou então confessa-se descaradamente e até sem horror, que o lugar e sonho idílico da humanidade é a aposentadoria! O trem em que embarcamos ao nascer só têm três estações de peso: Station Velhice, Station doença e Station Morte. O que diferencia uns passageiros dos outros é apenas o humor e o entusiasmo durante o trajeto. Alguns saltam precocemente pela 175


janela do vagão (vão à Suíça pagar uma eutanásia), outros vão dopados, outros vão mostrando os dentes irresponsavelmente pela janela. E acumulam-se sintomas na espécie e no rebanho. Há passeatas e “marchas” de todas as ordens. Marcha contra o assassinato de baleias! Marcha das vadias! Marcha dos desempregados! Marcha gay! Marcha dos órfãos de Bin Laden! Marcha dos apaixonados por Cristo! Marcha dos meninos de rua! Marcha dos maconheiros! Marcha contra as usinas nucleares! Marcha dos obesos! Marcha dos diabéticos! Marcha dos epilépticos! Dos albinos e dos negros! Marcha dos crentes em discos voadores! Marcha dos abusados por pedófilos! Marcha das mães e até das amantes de loucos e de assassinos confessos, tudo insinuando que vida é apenas uma grande e confusa e embusteira marcha. Viver é marchar! Nosso gosto pelas aglomerações advém do tempo de ratonice quando andávamos ébrios, presumidos e em bandos pela penumbra dos matagais ou pelo desespero esotérico do deserto. Cobra-se mixarias de alguém sem nome, implora-se e grita-se por respeito e dignidade num mundo onde a surdez é finória epidêmica. Uma sopa de misso, um pão com sementes de girassol e uma torta de maçã para saciar a nossa maior detratora. Mas, aqui entre nós, até a fome é literária. Um pouco mais tarde, a sopa de misso dialogando com as sementes de girassol ao longo dos túneis sombrios de minhas entranhas. London, London... As águas turvas do Tamisa, os barcos, o sol de maio, as mulheres entrando e saindo dos cafés e das boutiques com seus decotes e com suas tetas apetitosas sob esse céu azul cortado sistematicamente por imensos aviões que chegam ou que vão para a Arábia Saudita, para Moscou, para São Francisco, para Beijing. Tudo o que se move sobre rodas, a turbinas ou a hélices me dá a ilusão de movimento, de novidade, de errância e de cidadania mundial. Estou aqui, mas amanhã posso estar lá. Num abrir e fechar de olhos me transporto aqui da Victoria Gate para as ruas enlameadas de Katmandu. Se viajo sem parar, não o faço para esgotar nenhum plano turístico, viajo para acalmar meus glóbulos e minhas veias que exigem de mim o prazer e a “felicidade” desse nomadismo e desse anonimato. 176


Aqui da parte superior deste ônibus que vai e que vem pelo coração da cidade, quase como despedida vou criando um índice fictício e imaginário para este livro: Caim, meu irmão e meu herói; Caim na minha infância e na minha aldeia; Caim e Baudelaire; Caim e Herman Hess; Caim e Lilith; Caim de Lord Byron; Caim e o Leviatã de Hobbes; Caim Poncio Pilatos; Caim e as mulheres; Caim e Unamuno; Caim e os críticos literários; Caim de Steimback; Caim e a feitiçaria; Caim e a Teoria de Adler; Caim e os vampiros; Caim e as doenças mentais; Caim e São Cipriano; Caim e a psicanálise; Caim, os escritores nacionais e o blefe; Caim e a maçonaria (Tuban Caim); Caim e o nomadismo; Caim e David Cooper (família); Caim no imaginário dos pintores de todas as épocas; Caim e o vegetarianismo (os sem-terra); Caim e o raizeiro do Setor Comercial Sul de Brasília; Caim e os beberrões do Santo-Daime; Caim e Derrida; Caim e a macumba; Caim e Melanie Klein; A marca de Caim (OTH); Caim e os ciganos; Caim e os piratas; Caim e os sem-teto de Londres; Caim e Abel como metáfora da esquizofrenia; Caim sou eu tomando uma sopa de misso no Prêt-a-manger; é Darwin lá na entrada do Museu de História Natural; é quem coloca fogo nos vulcões do mundo inteiro. Caim aviador; Caim que pedala os riquixas da Avenida Regent. Caim Cioran. Caim que move os pincéis de Lucian Freud, o maior de todos os artistas londrinos da atualidade. Caim e Victor Hugo.68 Caim homo sacer! Caim cultivador de arruda, teórico da ars moriendi, coruja, símbolo estelar ou Santo Antão discutindo com os demônios no deserto. A caneta parou bruscamente de funcionar como se estivesse me indagando: para que tantas palavras? Não dou resposta, mas tenho consciência de que escrever é um exercício narcisista e de fanfarronice. O escritor, por mais ético que seja, mente, manipula e arrasta seu leitor para cima e para baixo ao bel prazer de suas próprias perversidades. Parole! Parole! E não há distinção, sejam meus pobres rabiscos ou a chatice interminável 68 “De hoy más quiero habitar bajo la tierra, 
Como en su tumba el muerto – y presurosa
 Su familia cavóle una ancha fosa,
Y a ella descendió al fin.
Mas ¡debajo esa bóveda sombría,
Debajo de esa tumba inhabitable,
El ojb estaba fiero, inexorable,
Y miraba a Caín...” Último verso do texto Consciência, de Victor Hugo.

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de John Milton com seu Paraíso Perdido (Paradise lost!!!). Devia ser tão chato na cama como o era com a escrita, pois sua primeira mulher de dezessete anos o abandonou um mês depois de casados. Desse personagem admiro realmente apenas sua apologia do divórcio e sua luta precoce contra o copyright. Os dias se esfumam. As escadarias para o quarto cada dia mais íngremes parecem a ladeira de Sísifo e a sacola do dinheiro está cada dia mais vazia. Viro e reviro arquivos em busca de noticias e imagens de Caim matando seu irmão. Não é difícil encontra-las já que de Tintoretto a Chagal todo mundo pintou a bordoada. Apesar da demagogia vigente, um lado secreto do mundo adora todo e qualquer ato de violência. A cena do assassinato mexe com nosso mundo primitivo recheado de cólera, melancolia, inveja, ciúmes e de competição. O gesto do braço destruidor que desce sobre as têmporas do outro e a morte que o segue não são em hipótese nenhuma signos banais ou efêmeros. E não é apenas ansiedade ou medo o que se sente, há também nos subterrâneos do ser uma espécie de necrofilia, uma paixão pela doença, pelo martírio e pelo cadáver do outro. Eu mato, tu matas, ele mata. Somos eficientes, matamos aos outros e a nós próprios. Para adocicar a pílula e dar ares de civilidade, Mil e Uma interpretações dessa agressividade cainesca. As fontes são delirantes, um compilatório de bobagens e interpretações as mais esdruxulas possíveis. Os lunáticos da teosofia que acreditam que na época de Adão e Eva todos eram hermafroditas dão à frase “a Raça de Adão Jah-Hovah, um dia derramou o sangue virgem”, a seguinte e insólita interpretação: “o sangue virgem era uterino-vaginal e Caim é o símbolo daqueles Hermafroditas que, pela primeira vez tiveram a curiosa ideia de inserir o próprio pênis na vagina do irmão”. Blábláblá... Ufa! Haja imaginação e delírios para tanto. Só mesmo ressuscitando a Sherlock Holmes! Cioran, com sua rabugice eterna cochicharia aos ouvidos de algum velho amigo romeno: “as únicas utopias legíveis são as falsas, as que escritas por jogo, diversão ou misantropia, prefiguram ou evocam as ‘Viagens de Gulliver’, bíblia do homem desenganado, quintessência de visões não quiméricas, utopia sem esperança.” 178


Algumas dicas bibliográficas

DÈRRIDA Jacques – O animal que logo sou. Ed. UNESP, São Paulo, 2002. LISBOA Rosalina Coelho – A seara de Caim. Livraria José Olympio Editora, RJ, 1952. TONI Sandro – El ABC de la maldad, Editorial Planeta, Barcelona 1988. OJUARA Di Fabio – Sabendo usar... chifre não é problema, (sem editor) Natal, 2005. THORWALD Jurgen – As marcas de Caim. Civilização Brasileira, RJ, 1968. GEREMEK Bronislaw – Os filhos de Caim. Companhia das Letras, SP, 1995. HASSOUN Jacques – Caim. (?) BAUDELAIRE Charles – As flores do mal. DENSER Márcia – Caim – Sagrados laços frouxos. Ed Record, SP, 2005. FISSET, Émeric – L’ivresse de la marche. Transboréal, Paris, 2010. BYRON Lord – Caim, um mistério. (?) HILST Hilda – Caderno rosa de Lory Lamby. Massao Ohno Editor, SP, 1990. DICKE Ricardo Guilherme – Deus de Caim, Edinova, 1968. AQUINO de Tomás – Sobre o ensino e os sete pecados capitais. Martins Fontes, SP, 2001. FIGUEIREDO de Campos – Caim, poema radiofônico. Coimbra, 1952. 179


CASCUDO Luís da Câmara – Pequeno Manual do Doente Aprendiz, Editora da UFRN, Natal, 1998. UNTERMAN Alan – Dicionário judáico de lendas e tradições, Jorge Zahar, 1992. BAROZZI, Jacques (organizador) Le goût de la marche, Mercure de France, Paris, 2008. FLUSSER Vilém – A história do diabo, Anna Blume Editora, SP, 2005. ROUDINESCO Elisabeth – Filósofos na tormenta, Zahar Editor, RJ, 2007. DÈRRIDA Jacques – El siglo y el perdón, Ediciones de la flor, Buenos Aires, Argentina, 2003. PASTORELI France – Miseria e grandeza da doença (Diário de um artista), Livraria José Olympio Editora, RJ, 1944. RAWET Samuel – Viagens de Ahasverus à terra alheia em busca de um passado que não existe porque é futuro e de um futuro que já passou porque sonhado, Olivé Editor, RJ, 1970. FREUD Sigmund – Obras Completas. Biblioteca Nueva, Madrid 1981. BLOY Leon – Le sang du pauvre. Paris. HUGO Victor – La Légende des Siècles. HESSE Herman – Demian. Record, 2005. SCHULKE Daniel Alvin – O aspecto agrário de Caim e seu significado como patrono da feitiçaria, Revista Online The Cauldron Brasil, Edição I, 2006. SICUTERI Roberto – Lilith a lua negra, Paz e Terra, RJ, 1986. EPSTEIN Joseph – Inveja, Editora Arx, São Paulo 2004. BAUDRILLARD Jean – Power inferno, Editora Sulina, Porto Alegre, 2003. EHRENFELD David – Arrogância do humanismo, Editora Campus, RJ, 1992. JACCARD Roland – Le cimitière de la morale, PUF, Paris 1995. GREENE Robert – As 48 leis do poder, Ed. Rocco, RJ, 2000. 180


KRISTEVA Julia – Possessões, Ed. Rocco, RJ, 2003. LAPORTE Dominique – Histoire de la merde, Christian Bourgos Éditeur, Paris, 1987. STEINBECK John – A leste do Éden. Record, RJ, 2005. BRITO DE, Chermont – Caim. Ed. Pongetti, 1947. SARAMAGO, José – Caim. Companhia das Letras, SP, 2009. SUTTIE, Ian de – As origens do amor e do ódio, Ed. Ulisseia, Lisboa (?) LE GOFF, Jacques – La naissance du purgatoire, Gallimard, Paris, 1981. GOMES, Roberto – Crítica da razão tupiniquim, Mercado aberto, RS, 1984.

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