APRESENTAÇÃO Neste documento você encontra a compilação de trabalhos selecionados para o Simpósio Temático "Sexualidade e Direitos Humanos" do III Seminário Outros Olhares, que integra o projeto Outros Olhares. O Seminário foi realizado entre os dias 12 e 14 de novembro de 2014, em Fortaleza/Ceará. O evento reuniu estudantes, pesquisadores, educadores e ativistas em torno de debates e trocas de estudos acadêmicos sobre Democracia, Participação Social e Direitos Humanos. O presente eixo temático, coordenado pela Professora Doutora Luma Nogueira de Andrade, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), discute a relação que existe entre os campos das sexualidades e dos direitos humanos. Partiu do pressuposto de que a dimensão das sexualidades é tão vasta quanto são as violações aos direitos humanos de indivíduos e grupos não enquadrados dentro de padrões, normas e performances hegemônicas. Nesse eixo, interessa discutir em toda sua amplitude o binômio sexualidades e direitos humanos atravessados ou não por outros marcadores ou em relação com temas como saúde, trabalho, educação, violência, dentre outros. O projeto Outros Olhares é uma realização da ONG Fábrica de Imagens – Ações educativas em cidadania e gênero, em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC), pela Casa Amarela Eusélio Oliveira, uma produção do Ponto de Cultura Outros Olhares e do Cacto (Centro de Referência em Cultura, Arte, Comunicação e Novas Tecnologias para a Promoção dos Direitos Humanos, da Equidade de Gênero e da Diversidade Sexual); tem o apoio cultural da Universidade Federal do Ceará, por meio da Casa Amarela Eusélio Oliveira e do Hotel Sonata; e o patrocínio da Petrobras. Boa Leitura!
SUMÁRIO 1. CAMPO HOMOAFETIVO E SUAS ESTRUTURAS DE PRODUÇÃOO E REPRODUÇÃO DO HABITUS HETERONORMATIVO BEZERRA, Pedro Henrique Almeida ............................................ 9 2. FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS E PREVIDÊNCIA SOCIAL: QUALQUER MANEIRA DE AMOR VALE A PENA MIRANDA, Brena; LIMA, Flávia .................................................... 13 3. “REFLETINDO SOBRE O MATRIMÔNIO”: SIGNIFICAÇÕES ACERCA DA SEXUALIDADE PARA OS CASAIS PARTICIPANTES DO ENCONTRO DE CASAIS COM CRISTO (ECC) MOURA, Juliana de Sousa; BEZERRA, Anielly Maria Aquino; BASTOS, Tamires Ferreira ......................................................... 17 4. QUEER - PARA ROMPER COM A NORMATIVIDADE CONZ, Luciana Ribeiro ................................................................ 21 5.
REPRESENTAÇÕES SOBRE AFETIVIDADES E SEXUALIDADES DE ESTUDANTES AFRICANAS NO CONTEXTO DA MIGRAÇÃO ESTUDANTIL EM FORTALEZA-CE LANGA, Ercílio Neves Brandão ................................................... 24
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DE CASA PARA O TRABALHO: A MULHER E AS MUDANÇAS SÓCIO-CULTURAIS DO SEU PAPEL NA SOCIEDADE SANTOS, Raquel Silva dos; POCAHY, Fernando Altair .............. 29
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DO PRECONCEITO À DIGNIDADE: REPRESENTAÇÕES DE PROFISSIONAIS E USUÁRIOS NA ATENÇÃO BÁSICA DE SAÚDE SOBRE O ATENDIMENTO A TRAVESTIS ARAUJO, Kairo Andrade; MORAES, Maristela Melo; BENICIO, Luís Fernando ...................................................................................... 31
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SEXUALIDADE CRIMINALIZADA: UM RECORTE ETNOGRÁFICO DA PROSTITUIÇÃO NO CIRCUITO DAS BOATES DA PRAIA DE IRACEMA – PROJETO DE PESQUISA DO CURSO DE SERVIÇO SOCIAL DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CARDENAS, Laryane de Vasconcelos ........................................ 35
EIXO: SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS COORDENAÇÃO: PROF. DRª. LUMA NOGUEIRA DE ANDRADE
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CAMPO HOMOAFETIVO E SUAS ESTRUTURAS DE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DO HABITUS HETERONORMATIVO1
BEZERRA, Pedro Henrique Almeida
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RESUMO O presente trabalho trata de problematizar o campo homoafetivo e sua dinâmica. O objeto delimita-se em torno da realidade social, política e ideológica que constitui o campo da homoafetividade. O projeto foi justificado por um resgate histórico das lutas do segmento LGBT e sua conjuntura no cenário político brasileiro. Objetiva-se identificar até que ponto os valores heteronormativos são reproduzidos dentro das relações homoafetivas e qual grau de consciência sobre essa reprodução têm os homossexuais. Para compreender tal realidade, são usados autores como Norbert Elias (1994), Pierre Bourdieu (1989), Michel Focault (1990), Judith Butler (2003), Richard G. Parker (1991) entre outros. Como metodologia, pretende-se usar abordagem qualitativa e como técnica a observação assimétrica e a entrevista semiestruturada. O projeto encontra-se em revisão da literatura e nos semestres seguintes serão realizadas a pesquisa de campo, a compilação de dados e o texto final que irão compor a monografia. Palavras-chave: Homossexualidade. Heteronormatividade. Habitus. Relações homoafetivas.
INTRODUÇÃO Por quantas vezes nas ruas, nas esquinas, na escola, em casa, no trabalho, na faculdade podemos identificar casos de homofobia? São incontáveis. Apesar de existir uma racionalidade que a visualize como uma expressão que só é identificável quando sua manifestação maior – a morte – consome-se, faz-se necessário romper com esse laço que vela nossa visão e apontar para os casos minuciosos que reproduzem essa opressão cotidianamente. Risadas dos colegas, cochichos no canto da sala, comentários maldosos na hora da chamada, expressões como “se ajeita menino”, “cria jeito de homem”, “isso não é coisa de menino” constituem formas de violência simbólica estruturantes de um campo reprodutor do habitus (BOURDIEU, 1989) heteronormativo. A cada insulto, violência verbal e física a homofobia legitimase e dá lugar a intolerância e violação de direitos humanos. A homofobia é um conceito que fala a respeito de sentimentos de aversão, desprezo, ódio, desconfiança, desconforto ou medo em relação a homossexuais e a práticas homoafetivas traduzidas em forma de ódio generalizado. O termo é etimologicamente considerado um neologismo e foi usado à primeira vez pelo psicólogo clínico George Weinberg (1972) para significar a série de sentimentos citada. A heteronormatividade (WARNER, 1993) inscrita socialmente no campo das sexualidades trata-se de uma habitus que normatiza, regula e legitima o valor simbólico da heterossexualidade. Nessa perspectiva tudo o que for dissidente desse padrão é considerado patológico, desviante, imoral, pecaminoso etc. (BOURDIEU, 1989). O que mais aguça meu instinto investigativo e me motiva a problematizar é o fato de que essas normas, preconceitos e represálias não estão somente em uma instância exterior ao campo homoafetivo. Não obstante elas se inscrevem e reproduzem no modus operandi desse próprio campo. Em outras palavras, o que se quer dizer é: tanto o campo homoafetivo quanto o campo das sexualidades em geral (incluindo aí a heterossexualidade) estão inscritos em uma figuração social macro estruturada pela formação sócio-histórica brasileira, e que por essa razão incorporam, internalizam, assimilam e reproduzem valores herdados do patriarca e de sua organização familiar. Nesse sentido: A questão da autoridade patriarcal [...] tem sido ligada à notada ênfase da família patriarcal na história do Brasil – não simplesmente como forma de organização social, mas como construção ideológica, um sistema de representações que continua a influenciar as maneiras pelas quais os brasileiros contemporâneos compreendem a ordem própria das
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Trabalho construído e apresentado na disciplina “Fundamentos de Trabalho de Conclusão de Curso” no curso de Serviço Social no Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESA) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). 2 Graduando em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará. E-mail: pedro_ryk@hotmail.com.
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coisas no seu universo, estruturam suas interações sociais e interpretam o sentido de suas relações sociais (PARKER, 1991, p. 56).
Cabe aqui questionar e evidenciar a existência dessa forma de relação homoafetiva que claramente reproduz um machismo advindo das relações heterossexuais. O meu intuito recai sobre a necessidade de verificar em campo as configurações reais dessa reprodução do machismo e do patriarcado nas relações homoafetivas. Temos como objetivo geral identificar até que ponto os valores heteronormativos são reproduzidos dentro das relações homoafetivas e qual grau de consciência sobre essa reprodução têm os homossexuais. Como objetivos específicos, temos: • • •
Realizar um apanhado histórico do movimento LGBT, analisando a conjuntura social, política, histórica e cultural que envolve as relações homoafetivas no Brasil e no mundo; Identificar no habitus do campo homossexual os valores simbólicos que cimentam o seu processo de estruturação e sua relação com a configuração social; Avaliar o processo de produção e reprodução dos valores simbólicos do campo homoafetivo e sua relação com a herança heteronormativa.
METODOLOGIA O presente projeto de pesquisa localizado em uma área do conhecimento específica, as ciências humanas – mais especificamente nas sociais aplicadas –, considera como conveniente a abordagem de uma pesquisa de natureza qualitativa. Essa por sua vez tem condições de fornecer suporte para uma análise detida e cuidadosa do campo o qual se pretende investigar. Conforme aponta Osterne (2000, p. 11): “a pesquisa qualitativa se destina a trabalhar com a complexidade e as contradições de fenômenos singulares em termos de suas origens e de sua razão de ser”. A pesquisa a ser desenvolvida deverá ser de campo, respaldada por uma revisão da bibliografia específica. O campo homoafetivo seria estruturado pela ocupação de espaços como os sociais, culturais, políticos, econômicos, artísticos entre outros. Na cidade de Fortaleza – Ceará, por exemplo, existem 3 diversos lugares frequentados por um público eminentemente LGBT . Tendo em vista o caráter do objeto, o tipo e a natureza da pesquisa, considero que a técnica que melhor atende a demanda por esse projeto apresentada é a da observação assimétrica e a da entrevista semiestruturada como processo de coleta de dados. Considero importante balizar algumas questões e deixar o sujeito à vontade para falar contando suas experiências, para que através do seu discurso seja possível captar as informações necessárias para apreensão da realidade estudada. O meio de registro se dará através de um gravador de voz e de anotações no diário de campo. Como técnica de análise pretendo usar a tabulação no intuito de realizar uma síntese que possibilite uma compreensão e uma interpretação assertivas das entrevistas realizadas.
REFERENCIAL TEÓRICO Para Michel Foucault (1988), o sexo – que vinha passando por restrições –, a partir do século XVI foi incitado enquanto discurso. Três marcos codificaram o discurso sobre as práticas sexuais até o final do século XVIII, foram eles: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil. Em suma eles falavam sobre a importância do matrimônio e a ameaça de condenação caso houvesse a procura por prazeres dissidentes desse valor. A proliferação dos discursos sobre o sexo manifestou-se, sobretudo nas instituições de exercício do poder. Considera-se também a tradição católica e o estabelecimento do sacramento da confissão como um vetor coercitivo que ensejava o falar sobre o sexo e os desejos. O confessionário seria o lugar onde tudo deveria ser dito. Foi no processo de incitação ao discurso através das instituições de poder que a irregularidade sexual foi ligada a doença mental. Estabeleceu-se uma definida norma de controle do sexo que perpassava todas as idades ao passo que foram mapeados todos os desvios possíveis a esses padrões. A partir disso, criaram-se controles dos mais diversos, desde o pedagógico até o médico. O discurso do sexo e suas
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Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgênero.
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teorias científicas constituíram-se como uma ação esquiva, pois não falavam do sexo em si, mas dos seus desvios: aberrações, perversões, anulações patológicas e exasperações mórbidas. Convergindo com as concepções de Foucault, Judith Butler (2013) em como preocupação a “formação do sujeito” teorizando sobre a identidade generificada e sexuada. Para ela o sujeito não seria um indivíduo stricto, mas uma estrutura linguística em formação, um complexo processo de devir sem fim. Suas obras tem uma natureza claramente provocativa que instiga reflexões sobre o poder quando ele tem a pretensão de confundir-se com a verdade, como no caso da identidade sexual de gênero. Inserida no feminismo, Butler critica o ponto em que o entendimento de gênero se dá em um binário feminino/masculino. Ela “defende a desmontagem de todo e qualquer tipo de identidade de gênero que oprima as singularidades humanas que não se encaixem naquilo que é tido como ‘adequado’, ‘correto’ ou ‘normal’.” (OSTERNE, 2013, p. 2). Ela entende que o gênero é performativo, como se fosse a tomada de um papel. Essa representação seria central para o que nós somos e o que apresentamos ao mundo. A forma como agimos, andamos e falamos consolidam uma impressão de ser homem ou mulher. Porém, esse sentimento de 4 pertença a um determinado gênero não seria algo inato, mas socialmente construído e posto . Instituições disciplinares formais, como as psiquiátricas, e as informais, como a prática do bullying, tentam nos manter em nossos lugares de gênero. A ideia apresentada é de refletir as formas pelas quais essas instituições possam ser desestabilizadas e desconstruídas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de opressão socialmente instaurado me inquieta, pois, como citei, estou intimamente ligado a essa realidade por sofrer na pele essa opressão. Desde criança, sofri com o processo de inscrição da masculinidade. A minha orientação sexual assim como a identidade de gênero sempre me foram muito caras por trazerem para minha realidade uma série de sanções que recaiam e recaem sobre a tentativa de inscrever na minha identidade e no meu corpo o signo do masculino. Masculino esse que é construído em um referencial machista, heterossexual e patriarcal. O macho é o viril, é o ativo, é o forte, o corajoso. É o que conquista a mulher, é o que protege a mulher, é o dono da mulher. O macho é o todo poderoso, é o que no tempo colonial tinha o poder sobre a vida e a morte de seus escravos, de suas mulheres, de seus filhos. Esses valores (que dizem o que é o macho, o que ele faz, como se sente, como deve agir, como deve pensar) é quem dizem o que ele deve ser! É esse ideal que inscreve nos corpos e nas vidas uma série de normas que encaixam, moldam, criam a masculinidade. E quem está fora desse padrão? As pessoas que nascem com a genitália masculina, mas não se identificam com esses valores? Que não se identificam com essa identidade atribuída? Então só é macho quem é ativo, forte e viril? E só é mulher quem é frágil, passiva e delicada? E nas relações homossexuais, a divisão entre ativo e passivo tem relação com esse contexto social de construção do masculino/feminino? No campo homoafetivo, existe uma reprodução de valores? E se existe, em que nível de consciência ela se dá? Os homossexuais reproduzem relações que fortificam e legitima a sua própria opressão? Esses são alguns pontos que me inquietam e que me motivam a dar cabo a essa pesquisa. Respondê-los me é fundamental para entender não só as relações homoafetivas através de um referencial teórico, mas investigar em que bases elas se fundamentam e quais são os nortes e possibilidades de emancipação que a sociedade contemporânea pode conferir para ela.
REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Bertrand Brasil, 1989. ______. A Dominação Masculina. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. ______. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Tradução: Renato Aguiar. 4
JUDITH Butler – Seu comportamento cria seu gênero. Big Think – Smarter Faster. Estados Unidos: Big Think, 2013. 3’00’’. Disponível em: http://youtu.be/9MlqEoCFtPM. Acesso em: 03 de agosto de 2014 às 00h02min.
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ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. Resenha de: JÚNIOR, José de Souza. História da Sexualidade [I] A Vontade de Saber (Michel Foucault). Disponível em: <http://resenhasexcertos.blogspot.com.br/2010/02/historia-da-sexualidade-ivontade-de.html>. Acesso em: 02 ago. 2014 às 01h50min. GNT. A Revolta de Stonewall (Documentário). São Paulo, GNT, 2013. Conteúdo online, 1h20min. Disponível em: <http://gnt.globo.com/gntdoc/videos/_2466757.shtml>. Acesso em: 05 mai. 2014. JUDITH Butler – Seu comportamento cria seu gênero. Big Think – Smarter Faster. Estados Unidos: Big Think, 2013. 3’00’’. Disponível em: http://youtu.be/9MlqEoCFtPM. Acesso em: 03 ago. 2014. OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Quem é e o que pensa Judith Butler – um brevíssimo esforço de apresentar o vigor de sua filosofia. Fortaleza: UECE, 2013. ______. O Projeto de Pesquisa e a Monografia: Etapas fundamentais do trabalho científico. Fortaleza: UECE/IEPRO, Julho/ 2000. PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões: A cultura sexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Best Seller, 1991. WARNER, Michael. Fear of a Queer Planet: queer politics and social theory. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 1993.
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FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS E PREVIDÊNCIA SOCIAL: QUALQUER MANEIRA DE AMOR VALE A PENA5
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MIRANDA, Brena ; LIMA Flávia
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RESUMO Este trabalho concebe reflexões acerca da elaboração e implementação de políticas públicas no Brasil contemporâneo no que concerne às famílias homoafetivas, com foco na Previdência Social. Vale considerar que a sexualidade é um aspecto fundamental da experiência humana que implica na necessidade de proposição de políticas que reconheçam o direito à diversidade e à pluralidade de manifestações nas relações sociais e sexuais cotidianas. Os eixos metodológicos que estruturam esse artigo são baseados em pesquisa bibliográfica, destacando marcos histórico, leis fundamentais e autores que trabalham as categorias em questão. Palavras-chave: Políticas Públicas; Famílias Homoafetivas; Previdência Social.
INTRODUÇÃO Na sociedade brasileira, existe uma predominância da família patriarcal cuja liderança era focada no chefe da família, desempenhando funções políticas e econômicas. O chamado patriarca ou “coronel”, que detém plenos poderes sobre seu clã, subjugava o papel da mulher dentro da organização do núcleo familiar. Compreende-se, então, uma elaboração de papéis socialmente construídos acarretando impactos nas relações sociais. O surgimento destes processos cotidianos é devido à construção sócio-histórica brasileira que teve imposição dos padrões culturais portugueses (BRUSCHINI, 2000). Por mais que este modelo desempenhe um papel determinante nas relações da sociedade, não foi o único que predominou, pois dentro dele existiu um conjunto de segmentos sociais que contrastava com esse modelo patriarcal, aliando heterogeneidade em relação às classes econômicas, as culturas e os modos de viver. Nessa perspectiva, percebe-se que a ampliação do conceito de família deve ser analisada como categoria fundante para compreender a dinâmica social brasileira. Na contemporaneidade, outras expressões de famílias surgiram, e neste palco estão as famílias homoafetivas, compostas por sujeitos que buscam a implementação dos seus direitos de livre expressão de sua forma de amar, esta oprimida pelo enraizamento do patriarcalismo brasileiro e o “modelo” padronizado de famílias. Busca-se, então, nesse artigo, demonstrar a importância do acesso às políticas sociais com foco na previdência social, colocando novos desafios para os Assistentes Sociais, profissionais que integram os mais diversos setores. Dessa forma, percebe-se a relevância dos estudos sobre a temática em questão, despertando, assim, uma maior abrangência sobre a diversidade sexual atrelada à família. Problematizar a forma como os serviços públicos lidam com a diversidade sexual, na medida em que o direito à liberdade de orientação sexual se constitui numa forma de direito à igualdade, é ressaltar a 8 relevância do panorama da relação entre Estado, família, população LGBTT e políticas públicas no Brasil, destacando entraves desta contradição no momento da concessão de benefícios aos usuários da Política de Previdência Social, já que se torna salutar visualizar suas particularidades, que devem ser respeitadas bem como a garantia de direitos.
METODOLOGIA Em suma, a metodologia utilizada para a construção deste estudo consiste em pesquisa bibliográfica em documentos para levantamento de referencial teórico e marcos histórico sobre a construção da seguridade social brasileira, com foco na previdência social e como as famílias em destaque 5
Trabalho apresentado na disciplina de Serviço Social e Família, ministrada pela professora Dra. Maria Zelma de Araújo Madeira do Curso de bacharelado em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará. 6 Graduanda em Serviço Social – UECE, Fortaleza/Ceará, e-mail: brenamirandaa@gmail.com. 7 Graduanda em Serviço Social – UECE, Fortaleza/Ceará, e-mail: flavia.l.s@hotmail.com. 8 A sigla LGBT se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. O uso do termo foi aprovado durante conferência realizada em Brasília, em 2008, e substituiu a sigla GLS (gays, lésbicas e bissexuais), utilizada até então para representar a diversidade sexual (fonte: http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/lgbt).
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asseguradas pela política construíram um caminho de luta e resistência presente até os dias atuais. Portanto, aprofundaremos no decorrer do estudo sobre a interpelação da heteronormatividade e do familismo nas políticas públicas no país, salientando que respeitar a diversidade sexual é necessário para o respeito à autonomia, à livre expressão da sexualidade, para a democracia e a superação da inferiorizarão do outro. Além do mais, conceder visibilidade à temática desnaturaliza a imposição de papéis socialmente construídos, apostando na luta dos patamares de sociabilidade, na qual a diversidade seja efetivamente reconhecida.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Behring e Boschetti (2009) vêm apresentar a trajetória da seguridade social e como ela influencia no Brasil. Sabemos que a conquista de benefícios previdenciários que compõem a seguridade social surge, primeiramente, na Alemanha, no séc. XX, a partir de lutas dos trabalhadores exigindo melhorias nas condições de trabalho. Dessa forma, Bismarck, em resposta às greves trabalhistas, cria um sistema de seguros sociais voltado a esses trabalhadores, conhecido como modelo bismarckiano, centrado nos trabalhadores assalariados. Ele recebeu várias críticas, pois grande parte da população ficaria desassistida. Em contra resposta, surge na Inglaterra, logo após a Segunda Guerra Mundial, o Plano Beveridge. Nesse sistema, o Estado intervia na garantia de benefício às pessoas que não tivessem condições de sustento. Diferente do modelo Bismarckiano, esse tinha caráter universal, era para todos que necessitassem ser assistidos. Nesse caso, o financiamento viria de impostos fiscais e o Estado é quem era o gestor. Então, o modelo apresentado teve como principal objetivo a luta contra a pobreza. O tripé da seguridade social brasileira - assistência social, saúde, previdência - é influenciado por estes dois modelos, em que no modelo bismarckiano predomina a previdência social, e o beveridgiano orienta o SUS - Sistema Único de Saúde e o SUAS - Sistema Único de Assistência Social. O fato é que esses modelos e a seguridade social em si estão voltados, em sua essência, para família. Teixeira (2010) afirma que, no Brasil, a política pública esteve voltada à reprodução do modelo tradicional de família, baseado nos papéis do homem-provedor e mulher-cuidadora. No caso dos seguros sociais, o trabalho se centraliza naquele que é o contribuinte e sua família, ou seja, o acesso aos benefícios concebidos pelo trabalho é centralizado na família, principalmente os previdenciários, que têm caráter contributivo. Ao focalizar esse modelo tradicional familiar, no caso específico da previdência social, nega-se os outros modelos que vêm se apresentando em nossa sociedade. Mioto (2006) destaca que a incorporação das famílias nas políticas públicas se faz de forma bastante tensionada entre propostas distintas, vinculadas a projetos também distintos em termos de proteção social. A autora afirma que existem duas tendências: uma “familista” e, outra “protetiva”. A primeira é enraizada no processo neoliberal que afirma a centralidade da família, apostando em sua capacidade de cuidados e proteção como uma naturalidade de proteção social, aliado ao mercado e sociedade civil. O Estado interviria somente se falhassem os meios naturais. A segunda, a forma “protetiva”, está ligada à garantia de direitos por meio das políticas públicas, sendo que as famílias devem ser protegidas por um aparato do Estado. Torna-se salutar pensar políticas públicas articuladas com a categoria família, aliando também aos inúmeros arranjos na atualidade, bem como à dimensão da sexualidade do ser humano. Pensar o ser humano em suas diferentes dimensões inclui refletir sobre seu conjunto de “corpo, gênero, sexualidade” e dos polos masculino e feminino, e na relação destes com seus opostos, dada assim também a nossa capacidade de compreensão da existência do outro. Uma análise que compreende os indivíduos a partir dessa polarização se materializa na impossibilidade de escutar, falar ou pensar em formas de relações não heterossexuais. O “resto” se encaixa em qual campo? A universalidade do atendimento no âmbito das políticas públicas torna o “sujeito de direitos” destinatário de políticas com cunho universal. Por essa universalidade, são abarcadas as diferentes formas de raça/ etnia, orientação sexual, cultura e as diferentes formas de expressão no mundo. (FROEMMING; IRINEU NAVAS, 2010, p. 6).
Por isso a importância da abrangência de políticas públicas que acolham a diversidade do ser social em construção, desconstruindo os padrões impostos socialmente e erguendo outras possibilidade e legislações para as diferentes formas de manifestações, como da população LGBT, por exemplo.
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Algumas indagações com a demarcação do lugar do heterossexual e das demais classificações de grupos “dominantes”, o poder é assim naturalizado entre grupos sociais normatizados e que ocupam quase sempre posições centrais, ditando, aos demais, as formas de representação, pois falam por si e pelos outros, tanto pela negação dos demais ou por considerá-los subordinados. (FROEMMING; IRINEU NAVAS, 2010, p.7).
O estudioso sobre a homossexualidade no Brasil, Mello (2004), em sua tese de doutorado Família no Brasil dos anos 90: um estudo sobre a construção social da conjugalidade homossexual, afirma que a discussão sobre o reconhecimento da conjugalidade homossexual emergiu no cenário político brasileiro no final da década de 1990, no âmbito das eleições para a Presidência da República. Esta proposta foi inserida no Programa de governo do candidato Luís Inácio Lula da Silva. Sobre pressão de grupos conservadores, essa proposta foi retirada do programa presidencial de governo, mas não abandonou o cenário político, pois deputados eleitos assumiram o compromisso de defender essa proposta. A luta pela liberdade sexual teria como justificativa a legalização de uma situação de fato e de garantir o amparo aos homossexuais diante da perda de seus parceiros. Diante de tais fatos e adversidades que compõem a sociedade brasileira e, consequentemente, interferem nas políticas públicas, é necessário destacar algumas lutas e conquistas do movimento LGBTT como forma de resistência e de rompimento aos padrões que são colocados, inclusive dentro da política de previdência social. A partir da percepção de que estas pessoas com diferentes orientações sexuais tinham os seus direitos previdenciários destituídos, eles passam a reivindicar formas que garantam seu acesso e de suas famílias à previdência. Em 24 de setembro de 1999, a organização não governamental Nuances realizou uma denúncia, perante o Ministério Público Federal em Porto Alegre, alegando que o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS violava direitos humanos, a igualdade e a livre expressão sexual ao 9 indeferir administrativamente pedidos de pensão previdenciárias para companheiros do mesmo sexo . Então, instaurou-se procedimento administrativo pelo Ministério Público Federal. O superintendente do Instituto confirmou a veracidade da denúncia, alegando que "não é devida a concessão desses benefícios em casos de relação homossexual". Baseado em tais fatos, os procuradores da república Paulo Gilberto Cogo Leivas e Marcelo Veiga Beckhausen ajuizaram ação civil pública, pedindo que o INSS – Instituto Nacional de Seguro Social passasse a considerar o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial de mesma classe dos companheiros heterossexuais, passando a conceder a pensão por morte e o auxílio-reclusão, além de expedir ato administrativo nesse sentido. Em suma, o pensamento não é a defesa dos homossexuais ou heterossexuais, mas como as disparidades atingem sua forma de sociabilidade e acesso aos diretos, já que o “assumir” se torna velado e dificultoso. Além disso, como está o modelo de família que hoje na contemporaneidade apresenta uma complexa reorganização assumindo outros arranjos, trazendo outras demandas sociais e, consequentemente, a proteção dos seus membros (SUNKEL, 2006). Situar o debate da diversidade sexual não exige que se procurem as causas ou que se conheçam individualmente preferências ligadas à esfera da sexualidade, mas sim salientar o patamar emancipatório do tratamento com igualdade.
CONCLUSÃO Assim, concluímos que o padrão da heteronormatividade traz rebatimentos nas análises institucionais sobre a família, recaindo na perspectiva do “familismo”, perpassando os programas, serviços e benefícios existentes nas políticas de seguridade social, o que repercute na inclusão/exclusão de dependentes. Desta forma, deixa à margem no acesso e na qualidade de participação pessoas cuja orientação sexual seja diferente daquela proposta pelos padrões sexuais. A inclusão da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais - LGBTT nas políticas públicas foi um longo e árduo processo de luta bastante recente contra os preconceitos que geram as mais diferentes formas de exclusão social. Apesar das adversidades, mostramos que tiveram grandes avanços no referente ao acesso das famílias homoafetivas aos benefícios da previdência social, um direito que foi garantido com a organização dos sujeitos protagonistas dessa luta. Ainda vale ressaltar que é primordial a melhoria no atendimento nas instituições, sejam elas públicas ou particulares, para acolher os usuários dos mais variados serviços, compreendendo suas diversas faces. Pois a partir do momento em que o usuário sente-se seguro para iniciar os procedimentos 9
Fonte: <http://www.prrs.mpf.mp.br/home/bancodocs/acp/porto-alegre/1997 Acesso em: 21 jul. 2014.
2000/homossexuais.previdencia.doc>.
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nas entidades, dá-se o primeiro passo para a garantia dos direitos sociais. Por isso, devem-se realizar capacitações em relação aos funcionários que lidam diretamente com a população, pois ao adentrar os equipamentos e ser atendida (o) adequadamente, a continuação do serviço é realizada. A luta não para, ainda há várias conquistas em todo o tripé da seguridade social, como Saúde e Assistência Social, entre outras políticas sociais setoriais, mas é assim, pautando o debate e mostrando que existem diferenças nas relações sociais, já que a sociedade é dotada de contradições. Sendo que é possível desconstruir o pré-estabelecido e se construir uma liberdade para a emancipação humana, pautando a universalização das políticas públicas dotada de diversidade. Por fim, a construção de um diálogo entre as políticas sociais e a realidade da sociedade no âmbito familiar na contemporaneidade é complexa, principalmente no contexto neoliberal, onde se reduz o acesso ao trabalho, tornando o Estado mínimo cada vez mais. Contextualizar o panorama de atuação do Assistente Social para que este vise à compreensão desse cenário permitirá, assim, a construção de subsídios para superá-los, a fim de atender o compromisso assumido no projeto ético-político profissional.
REFERÊNCIAS BEHRING, Elaine Rosseti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009. BRUSCHINI, Cristina. Teoria Crítica da Família. In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000. DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a justiça! Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003. FACHINI, Regina. Sopa de letrinhas: movimento homosexual e produção de identidades coletivas nos anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond,2005. FROEMMING, Cecília Nunes; IRINEU, Bruna Andrade; NAVAS, Kleber. Gênero e sexualidade nas pautas das políticas públicas no Brasil. Revista de Políticas Públicas, São Luís-MA, número especial, p. 6, ago. 2010. IRINEU, Bruna. A política de previdência social e os direitos LGBT no Brasil. 2009. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de Goiás: UFG, Goiânia, 2009. LOIOLA, Luís Palhano. Diversidade Sexual: Perspectivas Educacionais. Fortaleza: Edições UFC, 2006. MIOTO, Regina Célia. Cuidados sociais dirigidos à família e segmentos sociais vulneráveis. Capacitação Em Serviço Social E Política Social. Módulo 4: o trabalho do assistente social e as políticas sociais. Brasília: UNB/ Centro de Educação Aberta, Continuada a Distância, 2000. ______. Novas propostas e velhos princípios: a assistência às famílias no contexto de programa de orientação e apoio sociofamiliar. In: SALES, Mione Apolinário. Política Social Família e Juventude. São Paulo: Cortez, 2006. ______. Família e políticas sociais. In: BOSCHETTI, Ivanete et al. (Orgs.). Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008. SUNKEL, Guilhermo. El papel de La família em La protección social em América Latina. Série CEPAL 120. Santiago de Chile, 2006.
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“REFLETINDO SOBRE O MATRIMÔNIO”: SIGNIFICAÇÕES ACERCA DA SEXUALIDADE PARA OS CASAIS PARTICIPANTES DO ENCONTRO DE CASAIS COM CRISTO (ECC)10
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MOURA, Juliana de Sousa ; BEZERRA, Anielly Maria Aquino ; BASTOS, Tamires Ferreira
RESUMO Antes de ser tomada com objeto de estudo, a sexualidade era vista apenas como a forma de perpetuar espécies. A história da sexualidade humana só foi sendo pensada nos últimos séculos, passando a ser concebida para além de um ato físico, recebendo um significado simbólico complexo. A partir da compreensão de que o Brasil continua a ser a maior nação católica do mundo, entende-se neste estudo as possíveis implicações das crenças e culturas ideológicas direcionadas por uma Instituição, nesse caso, a Igreja Católica, nas mediações da vida social. O trabalho objetiva apresentar resultados parciais da pesquisa, em andamento, “Concepções de corpo e sexualidade para os casais participantes do Encontro de Casais com Cristo (ECC)”. A metodologia utilizada é de cunho qualitativo. As análises possuem como norte o capítulo “a sexualidade no casamento”, do temário nº 1 “refletindo sobre o matrimônio”.
Palavras-chave: Sexualidade. Gênero. Religião.
INTRODUÇÃO Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 86,8% dos brasileiros se afirmam como cristãos, sendo 64,6% professando a religião católica e 22,2% evangélicos; 2% são espíritas; 8% declaram não possuírem religião; adeptos do candomblé e umbanda representam 0,3%; 2,9% outras. (IBGE, 2010). Até o dia 31 de dezembro de 2010, a população mundial era de 6.848.550.000 pessoas, com um aumento de 70.951.000 em relação a 2009. O aumento global, em 2010, também se aplica a todos os continentes: os aumentos mais consistentes estão na Ásia (+40.510.000) e África (+22.144.000), seguidos pela América (+5.197.000), Europa (+2.438.000) e Oceania (+662.000). De acordo com o Anuário da Igreja Católica de 2010, até 31 de dezembro de 2010 o número de católicos em todo o globo terrestre era representado por 1.195.671.000 unidades com um aumento total de 15.006.000 pessoas em relação a 2009. A porcentagem de católicos aumentou globalmente 0,04% em relação a 2009, ou seja, em 2010 17,46% da população mundial era de católicos. (Anuário Estatístico da Igreja, atualizado em 31 de dezembro de 2010/ estudo realizado pela Agência Fides). Na intenção de qualificar e problematizar os dados supracitados diante das mediações da vida social, o objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados parciais da pesquisa, em andamento, “Concepções de corpo e sexualidade para os casais do Encontro de Casais com Cristo (ECC)”, cujo objetivo geral é investigar como a Igreja Católica Apostólica Romana exerce influência na construção das concepções de corpo e sexualidade entre os casais participantes do ECC, bem como interpretar quais os significados de corpo e sexualidade para esses casais. Fundado pelo Padre Afonso Pastore, o ECC teve início no ano de 1970, na cidade de São Paulo, na paróquia Nossa Senhora do Rosário/Vila Pompeia, em uma conjuntura marcada pela revolução sexual (ou “liberação sexual”), pelo surgimento de uma nova perspectiva de organização política da juventude frente aos protestos sociais, às resistências aos regimes autoritários. Ainda sobre os meados da década de 60, é válido mencionar a segunda fase (ou “onda”) do movimento feminista, a eclosão do movimento negro e do movimento homossexual, assim como a organização do movimento hippie. Abalizados por fortes violências políticas e crises econômicas, os anos 70 foram palco de duas crises do petróleo (a primeira em 1973 e a segunda em 1979); já no cenário brasileiro, em 1978, o Ato Institucional n°5 (AI-5) é extinto e em 1979 a Lei da Anistia foi sancionada. Padre Afonso Pastore idealizou o ECC para ser desenvolvido em três etapas distintas, indispensáveis e inter-relacionadas, cada uma com características e finalidades próprias, em que uma etapa 10
Projeto de Pesquisa. Graduanda em Serviço Social, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará; julianasousa_moura@hotmail.com 12 Graduanda em Serviço Social, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará; aniellyaquino@gmail.com. 13 Graduanda em Serviço Social, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará; tamiresfbastos@gmail.com. 11
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é preparatória para a seguinte (Documento Nacional, ed. 92, 2012, p. 15). A primeira etapa é conhecida como “encontro”, que, na tradição, inicia-se em um final de semana e se desenvolve com os estudos de quatro livros chamados de “temários”. Dessa forma, a pesquisa está sendo desenvolvida com casais que fazem parte da primeira etapa. Por fim, neste trabalho serão apresentadas análises parciais acerca do capítulo “a sexualidade no casamento”, do temário nº 1 “refletindo sobre o matrimônio”.
METODOLOGIA Como já explicitado no título e na introdução do trabalho, para compreender como a Igreja Católica está debatendo o tema “corpo e sexualidade” na vida conjugal, tem-se como sujeitos da pesquisa os casais participantes de um dos grupos de estudos (também chamados de “ciclos”) do ECC pertencentes à primeira etapa. A metodologia utilizada foi de cunho qualitativo porque o intuito é trabalhar “[...] com o universo dos significados que os sujeitos atribuem às suas práticas e ações sociais [...]” (BEZERRA, 2002, p.17), ou seja, busca desvelar as concepções e significados atribuídos pelos casais participantes do “ciclo” da primeira etapa, que será acompanhado, sobre suas percepções acerca do corpo e da sexualidade. Nesse resumo, escolheu-se um estudo descritivo, pois existe a intenção de promover um detalhamento sobre a construção de significados que a Igreja repassa aos seus membros. Ademais, este estudo valeu-se de pesquisa bibliográfica e de pesquisa documental, construídas a partir de material já elaborado por outros autores. Procurou-se avaliar também o temário nº 1 “refletindo sobre o matrimônio”.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Os capítulos do temário nº 1 são divididos em quatro partes: a primeira diz qual é o objetivo do estudo daquele tema, indica leituras bíblicas para fundamentar a discussão e levanta algumas reflexões; a segunda descreve uma situação hipotética a fim de levantar questionamentos; a terceira trata-se de uma análise da primeira e da segunda parte para que os casais entendam e possam aprofundar a discussão com o grupo; e a quarta procura levar os casais e o grupo a proporem algo que devam mudar ou melhorar em suas vidas, avaliar a reunião anterior e realizar a oração final. No capítulo “a sexualidade no casamento”, as leituras da Bíblia indicadas são: Gênesis 2, 18-25; I Coríntios 7, 1-11 e Efésios 5, 25-33; a situação hipotética descreve a vida de um casal que está junto há 3 anos, eles têm uma filha, ele possui dois empregos para que possa arcar com as despesas, e ela teve que trabalhar fora e passou a descuidar de sua aparência e de seu aspecto físico, eles já não conseguem ter a mesma “harmonia conjugal” do início do casamento. A fundamentação para a análise da primeira e da segunda parte procura esclarecer para os casais o que é sexualidade, o que é sexo e qual a relação entre sexualidade, sexo e o casamento e sua quarta parte sublinha a passagem do livro de gênesis: “e Adão disse: eis aqui, agora, osso de meus ossos e a carne da minha carne” (Gn 2, 23). Osterne e Silveira (2012) definem relações de gênero como uma construção que perdura ao longo da história em que predominam relações de poder e a dominação masculina. Essas autoras concluem que as relações de gênero foram edificadas nas diferenças anatômicas e fisiológicas entre os sexos e foram espalhadas pelas famílias, escolas e pela mídia como reflexo da ideologia machista e patriarcal na qual nossa sociedade ainda encontra-se inserida. Saffioti (2004) argumenta que o conceito de gênero não é apenas uma categoria de análise, mas também uma categoria histórica e conceitua gênero como uma construção social do que é masculino e do que é feminino. Segundo a autora, o conceito de gênero não explicita, necessariamente, desigualdades entre homens e mulheres, pois na maioria das vezes a hierarquia é apenas suposta e aponta que o patriarcado não abarca apenas o meio familiar, mas toda a sociedade. Scott (1990) afirma que o termo gênero é usado para fazer referência as relações sociais estabelecidas entre os sexos, uma categoria social “fixada” sobre um corpo sexuado e foi criado para fazer oposição a um determinismo biológico nas relações entre os sexos, dando-lhes um caráter essencialmente social. Segundo Scott, ele é uma primeira forma de dar significado às relações de poder em uma sociedade. Para Neves (2006, p.56), “a sexualidade é abordada pela sociedade através de instituições que orientam os indivíduos e garantem uma experiência controlada, de modo que a subjetividade tenha poucas iniciativas perante imposições coletivas”. Na obra “A história da sexualidade I: a vontade de saber”, Foucault (1999) aborda o controle social sobre o corpo e a sexualidade como uma maneira de instituições e políticas sociais realizarem um domínio de intervenção sobre os indivíduos. A análise promovida por esse autor revela que a expressão da subjetividade está refreada ao julgamento social. Esse autor expõe, segundo a
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interpretação de Neves (2006), que a experiência da sexualidade é fortemente orientada pelo coletivo, ao ponto de que são instituídos sistemas de controle da sexualidade dos indivíduos. Sendo assim, entendemos que, para Neves e para Foucault, a sexualidade é uma instituição de satisfação de necessidades humanas e de reprodução do grupo, porém controlada por sistemas normalizadores da vida em sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a leitura qualificada do capítulo mencionado e das leituras bíblicas por ele indicadas, percebese que o discurso que a Igreja procura difundir é o de um sistema de “oposição binária” (homem/mulher; masculino/feminino), afirmando a “soberania” do ser mulher e do ser homem, não reconhecendo a legitimidade de outras identidades de gêneros e orientações sexuais, ou seja, ignorando identidades de gênero que estão para além do “ser mulher” e do “ser homem” e orientações sexuais que não sejam a heterossexualidade. Apesar do texto de fundamentação (terceira parte do capítulo) apresentar uma ideia de igualdade e de que homem e mulher se complementam, percebe-se que o homem é colocado como aquele que é dotado de virilidade e força. Ora, na segunda parte, em sua situação hipotética, o/a leitor/a apreende que as causas dessa perda de estímulo sexual de um cônjuge para com o outro foram: a mulher teve que trabalhar fora e passou a descuidar de sua aparência e aspecto físico, e o homem tinha dois empregos, chegava à sua casa e tentava manter um relacionamento sexual com a esposa, porém esta afirmava estar sem disposição. Como afirmou Richard Parker (1991) em sua obra Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo, ao homem, na tradição patriarcal, atribui-se características como superioridade, força, virilidade, atividade, potencial para a violência e o legítimo uso da força; e à mulher características como beleza, delicadeza, zelo, aquela que deve estar sujeita ao pai, ao marido, ao irmão porque é o “sexo frágil”. A sexualidade, de acordo com o texto do capítulo já citado, é vista como uma das formas de linguagem do amor, só se tornando plena se for aceita pelo marido e pela mulher, não podendo ser reduzida apenas ao ato sexual, pois ela engloba outros aspectos (a necessidade corpórea e a necessidade espiritual). A sexualidade é vista como algo essencialmente espiritual porque, segundo o temário nº 1, reflete a vontade dos conjugues de permanecerem casados, compartilhando cotidianamente suas vidas. Percebe-se, então, que a sexualidade, para os idealizadores dos temários para o ECC, em conformidade com a leitura realizada do documento já mencionado, é concebida como uma construção social que visa não apenas à perpetuação da espécie, não a reduzindo apenas ao ato físico. De acordo com o temário “refletindo sobre o matrimônio” e as leituras bíblicas por ele indicadas, apreende-se, preliminarmente, que o matrimônio é uma maneira de controle da sexualidade humana, sendo o lugar por excelência da união entre um homem e uma mulher e da união sexual (ou sexo), devendo ser indissolúvel, destacando aqui a produção e reprodução da heteronormatividade. Em outras palavras, os resultados parciais dessa pesquisa inicialmente revelam que para os casais que participam do ECC o matrimônio deve ser entendido não apenas como um sacramento, nem somente como um ritual efetivado com o casamento perante um altar, um padre e a sociedade que permitirá aos casados exercer a sua sexualidade e o sexo, mas também como uma forma de os solteiros e os viúvos se afastarem do pecado, ou seja, uma maneira de controle social e simbólico sobre o corpo e a sexualidade com base no domínio de intervenção da instituição Igreja Católica. De início, entende-se que a sexualidade e o sexo são expressões, para o matrimônio, da complementação biopsíquica e espiritual dos esposos, centralizadas na concepção da Igreja – organizadora do ECC. Por fim, o interesse pela sexualidade hoje extrapola os níveis da medicina, atualmente cada vez mais pesquisas são produzidas sobre o tema nas Ciências Sociais, Psicologia, Educação, entre outros ramos do saber. Porém, para se ter uma compreensão crítica da sexualidade em suas estruturas e dinâmicas, é necessário se desvincular de valores próprios que podem desencadear conclusões moralizadoras e/ou superficiais sobre a temática, reforçando uma biologização do social (BOURDIEU, 2005).
REFERÊNCIAS BEZERRA, Teresa Cristina Esmeraldo. A pesquisa, o processo de criação do conhecimento e o serviço social: pistas na construção do objeto e o projeto de pesquisa. Texto elaborado para subsidiar as disciplinas de Pesquisa em Serviço Social I e II. Fortaleza: 2002, p. 1-21.
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BÍBLIA Sagrada. Tradução de Ivo Storniolo, Euclides Martins Balancin e José Luiz Gonzaga do Prado. São Paulo: Paulus, 1990. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. DOCUMENTO Nacional do Encontro de Casais com Cristo. 92. ed. Brasília: Conselho Nacional do Encontro de Casais com Cristo, 2012. FERREIRA, Kleber; FERREIRA, Laureci. Cremos na vida, cremos na família: Temário Nº 1 – Refletindo sobre o matrimônio. 153. ed. Porto Alegre: Conselho Nacional do Encontro de Casais com Cristo, 2009. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999. FROTA, Maria Helena de Paula. Igualdade/diferença: o paradoxo da cidadania feminina segundo Joan Scott. O público e o privado, Fortaleza, n.19, p.43-58, jan./jun. 2012. IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível em: :<http://www.censo2010.ibge.gov.br>. Acesso em: 10 set. 2014. MADEIRA, Maria Zelma de Araújo; COSTA, Renata Gomes de. Desigualdades de gênero, poder e violência: uma análise da violência contra a mulher. O público e o privado, Fortaleza, n.19, p.79-99, jan./jun. 2012. NEVES, Ednalva Maciel. Reflexões sobre corpo, gênero e sexualidade: um esboço antropológico. Ciências Humanas em Revista, São Luís, v.04, número especial, p.51-60, jun. 2006. OSTERNE, Maria do Socorro F.; SILVEIRA, Clara Maria H. Relações de gênero: uma construção cultural que persiste ao longo da história. O público e o privado, Fortaleza, n.19, p.101-121, jan./jun. 2012. PARKER, Richard G. Corpos, prazeres e paixões: A cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: Best Seller, 1991. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil da análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.02, p., 5-22, jul./dez., 1990. VATICANO. Sala de Imprensa da Santa Sé. Anuário Vaticano: Departamento Central de Estatística da Igreja, 2010.
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QUEER - PARA ROMPER COM A NORMATIVIDADE
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CONZ, Luciana Ribeiro.
RESUMO Toma-se forma, nos dias atuais, posições radicais e discursos mal embasados a respeito da sexualidade que vêm sendo criados a partir do medo da diferença e fazendo com que as pessoas cada vez mais se isolem entre seus iguais na tentativa de se fortalecerem e se identificarem. Este trabalho traz a teoria queer como proposta para enxergarmos a(s) sexualidade(s) e as fronteiras que se constroem em nossa cultura e ir além, propondo um encontro potente com essas fronteiras e, como efeito deste encontro, criar novas sexualidades. E, quem sabe, como efeito, romper com esse movimento de guetificação e medo do outro. Palavras-chave: Padrões de identidades. Cultura. Teoria queer. Sexualidades.
INTRODUÇÃO Faz-se imperativo, nos dias de hoje, discutirmos questões relacionadas à sexualidade diante da diversidade que encontramos no nosso cotidiano e da que ainda podemos produzir. Posições radicais e discursos mal embasados vêm sendo criados a partir do medo da diferença, fazendo com que as pessoas cada vez mais se isolem entre seus iguais, na tentativa de se fortalecerem e se identificarem. Este trabalho traz a teoria queer, elaborada principalmente por Judith Butler, filósofa estadunidense contemporânea, como proposta para enxergarmos a(s) sexualidade(s) e as suas fronteiras que se constroem em nossa cultura e ir além, propondo um encontro potente com essas fronteiras e, como efeito deste encontro, criar novas sexualidades. Desde os primórdios da civilização, os lugares sociais e dos sujeitos dentro de seus grupos têm uma estreita relação com os seus corpos físicos. A aparência de seus corpos vão passar por classificações, ordenações e hierarquizações a partir de normas e padrões de sua cultura local. Desta forma, a cor da pele, dos cabelos, a presença de vagina ou de pênis tornam-se marcas definidoras de raça, gênero, etnia e estabelecem o lugar deste corpo na sociedade (LOURO, 2008). A teoria queer vai explicar esse arranjo social primeiramente pelo viés da sexualidade e suas marginalidades, mas amplia sua crítica trazendo as identidades em geral como fronteiras bem definidas que desempenham papel fundamental na manutenção de culturas normativas. METODOLOGIA Como metodologia para a realização deste trabalho, foi realizada revisão bibliográfica e análise posterior de obras de autores queer que discutem a conceituação desta nova teoria e sua aplicabilidade na sociedade atual. Contudo, a obra Um corpo estranho, de Guacira Lopes Louro (2008), obteve importante destaque nesta análise. DISCUSSÃO A ordem sexo – gênero – sexualidade configura um movimento no qual características biológicas do corpo (o sexo do feto ainda no ventre) vão indicar o gênero do indivíduo (feminino-masculino) e vão determinar a forma correta de expressar a sua sexualidade e seu desejo (homem com seu comportamento padrão se relacionará sexualmente com a mulher e vice-versa). Para Foucault, esse arranjo se dá a partir de discursos de uma dada cultura que marca seus corpos com suas verdades científicas, religiosas e até mesmo “naturais”. Parte-se da premissa de que a diferença biológica dos corpos é algo dado da natureza e seguir esse fluxo acima é apenas o movimento natural das coisas (FOUCAULT, 1993). Porém, ele vai romper com essa lógica quando afirma que esse constructo está inserido em uma cultura que o criou com 14
A origem deste trabalho vem de um incômodo e um desejo pessoal de pensar a teoria queer e dialogar com outros atores os seus efeitos na sociedade. Sem as barreiras de uma instituição que o legitime enquanto saber, este trabalho vem para propor uma viagem por Butler, Lopes, Foucault e Peres. 15 Especialista em Saúde Coletiva (HC-FMUSP) e Psicóloga (UNESP). Fortaleza, Ceará. lu_ribeiro_conz@hotmail.com.
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seus discursos de poder e, dessa forma, deixou marcas de poder nos corpos (LOURO, 2008). Marcas estas que geralmente têm matriz heterossexual, homem-centrada e branca. Essas marcas delimitam fronteiras de normatividades, ou seja, ditam o que pode e o que não pode. Porém, Guacira Lopes Louro (2008, p. 19) nos aproxima dessa fronteira dizendo que ela é “lugar de relação, região de encontro, cruzamento, confronto” e nos fala de indivíduos que perambulam por esta fronteira, em um ir e vir que desmonta a premissa de que essas fronteiras são rígidas e impenetráveis, como os discursos de poder querem que os corpos creiam. A Drag Queen, quando rompe com a fronteira da sexualidade e do gênero, escancara a construção dos gêneros com as perguntas que ela incita. Ela causa ambiguidade, confusão e mixagem com esse movimento nômade de gênero. Contudo, ela, assim como os outros personagens transgressores da sexualidade, não se coloca como um ideal de novo sujeito. Não existe uma intenção de ser referência de gênero, de ser humano, ou seja, não existe a intenção de fixar novas fronteiras, mas como efeito de seu movimento nômade eles ampliam o entendimento de que existe uma multiplicidade de formas de gênero e sexualidade que pode ser construída. Eles não ditam “Vamos todos ser drag, ser trans. Sejam como nós!”. Todavia, a sua forma de viver transgressora das normas da sociedade incomoda o outro porque desmascara essa “essência” do gênero e a universalidade de homem/mulher, tirando-lhes sua zona de segurança e um dos principais pilares da cultura ocidental. Com isso, a sua atuação individual se torna política, afetando cânones e convenções culturais, pois sugerem uma ampliação de ser e viver aos seus contemporâneos. Mostram que a diversidade pode ser produtiva, porém, também como efeito, vão desestabilizar fronteiras importantes para a manutenção daquela sociedade da forma que ela está constituída. Queer quer dizer estranho, um possível ridículo, excêntrico e também é um insulto homofóbico (LOURO, 2008). Este termo é apropriado e utilizado por alguns movimentos LGBT, mas ele vai além da crítica da heteronormatividade para se colocar como oposição e contestação das identidades em geral: “Colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier” (LOURO, 2008, p. 38), inclusive das identidades que vão se consolidando em torno da homossexualidade. Romper com o binarismo, a hierarquia, a classificação e a exclusão. É a diferença que não quer ser assimilada e capturada. Isso faz da sua ação bem mais transgressiva e perturbadora. O queer vai abalar os discursos normativos da igreja, da psiquiatria, da sexologia, do direito e suas tentativas de criação de novas “sexualidades” e novos discursos que aparecem sempre no sentido de cooptá-las, enquadrá-las, defini-las. Ele vai desconstruir, fazer um movimento de análise do binarismo homem/mulher, heterossexual/homossexual e outros explorando a ambiguidade, a pluralidade. A identidade enquanto afirmação dá limites e coerência, e exclui, nega o seu oposto. Quando eu sou algo, eu necessariamente não sou o seu oposto. Ex: sou mulher, então não sou homem. A teoria queer permite pensar a ambiguidade, a multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero, mas, além disso, também sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a educação (LOURO, 2008, p. 47).
CONSIDERAÇÕES FINAIS Portanto, pensar e agir queer é fugir dos constructos normativos que limitam nossos corpos e nossa existência. É criar em si e enxergar no outro não mais uma ameaça ao status quo, mas uma potência, uma eterna criação de significados e significantes de nossas sexualidades, gêneros e lugar no mundo. Entender que nossos corpos habitam valores, discursos e marcas que são social, cultural e historicamente construídos e brincar com isso, não se assujeitando às normatividades, mas criando junto suas referências de forma instável. Ou seja, romper com as fronteiras rígidas e seguras e construir linhas porosas e plásticas que vão se moldar em um encontro ético com a vida: “Pensar queer significar questionar, problematizar, contestar todas as formas bem-comportadas de conhecimento e de identidade. A epistemologia queer é, nesse sentido, perversa, subversiva, impertinente, irreverente, profana, desrespeitosa” (SILVA, 2000 apud LOURO, 2008, p. 48).
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REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Bodies that matter. On the discursive limits of sex. Nova York: Routledge. 1993. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 11.ed. Rio de Janeiro: Graal. 1993. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica. 2008. PERES, Wiliam Siqueira. Travestis: corpos nômades, sexualidades múltiplas e direitos políticos. In: SOUZA, Luís Antônio Francisci de et al. Michel Foucault: sexualidade, corpo e direito. Marília: Oficina Universitária, São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. p. 69-104.
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REPRESENTAÇÕES SOBRE AFETIVIDADES E SEXUALIDADES DE ESTUDANTES AFRICANAS NO CONTEXTO DA MIGRAÇÃO ESTUDANTIL EM FORTALEZA-CE 16 LANGA, Ercílio Neves Brandão
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RESUMO Este artigo aborda as representações sociais de estudantes africanas sobre sua vida afetiva e sexual no contexto da migração estudantil em Fortaleza. Parte de um capítulo da pesquisa de doutorado, em andamento. O trabalho, de cunho etnográfico é resultado de seis entrevistas abertas, mescladas com conversas informais com moças oriundas de três países africanos. Durante as conversas, as jovens falam acerca de suas experiências afetivas e sexuais com homens africanos e brasileiros, articulando com outras dimensões como escolaridade, raça, etnia e a própria sobrevivência na diáspora. Percebe-se, entre as africanas, a existência de um imaginário social existente sobre o Brasil como um “paraíso terrestre”, alimentado pelas telenovelas brasileiras que há mais de vinte anos invadem os lares nas sociedades africanas. Já no Brasil, cria-se uma “escala de brutalidade do outro” diferenciada nos seus relacionamentos distintos com homens brasileiros e africanos. Palavras-chave: Representações sociais. Afetividades. Sexualidades. Estudantes africanas.
INTRODUÇÃO As profundas transformações mundiais na modernidade, aceleradas pelos processos de globalização, capitalismo informacional, mudanças nas conexões entre tempo e espaço, trocas transnacionais, aceleração dos deslocamentos mundiais, fluxos de estudantes e de imigrantes, vêm mudando as paisagens urbanas das grandes metrópoles. Como consequência, os modelos de análise tradicionais utilizados pelas ciências sociais não mais dão conta das transformações político-econômicas, espaciais, culturais e identitárias vivenciadas nas grandes metrópoles, particularmente quando contam com a presença de grupos imigrantes. Appadurai (2004) aponta que os meios de comunicação eletrônicos e as migrações são a marca do mundo presente, no qual as imagens, os textos, os modelos e as narrativas que chegam pelos meios de comunicação de massa marcam a diferença entre as migrações do passado e as atuais. Este texto aborda discute as representações sociais de estudantes africanas sobre sua vida afetivosexual, no contexto da migração estudantil em Fortaleza-CE. No caso da imigração de estudantes africanos para o Brasil, é necessário lembrar que, aliado aos convênios educacionais, a televisão e as mídias eletrônicas desempenham papel importante na transmissão de imagens. As telenovelas brasileiras que, há mais de duas décadas invadem os lares em países africanos de língua portuguesa desempenham papel de 18 destaque neste processo de tradução cultural da sociedade brasileira. Mais recentemente, a presença de igrejas evangélicas brasileiras nessas nações africanas tornou ainda mais favorável as representações sobre o Brasil no imaginário social africano. Por outro lado, as mídias e redes sociais como Yahoo, Orkut, Facebook, vêm desempenhando papel de intermediário nesta interação global desigual, por meio de notícias, publicidade, fotografias, contas, perfis, fan pages e profiles. Vejamos o depoimento de uma estudante são-tomense acerca do imaginário existente sobre o Brasil nos países africanos: Assim, informação que tinha assim é mais assim, aquela que víamos, que vemos, que passa na TV. Mas assim, não tinha assim, tipo aquelas informações mais assim, a forma de ser, assim se estive mais. Aquela da novela. Faz muito tempo que passa a novela brasileira em São-Tomé. Desde que eu nasci que passa a novela. Assim, tem uma imagem assim que nós olhamos assim na TV, aquela imagem bonita, não sei quê. Mas quando eu cheguei aqui... [risos] talvez o lugar onde eu estou a morar porque tem outros lugares também tipo... o estilo de casa, não sei quantos. Eu não esperava que fosse tantos prédios, eu sempre gostei de casa, assim. E eu vi assim na TV, eu achava que aquando eu chegasse iria ser 16
Este paper é resultado de parte de um capítulo da pesquisa de doutorado, em andamento, sobre a Diáspora Africana no Ceará. 17 Doutorando em Sociologia na Universidade Federal do Ceará (UFC, Brasil), Fortaleza-CE. E-mail: ercilio.langa@gmail.com 18 De acordo com (Spivak) apud Costa (2012:42), a noção de tradução cultural - esboçada a partir da teoria e práticas etnográficas e, posteriormente, explorada pelas teorias pós-coloniais - baseia-se na visão de que qualquer processo de descrição, interpretação e disseminação de ideias e visões de mundo está sempre preso a relações de poder e assimetrias entre linguagens, regiões e povos.
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igualzinho. Não sei mas foi... um pouco, meio, totalmente diferente. (Entrevista gravada em 04/03/2014).
É nesse contexto transnacional que estudantes africanos temporários emergem nas universidades, nas faculdades particulares, nas ruas e outras instituições públicas e privadas, colorindo com suas roupas, 19 cabelos e tons de pele a etnopaisagem de Fortaleza. Para sobreviver e pagar as mensalidades, assim como outras contas, a maioria desses sujeitos consegue trabalhos como atendentes e vendedores em lojas no centro da cidade, mas também em bares e restaurantes na zona litoral como garçons e garçonetes. Neste esforço de apropriar-me dos percursos e das várias dimensões do cotidiano da diáspora africana em Fortaleza, entendo ser fundamental compreender e discutir as experiências de deslocamentos das estudantes africanas e suas vivências em Fortaleza, a partir do estudo da sua dimensão afetiva e sexual. A rigor, a maioria dos estudos sobre populações diaspóricas negras e comunidades de imigrantes de origem africana tem seu foco nos indivíduos do sexo masculino, negligenciando a condição das mulheres afrodescentes locais ou em trânsito, sejam elas estudantes, imigrantes ou refugiadas, assim como tem ignorado as questões de gênero, sexualidade, afetividade etc. Este trabalho tem como objetivo trazer histórias de vida afetivo-sexual de estudantes africanas que compõem esta diáspora. Como estudante integrante dessa diáspora, sinto-me interpelado a compreender a condição das mulheres africanas imigrantes residentes em Fortaleza, problematizando como objeto de estudo. A pretensão do trabalho é compreender as representações de estudantes africanas sobre sua vida afetivo-sexual. Neste cenário, impõem-se várias questões analíticas: que mudanças afetivos-sexuais a experiência de migração produz nas vidas dessas jovens mulheres? Como pensar suas inserções em uma sociedade racializada? Quais os seus lugares na estrutura social e como se dá a inserção social dessas mulheres na sociedade de acolhida? Ao abordar o caso específico das relações de mulheres negras, Hill Collins (2000) argumenta que a opressão está intimamente ligada às suas histórias familiares e que poucos teóricos sociais estão dispostos a pensar a realidade além das suas experiências pessoais. Na sua ótica, muitas mulheres negras trabalham em situações de opressão segundo a raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade, idade e etnia durante longos períodos de tempo e sem acesso a recursos nas sociedades onde estão inseridas. De fato, entre as estudantes africanas, além da questão das diferenças de nacionalidade, gênero e de classe, verificam-se outros fatores de distinção, tais como a origem étnica e cultural, religião e até de raça. METODOLOGIA Seguindo essas perspectivas teóricas, há cerca de um ano fiz um recorte no meu estudo com a diáspora africana - constituída por estudantes de distintos países e etnias do continente africano -, prestando atenção às questões de gênero, particularmente à condição das mulheres e suas intersecções. Nesse sentido, venho desenvolvendo observações etnográficas com as estudantes africanas, mescladas com entrevistas abertas e conversas informais em diferentes espaços e momentos, como residências, festas e encontros informais. Tais entrevistas abordam o seu cotidiano em Fortaleza, a escolaridade, trabalho, mas também a vida afetivo-sexual etc. Assim, trago as experiências de seis jovens africanas, negras, estudantes em instituições públicas e particulares, de diferentes países, etnias, classes e credos religiosos. À data das entrevistas tinham 19, 24, 26, 26, 27 e 31 anos de idade, duas eram bissauguineenses, duas cabo-verdianas e duas são-tomeenses, residentes em Fortaleza. Entre as estudantes bissau-guineenses, uma tinha namorado baiano e a segunda tinha namorado cabo-verdiano, seus namorados residiam em cidades diferentes, respectivamente Salvador–BA e Amsterdam–Holanda. Já as cabo-verdianas, uma tinha um namorado togolês também estudante e que vivia próximo dela e, outra tinha 20 um ficante cabo-verdiano, morando na região metropolitana de Fortaleza. A última estudante caboverdiana tinha um filho de 11 anos de idade que vivia em Cabo-Verde com seus parentes. Por sua vez, as estudantes são-tomenses, uma tinha um namorado estudante e residente em Portugal com o qual estava noiva e namoravam via internet; a outra estava sem namorado. A maioria das estudantes namora e namorou com africanos, apenas duas tiveram relacionamentos com homens brasileiros.
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Expressão utilizada por Appadurai (2004) para designar paisagens de pessoas que constituem o mundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores convidados e outros grupos e indivíduos em movimento, que constituem um aspecto essencial do mundo e parecem afetar a política das nações e entre as nações sem precedentes. 20 Expressão nativa da juventude brasileira, derivada do ficar, que designa companheiro(a) para encontros fortuitos, casuais, ou relações afetivo-sexuais temporárias.
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DISCUSSÕES Nos encontros cotidianos, em diferentes situações e circunstâncias, cearenses e africanos, de ambos os sexos, gênero, raças e idades, olham-se de forma ambivalente, discriminando-se e sexualizandose. Nas interações, as jovens africanas, na condição de mulheres negras e imigrantes temporárias, portanto, sujeitos marginais, são colocadas em posição inferior e de subalternidade, ocupando um lugar secundarizado em termos de preferências afetivas para relacionamentos estáveis. Fanon (1983) é autor pioneiro a desenvolver uma análise da subjetividade de gênero e raça em sociedades coloniais, privilegiando a diferença sexual para compreender a dimensão psíquica do racismo, considerando-o um sistema criado pela civilização europeia ocidental no qual o homem branco torna-se escravo de sua branquitude e o homem negro da sua negrura. Por outro lado, o racismo revela ser um fenômeno superestrutural que reflete a irracionalidade da estrutura que o produz – ao dividir a sociedade em colonizadores e colonizados –, conferindo aos primeiros o poder de determinar os valores segundo os quais se julga a inferioridade do outro. Ao analisar relações afetivas entre mulheres negras e homens brancos e entre homens negros e mulheres brancas, Fanon (1983) mostra que tais relações revelam uma política: o embranquecimento da raça, ou seja, a valorização da raça branca, revelando um complexo de inferioridade de homens e mulheres negros. Na sua ótica, tais interações afetivas revelam relações de poder e de dominação existentes entre 21 brancos e negros, criadas por meio da história e vividas como uma inferioridade econômica. No contexto migratório de Fortaleza, percebo que, ao mesmo tempo em que são objeto de estigma, as estudantes africanas são também objeto de desejo sexual para encontros fortuitos, sem compromissos afetivos. Nesse cenário, percebo que as mulheres negras – particularmente as africanas – ocupam o último lugar em termos de preferências afetivas em Fortaleza. De fato, pesquisas de Berquó (1987) chamam atenção para a existência de um maior quantitativo de mulheres negras morando sozinhas no Brasil, na condição de viúvas, solteiras e separadas. A este fenômeno afetivo Silva (2008) designa metaforicamente de “solidão da mulher negra”. Vejamos, em seguida, o depoimento de uma estudante residente há cerca de cinco anos em Fortaleza, cujo depoimento espelha um pouco este fenômeno: Eu ia pra as festas africanas, não vou já faz muito tempo. Não sei por quê. Desde que eu cheguei aqui, eu acho que fui a cerca de quatro festas africanas. Eu já fui a algumas festas africanas, teve uma vez que eu fui pra calourada, só. Mas depois não fui mais. Eu aqui na... fui naquela que decorreu no Oásis, no The Pub e a calourada foi aqui no Benfica. [Com quem costuma ficar, namorar?] [Risos] - Com Ninguém. Não costumo ficar com ninguém nas festas. Não paquerava com ninguém. Quando eu vou às festas, eu vou com colegas, assim, mais nada. (Entrevista com estudante são-tomense, gravada em 04/03/2014).
Tal solidão ocorre principalmente por conta da subjetividade e preterimento afetivo de mulheres negras, por parte de homens negros e brancos, numa sociedade brasileira racialmente hierarquizada. Já Fanon (1983) mostra ainda a existência de um número de frases, provérbios e linhas de conduta – entre as mulheres negras – que normatiza a escolha de um namorado branco e de rejeição de um namorado negro em sociedades coloniais. No tocante aos relacionamentos afetivo-sexuais vivenciados pelas jovens africanas em Fortaleza, temos diversas formas de arranjos, desde namoros com africanos ou com brasileiros a envolver dependência econômico-financeira. Senão vejamos: Sim, eu namoro com meu namorado. É namorado. Nós nos conhecemos em África, na Guiné-Bissau, há cerca de cinco anos. A família dele me conhece mais ou menos. O carinho é ótimo. Ele é ótimo. A gente se ama. A gente não se vê porque ele está longe há cerca de cinco meses, ele está na Holanda. Ele mora lá, trabalha lá. As pessoas sabem que nós somos namorados. Ele me assume e eu assumo ele. [...] Eu recebo apoio dele, só dele, dinheiro, presentes, ele me ajuda a pagar aluguel. Costumo sair com ele para festas, 21
Fanon (1983) apresenta um esquema bastante geral relativo a sociedades coloniais, mas que ele considera ser válido para todos os países. Nesse esquema, o homem branco é representado como senhor ou como macho que pode se relacionar com muitas mulheres negras, via de regra, pelo estupro, concluindo que, mesmo havendo segregação entre brancos e negros, verifica-se grandes quantidades de mestiços. Nessas mesmas sociedades, quando uma mulher branca se envolve com um homem negro, essa relação toma um aspecto romântico, havendo uma dádiva e não um estupro. O autor também mostra que, nessas mesmas sociedades, há uma tendência para aceitação de relacionamentos afetivos entre homens brancos e mulheres negras, mas uma recusa de relacionamentos afetivosexuais entre homens negros e mulheres brancas ou mulatas.
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passear, praia, curtir. Nunca namorei nenhum brasileiro, guineense também nunca namorei. Somente meu namorado, o cabo-verdiano. Ele é o único namorado que eu tive. Estamos juntos há seis meses, ele voltou ficou dois meses, aí voltou pra Holanda (Entrevista com estudante bissau-guineense, gravada em 19/03/2013).
Normalmente, os seus namorados são homens africanos, oriundos do mesmo país ou, com raras exceções homens brasileiros afrodescendentes, revelando a existência de poucos relacionamentos interétnicos e interaciais. Percebo que entre as estudantes africanas que namoram, os seus namorados encontram-se ausentes, em cidades distantes, fora de Fortaleza, vivenciando interações pouco estáveis por conta da distância física. Suas interações afetivas ocorrem na esfera virtual pela internet ou via telefone. Vejamos dois trechos de entrevistas gravadas, a primeira com estudante guineense e outra são-tomense: Eu namoro, tenho namorado. Nós nos conhecemos em Salvador, na Bahia, é baiano. Ele mora lá em Salvador. A família dele me conhece, a irmã. Meu namorado morava aqui e era legal. Agora que ele está lá eu sempre vou lá. Eu namorava um cearense, aí a gente terminou. Aí conheci o menino lá porque meu irmão mora em Salvador. Mas sempre que eu vou lá, eu passo um mês, um mês e meio, volto. Fiquei seis meses nas férias. A conversa tem que ser boa né, carinho, sexo, também, tem que ser. Tudo faz parte, é um elemento completo (Entrevista gravada em 17/03/2013). Eu já te disse, eu namoro virtual, na internet, quando eu namoro com uma pessoa, só essa pessoa. Não tenho olhar pra outro. Ele está em Portugal, é de são-tomense, está em Portugal. Inclusive já estamos noivos, virtualmente. Ele quer que a gente case em Portugal, já assim eu adquiro nacionalidade portuguesa, porque ela já tem. Assim, ele passa a nacionalidade pra mim. Ele quer que a gente more em Portugal. Estamos a namorar já tem dois anos. A gente tava namorar, assim já somos noivos. Tipo, a gente namorou um ano, depois de um ano noivou, virtual também, né. Nós nunca nos vimos pessoalmente. O encontro vai acontecer quando eu regressar, vou em Dezembro pra São-Tomé, ele vai lá ter comigo, a gente vai se conhecer lá, porque a gente não se conhece. Porque eu achei assim mais correto, como eu vou sair daqui do Brasil ter com uma pessoa que nunca vi. Ele vai se apresentar à minha família. Vai né. Acho que vai dar certo. (Entrevista gravada em 17/04/2014).
Diante do preterimento afetivo, os passeios aos shoppings centers e as festas africanas representam espaços e momentos de lazer e afetividade, por excelência, que as mulheres dispõem. De fato, os casais inter-raciais constituídos por mulher africana e homem brasileiro são raros nesses espaços, o mesmo não acontecendo com os relacionamentos inter-raciais e interétnicos constituídos por mulher brasileira e homem africano, ou mulher africana e homem africano. É fato inconteste que raça, sexo, formas corporais e cabelos apresentam-se como fatores de atração ou de rejeição. Mesmo diante dessas e outras situações, as jovens africanas apresentam diversas estratégias de diferença como o investimento e valorização na aparência pessoal, frequência a salões de beleza, dentistas, por meio de roupas ousadas e abrasileiradas – saias e shorts curtos ou de roupas coloridas que as remetem à África, diversos acessórios como óculos, pulseiras e colares. Mas também, através da frequência a academias de ginástica, uso de cosméticos da linha black power, tranças africanas ousadas, extensões e mechas nos cabelos. Conforme diria De Certeau (1998), as mulheres africanas têm as suas “estratégias e táticas" de sobrevivência no mercado afetivo-sexual. Nesses relacionamentos, percebe-se a sua preferência por homens que sejam sensíveis à sua condição financeira, que contribuam para sanar as despesas cotidianas e brasileiros que representam oportunidades de maior inserção social. Vejamos: O que me atrai é porque os homens e mulheres brasileiras, eles são muito românticos, isso eu percebo. A diferença dos africanos e brasileiros, é que os homens brasileiros são românticos, mas os homens africanos gostam de ajudar as mulheres, ajudam as mulheres, não só, mas ajudam. Eles se preocupam contigo, eles perguntam se você já comeu, se você já pagou aluguel, já pagou a luz, essas coisas. (Entrevista gravada em 17/03/2012). Minha relação com os homens brasileiros..., eu já namorei dois brasileiros. Um, durou uns 6-7 meses, o outro durou um ano e poucos meses. Me desculpe dizer isso aí, os africanos normalmente não dão carinho como os brasileiros. Os brasileiros são mais carinhosos, mais atenciosos. Esse é o meu ponto de vista. Mas só que os africanos assim, não ligam, não ficam com você muito tempo, essas coisas, porque é cada um por si. Atualmente eu não tenho namorado, mas tô ficando. (Entrevista gravada em 13/03/2013).
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Os homens brasileiros são muito carinhosos, entendem sabe, muito compreensivos. Mas o único defeito é o ciúme. As mulheres brasileiras hiii.., são doentes de ciúmes também! O que é diferente nos homens brasileiros, não tem muita diferença não. São gatos que nem os nossos neguinhos. A diferença é que eles são muito mais carinhosos. Os africanos, eles são uns gatos, não tem como não ver, esse corpaço também, meu Deus! Todo o mundo sabe né. [...] Namorar um brasileiro é preciso ter um coraçãozão pra aguentar. Além de ter cultura diferente, maneira diferente, eles são ciumentos e, aí a gente tem que adaptar a isso. Você vê aqui, todo o mundo brinca, se abraça, mas sem segundas intenções, aí eles não entendem isso desse jeito. Eu entendo que deve ser a cultura deles e tal. A gente brinca, dança, se abraça, oi meu amor e tal. Mas é brincadeira de amigo, nada a ver, não tem que ter alguma coisa. (Entrevista gravada em 19/03/2012).
De fato, nos seus relatos, as mulheres africanas apontam diferenças significativas nos seus relacionamentos com homens brasileiros e africanos, nos quais os brasileiros aparecem como mais carinhosos e menos algozes que os africanos, demonstrando assim, que trocam “olhares” e se relacionam com homens brasileiros. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse deslocamento, as estudantes africanas ocupam uma condição peculiar, apresentando experiências, dramas sociais e interseccionalidades diferentes das dos homens. Sua condição de negras e imigrantes coloca-as numa posição de subalternidade no mercado afetivo. As moças se envolvem em nítidas relações de submissão, a envolver dependência econômico-financeira, em seus relacionamentos tanto com africanos como com homens brasileiros. Mesmo diante de dificuldades, elas apresentam suas estratégias, como a escolha de parceiros com melhores condições financeiras, que contribuam no pagamento de despesas. Entretanto, tais relações entre africanos e africanas e entre africano(a)s e brasileiro(a) não estão isentas de choques culturais, assim como de relações de poder e dominação. Mesmo assim, esses padrões de interações não impedem os sujeitos de negociar suas posições sociais. REFERÊNCIAS APPADURAI, Arjun. Dimensões Culturais da Globalização: a modernidade sem peias. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema, 2004. BERQUÓ, Elza. Nupcialidade da População Negra no Brasil. Campinas: NEPO UNICAMP, 1987. COLLIN-HILL. Black Feminist Thought: knowledge, counsciousness, and the politics of empowerment. 2 ed. New York: Routledge, 2002. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v.10, n.001, p. 171-188, jan. 2002. De CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Trad. de Adriano Caldas. Rio de Janeiro: Fator, 1983. PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Revista Sociedade e Cultura, v.11, n.2, p. 263-274, jul/dez. 2008. SILVA SOUZA, Claudete, A. A Solidão da Mulher Negra: sua subjetividade e seu preterimento pelo homem negro em São Paulo. 2008. 185 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2008.
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DE CASA PARA O TRABALHO: A MULHER E AS MUDANÇAS SÓCIO-CULTURAIS DO SEU PAPEL NA SOCIEDADE. SANTOS, Raquel Silva dos22; POCAHY, Fernando Altair23 RESUMO Este trabalho é parte de uma pesquisa em processo desde o final de 2013. Tem como objetivo central problematizar o papel da mulher na sociedade contemporânea a fim de salientar as mudanças sócio-culturais sofridas. Principalmente a partir da década de 1960, as mulheres, influenciadas diretamente pelo feminismo, colocaram em discussão a divisão entre o domínio do espaço público e do espaço privado. Lutaram por seus direitos, inclusive desvinculando casamento/sexo e reprodução, e buscaram seu novo espaço no âmbito público. A construção patriarcal sobre o gênero feminino já não lhe serve mais: a mulher não se enxerga como objeto, e sim como sujeito. Agora, esta mulher que vem demonstrando poder/saber sobre si mesma, refletido nas suas relações sexuais, afetivas e sociais, planeja conquistar cada vez mais espaços. Então, refletiremos sobre: quais serão as novas reivindicações? Palavras-chave: Mulher. Sociedade. Mudanças. Feminismo.
INTRODUÇÃO Problematizaremos as mudanças históricas e culturais nos papéis de gênero, a mulher e seu posicionamento, que colocam em discussão a divisão entre o domínio do espaço público e do espaço privado. E agora, cada vez mais, requerem também mudanças no olhar dos homens sobre esses papéis. Vamos lançar um olhar mais profundo sobre o posicionamento socioeconômico da mulher na sociedade moderna e contemporânea. Como a sociedade, principalmente a sociedade brasileira, enxerga essas mulheres e qual papel social foi assumido por ela. Assim, refletiremos, a partir de uma revisão bibliográfica, sobre as mudanças sócio-culturais influenciadas diretamente pelo feminismo e a emancipação do corpo da mulher. Partiremos da revolução industrial, a inserção do gênero feminino no mercado de trabalho e posterior difusão da pílula, que a partir da década de 60 muda a relação dessas mulheres com casamento, sexo e reprodução, pois sua sexualidade não é mais condicionada exclusivamente para tal fim. Há, com isso, o despertar pela busca de um novo espaço e a luta pelos seus direitos na sociedade, nos quais a mulher passou a ocupar não só o âmbito privado, como o público. Revisaremos esses momentos com o intuito de dialogar com as discussões atuais acerca do papel da mulher na sociedade, seus “direitos e deveres” ainda vigentes na contemporaneidade. Para, a partir daí, nos questionarmos: qual será o próximo passo?
METODOLOGIA No primeiro momento da pesquisa, realizamos uma revisão bibliográfica a fim de levantar um número considerável de material como livros, artigos e periódicos relacionados aos temas mulher, feminismo e sociedade. Nesse período, não fizemos muita divisão acerca do real objeto, pois o objetivo era fazer um levantamento histórico sobre o que foi registrado acerca dessas mudanças no papel da mulher na sociedade. No segundo momento, colocamos em foco o que consideramos mais importante, como: influência do feminismo, questões socioeconômicas, conquista do espaço público e redescoberta do corpo e da sexualidade feminina. Passando a eliminar o material irrelevante e resenhando os demais para posterior aproveitamento. Atualmente, estamos transformando em textos o material recolhido. Estamos também verificando a possível necessidade de reforçar o referencial teórico na busca de discussões mais atuais e vigentes na sociedade contemporânea, já que o objetivo da pesquisa é levantar indagações relevantes para respaldar e incentivar cada novo posicionamento da mulher na contemporaneidade.
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Graduanda em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, Ceará. Email: quelraquel@outlook.com 23 Doutor em educação vinculado à Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, Ceará. Email: pocahy@uol.com.br
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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Diante do objetivo de problematizar o papel da mulher na sociedade contemporânea a fim de salientar as mudanças socioculturais sofridas, nos apropriamos do conceito de re-criar a (categoria) mulher de Piscitelli, a fim de dialogar com os conceitos já bem difundidos de que o feminino e o masculino são “socialmente produzidos”, como nos mostra Colling (2004). Um ponto bastante crucial nessa transformação do comportamento da mulher é a influência do feminismo, tema que nos foi esclarecido por Alves (1985) e Piscitelli (2006). Percebemos, também, que era importante salientar a sexualidade da mulher, através de Foucalt, e a transformação da mesma refletida em suas relações, recorrendo a Giddens. E continuamos buscando autores contemporâneos para melhorar os questionamentos da pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A maior parte das mulheres na contemporaneidade não aceita mais a dominação masculina, seja no campo social, econômico ou afetivo. Aliás, a maioria das pessoas agora rejeita os valores e conceitos criados na sociedade patriarcal, entendendo que não há um ser humano padrão e a sexualidade não é uma condição natural, de nascença, que deve ser vivida e reproduzida. Giddens (1993) afirma que “a vida pessoal tornou-se um projeto aberto, que tem sido descoberta, revelada e propícia ao desenvolvimento de estilos de vida bastante variados, criando novas demandas e novas ansiedades”. A igualdade por completo entre os gêneros ainda não foi alcançada, mas já há pequenos/grandes passos rumo a mudanças crucias no comportamento de homens e mulheres em relação um ao outro. Os questionamentos só aumentam e a luta feminina continua em busca do reconhecimento da igualdade entre os seres humanos.
REFERÊNCIAS ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é FEMINISMO? São Paulo: Ed. Abril Cultural: Brasiliense, 1985. COLLING, Ana. A construção histórica do feminino e do masculino. In: STREY, Marlene N.; CABEDA, Sonia T. Lisboa; PRENH, Denise R. (Orgs.). Gênero e Cultura: Questões Contemporâneas. Porto Alegre: EDIPURCS, 2004. p. 13- 38. COSTA, Lúcia Cortes da. Gênero: <http://www.uepg.br/nupes/genero.htm>.
Uma
questão
feminina.
Disponível
em:
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, 3: o cuidado de si. – Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. PISCITELLI, Adriana (org.). Olhares Feministas. Brasília: Ministério da Educação: UNESCO, 2006. ______. Re-Criando a (categoria) mulher? Disponível em: <http://www.pagu.unicamp.br/sites/www.pagu.unicamp.br/files/Adriana01.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2013. XAVIER, Sônia Maia Teles. E por falar em mulheres. In: II Seminário Internacional Enfoques Feministas e o Século XXI: Feminismo e a Universidade na América Latina. Anais... Belo Horizonte, 2008.
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DO PRECONCEITO À DIGNIDADE: REPRESENTAÇÕES DE PROFISSIONAIS E USUÁRIOS NA ATENÇÃO BÁSICA DE SAÚDE SOBRE O ATENDIMENTO A TRAVESTIS24. ARAUJO25, Kairo Andrade; MORAES26, Maristela Melo; BENICIO4, Luís Fernando. RESUMO A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) do SUS preconiza o atendimento à população brasileira, ancorada em alguns princípios – da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social - norteando qualquer atendimento realizado nas redes básicas de atenção em saúde. Esta pesquisa tem como principal escopo colher as percepções de profissionais de saúde da atenção básica, bem como de usuários (travestis), acerca do atendimento a esse grupo social em duas unidades básicas de saúde, em Fortaleza, a fim de discutir a efetivação dos princípios da universalidade, integralidade da atenção e equidade do SUS nesses locais, bem como a formação desses profissionais quanto ao atendimento desse público e a frequência com que utilizam esse tipo de serviço de saúde. Trata-se de uma pesquisa de campo com uma abordagem qualitativa por amostra não probabilística que proporcionou levantar reflexões e problematizações acerca do atendimento às travestis na atenção básica de saúde. Ademais, percebeu-se os estigmas enfrentados por essa população, verificando também a dificuldade de se atender de forma humanizada a esse público e constatando a carência de qualificação dos profissionais no atendimento às travestis. Palavras-chave: Atenção básica. Estigma. Travestis. Formação. SUS.
INTRODUÇÃO No intuito de desenvolver uma pesquisa voltada para questões ligadas aos Direitos Humanos, fazendo uma relação com a área da Psicologia, decidimos abordar a temática da Diversidade Sexual, cujo tema nuclear se intitula Do preconceito à dignidade: representações de profissionais e usuários na atenção básica de saúde no atendimento a travestis. De acordo com a PNAB (Política Nacional de Atenção Básica), a atenção básica é representada pelas “Unidades Básicas de Saúde - instaladas, perto de onde as pessoas moram, trabalham, estudam e vivem - desempenham um papel central na garantia à população de acesso a uma atenção à saúde de qualidade.” (PNAB, 2012, p. 11). Funciona como uma verdadeira porta de entrada da população para o acesso à saúde, sendo, muitas vezes, o contato mais próximo e referência de saúde pública mais imediata para o cidadão brasileiro. Ainda conforme esse mesmo documento, a atenção básica é dotada de princípios que a orientam, sendo eles: universalidade, acessibilidade, vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social (PNAB, 2012). A partir dos princípios de equidade e universalidade do atendimento na atenção básica de saúde, isto é, no entendimento de que todos os grupos sociais, inclusive, os considerados “minorias” (gays, lésbicas, travestis, transexuais, negros, moradores de rua etc.) devem receber tratamento por igual e sem nenhum tipo de preconceito, nossa pesquisa se propõe a verificar se os dois princípios elencados acima se efetivam no tocante ao atendimento às travestis. O estudo teve como objetivo geral identificar as percepções dos profissionais de saúde que atuam na atenção básica acerca do atendimento às travestis, como ainda a opinião destas sobre seu acolhimento nessas redes de atenção básica, tendo desdobramentos em objetivos específicos na investigação da efetivação dos princípios de universalidade, integralidade da atenção e equidade, bem como a formação desses profissionais quanto aos atendimentos desse grupo social, como ainda identificar a frequência com que esse público utiliza os serviços dos centros de saúde em foco na pesquisa e verificar de que forma o serviço de psicologia poderia contribuir nas atividades de atenção básica voltadas para as travestis. O interesse pelo tema nasceu a partir dos diálogos e reflexões gerados ao longo das aulas da disciplina de Tópicos Especiais em Psicologia, ministrada no curso de Psicologia da Faculdades Nordestes DeVry Brasil, que tem como um de seus objetivos despertar e sensibilizar a troca de saberes e diálogos em torno de temáticas de Direitos Humanos e seu envolvimento com a Psicologia, de forma que, em uma das 24
Pesquisa realizada em uma disciplina do curso de Psicologia da instituição Faculdades Nordeste DeVry Brasil. Graduando em Psicologia, FANOR, Fortaleza, Ceará. E-mail: kairo_ce@hotmail.com. 26 Doutorado em Psicologia Social, Professora do Departamento de Psicologia da UFCG, Fortaleza, Ceará, maristelammoraes@gmail.com. 4 Graduando em Psicologia, FANOR, Fortaleza, Ceará. E-mail: luisf.benicio@gmail.com. 25
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discussões, foi abordado o tema da Diversidade Sexual, seus desdobramentos, preconceitos e discriminação contra as “minorias” que fogem da lógica do padrão heteronormativo de expressão da sexualidade humana. Como consta presente na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo XXV): 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
Dessa forma, entende-se que todo ser humano, independente de cor, raça, sexo, classe social, idade, é dotado, de maneira universal, de um conjunto de direitos e garantias, inclusive às que dizem respeito à saúde como um todo e aos cuidados médicos, como bem mencionado no fragmento do documento adotado e proclamado na Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Assim, resguardado, também, nesse fundamento mais abrangente de direito universal à saúde e aos cuidados médicos, foi realizado um estudo que pudesse se aproximar da realidade do atendimento a travestis na atenção básica de saúde em Fortaleza-CE, de maneira que, por meio deste, possamos fomentar reflexões no que tange a possíveis perguntas que nos inquietam, tais como: as travestis têm mais resistência em procurar o serviço na atenção básica porque sentem discriminação. Está presente no cotidiano dos serviços a ideia de que as travestis procuram os centros de saúde da família, em sua maioria, por conta de demandas associadas a doenças sexualmente transmissíveis ou até mesmo a ideia de que os profissionais de a saúde as tratam com discriminação? A pesquisa está estruturada da seguinte forma: introdução com uma explanação geral sobre a pesquisa, visando um maior esclarecimento e entendimento do estudo; em seguida, encontra-se a metodologia, explicitando a maneira como a pesquisa foi realizada, bem como o local, quantidade de participantes etc.; logo após, consta a discussão dos resultados da pesquisa, na qual são expostos os dados obtidos e interpretados e feitas problematizações e reflexões teóricas acerca do estudo e, por fim, há ainda as considerações finais com as pontuações mais pertinentes e percepções mais importantes consideradas na pesquisa.
METODOLOGIA Trata-se de uma pesquisa de campo com uma abordagem qualitativa por amostra não probabilística justificada pela inacessibilidade a toda à população. Considerando o universo de significados que o sujeito atribuiu ao atendimento no serviço de saúde na Unidade Básica de Saúde, especificamente no Centro de Saúde da Família (posto de saúde). Foram convidados a participar dessa pesquisa os operadores de saúde atuantes na unidade básica de saúde e as travestis da cidade de Fortaleza-CE, sendo esclarecida a preservação da identidade aos entrevistados através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O período de coleta de dados se deu a partir dos dias 21 a 23 de novembro de 2013. Foram entrevistados 20 sujeitos. Como instrumento de coleta de dados, foram utilizadas entrevistas com algumas perguntas norteadoras, variáveis fechadas e abertas, caracterizando-se como pesquisa de campo nos âmbitos: (Profissionais de saúde) realizadas no Centro de Saúde da Família de Parangaba, e no Centro de Saúde da Família José Valdevino de Carvalho, ambos localizados no bairro da Parangaba, e (Travestis), nas ruas do bairro Meireles. A pesquisa qualitativa, para Barbosa (2001), analisa os aspectos significativos encontrados no comportamento do fenômeno, o que direciona o autor para conclusões cientificamente satisfatórias. Os objetivos foram explicitados pela pesquisa aplicada. Estes estão preocupados em descrever, investigar, comprovar ou rejeitar hipóteses propostas pelos métodos teóricos utilizando. Por meio da análise do discurso, pretende-se descrever algumas variáveis encontradas na entrevista.
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FUNDAMENTAÇÃO TEORICA OU DISCUSSÕES Com base nos dados coletados por meio da pesquisa de campo, obteve-se um conjunto de informações, as quais foram convertidas em percentual e serão expostas abaixo, de modo que se decidiu destacar, teorizar e problematizar alguns pontos que julgamos mais relevantes para a pesquisa. Como procedimento de interpretação destas variáveis, utilizou-se a análise de discurso como um conjunto de instrumentos que se propõe a interpretar o conteúdo de maneira controlada por meio da inferência, pretendendo obter informações sistematizadas por indicadores qualitativos (CASTRO; ABS; SARRIERA, 2011, p.816) No questionário aplicado com os operadores de saúde, tem-se a primeira pergunta: O Serviço recebe com frequência a população travestis? A partir dos resultados, verifica-se que 67% responderam que “sim” e 33%, “não”. Já no segundo item: Se sim, avalie a demanda, 40% dos profissionais responderam que vão com frequência, 33% disseram que nunca, 20%, pontualmente, e 7% afirmaram que quase nunca. No item Como você avalia a formação direcionada a tópicos sobre preconceito para os profissionais que trabalham na atenção básica, 54% das pessoas responderam que precisam melhorar, 13% disseram que é ruim, 13% afirmaram que é bom, 7% apontaram que é excelente e 13% não responderam. Partindo desses resultados, avaliamos que a formação direcionada a tópicos sobre preconceito para os profissionais na atenção básica é deficiente. Batista e Gonçalves (2011, p. 886) afirmam: Apesar de alguns avanços, a formação dos profissionais de saúde ainda está muito distante do cuidado integral. O perfil dos profissionais de saúde demonstra qualificação insuficiente para as mudanças das práticas. Uma necessidade crescente de educação permanente para esses profissionais, com o objetivo de (re) significar seus perfis de atuação, para implantação e fortalecimento da atenção à saúde no SUS é um grande desafio.
Desse modo, percebe-se que existe a necessidade de melhoria de formação referente ao atendimento desse público, como uma tentativa de dar novos significados, trazer um novo olhar sobre o atendimento às travestis, abrangendo mais as questões relativas ao sexo e gênero, informando-lhes a importância do investimento que a travesti faz para se identificar com o sexo feminino e as várias consequências a níveis corporais e estigmas sociais por que ela passa. Na pergunta: Das vezes que você se direcionou ao serviço, você percebeu alguma situação de preconceito por parte dos profissionais?, 40% responderam que “não”, outros 40% “não responderam” e 20% disseram que “sim”. De acordo com Muller e Knauth (2008, p. 4): Estigmatizadas por não corresponderem ao padrão hegemônico no qual sexo e gênero devem necessariamente coincidir, as travestis constituem um grupo social que não tem garantido o exercício de sua cidadania e são entregues quase que totalmente a sua própria sorte.
Com base nos resultados do item, embora 40% tenham respondido que não perceberam situação de preconceito por parte dos profissionais, observa-se que muitas travestis são tratadas de modo diferenciado nos centros de saúde, pois não se enquadram dentro do padrão hegemônico de sexo e gênero imposto, por meio de críticas explícitas ou implícitas quanto ao modo de se vestirem, às alterações corporais feitas através do uso de hormônios, ao nome social feminino com o qual elas se identificam, fugindo, assim, das normatividades sócio históricas. Na pergunta De que forma o serviço de psicologia poderia contribuir nas atividades da atenção básica?, 60% disseram que o serviço de psicologia poderia contribuir para a superação de preconceito e discriminação que envolvem questões relacionadas à sexualidade e ao uso de drogas etc.; 20% responderam que a contribuição poderia se dar por meio de garantir acesso e atendimento a populações vulneráveis; enquanto que outros 20% das entrevistadas afirmaram que poderia contribuir com atividades educativas para promoção de saúde e prevenção.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Através das representações encontradas nas respostas dos sujeitos entrevistados (travestis), notam-se as inúmeras configurações oriundas de um imaginário reducionista acerca da atenção básica de saúde, em que a busca por um dispositivo de saúde não é através do sistema de saúde, mas por médicos particulares. A maioria afirma que as visitas do agente de saúde não são frequentes. Surgem inúmeros questionamentos pautados na preocupação em encontrar estes usuários. Outro indicador é a referência que os sujeitos fazem na contribuição da psicologia enquanto protagonista na superação do preconceito, discriminação e outros tópicos sensíveis à dignidade humana que se referem à ideia de um território que não está restrito a um espaço geográfico/local. No que se refere aos dados dos questionários dos profissionais de saúde, verifica-se que mais de 50% avaliam que os profissionais necessitam melhorar sua formação no que tange aos tópicos acerca da temática do preconceito. Nessa esfera, infere-se pensar, a partir das contribuições dos profissionais, a participação da psicologia como uma prática que incite uma participação ativa nas rodas de conversa com a comunidade, além de formação profissional, indicadores que sugerem que o fazer psicológico neste dispositivo perpassa um modelo clínico tecnicista e controlador. Tais resultados apresentados respondem alguns dos questionamentos iniciais da pesquisa acerca da população estudada “travestis” ter resistência em procurar o serviço da atenção básica. No que se refere aos fatores que motivam esta população a procurarem o dispositivo “posto de saúde”, não são oriundos de uma demanda de prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis. Não se confirma a hipótese de que o profissional de saúde as trata com discriminação tendo em vista que não há uma presença ativa desta população no serviço, especificamente no “posto de saúde”. A pesquisa despertou relevantes reflexões no que se espera dos profissionais de psicologia, tanto nas intervenções profissionais como na construção de aportes teóricos em tencionar questões relativas a cuidado, território e reformulação de ferramentas para o processo formativo de futuros profissionais da saúde.
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SEXUALIDADE CRIMINALIZADA: UM RECORTE ETNOGRÁFICO DA PROSTITUIÇÃO NO CIRCUITO DAS BOATES DA PRAIA DE IRACEMA – PROJETO DE PESQUISA DO CURSO DE SERVIÇO SOCIAL DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CARDENAS, Laryane de Vasconcelos.
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RESUMO O presente trabalho fez uma abordagem da prostituição nos arredores da Praia de Iracema e visou à compreensão de como as prostitutas do referido local lidam com a sexualidade como instrumento de trabalho. Como metodologia, utilizei a modalidade História de Vida, escolhida por apreender elementos substanciais à pesquisa, e que possibilitou “dar voz aos sujeitos até então invisíveis” (LISBOA; GONÇALVES, 2007). O recorte etnográfico do local foi decisivo por apresentar a riqueza de detalhes do ambiente das boates e as peculiaridades de seus frequentadores. Durante a pesquisa de campo, diversas questões referentes ao tema foram percebidas, dentre elas o preconceito ainda latente da sociedade em relação ao trabalho das prostitutas e a dificuldade de vivenciar sua sexualidade dentro e fora do ambiente de trabalho. Ainda há muito para ser alcançado, visto que as mídias atuam no sentido de estigmatizar cada vez mais homens, mulheres e travestis que se prostituem. Palavras-chave: Prostituição. Sexualidade. Trabalho.
INTRODUÇÃO A prostituição é considerada uma das profissões mais antigas do mundo (RIBEIRO, 2011) No Rio de Janeiro, por exemplo, essa atividade toma proporções maiores a partir de 1850, numa época de um intenso fluxo de imigrantes. Já em São Paulo, o processo de modernização da cidade trouxe consigo o “alargamento dos territórios do desejo” (RAGO, 1991, p. 81). Durante toda a história, diversos discursos foram produzidos acerca da prostituição. De “peste das pestes” à “mal necessário”. De “mulheres influentes” a “mulheres degradantes”. Muitos dos discursos que recaíram sobre a prostituição durante os séculos tinham como objetivo separar a moral da mulher casta daquela mulher dita impura. Destituídas, muitas vezes, dos traços da forte dominação masculina marcada pela história, tais mulheres tiveram um alto preço a pagar: o estigma social. Na linha entre a prostituição e os papéis de gênero, que perpassaram a história das civilizações, estão o significado do sexo e das práticas sexuais nas mais diversas culturas. As práticas sexuais e a atribuição de seus significados se transformaram à medida que ocorreram as transformações sociais, em uma fascinante ligação entre a cultura e a sexualidade. Dessa forma, levando em consideração a relação existente entre as relações de gênero, a prostituição e a sexualidade, este projeto de pesquisa tem por objetivo analisar o significado dessa relação no cotidiano das prostitutas que fazem programa nos arredores das boates da Praia de Iracema, partindo da análise da constituição das profissionais do sexo enquanto mulheres e da relação da atividade que exercem com o exercício da sua sexualidade como instrumento de trabalho. Tomando como ponto de partida a realidade vivida por estas mulheres, que explicitarei mais adiante, resolvi conhecer com mais profundidade como elas desenvolvem este “trabalho” e o que está por trás dele. A Praia de Iracema foi escolhida por se tratar de um local bastante conhecido em Fortaleza, referência como ponto turístico e de muita movimentação noturna. As leituras iniciais que realizei a respeito do tema trouxeram à tona várias discussões sobre as mulheres que praticam programa, como, por exemplo, a dificuldade de saber quem são essas mulheres, como elas vivenciam sua sexualidade dentro e fora do âmbito de seu trabalho, os motivos pelos quais elas realizam os programas e como se dá a construção de sua identidade social enquanto mulheres.
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Graduanda em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Ceará. laryanecardenas@hotmail.com
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METODOLOGIA Para alcançar meus objetivos, a realização de uma pesquisa de campo se fez necessária, tomando como ponto de partida a observação direta das peculiaridades do local em que as prostitutas exercem seu trabalho, pois não se deve negligenciar tal ambiente. Por perceber, durante a pesquisa exploratória, que a Praia de Iracema possui uma riqueza de detalhes e significações sociais para as prostitutas, as quais devem ser consideradas, pois o objetivo aqui é uma aproximação de perto e de dentro do cotidiano delas, optei pelo recorte etnográfico, com a utilização da observação direta e do registro em diários de campo escritos durante todo o processo de elaboração deste trabalho. Nesse sentido, a observação direta e o registro em diário de campo consideram-se como instrumentos de extrema importância no trabalho de campo que essa pesquisa exige. Segundo Ludke e André (1986, p. 26), a observação “possibilita um contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado [...]”. Este contato é fundamental para apreensão de todas as peculiaridades e singularidades do ambiente, bem como dos sujeitos desta pesquisa. O diário de campo é importante para que se tenha a dimensão da totalidade da realidade social, permitindo analisá-la criticamente em todos os seus aspectos. Assim, meu propósito foi o de captar as particularidades que me foram perceptíveis em relação ao cotidiano das prostitutas e dos frequentadores das boates e bares da Praia de Iracema, com o intuito de descrever os sujeitos e suas principais características. A modalidade entrevista também se fez necessária. Segundo Ludke e André (1986, p. 33), a entrevista “representa um dos instrumentos básicos para a coleta de dados”. A busca pela aproximação com mais profundidade do “universo social” em que as prostitutas da Praia de Iracema estão inseridas e de suas experiências contribuirão teoricamente para a discussão acerca dos estigmas e preconceitos a que estão submetidas. O recorte etnográfico desta pesquisa se deu em duas regiões específicas da Praia de Iracema. Para aquele leitor que não conhece o bairro, posso dizer primeiramente que se trata de uma área consideravelmente grande para ser pesquisada e analisada como um todo. Para ter a noção do quão grande é o espaço geográfico da Praia de Iracema, existem mais de 90 pontos de diversão noturna no bairro, distribuídos entre bares, restaurantes, lanchonetes e boates. Dessa forma, devido à grandiosidade do espaço, optei por escolher dois pontos para a realização desta pesquisa. Um deles, intitulado Zip Bar, localizado na Avenida Almirante Barroso, e outro de nome Boate Mambo, localizado na Rua dos Potiguaras.
FUNDAMENTAÇÂO TEÓRICA As questões que pretendo investigar envolvem a relação entre o exercício da prostituição e a sexualidade, considerando a construção da identidade feminina das prostitutas da Praia de Iracema, em Fortaleza. Partindo desta relação, e de outras questões que me instigaram durante minha aproximação inicial ao objeto, como, por exemplo, identificar o perfil dessas mulheres e por que elas se utilizam da venda de seus corpos como um “instrumento” de trabalho, tomarei como ponto de partida desta discussão a crítica teórica aos discursos moralistas sobre a prostituição. Tal crítica se faz necessária, pois esses discursos trancafiaram a sexualidade feminina e excluíram a prostituta do corpo social, pois concebiam o papel da mulher reservado à função de mãe e esposa, não sendo, portanto, permitido o afloramento de sua sexualidade. Na perspectiva da crítica a tais discursos, autores como Rago (1991) analisam a história da prostituição com o objetivo de desmistificar a imagem da prostituta como constituinte de um modelo binário de gênero que constrói, por um lado, a imagem da mulher “pura”, e por outro o da mulher “libertina”, no contexto de uma cultura ocidental burguesa que articula patriarcado e cristianismo. Nessa cultura, a mulher que se prostitui é vista apenas por não ter outros meios de prover-se dos “infortúnios da vida” (RAGO,1991). Rago (1991) pensa a prostituição como uma atividade que está para além das explicações econômicas, pois se trata de uma prática que envolve uma dimensão histórica e cultural e que sofre modificações de acordo com transformações mais amplas na dinâmica social. A expansão do capitalismo e as mudanças nas relações comerciais e sociais propiciaram que essa prática sociocultural ganhasse novas formas e se adaptasse às alterações no sistema vigente. Dessa forma, entende-se que a prostituição não se resume às atividades das mulheres que a realizam tendo como único objetivo satisfazer as vontades e
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os desejos sexuais de seus clientes. Dentro desta existe um universo de sociabilidades nos espaços onde a atividade se desenvolve e que refletem na sociedade como um todo. A figura da prostituta também está relacionada a diversas transformações sociais, tanto no que diz respeito à sexualidade quanto ao comportamento feminino. Esse argumento é justificado por Rago (1991) em razão de a prostituta ser tida como uma mulher pública, que possuía a liberdade para comercializar seu corpo em troca de dinheiro, influenciando as mulheres, de um modo geral, a reivindicarem por liberdade e espaço no campo público. Já Pateman pensa a prostituição como uma forma de contrato sexual entre homens e mulheres. Tal 28 contrato remete à teoria do contrato social que estabelece “a dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual” (SOUZA et al. 2010 apud PATEMAN, 1993, p. 9). Nesse sentido, na sociedade capitalista a prostituta é vista como uma mercadoria que está disponível a quem possa pagar por ela. Trata-se então de um empreendimento capitalista de caráter sigiloso “e o contrato entre cliente e prostituta é visto como um acordo particular entre comprador e vendedor” (PATEMAN, 1993, p. 280). Pateman (1993) e Rago (1991) analisaram historicamente a prostituição partindo da crítica aos discursos que associam tal atividade a um “mal necessário”, que serviria para a manutenção da virgindade das moças de família ou “como consequência lamentável da pobreza e das restrições sociais enfrentadas pelas mulheres que tinham de se sustentar” (PATEMAN, 1993, p. 280). CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das reflexões desenvolvidas neste projeto, pode-se perceber que existem diversas questões que não podem ser esgotadas no tema, como, por exemplo, a discriminação que as prostitutas sofrem por exercerem tal atividade. Dentre as mais diversas justificativas para os maus-tratos sofridos pelas prostitutas estão aquelas de cunho religioso, que consideram a prostituição como degradação feminina. Além disso, as prostitutas correm vários riscos por estarem expostas, principalmente se trabalham nas ruas. O que pude observar com a pesquisa bibliográfica e exploratória é que, apesar dos diversos avanços que essa profissão teve ao longo dos anos, deixando, por exemplo, de ser considerada crime no Brasil, as mídias e a sociedade em geral continuam a estigmatizar cada vez mais as prostitutas. Analisar por que a prostituição é uma atividade tão marginalizada é algo desafiador e interessante. A prostituta sempre foi tratada como o avesso. Como a punição para a mulher que não seguisse aos desígnios da sociedade. Subversão cultural e social. A representação máxima da “extravagância” da sexualidade feminina. Da liberdade feminina. A mulher que recebeu e ainda recebe tantos imaginários sociais. Que foi tratada como louca, histérica, doente, criminosa e que, incrivelmente, carrega a carga dos séculos ainda hoje nas costas. A carga do moralismo e da repressão sexual. REFERÊNCIAS BEZERRA, Roselane Gomes. O Bairro Praia de Iracema entre o “Adeus” e a “Boémia”: Usos, Apropriações e Reapresentações de um Espaço Urbano. In: VI Congresso Português de Sociologia. Mundos Sociais: Saberes e Práticas, 2008. Anais... Universidade Nova Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2008. COSTA, Jurandir Freire. Sexo e Amor no Casal Disciplinado. In: ______. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004. p. 226-239. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. LIMA T. C. S. et al. A documentação no cotidiano da intervenção dos Assistentes Sociais: algumas considerações acerca do diário de campo. Revista Textos & Contextos, Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 93-104. jan./jun. 2007. 28
A teoria do contrato social defende que existe um pacto de consentimento, no qual os indivíduos concordam na formação de uma sociedade, cujo intuito seja a proteção da propriedade, compreendida tanto no sentido dos bens (perecíveis e não perecíveis), quanto no sentido de ser um direito natural dos indivíduos. Os contratualistas, ao legitimarem o Estado postulam que o contrato é a única forma de garantir o progresso, pois a partir deste existe um poder maior, na figura do Estado, que governa a sociedade.
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LISBOA, Tereza Kleba; GONÇALVES, Rita de Cássia. Sobre o Método da história oral em sua modalidade trajetórias de vida. Rev. Katál., Florianópolis v. 10 n. esp., p. 83-92, 2007. LOURO, Guacia Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação. Editora Vozes, Petrópolis, 1997. LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Abordagens Qualitativas de Pesquisa: A Pesquisa Etnográfica e o Estudo de Caso. In: ______; ______. Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. p. 11-24. MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade Criminalizada: Prostituição, Lenocínio e Outros Delitos. Rev. bras. Hist., São Paulo, v. 18 n. 35,1998. MAY, Tim. Pesquisa social: questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artmed, 2004. PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Trad. de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. PRIORE. Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta Brasil, 2011. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos Orais: do “Indizível” ao “Dizível”. In: SIMSON, Olga de Moraes (org.). Experimentos com Histórias de Vida. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1988. p. 14-43. RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: A Utopia da Cidade Disciplinar Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. ______. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890 – 1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. RIBEIRO, Fernanda Maria Pinheiro. Casas de prostituição e o circuito sexual das prostitutas de luxo no Nordeste. In: XI Congresso Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Anais... Salvador, Bahia, 2011. SOUSA, de F. I. O Cliente – O outro lado da prostituição. Fortaleza: EdUFC, 1996.