Anais do I Diálogos Convergentes do IX Curta O Gênero, AGO 2021

Page 1


2


Coordenação Geral Christianne Ribeiro Gonçalves Marcos Rocha Assistentes Andrezza Queiroz Stefany Coelho Coordenadores dos eixos Jaqueline Gomes de Jesus Mário Fellipe Ana Veloso Patrícia Horta Gabriel Pontes Rose Marques Teresa Esmeraldo Danielle Tega Salete Maria Karla Bessa Shara Jane Costa Érica Atem Jacqueline Costa Lourdes Vicente Produção Flávio Gabriel Alves Caroline Carneiro José Honorato Batista Neta Paula Carolina de Freitas Souza Realização Fábrica de Imagens: ações educativas em cidadania e gênero Diagramação Italo Teixeira Chaves Apoio Rede Cearense Cultura Viva de Gênero e Sexualidades Rede Cearense Cultura Viva: Cultura Educação e Cidadania Rede Latino-americana de gênero e cultura Agradecimento Enel Apoio Institucional Governo do Estado do Ceará Secretaria de Cultural do Estado do Ceará

3


SUMÁRIO EIXO 1: GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES História de resistência: vida de Sadia Jaló

8

Lugar do corpo: individuação e alteridade a partir de Leonilson

13

Nas ruas do benfica eu te amei: a resistência lgbti+ na ocupação do espaço público do bairro

21

“Ei, tu é?” considerações iniciais sobre homossexualidade masculina no nordestino através da linguagem

26

Quem pode recuperar o corpo? Um ensaio sobre os aspectos morais em torno do ciclo reprodutivo da mulher

32

“Bixa, nunca se esqueça daquilo que precisa lembrar para viver”#.

38

O lugar da saúde mental no processo de transgenitalização no SUS: uma revisão da literatura

44

A dobra do gênero binário: processo de definição do sexo dos bebês da neonatologia de um hospital pediátrico e seus desdobramentos sociais

50

Construção de um questionário de mitos e tabus sobre menstruação, virgindade e prazer sexual feminino

56

Conceitos introdutórios sobre bissexualidade e bifobias: aspectos sociais e históricos.

62

Vivências de mulheres lésbicas e a psicologia brasileira: uma revisão sistemática de literatura

67

Melissa Reis: estórias da vida de uma travesti

73

EIXO 2: GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO Performatividade de gênero: (des)construção no espaço escolar

79

Entre escolas e igrejas: uma cartografia das relações de poder e do capital simbólico nos presídios femininos do estado de são paulo

85

diversidade sexual e de gênero: uma educação para os direitos e cidadania dos/as lgbtq+

91

Elas ocupam a universidade: relatos de experiência de mulheres bolsistas na universidade estadual do ceará

97

Princesa Raya: diálogos sobre empoderamento feminino na educação de meninas

103

O feminismo nos sertões de Quixeramobim: um relato de experiência do projeto severinas mulheres do sertão

109

Meninas pretas e a construção identitária a partir capoeira: ensino aprendizagem na comunidade do alto das pombas

114

Coletivos feministas da universidade estadual do ceará: resistências plurais na pandemia

122

4


Trans-identidades e educação – gênero e políticas para a população trans* na educação

128

Discussões sobre homossexualidade(s) masculina(s) em um canal do youtube

133

Travessias em utopias: cultura popular, feminismo negro e processos educativos

139

Desbravando caminhos para a discussão sobre gênero e sexualidade nas aulas de arte do ensino médio

145

Por outra(s) história(s) oceânica(s)

150

Cinema implicado e pedagogias transgressoras:pautando as dissidências sexuais e de gênero nas escolas

156

Intervenções no espaço escolar: publicidade, gênero e raça em debate

162

EIXO 3:GÊNERO, VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS As expressões da violência contra a mulher na internet: discussões atuais de uma questão estrutural

168

Círculos concêntricos: a construção da arquitetura silenciosa da violência patriarcal

175

Estratégias de combate à violência doméstica contra a mulher em tempos de pandemia

181

A violência contra a mulher tem um culpado, o patriarcado

186

Abandono paternal: rebatimentos a partir da análise de papéis de gênero nas famílias em situação sócio-econômica de pobreza

193

Estupro contra mulheres com “deficiência mental”: análise de matérias de jornais

199

Relato de experiência acerca do processo de compreensão da invisibilidade dos dados das violências contra as mulheres indígenas com base no projeto de iniciação científica “diferenças compartilhadas na vida e morte de mulheres” realizado durante a pandemia do covid-19

205

Por uma pedagogia feminista no currículo, na formação docente e na sala de aula: desafios atuais

210

Núcleos de gênero e diversidade sexual e o enfrentamento da violência de gênero em um instituto federal do sul do país

215

Interseccionalidade classe e gênero: a morte violenta de mulheres acreanas

221

Famílias de crianças e adolescentes sob medida protetiva de acolhimento institucional

226

Deixou o marido, merece morrer! quando a desinformação viola os direitos humanos das mulheres no policialesco correio verdade

231

EIXO 4: GÊNERO, FEMINISMOS E DEMOCRACIA Mulheres indígenas e feminismos – um encontro para descolonizar conceitos a partir do movimento de mulheres indígenas no brasil

239

#Elenão - a relev ncia da hashtag em debates ciberfeministas

247

As mulheres na política: a atuação das legisladoras da américa do sul

253

5


Ecofeminismo e um ensaio para a cultura da paz

260

“Nossos passos vêm de longe”: trajetórias epistemológicas feministas e negra no brasil

265

Violência política de gênero contra as mulheres: um ataque à democracia

270

Jürgen habermas e o feminismo: em questão a experiência de descentramento pela discussão

276

Mulheres tecendo redes solidárias no semiárido

281

(Des)pensações interseccionais sobre violências institucionais contra povos indígenas sul-mato-grossenses

286

“Até quando seremos interrompidas?”: reflexões sobre silenciamentos e invisibilização das mulheres negras

292

Meninas e mulheres nas ciências do ifpr

297

Os feminismos brasileiros e a luta pela democracia (1979-1985)

302

EIXO 5: GÊNERO, FEMINISMOS E DEMOCRACIA Conversando sobre gênero a partir da literatura infantil

309

Corporeidade ecossistêmica dançante: desenvolvendo uma escuta sensível nas relações de cuidado com as plantas

316

Profissão escritora: mulheres negras no campo literário brasileiro contemporâneo

321

Feminipixo: rompendo a invisibilidade e o silenciamento das práticas artísticas e narrativas de mulheres na arte brasileira

327

Entre exílios e violências: análise das memórias de uma militante contra a ditadura civil-militar brasileira

333

Som da calçada - escrevivência cosmoperceptiva da “encruza” pedagógica em projeto para mulheres em situação ou trajetória de rua em salvador

338

Bonecas desobedientes – crise do drama. crise do ser humano.

344

EIXO 6 - INTERSECCIONALIDADES ENTRE GÊNERO, CLASSE, RAÇA, GERAÇÃO E DEFICIÊNCIA Parentalidade revolucionária e lei n° 13.058/14: alguns descompassos

350

Gênero e serviço social: contribuições a partir da interseccionalidade

357

Questões de (des)gosto: notas (auto)etnográficas sobre trajetórias afetivo-sexuais de homens negros “homoafetivos”

362

As potencialidades do entre-lugar - sobre ser mulher amarela bissexual em um território de atravessamentos

367

6


EIXO 1: GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES

7


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA: VIDA DE SADIA JALÓ Fatumata Djarai Baldé fatumatad.balde@gmail.com Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

1 APRESENTAÇÃO Este trabalho é um testemunho baseado na realidade guineense de certos grupos socias tradicionais, que tem como objetivo mostrar as resistências de mulheres que de uma forma ou de outra resistiram contra a hegemonia da tradição. Mesmo sendo silenciadas e obrigadas a cumprirem algumas práticas tradicionais elas negam e lutam arduamente para viver a vida que elas querem realmente viver. Com isso, quero mostrar que tem mulheres sem nível de escolaridade avançada que vivem no campo, mas mesmo assim, elas resistem quando negam a obedecer a qualquer prática que lhes obrigam a cumprir

ensinamentos como forma

obrigatória, entendidos como destino das mesmas. Como diz a escritora moçambicana Paulina Chiziane (2013), em muitas comunidades se percebe que o único papel destinado a uma mulher é casar e ter filhos, assim, para as mulheres não são permitidos sonhos e desejos, visto que uma boa mulher é quem aceita casar e obedecer ao marido, cuidar da casa e dos filhos. 1.1 Justificativa Eu, como uma mulher, africana da etnia fula da Guiné-Bissau, quero problematizar e despertar atenção para outras mulheres que não têm oportunidade de estarem na universidade como eu tive, para que possam saber que elas podem se tornar independentes e estudarem como os rapazes. Por

esse testemunho,

desejo destacar que elas podem falar que não querem ser

tratadas de forma

desigual em relação aos homens. Por isso, espero que este trabalho possa ajudar a abrir um caminho para as mulheres do campo, que são forçadas a aceitarem um casamento quando elas não querem ou não estão preparadas a poderem tomar a decisão certa para o que elas querem seguir.

8


1.2 Objetivos 1. Apresentar uma possibilidade de resistência, no caso de uma mulher guineense do campo, independentemente do nível da escolaridade. 2. Destacar a trajetória de uma mulher camponesa de Guiné Bissau. 3. Compreender como essa mulher, assim como outras mulheres, lidam com o enfrentamento às práticas tradicionais sem intervenção do Estado. 2 METODOLOGIA Para escrever este relato de história de vida, o que me impulsionou foi de ter oportunidade de ler vários livros de feministas principalmente negras, no curso de literatura e feminismos contra hegemônicos, onde consegui ligar muitos textos com a história da pessoa que faz parte da minha vida. E segundo a Audre Lorde “Eu estou tentando ser a pessoa mais forte. Eu posso voltar a viver a vida que me foi dada e ajudar em mudança efetiva em torno de um futuro vivível para esta terra e para minhas crianças” (LORDE, 1977, p. 1). Com isso, pensei em escrever para mostrar as mudanças de outras mulheres que resistiram e mudaram suas vidas e vida dos seus filhos. Talvez essa escrita é a minha única arma para ajudar outras/os. Este é um relato de história de vida baseada na realidade de uma pessoa próxima, também é relacionada a algumas disciplinas cursadas ao longo do meu percurso na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro brasileira (UNILAB), como “Literatura e feminismos contra hegemônicos”, curso ministrado pela Profa. Dra. Luana Antunes Costa. 3 DESENVOLVIMENTO Sadia Jaló nasceu numa família camponesa, em Quebo, Guiné Bissau, com onze irmãos paternos, onde sete são maternos. Viviam de cultivo de arroz, bananas e laranjas. Desde cedo, com onze anos, Sadia sonhava em ser uma

boa

profissional de saúde, motivo esse pelo qual ela vendia goiabas que tirava na goiabeira que tinha perto da casa onde moravam, para vender e usar o dinheiro para se matricular na escola. Com todas as dificuldades que ela passava sem apoio nenhum, mesmo assim ela tirava boas notas. 9


De acordo com a tradição de sua etnia, Sadia, qual seja, fula, ela tinha que se casar muito jovem a fim de poder cumprir com essa tradição. O seu pai, o Fadja, era conhecido como o homem mais bravo da tabanca onde eles moravam. Sadia com 17 anos já estava a estudar sexto ano, e na tabanca dela na altura só tinha escolaridade até esse nível. Assim, para que ela pudesse continuar com os seus estudos, ela tinha que ir para o capital, Bissau. Nesse momento, seu pai estava numa viagem a um país vizinho, Senegal. Com a viagem do pai, o irmão mais valho da sua mãe, tio Mamadu, veio com a ideia de

entregar Sadia ao

casamento. Como a mãe dela, Umo era tão mansa e fácil de convencer, o tio Mamadu acabou por convencê-la a dar a filha ao casamento na ausência do pai. Eles a deram um rapaz de nome Alfa. E assim a cerimônia do casamento foi feita. Passado um ano do casamento, ela teve a sua primeira

gravidez e teve uma

menina chamada de Dja. Depois de algum tempo, Sadia, Alfa e a filha foram morar em Bissau, em busca de melhores condições de vida, assim, Alfa arrumou um emprego, mas não muito bem pago. Como a Sadia tinha criança pequena de menos de um ano, ela ficava em casa a cuidar da bebé, da casa e da comida da família. mas como eles eram muito jovens, Sadia então com 19 anos e Alfa com 26, eles não paravam de ter problemas no relacionamento. Com tudo isso, Sadia não teve como continuar os seus estudos, mas como ela era muito teimosa, queria estudar custasse o que custasse, aí aumentou o problema dela com o marido. Depois de dois anos de casada e com uma filha, ela decidiu se separar do Alfa, porque ela queria estudar e ele não a permitia. Quando Sadia explicava para a mãe dela, a tia Umo, que queria se separar, a mãe a aconselhava a não se separar porque o respeito de uma mulher

estava no

casamento. Quando Sadia cansou de verdade dessa situação, decidiu contar ao pai tudo o que ela passava com o marido e a sua família durante aqueles dois anos de casamento, como o Fadja era bravo – fora dos padrões - e não se interessava muito sobre a questão da tradição, perguntou para a Sadia, qual seria sua escolha entre o casamento e a escola. E assim, ela escolheu estudar. O Fadja disse: “então o casamento terminou”. Arrume as suas coisas e volta para a minha casa. Eu sou o seu pai e vou sustentar a ti e a tua filha até quando tu terminares o teu curso. E Sadia foi buscar as suas coisas e a filha na casa de Alfa. Como o Alfa não estava preparado para isso e nem queria se separar dela, 10


ele começou a criar problemas para ficar com a filha, mas o pai da Sadia, o Fadja, era mais problemático que o Alfa e quase toda tabanca tinha medo dele. O pai se meteu no problema e acabou ficando com a neta. Com a decisão tomada por Sadia e seu pai, o tio Mamadu decidiu não falar mais com ela, porque para ele, o fato de Sadia não querer ficar no casamento isso é desobedecer a tradição e fez com que ele passasse vergonha diante da comunidade. Passou a

chamá-la de muitos

nomes, como mal-educada pelo pai, atrevida, desobediente entre outros. Depois que o problema passou, Sadia foi para Bissau novamente a fim de continuar os seus estudos, mas desta vez ela foi morar com seu primo que tinha uma mulher e estava a criar duas filhas da esposa. Quando Sadia chegou àquela casa, a esposa do primo começou a tratá-la mal, tinha dias que ela não comia antes de ir para a escola e era abrigada a fazer todos os trabalhos domésticos. Isso a obrigava, às vezes, a se atrasar para as aulas. Sadia morou na casa do primo durante três anos até que num belo dia, ela encontrou com um rapaz de nome Anssumane que trabalhava e morava sozinho. Eles começaram a conversar para se conhecerem. Depois de um tempo, as coisas deram certo e eles começaram a namorar e foram morar juntos. Passando dois anos que eles estavam morando juntos e ela já no último ano de seu ensino médio, ela ficou grávida. Como a tradição dela não permite que duas pessoas se casem depois de terem um filho sem se casarem, a família a obrigou a terminar aquele relacionamento. Pouco tempo depois abriu inscrições na Escola Nacional de Saúde de Guiné-Bissau para as vagas do curso de enfermagem, ela concorreu e conseguiu ser admitida. A Sadia custeava as suas despesas todas sem ajuda de nenhuma pessoa da família. Ela decidiu pedir ajuda ao irmão, que vivia nos Estados Unidos, para poder se manter na universidade. O irmão lhe ajudava toda vez que podia, assim ela passou por dois anos. Novamente, ela conheceu um homem que queria se casar com ela. Com a pressão e ao mesmo tempo desprezo que ela sofria por parte da família, chegou a querer casar para manter a paz e o respeito, como dizia a sua mãe. Assim ela se casou com aquele homem que também lhe ajudou financeiramente a terminar o curso, porque ela já estava no último ano. Depois da formatura, Sadia teve a sorte de ser colocada para trabalhar num 11


hospital da região próxima. Com sacrifícios e muitas lutas, finalmente ela se tornou no que tanto sonhou. Nesse momento, toda a família voltou a falar com ela, até o tio Mamadu a visita de vez em quando. Agora, cada pessoa da família que tiver algum problema de saúde recorre primeiramente a Sadia. Vale à pena ressaltar que ela continuou vivendo com marido e as duas filhas que ela teve

antes daquele

casamento, e pouco tempo depois ela teve mais um menino com o atual marido. Eles estão trabalhando, seguindo suas carreiras, e criando os filhos juntos. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este testemunho busca, portanto, problematizar a questão do gênero e da tradição, salientando que, ele nos convida a pensar sobre a vida das mulheres do campo e da cidade, em Guiné Bissau, mostrando a resistência de mulheres, independentemente do lugar de origem ou do grau de escolaridade. REFERÊNCIAS CHIZIANE, Paulina: Eu mulher...por uma nova visão do mundo. Ed. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e África da UFF, Vol. 5, n◦10, abril de 2013. LORDE, Audre. The Transformation of Silence into Language and action. Apresentação lida no painel sobre Lesbianismo e Literatura, da associação da Língua Moderna, em Chicago, Illionois, em 28 de dezembro de 1977. Literatura e feminismos contra hegemónico, período letivo 2019.1, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, UNILAB, professora Luana Antunes Costa.

12


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES LUGAR DO CORPO: INDIVIDUAÇÃO E ALTERIDADE A PARTIR DE LEONILSON Lúcio Flávio Gondim da Silva luciofgondim@gmail.com Universidade Federal do Ceará (UFC) Marina Baltazar Mattos marinagmattos@gmail.com Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 1 APRESENTAÇÃO Judith Butler (2002), desde o título de seu livro, Cuerpos que importan, pressupõe que há, perante a lógica colonial, neoliberal e conservadora, alguns (corpos) que não importam. Segundo a autora, são abjetos, ininteligíveis ou deslegítimos, teoricamente, não se materializam, dentro de uma ontologia desafiadora. Mas justamente a partir de sua ambivalência constituinte, esses corpos existem: como poder excluído, disruptivo, contradição normativa proposital, efeito de pressuposição através da performance. Diante dessa leitura, procura-se pensar a existência de corpos abjetos dentro e fora da literatura e suas expansões, para além da sua constituição enquanto materialidade. Poderia tratar-se de diversas subalternidades que têm reivindicado sua fala, mas, escolhemos, aqui, partir das obras do artista plástico cearense José Leonilson - trabalhos que falam por si só e carregam uma multidão consigo, inclusive a produzir constante significado, legitimidade, lugar de fala e representatividade. Ao se colocar como um corpo homossexual que expõe desejos e interditos, relacionando-se diretamente com os sofrimentos de outros corpos socialmente indesejáveis, Leonilson perfomatiza, segundo Paul B. Preciado (2014), uma contraversão: No âmbito do contrato contrassexual, os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como falantes, e reconhecem os outros corpos como falantes. Reconhecem em si mesmos a possibilidade de aceder a todas as práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história determinou como masculinas, femininas ou perversas. (PRECIADO, 2014, p.21). 13


Como nos fala a teórica Preciado (2014), os significantes desses corpos reivindicam-no, ao clamar por uma existência legitimada, por um discurso dito por eles próprios. No caso de Leonilson, seu desejo parece ser o motor central para o estabelecimento da sua luta corpórea. É a necessidade incessante de um Outro que o faz criar, até o momento em que se descobre portador do vírus HIV, e, então, passa a ser a doença – o outro agora é, por meio de metáforas médicas orientadas por um quadro de guerra, um micro-organismo “invasor”, contra quem é preciso “lutar” para viver – no caso de Leonilson, a luta começa por meio da própria linguagem, na tentativa de elaboração e esvaziamento da doença enquanto fim. Quando isso acontece, sua arte passa a ser, como sempre o foi, pano de fundo para minimamente compreender-se e fazer-se compreender, em sua multiplicidade significativa, o que uma enfermidade então pouco conhecida representa diante de um modo afetivo antiquíssimo e ainda hoje contestado. O perigoso (1992) retrata bem esse panorama, sendo composto por uma gota de sangue sob a qual é escrito o vocábulo que o nomeia. Leonilson escreve com a própria corporeidade sua sina: a de ser um dissidente em invariável condição de exclusão. Ele é um risco iminente e se coloca/é colocado em uma posição de perigo, sem, no entanto, deixar de, em seu silêncio, gritar verbal e visualmente seu veto social. Em sua individuação, a alteridade se faz presente incessantemente, tornando-o um eu repleto de outros, não-padrões e também padrões, se pensamos que estes são os que o nomeiam e atualizam física e emocionalmente como um corpo que não importa.

14


Figura 1 – O perigoso. 1992. Leonilson, 1957 Fortaleza – 1993 São Paulo. Tinta de caneta permanente e sangue sobre papel. 30,5 x 23 cm. Fotografia: © Rubens Chiri / Projeto Leonilson.

1.1 Justificativa 15


José Leonilson é um artista que tem uma aparição latente no cenário artístico brasileiro e internacional contemporâneos. Desde sua produção inicial, na década de 1970, faz uso de variados suportes, procedimentos e textualidades, na construção de uma obra heterogênea, inclassificável e aberta à (re)interpretação. Alguns eixos temáticos que se repetem ao longo de seus trabalhos tratam e até mesmo partem do corpo, tanto o seu quanto o do outro, em uma identidade individual fixada a partir da diferença da alteridade, que se abre com e para o mundo, em criação contínua e recíproca. O desejo não só de criação da arte, mas do artista e também de um conflito com a solidão são registrados a partir de uma intimidade escancarada (ou dedicada) ao público, em que o cotidiano é escrito de maneira concisa e poética. Sendo assim, ver, ler ou escutar os diários de Leonilson – espalhados por seus desenhos, bordados, agendas, cadernos de viagem ou gravações – nos permitem elaborar a existência não apenas de uma poética, mas também de um corpo, do artista e seus desejos. Um corpo deixado como abertura para se pensar as relações entre arte, vida e seus desvios (vale ressaltar que aqui desvio é positivo, ir contra uma lógica do sistema enquanto abertura de possibilidades múltiplas e não unas, mais condizentes com os próprios movimentos da vida) – a reivindicação de uma homossexualidade que vai se libertando de preconceitos e cria linguagens. Por outro lado, Leonilson recorre a todo instante a imagens que remetem a signos fálicos. Embora busque liberdade e reconhecimento, parece agir como os demais homens, sem ser uma “bichinha” – palavras suas a Adriano Pedrosa (2014, p. 244), no livro Leonilson: truth, fiction – que, ao desejarem e se manifestarem, “se comparam o tempo todo com o ideal de falo exatamente porque são dotados de um pênis, e não de um falo, estando, pois obrigados a demonstrar sua virilidade de maneira compulsiva [...]” (PRECIADO, 2014, p.77). É o que se vê em telas como Na neblina, o bom piloto (1988):

16


Figura 2 – Na neblina, o bom piloto. 1988. Leonilson, 1957 Fortaleza – 1993 São Paulo. Hidrográfica sobre papel. 10,5 x 7,4 cm. Fotografia: © Vicente de Mello / Projeto Leonilson.

17


Leonilson tem no falo um farol, afirmando, segundo Judith Butler (2016), agora em Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, “a postulação de uma sexualidade normativa que esteja “antes”, “fora” ou “além” do poder constitui uma impossibilidade cultural e um sonho politicamente impraticável” (BUTLER, 2016, p.65). De todo modo, é possível igualmente fazer uma leitura libertária desse pênis que se coloca de pé em direção a um outro pênis e/ou a um ânus, afirmando uma sexualidade em dissonância e, como vimos, que vai assumindo uma corporificação cada vez mais perigosa a partir da época da criação da obra em questão, o final da década de 1980. 2 OBJETIVOS Analisar algumas das muitas obras de Leonilson a fim de compreender sua abertura para dialogar com e a partir do corpo e seus desdobramentos. Para tanto, cabe a nós lançar hipóteses sobre a manutenção e a soltura do artista diante de normativos sexuais, posto que é a partir do desejo que ele parece construir a cartela temática de suas obras. 3 METODOLOGIA Além do apoio teórico de Butler (2002; 2016) e Preciado (2014), partimos da vasta obra de Leonilson, em especial presentes no catálogo Leonilson: truth, fiction (2015). Propomos, por meio dos referenciais supracitados, uma percepção crítico-metodológica, por pressuposto questionadora e reflexiva, orientada por questões de gênero, subversão e corpo, bem como por obras plásticas e visuais interessadas em estabelecer questionamentos que transbordam os campos artísticos e a barreira (in)existente entre arte e vida. 4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Percebemos, de antemão, em Leonilson, um corpo que se mostra frágil e, justamente a partir disso, mostra sua potência. Quando ele (o corpo do artista que se mistura, se elabora e é representado por meio da arte) se coloca desejante, quanto mais frágil se mostra ou apresenta, mais parece se fortalecer. Sendo assim, o corpo que beira o fim demonstra tal decrepitude, tanto do desejo que não se 18


concretiza quanto do corpo que perece, acolhendo e ressignificando, em público, esse processo fragilizante de um corpo possível, que pesa, dói e, portanto, importa. É o que podemos ver em Sua montanha interior protetora (1989), na qual olhos de fora enxergam, mas não alcançam completamente um corpo envolto por tinta azul. A possível montanha protetora do título, que blinda, fortalece, preserva e cuida de um corpo exposto em toda sua fragilidade, mas também em toda sua força. Leonilson, assim, nos brinda também com uma proteção: seu afeto transformado em cada uma de suas obras que abraçam nossos abismos e rochedos, nossas mortes e nossas resistências.

Figura 3 – Sua montanha interior protetora. 1989. Leonilson, 1957 Fortaleza – 1993 São Paulo. Tinta de caneta permanente, nanquim e aquarela sobre papel. 25,5 x 18 cm. Fotografia: © Fotógrafo desconhecido / Projeto Leonilson.

19


REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo” - 1a ed. Buenos Aires: Paidós, 2002. _____. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2016. PEDROSA, Adriano. Leonilson: truth, fiction. São Paulo: Pinacoteca do Estado; Cobogó, 2014. PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014.

20


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES NAS RUAS DO BENFICA EU TE AMEI: A RESISTÊNCIA LGBTI+ NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DO BAIRRO Leysliane Bandeira Sales Psicóloga CRP 11 - 16860 ed.leysliane.sales@gmail.com 1 APRESENTAÇÃO O presente trabalho pretende-se a dialogar sobre como o sentimento de pertencimento e a afetividade construída com o território do bairro Benfica na cidade de

Fortaleza/CE potencializa as relações de enfrentamento e impulsiona a

resistência de sujeitos LGBTI+ ao se afirmarem enquanto existência na cidade e terem nas ruas do bairro espaços de sociabilidade que permitem a expressão de suas vivências. Buscamos identificar a partir das categorias de pertencimento e afetividade quais fatores fazem com que um bairro que não é propriamente o seu território, considerando que muitos sujeitos migram das periferias para se encontrarem em um bairro central da cidade, ocupe um lugar de afeto na vida do indivíduo e suas relações sejam tecidas dentro desse espaço com um sentimento de liberdade. O Benfica é um bairro de casas e moradores antigos, tradicional e central na cidade de Fortaleza/CE, ao mesmo tempo é um bairro universitário, cercado por bares e

pode ser considerado até um lugar de passagem, pela grande

movimentação de avenidas e ser via acesso a outros grandes polos. A inquietação deste trabalho partiu da observação de uma mudança nos padrões de ocupação do espaço deste bairro, que começou a ter pessoas que se deslocam de seus territórios, em sua maior parte periféricos, para fazer do Benfica o ponto de encontro e união de uma multiplicidade de sujeitos, juntos no objetivo comum de vivenciarem sua liberdade e expressão de afetos. Identificamos essa ocupação como ato de resistência, do indivíduo ou grupo que impõe sua presença naquele lugar e o faz como seu por direito. Refletir sobre os grupos de resistência que estão se organizando frente ao caos encontrado em nossa sociedade, 21


se mostra como uma possibilidade efetiva de encontro e trocas entre as pessoas. (FERREIRA, 2008, p.479) As categorias de análise delimitadas derivam da Psicologia Ambiental, escolhida por voltar-se para a forma que as pessoas sentem, pensam e vivenciam o espaço em que estão implicadas. (LIMA, BOMFIM, 2009, p 492) Trabalharemos com o sentimento de pertencimento, os significados atribuídos ao lugar do bairro Benfica e o apego construído com aquele espaço de vivências, assim como com a afetividade, considerando que o corpo se afeta a todo o momento pelas coisas que o rodeiam, mas também tem o poder de afetar. (BERTINI, 2014, p.82) Sendo capaz assim de analisar as relações entre pessoa-ambiente presentes na teia de afetos de um grupo delimitado, os sujeitos LGBTI+ e a sua ocupação do espaço público como estratégia de resistência frente as dinâmicas de violência e negação da

sua existência. A escolha pelo bairro como objeto deste estudo é

afetiva e conta sobre um processo de ocupação do bairro de família que começou a se chocar com as

liberdades dos jovens que passaram a ocupar as praças do

Benfica. Pereira retrata um pouco do início da popularização da presença de grupos LGBTI+ neste espaço: Essa paisagem comum transmuta-se as sextas-feiras a partir das 18hs quando, o número de residentes na praça é quase nulo, estudantes de ensino médio, universitários e moradores de outros bairros da cidade para lá se dirigem a fim de usufruírem do local. Esses ocupantes atribuem uma dinâmica diferenciada, tornando a “Pracinha da Gentilândia”, como normalmente é denominada, reconhecida em toda a cidade pelo público GLBTTT. (2008, p. 24).

Apenas através de um olhar mais atento é possível perceber essas relações que

vão se constituindo no bairro, no morar e conviver, enquanto fonte de

legitimação dos grupos e os seus movimentos. (VASCONCELOS, 2017, p.18) A cultura LGBT tornou-se objeto de pesquisas, mas, é necessário dar aos indivíduos que compõe este meio o seu lugar de sujeitos na história e apresentar de que maneira eles (as) resistem a homofobia a partir de elementos do seu cotidiano. (DAVI, 2011, p.143) 1.1 JUSTIFICATIVA

22


Justifica-se a relevância deste trabalho como forma de reforçar as dinâmicas de resistência LGBTI+, trazendo a oportunidade de fomentar discussões políticas cotidianas como a ocupação do espaço público por grupos em situação de vulnerabilidade

social,

mas que ainda assim encontram estratégias de

enfrentamento frente os embates sobre liberdade e expressão de afetos. 2 OBJETIVOS Partimos da seguinte pergunta norteadora: O que faz o Benfica ser um bairro potencial de pertencimento e afetividade para a sua ocupação como forma de resistência

dos sujeitos LGBTI+? Delineando como objetivo geral compreender

como o sentimento de pertencimento e afetividade faz com que o bairro Benfica seja escolhido pelos sujeitos

para ocupar e vivenciar. Tendo como objetivos

específicos investigar as formas de ocupação do espaço do bairro Benfica pelos sujeitos LGBTI+; dialogar sobre os afetos de percorrer a cidade para chegar até o bairro Benfica e discutir que fatores podem construir o sentimento de pertencimento e liberdade de afetar-se no lugar. 3 METODOLOGIA A pesquisa aqui proposta é de natureza qualitativa, pois aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas (MINAYO, 1994, p.22) e caráter

descritivo, indo além da simples identificação da existência de relações

entre variáveis e se propondo a determinar a natureza dessas relações. (GIL, 1987, p. 42) O referencial teórico será construído a partir de artigos, dissertações e livros selecionados a partir da plataforma https://www.researchgate.net/ com a busca simples

e combinada das palavras-chave: afetividade, resistência LGBT,

pertencimento,

ocupação de espaço público e bairro Benfica, verificando

posteriormente se os mesmos vem de fontes de repositórios ou banco de dados com validade científica e tendo como critérios de inclusão a relevância do material para os objetivos da pesquisa e como critérios de exclusão materiais de publicação datada a mais de 20 anos ou que pactuem com uma abordagem equivocada ou discordante de uma postura ética sobre o trato com a temática LGBTI+. 23


Apropriando-se do método de observação-participante, onde o pesquisador está inserido no território e não é apenas observador, faz parte das vivências e afetos, que de acordo com Fernandes e Moreira (2013, p. 518) é caracterizada pela promoção de

interatividade entre o pesquisador, os sujeitos observados e o

contexto no qual eles

vivem. Sendo assim um método que exige atenção dos

nossos sentidos a cada interação sujeito-ambiente e se utiliza do instrumento do diário de campo para registrar essas percepções. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos com a conclusão desse material termos sido capazes de compreender

as motivações desse processo de deslocamento e ocupação do

território e identificar os fatores que estabelecem essa relação de pertencimento e a teia de afetos envolvida no percurso. Um território considerado estranho por não ser o seu habitual transformou-se em espaço de resistência e apropriação para a comunidade LGBTI+. Vemos que o Benfica se tornou muito mais do que um bairro de amores passageiros, mas fez das suas ruas

lar para que os sujeitos possam viver sua identidade e sexualidade

plenamente. É só percorrer o caminho numa noite de sexta-feira para sentir a vibração da festividade ou sentar em um dos bancos da praça para acompanhar os encontros furtivos, quem sabe esperando um ônibus que demore um pouco mais a chegar na parada você tenha a oportunidade de entender um pouco mais sobre o desejo e a alegria de chegar e se encontrar no Benfica. REFERÊNCIAS BERTINI, F. A vivência ético-política-afetiva na comunidade. Cadernos Espinosanos, n. 31, p. 81-88. 2014 DAVI, E. H. D. Resistências e recusas: a cultura LGBT contrapondo-se a homofobia em Uberlândia. Caderno Espaço Feminino. Uberlândia, v. 24, n. 1, p. 141- 161, Jan./Jun. 2011. FERNANDES, Fernando Manuel Bessa; MOREIRA, Marcelo Rasga. Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na Saúde Coletiva. Physis, Rio de Janeiro , v. 23, n. 2, p. 511-529, June 24


2013 . Available from . access on 25 Sept. 2020. https://doi.org/10.1590/S010373312013000200010. FERREIRA, L. F. S. Apontamentos para uma reflexão sobre a ocupação dos espaços de lazer por grupos de resistência. Conexões, v. 6, n. 11p. 478-486, 2008. GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2009. LIMA, Deyseane Maria Araújo; BOMFIM, Zulmira Áurea Cruz. Vinculação afetiva pessoa ambiente:Diálogos na psicologia comunitária e psicologia ambiental. Psico/UFRGS, Porto Alegre, v. 40, n. 4, p.491-497, outdez 2009. MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 80 p. ISBN: 8532611451. PEREIRA, Ilaina Damasceno. Lugares no bairro: uma etnografia no Benfica. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008. VASCONCELOS, Monica Monteiro da Costa. A cidade em movimento: práticas educativas do morar e conviver no bairro Benfica. 2017. 105f. – Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira, Fortaleza (CE), 2017.

25


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES “EI, TU É?” CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA NO NORDESTINO ATRAVÉS DA LINGUAGEM Francisco Henrique Cardoso da Silva henriquecardoso220@gmail.com Faculdade Princesa do Oeste 1 APRESENTAÇÃO/INTERESSE DO TRABALHO A SER APRESENTADO O

escrito

manifesta

uma discussão das expressões da linguagem

provenientes do nordeste brasileiro, com o interesse de trazer à tona expressões da linguagem verbal e não verbal que expõem representações da homossexualidade masculina em contexto. Nesta perspectiva, a linguagem é compreendida como um sistema de expressão e comunicação de pensamentos e sentimentos através dos sons, da fala ou dos símbolos e escritos (LANE, 2006). Elementos estes utilizados por uma comunidade de fala, e desenvolvidos em práticas sócio-históricas, incluem a linguagem não verbal que se mostra através de expressões, gesticulações e movimentos corporais. Como vemos nas palavras da Aurélia, a dicionária da língua afiada (VIP; LIBI, 2004), com destaque nordestino, um dicionário com dialetos e gírias LGBT, bastante usadas pela comunidade LGBTQIA+. A leitura foi ao encontro de aprofundamentos da questão: como a homossexualidade foi construída, percebida e dialogada entre as pessoas. 1.1 Importância/justificativa do trabalho A homossexualidade é interrogada e reflexionada (FRY; MACRAE, 2012). Por isso, podemos perceber que a homossexualidade não é alguma coisa em si; ela é uma infindável interrogação partindo das relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Podemos visualizar que ela se dá de uma forma na Grécia Antiga, e outra na Europa do Século IXI, que se apresenta especificamente entre os índios Guaiaqui do Paraguai, produzindo sentidos e significados para o trabalhador rural do Mato Grosso e outros para um candidato a governador do Ceará, por exemplo. 26


Diante

disso,

buscamos

analisar

como

essa

homossexualidade

é

apresentada, representada, percebida, construída no imaginário social nordestino através das expressões de linguagem. Para tanto, lançaremos análises sobre como essas palavras são faladas e gesticuladas. Compreendendo que, muitas vezes, essas expressões da linguagem são utilizadas pejorativamente, a fim de ridicularizar homossexuais,

colocando-o,

em

situações

de

constrangimentos,

chacotas,

humilhações e menosprezo. Este fato, no qual o pólo opressor utiliza do seu lugar de poder, de privilégio para subalternizar as pessoas que não estão dentro das sexualidades ou expressões de gêneros aplaudidas e aceitas pela a sociedade, pode ser compreendida

como

heterocispatriarcado

partícipe (OLIVEIRA,

dos

mecanismos

2018).

Assim,

homofóbicos aquele

utiliza

dentro da

do

própria

manifestação da singularidade destas para lhes colocar em lugar de não legitimidade de existir, rebaixando-as, discriminando-as e hostilizando-as. São instrumentos deste mecanismo palavras como: bicha, baitola e viado. 1.2 Objetivos Analisar as expressões da linguagem verbal e não verbal do contexto nordestino com o intuito de contextualizar as representações da homossexualidade masculina. 2 METODOLOGIA Este trabalho se inscreve na seara das pesquisas qualitativas (MARCONI; LAKATOS, 2003) objetivando a captação do significado subjetivo e singular das questões,

os

significados

latentes,

descrevendo-os

e

reconstruindo-os na

complexidade das situações. Neste sentido, buscamos descobrir novos aspectos da situação em foco e contribuir para novas discussões. A investigação seguiu alguns passos para a coleta de dados: 1) busca ativa de material para a caracterização da amostra; 2) seleção de matérias que dessem conta da problematização proposta: Aurélia, a dicionária da língua afiada (VIP; LIBI, 2004); Cenas do Curta Metragem: Travessia Curta LGBT (2012); e uma imagem

27


simbolizando o gesto (mão inclinada para baixo)1

para indicar que a pessoa é

homossexual: “Aí Tu é?”; “ei cara tu é”. Posteriormente a seleção, foi realizada uma leitura crítica sobre Aurélia, com o intuito de sublinhar as expressões comuns no nordeste. Em seguida, foi feita uma análise fílmica (MOMBELLI; TOMAIM, 2014) do Curta Metragem Travessia, que mostra uma cena de homofobia de agressão verbal. O curta foi filmado no Sertão do Pajeú em 2012 e foi exibido em 17 de maio do mesmo ano, dia internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, por uma iniciativa da Secretaria de Saúde de Afogados da Ingazeira – Pernambuco (PE). Para dar suporte à discussão, buscamos materiais bibliográficos que viessem ao encontro ou compusessem aparato teórico para a construção da narrativa. Nessa vereda, analisamos e interpretamos o material da amostra de acordo com as orientações de Marconi e Lakatos (2003), onde, em um primeiro momento, evidenciamos as relações existentes entre fenômenos estudados e outros fatores e, posteriormente, procuramos dar significado e sentido mais amplos às respostas, vinculando-as a outros tipos de conhecimentos. 3 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS OU FINAIS Numa

rápida

passada

de

olhos

por

produções

que

discutem as

homossexualidades masculinas, uma gama de termos desenvolvidos, em sua grande maioria por homens cis heterossexuais brancos, procuram convencer a comunidade de que a única e possível prática sexual aceitável socialmente era e continua sendo a cis heterossexual (OLIVEIRA, 2018). Já na prática social cotidiana, não se figura diferentemente. Podemos visualizar diversas expressões que são utilizadas para se referir às pessoas homossexuais, em termos estigmatizantes. São algumas delas, de acordo com Oliveira (2018): anel de couro, bofe, arrombada, asilada, baitola, gay, baitolagem, bicha, bichice, bicha-louca, boiola, dar pinta, guenza, queimar a rosca, viadagem, viado, asilada, boqueteira e fuleragem dentre outras. Nesse terreno, tais termos afirmam e reafirmam pela repetição falada e escrita que o relacionamento afetivo e sexual entre pessoas do mesmo sexo e/ou do

1

Disponível em: https://images.app.goo.gl/hpLdTfjdPZEbZikP7. Acesso em: 31 mai. 2021.

28


mesmo do gênero masculino não é humano; não é de natureza honesta; é desprezível; está fora do eixo; está no lugar para quem expressa o pecado, perigo, anormalidade, fragilidade física e até mesmo emocional, e por isso, inadequadas a determinadas atividades profissionais. Além disso, soma-se a representações de falta de caráter, propensão ao crime e a visão limitada de que são pessoas não apropriadas para viver em sociedade (FRY; MACRAE, 2012; OLIVEIRA, 2018). Ao analisarmos a palavra “bicha”, concordamos com Oliveira (2018) que ela nasce do discurso, pois antes mesmo de termos a consciência do potencial repressivo que esse termo tenta impor, ela é lançada como um torpedo que almeja um aniquilamento. Perceba as ocorrências, um grito que ecoa do outro lado da rua, ou no ambiente escolar; um desenho tosco na parede de um banheiro coletivo; uma pregação religiosa. Espaços nos quais a palavra “bicha” pode ser lançada de forma repressiva contra homossexuais. Nessa trama dialógica, é imprescindível trazermos a construção histórica sobre as quais as relações sociais e sexuais foram construídas, com ideal binário de separação em “coisas de menina” e “coisas de menino”. As relações sexuais esperadas também seguiram estas normas, nas quais o padrão é heterossexual em termos de papéis sexuais. Nesse ponto, produz-se o “desviante”, pois mantém relações ditas homossexuais não em termos fisiológicos, mas diante dos papéis sexuais (sociais). Todavia, estas representações não se detém a acepções diferenciativas entre relações heterossexuais e relações homossexuais, apenas. Nesta norma, as mulheres e bichas correspondem, se “encaixam”, com homens; e os homens e “mulheres-machos”

se

relacionam

com

as

mulheres.

Dessa

forma,

a

heteronormatividade recai na aceitação de um reconhecido homem se relacionar sexualmente com uma bicha. Nesta sucessão, o que causa escândalo é quando bicha se relaciona com bicha. Esta sim é vista como uma relação “homossexual”, que por vezes é ridicularizada no ditado popular “bicha com bicha dá lagartixa” (FRY; MACRAE, 2012). De forma ilustrativa, destacamos uma cena do curta-metragem “Travessia”, desenvolvido pela Secretaria de Saúde de Afogados da Ingazeira, em Pernambuco. A cena escancara três pessoas na rua, sendo um casal heterossexual, e o terceiro, o amigo dos dois. Passa na rua um rapaz afeminado, e eles desferem: “ei boneca, 29


boneca, viado, passiva, viado”. Essa cena expõe o cotidiano de muitos homossexuais nordestinos. Quando se fala em pessoas que se relacionam afetivo e sexualmente com pessoas do mesmo sexo, imagina-se, este tipo de encontro de forma pejorativa, ofensiva. Assim, as expressões “bichas”, “baitolas”, “queima rosca”, “boiolas”, dentre outras, são utilizadas como forma de enquadrar e deslegitimar essas vivências. As representações da homossexualidade perpassam os padrões sociais impostos e aceitos

socialmente,

construindo

assim

pela

linguagem

um esquema de

inteligibilidade normativo. Neste, há vidas que são realmente consideradas vidas e defendidas e salvas; em contraste, há vidas que não são reconhecidas como vivas, respeitadas dignamente como vidas (BUTLER, 2015). A linguagem não verbal também se apresenta em expressões de opressão, como o gesto das mãos em direção para baixo, a conhecida “mão quebrada”, muitas vezes acompanhada da fala: “Ei, tu é?; Tu é, né?”, fazendo referência a ser gay/homossexual. Estas expressões e linguagens, comuns no espaço escolar, por exemplo, obrigam estudantes gays a esconder sua orientação sexual, provocando conflitos identitários, de gêneros e sexuais, ao sistema comunicacional pautado em preconceitos e discriminações. Portanto, a linguagem é o instrumento pelo qual a homofobia opera. É necessário tensionar tal tema, pois a linguagem opera a manutenção e subversão das relações de opressão. “A homossexualidade”, como representação de

um

grupo

historicamente

subalternizado,

compreende

subjetividades

atravessadas pela normatividade organizadora de vida, sobre as quais são direcionadas palavras, olhares, ações e comportamentos que podem contribuir para um acolhimento ou aniquilamento da experiência subjetiva dessas pessoas que se insurgem à normatividade. REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Quadros de guerras: quando a vida é passível de luto?. Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade?. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012. 30


LANE, Silvia T. Maurer. O que é psicologia social. 22. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. MOMBELLI, Neli Fabiane; TOMAIM, Cássio Dos Santos. Análise fílmica de documentários: apontamentos metodológicos. Lumina, v. 8, n. 2, 2014. OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Trejeitos e trajetos de gayzinhos afeminados, viadinhos e bichinhas pretas na educação!. Revista Periódicus, v. 1, n. 9, p. 161-191, 2018. TRAVESSIA CURTA LGBT. 2012. 1 vídeo (23:12). Publicado no canal Aurélio Lima. Disponível em: https://youtu.be/lzafi-EZWIE. Acesso em 31 mai. 2021. VIP, Angelo; LIBI, Fred. Aurélia, a dicionária da língua afiada. Editora da Bispa, 2004.

31


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES QUEM PODE RECUPERAR O CORPO? UM ENSAIO SOBRE OS ASPECTOS MORAIS EM TORNO DO CICLO REPRODUTIVO DA MULHER Alana Aragão Ávila alanaavila01@yahoo.com.br Doutoranda e mestre em Antropologia Social (PPGAS/UFSC) Virgínia Squizani Rodrigues virginia.squizani@gmail.com Doutoranda e mestre em Antropologia Social (PPGAS/UFSC) 1 APRESENTAÇÃO Este trabalho coloca em evidência alguns dos aspectos morais em torno do ciclo de vida reprodutivo da mulher observados em campo, durante os processos de pesquisa para as dissertações das autoras (ÁVILA, 2020a, 2020b; RODRIGUES, 2020a, 2020b). A partir de relatos de mulheres encontrados em grupos online de Facebook, nos propomos a analisar como os eixos menstruação/contracepção e gestação/parto são/vêm sendo experienciados por algumas mulheres cisgênero; além de procurar compreender quem são as mulheres que conseguem/buscam “recuperar o próprio corpo” e como o fazem por meio do compartilhamento de suas experiências corporais em espaços online. Enquanto Rodrigues (2020) navegou por grupos online de mulheres que estavam deixando de fazer uso da pílula anticoncepcional - seja porque não desejavam mais fazer uso de contraceptivos hormonais, seja porque haviam experienciado problemas de saúde2 em decorrência do uso do medicamento em questão - Ávila (2020b) observou grupos online mulheres que estavam em busca do parto natural e humanizado, muitas vezes com essa busca vinculada a desfechos negativos em partos anteriores ou mesmo ao medo da violência obstétrica. Apesar de ambas observações tratarem de grupos diversos sobre, inclusive, diferentes fases do ciclo reprodutivo das mulheres, notamos algumas preocupações e “reclamações” de fundos semelhantes entre as autoras dos relatos. Pois, tanto as mulheres que estavam recusando a contracepção hormonal, em nome de métodos contraceptivos tidos como “menos invasivos ao corpo”, quanto as mulheres que 2

Como o tromboembolismo venoso que pode levar a um Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou a uma embolia pulmonar.

32


estavam recusando cesarianas eletivas e outras formas de medicalização do parto, em nome de partos normais e humanizados, apontavam para uma supervalorização do ciclo reprodutivo da mulher, ao mesmo tempo em que pareciam recusar o que esses relatos apontavam como “artificial” (o uso de hormônios sintéticos). Além disso, outros apontamentos comuns entre os relatos online observados foram os modos como as relações médico-paciente são/vêm sendo estabelecidas nos consultórios ginecológicos e obstétricos contemporâneos. Seja para tratar a respeito de métodos contraceptivos ou para realizar o acompanhamento de uma gravidez, o incômodo, o desconforto e o descontentamento dessas mulheres ficou latente. Pacientes cada vez mais informadas, os relatos observados revelam mulheres em busca de diálogo e informação e suas dificuldades em “driblar” práticas médicas convencionalmente estabelecidas: pílula e cesariana para um determinado universo de mulheres3. 1.1 Justificativa Considerando a urgência das discussões em torno do ciclo reprodutivo das mulheres cisgênero - colocado como eixo central de diversas políticas públicas destinadas a esse público e utilizado como massa de manobra em regimes de dominação e exploração - cabe tensionar quem são e o que dizem as mulheres que ocupam diferentes espaços online. A existência de diversos grupos de Facebook sobre: diferentes métodos contraceptivos não hormonais; relatos de experiência de quase morte em decorrência do uso da pílula anticoncepcional; relatos de violência obstétrica; relatos de partos naturais de sucesso ou de “fracasso”; apontam para uma necessidade de comunicação e compartilhamento de experiências (sejam essas positivas ou traumáticas), assim como para a busca de informações, em meio alternativos, a respeito dos mais variados momentos do ciclo de vida reprodutivo da mulher. 1.2 Objetivos 3

Vale ressaltar que esse “universo” refere-se a uma parcela de mulheres cisgênero, brancas, muitas vezes pertencentes às classes médias. Quando se trata de relatos de parto, por exemplo, não é incomum encontrar relatos de mulheres negras a quem anestesias e procedimentos cirúrgicos são negados na hora do parto sob a alcunha de que “mulheres negras suportam mais dor” que mulheres brancas. Sobre o tema, as pesquisadoras Bonadio (1998), McCallum e Reis (2002) e Hirsch (2015) têm extensos trabalhos que dizem da diferença no pré-natal e parto tanto de mulheres de classe média e popular, quanto de mulheres racializadas dentro de serviços de saúde.

33


Este texto tem o objetivo duplo de relatar e refletir sobre o tema da recuperação do corpo feminino a partir dos movimentos de combate à extensiva medicalização relativa ao ciclo reprodutivo. Busca-se, assim, repensar tanto a relação estabelecida entre mulheres - em sua maioria brancas e de classe média com a medicina hegemônica, quanto as moralidades envolvidas nos ideais de recuperação do corpo no embate com a medicina. Num primeiro encontro com os relatos de mulheres nos meios online, percebemos o movimento e a pesquisa ativa dessas mulheres em relação a suas próprias experiências corporais4. A busca por mais informações sobre o funcionamento dos corpos das mulheres cisgênero, por meio das redes que vão se estabelecendo online, aponta para uma reapropriação do corpo realizado pelas autoras dos relatos que não necessariamente passa pela intermediação médica. A reclamação de que se encontra “pouca informação nos consultórios médicos” é frequente. Entretanto, ao mesmo tempo, o desejo de compreender o “verdadeiro” funcionamento de seus ciclos menstruais (sem a influência externa de estrogênios e progesteronas), assim como o desejo de conhecer a “verdadeira” experiência de parir (sem a indução de ocitocina) abre portas para a análise de possíveis aspectos morais e essencializantes do que viria a ser, para essas mulheres, uma relação mais ou menos “natural e verdadeira” com seus corpos. 2 METODOLOGIA As observações nos grupos online se deram, principalmente, durante os anos de 2018 e 20195. No período citado foram realizadas observações diárias, assim como trocas com as interlocutoras que se dispuseram a relatar suas experiências no processo de recuperação do corpo e tomada de decisão informada. Além das observações dos grupos online, ambas pesquisadoras também 4

Optamos por não especificar e nomear os grupos online em questão para preservar as identidades das mulheres que compartilharam seus relatos. Alguns desses grupos são privados, ou seja, é preciso que uma moderadora aceite a sua presença antes que você possa interagir com as publicações. Assim como alguns grupos são públicos, de acesso aberto. Geralmente, tais grupos têm abrangência nacional e contam com a participação de um grande número de seguidoras (alguns possuem mais de 100 mil mulheres registradas). 5 Ainda que as pesquisadoras já participassem anteriormente dos grupos enquanto mulheres interessadas em informações sobre os próprios ciclos reprodutivos.

34


realizaram pesquisa de campo presencial na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, com o intuito de expandir suas análises e corroborar, ou não, o que vinham observando nos meios online. Apesar de se tratarem de duas pesquisas de mestrado distintas, mas realizadas em paralelo, dialogamos constantemente a respeito das confluências e diferenças de nossos campos. Por isso, para este trabalho em específico, nos valemos da comparação de nossos diários de campo em que registramos nossas observações dos grupos de mulheres online e buscamos observar possíveis estruturas comuns entre os relatos do que chamamos de “recuperação do corpo”. 3 Considerações Parciais A partir das pesquisas realizadas pelas autoras, notaram-se algumas características entre os públicos dos grupos online pesquisados em si, assim como nas pesquisas realizadas presencialmente na cidade de Florianópolis. Entre as interlocutoras de Rodrigues (2020a) notou-se uma prevalência de mulheres brancas de classe média, assim como em Ávila (2020b). Enquanto na pesquisa de Rodrigues os relatos apontavam para o abandono da pílula anticoncepcional em prol de outros métodos anticoncepcionais, na pesquisa de Ávila, suas interlocutoras eram mulheres que possuíam condições financeiras para contratar equipes particulares de assistência ao parto, sendo este domiciliar ou realizado em ambiente hospitalar. Na pesquisa de Rodrigues, observou-se confluência entre os relatos das mulheres coletados em campo e observados nos meios online. Já na pesquisa de Ávila, os relatos online diferem substancialmente dos relatos das mulheres entrevistadas em campo, uma vez que o público difere drasticamente6. Observamos, então, que apesar de a internet potencialmente servir à democratização da informação relativa ao ciclo reprodutivo da mulher, retirando as mulheres da dependência de profissionais médicos, a mesma ainda opera como um grande filtro em relação ao acesso de mulheres de camadas populares a estas informações. Seja pela ausência de equipamento específico, de provedores de 6 As interlocutoras de campo de Ávila eram mulheres moradoras de um bairro de classe popular da cidade de Florianópolis. Entre estas últimas, a discussão da não medicalização excessiva do parto ou mesmo da humanização não chegava mediada por grupos ou comunidades online, mas pela fala de profissionais de saúde que atuavam no Centro de Saúde da Família, onde estas mulheres estavam vinculadas e realizavam seus acompanhamentos de pré-natal.

35


internet ou do tempo necessário para realização da extensiva pesquisa em torno dos conteúdos relativos à contracepção/gestação/parto, ainda operam exclusões entre as mulheres que podem exercer a ‘recuperação do corpo’ e conhecer os direitos e as possibilidades dentro da lógica da tomada de decisão informada. Além disso, notamos uma espécie de moralização em torno das mulheres que optam por continuar utilizando medicamentos ou intervenções consideradas danosas para seus corpos. Nessa homogeneização são colocadas à revelia as mulheres que não tem sequer acesso a essas discussões, inclusive pela impossibilidade financeira de trocar de profissional, método contraceptivo ou decidir onde parir. A nosso ver, não se trata de uma culpa ancestral, mas da produção, recuperação, transformação e adequação de culpabilizações baseadas em preceitos morais constantemente atualizados e que coexistem entre as diversas formas de ser mulher no mundo. É a produção desta "culpa" moralizante que inviabiliza toda uma discussão de gênero, raça e classe necessária quando da questão do acesso à direitos reprodutivos no Brasil. REFERÊNCIAS ÁVILA, A. A. Dentro e fora do manual: experiências de mulheres realizando pré-natal através do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento. Florianópolis, 2020a. Dissertação (Mestrado). Curso de Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. ÁVILA, A. A. Humanização do pré-natal e ativismo online: experiências de mulheres em busca do parto natural. Novos Debates, 6(1-2): E6208, 2020b. RODRIGUES, V. S. Controvérsias em torno da pílula anticoncepcional: usos e recusas do medicamento por jovens mulheres das classes médias urbanas. Florianópolis, 2020a. Dissertação (Mestrado). Curso de Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. RODRIGUES, V. S. “A pílula nos castra”: Narrativas sobre recusar o contraceptivo hormonal. NOVOS DEBATES, 6(1-2): E6209, 2020b. BONADIO, I.C. "Ser tratada como gente": a vivência de mulheres atendidas no serviço de pré-natal de uma instituição filantrópica. Rev. Esc. Enf. USP. v. 32, n. l, p. 9-15, abr. 1998. MCCALLUM C, Reis AP. Re-significando a dor e superando a solidão: experiências do parto entre adolescentes de classes populares atendidas em uma maternidade pública de Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(7), p. 1483-1491, jul, 2006. 36


HIRSCH, Olivia Nogueira. O parto “natural” e “humanizado” na visão de mulheres de camadas médias e populares no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 229- 249, 2015.

37


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES “BIXA, NUNCA SE ESQUEÇA DAQUILO QUE PRECISA LEMBRAR PARA VIVER”#. Manoel Nogueira Maia Neto maianeto.mn@gmail.com Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) 1 APRESENTAÇÃO /INTERESSE DO TRABALHO A SER APRESENTADO Numa discussão, estávamos em um quarto-kitnet alugado. Eu em pé; ele, numa cadeira. Era pela manhã, prato sujo e xícara usada na mesa. A insistência veio de mim. "Esse é o problema: comunicação. Eu me canso de ficar adivinhando ou interpretando o que você quer dizer. Isso [dificuldade de expressar] não é meu. Fala, criatura! Diz!". "Falar é coisa de branco", respondeu. Então, ele começou uma contação de cenas que envolviam o atual trabalho (com gente branca, sem noção) até aparecerem histórias mais antigas, de uma vida. Sala de aula, grupos de pessoas, falar-falar-falar. Estar num lugar de falatório, de mostrar, de como gente branca faz. Lattes, lugares onde foi, as referências e referências não tão usadas, ter "dinheiro" do tipo que não é problema. Mãe, tio, avó, alguém estende a mão. Pessoal que usa a palavra "herança", que teve/tem "mesada" há anos. Já ele não. Estar nesse falatório com gente assim cansa. Dá vontade de revirar os olhos, ignorar, rir da cara. Todo dia isso. E eu ia concordando. Alguns puxavam assunto, insistiam. "Conhece [nome de referência italiana]? Já viu o trabalho de [autor francês]? Sério, não sabe? Mas e teus projetos, o que vai fazer agora?". Branco fala muito, sabe muito, manda muito. Branco impõe muito, mata muito, mente muito e isso tudo porque teme muito. Teme muito. Se liga, nóis tamo voltando para acertar as conta, doido, vai ficar barato não (SILVA, 2018, p. 15). 38


Dessa vez, fui eu que perguntei. "O que?! Não entendi (...) Eles te roubaram isso, falar?!". Eu senti os minutos. Silêncio. Você já passou um tempo olhando e estando com alguém assim, sem qualquer distração, só vocês? Parece que o tempo come a gente. Quem sabe o que fazer agora? Como se eu fosse língua, o empurrava contra a parede: "fala!". "Falar é coisa de branco", eu ouvia de mim mesmo. Em um post antigo, que já não está mais no Instagram, Luedji Luna (@luedjiluna) fala sobre a dívida do racismo na maneira como ela se relacionava. Nas cobranças, nas autocobranças, na presença de um medo de que se acabe, na autoestima e no quanto demorou para namorar. "Quem vai pagar essa dívida?", escreve Luedji nesse post que citei. Quem vai pagar essa dívida que o racismo fez arranhar nos nossos afetos? Veiga (2019a, p. 86) lembra que “(...) o racismo afeta a maneira como amamos a nós mesmos e como nos relacionamos com o outro a partir desse amor”. Nesse texto meio confuso, não consegui deixar tanto o verbo no presente: ainda lembro o "Falar é coisa de branco" e continuo lá. Estar nessa relação foi um grande tema de terapia na época. Antes, eu não tinha estado tão ligado e sem boa comunicação com alguém ao mesmo tempo. No grupo de homens negros do qual participava no mesmo período disso tudo, ele já não me aparecia tanto. Estranhamente, talvez eu tenha entendido ele mais naquela época, hoje menos. Tendo ideia de como ele se comportava e sentia, quando estava em algum silêncio, o ter desresponsabilizado pode ter sido um erro. Hoje, já não nos falamos. Ainda não sei quem vai pagar essa dívida. (...) vivendo com uma sensação iminente de rejeição, a bixa preta, por vezes, cai em um desses complicados dilemas: ou não se permite amar e não suporta receber o amor do outro quando amada, ou ama e se submete a uma relação em que não é amada, ou ama e é amada, mas vive em estado permanente de ansiedade devido à ansiedade de que a qualquer momento esse amor pode acabar (VEIGA, 2019a, p. 89).

Estar em grupo de homens negros, para mim, funcionou como uma ajuda para ver o que estava pedindo em mim para ser visto. É um começo, ter apoio. Eu me colocava para escutar dúvidas tão reais do pessoal. Sobre ser hétero, sobre ter 39


medo de se parecer com o pai, sobre dinheiro e emprego. E, nisso tudo, ouvir poesia autoral, trocar indicação de filme, receber abraço. Eu ainda não tinha passado por isso, estar em um grupo de homens, metade sendo héteros, e ainda ficar confortável, sem medo. Cainã, membro do grupo de homens negros MilTons: Um milagre estatístico: um monte de homem negro se juntando para conversar sobre masculinidade e, imediatamente, ter um clic, em que a gente configura um círculo de proteção, de partilha, de crescimento mútuo. Isso aí é resistência individual e coletiva, de maneira mais poética possível, é maravilhoso. O que não quer dizer perfeito, mas é justamente por ser imperfeito que vale a pena (ALBINO, 2019, p. 213).

Parafraseando Lucas Veiga (2019b), o encontro entre pessoas negras pode ser de cura. Nessa possibilidade, mesmo agridoce, com certeza, só acontece por estarmos juntos: “Sem a comunidade, qualquer coisa que façamos é apenas uma trégua temporária entre um indivíduo e sua situação particular” (LORDE, 2020, p. 66). 2 IMPORTÂNCIA /JUSTIFICATIVA DO TRABALHO Não faço ideia do desejo de quem lê, do seu, mas me apresento-defino mesmo assim, seguindo os conselhos de Audre Lorde (2020). Sou bixa, psicólogo negro, cuidador, cearense e bastante curioso sobre memórias, diários relatos de experiência e outras formas de biografica da/o negra/o sobre a/o negra/o, porque já li que “Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo” (SOUZA, 1983, p. 17). Em Tornar-se Negro, especialmente nessas primeiras páginas que acabei de citar, Neusa Santos Souza (1983) contesta: a produção de conhecimento científico está bastante alierçada no lugar de pessoas brancas sobre as negritudes, uma manobra de poder onto-epistemológico, me fazendo lembrar que epistemicídio é como fantasma que parece ser sobre conhecimento válido para esconder quem se valida nisso. A cientificidade nos é questionada quando produzimos, “como se alguns cargos conferissem maior cientificidade a quem escreve o texto, a quem profere a fala” (JESUS, 2018, p. 209). Interrogações que propõem um exercício tanto de deslegitimar nosso estatuto de cognoscência/legitimidade quanto de jogar um véu de silenciamento sobre o lugar (da branquitude) que pergunta. Este é um 40


sinal do pensamento colonialista, que é universalista, contudo nega que assim seja (VEIGA, 2019b). O tão insistente, adoecido e adoecedor negacionismo. 3 OBJETIVOS Para tal proposta, o objetivo geral se dá em compreender alguns efeitos emocionais para bixas negras do racismo vivenciado em relações amorosas, assim, mais especificamente, facilitando a promoção de filiações e identificações numa rede de “bixalidade” nutridora de afetos, mesmo textual, neste país anti-negro (VEIGA, 2019a) e contexto pandêmico também anti-negro (SANTOS et al, 2020). Junto a isso, construir um espaço discursivo do negro sobre si mesmo (SOUZA, 1983), afirmando uma disputa efêmera de produção e validade onto-espitemológica. 4 METODOLOGIA Em isolamento social-sanitário, escrevi diários. Alguns viraram matérias para uma mídia negra cearense (Ceará Criolo), a qual contribuo com uma coluna de frequência bastante irregular chamada Psicoterapreto. Estamos no “ano 2” da pandemia, e encontrei nessa escrita um jeito de reunir, só um exemplo, um relato de amigo que casava com o que eu tinha vivido (fim de relacionamento logo no começo do primeiro lockdown cearense, em março de 2020), o que era motivo de umas videochamadas de algumas horas, sobrando umas palavras costuradas nesses diários. Me ouvi e, também, o de dois ou três amigos no decorrer dos meses depois disso. O tema ia se repetindo no meu trabalho como cuidador/psicoterapeuta. Teimoso, este texto aconteceu. As referências bibliográficas vieram de leituras mais dispersas que tive especialmente recentemente. Antes dos anos pandêmicos, 2020-2021, não tive tanta a chance de ler o que queria sem uma ementa de disciplina e, em isolamento social, exercitei essa oportunidade, por exemplo, com Lorde (2020) e Silva (2018), estando presentes aqui. Já indo escrevendo, lembrava de leituras feitas anteriormente, como Veiga (2019a; 2019b) e Albino (2019), ratificando pontos e firmando minhas filiações. 5 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS OU FINAIS 41


Meu primeiro atendimento como psicólogo me parece uma fotografia, uma ficção-fricção que lembro assim: chego à sala e, dali em diante, gaguejo e suo algumas várias vezes. Ouço um adolescente, que pouco fala logo quando nos vemos. É estranho porque parece dizer tanto. O corpo dele está dizendo. A maneira como olha para os lados, a voz bem baixa que me faz pensar se estou entendendo mesmo o que ele está dizendo. Sempre me lembro de respirar e puxar o ar. De repente, ele chora, fala sobre amor, família e medo. Diz do namorado no colégio e, como eu pareço começar em algo sendo terapeuta, ele também parece começar a falar sobre isso em voz alta. Em seguida, brevemente escuto a mãe dele. Uma mulher desorientada sobre o filho estar se isolando e se calando pela casa. Tudo era inesperado para ela. A mãe falou de um adolescente que não parece ser o mesmo que ouvi. Acaba o atendimento. “É sobre amor, minha senhora”, penso dentro. Volto à Sala de Supervisão e eu sinto dor de me ver nele, de preferir não atender pessoas se forem assim, de— Minha professora-orientadora me para. Com os colegas, refazemos a cena de atendimento que acabou de acontecer. Por um momento, dramaticamente sou o adolescente; depois volto a ser eu-terapeuta. Como um estalo de osso, a minha dor vira uma ponte que me liga a ele. Eu posso entendê-lo. Aqui, não é um problema sentir dor. Fazer Psicologia é trabalhar com o amor. E como podemos amar se não vivemos o amor, se não vivemos de amor, se viver de amor é considerado uma ingenuidade fadada ao fracasso? Vivemos todas e todos sedentos por sermos amados, mas como é difícil, para a maioria de nós, amar! [...] Se o amor cura (Hooks, 1995), quem sabe uma Psicologia inclusiva, que ame o humano (e não o tome como um mero objeto de estudos), possa curar o sofrimento e o ódio, quiçá promover uma vida mais plena? (JESUS, 2015, p. 211).

Lembro de uma frase de Castiel Vitorino Brasileiro: “se consigo enxergar a cura, por que meus olhos ainda doem?“ (MOMBAÇA, 2019, online) para não esquecer que temos dois olhos: um pra chorar, outro para curiar o que faz o mundo fazer essa dor (EVARISTO, 2016) ou o que fazem dores como desse adolescente e a minha ainda terem sentido nesse mundo. 42


Sinto que somos muitos em lembrar disso (do ato de cuidar) e de querer que esse mundo dê errado logo, o mais urgente possível. REFERÊNCIAS ALBINO, Airam. MilTons: múltiplas trocas em tom de conversa. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf. Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2019, p.197-227. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2016. JESUS, Jaqueline. Lições para uma Psicologia das Oprimidas. In: Aluísio Ferreira de Lima; Deborah Christina Antunes; Marcelo Gustavo Aguilar Calegare. (Org.). A Psicologia Social e os atuais desafios ético-políticos no Brasil. Porto Alegre: ABRAPSO, 2015, v.1 , p. 208-217. LORDE, Audre. Sou sua irmã. São Paulo: Editora Ubu, 2020. MOMBAÇA, Jota. “Aqui foi o Quilombo de Pai Felipe”. Buala, 2019. Castiel Vitorino Brasileiro. Disponível em: http://www.buala.org/pt/galeria/aqui-foi-o-quilombo-do-paifelipe. Acesso em: 29 maio 2021. SANTOS; Márcia; NERY, Joilda; GOES, Emanuelle; SILVA, Alexandre; SANTOS, Andreia; BATISTA, Luís; ARAÚJO, Edna. População negra e COVID-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estudos Avançados, v. 34, n. 99, 2020, p. 225-243. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3499.014. Acesso em: 28 maio 2021. SILVA, Ana Carolina. Apropriação. In: __________. Lembranças ancestrais. Brasília: AUA Editorial, 2018, p.14-15. SOUZA, Neusa. Tornar-se negro ou vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora Graal, 1983. VEIGA, Lucas. Além de preto é gay: as diásporas da bixa preta. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf. Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2019a, p.77-93. VEIGA, Lucas. Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, v. 31, p. 244-248, 4 set. 2019b.

43


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES O LUGAR DA SAÚDE MENTAL NO PROCESSO DE TRANSGENITALIZAÇÃO NO SUS: UMA REVISÃO DA LITERATURA Flávio Gabriel Alves do Amaral gabriel.alves.amaral642@gmail.com Universidade Federal do Ceará (UFC)

Milena Araújo Frota Pinto milenafrota137@gmail.com) Universidade Federal do Ceará (UFC)

1 APRESENTAÇÃO O histórico da cirurgia de transgenitalização é recente no Brasil. Sua realização no país foi autorizada pelo Conselho Federal de Medicina em 1997, ainda em caráter experimental, por meio da Resolução n. 1.482/97. Tal resolução estabeleceu como critérios para eleição à cirurgia a pessoa ser transexual, portadora de “desvio psicológico permanente de identidade sexual com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio” (Conselho Federal de Medicina, 2010 apud ROCON et al., 2020) e que passasse por um processo de avaliação por uma equipe multiprofissional (ROCON et al., 2020). Dessa forma, é notável que a prática clínica em geral, direcionada à população transgênero, tem sido pautada na psiquiatrização da transexualidade, considerada como “transtorno de identidade de gênero”, sendo esta uma condição para o acesso à saúde e exercício da cidadania (ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição (DSM-V) define a transexualidade como “disforia de gênero”, o que para algumas pessoas foi considerado como um avanço na despatologização, visto que a transexualidade deixou de ser entendida como um transtorno, porém, outras acreditam que a patologização se mantém sob nova nomenclatura (LIMA; CRUZ, 2016). Há muita discussão em torno dessa psiquiatrização e patologização da transexualidade, pois apesar de isso ter proporcionado visibilidade às pessoas trans e legitimidade à cirurgia de redesignação sexual como questão de saúde, ela reforça a exclusão social em virtude de seu caráter patologizante, desconsiderando os aspectos históricos, políticos e subjetivos da transexualidade (ARÁN; MURTA; 44


LIONÇO, 2009). 1.1 Justificativa Visto que, historicamente, populações LGBTQ+ foram colocadas numa posição social de subalternidade, é necessário entender como suas demandas e pautas são acolhidas e como os cuidados com essa população são construídos em uma sociedade a qual ainda pratica, recorrentemente, atos de violência contra ela. Em especial, no que concerne às pessoas trans e questões de Saúde Mental, Peres (2008) afirma que há uma abundância de relatos sobre depressão, crises de ansiedade e sensações de pânico por pessoas trans, mas, em alto contraste a isso, não existem muitos estudos e dados sobre Saúde Mental desse segmento. Aliando-se os aspectos supracitados, mostra-se necessário entender e trazer à tona os desejos, preocupações e necessidades da população trans quando se pauta sua saúde, para que os processos que a envolvem não perpetuem lógicas de violência, de apagamento de identidades e de patologização. 2 OBJETIVOS Entendendo que a ótica médica e patologizante se mostra profundamente incisiva na construção de identidades trans a partir da legislação e do conhecimento produzido na sociedade brasileira, procurou-se investigar neste trabalho como se desenvolvem os cuidados em Saúde Mental para essa população visto que “a clínica não deve enrijecer seu paciente uma identidade rígida, [...] mas deve produzir liberdade de fluxo plena de responsabilidades [...] e outras configurações do sujeito (Toledo; Pinafi, 2012), mas muitas vezes é convocada ao contrário. Para isso, procurou-se agrupar as produções científicas que analisam o processo de transgenitalização em relação às pessoas trans e suas perspectivas e necessidades em Saúde Mental e também buscou-se levantar o que foi desenvolvido sobre o tema, como as produções o abordam e o que se mostra de específico desse tema dentro da realidade brasileira. 3 METODOLOGIA Para os objetivos deste trabalho, foi realizada uma revisão sistemática. 45


Iniciou-se reduzindo o horizonte de pesquisa a artigos científicos e foi feita uma procura nas plataformas eletrônicas Scielo, BVS Psicologia e Portal CAPES no mês de outubro de 2020. Foram utilizados descritores escolhidos com base no tema que seria investigado, priorizando aspectos chave do objetivo. Na busca dentro das plataformas, foram usados os descritores "Transgenitalização", "Saúde Mental", "Saúde Coletiva" e "Psicologia" combinados entre si com o auxílio do operador booleano AND. Nessa etapa foram encontrados 94 artigos. Após isso, foram utilizados como critérios de inclusão textos que abordassem o tema da transgenitalização dentro do SUS com referências às áreas de Saúde Coletiva, Saúde Mental e/ou Psicologia; podendo ser de qualquer data. Já os critérios de exclusão escolhidos foram textos que estivessem em outras línguas que não o português, que abordassem em primeiro plano o aspecto jurídico do processo e que fossem repetidos. Como resultado final, foram obtidos apenas sete artigos que apresentaram em seus títulos, resumos e corpos de texto os dados que os pesquisadores buscavam encontrar com relevância para entender o tema. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS De um total de 94 (noventa e quatro) artigos alcançados pelos descritores, 7 (sete) se mantiveram após a filtragem nos critérios de inclusão e exclusão. Estes foram organizados duas vezes em grupos sob dois critérios. Sob o critério da existência de relatos de pessoas trans para análise do tema: cinco (5) dos artigos analisam por meio de relatos de pessoas trans suas relações com as instituições de saúde e o processo de transgenitalização (ARÁN; ZAIDHAFT; MURTA, 2008; OLIVEIRA, 2014; ROCON; SODRÉ; ZAMBONI; RODRIGUES; ROSEIRO, 2018; ROCON; RODRIGUES; ZAMBONI; PEDRINI, 2016; SAMPAIO; COELHO, 2012); e dois (2) artigos analisam a partir das instituições de saúde em seus âmbitos político, legislativo e de profissionais que as compõem, sem trazer tais relatos

pessoais (ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009; POPADIUK; OLIVEIRA;

SIGNORELLI, 2017). Sob o critério da área de conhecimento dos autores: em seis (6) artigos, os autores têm formação em psicologia (ARÁN; ZAIDHAFT; MURTA, 2008; ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009; OLIVEIRA, 2014; ROCON; SODRÉ; 46


ZAMBONI; RODRIGUES; ROSEIRO, 2018; ROCON; RODRIGUES; ZAMBONI; PEDRINI, 2016; SAMPAIO; COELHO, 2012); e em seis (6) artigos, eles têm formação em Saúde Coletiva (ARÁN; ZAIDHAFT; MURTA, 2008; ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009; POPADIUK; OLIVEIRA; SIGNORELLI, 2017; ROCON; SODRÉ; ZAMBONI; RODRIGUES; ROSEIRO, 2018; ROCON; RODRIGUES; ZAMBONI; PEDRINI, 2016; SAMPAIO; COELHO, 2012). Além disso, percebe-se uma publicação contínua desde 2008 até 2018, ou seja, a primeira publicação foi feita no ano em que a transgenitalização foi implementada no SUS (BRASIL, 2008). Os únicos autores que se repetem são: Alexsandro Rodrigues, Daniela Murta, Jésio Zamboni, Márcia Arán e Pablo Cardozo Rocon. Cada um aparece em no máximo 2 artigos. Apesar de o local de produção de algumas pesquisas não ser apenas no eixo Sul-Sudeste, os locais de publicação são todos (exceto o online) localizados nesse contexto. Isso pode se dar também porque no eixo Sul-Sudeste se concentra uma grande parte da população trans que procura o processo de transgenitalização e também possui, em conjunto, três das seis instituições que realizam esse procedimento atualmente no Brasil (ANTRA, 2020). Através da análise teórica e das falas das pessoas trans que surgem nas produções, há uma referência à patologização e à redução das possibilidades da existência transexual que vai de encontro ao produzido por essas pessoas durante o processo de transgenitalização. Nota-se que há a necessidade de criar uma clínica e um cuidado integral que seja pensado a partir das demandas e das pluralidades apresentadas pela população trans ao invés da perspectiva patologizante e de transexualidade como falta. No estudo realizado por Sampaio e Coelho (2012), no qual foram entrevistadas quatro pessoas trans, os entrevistados reivindicaram que os psicólogos estejam capacitados, a fim de não promoverem um maior desconforto, sentimentos de exclusão e discriminação, o que, por vezes, pode gerar uma tentativa de promover uma cura ou convencimento da desistência das cirurgias e outras intervenções, sob o argumento da seriedade e irreversibilidade das mesmas. Existe uma menor referências a falas, a análises sobre os processos de saúde e a vivências de homens trans em detrimento de mulheres trans. Dos 5 artigos que trouxeram falas de pessoas trans, apenas 3 trouxeram falas de homens 47


trans, e ainda, geralmente, em menor número dentro dos estudos, se comparado ao de mulheres trans. Ainda que a maioria das produções entrem na área da Psicologia e de Saúde Coletiva, a primeira se mostra em menor evidência. Dentre os textos, poucos apresentam uma perspectiva da atuação do profissional da Psicologia, uma atuação que, quando discutida, se mostra em uma linha tênue entre a criação de uma autonomia, de processos de autocuidado e autoconhecimento, mas também de diagnóstico, visto que através da psicoterapia será entendido também uma aptidão para o procedimento, sendo os(as) candidatos(as) às cirurgias submetidos a um processo terapêutico por, no mínimo, dois anos (SAMPAIO; COELHO, 2012). No entanto, a entrada da perspectiva de Saúde Coletiva demonstra uma possibilidade em aberto para que vários saberes possam tentar compreender as demandas e as vivências dessa população e assim trazer uma perspectiva integral para os cuidados. REFERÊNCIAS ARÁN, M; ZAIDHAFT, S; MURTA, D. Transexualidade: corpo, subjetividade e saúde coletiva. Psicol. Soc. v. 20, n.1, p. 70-79, 2008. ARÁN, M; MURTA, D; LIONÇO, T. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro. v. 14, n. 4, jul./ago. 2009. ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais. COMO ACESSAR O SUS PARA QUESTÕES DE TRANSIÇÃO?. [S. l.], 27 jul. 2020. Disponível em: https://antrabrasil.org/2020/07/27/como-acessar-o-sus-para-questoes-de-transicao/ . Acesso em: 31 maio 2021. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n°1.707. Diário Oficial da União 18/08/2008. LIMA, F; CRUZ, K. T. Os processos de hormonização e a produção do cuidado em saúde na transexualidade masculina. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, v. 23, p. 162-186, ago. 2016. OLIVEIRA, M. Uma etnografia sobre o atendimento psicoterapêutico a transexuais. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 22, n. 3, set./dez. 2014. PERES, W. S. Travestis: corpo, cuidado de si e cidadania In: Fazendo Gênero 8: corpo, violência e poder. Florianópolis, 25/28 ago. 2008. 48


POPADIUK, G; OLIVEIRA, D; SIGNORELLI, M. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT) e o acesso ao Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS): avanços e desafios. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1509-1520, 2017. ROCON, P; RODRIGUES, A; ZAMBONI, J; PEDRINI, M. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 21 n. 8, 2016. ROCON, P; SODRÉ, F; ZAMBONI, J; RODRIGUES, A; ROSEIRO, M. O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde? Interface (Botucatu), v. 22, n. 64, p.43-53, 2018. ROCON, P; WANDEKOKEN, K; BARROS, M; DUARTE, M; SODRÉ, F. Acesso à saúde pela população trans no Brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, 2020. SAMPAIO, L; COELHO, M. Transexualidade: aspectos psicológicos e novas demandas ao setor saúde. Interface (Botucatu), v. 16, n. 42, p. 637-649, 2012. TOLEDO, Lívia Gonsalves; PINAFI, Tânia. A clínica psicológica e o público LGBT. Psic. Clin., Rio de Janeiro, v. 24, ed. 1, p. 137-163, 2012.

49


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES A DOBRA DO GÊNERO BINÁRIO: PROCESSO DE DEFINIÇÃO DO SEXO DOS BEBÊS DA NEONATOLOGIA DE UM HOSPITAL PEDIÁTRICO E SEUS DESDOBRAMENTOS SOCIAIS Pedro Henrique Almeida Bezerra pedro.almeida1192@gmail.com Doutorando em Sociologia (PPGS/UECE) 1 APRESENTAÇÃO A dobra do gênero binário e os processo de definição do sexo dos bebês da neonatologia de um hospital pediátrico e seus desdobramentos sociais é o tema que pretendo abordar ao longo desse estudo e esse tema está inserido no contexto da unidade

de neonatologia de um hospital pediátrico. Durante a minha vivência

(rodízio) nessa unidade

pude observar várias questões de cunho social que

atravessam a experiência da

hospitalização de neonatos. O contexto social,

econômico, a trajetória de vida, as dificuldades diversas enfrentadas por os bebês e seus familiares são inerentes e indissociáveis do processo saúde-doença. Um fato que chamou minha atenção em específico foi o de recém nascidos com

"problemas" de má formação, sexo indefinido ou genitália ambígua. Essa

situação

desencadeia uma resposta centrada no biomédico-legal em que a

definição de um sexo

enquadrável nas normas do gênero hetero-compulsório

binário urge como demanda imputável das partes envolvidas. A sociedade, centrada na família, necessita saber qual o "sexo" do bebê. São eles que durante meses alimentaram uma expectativa sobre o espaço que aquele ser recém nascido iria ocupar nas suas vidas e histórias. A frustração do indefinido não encontra consolo enquanto o "não-ser" estiver em disputa. A instituição hospitalar, centrada no saber biomédico-legal, encarnado na pessoa do médico, demanda através de exames e tecnologias diversas, avançadas e sofisticadas a

busca até nos níveis cromossômicos por uma resposta para

dualidade indefinida que representa o bebê naquele momento. Por vezes a toda a trajetória terapêutica se vê em

suspense aguardando a tão esperada definição

indispensável. 50


E por fim, o Estado demanda que aquele ser recém nascido se torne uma pessoa. Que ele ou ela tome posse dos direitos que configuram a condição de cidadão. Para que

alguém tenha acesso a certidão de nascimento/registro civil,

precisa ter genitores, nascer,

ter registrado a data e horário de nascimento na

declaração de nascido vivo (DNV) junto com outras informações básicas. Mas é ela uma informação indispensável: o sexo. Sem sexo definido não é possível ter um documento civil, logo não há cidadã e sem ele não há direitos. O caso Adélaïde7 foi um dos casos ao qual eu acompanhei durante minha permanência no bloco da neonatologia. Pude observar de perto, desde a internação até a alta, re-internações, acompanhamento ambulatorial e o desfecho para o óbito. Esse caso em específico me chamou a atenção devido a experiência intensa de acompanhamento e vivência que pude compartilhar com esse neonato em particular e sua família. Por isso,

devido minha experiência pessoal, e pelo fato de que

Adélaïde foi uma paciente que serve

de cognato para tantos outros que são

atendidos nesse mesmo bloco. Dessa forma, a análise desse caso tem potencial de expressar características que podem ser comparadas e assemelhadas com outros da mesma espécie. 1.1 Justificativa Tendo em vista meu posicionamento em um hospital pediátrico, e tendo sido meu

primeiro rodízio o cenário da neonatologia, o caso Adélaïde me chamou

atenção devido os motivos explicitados no fim do tópico anterior. Visualizei nesse caso a oportunidade de dar continuidade8 aos meus estudos sobre gênero. Busco aprofundá-los, nesse momento,

utilizando um exemplo concreto e específico

verificado no serviço de saúde ao qual me encontro. Do ponto de vista científico e social, pode-se considerar a necessidade de intercorrência de conexões analíticas capazes de identificar no terreno do real, da 7

O nome Adélaïde foi escolhido para substituir o nome verdadeiro do neonato (por questões éticas) em homenagem a hermafrodita Adélaïde Herculine Barbin que foi uma pessoa intersexo francesa atribuída como do sexo feminino ao nascer. O caso de Herculine Barbin foi comentado por Michel Foucault na introdução do livro de memórias “Herculine Barbin: o Diário de um Hermafrodita” 8 Durante a minha trajetória acadêmica (graduação e mestrado) me debrucei sobre os estudos de gênero e da performance. Dessa forma, a presente investigação se configura pelas linhas de continuidade do meu interesse e trajetória de pesquisa.

51


vida cotidiana, das práticas institucionais, um processo dialético capaz de desdobrar e conectar as formulações teóricas com seus rebatimentos e influxos no campo das práticas e

vivências. Conceitos como gênero ou "mesa de parto do gênero"

PRECIADO (2014); BUTLER (2003). 2 OBJETIVOS Examinar os processos de definição de gênero no caso Adélaïde no que diz respeito ao manejo biossocial empregado durante sua permanência no setor de neonatologia em um

hospital pediátrico. Analisar a abordagem biossocial

empregada no caso Adélaïde de forma crítica e reflexiva no que diz respeito ao potencial, ou não, de desconstrução da binariedade de gênero. 3 METODOLOGIA 3.1 Cenário O cenário do estudo é o setor de neonatologia de um hospital pediátrico. Nele são

admitidos bebês recém-nascidos com problemas de saúde dos mais

diversos para receber atendimento de caráter multiprofissional e interdisciplinar9. O perfil de pacientes da unidade em questão são crianças recém-nascidas até os três meses de idade. Caso a internação ultrapasse esse tempo elas são transferidas para outras unidades de enfermaria ou terapia intensiva para crianças com idade maior que três meses. 3.2 Participantes Por se tratar de um estudo de caso pretendo estudar o percurso de Adélaïde e sua família durante a internação, alta, retorno ambulatorial e desfecho para o óbito da paciente. Essa análise leva em consideração não só a experiência da paciente e de sua família, mas também sua relação com a instituição hospitalar e os profissionais que estiveram envolvidos durante esse processo. 9

Nesse cenário de estudo existe uma equipe multiprofissional e interdisciplinar composta por médicos(as), enfermeiras(os), técnicas(os) de enfermagem, profissionais do serviços gerais, assistentes sociais, fisioterapeutas, farmacêuticos(as), nutricionistas, terapeutas ocupacionais, cirurgiões dentistas e psicólogos(as). Todas as profissões de nível superior citadas a cima também possuem estagiários e residentes atuando no interior da unidade.

52


3.3 Tipo de pesquisa e técnicas a serem utilizadas A presente pesquisa é de caráter qualitativa considerando que o mundo social deve ser entendido, preferencialmente, mediante sua explicação e compreensão do ponto de vista teórico metodológico. As ciências sociais, segundo Martucci (2001) devem partir de métodos hermenêuticos ou interpretativos, com vistas a descobrir e comunicar as perspectivas de

significado das pessoas e

situações estudadas. A pesquisa aqui apresentada é do tipo estudo de caso etnográfico105. Está é proveniente de uma longa tradição de pesquisa científica qualificada como um estudo

descritivo exaustivo Martucci (2001) ou um esforço reiterado para uma

descrição densa. Para Geertz (1989) o fazer etnográfico é muito mais do que “[...] estabelecer

relações,

selecionar

informações,

transcrever

textos,

levantar

genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante”, é “[...] o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’ [...]” (GEERTZ, 1989, p. 15), que seria a forma viável de descrição inteligível possível no fazer etnográfico. O caso em questão foi escolhido pois por si só é um caso digno de ser estudado, de um lado, e de outro porque tem o potencial de ser representativo de muitos outros. A presente pesquisa organizou-se em três etapas (MARTUCCI, 2001, p. 6): 1) planejamento, ou seja, construção e elaboração do projeto de pesquisa e sua qualificação; 2) permanência prolongada e sistemática no campo de trabalho e/ou coleta de dados; 3) momento final de sistematização e elaboração do relatório final de pesquisa. Como técnica de pesquisa utilizei (MARTUCCI, 2001, p. 6-7): a observação

participante, entendida como um processo pelo qual o pesquisador

obtém algum grau de interação e participação com a situação estudada, abrindo-se então a possibilidade de afetar

e ser afetado por ela. Para Martucci (2001) o

trabalho de campo etnográfico deve ser desenvolvido por um longo período de tempo, com encontros constantes com os

interlocutores estudados, em seu

10 5 O estudo de caso etnográfico é qualificado para um caso único e particular, estritamente distinto de outros, mas que também possua traços de similaridade com outros casos e situações semelhantes. Dessa forma, essa metodologia é adequada quando a preocupação com a compreensão e descrição do processo forem os pontos focais do estudo. Esse é exatamente o foco do estudo do caso Adélaïde.

53


ambiente natural, acompanhando e participando de suas atividades cotidianas a fim de compreender os múltiplos significados de suas ações. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Dessa forma, o processo de definição do sexo dos neonatos é uma chave central

para os múltiplos envolvidos na atenção e cuidado do infante. Além de

central esse elemento é indispensável, imprescindível e inalienável no processo de tornar-se pessoa, de virar humano, de ser alguém na lógica do existir. Porém, esse processo carece de flexibilidades que aceitem o não-normal, o outsider, o estranho, o ambíguo como legítimo e inteligível para tudo e todos. Esse processo amarra em um código binário, normativo, massacrante e inexorável a verdade do gênero absoluto criado e concebido pelo homem e para o homem através da ciência, da religião e tradição. É o disforme outsider, o não-normal e o indefinido que me interessam observar. São

as camadas de escape, de dobra, de limbo que precisam ser

constatadas, anotadas e

evidenciadas como provas cabais da ineficiência do

gênero binário. Quais são os processos de definição de gênero foram acionados no caso Adélaïde e suas implicações e desdobramentos do ponto de vista institucional e social com relação ao gênero binário? Concluo que o processo de definição do gênero dos recém-nascidos da unidade

neonatal de um determinado hospital infantil são nós amarrados com

desprezível soltura das

normas binárias de gênero baseadas e aplicadas pelos

preceitos biomédicos legais. Os escapes a essas normas, quando constatados, registrados e evidenciados tem potencial disruptivo e distensivo dos preceitos até então instituídos. REFERÊNCIAS AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Tradução Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 136p. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século 54


XX. Org. José Reginaldo Santos Gonçalves. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. COELHO, Juliana Frota da Justa. Ela é o show: performances trans na capital cearense. Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2012. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. 1ª ed. São Paulo: Paz & Terra, 2014. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. 1ª ed. 13ª reimpressão. Rio de Janeiro: LTC, 2008. MARTUCCI, Elisabeth Márcia. Estudo de caso etnográfico. Revista de Biblioteconomia de Brasília, v. 25, n.2, p. 167-180, 2001. PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrasseuxal: práticas subversivas de identidade sexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014. SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução e notas Guaciara Lopes Louro. 1ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 235p.

55


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES CONSTRUÇÃO DE UM QUESTIONÁRIO DE MITOS E TABUS SOBRE MENSTRUAÇÃO, VIRGINDADE E PRAZER SEXUAL FEMININO

Ingrid Sâmia Furtado Teixeira ingrid.furtado@aluno.uece.br Graduanda em Psicologia (UECE) Profª Ma. Mariana Gonçalves Farias Mestre e professora de psicologia (UECE) 1 APRESENTAÇÃO A sexualidade feminina ainda é cercada por preconceitos, estereótipos, mitos e tabus. Além disso, nossos corpos e desejos ainda são interpretados e impactados por crenças negativas advindas de uma sociedade patriarcal, falocêntrica, racista e moralista que demarcam a sexualidade das mulheres desde a infância até a velhice. Entendendo isso, busquei pesquisar no trabalho de conclusão de curso o endossamento de mitos e tabus sobre a menstruação, a virgindade e o prazer sexual por universitárias e estudantes da pós-graduação. A menstruação historicamente esteve associada à sujeira, algo que contaminava e por isso, necessitava ser purificado, e atualmente ela continua sendo permeada por representações, assim, em diferentes culturas pode ser relacionada tanto ao pecado e à impureza quanto ao sagrado e à potência. Em 2018, uma pesquisa realizada com 1.500 mulheres de 14 a 24 anos naturais do Brasil, África do Sul, Índia, Filipinas e Argentina revelou dados vivenciados cotidianamente pelas mulheres. Os resultados da amostra brasileira apontaram que 74% deixam de entrar na piscina quando estão menstruadas, 42% pedem absorventes para outra mulher como se fosse um segredo, somente 22% não sentem medo de levantar durante a aula no período menstrual e 7 em cada 10 entrevistadas se preocupam em descartar o absorvente no lixo porque outras pessoas podem ver (SEMPRE LIVRE, 2018). Esses dados demonstram o quanto ainda existe crenças negativas, desinformação e mitos sobre o período menstrual. Esse desconhecimento, vergonha e receio não se restringem somente à menstruação, mas também à virgindade e ao prazer sexual feminino. Nesse sentido, 56


diferentemente

da

menstruação,

a virgindade comumente é associada a

comportamentos positivos, sob a noção de pureza e recato feminino, atributos também advindos da doutrina cristã e reforçados por séculos também por outras instituições, como a família e a escola. Nessa perspectiva, o comportamento recatado era o que se esperava de uma mulher respeitável, honesta e de família (CAUFIELD, 2000), desse modo, quando a mulher iniciava sua vida sexual fora da instituição do casamento e da aprovação religiosa, a perda da virgindade era relacionada à perda de valores morais. É importante pontuar que a valorização da virgindade feminina era uma forma de controle sobre o corpo, da autonomia e dos desejos das mulheres, e isso se repercute diretamente na vivência do prazer sexual feminino até os tempos atuais, a partir da noção de que para as mulheres o sexo deveria ser visto com finalidade reprodutiva e não para o prazer sexual. Esse discurso por muito tempo amparou-se no saber médico e científico, normatizando e controlando o que era permitido ou não na sexualidade e nos desejos das mulheres. Logo, nota-se que a liberdade do prazer sexual feminino foi negada por muito tempo e isso ainda repercute em muitas mulheres por meio da culpabilização, insegurança e desinformação. 1.1 Justificativa Compreendendo essas problemáticas, mas também reconhecendo os avanços e conquistas das mulheres por direitos de igualdade de gênero, trabalhistas, sexuais e reprodutivos que permitiram maior liberdade e autonomia, maior conhecimento do próprio corpo e de novas formas de prazer, é possível haver mudanças na forma como a sexualidade feminina é percebida atualmente. Dessa forma, para investigar o endossamento de mitos e tabus sobre a menstruação, virgindade e prazer sexual por estudantes universitárias e da pós-graduação foi necessário, inicialmente, elaborar um questionário que operacionalizasse tais mitos e tabus, em função da escassez de escalas e questionários nessa direção em contexto brasileiro. 2 OBJETIVOS O objetivo deste estudo é descrever o processo de construção e de 57


análise de evidências de validade de conteúdo de um questionário de endossamento de mitos e tabus sobre a menstruação, a virgindade e o prazer sexual feminino por estudantes universitárias e da pós-graduação. 3 METODOLOGIA O presente estudo desenvolveu-se em etapas: construção dos itens do instrumento, análise de juízes, análise semântica e cálculo de Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC). A construção do questionário se realizou a partir da literatura científica na área da sexualidade feminina, bem como pela revisão bibliográfica de escalas e questionários desenvolvidas em outros países, como a Escala Metcon - Botello-Hermosa, a Menstrual Attitude Questionnaire - MAQ e a Development of the Virginity Beliefs Scale. Inicialmente, foram construídos 60 itens distribuídos em três categorias sobre a sexualidade feminina, especificamente foram 27 itens de Menstruação, 15 itens de Virgindade e 18 itens de prazer sexual. Para identificar a adequação dos itens, foi solicitada a avaliação de quatro juízas especialistas em três elementos, a saber: clareza de linguagem, pertinência e relevância teórica. As juízas utilizaram uma escala de 1 a 5 pontos para avaliar o nível de adequação dos itens aos critérios avaliados. Contou-se com a participação de pesquisadoras e professoras de Psicologia que possuíam experiências com as temáticas do presente estudo e, portanto, apresentavam conhecimentos teóricos e técnicos pertinentes para avaliar a adequação dos itens elaborados. Após a atribuição das notas das juízas, foi calculado o Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC), proposto por Hernandez-Nieto (2002) para cada item do instrumento (CVCc) e para o instrumento como um todo (CVCt). O ponto de corte adotado por Hernandez-Nieto para determinar níveis satisfatórios é de CVCc ≥ 0,80 tanto para os itens como para o instrumento no geral. Dos 60 itens do questionário, quatro obtiveram valores inferiores a CVCc=0,80 e por isso três foram excluídos e um passou por melhorias a partir das sugestões das juízas. Em relação aos valores do CVCt, eles foram satisfatórios: clareza de linguagem (CVCt=0,97), pertinência (CVCt=0,95) e relevância teórica (CVCt=0,97). As juízas recomendaram também a adição de novos itens abordando de forma mais ampla a questão do prazer sexual. Ao final desse processo, o 58


questionário passou a ter 62 itens (Apêndice), especificamente 26 itens de Menstruação, 17 itens de Virgindade e 19 itens de Prazer sexual feminino. Em seguida, essa versão passou pela análise semântica com uma amostra de 05 estudantes universitárias ou pós-graduandas para avaliar se os itens estavam inteligíveis para o público-alvo do questionário. Essa etapa não indicou a necessidade de nenhuma alteração. É preferível que o questionário seja aplicado por meio de plataformas online, como o Google Forms, contendo as afirmações sobre tabus e mitos relacionados à menstruação, à virgindade e ao prazer sexual feminino, como também perguntas de cunho sociodemográfico. O questionário utiliza uma escala de respostas Likert: 1 – Discordo totalmente, 2 – Discordo, 3 - Nem discordo, nem concordo, 4 – Concordo, 5 – Concordo totalmente. Estima-se que o preenchimento do questionário seja de, aproximadamente, 15 minutos. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Acredita-se que o questionário apresentou evidências satisfatórias de validade de conteúdo e espera-se que este questionário possibilite a realização de pesquisas empíricas que auxiliem na compreensão sobre o endossamento dos tabus e mitos relacionados à menstruação, à virgindade e ao prazer sexual feminino por estudantes universitárias e da pós-graduação, bem como proporcione análises das características sociais e culturais relacionados com o endossamento desses estigmas referente à sexualidade feminina. E ainda, espera-se que o questionário contribua para a literatura existente da área e se apresente como uma possibilidade de ampliar as discussões e as reflexões sobre gênero e sexualidade feminina, especialmente sobre menstruação, virgindade e prazer sexual feminino, na comunidade acadêmica como na sociedade. REFERÊNCIAS CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). São Paulo: UNICAMP, 2000. HERNÁNDEZ-NIETO, Rafael. Contributions To Statistical Analysis: The Coefficients of Proportional Variance, Content Validity and Kappa. Mérida: Universidad de Los Andes, 2002. 59


SEMPRE Livre lança pesquisa global sobre menstruação. Inova Social, 2018. APÊNDICE A fim de respeitar as normas técnicas do presente congresso constam-se somente os itens do questionário. Menstruação: -

Durante a menstruação, deve-se evitar cozinhar para não estragar alguns alimentos. Conheço as fases do meu ciclo menstrual. Costumo conversar com meu(minha) parceiro(a) sobre menstruação. Lavar o cabelo menstruada aumenta o fluxo. Costumo conversar sobre menstruação com minhas amigas. A tensão pré-menstrual (TPM) não existe. Me assustei com a minha primeira menstruação. Quando preciso trocar o absorvente, eu o escondo para as pessoas não saberem que estou menstruada. Durante a menstruação, deve-se evitar pisar descalça no chão frio para não aumentar as cólicas. Tomar sorvetes ou ingerir bebidas geladas menstruada pode causar hemorragia. O sangue da menstruação é impuro. Só mulheres jovens apresentam tensão pré-menstrual (TPM). Durante a menstruação, a mulher não pode tomar banho de mar ou de piscina. Quando menstruei pela primeira vez, não entendi o que estava acontecendo. A mulher precisa menstruar todo mês para purificar o seu corpo. Tenho vergonha de comprar absorvente. A menstruação é suja. Durante a menstruação, a mulher não deve ter relações sexuais. Não costumo conversar sobre menstruação. A menstruação é nojenta. Quando menstruei pela primeira vez contei para minhas amigas. Costumo conversar sobre menstruação com meus familiares. A tensão pré-menstrual (TPM) dura o mês inteiro. Sinto vergonha quando estou menstruada. As mulheres usam a tensão pré-menstrual (TPM) como desculpa para tudo. Fico constrangida quando as pessoas percebem que estou menstruada.

Virgindade: -

Mulheres virgens são puras. A virgindade feminina deve ser encorajada. A mulher só perde a virgindade quando há o rompimento do hímen. A primeira relação sexual da mulher deve ser com o seu marido/esposo. Considero a virgindade como algo positivo. Mulheres virgens sangram na primeira relação sexual. Fazer sexo antes do casamento é pecado. Planejei minha primeira relação sexual junto com meu(minha) parceiro(a). Quando tive minha primeira relação sexual, contei para minhas amigas. Minha virgindade foi um presente para meu(minha) parceiro(a). 60


-

Quando tive minha primeira relação sexual, tive medo de que meus pais descobrissem. Me senti culpada quando perdi a virgindade. Tive receio que descobrissem que eu não era mais virgem. Quando tive minha primeira relação sexual, contei para meus pais. Quando tive minha primeira relação sexual, tive medo de que minhas amigas descobrissem. Tive vergonha de dizer para meu(minha) parceiro(a) que não era mais virgem. Me senti impura quando perdi a virgindade.

Prazer sexual feminino: -

Conheço os lugares do meu corpo que me dão prazer. Consigo ter prazer sexual mesmo sem penetração. Me senti culpada ao usar brinquedos sexuais. Sinto vergonha de pedir para meu(minha) parceiro(a) usar brinquedos sexuais durante o sexo. Costumo conversar sobre prazer sexual com minhas amigas. As mulheres precisam satisfazer sexualmente seu(a) parceiro(a). Sinto vergonha de comprar brinquedos sexuais. A masturbação feminina é pecado. A mulher só tem orgasmo com a penetração vaginal. Costumo me masturbar. Já comprei brinquedos sexuais. Gostaria de ter um vibrador (aparelho/brinquedo sexual). Costumo conversar sobre prazer sexual com meu(minha) parceiro(a). Somente mulheres lésbicas se masturbam. Costumo falar sobre o que gosto no sexo para meu(minha) parceiro(a). A masturbação feminina causa problemas mentais. A mulher não deve se masturbar. Sinto vergonha de comprar preservativo. Mulheres que se masturbam com frequência sentem dificuldade para atingir o orgasmo durante o sexo.

61


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES CONCEITOS INTRODUTÓRIOS SOBRE BISSEXUALIDADE E BIFOBIAS: ASPECTOS SOCIAIS E HISTÓRICOS. Ana Beatriz de Sousa Cunha anabeatrixcunha@gmail.com Universidade Estadual do Ceará (UECE). Poliana Machado Gomes da Silva poliana.machado@uece.br Centro de Humanidades - Universidade Estadual do Ceará (UFC) 1 APRESENTAÇÃO Quais os conceitos de bissexualidade e bifobia ao longo da história? À vista desta pergunta, o presente estudo tem por finalidade refletir introdutoriamente sobre os conceitos de bissexualidade e bifobia, situando-os histórico-culturalmente. Acentua-se, todavia, que tais conceitos são escassos e precários no âmbito das ciências sociais e humanas, dificultando assim o processo de estudo e análise dos mesmos. Os primeiros relatos de bissexualidade datam da Grécia e do Japão Antigos, expressos

somente

nas

vivências

do

gênero

masculino.

A

história

da

bissexualidade, em seus primórdios, fora narrada e escrita por homens segundo perspectivas que (re)produziam as estruturas de opressão, dominação e exploração das mulheres. Evidencia-se, pois, o silenciamento e o apagamento de narrativas de mulheres bissexuais ao longo da história. No decurso histórico, o termo bissexualidade, em seu processo histórico e social, constituiu-se de formas distintas em cada época e cultura111. Logo, foi utilizado: a) do século XVII ao início do século XX, para denominar corpos com genitálias ininteligíveis, não entendidas nem como masculina, nem como feminina; b) durante o final do século XIX, para pessoas com uma suposta combinação de masculinidade e feminilidade em âmbito psicológico, chamada por Kraff-Ebing de 11

Tendo por ilustração a Grécia Antiga, era comum que um homem mantivesse relações ao mesmo tempo com uma mulher, em constituição familiar, e com um adolescente. A última relação, no entanto, possuía cunho educativo, almejando-se a criação de um cidadão respeitável e sábio (MENGEL, 2009, apud, LEWIS, 2012). Algo semelhante ocorreu no Japão antigo. Era comum, no shudo da elite aristocrática japonesa, que um samurai adulto, casado com uma mulher e tendo filhos, tivesse uma relação sexual e afetiva com um aprendiz mais jovem, para ensinar-lhe o código moral dos samurais e dar-lhe uma iniciação nas relações sexuais.

62


“hermafroditismo psicossocial” (apud, LEWIS, 2012, p.26) e, por Freud, de “pré disposição bissexual” (apud, LEWIS, 2012, p.26); c) no século XX, para designar pessoas que sentiam atração afetiva/sexual por homens e mulheres, como um estágio de pré-sexualidade. À seguir, frisa-se o termo que contempla a população bissexual na contemporaneidade: a bissexualidade pode ser considerada como uma orientação sexual em que mantem relações sexuais com uma pessoa do mesmo sexo e com uma pessoa do sexo oposto, relacionamentos esses que podem ser mantidos simultaneamente ou em tempos divergentes. (PAVONI, p.869, 2015, apud, SILVA,JÚNIOR, 2020).

Apesar das diferenciações conceituais sobre a categoria bissexualidade, a mesma segue ocupando zonas de ininteligibilidade, ilegitimidade, ambivalência e dubiedade nas esferas sociais. Os processos de apagamento e deslegitimação da bissexualidade expressam o não reconhecimento das vidas, experiências e do sofrimento de pessoas bissexuais. Logo, o não reconhecimento da bifobia. Dessa forma, entendemos que a cultura ocidental, mais especificamente o colonialismo, impõe um modo de ser e estar no mundo focado em mono temas, monos afetos e mono deus, por exemplo, tendo tudo que ultrapasse tais segmentos tratados como desvios, abjetos ou perigosos (LAEGER, LONGHINI, OLIVEIRA, et al., 2019). 1.1 Interesse do trabalho Aproximei-me desta temática, através de minhas vivências como mulher bissexual, estudante da Universidade Estadual do Ceará (UECE), passando a vivenciar experiências coletivas e singulares de bifobia em diversos espaços sociais, tanto na esfera familiar, como em espaços de militância universitária, rodas de amigos e relações amorosas tanto de minha parte, quanto na realidade de outras mulheres bissexuais a quais frequentam os mesmos espaços no presente universo da pesquisa. Dessa forma, com a reflexão acerca de inúmeras violências sofridas sempre na mesma perspectiva, com cunho bifóbico, trazendo assim aspectos de naturalização desse segmento, passei a me questionar sobre tais situações e o quão necessário se faz falar e aprofundar os diálogos e reflexões acerca do 63


presente assunto. “De acordo com Ulrich Goob (2008), o termo bifobia está relacionado ao processo de invisibilização e deslegitimação das experiências bissexuais, sendo usado para descrever reações negativas de pessoas heterossexuais, lésbicas e gays em relação às bissexualidades”. (LAEGER, LONGHINI, OLIVEIRA, et al., 2019, p.6). Nesse hiato, é comum lésbicas e gays questionarem a legitimidade dessa sexualidade pela afirmação de que os/as bissexuais só sofrem discriminação quando se relacionam com o mesmo gênero. Além disso, evidencia-se que a imagem construída sobre a bissexualidade, tem feito com que mulheres bissexuais sejam facilmente erotizadas e se tornem objetos de assédio e violência sexual (EISNER, 2013, CORED, 2017, apud, LAEGER, LONGHINI, OLIVEIRA, et al., 2019, p.11). Ademais, “Com a polaridade das identidades em homo e heterrosexual, outras práticas foram se tornando invisíveis, ou mesmo, inconsistentes na lógica de representação ‘identitária’. Outro ponto importante é a necessidade que temos em manter a coêrencia entre o sexo, gênero e desejo, isto é, a cada atribuição - masculina ou feminina - é esperada uma personalidade e um objeto de desejo sexual. Nessa lógica de representação, e assim inteligível aos olhos de muita gente que acredita na irredutibilidade da sexualidade, do sexo e do gênero. Assim, as práticas bissexuais acabam se marginalizando e o preconceito só aumenta a dificuldade delas se assumirem como práticas legítimas.” (CAVALCANTI, 2012, P.81-81, apud, Silva, Junior, 2020, p.8).

À título de exemplo, no Brasil12, a partir dos anos 80, com o surgimento da AIDS, os/as bissexuais foram concebidos/as como “ponte bissexual do HIV”. Não parando por aí, atualmente ainda existe a concepção de que bissexuais são “vetores de doenças” – a exemplo da percepção de algumas lésbicas quando afirmam que as mulheres bissexuais são consideradas como “potenciais transmissoras de doenças” 12

2 No início dos anos 2000, surgiram os primeiros movimentos bissexuais formados em solo brasileiro, em prol do reconhecimento da bissexualidade pelo movimento social brasileiro. Destacam-se: o MovBi (Movimento de Bissexuais) e Bi-sides (o primeiro se tornou a primeira ONG brasileira de bissexuais) (Bi-SIDES, 2014, apud, LAEGER, LONGHINI, OLIVEIRA, et al., 2019) Ressalta-se que, segundo os mesmos autores, tais movimentos têm exigido entre as pautas, o econhecimento do termo bifobia para se referir às discriminações dirigidas a pessoas que se entendem como bissexuais.

64


– contagiosas – por se relacionarem com homens cisgêneros (FACHINI, 2004, apud, LAEGER, LONGHINI, OLIVEIRA, et al., 2019). 1.2 Justificativa Diante do exposto acima, faz-se necessário tal discussão no âmbito das ciências sociais aplicadas e humanas, principalmente na esfera do Serviço Social. Salienta-se que seu código de ética de 1993, pauta o valor ético central da profissão na liberdade e em valores fundamentais para a condição humana. Desta feita, o debate de tais categorias urge de forma necessária a tais áreas do conhecimento, para se entender e lutar contra o repúdio propagado por ideologias do senso comum, que tratam tal orientação sexual em cunho pejorativo e efêmero, causando assim inúmeras consequências negativas aos indivíduos que a compõe. 2 METODOLOGIA Propondo sucessivas aproximações com o objeto deste estudo, utilizou-se uma pesquisa de tipologia teórica. Esta é caracterizada por ser “dedicada a reconstruir teoria, conceitos, ideias, ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos

imediatos,

aprimorar

fundamentos

teóricos”

(DEMO,

2000,

apud,

CALHEIROS, FREITAS, ALCARÁ, 2016, p.21). Para mais, a técnica de coleta de dados utilizada foi a pesquisa bibliográfica, sendo caracterizada por Gil (2008) como “aquela que é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (p. 50). Salienta-se que foi utilizado também a técnica de pesquisa documental, sendo aquela que: "Vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa [...] Existem, de um lado, os documentos de primeira mão, que não receberam qualquer tratamento analítico, tais como: documentos oficiais, reportagens de jornal, cartas, contratos, diários, filmes, fotografias, gravações, etc. De outro lado, existem os documentos de segunda mão, que de alguma forma já foram analisados, tais como: relatórios de pesquisa, relatórios de empresas, tabelas estatísticas, etc. (Gil, 2008, p.51).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Finalizo tal estudo, evidenciando assim os conceitos encontrados na trajetória 65


do presente trabalho, como o conceito de bissexualidade, a qual, “a bissexualidade pode ser considerada como uma orientação sexual em que mantem relações sexuais com uma pessoa do mesmo sexo e com uma pessoa do sexo oposto, relacionamentos esses que podem ser mantidos simultaneamente ou em tempos divergentes.” (PAVONI, p.869, 2015, apud, SILVA,JÚNIOR, 2020).

Assim como, o conceito encontrado de bifobia, que estar relacionado de acordo com Ulrich Goob (2008), “ao processo de invisibilização e deslegitimação das experiências bissexuais, sendo usado para descrever reações negativas de pessoas heterossexuais, lésbicas e gays em relação às bissexualidades”. (LAEGER, LONGHINI, OLIVEIRA, et al., 2019, p.6). No entanto, com a pequena produção do conhecimento sobre a presente temática, dá-se um ponto de esperança a esses corpos que tanto sofrem em diversas esferas, sendo uma forma também de esclarecer as dúvidas que ocorrem na mente de pessoas bissexuais, pelas ideologias construídas socialmente de forma distorcida. Além do fato de conseguirmos construir junto ao coletivo processos de transformações sociais, que impulsionaram a alteração de ambos conceitos ao longo da história da humanidade. REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. CALHEIROS, Freitas, Alcará. TENDÊNCIAS METODOLÓGICAS NA ÁREA DE ORGANIZAÇÃO E REPRESENTAÇÃO DO CONHECIMENTO: UMA ANÁLISE DAS COMUNICAÇÕES ORAIS DO GT2 DOS ENANCIBs DE 2014 E 2015, Londrina, 2016. DEMO, P. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social, 6 ed, São Paulo: Atlas 2008. JAERGER, Melissa. Longhini, Geni. OLIVEIRA, João. TONELI, Maria. Bissexualidade, bifobia e monossexismo: problematizando enquadramentos,. Revista de estudos indisciplinares em gêneros e sexualidades, Salvador, 2019. LEWIS, Elizabeth S.: “Não é uma fase”: construções identitárias em narrativas de ativistas LGBT que se identificam como bissexuais. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2012. 66


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES VIVÊNCIAS DE MULHERES LÉSBICAS E A PSICOLOGIA BRASILEIRA: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA DE LITERATURA Jamyle Maria de Sousa Gonzaga jamylemsousag22@gmail.com Universidade Estadual do Ceará Luis Fernando de Souza Benicio luisf.benicio@gmail.com Universidade Estadual do Ceará 1 APRESENTAÇÃO O presente trabalho constitui uma prévia de um trabalho de conclusão de curso no formato de artigo, em que buscamos analisar como a produção científica brasileira da psicologia tem retratado vivências das mulheres lésbicas, a partir de uma revisão

sistemática de literatura (RSL). Destaca-se que para abordar essa

temática, será necessário refletir sobre elementos constitutivos da lesbianidade no Brasil, sua influência e seus desdobramentos. Assim, abordaremos a lesbianidade a partir da

definição de Toledo e Filho (2010), que a define como “processos de

subjetivação relativos à orientação sexual e identidades política, sexual e de gênero de mulheres

com relações/práticas homoeróticas que se auto-atribuem o nome

lésbica ou similar”. A lesbianidade no Brasil é marcada pela invisibilidade em diversas áreas, aqui destacamos os movimentos sociais e o meio acadêmico. Fernandes (2018) afirma que, entre as décadas de 80 e 90, o movimento lésbico brasileiro não encontrou apoio

no Movimento Homossexual Brasileiro, que se referia as lésbicas como

"rachaduras" e "histéricas". Além disso, as lésbicas também não foram apoiadas pelo Movimento Feminista da época, que não levava em consideração suas pautas. Em relação ao meio acadêmico, a partir da década de 80, os estudos de gênero

ganharam relevância e, nas últimas décadas, os estudos sobre

homoafetividade.

Porém, observamos que o debate e as produções científicas

acerca dos aspectos e das singularidades da lesbianidade ainda são escassos, uma vez que quando se fala sobre homoafetividade, tende-se a focar na realidade dos homens gays, em detrimento das lésbicas e pessoas bissexuais. Guimarães e Vieira (2011) pontuam que o Brasil é um dos países onde as pessoas menos publicam, 67


estudam e leem sobre lesbianidade. Afirmam ainda que a maior parte das pesquisas acadêmicas bissexuais,

brasileiras que abordam vivências LGBTQIA+ (lésbicas, gays, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e demais orientações

sexuais e identidades sexuais desviantes da heterossexualidade e cisgeneridade) expressam a hierarquia de gênero ao focar nos homens.No que se refere ao campo da psicologia, utilizava-se a terminologia

“homossexualismo” para nomear as

pessoas LGBT, em que o sufixo “ismo” refere se a uma condição patológica. O Conselho Federal de Psicologia (CRP), em 1999, publicou a resolução 001, que estabelece as(os) psicólogas(os) normas de atuação para o tema orientação sexual, e afirma que a homossexualidade não é uma doença e que essas(es) profissionais não poderão colaborar com projetos de tratamento e cura da homossexualidade. Entretanto, como aponta Barbosa (2014), cada grupo dentro da comunidade LGBTQIA+ apresenta sua individualidade, caracterizando a interseccionalidade das opressões, ou seja, violências que estão entrelaçadas. No caso das mulheres lésbicas, as opressões são duplicadas, triplicadas e até quadruplicadas, uma vez que são oprimidas pelo machismo, lesbofobia e, no caso de mulheres transexuais e negras, transfobia e racismo. Assim, entendemos como necessário buscar analisar se e como a psicologia tem contribuído para a compreender as vivências lésbicas. 1.1 Justificativa do trabalho O presente trabalho busca tensionar a ciência para a visibilizar as vivências lésbicas. Entendemos que a ciência ocidental, que produz concepções de mundo, é construída por conhecimentos masculinistas, que analisa e produz estudos de forma tendenciosa, a partir de um ponto de vista machista. Essa ciência toma como sujeito ou objeto uma mulher universal, que é branca, ocidental, burguesa e heterossexual. Dessa forma, tensionar essa ciência a partir de uma perspectiva feminista possibilita uma visão ampliada, com maior capacidade para reconhecer a propensão androcêntrica, produzindo resultados objetivos, mais fieis ao mundo e desprovido de tendenciosidades (HARDING, 1993; HARAWAY, 1995). Desta forma, um trabalho que tematize as vivências lésbicas, diante de um sociedade heteronormativa e patriarcal, que invisibiliza essas mulheres em diversos aspectos, amplia os estudos na área podendo contribuir para futuras pesquisas em áreas acadêmicas. Além disso, possibilita a reflexão sobre a invisibilidade das 68


mulheres lésbicas nas produções científicas e as consequências disso. 2 OBJETIVO Refletir, a partir de dados iniciais de uma revisão sistemática de literatura, como a

produção científica brasileira da psicologia tem retratado vivências de

mulheres lésbicas. 3 METODOLOGIA O estudo trata-se de uma Revisão Sistemática, operacionalizada pela Plataforma de Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC) e pela Biblioteca Eletrônica Científica Online (Scielo), referente a produção de artigos científicos de 2010 a 2020. Utilizamos o protocolo PRISMA. Assim, o primeiro passo foi realizar as seguintes etapas para a submissão do estudo: 1) delimitação da questão norteadora; 2) coleta de estudos e evidências; 3) revisão do material e definição de critérios

de

exclusão/inclusão; 4) análise dos estudos selecionados; 5)

apresentação de considerações finais sobre a revisão sistemática. Na primeira etapa, definimos como pergunta norteadora da nossa pesquisa a seguinte questão: “Como a produção científica da psicologia brasileira tem retratado vivências lésbicas?”. No segundo passo, realizamos a busca de artigos utilizando os critérios de idiomas (foram utilizados textos em português e em inglês), textos disponíveis e exclusão de materiais repetidos. Assim, foram utilizados os seguintes descritores,

que

foram

combinados:

“lésbicas”,“psicologia”,“Brasil”;

“lesbofobia”;“violência”, “LGBT”, "psicologia" e “lesbianidade” . Foram encontradas 27 publicações no total. Após a busca, iniciamos o terceiro passo, que corresponde a revisão do material e as definições dos critérios de inclusão e exclusão. Foram utilizados os seguintes critérios de exclusão: a) teses e dissertações não foram incluídas, uma vez que o artigo consiste em uma monografia; b) artigos que não se relacionem com a pergunta norteadora; c) artigos que não estivessem dentro do período 2010-2020, uma vez que objetivamos analisar a produção de conhecimento mais recente construída no Brasil; d) estudos que não apresentavam relação com o contexto nacional. Assim, foram incluídos 14 artigos científicos na RSL, que foram analisados 69


a partir de estudos feministas e da psicologia social. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da RSL, observamos três temáticas que as produções científicas abordam acerca das vivências das mulheres lésbicas: o uso do termo lesbianidade na produção científica da psicologia brasileira, a constituição das mulheres lésbicas nas relações familiares e os processos de saúde-doença-cuidado de mulheres lésbicas. Em relação ao uso do termo lesbianidade, observamos que os artigos que utilizam o termo ou outros específicos para descrever as mulheres lésbicas e suas vivências, como “lésbicas”, “lesbofobia” e “lesbianismo”, destacam as singularidades dessas

experiências.

Entretanto,

os

trabalhos

que

utilizam

termos como

“homossexualidade” ou “lésbica” em conjunto com o termo “gay” não levaram em consideração as individualidades das mulheres lésbicas, focando nas vivências dos homens gays para definir a realidade da comunidade LGBTQIA+. Além disso, observamos que a maior parte das produções que levam em consideração as vivências das lésbicas possuem pelo menos uma autora mulher. Ao que se refere à segunda temática, os trabalhos discutem as suas relações filiais, parentais e conjugais. Assim, as(os) autoras(es) denominam de “homofobia familiar”

as

violências

que

a

família

comete

contra

as

pessoas

lésbicas/bissexuais/gays devido a sua orientação sexual. Afirmam que a maior expressão da homofobia familiar não é a expulsão das filhas lésbicas de casa, mas sim a violência indireta que ocorre cotidianamente. Entretanto, apenas um trabalho especifica as vivências lésbicas enquanto filhas, afirmando que as lésbicas rompem com o modelo de família nuclear burguesa ao buscar sua independência e autonomia e romper com a dependência e subordinação masculina. Ao que se refere a parentalidade, os artigos destacam que as (os) filhas (os) dos casais lésbicos não apresentam obstáculos em seu desenvolvimento cognitivo social-psico-sexual devido à orientação sexual de suas mães. Entretanto, o alto estresse maternal, devido aos desafios enfrentados relacionados à lesbofobia, acarretam efeitos negativos sobre a saúde mental e física dessas mulheres e para o bem-estar psicossocial de suas filhas(os), bem como causam depressão maternal. Em relação a conjugalidade, são escassos os estudos sobre a temática, uma 70


vez que a maioria dos trabalhos encontrados em nossa RSL discutem a temática a partir da homossexualidade. Entretanto, afirmam que a legalização do casamento gera efeitos positivos para a saúde mental das lésbicas enquanto a homofobia gera efeitos negativos, porém pode estreitar os vínculos da relação. Pontuam ainda que casais lésbicos, quando comparados a casais heterossexuais, relatam viver relações mais igualitárias em relação a questões financeiras, de comunicação e de apoio. Por fim, ao que se refere aos processos de saúde-doença-cuidado de mulheres lésbicas, as(os) autoras(es) afirmam que as violências sofridas por essas sujeitas causam efeitos diretos em sua saúde física e mental. Observamos ainda que as(os)

profissionais de saúde, tanto médicas(os) quanto psicólogas(os),

possuem pouco conhecimento sobre diversidade sexual e, principalmente, sobre as vivências das mulheres lésbicas. Dessa forma, os trabalhos destacam que os cuidados em saúde, as produções científicas da área da saúde e as políticas públicas de saúde ainda não consideram e invisibilizam as singularidades das lésbicas. Portanto, as produções pontuam que

as universidades, ao não possuir disciplinas específicas sobre

diversidade sexual e

sobre as vivências da comunidade LGBTQIA+, formam

profissionais que partem do princípio que todas(os) as(os) suas/seus pacientes são heterossexuais e não

produzem pesquisas que levem em consideração as

especificidades das vivências lésbicas. Nesse sentido, observamos que as vivências lésbicas são invisibilizadas nas produções científicas da psicologia, em que, a maioria das publicações, analisam essas vivências a partir das experiências dos homens gays. Dessa forma, refletem o discurso hegemônico, machista e patriarcal da nossa sociedade, colocando as mulheres lésbicas e as lesbianidades em uma posição abjeta. Diante disso, ressaltamos que a ciência ocidental não é neutra, mas sim produz

conhecimentos

a

partir

de

uma

visão

tendenciosa,

machista,

cisheteronormativa e racista, sendo necessário que seja tensionada para que se produza uma ciência que não coloque e reforce a mulher lésbica em um local de marginalidade e invisibilidade.

Assim, faz-se necessário que a academia lance

esforços objetivando visibilizar as

vivências lésbicas, por meio da inclusão no

currículo acadêmico de disciplinas que discutam a diversidade sexual e que leve em consideração as especificidades das lésbicas, entendendo que são mulheres que 71


sofrem opressões por seu gênero e sua

orientação sexual. Para que forme

profissionais que acolham e atendam as

demandas das lésbicas, bem como

construam políticas públicas que não idealizem suas vivências e respondam às suas necessidades cotidianas. REFERÊNCIAS TOLEDO, L.G., FILHO, F.S.T.; Lesbianidades e as referências legitimadoras da sexualidade, 2010. FERNANDES, M.; O movimento das mulheres lésbicas feministas no Brasil, 2018. GUIMARÃES, A.F.P.; VIEIRA,N.R.S; O Sexo implícito: a invisibilidade lésbica na mídia e na academia, 2011. HARDING, S. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista, 1993. Haraway, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial, 1995.

72


EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES MELISSA REIS: ESTÓRIAS DA VIDA DE UMA TRAVESTI Jean Souza dos Anjos jeanjos09@gmail.com Doutorando em Sociologia (PPGS/UECE)

1 APRESENTAÇÃO Conheci Melissa Reis, em 2015, na Cabana do Preto Velho da Mata Escura / Ilê Asé Ojú Oyá, terreiro de Umbanda e Candomblé localizado no bairro Bom Jardim, periferia de Fortaleza, Ceará. Melissa se tornou minha principal interlocutora na pesquisa sobre a Festa da Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas13 que ocorre no referido terreiro, sempre em novembro. Melissa é a cambone da Pombagira, isto é, ela assessora a entidade em tudo. Cambone tem a função, dentro dos terreiros, de cuidar das organizações dos rituais. Melissa, por exemplo, segura a taça de bebida da Pombagira, suas cigarrilhas e fica sempre ao seu lado durante todo o tempo em que ela está incorporada. A Pombagira é uma mulher. Ela é uma entidade que desafia os valores morais de uma sociedade machista e patriarcal. Pombagira bebe, fuma, dança e gargalha realizando, assim, seu trabalho espiritual no mundo material. Ela provoca e subverte a lógica que submete a mulher ao mundo doméstico. Sendo um Exu Mulher, vive nas encruzilhadas e nas ruas. Sua manifestação no mundo é força e comunicação. Por transgredir as normas sociais impostas, inclusive as de gênero e sexualidade, Pombagira é respeitada e temida por todos e todas. Neste sentido, Pombagira é o que ela quiser. Este trabalho apresenta estórias da vida de Melissa Reis entrelaçadas com o mundo social e religioso em que vive. Sua vida está intimamente ligada à Umbanda

13 Este trabalho é parte da minha dissertação de mestrado em Antropologia no PPGA Associado da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), defendida em 2019. A pesquisa teve apoio financeiro da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Amor, festa, devoção: a rainha Pombagira Sete Encruzilhas. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/50245 Acesso em: 04 jun. 2021.

73


e ao Candomblé, religiões em que ela deposita sua fé. Desta forma, esta reflexão colabora com os estudos de gênero e religiões afro-brasileiras. 1.1 Justificativa Os crimes de ódio contra LGBTQIA+'s, no Brasil, não são contados por um sistema oficial e estatal de denúncia. Em artigo na revista Le Monde Diplomatique Brasil, o Prof. Dr. Renan Quinalha (2019) denuncia que os direitos LGBTQIA+'s sob o governo Bolsonaro estão na linha de tiro. O atual governo brasileiro representa valores

associados

à defesa da família tradicional, à heterossexualidade

compulsória e a uma visão de mundo religiosa. E mais: as bandeiras do governo cogitam o êxito de um pânico moral alimentado há tempos e coloca a comunidade LGBTQIA+ como alvo das políticas e práticas de morte. Oliveira (2021) constata que a maioria das pesquisas denuncia a ação perversa do racismo, mas ignora a diversidade de gênero e de orientação sexual. E indica que, de acordo com o Grupo Gay da Bahia e o Instituto Brasileiro Trans de Educação, o risco de uma travesti ou mulher trans ser assassinada é 14 vezes maior em relação a homens gays. Neste cenário, justifico trazer narrativas biográficas de Melissa Reis, travesti negra e periférica, cabelereira, ativista dos Direitos Humanos, umbandista e candomblecista, para o debate. A vida de Melissa dá subsídios para compreender o mundo social e suas complexidades. 2 OBJETIVOS O objetivo principal deste trabalho é apresentar trajetórias de vida de Melissa Reis, que, atualmente, se identifica como travesti. Tais narrativas biográficas, como exercícios etnográficos, ajudam a compreender experiências sociais brasileiras da vida trans e travesti. A reflexão sobre a transfobia dentro das religiões afro-brasileiras e as práticas de resistência de trans e travestis no mundo religioso também são objetivos desta comunicação. 3 METODOLOGIA Dialogo com Kofes (2001; 2007) quando se refere a “estórias de vida” considerando estas como fontes de informação que ultrapassam o sujeito que fala e informam sobre o contexto social; evocação do sujeito transmitindo a dimensão 74


subjetiva e interpretativa destes; e reflexão que se resulta da relação entre pesquisador e o/a interlocutor/a. Butler (2015) oferece uma profunda reflexão sobre a responsabilidade diante do Outro14. Para expor Melissa aqui é preciso, primeiro, respeitar Melissa e sua estória de vida. É uma condição ética primeva. Por fim, deixo-me ser afetado no sentido que Favret-Saada (2005) indica como metodologia, permitindo me entranhar na pesquisa com meu corpo em uma densidade particular onde o compreensível só chega mais tarde. 4 TRAJETÓRIAS DE MELISSA Melissa Reis nasceu em Fortaleza, Ceará, no ano de 1975. Sua infância foi entre os bairros Bela Vista e Bom Jardim, estudou em escolas públicas, descobriu sua sexualidade logo cedo e já entendia que não era igual aos outros garotos. Melissa nasceu menino, sendo nomeado Washington Luis Reis Pereira. Embora sua família fosse umbandista, sua mãe queria afastá-la da Umbanda porque entendia que a religião era frequentada por gays e lésbicas, e achava que Melissa poderia ser influenciada. Mas a estratégia da mãe de Melissa não deu certo, pois sua orientação sexual não dependia de fatores externos, mas viria dos seus desejos. Melissa rompeu as regras no sentido que Louro (2015) indica como subversão e desobediência. Na juventude, Melissa conheceu o trabalho como cabeleireira em salões de beleza da cidade, mas também conheceu a prostituição na Av. José Bastos, conhecida via de Fortaleza. Da José Bastos foi para a cidade de São Paulo de carona de caminhão com Carol, uma amiga. Em São Paulo, Carol foi assassinada. Melissa sofreu com a morte da amiga, mudou-se para o Rio de Janeiro, se prostituiu na Lapa, cometeu pequenos delitos e encontrou um amor. Com muitas dificuldades, Melissa retornou à Fortaleza onde recomeçou a vida. Recomeçar é um verbo caro para Mel, como gosto de chamá-la. Melissa voltou a trabalhar em salões de beleza e foi envolvendo-se com o mundo das drogas. Sofria com o preconceito para conseguir empregos, pois os donos de salões não queriam empregar travestis. Em alguns casos era pedido que ela cortasse o cabelo e se vestisse como homem. Sem emprego e envolvida com o

14

“Outro” escrito em maiúsculo converge com o pensamento de Lévinas (2009). É um lugar de relação ética infinita.

75


tráfico, devendo grandes valores por conta do consumo de crack, Melissa chegou ao fundo do poço. Até que um dia recebeu um recado. A Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas mandou avisá-la que estava sabendo do seu sofrimento e que iria ajudá-la. Melissa acreditou. É importante ressaltar que ela nunca deixou a religião. Seus guias sempre a acompanharam. Mas o chamado da Rainha Pombagira foi especial. Em 2011, Melissa entrou no Candomblé e, a partir de 2014, começou a cambonar a Rainha Pombagira. Sua vida, como um milagre, foi restaurada. Mas a vida não é só flores. No terreiro, Melissa, como outras travestis e trans, enfrentam preconceitos. Olhares enviesados, palavras maledicentes, ataques desrespeitosos chegam sem avisos prévios. Presenciei alguns deles e tenho me envolvido para transformar esse cotidiano junto com Melissa. A vida dentro dos terreiros não é diferente do mundo social. Questões estruturais, como racismo e transfobia, são visíveis e precisam ser questionadas.

Assim como Dias (2020),

busco compreender, enfrentar e superar os processos de violência dentro dos terreiros de Umbanda e Candomblé. Hoje, Melissa mantém seu salão de beleza no bairro Bom Jardim, atende seus clientes da Umbanda e mantém ativismo em Direitos Humanos.

Durante a

pandemia por conta da Covid-19, Melissa organizou o projeto A Fome não Espera para arrecadar alimentos para a população mais carente de sua comunidade. Seu trabalho incansável na defesa das minorias é um exemplo para todas nós. Em 2020, ela participou do filme As Cores do Divino15, dirigido por Victor Costa Lopes. No documentário, ela fala sobre sua relação com o sagrado e suas experiências de vida no Candomblé e na Umbanda. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A expectativa de vida de transexuais e travestis no Brasil é de 35 anos16. Quando exponho a vida e a luta de Melissa Reis quero reforçar a reflexão sobre gênero e violência nas populações trans e travestis. As vulnerabilidades sociais

15 16

As Cores do Divino. Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bKwECUDwKVs Acesso em: 05 jun. 2021. Expectativa de vida de transexuais e travestis no Brasil é de 35 anos. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-travestis-no-brasil-e-de-35-anos/ Acesso em: 05 Jun. 2021.

76


estão postas nas experiências apresentadas aqui. Neste sentido, este trabalho é uma prática de resistência e aponta para urgências de enfrentamentos. As estórias de vida de Melissa desvelam um mundo onde tantas outras travestis e mulheres trans passaram e passam. Em todos os lugares onde ela andou teve que conviver com a violência e o preconceito. No terreiro, Melissa é acolhida pela Pombagira, uma entidade que trasgride as normas da sociedade patriarcal e machista, mas, ainda assim, sofre com os preconceitos de algumas pessoas da sua própria experiência de fé. Viver, para Melissa Reis, é estar sempre organizando trincheiras e estratégias de sobrevivências. Sigo, com ela, fabricando resistências17. REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. DIAS, Claudenilson da Silva. Identidades trans em candomblés: entre aceitações e rejeições. Salvador-BA. Editora Devires, 2020. FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Tradução de Paula Siqueira. Cadernos de campo n. 13: 155-161, 2005. KOFES, Suely. Uma trajetória, em narrativas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001. _______Experiências sociais, interpretações individuais: Histórias de vida, suas possibilidades e limites. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 3, p. 117–141, 2007. LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Racismo e homotransfobia como política de morte do governo. Cult – Revista brasileira de cultura. São Paulo. Ano 24. Edição 269, p. 26-29. Maio, 2021. QUINALHA, Renan. Os direitos LGBT sob o governo Bolsonaro. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo. Ano 12. Número 143, p. 4-5. Junho, 2019.

17

Fotografias de Melissa Reis, produzidas por mim, foram selecionadas para a Exposição Fotográfica Contrastes, nesta edição do Curta O Gênero 2021.

77


EIXO 2: GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO

78


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO: (DES)CONSTRUÇÃO NO ESPAÇO ESCOLAR Julia Moreira Guimarães jumoreirag@discente.ufg.br Universidade federal de Goiás (UFG) 1 APRESENTAÇÃO Durante estágio realizado, em 2017, em um colégio estadual no município de Goiânia/GO fui responsável, juntamente com uma colega, por

uma disciplina

optativa sobre arte urbana. Dividimos a disciplina por oficinas semanais e tínhamos os muros da escola disponíveis para as experimentações. Nas semanas seguintes após a aula de lambe-lambe18 algumas “intervenções” foram feitas em um lambe colado nas paredes internas do pátio da escola.

Figura 1. Intervenção em lambe no Colégio Estadual Pedro Xavier Teixeira. Crédito: Leticia Almeida

Apesar da intervenção criativa como resposta ao que foi escrito, parece ser normal um adolescente ter o direito de sair por aí falando que “gozou dentro mesmo”, propagando a ideia de que sexo sem prevenção é algo aceitável assim como não perguntar se havia o consentimento da companheira. Este texto surge a partir de análises feitas no trabalho de conclusão de curso (TCC) do curso de licenciatura em artes visuais (FAV/UFG)19 que buscava discutir como o machismo, 18

“Lambe-lambe” é uma técnica que consiste na colagem de posters em superfícies diversas com uma mistura de cola. 19 Faculdade de Artes Visuais / Universidade Federal de Goiás

79


as desigualdades e as perfomatividades de gênero20 são refletidas e reforçadas dentro do espaço escolar. Criarmos e reproduzirmos os estereótipos e as discriminações desiguais de gênero. Como trabalhar o contexto escolar para desconstruir os padrões degênero ao invés de reforçá-los? Esse menino que escreveu no cartaz, cresceu

sendo

ensinado que homens têm mais direitos que as mulheres e mais, que os homens têm direitos sobre as mulheres. Neste cenário, a responsabilidade da escola é grande, pois ela pode tanto combater esses estereótipos, como

reforçá-los,

reproduzindo o padrão que cria as normas machistas e sexistas. Escutando falas de docentes da educação básica de Goiânia/GO que participaram do curso de extensão “Ensino de Arte, Questões de Gênero e Visualidades: Estreitando Relações”, elaborado através do programa PROVEC/UFG no ano de 2017 e da professora de artes do colégio campo de estágio parece evidente a necessidade dessa discussão a partir do professorado. Uma das professoras participante do curso de extensão expos que acredita que boa parte do reforço dos padrões e desigualdades de gênero nas escolas vem por parte do próprio grupo de docentes. Nas palavras dela: “Infelizmente na sala dos professores ouvimos e vemos muitos preconceitos, eu falo que é o pior local da escola é a sala dos professores, porque realmente o preconceito é grande nesse local”. Já a professora entrevistada enfatizou que percebe a falta de disposição que docentes têm de repensar suas atitudes, porque segundo ela, “quando você entra com muito sonho, às vezes a animação logo acaba, porque você ganha pouco e esquece os “ideais”, sabe? Comprar essa briga tem que estar disposta e aberta a mudar nossas práticas e adotar novas visões de mundo”. A professora entrevistada ainda comentou sobre a importância de levar as discussões consideradas “polêmicas” para a classe e incentivar debates em que todos os sujeitos tenham voz escutando o que estudantes tem a dizer sobre essas questões, mas completou dizendo que ainda acha muito difícil porque percebe que muitas atitudes vindas de docentes ainda 20

essa dinâmica precisam ser

Judith Butler desenvolve o conceito de performatividade de gênero, descrevendo-o como comportamentos que aprendemos desde cedo e vamos reproduzindo-os ao longo da vida em relação aos comportamentos que reforçam a normatização dos corpos masculinos e femininos, de feminilidades e masculinidades.

80


desconstruídas para que isso aconteça. 1.1Justificativa Antes mesmo de nascermos já nos é designado um gênero a partir da nossa genitália. O “sexo biológico” é, por lógica da obrigação e ausência de questionamentos, designado para distinguir pessoas a partir de parcelas do corpo físico e, consequentemente nessa sociedade estipular ações pré-definidas para homens e mulheres fazendo com que qualquer sujeito que

ultrapasse essas

fronteiras esteja fugindo das normas. Essa prática de repetição de signos já existentes para que se seja ensinado e aprendido a ser mulher ou homem, são chamadas por Judith Butler

de

perfomatividade de gênero, e esses signos e normas do jeito que conhecemos são por regra cis-heteronormativos, ou seja, tem a heterossexualidade21 cisgênera22 como a maneira correta de se estruturar os costumes e relações. Depois de separar, a partir da lógica binária, homens e mulheres em caixinhas distintas começa a ser ensinado como devemos nos portar. O estudante que fez a intervenção no lambe não fez apenas por ser menino, fez

porque

aprendeu que podia fazer. Aprendeu que tinha o direito de se colocar em posição superior, nesse caso, a discussão de violência contra mulher que estava ocorrendo com o lambe, e mais, que deixar isso explicito dessa maneira nessa intervenção era bom para ele de algum jeito. Nos construímos e somos construídos pelo modelo de sociedade em que estamos inseridos, aprendemos padrões normativos e os passamos para frente. O ambiente escolar é mais um dos espaços de relações em que se é reforçado esses padrões. bell hooks23 (2017, p.53) vai dizer que “Nenhuma educação é politicamente neutra. Mostrando que o professor branco do departamento de literatura inglesa que só fala das obras escritas por “grandes 21

homens brancos” está tomando uma

“Heterossexualidade” é a nomenclatura utilizada para nomear a orientação sexual em que o desejo se dá para o sexo oposto. 22 “Cisgênera” é a nomenclatura utilizada para nomear quem se identifica com o gênero/sexo imposto no nascimento. 23 “bell hooks” está escrito neste trabalho em letras minúsculas para respeitar um desejo da própria autora.

81


decisão política”. Nesse sentido Guacira Lopes Louro (2020) explica que escolhemos o que vamos ensinar e compartilhar em sala de aula, e com isso escolhemos então o que não vamos trabalhar, quando fazemos uma escolha de

metodologia estamos

deixando outras opções de fora, então pergunto, o que levamos em consideração nas nossas práticas pedagógicas? Ela acrescenta: Portanto, ao se eleger a desconstrução como procedimento metodológico, está se indicando um modo de questionar ou de analisar e está se apostando que esse modo de análise pode ser útil para desestabilizar binarismos linguísticos e conceituais (ainda que se trate de binarismos tão seguros como homem/mulher, masculinidade/feminilidade) (LOURO, 2020, p. 41).

Nenhuma resposta ao acontecido no lambe foi tida a partir da equipe da escola, precisou que nós, estagiarias, propuséssemos uma roda de conversa e ainda sim apenas com estudantes que quisessem esse diálogo. Nós docentes temos a responsabilidade de a repensar essas dinâmicas de acordo com a importância de diversificar os conteúdos e criar espaços independentes, para debater essas temáticas urgentes. Afinal, a escola é um dos espaços onde formamos as pessoas que podem fazer com que, futuramente, tenhamos uma sociedade mais respeitosa e igualitária. 2 OBJETIVOS Esse trabalho tem como objetivo identificar e debater, a partir do ponto de vista do professorado, como os processos de construções de identidade e performatividade de gênero são vistos e reforçados dentro do ambiente escolar. Identificar e problematizar as práticas pedagógicas que reproduzem os estereótipos de gênero e, assim, elaborar estratégias que criem possibilidades de construir um ambiente favorável e democrático. Pensando a intenção de promover discussões e criar possibilidades de estratégias pedagógicas que fomentem relações de gênero mais igualitárias e respeitosas no contexto educacional. 3 METODOLOGIA A investigação narrativa é uma metodologia que valoriza os relatos e as experiências vivenciadas. Segundo Larrosa (1994, p. 65) “é contando histórias, 82


nossas próprias histórias, o que nos acontece e o sentido que damos ao que nos acontece, que nos damos a nós próprios uma identidade no tempo”. Assim, ao narrarmos nossas próprias experiências não estamos apenas descrevendo fatos, estamos, também, rearticulando significados e criando subjetividades sobre o que foi vivido. Para Connelly e Clandinin, o uso das narrativas em pesquisas dentro do contexto educacional justifica-se porque nós, seres humanos, "somos organismos contadores de histórias", individual e coletivamente, "vivemos vidas

relatadas"

(1995, p.11). Essa metodologia representa, portanto, as formas como vivenciamos e experimentamos o mundo. Nessa direção, podemos entender que a educação é um cenário de construção e reconstrução de histórias pessoais e coletivas de pessoas que constroem o cotidiano, a comunidade escolar. Os autores também apontam que a investigação narrativa deve valorizar as vozes dos sujeitos participantes

da

pesquisa (p.21), pois, trata-se de uma relação colaborativa entre quem pesquisa e quem é pesquisado. 4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Acredito que ainda temos muito o que discutir e estudar a respeito das construções de identidade e performatividade de gênero. Repensar nosso papel enquanto docentes nesse processo de (des)construção desses reforços normativos dentro do espaço escolar é um possível caminho em direção à

espaços mais

acolhedores e democráticos. Trabalhar questões que trazem à tona os pontos de vista dos grupos que são marginalizados ou inferiorizados é uma tarefa importante e cada vez mais necessária, haja visto as tensões que presenciamos nos últimos tempos advindas do repertório de maldades das políticas públicas. Também é

imprescindível

colaborar com a escola para ajudá-la a levar a realidade do alunado para dentro dos muros dos colégios, suas vivências devem fazer parte

dos currículos e dos

processos de ensino, entre elas, as questões de gênero e sexualidade. REFERÊNCIAS 83


BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/ 20ª ed - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. CONNELLY, Michael & CLANDININ, Jean. Relatos de experiencia e investigación narrativa. In: LARROSA, Jorge. Déjame que te cuente. Barcelona: Editorial Laertes, 1995. HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017. LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz T. O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 1994. p.35-86. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2020.

84


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO ENTRE ESCOLAS E IGREJAS: UMA CARTOGRAFIA DAS RELAÇÕES DE PODER E DO CAPITAL SIMBÓLICO NOS PRESÍDIOS FEMININOS DO ESTADO DE SÃO PAULO Beatriz Vasconcelos1 vasco.be78@gmail.com Mestranda em Educação (PPGE/UNIFESP) 1 APRESENTAÇÃO DO TRABALHO O objetivo desta pesquisa está em investigar a relação entre o trabalho de escolas e de igrejas nas penitenciárias femininas do Estado de São Paulo. A hipótese da pesquisa sustenta que há uma tendência de tais instituições reforçarem os estereótipos e os papéis sociais femininos, segundo agenciamentos subjetivos de capitais simbólicos manejados pela estrutura de nossa sociedade patriarcal. Emerge daí uma série de questões: não haveria um gradiente de contradição a ser exposto entre pretensas práticas sociais aceitas dentro das penitenciárias femininas que, em nome da ressocialização, da transformação da condição humana visando a reintegrá-la na sociedade e, não menos importante, por intermédio de imposição da distinção social catapultada pela formação escolar e pela conversão religiosa que, no fundo, continuam a amalgamar valores, atitudes, comportamentos e modos de ser necessários ao funcionamento conservador da sociedade? Não haveria uma correlação direta na manutenção contraditória dessa dinâmica com a própria manutenção da exploração da mulher pela sociedade capitalista? Quais tipos de aportes teóricos podem ser suscitados para colocar em evidência tais contradições quando se busca afirmar outros modos de produção de subjetividade feminina em nossa sociedade? 1.1 Importância/Justificativa A presença feminina no sistema criminal e no sistema carcerário é mais uma forma de dominação por parte da esfera masculina, tão inculcada nos comportamentos e nos modos de pensar dominantes que implicam, inclusive pelas genereficado pelos homens (FEDERICI, 2019). Por ser uma violência simbólica, isto é, não visível, torna-se ainda mais dificultosa para as mulheres a tarefa de se 85


libertar dessas relações de dominação, justamente porque as normas estão profundamente enraizadas nas categorias do pensamento e da ação do habitus. Outrossim, o poder-saber produzido nos discursos da classe dominante e apreendido pela classe dominada está presente tanto nas igrejas quanto nas escolas. Ele não é percebido claramente porque não é apenas da ordem da proibição e da punição, mas “ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 1997, p. 11). Assim como a necessidade imperativa da educação, a Lei de Execução Penal e as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos reiteram a presença das instituições religiosas nas prisões, dando abertura para que presos exerçam sua liberdade religiosa. A receptividade e a forte presença das igrejas nas prisões de todo o País são alvo de muita investigação, como visto, já que possuem uma capacidade considerável de assistência e intervenção no ambiente, além de serem grandes instrumentos de educação, disciplina e moralização dos presos e das presas. A realidade da legislação penal de São Paulo vem se demonstrando inflexível quando se trata de práticas educativas formais e informais, mas sempre mais aberta às instituições religiosas. Percebe-se a existência de propostas de afastamento da conscientização do indivíduo e de sua realidade que poderiam ser atingidas pela via educativa. É notório que o olhar científico foi construído para e por homens, de modo que mulheres dentro desse espaço mostram-se como uma manifestação de resistência (RUSSEL; ALEXANDER, 2019). A abordagem mais encontrada em pesquisas afins a esta considera que as mulheres presas são “homens que menstruam”, ou seja, não existe a menor diferença de tratamento entre ambos. Mais profundamente, a ciência patriarcal não demonstra interesse em estudar mulheres encarceradas, justamente por desconsiderar essa vivência e a luta importantes. Desse modo, a presente pesquisa desponta como um modo não apenas de produzir conhecimento acerca das implicações do cárcere feminino para a condição da mulher, mas de trazer a lume para as Ciências Sociais e, especificamente, a Educação, uma problematização pertinente à nossa capacidade de contribuir para que, cada vez mais, pesquisadoras sejam capazes de refletir e de intervir sobre e nas condições femininas em uma sociedade capitalista racista e patriarcal. 86


2 OBJETIVOS Assim, o objetivo geral desta pesquisa é o de investigar as formas de execução das políticas penitenciárias femininas do Estado de São Paulo, bem como os seus executores, considerando que ambos, dentro do sistema carcerário brasileiro e dos mecanismos de poder que dele emanam, um habitus é reforçado para a condição feminina. A proposta analítica consequente da cartografia, nesse caso, visa a contribuir para a redução das diversas formas de desigualdades que, no País, se acentuam em decorrência de nossa herança patriarcal. Há nisso também um combate contra a planificação subjetiva da condição feminina periférica, muitas vezes reforçada pela falta de acesso à educação formal, ainda mais dentro das penitenciárias. 3 METODOLOGIA Considera-se elementar para a concepção da pesquisa uma fundamentação teórica que busque articular produções teóricas relacionadas, assim como a apresentação do que já foi pensado anteriormente sobre o tema. Para tanto, será preciso um levantamento bibliográfico que enriqueça teoricamente a discussão, favorecendo a construção da pesquisa. Os conceitos de função-sujeito, poder disciplinar e relações de poder, desenvolvidos por Michel Foucault, serão fundamentais para perspectivarmos como o poder agenciado nas prisões acaba por se constituir em gabarito comportamental visando a ajustar as subjetividades ao habitus reinante. Com efeito, é mister saber se, a partir daí, criam-se bloqueios para práticas educativas não conformes ao poder do capital simbólico circulante nas prisões. Por isso mesmo, as noções de habitus, capital simbólico e violência simbólica, eivadas do pensamento de Pierre Bourdieu precisarão ser perscrutadas. Aqui, Bourdieu será utilizado como base igualmente importante para o entendimento das relações de dominação a partir da religião, da educação, das questões de gênero, bem como da manifestação do habitus nas figuras dominantes e dominadas. Dados produzidos por instituições públicas, privadas e por trabalhos científicos serão utilizados para ilustrar em forma estatística a realidade da condição penitenciária. 87


4 CONSIDERAÇÕES O jogo do poder disciplinar apresenta-se como força capaz de manipular e de conter o que Foucault (2006, p. 69) denominou de “singularidade somática”. A força exercida pelo poder disciplinar, assim, visa a permitir que “a função-sujeito venha se ajustar exatamente à singularidade somática: o corpo, seus gestos, seu lugar, suas mudanças, sua força, seu tempo de vida, seus discursos, é em tudo isso que vem se aplicar e se exercer a função-sujeito do poder disciplinar”. Interessa ao poder disciplinar orquestrar-se em um ambiente administrável, donde, por sua vez, as próprias condições de se questionar as relações de poder precisam ser minimizadas. Ora, a escola, quando aparece no sistema prisional, compõe mais um dentre os diversos elos na cadeia do poder disciplinar. O reforço ao bom comportamento funciona como processo de seleção do próprio habitus. Assim, apenas determinadas pessoas são merecedoras da economia simbólica e da distinção circulantes nas prisões em função de seus bons comportamentos. As igrejas, entretanto, oferecem-se para todos, pois todos são merecedores e podem ser perdoados aos olhos de Deus. Não obstante, entende-se que apenas Ele tem a força para regenerar e transformar a vida de um indivíduo. Esse discurso religioso regenerador funciona

como

potente

carga

simbólica

e

demanda disciplinar subjetiva.

Assegurando, pelo processo de conversão, a transformação individual e, sobretudo, a curto prazo, a regeneração espiritual, a adesão religiosa apresentam atrativa face ao lento processo civilizatório e humanizador da formação humana demandada pela educação. Por seu turno, a escola e as experiências de educação formal perdem lugares no sistema prisional, como se fossem parasitadas pelo capital simbólico religioso. Frequentar as aulas no sistema prisional, embora auxiliando na comutação da pena não promete nem regeneração de força simbólica, galardão no céu ou identificação imediata no habitus pretensamente transformador da função-sujeito. Mas há um paradoxo que tensiona esses lugares e que merece lugar na pesquisa. Poder-se-ia argumentar que a religião aparece como uma ferramenta que de fato tem a capacidade de transformar o posicionamento e a cosmovisão de um indivíduo, estimulando-o a buscar melhores formas de viver, de interpretar e de sentir. A expressão da fé, assim, poderia contribuir para a população carcerária 88


buscar a reintrodução nos estudos, melhores relações familiares e a busca por um emprego. A inserção do indivíduo na atmosfera ritualística, a frequência em reuniões e cultos, a abertura para a conversa e a mudança para um ambiente acolhedor, acompanhada de fiéis e de diversos projetos que trazem as narrativas religiosas como reflexão são relatos e experiências de vida muito encontrados e pretensamente demonstram uma mudança positiva na postura dos presos e presas. Mesmo quando não há presença de igrejas, os pequenos cultos são espalhados por todo o espaço, e as presas se apropriam das palavras de fé para se agarrar à religião junto às companheiras de cela. Da mesma maneira, ocorrem diversas aulas espalhadas pelos pavilhões, onde “quem sabe mais ensina quem não sabe”, tirando dúvidas, fazendo equações de matemática, lendo e passando o tempo. Ambas as instituições estão tão fortemente enraizadas nas práticas coletivas e individuais que, mesmo em casos de privação de liberdade, continuam presentes nos hábitos diários, sendo praticamente impossível impelir suas existências ali. Assim, é possível enxergar que no sistema carcerário encontram-se formas educacionais que podem tanto se inclinar para um viés mais laico quanto mais religioso. Nos presídios, tais formas podem aparecer nas escolas e nas igrejas. Cabe ao poder do Estado julgar o que é mais conveniente e menos agressivo para a manutenção do seu status quo, facilitando e legitimando a entrada das partes que são capazes de manter a ordem e a mansidão. REFERÊNCIAS ALEXANDER, Michelle. A nova segregação. Racismo e encarceramento de massa. São Paulo: Boitempo, 2017. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 17ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020[1998]. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007[1979]. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011[1982]. BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. 9ª ed., Petrópolis,, Rio de Janeiro: Vozes, 2007[1999]. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 89


Paulo: Elefante, 2017. FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução. Trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1997. FOUCAULT, Michel. O Poder Psiquiátrico. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006. FOUCAULT, Michel.. Segurança, Território, População. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, Michel.. Em defesa da sociedade. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2012. FOUCAULT, Michel.. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 42ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. FOUCAULT, Michel.. A Sociedade Punitiva. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2015. MulhereSemPrisão: Enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal/ Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; coordenação de obra coletiva: Maria Clara D’Ávila Almeida, Mariana Boujikian Felippe, Raissa Carla Belintani de Souza e Roberta Olivato Canheo. São Paulo: ITTC, 2019. Tecer Justiça: presas e presos provisórios na cidade de São Paulo / Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e Pastoral Carcerária Nacional; coordenação de obra coletiva: Heidi Ann Cerneka, José de Jesus Filho, Fernanda Emy Matsuda, Michael Mary Nolan e Denise Blanes.– São Paulo : ITTC, 2012. LAVAL Christian. Foucault, Bourdieu e a questão liberal. São Paulo: Elefante, 2020. PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (Orgs.). Pistas do método da cartografia. Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020. RUSSELL, Jeffrey B.; ALEXANDER, Brooks. História da bruxaria. São Paulo: Aleph, 2019.

90


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO: UMA EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS E CIDADANIA DOS/AS LGBTQ+ Manoel Messias Rodrigues Lopes mamanoel@discente.ufg.br Universidade Federal de Jataí (UFJ) Elisângela dos Santos Silva elisangelasilva@ufj.edu.br Universidade Federal de Jataí (UFJ) 1 APRESENTAÇÃO O presente trabalho foi desenvolvido a partir dos estudos e reflexões feitos na disciplina gênero, diversidade étnica, sexual e cultural na escola, do curso de Pedagogia na Universidade Federal de Jataí (UFJ). Compreendemos que o/a profissional da educação deve atentar-se para as questões sociais emergentes da contemporaneidade, desse modo, os debates acerca das questões de gêneros e sexualidade são de suma importância para os/as licenciandos/as, de forma que possibilitará a estes/as uma consciência crítica e reflexiva em sua atuação. Os estudos feitos na disciplina, permitiram elucidar questões acerca dos debates das diversidades de gênero e sexualidade, que emergem na atual conjuntura social, e a partir, dessas surge o problema que visamos apresentar ao longo desse trabalho: os entraves para um currículo voltado para a temática Queer dentro de um sistema educacional tradicional e estruturado em discursos estereotipados que legitimam o preconceito contra as minorias de gênero e sexualidade contribuindo para a violência e morte dos/as Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Travestis e Transgêneros e Queer (LGBTQ+). 1.1 Justificativa Gênero e sexualidade são temas que emergem com os novos arranjos sociais, e estão presente em todos os níveis da educação – formal e não-formal –, envolvendo a comunidade escolar em torno de um debate que possibilite essas questões de serem inseridas nos Currículos de forma efetiva e conscientizadora. 91


Este deve ser elaborado de modo a promover a inclusão, reconhecimento e respeito às diversidades sociais e culturais. Apesar dessa relevância, tais questões no contexto histórico são quase inexistentes. Ao serem negadas na sala de aula e concomitantemente não fazer parte do currículo do/a profissional da educação, essas questões perdem espaço cada vez mais numerosos na sociedade, gerando uma desinformação que culmina no preconceito e violência contra os/as LGBTQ+. De acordo com Mott (2002), a internalização do preconceito contra as minorias encontra-se arraigada e arregimentada na sociedade contemporânea, mas podem ter suas compreensões em outros momentos históricos, que deram origem a essa sociedade, os quais produziram discursos e narrativas que assinalaram a expressão da sexualidade entre pessoas do mesmo sexo como crimes/ pecados, anormalidade, mal, errado etc. Esses discursos e narrativas permeiam hoje as instituições sociais como a família, escola, religião, trabalho, e o próprio Estado enquanto direito. Nessa perspectiva, a expressão e comportamento de gênero assim como, suas manifestações sexuais, devem ser estabelecidas dentro de determinações, das quais todos/as que desviem serão considerados/as como anormais, errados/as, vítimas de sanções e punições para que se estabeleça a ordem tida como natural. Todavia, por ser uma construção social e cultural, o gênero não é inerte no tempo e espaço, e nesse caráter encontram-se as multiplicidades das identidades e diversidade de gênero que resultam no debate das relações de gênero de modo mais efetivo e político. É sob esse prisma que defendemos uma educação de gênero efetiva, no sentido, de contribuir para a superação dos entraves colocados, mediante determinações hegemônicas, legitimadas sob uma ótica heteronormativa. De acordo com Butler (2018), essas determinações são originadas em uma relação de poder, as quais encontram-se imbricadas em construções históricas e culturais produzidas e mantidas pelo sistema político, social e econômico que administra a sociedade. Esses sistemas desenvolvem mecanismos dos quais controlam e determinam o gênero e a sexualidade do indivíduo. No cerne desse debate o espaço escolar, as práticas educativas e as políticas educacionais devem ser avaliadas e repensadas para que se efetivem como instrumentos de enfrentamento de uma visão de gênero como algo acabado e 92


imutável, que marcar corpos e indivíduos em uma relação de poder e dominação gerando desigualdades, preconceito e discriminação. A escola ao reproduzir e legitimar essa visão destoante de gênero e sexualidade, está agindo de modo complacente com o discurso heteronormativo que gera o preconceito e discriminação, agindo ainda para a negação da diversidade de gênero e sexualidade, que se fazem cada vez mais latentes na sociedade. Ademias essa atitude, contribui para legitimação da perca de direitos dos/as LGBTQ+, que passam a ser defendidas em políticas recentes de governos ultraconservadores. A escola desse modo, diverge de seu ideal como instituição social para a formação

da cidadania, uma vez que contribui para o silenciamento e

marginalização

de

grupos

sociais

que

historicamente

são

excluídos

e

subalternizados. Os discursos que promovem ou praticam a humilhação, a exclusão e a violência contra a população LGBT opõem-se aos direitos de cidadania, pois impedem que alguns desfrutem desses direitos. Essa constatação denuncia a concepção de cidadania como privilégio de alguns em detrimento de outros e a existência do preconceito na comunidade democrática (TORRES, 2010, p. 38).

A forma como a sexualidade tem sido organizada nos currículos escolares, tem contribuído para a produção e sustentação de desigualdades raciais, de gênero e sexuais na sociedade, bem como relações e decisões hierárquicas (BRITZMAN, 2000, p. 68). Desse modo, o caráter normativo da educação sexual, contribui para especificação de objetos apropriados à sexualidade e normalidade, atribuindo privilégios aqueles/as que são considerados “normais”, ou seja, que expressam uma sexualidade legitimada nas estruturas sociais, renunciando o instinto e o prazer humano. Desse modo, a educação sob a perspectiva das diversidades de gênero e sexualidade, tem como finalidade a promoção da cidadania e direitos, sobretudo, direitos humanos, que constrói conhecimento, transforma ações e valores na sociedade efetivada no respeito e equidade entre todos os indivíduos. Contudo, a possibilidade desse debate na educação, sobretudo, na primeira etapa da educação básica, sofre grandes resistências e desafios impostos por setores mais

93


conservadores que produzem, reproduzem o preconceito na sociedade. (FINCO; SOUZA; OLIVEIRA, 2017, p. 12) É nesse sentido que Louro (2018), afirma que é preciso estranhar esse currículo e questionar as normatizações que estão imbricadas nele. Se quisermos formar indivíduos emancipados e conscientes, precisamos superar as limitações hegemônicas que os currículos impõem na educação. Desse modo, Louro (2018), propõe a construção de um currículo Queer, que volte os conteúdos e conhecimentos para a diversidade social, trabalhando de modo consciente e intencional as diferenças e especificidades de cada indivíduo, grupo, cultura, expressão e etnia. 2 OBJETIVOS No limite desse trabalho, nos objetivamos em desvelar as estruturas sociais, que culminam para expressão do preconceito e a violência de gênero e sexualidade, mediante o acesso do conhecimento acerca das diversidades e como essas são construídas ao longo do processo histórico, com influências de setores sociais como política, economia e a cultura em geral. Pretendemos esclarecer aos leitores/as que ter acesso a esse conhecimento, e, sobretudo conscientizar-se de sua importância, é garantir o reconhecimento e o respeito das minorias sexuais e de gênero na escola, e por conseguinte na sociedade, garantindo assim, o direito dos indivíduos LGBTQ+, que desviam de um padrão imposto como norma sob os interesses velados de grupos dominantes. 3 METODOLOGIA A metodologia utilizada foi o estudo bibliográfico, o qual de acordo com Marconi e Lakatos (2013), consiste nos estudos a partir de fontes publicadas em diferentes meios, as quais permitem aos pesquisadores/as cumprir os problemas existentes entorno do tema, de modo a explorar novas áreas e debates acerca da temática. Dessa forma, nossas principais fontes, como mencionadas anteriormente foram as estudadas e debatidas ao longo da disciplina que deu origem a esse trabalho. Com isso, nossas colocações são embasadas em: Louro (2018); Butler 94


(2018); Britzman (2000), ademais foram buscados/as outros/as autores/as: Mott (2002); Torres (2010) e Finco, Souza e Oliveira (2017). 4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS A instituição escolar ao reproduzir e legitimar uma concepção destoante de gênero e sexualidade, a qual é um constructo histórico-cultural, permeado por ideologias de poder e dominação, contribui para o recrudescimento do preconceito e discriminação contra os/as LGBTQ+. No que diz respeito às diversidades de gênero e sexualidade, essas as práticas educativas e os conteúdos do currículo escolar não são efetivos para a transformação e ressignificação de visões retrogradas e conservadoras, que ao longo do processo histórico reverberam no tecido social. Essas práticas e currículos contribuem para a legitimação do espaço escolar sob uma visão machista, sexista e misógina. A escola como instituição hetenormativa legitima toda violência sofrida pelas pessoas LGBTQ+, as quais vem se intensificando nos últimos tempos. Nesse sentido, a escola como instituição social, não pode furtar-se de trabalhar efetivamente com tais questões, promovendo um debate, que contribua para a desconstrução de visões ultrapassadas, estereotipadas e preconceituosas, que fomentam um clima cultural de violência contra os/as LGBTQ+. REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Problemas de gênero feminismo e subversão da identidade. 16 ed. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira: 2018. BRITZMAN, Deborah. Curiosidade, sexualidade e currículo. In LOURO, G. L. O corpo educado pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: autêntica, 2000. FINCO, Daniela; SOUZA, A. S; OLIVEIRA, N. R. C. Desafios para a discussão sobre gênero e diversidade na escola. In. FINCO, Daniela; SOUZA, A. S; OLIVEIRA, N. R. C. Educação e resistência escolar: gênero e diversidade na formação docente. São Paulo: Alameda, 2017. LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. MARCONI, M. de Andrade; LAKATOS, E. Maria. Fundamentos e metodologias científicas: técnicas de pesquisas. 7 ed. – São Paulo. Atlas, 2017. 95


MOTT, Luiz. Por que os homossexuais são os mais odiados dentre todas as minorias? In. CORREA, Mariza. Gênero e cidadania. Campinas: Coleção encontros, 2002. TORRES, Marco Antonio. A diversidade sexual na educação e os direitos de cidadania LGBT na escola. – Belo Horizonte; Autêntica, 2010.

96


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO ELAS OCUPAM A UNIVERSIDADE: RELATOS DE EXPERIÊNCIA DE MULHERES BOLSISTAS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ Debora Lessy Jeronimo da Silva Deboralessy@hotmail.com Universidade Estadual do Ceará (UECE) Luana Maria Rocha da Silva luanarocha929@gmail.com Universidade Estadual do Ceará (UECE) Sibele Lino Caetano sibelecaetano7@gmail.com Universidade Estadual do Ceará (UECE) 1 APRESENTAÇÃO É de relevância discutir e compreender como se dá a construção das lutas sociais dentro do ambiente acadêmico e as suas contribuições no processo de formação dos/as estudantes. Neste sentido, entender o processo da organização política e das lutas travadas dentro da universidade é essencial para que a formação acadêmica não se limite apenas à teoria, mas entre a articulação teoria e prática. Os espaços de discussão, organização e conhecimento na Universidade são essenciais na construção de uma formação emancipatória, cabe citar os laboratórios, Centros Acadêmicos, núcleos de acolhimento e as organizações estudantis que são essenciais no desenvolvimento de olhares críticos acerca de preconceitos, violências e desigualdades sociais. Esses espaços são importantes para que os/as estudantes aprendam a ter um posicionamento crítico acerca dos diversos discursos e práticas do cotidiano, assim como desenvolver pesquisas e estratégias de enfrentamento à diversas desigualdades e violências, sejam elas de gênero, raça ou classe, por exemplo. Esse relato de experiência tem como intuito abordar vivências de estudantes nos diversos espaços da Universidade que têm o objetivo de estudar e pesquisar a temática de gênero, bem como se organizar para o enfrentamento da violência contra a mulher e ainda acolher mulheres vítimas de violência dentro da Universidade Estadual do Ceará. 97


1.1 Justificativa Este relato se especifica pela necessidade em explanar sobre as experiências dispostas

na

universidade

às

alunas

de

Serviço

Social,

que

contribuiu

significativamente para o empoderamento pessoal, formação política e profissional a partir de vivências em laboratório de pesquisa, movimento estudantil, entre outras práticas que possibilitaram conhecimento sobre corpo, sexualidade e feminismos. Portanto, as vivências prendem-se às atividades pensadas e objetivada no âmbito acadêmico, que colidiram com ideologias, comportamentos e histórias de vida especialmente das estudantes e, atualmente, profissionais de Serviço Social. As repercussões do envolvimento nas práticas de pesquisa, possibilitaram olhares para além da discussão crítica da universidade, como também questionamentos sobre si e àqueles que estão inseridos na vida de cada uma, e estas percepções também auxiliaram no processo de reconhecimento de raça e classe. Acentuar estes aspectos, também significa pensar na construção de uma nova sociabilidade, a inclusão da diversidade nestes debates a partir do momento que determinados temas, assuntos e opiniões se aproximam de pessoas em seus mais variados espaços. O alcance de assuntos relacionados ao gênero, mulheres e movimentos sociais, quando exaltados, também são formas de construir uma sociedade mais emancipada e conhecedora de seus direitos. Por esses motivos e mais, este relato se desvela a partir de experiências individuais que se encontraram na universidade, mas que também se complementam numa luta coletiva, enquanto mulheres que pesquisam mulheres, feminismos e patriarcado. 2 OBJETIVOS Geral: Explanar sobre as experiências de mulheres estudantes de Serviço Social participantes de núcleos de estudo sobre gênero e de liderança estudantil. Específicos: Compreender como a participação em núcleos de estudos sobre gênero e de liderança estudantil contribuem para o empoderamento feminino; Analisar a importância de unir teoria e prática para o fortalecimento político. 3 METODOLOGIA 98


Perante o explanado, podemos partir do princípio norteador deste trabalho, que são as experiências vivenciadas pelas três estudantes de Serviço Social da UECE, pesquisadoras, e atualmente assistentes sociais, diante de atividades críticas e emancipatórias, capazes de desenvolver uma nova perspectiva sobre a sociedade e um impacto direto na vida de quem se sente tocado por posicionamentos em defesa da equidade, justiça e igualdade social, dentre as relações de gênero, raça e classe. Partindo desse princípio, segundo Barroco (2016, p.7) O preconceito está presente em diversas práticas de discriminação contra formas de vida e modos de comportamento que não são aceitos em suas diferenças e particularidades. Mas os diferentes preconceitos – contra mulheres, negros/as, homossexuais, imigrantes, idosos/as, pessoas com deficiência, entre outros/as – comungam de uma mesma atitude, de um mesmo comportamento e forma de pensar.

Compreendendo que o curso de Serviço Social está inserido na luta contra qualquer tipo de preconceito e discriminação, é de suma importância a reflexão e inserção de estudantes e profissionais em espaços organizativos dentro e fora da universidade para o fortalecimento de debates e combate a preconceitos. Sendo assim, dentre os espaços percorridos pelas estudantes destacamos o Observatório de Violência Contra a Mulher (OBSERVEM), o Centro Acadêmico Livre de Serviço Social (CALSS) e o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres Vítimas de Violência (NAH), cada um com sua função (pesquisa, organização política e ou enfrentamento a violência na Universidade) de suma importância para as mulheres estudantes que ocupam esses lugares. No OBSERVEM, a pesquisa documental e bibliográfica são bases essenciais para coleta de dados necessários para o desenvolvimento de estudos sobre feminicídio, violência contra a mulher e gênero na capital cearense, como também em todo o Estado. As pesquisas desenvolvidas nesse espaço abriram um leque de possibilidades às estudantes que aqui relatam, pois as três desenvolveram pesquisas na área de estudo sobre mulheres, divisão sexual do trabalho, violência de gênero, corpo e sexualidade das mulheres entre outros. A violência de gênero é característica das relações sociais, diante da dominação, exploração, hierarquia e desigualdade entre os gêneros, que tem penetração em todas as esferas da sociedade. 99


A violência de gênero produz-se e reproduz-se nas relações de poder onde se entrelaçam as categorias de gênero, classe e raça/etnia. Expressa uma forma particular de violência global mediatizada pela ordem patriarcal, que delega aos homens o direito de dominar e controlar suas mulheres, podendo para isso usar a violência. Dentro dessa ótica, a ordem patriarcal é vista como um fator preponderante na produção da violência de gênero, uma vez que está na base das representações de gênero que legitimam a desigualdade e dominação masculina internalizadas por homens e mulheres. (ARAUJO, 2008)

A participação ativa das estudantes nas atividades do laboratório de pesquisa e no movimento estudantil demonstram a importância da indissociabilidade entre teoria e prática e do tripé da universidade: ensino, pesquisa e extensão. O NAH, por exemplo, foi e é um grande disseminador de informações essenciais sobre violência contra as mulheres no espaço da universidade, e proporcionou a toda a comunidade acadêmica momentos de reflexão a partir de palestras, atividades de arte e cultura (poesia, música, fotografia) que despertassem nas mulheres estudantes e profissionais da UECE uma discussão ativa que reverbera na vida de todos e todas que rodeiam não somente o espaço, como também as vidas de quem são tocadas por essa atmosfera. Além disso, é uma importante conquista das ativistas da Universidade que lutaram por um núcleo que acolhesse as estudantes, servidoras e professoras vítimas de violência. É primordial tomar gênero como categoria analítica para compreender o contexto das relações violentas dos homens contra as mulheres, pois amplia e aprofunda o olhar sobre o fenômeno, na medida em que possibilita o entendimento das distintas formas de relações entre os sexos, no contexto das relações sociais e individuais. Gênero na formulação de Scott (2002) define espaços, “lugares sociais”, confere valores, constrói diferenças, constitui e justifica hierarquias. Além disso, o Movimento Estudantil tem um processo de organização fundamental na Formação Profissional e Política dos/as estudantes. O Centro Acadêmico Livre de Serviço Social (CALSS) sendo parte do movimento estudantil é a instância de representação específica dos/as estudantes do curso de Serviço Social e também tem o papel de fomentar e estimular discussões acerca da conjuntura nacional e internacional e seus desdobramentos em nosso cotidiano. Esse espaço foi extremamente importante durante a formação acadêmica das estudantes, pois foi responsável por diversos debates acerca da realidade das 100


mulheres (saúde, sexualidade, violência etc) e pela organização de protestos e atos políticos dentro da Universidade em função da segurança das estudantes e do combate à violência de gênero dentro do âmbito acadêmico. Dessa forma, pontua-se que todas essas vivências foram muito ricas, tanto no âmbito profissional como no pessoal, por terem integrado diferentes formas de conhecimento e terem nos ensinado a ter um novo olhar acerca da realidade das mulheres e das diversas questões que se apresentam no cotidiano delas, entendendo que vivemos em uma sociedade patriarcal que reforça o machismo e suas diversas formas de violência diariamente. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Levando-se em consideração os fatos já mencionados, compreendemos a relevância da participação feminina dentro da universidade, já que a partir disso, é possível a aproximação com temáticas que permitem o empoderamento feminino e político. O curso de Serviço Social na Universidade Estadual do Ceará é majoritariamente formado por mulheres, de diversas raças e etnias, pertencentes a diversas classes sociais e identidades de gênero. Diante de tais singularidades, compreendemos nosso eixo compartilhado: o compromisso com a profissão que defende a classe trabalhadora em prol da garantia da cidadania e dos direitos sociais. Devido a isso, os estudos de gênero, que envolvem leituras sobre violência contra as mulheres, identidade de gênero, corpo e sexualidade fortalece a parte teórica e sociológica, tão essencial à solidez de nossa formação profissional bem como nosso próprio empoderamento e reconhecimento como mulheres. Unido a isso, as vivências no seio do movimento estudantil se constituem como basilar na construção do viés político marcante ao Serviço Social e como cidadãs. Ressaltamos, baseado em nossas vivências como estudantes, bolsistas e líderes estudantis, a importância da junção entre teoria e prática como complementares e indispensáveis na construção de uma consciência política, feminista e emancipatória sólida. REFERÊNCIAS 101


BARROCO, Maria Lúcia S. O que é preconceito? Série Assistentes Sociais no combate ao preconceito. Brasília: CFESS, 2016. ARAUJO, M. F. - Gênero e violência contra a mulher: o perigoso jogo de poder e dominação. Psicol. Am. Lat. n.14 México out. 2008 O que é o Observem? Observem. Disponível: https://observem.com.br/page/o-que-e-o-observem. Acesso em: 21 de setembro de 2021. SCOTT, Joan W. A cidadã paradoxal – as feministas francesas e os direitos do homem. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2002 [Trad.: Élvio Antônio Funck] UECE combate e previne violência contra a mulher. Uece, 2020. Disponível em: http://www.uece.br/noticias/uece-combate-e-previne-violencia-contra-a-mulher/. Acesso em: 21 de setembro de 2021.

102


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO PRINCESA RAYA: DIÁLOGOS SOBRE EMPODERAMENTO FEMININO NA EDUCAÇÃO DE MENINAS Mirella Fernanda Nascimento mirellismo@gmail.com Universidade CEUMA 1 APRESENTAÇÃO A Disney é uma empresa voltada primariamente ao público infantil. Milhares de

crianças são influenciadas por seus produtos todos os anos. A franquia

“Princesas Disney” foi criada com o intuito de alcançar o mercado feminino dentro deste setor. Mas hoje em dia meninas e meninos assistem os filmes de princesas em todo o mundo. Raya é a última princesa criada para a franquia até então e seu filme foi o objeto de pesquisa neste trabalho. Para Breder (2013), as imagens produzem influência na cultura e na sociedade. Crianças do mundo inteiro podem internalizar discussões encontradas pela Disney e

primar seus comportamentos a partir disso. Por anos crianças

cresceram achando que o ideal de mulher é o ideal frágil, dócil e submissa das princesas. A empresa vem

se reinventando justamente por perceber essas

alterações de mercado, pois esse modelo ideal de mulher tem sido desmistificado cada vez mais na atualidade. O velho Walt Disney, foi responsável por reinventar os filmes de animação como um todo e ele personificava exatamente “o sonho americano” proposto pelo capitalismo, em que um jovem sai da pobreza e anonimato em direção à fama, dinheiro e uma empresa gigante. Ele foi o primeiro magnata do cinema a perceber o potencial que seria expandir sua empresa para outros meios de comunicação, tais como tv, livros, parques, brinquedos, etc. Assim ele dominou toda uma indústria promissora de público infantil e ainda hoje é a maior empresa do segmento (BREDER, 2013). Cada lançamento é muito bem pensado e calculado. Se observa os potenciais do mercado, as discussões sociais e os possíveis lucros. Se tratando de princesas, esse segmento produziu muito sucesso porque iniciou com adaptação de histórias conhecidas como contos de fadas, em que havia magia e grande apelo do 103


público.

Eram histórias que já tinham dado certo dentro do capitalismo. Com o

tempo passou a utilizar histórias fora dos clássicos, mas com a mesma fórmula mágica já criada anteriormente(BREDER, 2013). O filme “Raya e o último dragão” traz consigo as fórmulas mágicas sempre utilizadas pelo velho Walt Disney, mas tem um apelo étnico, é baseado em contos e lendas do sudeste asiático. A empresa trouxe essas histórias e adaptou às novas demandas de gênero encontradas no mercado, em que o público anseia por uma princesa empoderada. Ser mulher é uma construção social, as regras dos papeis de gênero são passadas de geração em geração. Para Scott (1989, p. 7) gênero é “uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado”. A partir disso, nos encaixamos em uma sociedade que construiu o ideal do feminino e que com muita luta estamos aos poucos desconstruindo. As mulheres são muito diversas e cada uma constrói o seu próprio jeito de ser mulher hoje em dia. O ideal construído de mulher foi muito representado no cinema durante o século XX. A Disney, maior empresa com um cinema voltado a crianças, não fez diferente nos seus primeiros filmes de animação sobre princesas. Então havia uma representação de uma princesa frágil, delicada, que precisava ser salva por um príncipe. Elas eram vaidosas, sensíveis, meigas, dispostas a casarem e terem filhos (ANDRADE; CUNHA, 2021, p. 5). Breder separou as princesas em três gerações: Na primeira estavam as princesas clássicas (Branca de Neve, Aurora e Ciderela); na segunda estão as princesas revolucionárias, que são Ariel, Bela, Pochontas e Mulan; já na terceira temos Tiana, Rapunzel e Merida (BREDER, 2013, p. 10). Não seria a hora de criar um quarto grupo com Elsa e Anna, Moana e Raya? Até o momento não há essa discussão em artigos científicos, mas talvez seja uma possibilidade de iniciar essa discussão por aqui. Até Merida se via a necessidade do casamento, a partir de Elsa e Anna o casamento se tornou facultativo no enredo, Moana nem menciona essa possibilidade e muito menos Raya. Nessa possível quarta geração de princesas há mulheres que têm outros interesses e que atuam como líderes de Estado tal qual elas são. Salvar o mundo é uma prioridade para elas. Se impor como empoderadas também já não é mais uma questão, pois elas não precisam de nada disso, elas já 104


nascem empoderadas, elas não precisam provar nada para ninguém. Até a terceira geração, embora as princesas sejam empoderadíssimas, elas ainda viviam em um mundo machista. Já na possível quarta geração não há um mundo machista, elas já nascem em um mundo igualitário em gênero. As tramas giram em torno de outras aventuras em um mundo que meninos e meninas podem fazer as mesmas coisas e tudo bem também. Sem qualquer dificuldade as meninas podem se ver no melhor cenário possível de um mundo sem machismo. 1.1 Justificativa A Disney influenciou meninas em todo o mundo, mas observando que a sociedade estava mudando, é visível que a empresa foi mudando também lentamente a sua representação do que deve ser uma princesa. Desde Branca de neve (a primeira da franquia) as princesas foram se empoderando aos poucos, se tonando mais fortes e donas de seu próprio destino. O ideal de princesa de antes prezava pelo “felizes para sempre”, uma garota que estava pronta para apenas ser bonita, casar e ter filhos (ANDRADE; CUNHA, 2021, p. 10). Entretanto em Raya visualizamos a princesa mais empoderada de todas, a pessoa mais forte e mais bem treinada do filme para salvar o mundo. Entende-se que as crianças visualizando cada vez mais ideais de mulheres fortes, empoderadas e que podem ser o que quiserem influencia na educação positivamente. Acredita-se que as crianças de hoje estão muitos mais empoderadas do que as primeiras que viram as princesas mais antigas. Esse trabalho se justifica à medida que reforça pontos importantes das novas influências que as crianças têm recebido e reforça a vontade de que filmes como Raya e o último dragão possam ser cada vez mais normais no entretenimento de crianças. 2 OBJETIVOS Esta pesquisa visa como objetivo geral discutir o empoderamento feminino da princesa Raya em Raya e o último dragão (2021), bem como perpassar por objetivos específicos tais como: observar em quais pontos o filme pode demonstrar empoderamento feminino para as crianças; elencar as principais diferenças entre Raya e as demais princesas clássicas; projetar possíveis discussões de filmes de 105


princesas para o futuro. 3 METODOLOGIA Busca-se discutir um pouco acerca do avanço do empoderamento feminino na animação em longa metragem “Raya e o último dragão” (2021). Foi utilizada uma pesquisa bibliográfica qualitativa e descritiva sobre gênero e princesas, após essa fase, o filme foi assistido e analisado qualitativamente a partir do referencial teórico. 4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS No início do filme de Raya e o Último Dragão (2021), a personagem com apenas 12 anos já era capaz de vencer seu próprio pai nos treinos. Ao que parece era filha única e ao seu pai não era uma questão pensar em ter um filho homem para treinar e ser guardião da joia do dragão. Se fosse em um filme há anos atrás, talvez o enredo seria sobre um pai rei descontente por não ter um filho homem para assumir o reinado, ou talvez um pai procurando um homem para casar com sua filha e manter

o reinado. Dessa vez nada disso entrou no enredo, o pai

simplesmente ensinou sua filha que ela era forte e capaz de proteger seu reino. Quando Raya completou 18 anos iniciou a sua jornada em busca do último dragão e os pedaços da joia. Quando ela encontra Sissu, o dragão fêmea que precisava para salvar o mundo, a sua jornada começou em busca dos fragmentos da joia. Temos aqui uma heroína forte, que luta bem a espada e uma dragão fêmea igualmente empoderada. A Sissu coube o destino de salvar o mundo há 500 anos atrás, ela tinha irmãos machos, mas foi agraciada com a missão, eles confiavam nela. Temos aqui uma nova geração de crianças sendo educadas para serem fortes,

empoderadas, aprendendo tudo isso com Raya. A personagem sequer

menciona casar e em uma cena verbaliza que não quer ter filhos. Raya é a primeira princesa em longa metragem de animação da Disney que não deseja ter filhos abertamente, isso é importante para que meninas do mundo inteiro compreendam que ser mãe é uma opção hoje em dia, mas não a única para uma mulher. Desde a década de 1990 que a Disney vem investindo em etnias não europeias nos filmes de princesas. Raya representa o sudeste asiático e toda a cultura de lá de forma fantasiosa e cheia de magia. É importante que as crianças 106


possam ver representação de outras culturas, outros tipos de beleza, outros tipos de corpos. Ainda não é possível mensurar o impacto dessas discussões neste filme, pois ainda está muito recente a sua estreia, mas é possível projetar baseado em outras princesas que também foram se empoderando ao longo do tempo. Não há uma história romântica em cena, Raya tampouco é desejada por algum príncipe. O foco da história está em salvar o mundo. Se antes as princesas precisavam serem salvas, agora elas salvam o mundo. A rivalidade entre Raya e Namaari não se trata de uma rivalidade feminina como antes visto entre princesas e bruxas brigando para saber quem era a mais bonita. A rivalidade cria um novo tom nas personagens,

aqui a rivalidade é de ideologias e não tem teor de querer

diminuir a outra só por ser mulher. Ambas são muito fortes, valentes, guerreiras e empoderadas. Um homem não é uma questão para nenhuma das duas. Entretanto, Raya só conseguiu salvar o mundo de verdade quando se uniu com sua inimiga e juntas trabalharam para o bem maior. Desta forma, Namaari não é uma vilã e sim uma outra mulher com um projeto de governo diferente de Raya. Elas ocupam não tão somente o papel de guerreiras, como também o papel de chefes de Estado. Tecnicamente príncipes e princesas deveriam se ocupar com os assuntos do Estado, mas nas histórias mais clássicas de princesas isso não era visto nessas personagens femininas. A batalha entre Raya e Namaari é uma batalha política e ideológica, não há vilã aqui e nem a mocinha. Ao final elas juntaram forças para salvar o mundo, pois perceberam que a união era a solução para o momento. Namaari ter voltado atrás e mudado seu ponto de vista ideológico se torna interessante para influenciar as crianças dessa geração. Precisamos compreender que na vida real não existe vilã e mocinha e que a pessoas podem ter oposições políticas, mas no fim elas devem visar o bem comum. Essas pequenas questões são importantes para que as crianças possam ser educadas em ambientes empoderadores para elas, assim elas assumem seus próprios espaços e protagonismos sem ter que brigar por eles. Esse tipo de filme passa a normalizar para crianças um mundo que meninos e meninas podem fazer as mesmas coisas sem problema algum, isso é revolucionário e precisa continuar a ser fomentado. 107


A Disney já tem alguns personagens LGBTs em suas animações, mas ainda não há uma princesa abertamente LGBT nas animações da franquia “Princesas Disney”. Talvez essa seja a próxima barreira a ser enfrentada nos próximos lançamentos. Uma princesa lésbica talvez ainda seja algo completamente fora de possibilidade por enquanto, mas a Disney é uma empresa e como tal visa o lucro e avança nas pautas conforme a sociedade vai tornando mais aceitável cada uma delas. Por isso que é importante que continuem sendo discutidas essas pautas na sociedade, para que algum dia possamos ter uma princesa lésbica, ou bissexual, ou pansexual e quem sabe em um ponto mais adiante ainda uma princesa transexual. REFERÊNCIAS ANDRADE, Lays Christine Santos de; CUNHA, Renata Cristina da. Brave e a desconstrução da imagem de princesa da Disney. Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli, Crato- CE, v.10, n.1, JAN-MAR, 2021. Disponível em: <http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/MacREN/article/view/2759/pdf>. Acesso em: 13 fev. 2021. BREDER, Fernanda Cabanez. Feminismo e príncipes encantados: a representação feminina nos filmes de princesa da Disney. 74 f. 2013. Monografia (Graduação em Jornalismo) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/4022/3/FBreder.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2021. Raya e o Último Dragão. Direção: Don Hall, Carlos López Estrada, Paul Briggs e John Ripa. Produção: Osnat Shurer e Peter Del Vecho. Walt Disney Pictures, 2021. 117 min, cor. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Nova Iorque: Columbia University Press, 1989.

108


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO O FEMINISMO NOS SERTÕES DE QUIXERAMOBIM: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PROJETO SEVERINAS MULHERES DO SERTÃO Mayara Cruz Albuquerque mayara.cruz.albuquerque@gmail.com Mestra em Historia e Letras (UECE) 1 APRESENTAÇÃO/INTERESSE DO TRABALHO A SER APRESENTADO

Assim como o narrador-personagem Rodrigo S.M., na verdade Clarice Lispector, em “A Hora da Estrela”, também acreditamos que tudo no mundo começou com um sim. O Severinas começou da mesma forma. Duas mulheres que disseram sim uma para a outra, como as moléculas clariceanas, e assim nasceu um projeto que desde 2018 vem viajando pelos sertões de Quixeramobim, e quando possível, pelo Sertão Central do Ceará, para conhecer mulheres e aprender com elas. A história da nordestina Macabéa sempre me emociona e de tantas vezes que li sei que parece com a vida de muitas mulheres que conheci. Quando a personagem se mira no espelho e não se vê na imagem refletida nele, quantas Severinas ao contarem suas vidas relataram as dificuldades que sentem para reconhecer a importância do seu trabalho ou questões de amor próprio e autoestima? Não foi uma ou duas, mas várias vezes em que o patriarcado afetou a construção da identidade dessas mulheres e o prazer do autorreconhecimento e de se verem fortes, de luta e essencial para a comunidade em que vivem. A partir disso, pensamos em rodas de conversa, exposições fotográficas e oficinas para empoderar a elas e a nós, pois o empoderamento feminino nunca será uma tarefa fácil, sendo, na verdade, um processo que perdurará por toda a vida de uma mulher. 1.1 Importância Uma das leituras que atravessam o projeto e sempre está presente quando contamos o que fazemos é “O Perigo de Uma História Única” da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. É difícil destacar apenas um trecho da obra, no entanto esse em especial dialoga muito com a nossa reflexão constante do quanto mulheres 109


nordestinas sofrem com a criação e banalização de estereótipos acerca do que é ser ou não uma mulher nordestina e sertaneja: “a história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história” (ADICHIE, p. 21, 2019). Criar uma história única não é difícil, a própria Adichie afirma que basta apenas mostrar um povo como uma coisa só, repetidas vezes, para que este seja visto unicamente dessa forma. Múltiplas, multifacetadas, complexas, diversas e desdobráveis, como diria a poeta mineira Adélia Prado, contudo, a grande mídia vê mulheres rurais com enquadramentos tão limitados que quando não são “sofridas”, são muito “guerreiras” e até a seca não é páreo para elas, além de ignorantes, iletradas, feias, ingênuas e masculinizadas. Com alguns anos de experiência em espalhar a palavra do feminismo Sertão afora, percebi que cada mulher é um universo e as semelhanças ou diferenças é o que nos humaniza. Como projeto não damos voz às mulheres e nem a empoderamos, acreditamos que esse é um processo mútuo que acontece quando nos conhecemos e temos a oportunidade de trocar as nossas histórias e o que aprendemos ao longo de nossas vidas. Por isso viajamos de moto, Maria Oliveira e eu, percorrendo muitos quilômetros, para conhecer os feminismos que florescem no sertão, que nascem na horta, como intitula a pesquisadora Maria Ignez Silveira Paulilo. Iniciamos nossas atividades no ano de 2018, através do edital Ceará de Incentivo às Artes 2015 da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (SECULT) e de lá para cá nunca mais foi possível parar e nem queremos. Assim como a universidade pública, temos um tripé que se sustenta em: formação, rodas de conversa e exposições fotográficas rurais. As oficinas são realizadas em escolas públicas municipais e estaduais da cidade de Quixeramobim e zona rural (agora com o Google Meet, estamos chegando a mais escolas do Sertão Central), as rodas de conversa que chamamos carinhosamente de “Ciranda das Mulheres Sábias” (em referência ao livro da psicanalista e poeta Clarissa Pinkola Estés) com mulheres de assentamentos e comunidades, e, por fim, as exposições que acontecem nas zonas rurais, com as fotografias das mulheres que vivem lá. É como costumamos falar quando estamos reunidas, o projeto não é nosso, é de vocês, das Severinas. Não faria sentido expor na cidade quando a maioria não poderia ver a sua foto e levá-la 110


para casa. Um dia pretendemos ocupar outros espaços, mas por enquanto queremos descentralizar e estar com elas ou quem sabe um dia encher um ônibus de mulheres para verem suas fotos em um centro cultural. Em uma das exposições, que reunia mulheres de três comunidades diferentes, às 7 horas da manhã, já tinha uma fila esperando do lado de fora do salão paroquial do assentamento para entrar, e, em outra, Maria com seus 70 anos, levou a peça de crochê para continuar fazendo enquanto estava com a gente, depois de ver a sua foto e projeção na parede. Tomou café e proseou com as amigas queridas enquanto tecia e não via o tempo passar. São histórias que só as nossas exposições têm, por isso tão importantes e memoráveis para nós. Escrevi um texto sobre o Severinas que fica disponível em um painel nas exposições que fazemos e acredito que ele representa muito bem alguns dos nossos objetivos infinitos enquanto projeto: A exposição fotográfica Severinas Mulheres do Sertão não é só sobre mulheres que carregaram água na peneira a vida toda, que foram silenciadas ou excluídas, é sobre força também. A força de ser mulher, de mover o mundo com o ventre e a dor, com o sexo e o desejo, com as mãos e os pés, cabelos longos ou não. Severinas é sobre mulheres que vivem no Sertão e os seus cotidianos e o que aprendemos quando temos a oportunidade de compartilhar a vida com elas. O que nos lança nessa 'retirância' é transformar registros de viagens pelo interior do Ceará em exposições por comunidades e assentamentos para que as mulheres possam se reconhecer de uma maneira digna: com amor próprio, orgulhosas de suas identidades e raízes, desconstruindo o perigo da história única para assim revelar narrativas múltiplas e quebrar o processo de invisibilidade que carregam ou carregaram ao longo de suas vidas.

O segundo edital aprovado foi um verdadeiro divisor de águas para o Severinas. Tiramos o primeiro lugar no Prêmio Funarte Artes Visuais Periferias e Interiores. O primeiro lugar em mais de 300 projetos oriundos de todo o Brasil. Foi a partir dessa conquista que percebi que estávamos apenas começando, que tínhamos potencial e muito o que conquistar pela frente. Eu sou professora de escola pública concursada do estado, Maria é agente social concursada do município e não nos consideramos artistas, fotógrafas, videomakers, mas desenvolvemos um trabalho envolvendo fotografia, audiovisual, artes visuais e seguimos atravessando várias linguagens para criarmos a nossa. Na verdade, o que queremos mesmo é viver em um estado menos machista e ver mulheres mais 111


empoderadas e derrubando o patriarcado com frases muito simples como a que um dia ouvimos: “sai pra lá um pouquinho que hoje elas vieram me fotografar”. Foi o que uma das mulheres fotografadas disse para o marido enquanto eu fazia um registro seu segurando minhocas. Atualmente estamos finalizando a parceria com o apoio do Prêmio Funarte Descentrarte, que tem como proposta descentralizar ações de formação e produção artísticas, como também de inclusão “cidadã nas artes”. Assim, mesmo com a pandemia da COVI-19, estamos dando continuidade ao nosso trabalho em escolas públicas, em assentamentos e comunidades, fomentando espaços de troca e fazeres artísticos. Ao final, faremos uma espécie de exposição rural virtual/seminário de despedida dessa ação na Casa Severinas com a participação das oficineiras, mulheres e alunas de escolas públicas que passaram pelos nossos encontros. Recentemente o Severinas foi selecionado em mais dois editais públicos estaduais: o Circula Ceará da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (SECULT), em parceria com Fundação Nacional das Artes (FUNARTE) e o XII Edital Ceará de Incentivo às Artes, também da Secult, além de ter realizado ações com o apoio da lei Aldir Blanc através da Prefeitura Municipal de Quixeramobim e ter as fotografias do projeto compondo o Painel da Fotografia Cearense ao lado de 120 artistas selecionados de todo o Ceará. 2 OBJETIVOS -

Visibilizar as mulheres sertanejas e suas histórias de vida, desconstruindo estereótipos arraigados pela grande mídia;

-

Contribuir para a construção e o fortalecimento do movimento feminista no interior do Ceará;

-

Divulgar o trabalho de mulheres na fotografia, audiovisual, pintura, performance, literatura, desenho, entre outras formas de arte, bem como possibilitar que comunidades do interior do Ceará sejam também lugares possíveis de apreciação da arte e tenham acesso a formação em arteeducação como os grandes centros do país possuem.

3 METODOLOGIA 112


A fotografia no Severinas é o dispositivo que nos permite ir além da escuta, é quando podemos compartilhar com mais pessoas a imensidão de narrativas e corpos que existem, as várias possibilidades de ser mulher. É quando a voz se torna uma memória visível e essa visibilidade pura representatividade. 4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS OU FINAIS Somos tantas que há várias formas de existir e causas para lutar. O Severinas tem nas mulheres rurais, que vivem no interior do país, a sua causa, pois são elas, agricultoras, costureiras, rezadeiras, parteiras, curandeiras, donas de casa e mães de família que fazem parte da nossa história e tanto nos inspiram. Queremos ver essas mulheres com poder de voz dentro de casa e em suas comunidades, com tomada de decisão potente e sendo ouvidas de forma atenta e respeitosa. Que o machismo não as silencie, não as mate, não se torne a herança das mulheres da família. Para isso, precisamos nos movimentar, nos encontrar em rodas de conversa, oficinas, e ações que reverberem nossas vozes e pensamentos. O projeto Severinas Mulheres Sertão é a forma que encontramos de conhecermos mulheres e não nos sentirmos sozinhas na caminhada árdua que é lutar

pela

equidade

de

gênero,

pelo

empoderamento

feminino

e

por

representatividade. Precisamos de espaços de formação, em que mulheres se encontrem e se sintam acolhidas, contem suas próprias histórias, e aprendam umas com as outras. É urgente a nossa organização enquanto mulheres e como seres políticos, a arte pode e deve ser essa ponte. Por meio da fotografia, da performance, da poesia, do audiovisual ou de um processo colaborativo de fanzine podemos encontrar a nossa voz e ecoá-la pelo mundo. REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O Perigo de Uma História Única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

113


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO MENINAS PRETAS E A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA A PARTIR CAPOEIRA: ENSINO APRENDIZAGEM NA COMUNIDADE DO ALTO DAS POMBAS Letícia de Oliveira Menezes (Flor de Liz) leticia.menezes979@gmail.com Mestranda em Educação (PPGE/UFBA)

RESUMO Este relato de experiência busca abordar sobre a vivência, numa perspectiva interseccional, do Programa de extensão “Projeto Griô: memória e cultura na Comunidade do Alto das Pombas”, com foco nas oficinas de capoeira angola com crianças de 8 a 12 anos da comunidade do Alto das Pombas (Salvador-BA). As reflexões

são sobre a possibilidade de construção identitária para as meninas

pretas que, compuseram essas oficinas, através das práticas semanais de capoeira angola, ministradas Interdisciplinar

em

por estudantes de Educação Física e Bacharelado Humanidades.

Será

relatado

o processo de ensino

aprendizagem do projeto no ano de 2019 e as valores raciais, sociais e de gênero. PALAVRAS-CHAVE: meninas pretas; construção identitária; capoeira angola;

1 INTRODUÇÃO Nos últimos anos a capoeira tornou-se um conteúdo frequente nas academias, revistas e congressos. Entretanto, a questão de gênero e racial, em se tratando de mulheres

negras é escarça. Tendo em vista a perspectiva

interseccional, após vivência na comunidade do Alto das Pombas (Salvador-BA) com crianças de 08 a 12 anos, passo a

analisar de que forma a construção

identitária das meninas pretas, desse grupo de trabalho, pode ser influenciada pela prática da capoeira angola. O Programa “Projeto Griô: memória e cultura na Comunidade do Alto das Pombas” se propõe a continuar e intensificar atividades de ensino, pesquisa e extensão que acontecem desde 2011, pelo Grupo de Pesquisa “GRIÔ: Culturas Populares, Ancestralidade Africana e Educação”, da Faculdade de Educação da 114


UFBA, em conjunto com o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (GRUMAP), na Comunidade do Alto das Pombas que se localiza na cidade de Salvador (BA). O intuito é alavancar um diálogo entre o espaço acadêmico da universidade e os saberes e fazeres compartilhados na comunidade. Esse programa visa desenvolver ações voltadas para crianças, jovens e adultos. O foco é contribuir na reapropriação da memória da comunidade, pensando na formação da identidade cultural. Na disposição desse projeto é oferecido oficinas semanais de capoeira angola,

dança, teatro e música, por estudantes bolsistas e voluntárias(os) do

programa de

extensão, para a comunidade. No ano de 2019, as oficinas de

capoeira angola foram ministradas nas quartas-feiras, no final da tarde com três estudantes como oficineiros(a). Dois estudantes da graduação de Educação Física e uma estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades sob a orientação do professor pós doutor Pedro Rodolpho J. Abib. 2 OBJETIVO Descrever uma experiência de ensino aprendizagem de extensionista voluntária do

“Projeto Griô: memória, arte e cultura na comunidade do Alto das

Pombas” (Faculdade de Educação da UFBA) na comunidade do Alto das Pombas (Salvador-BA) com crianças

de 8 a 12 anos. As vivências observadas são das

oficinas de Capoeira Angola.

3 CAMINHOS METODOLÓGICOS A metodologia utilizada na elaboração deste relato de experiência foi qualitativa, descritiva e da construção compartilhada do conhecimento, tendo como referencia a Pretagogia, cunhada por PETIT (2015) como sendo um referencial teórico-metodológico baseado nos elementos das cosmovisões africanas. O trabalho realizado na comunidade, foi elaborado a partir das vivências prévias dos(a) três oficineiros(a) na capoeira angola com auxílio do coordenador Pedro Abib. 4 RELATOS DE EXPERIÊNCIA As atividades foram realizadas no período de Julho a Novembro de 2019, durante esse período analisei questões que podem gerar discussões importantes. 115


Pedro Abib (2019) sugere como as culturas populares tem um papel fundamental dentro do projeto decolonial na educação, trazendo como foco de debate o exemplo da capoeira.

Entendendo o processo na prática, utilizamos dessas reflexões na

realizações das

atividades dessa experiência de extensão. Na realização das

oficinas, as aulas eram compostas majoritariamente por meninas (e negras), que inclusive, além de fazer as oficinas de capoeira angola também faziam as oficinas de Teatro e Dança, ministrada por outras mulheres negras. Os planejamentos de aula eram diálogos semanais para pensar as possíveis temáticas de cada oficina. Além disso, acontecia uma reunião quinzenal com o orientador do programa e com as demais pessoas que oferecem oficinas na comunidade.

As oficinas eram

divididas em parte prática e teórica, sendo conduzida a partir de um viés lúdico. Como é trazido por Castro Junior et al, 2000. A prática da Capoeira adquire dimensões bem mais amplas do que uma simples atividade corporal relacionada a uma determinada etnia, e passa a ter um significado de pratica social, ampliando o eixo da discussão sobre as questões raciais e étnicas, para as questões de classe social dentro do sistema capitalista, pois envolve elementos importantes que podem levar a uma reflexão crítica sobre a realidade e o contexto social que envolve o seu praticante (CASTRO JUNIOR, ABIB, SOBRINHO, 2000, p.165 apud AMORIM, 2017).

Em primeira análise, o que percebi durante as aulas foram como a questão da territoriedade atravessam essas meninas. Se entender como uma criança negra da favela dá um outro lugar de pertencimento e entendimento espacial da cidade. A partir das

construções cotidianas do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas

(GRUMAP), há anos, fica nítido o enquanto isso se reflete nessas meninas com a potencialidade de conseguir liderar e estar à frente das futuras atividades dessa comunidade. Tendo em vista que, nas oficinas, pensamos a capoeira também como uma produtora de valores sociais e individuais, quando tínhamos oportunidade de discutir sobre questões históricas da capoeira, ou sobre nosso lugar no mundo, conseguíamos observar como a compreensão territorial, que elas carregam, parte de uma percepção matriarcal, colocando sempre suas mães, avós, tias, irmãs, como referências das histórias que queriam compartilhar. Sendo assim, pensando o contexto comunitário em que são trazidas essas demandas, não podemos deixar de pensar o quão é importante que essas meninas ginguem sabendo que 116

suas


referências são mulheres negras e guerreiras cotidianas que trazem um corpo território e deixam essa herança para essas meninas que somam imensamente nas oficinas de capoeira. Durante a realização das oficinas, observei em cada aula como a capoeira pode ser uma potente ferramenta na mobilização da construção identitária negra e de gênero. Pensando essa mobilização não só para as meninas, mas como para todas as pessoas que compuseram essas vivências, como os oficineiros e as outras crianças. Cada oficina foi pensada para trabalhar um tema da capoeira e um valor social que essas crianças precisam ter para a vida, quanto capoeiristas, cidadãos e filhas(os). Para isso, foram trabalhadas algumas brincadeiras de reflexão. Dentre elas, um jogo em que contamos uma história em que o chão se tornaria um rio e que dividiria dois quilombos. Uma pessoa ficaria no meio, interpretando os “capitães do mato” (serviçais responsáveis

por capturar os escravizados fugitivos) e as

crianças se dividiriam em dois quilombos que teriam que passar por esse rio para se unirem e não podiam ser tocados pelo “capitão do mato”. Um detalhe: para passar de um quilombo para o outro era necessário usar apenas dois apoios (que não fossem os pés) ou quatro, fazendo com que elas trabalhassem as habilidades da capoeira, como o aú. Nessa brincadeira, tivemos que explicar o que são os quilombos, contar um pouco da história da colonização e relacionar isso com a vida contemporânea. Quanto pessoas negras, temos sempre que está aprendendo a achar alternativas para passar por esses rios que nos atravessam. Para além de conceitos sobre nossas ancestralidades, uma simples atividade como essa, pode proporcionar à essas

meninas que se empoderem um pouco mais sobre as

questões raciais. Outra ação que trabalhamos foi a capoeira como mobilização da construção identitária de meninas, que estão se tornando mulheres, foi através da musicalidade. Por meio das cantigas, podemos refletir em uma oficina, sobre o lugar das mulheres na história da capoeiragem. Refletimos o quanto estamos sendo “privilegiadas” de sermos do gênero feminino e conseguir estar praticando a capoeira com liberdade. Desde o princípio, existia a presença feminina de diversas formas nas rodas de capoeira. Entretanto, não fazíamos parte do protagonismo dos jogos. Mas sim nas assistências. Por meio das cantigas, iniciamos os debates sobre as canções e o 117


que elas representavam. Ao longo dessa vivência, podemos trazer algumas músicas de capoeira que versam sobre as

mulheres. Dentre elas. “Maria Conga, esse

quilombo é meu, é seu, esse quilombo é nosso” e “Dona Maria do Camboatá, ela chega na roda ela manda botar”. Duas canções que falam positivamente sobre a presença das mulheres na capoeira, o protagonismo e o conceito de comunidade. No livro “Para educar crianças feministas”, ADICHIE (2017) reforça a importância de ações como essa. Pensando sobre a representação e empoderamento: Esteja atenta também em lhe mostrar a constante beleza e capacidade de resistência dos africanos e dos negros. Por quê? A dinâmica do poder no mundo fará com que ela cresça vendo imagens da beleza branca, da capacidade branca, das realizações brancas, em qualquer lugar onde estiver. Isso estará nos programas de TV a que assistir, na cultura popular que consumir, nos livros que ler. Provavelmente também crescerá vendo muitas imagens negativas da negritude e dos africanos. (ADICHIE, 2017, p.19)

No terceiro sábado de todo mês, uma outra iniciativa organizada em conjunto entre o Grupo Griô e o GRUMAP é o “Sarau do Pombal”. Organizado na praça principal da comunidade, o protagonismo é das crianças e jovens que participam das oficinas

semanais. O sarau é uma possibilidade de exposição do que foi

trabalhado durante o mês. O Sarau do Pombal sempre se inicia com uma roda de capoeira e também permite o “microfone aberto”. Esse espaço proporciona uma autonomia para as crianças. As meninas ficam a vontade de ter voz e poder falar no microfone; ou de dançar e cantar; ou de se permitir a um diálogo corporal com as outras pessoas através da capoeira. Apensar de que, em algum nível, ainda existe uma timidez em jogar capoeira no meio da praça, com as pessoas da comunidade assistindo, foi considerável está incentivando ela nesses momentos também. “Três palavras vêm à minha mente: informação, afirmação e corpo. Porque isso passa pelo corpo, um corpo que se sente à vontade em qualquer ambiente e que sente pertencimento onde quer que esteja”.( RAMOS, 2017. p. 126). Concordo com Lázaro Ramos quando ele fala que temos uma tríade de fundamentos significativos para serem postos em prática e que vão ter reflexos futuros. No entanto, também tivemos adversidades durante o processo. Todo jogo de capoeira a gente leva rasteira. Mas, é importante aprender a se esquivar. Algumas questões interferem na totalidade desse trabalho, não por uma questão especifica da localidade ou das crianças ou dos(a) oficineiros(a), e sim por uma questão 118


estrutural chamada sexismo. Me apoio no escrito de Chimamanda Adichie (2017) para essa reflexão: A vergonha que atribuímos à sexualidade feminina se refere a uma questão de controle. Muitas culturas e religiões controlam o corpo feminino de uma ou de outra forma. Se a justificativa para controlar o corpo das mulheres se referisse a elas mesmas, seria compreensível. (ADICHIE, 2017, p.24)

Como já arrolado no texto, por muito tempo era difícil ter mulheres sendo protagonistas das rodas de angola, assim como de muitos espaços da sociedade, e ficamos felizes por essa turma do Alto das Pombas ser majoritariamente feminina. Entretanto, existe a complexidade externa que se refletia dentro das nossas aulas. Tivemos algumas dificuldades porque mesmo que sem perceber o machismo está presente nos detalhes, e precisamos estar sempre muito atentas e mediando essas situações para que não ecoasse nem na vida e nem capoeira dessas meninas. Por isso, achei importante ser uma das pessoas que estava a frente desse processo porque as meninas também se sentiam mais a vontades comigo, seja para contar incômodos quanto para se referenciarem no meu corpo

para criarem os

movimentos nos seus corpos. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa experiência, me fez ficar de cabeça para baixo (assim como quando damos um aú) e aprender mais do que ensinar. Nós, mulheres pretas, temos que ter um cuidado redobrado e prestar atenção em cada detalhe para não reproduzir padrões opressores e

sim, sermos multiplicadoras da resistência. Na minha

minúscula trajetória na capoeira,

desde quando era pequena sentia falta de ter

outras meninas gingando comigo, hoje, fico

muito feliz de ver essas meninas

brincantes na capoeira angola. São movimentos

pequenos, mas que fazem a

diferença, em algum nível, na vida delas, e na minha também. Dentre as possibilidades que essa experiência fosse melhor, é um maior cuidado com o planejamento semestral das aulas. Sem intenção de projetar oficinas engessadas em cada dia, mas uma temática possível de ser trabalhada. Foi observado que o planejamento sem uma antecedência favorável, diminuía a potência das questões a serem trabalhadas entre os(a) oficineiros(a) e, as vezes, as atividades se repetiam. Nessa perspectiva, acabávamos ficando desarticulados(a) 119


quanto mediadora(es) e influenciava na forma como as coisas poderiam ser passadas para essas meninas de maneira antissexista e mais potente. Além disso, em alguns momentos, existiu a dificuldade em deixar as crianças atentas e houveram muitas dispersões. Contudo, as oficinas renderam boas discussões e aprendizados de todas as partes: seja nos oficineiros(a) e nas crianças, quanto nos movimentos práticos ou nos momentos de reflexão. Cada detalhe compôs o processo de educação popular através da capoeira. A capoeira é uma grande ferramenta de construção identitária, por si só, e conseguir investir nas oficinas através da capoeira angola possibilitou, mesmo que nem todos resultados sejam imediatos, a inferência nas vidas dessas crianças. Em reunião com

as lideranças do GRUMAP foi pontuado o quanto era visível a

mudança, em detalhes do comportamento, das crianças que participaram das oficinas. Um dos exemplos que elas deram foi sobre como as crianças que faziam as oficinas estavam mais proativas nas atividades da comunidade. Não se tem um desfecho concreto ou resultado efetivo sobre

como se desencadearão essas

oficinas na história dessas meninas pretas, todavia, não resta

dúvidas que a

iniciativa, em sua essência, busca que cada oficina (e também os saraus) possam motivar ampliação da autoestima; da representatividade; da consciência de gênero e de raça; de pertencimento ao território e do enriquecimento da autonomia. Todos esses estratos de valores, não se constrói só com a capoeira angola, mas também com o processo contínuo do GRUMAP, das famílias, instituições escolares e toda educação formal ou não formal. O que espero é que a parcela de contribuição da capoeira angola,

seja de grande potência, para essas futuras mulheres negras

empoderadas. REFERENCIAS ABIB, Pedro. Culturas populares, educação e descolonização. Revista Educação em Questão, Natal, v.57, n.54, p.1-20, out/dez. 2019 ADICHE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. tradução Denise Bottmann. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2017. AMORIM, Alexandra da Paixão Damasceno de. Vem dançar mais eu, camará! Gingar/dançando na capoeira: uma proposta na educação infantil. 2017. 124 p. Dissertação (Mestrado - Programa de pós-graduação em Dança) - Universidade 120


Federal da Bahia, Escola de Dança, 2017. PETIT, Sandra. Pretagogia: Pertencimento, Corpo-Dança afroancestral e Tradição Oral. Contribuições do Legado Africano para a Implementação da Lei nº 10.639/03. Fortaleza: EdUECE,2015 RAMOS, Lázaro. Na minha pele. 1ª ed. Rio de Janeiro. Objetiva. 2017

121


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO COLETIVOS FEMINISTAS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ: RESISTÊNCIAS PLURAIS NA PANDEMIA. Teresa Cristina Esmeraldo Bezerra teresa.bezerra@uece.br Professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE) Paula Julia Rodrigues Barbosa paula.julia@aluno.uece.br Graduanda em Serviço Social (UECE) Rafaela Gomes Oliveira rafa03.gomes@aluno.uece.br Graduanda em Serviço Social (UECE) 1 APRESENTAÇÃO O seguinte trabalho relata alguns dos resultados do “OCUPA NAH” que aconteceu como atividade da pesquisa de iniciação científica “Coletivos Feministas Jovens: o enfrentamento à violência de gênero na Universidade Estadual do Ceará” (2020-21) e da pesquisa “Coletivos Feministas Jovens na Universidade Estadual do Ceará: resistências ao machismo na cultura juvenil Universitária” (2020-21)24. O interesse para realizar essa pesquisa surgiu a partir da articulação e das lutas de jovens da Universidade Estadual do Ceará (UECE) contra os casos de violência de gênero que estavam acontecendo no Campus em 2016. Essa articulação de lutas, que contou com a organização do Coletivo Feminista Jana Barroso, que se constituía uma célula da Marcha Mundial de Mulheres na UECE, resultou na criação, por meio do Comitê de Segurança da UECE, do Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência da Universidade Estadual do Ceará (NAH-UECE). O Núcleo tem como objetivo principal o combate à violência de gênero contra as mulheres na UECE. Para tanto, acolhe as mulheres em situação de violência, realiza ações e campanhas de prevenção à violência, com a ajuda de coletivos

24

Se tratam de dois projetos de iniciação cien fica coordenados pela professora Teresa Cris na Esmeraldo na qual as duas autoras do trabalho são bolsistas.

122


feministas, além de desenvolver estudos e pesquisas sobre estes coletivos e outros temas por meio do Grupo de Estudos sobre Gênero e interseccionalidade. 1.1 Justificativa Discutir gênero e feminismos em meio ao processo de recrudescimento do conservadorismo que vivenciamos no Brasil é de extrema relevância, em razão da importância dos movimentos e epistemologias feministas para o questionamento e a desconstrução das estruturas e padrões que sustentam as opressões de gênero, raça e classe em nosso país. Segundo dados da pesquisa do Instituto Avon sobre o tema violência contra a mulher no ambiente universitário (2015), a qual ouviu um total de 1.823 graduandos e pós-graduandos de todas as regiões do país, sendo 1.091 mulheres e 732 homens, 67% das estudantes entrevistadas afirmaram já ter sofrido algum tipo de violência na universidade. Ainda conforme a referida pesquisa a maioria das entrevistadas foram vítimas de assédio sexual (56%), violência psicológica (52%), violência sexual (28%) e violência física (10%). Para Lourdes Bandeira (2017, p.70), “a recorrência da violência contra as mulheres e os sofrimentos que esta produz exigem que sejam investigadas nas universidades brasileiras as dimensões rituais das sociabilidades que auxiliam a reprodução dessas violências de gênero no âmbito universitário”. Ainda segundo a autora, os códigos de honra e poder masculinos, construídos sob a hegemonia de uma lógica viril estão impregnados na cultura juvenil universitária brasileira, fazendo com que jovens universitários não reconheçam muitas formas de violência contra as mulheres. Esse cenário tende a se complexificar, no contexto da pandemia do Novo Corona Vírus, pois a partir de 2019, as pessoas foram obrigadas a mudar completamente o seu jeito de viver e de se relacionar, em razão das medidas de isolamento recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para conter a disseminação do vírus, evitar o colapso dos sistemas de saúde e preservar a vida. Neste sentido, os resultados da pesquisa aqui apresentados consideram este panorama cultural mais amplo no qual transitam as jovens universitárias dos coletivos feministas, convivendo em meio aos códigos e rituais de uma cultura 123


juvenil universitária ainda marcada por uma lógica viril, machista e patriarcal, que tende a se agravar e se complexificar no contexto da pandemia COVID 19. No cenário acadêmico, as estudantes universitárias passaram a ter que lidar com problemas relacionados ao isolamento social e ensino remoto, como lidar com os afazeres domésticos, o trabalho e as aulas ao mesmo tempo, sem contar com os problemas relacionados à falta de acessibilidade às aulas remotas, como também, às violências de gênero que são sofridas cotidianamente. Assim, o que se propõe aqui é apresentar os resultados de uma investigação sobre os desafios à organização e atuação das jovens universitárias no contexto da pandemia COVID 19, por intermédio de sua inserção em coletivos feministas plurais na Universidade Estadual do Ceará. 2 OBJETIVOS Objetivo Geral:Investigar a organização e atuação dos coletivos feministas da UECE no contexto da pandemia COVID 19. Objetivos Específicos: Apreender as principais pautas e temáticas debatidas; Compreender os usos e apropriações das redes sociais; Captar os significados que as jovens participantes dos coletivos atribuem aos feminismos plurais; 3 METODOLOGIA Considerando que o recorte do objeto desta pesquisa não se desvincula das ações realizadas pelo NAH, em parceria com coletivos feministas plurais dentro da UECE, optou-se pela metodologia da pesquisa ação, por se adequar à perspectiva dialógica adotada no trabalho do Núcleo. Segundo Thiolent (2009) a pesquisa ação se insere no âmbito da pesquisa qualitativa, na medida em que busca apreender os sentidos e significados que os sujeitos atribuem às suas experiências e práticas no cotidiano. Neste sentido, a metodologia da pesquisa ação se adéqua à dinâmica desta pesquisa, pois conforme Bueno (2009), tal metodologia surge a partir da necessidade do grupo ou comunidade, sendo realizada de forma coletiva, participativa, construtiva, conjuntiva, dialógica e interventora. Desse modo, por intermédio da pesquisa ação é possível realizar uma investigação ao mesmo tempo em que se constrói uma ação transformadora, no âmbito da prevenção à violência 124


de gênero na universidade, em conjunto com os coletivos feministas, seguindo as referências da pedagogia progressista de Paulo Freire, também citadas por Thiollent (2009). Como técnicas de pesquisa para apreendermos os modos como os coletivos se organizam e atuam no contexto da pandemia, utilizaremos a observação participante, o registro em diário de campo das lives, grupos de discussão, reuniões e rodas de conversa e demais atividades realizadas com e pelos coletivos nas redes sociais, a partir de uma perspectiva dialógica, além de acompanharmos de perto e de dentro as iniciativas propostas pelos próprios coletivos na UECE. 4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Inicialmente, foi muito difícil ter contato com os coletivos feministas da universidade, pois alguns coletivos que anteriormente atuavam fortemente na UECE, com a pandemia e o processo de distanciamento social acabaram reduzindo suas ações por um tempo. A falta de acessibilidade à internet destacada pelas militantes como um dos um dos principais obstáculos que dificultaram a atuação desses coletivos durante a pandemia. Conseguimos mapear três coletivos feministas auto organizados25: Mulheres Uni-vos, Pratica Feminista e Ana Montenegro, e

quatro coletivos com setoriais

feministas na universidade: MST, RUA, Levante popular da juventude e o Setorial de Mulheres do Centro Acadêmico Livre de Serviço Social (CALSS). Posteriormente, após algumas tentativas conseguimos reunir as jovens de alguns coletivos feministas que estavam em ativa: RUA, Levante e Pratica Feminista e organizamos uma ação em conjunto, a ação que foi pensada se tratou de um conjunto de ocupações na página do Núcleo, denominada #OcupeNah, onde cada coletivo escolheu a temática que iria abordar. O primeiro coletivo a se colocar para fazer parte da ocupação foi o Coletivo RUA (Juventude Anticapitalista), coletivo formado por alunas de diversos cursos e que faz parte da frente Povo sem Medo. O coletivo que escolheu a temática sobre o feminismo negro para abordar nas páginas do NAH, o coletivo organizou posts e uma live que debateu a questão do feminismo negro. Uma das características 25

Ou seja cole vos só para mulheres

125


principais da chamada Quarta Onda Feminista é justamente a ascensão dos feminismos plurais, acolhendo à crítica das feministas da Terceira Onda a ideia de um sujeito universal para o termo “mulher”, e as feministas dessa nova onda buscam pautas que acolhem as multiplicadas formas de ser mulher, e a forma como diferentes

opressões

podem

se

aglutinar

na

vida

de

cada

uma delas

(FISCHER,2018). Na ação de ocupação das redes do NAH o coletivo RUA apresentou a discussão sobre classe, raça e gênero, trazendo ao debate a abordagem sobre a interseccionalidade, pois “[...] a misoginia e o racismo atingem mulheres negras fazendo com que elas sofram mais vezes violências do que mulheres brancas [...]” (RUA, 2021). Ademais, as jovens vinculadas a este coletivo argumentaram sobre as desigualdades sociorraciais no país, onde mulheres brancas ganham um salário maior que o salário da mulheres negras e dos homens negros, e isto quando a população negra consegue estar inserida no âmbito do trabalho. Elas destacaram ainda que o “[...] feminismo que não pensa/aborda sobre o racismo é um feminismo excludente, pois as mulheres pretas não estão sendo representadas. Por isso [...] é importante adequar a realidade de cada mulher que vai ser atravessada por diversas violências” (RUA, 2021). Para elas, existe constantemente a necessidade de se debater um viés interseccional para a análise da realidade e, também, quando estamos discutindo temáticas feministas. Em suas postagens nas redes do NAH elas pontuaram que: “a interseccionalidade em nossas lutas é fundamental para abranger as diversidades. Nossos desafios se interpelam, e por isso precisamos falar sobre eles [...]” (RUA, 2021). O segundo coletivo que participou da ação foi o Coletivo Prática Feminista, formado por estudantes de Tauá tem uma independência maior em relação a partidos políticos, adotando a ideia de horizontalidade que é outra característica dos coletivos feministas de quarta onda (RIBEIRO; O’DWYER; HEILBORN, 2018). O Coletivo realizou ações por meio posts e reels, discutiu a questão da acessibilidade, dando continuação à perspectiva da necessidade de um feminismo que consiga observar a pluralidade de mulheres e de como os problemas de acessibilidade devem fazer parte da pauta feminista, pois excluir esse tema acarretaria em excluir mulheres com deficiência do movimento. 126


O terceiro e último coletivo da ocupação foi o Levante Popular da Juventude formado por estudantes de vários cursos da universidade e fazendo parte da Frente Brasil Popular sobre problemas relacionados a pandemia e ampliação de casos de violência contra a mulher. O coletivo além de produzir postagens, organizou uma Live que discutiu sobre a vida das jovens estudantes na pandemia e as problemáticas envolvidas no ensino à distância e o Home Office. Além de falarem sobre o feminismo popular, e de sua importância, o que também condiz com o conceito da quarta onda ser a voz dos feminismos plurais. Durante as ocupações, os três coletivos movimentaram as redes do NAH e deram visibilidade às suas pautas, expressando os feminismos plurais, que caracterizam a quarta onda do feminismo, resistido de diferentes maneiras para continuarem as suas atuações mesmo em um momento tão cheio de dificuldades como na pandemia. REFERÊNCIAS BANDEIRA, L.M. Trotes, assédios e violência sexual nos campi universitários do Brasil. In: Rev. Gênero. V.17. N.2. Niterói. 2017, p.49-79. FISCHER, Mariana Pimentel. Por que é importante falarmos em feminismos (no plural)?. In: Portal Geledés . Brasil, 2018. Disponível em: https://www.geledes.org.br/por-que-e-importante-falarmos-em-feminismos-no-plural/. Acesso em: 31 maio 2021 THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez,1985. RIBEIRO, L.; O’DWYER, B.; HEILBORN, M. L. Dilemas do feminismo e a possibilidade de radicalização da democracia em meio às diferenças: o caso da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 18, n. 1, p. 83-99, 13 abr. 2018.

127


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO TRANS-IDENTIDADES E EDUCAÇÃO – GÊNERO E POLÍTICAS PARA A POPULAÇÃO TRANS* NA EDUCAÇÃO Keo Silva keo.ech@gmail.com Doutorando Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH/UFSC) 1 APRESENTAÇÃO A proposta deste trabalho é elucidar algumas reflexões sobre as trans-identidades na educação. A perspectiva de gênero compreendida neste trabalho, é de que gênero é uma construção social e a categoria transexual é um dispositivo biopolítico. Na educação, a invisibilidade nos materiais didáticos e as violências específicas relacionadas a população trans* indicam a importância de tematizar tais questões visando uma educação mais diversa e plural em diferentes espaços de educação formal. Abordarei questões como a presença e a evasão/expulsão de pessoas trans* dos espaços de ensino e as invisibilidades e apagamentos das trans-identidades nos materiais pedagógicos. 1.1 Justificativa do trabalho A categoria gênero pode ser compreendida como uma estrutura fundamental na sociedade ocidental moderna; entendida por uma determinação atribuída no nascimento e determinada pelo alinhamento entre sexo/gênero (RUBIN, 1984). No entanto, há experiências que não correspondem a essa determinação. De maneira sucinta, o conceito de gênero pode ser entendido a partir da identidade de gênero e expressão de gênero, como desenvolve Jaqueline Gomes de Jesus (2012). Categorias que correspondem respectivamente amasculinidades e feminilidades, incluindo às categorias cis e trans; e como se externaliza o gênero de identificação através de atributos, performances, performatividade e vestimentas. O que é pertinente dentro dessa conceituação é que a identificação é expressada pelo sujeito e não por discursos de verdade como a medicina e a psiquiatria (BENTO, 2008). O alinhamento entre sexo e gênero corresponde a uma 128


ordem de gênero (CONNELL, 2014) em que a determinação biológica de sexo corresponde

ao

gênero

atribuído.

Esse

alinhamento

ganha o nome de

cisgeneridade. Portanto, entendemos que cisgêneros são pessoas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento. Segundo Amara Moira Rodovalho (2017) o termo cisgênero foi criado na década de 1990 por ativistas do movimento trans nos EUA, como uma forma de categorizar as pessoas não trans*. 2 O QUE SIGNIFICA O PREFIXO TRANS? O termo trans* como termo guarda-chuva, pode ser usado para nos referirmos a diversas identidades, como travestis, transexuais e transgêneros. Incluindo

aqui

as pessoas não binárias.(KAAS, 2013). O dispositivo de

transexualidade (BENTO, 2008) implica na construção de um modelo diagnóstico que pretende definir a ideia de “Transexual verdadeiro”. Podemos pensar a partir de um ponto de vista socio-antropológico, que transexual é uma das principais categorias biopolíticas utilizadas na regulação do corpo, que determinam um modo único de experiência trans*. Por isso, proponho pensar a partir de um conceito mais aberto a categoria trans*, como uma categoria política. As lutas por reconhecimento da população trans* no Brasil começam na área da saúde, sobretudo advindas dos movimentos de travestis e transexuais no enfrentamento do HIV/AIDS no final da década de 80, início da década de 90. (MISKOLCI, 2015) É a partir das reivindicações por acesso a saúde que emergem as primeiras políticas de reconhecimento e cidadania da população trans* no Brasil, como o Processo Transexualizador no SUS, onde surge a política de nome social, que tornou-se a principal demanda do movimento trans* dentro do campo da educação. 3 ALGUNS DADOS PARA PENSAR A REALIDADE DE PESSOAS TRANS NA EDUCAÇÃO Os principais fatores de “evasão” é a falta de reconhecimento por parte da instituição de ensino e a não aceitação dos colegas e servidores da instituição, o que resulta o índice de evasão escolar de pessoas trans é de 82% nas escolas 129


brasileiras. De acordo com a socióloga Berenice Bento (2011) não se trata de evasão escolar, mas sim em expulsão, justamente pela falta de reconhecimento e respeito, sendo a escola um território reprodutor dessas desigualdades e normas. Nesse sentido, Luma Andrade (2015) nomeia esse fator como exclusão involuntária e Kaio de Souza Lemos (2020) denomina de processos de silenciamento, para pensar tais dispositivos de poder de acordo com Megg Rayara de Oliveira (2020). Além disso a pesquisa publicada pela ANTRA em 2018 informa que 90% das pessoas trans* no Brasil, que não concluem o ensino básico, encontram na prostituição uma das possibilidades mais viáveis de sobrevivência. 4 ALGUMAS QUESTÕES NA EDUCAÇÃO E AS TRANS-IDENTIDADES Os debates e teorias sobre gênero e sexualidade nas escolas ganham visibilidade acadêmica, depois dos anos 2000. No entanto, as trans-identidades pouco aparecem como marcador das diversidades na escola, e só começam a emergir produções acadêmicas feitas por pessoas trans* (inclusive no campo da educação), depois dos anos 2010. Porém, ainda é importante evidenciar que poucas pessoas trans* estão nos espaços de ensino superior. De acordo com a pesquisa realizada pela Andifes (2018), além disso ainda são poucas as universidades públicas brasileiras que têm ações afirmativas para pessoas trans*. Anterior às ações afirmativas, a única política de acesso e permanência voltada à população trans* nas universidades era a política de nome social. As ações afirmativas e essas políticas demonstram a importância da autonomia universitária na criação de resoluções e políticas internas que garantam o acesso e também a permanência de pessoas trans* no ensino superior. Outras políticas no campo da Educação são também importantes e não se focam apenas na universidade. Exemplo disso é que desde de 2014 o nome social pode ser solicitado para a realização da prova do ENEM visando o combate ao preconceito e ao constrangimento e outra política importante é o Decreto 8.727 de 2016, que garante seu uso em instituições públicas. No caso das instituições de ensino básico, campo de principal dificuldade de permanência para pessoas trans*, há o parecer CNE/CP nº 14/2017 que normatiza nacionalmente o uso do nome social na educação básica. E em 2018, a resolução CNE/CP nº 1 define o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares. 130


5 CONSIDERAÇÕES É interessante destacar a importância de abordar temáticas de gênero e sexualidade no campo educacional, sobretudo em relação às trans-identidades ainda são pouco abordadas. Cabe também destacar a importância de políticas destinadas à inclusão de pessoas trans* na educação como forma de promoção de cidadania e de uma educação mais diversa e plural e que elas não sejam vista apenas por uma perspectiva cisgenerificada, como aponta Thiffany Odara (2020), que se paute no combate à violência acometida contra pessoas trans* nos espaços de ensino. REFERÊNCIAS BENTO, B. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista de Estudos Feministas, v.19, n. 2. maio-ago. 2011. pp. 548-559. BENTO, B.. O que é transexualidade. São Paulo. Brasiliense, 2008. CONNELL, Raewyn. Questões de Gênero e Justiça Social. Século XXI, Revista de Ciências Sociais, v.4, no 2, p.11-48, jan./jun. 2014. JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos / Jaqueline Gomes de Jesus. Brasília, 2012. KAAS, Hailey. “Trans* – Termo guarda-chuva”. Transfeminismo, São Paulo (SP), 02/2013. [blog] Disponível em: http://transfeminismo.com/trans-umbrella-term/. Acesso em: 18/07/2019. LEMOS, Kaio Souza; MEDEIROS, Jarles Lopes de. O nome que sou: Práticas e experiências de pessoas trans na educação. Direitos humanos para a diversidade: diálogos transdisciplinares em educação. Torres, Antonia Lis Maria Martins (org.); et al. Organizadores: Antonia Lis de Maria Martins Torres, Jarles Lopes de Medeiros e Patrícia Helena Carvalho Holanda; Prefácio de Gisafran Nazareno Mota Jucá. - 1 ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020. 308 p. MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças/ Richard Miskolci. – 2. Ed. rev. E ampl., 2. Reimp. – Belo Horizonte: Autêntica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, 2015. – (Série Cadernos da Diversidade; 6). NOGUEIRA, Luma. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem 131


normativa/ Editora Léa Carvalho. 1 ed. Rio de Janeiro: Metanoia, 2015 ODARA, Thiffany. Travestilizando a Educação/ Thifanny Odara. 1ª Edição/ Salvador – BA. Editora Devires, 2020. OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Nem ao centro nem a margem! Corpos que escapam às normas de raça e de gênero. 1ª Edição/ Salvador – BA. Editora Devires 2020. p.266. RODOVALHO, Amara Moira. O cis pelo trans. In: Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, 25(1): 422, janeiro-abril/2017. RUBIN, Gayle. “Thinking sex: notes for a radical Theory of the Politics of sexuality”. Tradução: Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade Gayle Rubin. http://especiais.correiobraziliense.com.br/violencia-e-discriminacao-roubam-de-trans exuais-o-direito-ao-estudo http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/11/1834166-73-dos-jovens-lgbt-dizem-t er-sido-agredidos-na-escola-mostra-pesquisa.shtml https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos2017-antra.pdf https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/05/ao-menos-12-universidades-feder ais-do-pais-tem-cotas-para-alunos-trans.html

132


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO DISCUSSÕES SOBRE HOMOSSEXUALIDADE(S) MASCULINA(S) EM UM CANAL DO YOUTUBE Anderson Moraes Pires andeersonpires@gmail.com Universidade Federal do Ceará (UFC) Kevin Samuel Alves Batista kevin.sab@gmail.com Faculdade Princesa do Oeste Francisco Henrique Cardoso da Silva henriquecardoso220@gmail.com Faculdade Princesa do Oeste 1 APRESENTAÇÃO Há uma ordem de gêneros e sexualidades que, de acordo com Borrillo (2010), concebe, por exemplo, a homofobia e o sexismo como uma ideologia organizadora das relações entre os sexos. No âmago dessa ideologia, ainda segundo o autor, o masculino está vinculado ao universo exterior e político, ao passo que o feminino reenvia à intimidade e à vida doméstica. Podemos ver que A origem da justificativa social dos papéis atribuídos ao homem e à mulher encontra-se na naturalização da diferença entre os dois sexos: a ordem (chamada “natural”) dos sexos determina uma ordem social em que o feminino deve ser complementar do masculino pelo viés de sua subordinação psicológica e cultural (BORRILLO, 2010, p. 30).

Nesta ordem, o sexismo contribui para a constituição da identidade masculina que, em nossa cultura, é alvo de uma vigilância que controla, e quase impede, as expressões físicas de amizade e de afeto entre homens (LOURO, 2000). Essa lógica de produção da cis-heterossexualidade desemboca também na rejeição da homossexualidade que, segundo Louro (2000), geralmente se expressa por declarada homofobia. Dessa forma, as experiências de pessoas que se percebem com interesses e desejos afetivos e sexuais distintos da norma heterossexual configuram-se violentas. Nesse ínterim, a homofobia se estabelece “como mais um importante obstáculo à expressão de intimidade entre homens. É preciso ser cauteloso e 133


manter a camaradagem dentro de seus limites, empregando apenas gestos e comportamentos autorizados para o ‘macho’.” (LOURO, 2000, p. 29). Prado (2010) menciona que a homofobia tem sido discutida como um dispositivo de vigilância das fronteiras de gênero que, inclusive, atinge todas as pessoas, independente da orientação sexual. Ou seja, é possível concordar que a homofobia se encontra não apenas na esfera individual e psicológica, e sim em dimensões sociais e politizadas. É importante demarcar que a tradição judaico-cristã fomentou a concepção de controle sobre o sexo que, consequentemente, fez com que os homossexuais fossem vistos como “cidadãos de segunda classe” (ARAÚJO, 2011). Apesar de ser bastante argumentado entre pesquisadoras/es da temática de gênero e sexualidade, e que também concordemos com isso, assinalamos também que as representações dos gays “criadas a partir do discurso jornalístico podem determinar e/ou intensificar o processo de marginalização dos homossexuais na sociedade, excluindo-os do exercício da cidadania e contribuindo para o crescimento da homofobia” (DARDE, 2008, p. 225). Alinhados com essa contribuição de Darde (2008), nos interessamos pela identificação dos discursos contemporâneos acerca das homossexualidades masculinas nas mídias digitais, especificamente no YouTube, que difere do texto jornalístico, o qual se relaciona majoritariamente com o conceito de verdade e objetividade, embora parta do olhar subjetivo de uma pessoa. 1.1 IMPORTÂNCIA / JUSTIFICATIVA A escolha pela temática aparece, inicialmente, pelos atravessamentos pessoais do primeiro autor deste trabalho, pelo interesse em compreender, enquanto está experienciando, os fenômenos que atravessam a questão da masculinidade e da homossexualidade. É, em certa medida, uma forma de lutar contra um sistema fundado e mantido pela lógica cis-heterossexual. Também é um trabalho que se interessa pelos diálogos contemporâneos sobre homens e masculinidades. Visto que o Brasil continua a ser um país que mais se tem ocorrência de agressões e mortes contra homossexuais e, de modo geral, pessoas LGBTQIA+ (GASTALDI et al., 2021), este trabalho também se justifica pela necessidade de continuar questionando e analisando os discursos sociais que, nos últimos anos, têm 134


circulado nos espaços virtuais. A homofobia, nesse caso, é tensionada para além da aversão, desprezo, ódio ou medo – emoções negativas – no âmbito intrapessoal, pois Prado (2010) compreende que as instituições sociais também precisam ser vistas em conjunto com os “indivíduos” e “grupos homofóbicos”. 2 OBJETIVO O objetivo deste trabalho é identificar e analisar as discussões sobre a homossexualidade masculina apresentadas pelo canal Quebrando o Tabu, no YouTube, durante o ano de 2020. 3 MÉTODO Este trabalho tem abordagem qualitativa e se classifica enquanto uma pesquisa exploratória, com base na compreensão experiencial, e se relaciona com o nosso objetivo à medida que busca conhecer o universo dos significados (YIN, 2016). O método utilizado é o de etnografia de tela, para conseguirmos construir significados e relacioná-los com os saberes que circundam os meandros do social (RIAL, 2005). De acordo com Rial (2005), a etnografia de tela exige longo período de contato com os materiais; registro em caderno de campo; observação sistemática; e escolhas de cenas mais aprofundadas. Assim, elegemos essas considerações da autora como critérios para a realização deste trabalho. O canal Quebrando o Tabu foi escolhido por nós porque tem destaque na plataforma do YouTube no que tange gênero e sexualidade. E estabelecemos como critérios de inclusão26: vídeos publicados no ano de 2020; vídeos públicos; e que 26

Vídeo um: Paulo Gustavo está cancelado? (https://www.youtube.com/watch?v=3ZHM56Y2gsw&t=1s) Vídeo dois: SER GAY NA ESCOLA É FODA! (https://www.youtube.com/watch?v=QXhkBwDppHw) Vídeo três: SAC QUEBRANDO: HOMENS NO CARNAVAL (https://www.youtube.com/watch?v=2kS1EcMROhI) Vídeo quatro: SAC QUEBRANDO: CASAMENTO GAY (https://www.youtube.com/watch?v=GVGx5ijs_oY) Vídeo cinco: MEU RELACIONAMENTO ABUSIVO GAY (https://www.youtube.com/watch?v=mCv1R8gVjSg) Vídeo seis: ESSA É A DITADURA GAY ??? (https://www.youtube.com/watch?v=DaE5b8KTDG4) Vídeo sete: SAC QUEBRANDO: SAINDO DO ARMÁRIO (https://www.youtube.com/watch?v=MFZ5VBbu4o4) Vídeo oito: SAC QUEBRANDO: GÊNERO E SEXUALIDADE (https://www.youtube.com/watch?v=JyKwSzBubKk)

135


fizessem referência direta e indireta, no título ou na thumbnail – miniatura de imagem –, à homossexualidade masculina. A análise temática proposta por Braun e Clarke (2006) foi seguida, especificamente, as etapas de familiarização com os dados, busca, revisão e definição dos temas, e produção final da análise. As autoras consideram que a análise temática “deve ser vista como um método fundamental para análise qualitativa [...], pois fornece habilidades básicas que serão úteis para realizar muitas outras formas de análise qualitativa” (BRAUN; CLARKE, 2006, p. 04). 4 CONSIDERAÇÕES O que chama atenção em todos os vídeos analisados é o modo como a mensagem é transmitida sem rodeios, sem maquiar as experiências e expressões utilizadas entre as pessoas LGBTQIA+, e que consegue estabelecer certa conexão com as pessoas que assistem aos vídeos – pessoas com diferentes identidade de gênero e orientação sexual, como observado nos comentários. Além disso, o humor foi utilizado, predominantemente, em quatro dos nove vídeos selecionados, no quadro “SAC Quebrando”, ação que consideramos fértil, pois ameniza o tom, mas que não abandona a seriedade em torno da temática, a exemplo de uma colaboração feita no vídeo “SAC QUEBRANDO: GÊNERO E SEXUALIDADE”: “Eu gosto de estimulação anal, porém, não sou gay. Meus amigos não entendem muito isso”. Os vídeos se relacionam entre si, pois versam acerca da homossexualidade masculina a partir de temas que estão conectados. Assim, embora não tenha sido a primeira produção publicada no ano de 2020, elegemos o vídeo “SAC QUEBRANDO: SAINDO DO ARMÁRIO” como um possível ponto de partida, pois há uma pressão social a respeito desse momento (SEDGWICK, 2007) que deveria ser pessoal, mas se torna um grande acontecimento familiar, na escola e/ou ambiente de trabalho. O vídeo “SAC QUEBRANDO: HOMENS NO CARNAVAL” mostra sua importância com o tema deste trabalho a medida em que Vitor diCastro, apresentador e roteirista, fala: “[...] e eu não sei se você já percebeu, mas eu Vídeo nove: Eles "SAÍRAM DO ARMÁRIO" para os pais (https://www.youtube.com/watch?v=2_Yruou2krI)

136


também sou um homem [gay]. E eu estou aqui pra te lembrar que homens gays podem ser muitos babacas, porque vivemos em uma sociedade machista” (sic). Nesse sentido, Louro (2000, p. 29) menciona que “Meninos e meninas aprendem, também desde muito cedo, piadas e gozações, apelidos e gestos para dirigirem àqueles e àquelas que não se ajustam aos padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem”. Assunto que é abordado no vídeo “SER GAY NA ESCOLA É FODA!”, onde Vitor menciona que, no contexto escolar, “não posso ser gay, não posso demonstrar uma feminilidade, não posso desmunhecar, não posso dançar do jeito que quero dançar, não posso falar do jeito que quero falar, porque todo mundo vai me zoar com isso” (sic). Em síntese, os vídeos do canal Quebrando o Tabu, no ano de 2020, conseguiram abordar a temática, do ponto de vista das reivindicações dos movimentos LGBTQIA+ brasileiros, de maneira responsável. Também conseguiram demonstrar que, apesar das dificuldades e impossibilidades de existências, é possível produzir uma narrativa que transmite o respeito à diferença e inclusão, pois não existe apenas uma maneira cristalizada de ser homem e homossexual. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Jair Bueno de. A (des)construção do discurso do corpo homossexual masculino: uma trajetória histórica da desnaturalização dos dispositivos de poder. 2011. 104 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2011. BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. DARDE, Vicente William da Silva. A construção de sentidos sobre a homossexualidade na mídia brasileira. Revista de Biblioteconomia e Comunicação (UFRGS), v. 14, p. 223-234, 2008. GASTALDI, Alexandre Bogas Fraga et al. (Orgs). Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil - 2020: Relatório da Acontece Arte e Política LGBTI+ e Grupo Gay da Bahia. 1. ed. Florianópolis: Editora Acontece Arte e Política LGBTI+, 2021. 79 p. LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. In: ______. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução dos artigos: Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 07-34. 137


YIN, Robert K. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Tradução de Daniel Bueno. Porto Alegre: Penso, 2016. PRADO, Marco Aurélio Máximo. Homofobia: muitos fenômenos sob o mesmo nome. In: BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. RIAL, Carmen Silvia. Mídia e sexualidades: Breve panorama dos estudos de mídia. In: GROSSI, Miriam; BECKER, Simone; LOSSO, Juliana; PORTO, Rozeli; MULLER, Rita de Cássia. (Org.). Movimentos Sociais, Educação e Sexualidades. 1. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 107-136. SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, n. 28, p. 19-54, 2007.

138


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO TRAVESSIAS EM UTOPIAS: CULTURA POPULAR, FEMINISMO NEGRO E PROCESSOS EDUCATIVOS Vanessa Soares dos Santos soaress.van@gmail.com Universidade Federal de São Carlos - campus Sorocaba 1) APRESENTAÇÃO/ INTERESSE DO TRABALHO A SER APRESENTADO As brincadeiras populares são heranças que nossos ancestrais nos deixaram. Foram formas elaboradas que os escravizados forjaram para resistir ao apagamento das suas culturas e suas vidas (MUNANGA e GOMES, 2004). É sabido que as manifestações populares afro-brasileiras, surgem no período

escravocrata

e

continuam

firmadas

em

comunidades

negras

remanescentes. As manifestações, brincadeiras e folguedos populares de matriz africana têm uma relação direta com a escravidão, pois foi com os saberes dos negros escravizados, vindos de África e na relação entre eles, que surgem as diversas vertentes culturais e religiosas que temos no legado brasileiro. Os saberes tradicionais são lógicas de organização civilizatória pautadas em fundamentos ancestrais e produção de conhecimento acerca das relações humanas. Os agentes culturais destes movimentos, são produtores de ciência. A oralidade assume um papel fundamental, já que na maioria das tradições populares, ela é o meio mais importante de transmissão. Revitalizar uma tradição não significa apenas reavivar as configurações do passado, mas também dar novos significados às formações singulares, revelando um novo todo, seja para quem faz parte de uma comunidade tradicional, seja para quem

pesquisa, pratica e reproduz esses

saberes. Na oralidade está mais que uma memória, na maneira que se fala, está um processo histórico cultural. A língua é uma forma de poder, e a disputa por narrativas está cada vez mais acirrada. No fazer das brincadeiras populares, através de histórias (lembranças e memórias), das músicas e da mitologia é construído um espaço histórico de pertencimento. Na religião de matriz africana, as mulheres negras são consideradas a base de 139


sustentação, o alicerce, chamadas de Yabás27, que são as matriarcas cuidadoras, estimadas as guardiãs da religiosidade negra brasileira. Mesmo

fundamento se

aplica às manifestações tradicionais, uma vez que entendemos

que são

indissociáveis uma da outra no seu surgimento em solo brasileiro. Difícil dizer uma manifestação cultural que não tenha relação com a religiosidade afro-brasileira, seja na relação espiritual com a mitologia dos Orixás e Entidades, seja na concepção da roda, que representa a vida e o lugar em que ocupamos no mundo e em tantas outras simbologias e estruturas. Embora, estes mesmos fundamentos por muito tempo impediram essas mesmas mulheres de terem autonomia em ocupar todas as funções dentro de uma manifestação. Quase sempre há uma mulher na liderança e no sustento da organização desses brinquedos, lideranças de muito poder, mas que raramente são reconhecidas, pois o que vai para o mundo é a parte da música, que em muitas manifestações e folguedos, é hegemonicamente masculino. Houve uma resistência muito grande dessas mulheres para que o candomblé, útero gerador da cultura, permanecesse vivo, para que pudessem cultuar sua fé nos terreiros em épocas em que isso era proibido, e ainda hoje, continuam tentando cercar e proibir as práticas religiosas e culturais de matriz africana. Embora haja uma contradição, são essas histórias de força, valentia e

respeito que são

perpetuadas através do ensinamento oral que mantém as relações de tradição dentro das manifestações. Os processos de transmissão

de saber nas

comunidades tradicionais se dão na oralidade. É a partir da memória, dos valores ancestrais que se funda um modo de ver o mundo. Se dá no cotidiano da vida, não há uma preparação para as relações de aprendizado É através da figura da mestra (ou do mestre) que se dá a relação de pertencimento à brincadeira. As brincadeiras populares tradicionais são complexas, cheias de símbolos, significados e representações. É preciso uma imersão para vivenciá-las e compreendê-las. O processo de formação de educadoras deveria garantir um tempo de imersão em

educadores e

experiências de cultura

popular brasileira, porque nenhum livro, nenhuma tese, nada consegue realmente dizer o que é efetivamente, só a vivência. A vivência na cultura popular possibilita o saber pelo corpo. Temos muito a aprender com as culturas tradicionais de matriz 27

Yabás são as líderes religiosas da religião de matriz africana, popularmente conhecidas como “mães de santo”.

140


africana, lembrando que África é mulher e é mãe. 1.1 Importância /Justificativa do trabalho As mulheres negras, mestras e líderes de comunidades tradicionais e movimentos sociais têm produzido sentidos. Sentidos de vida. As comunidades tradicionais da cultura popular são territórios férteis de vivências e saberes que podem potencializar a nossa vida. As brincadeiras populares nos possibilitam entrar em contato com diversas experiências educativas. Na cultura popular deparamos com uma educação mais pautada na liberdade (hooks, 2017).

nos Na

cultura popular o que existe são modos de vida singulares, cada lugar é de um jeito, cada comunidade, cada festa, cada brincadeira. Não há uma cartilha e nem se deve criar: é espontâneo, vivo, contínuo. É preciso que olhemos para estes saberes e modos de vida em contraponto ao projeto político de apagamento do sujeito negro como sujeito histórico, como sujeito que escreve sua própria história. Isso inclui, a relação com toda a gramática colonial eurocêntrica-hegemônica, que consiste na hierarquização de saberes e na projeção de uma supremacia branca no que diz respeito a outros saberes e modos de vida. Aproximemo-nos cada vez mais junto à gramática brasileira do pretuguês (Lélia González, 1984), presente na estrutura e fundamento das matriz africana

brincadeiras tradicionais e, que valoriza as reminiscências de que constituem o povo brasileiro. Na perspectiva feminista da

linguagem, segundo Lélia González (1984), essas mulheres, quem fundaram os saberes desta nação, que na função de “mães pretas”, ensinavam seus saberes às crianças brancas, como a língua. O processo de produção de sentidos na luta dessas mulheres negras, não só desestruturam os sistemas de produção da necropolítica (Achille Mbembe, 2018) nesse mundo ocidental, mas, além disso, é a busca pela liberdade, pela integridade de suas comunidades, é a luta contra o

apagamento, a pasteurização e

fragmentação da vida, contra o despedaçamento que o sistema escravocrata nos deixou como legado e que é perversamente atualizado pelo capitalismo nos dias atuais. É uma rachadura profunda criada no solo da dignidade da população negra, cisão corpo-mente (bell hooks, 2017), teoria e práxis, natureza e cultura, língua culta e linguagem informal, erudito e popular, privado e público, profano e sagrado. Quando tiramos do 141


esquecimento e iluminamos a potência de vida das brincadeiras tradicionais, aos cuidados de mulheres negras no lugar de mestras, guardiãs de saberes ancestrais, nos aproximamos da oportunidade de incitar em cada uma de nós, mulheres, o valor de reconhecer a nossa caminhada até aqui, onde estamos... e nos nutrirmos para continuar. 2 OBJETIVOS Percebemos que esse percurso é possibilitado com o apoio de algum modo, em algum momento da vida, nas tecnologias ancestrais, como por exemplo, de nos perceber enquanto seres inteiras conectadas, com a

ancestralidade, com a

natureza, com o sagrado que somos e que habita em

nós, com a ciência na

produção de conhecimento. Queremos ouvir os chamados de direcionar e atentar o olhar para as trajetórias ancestrais, para o quanto esses saberes nos inspiram, nos ensinam modos e perspectivas

decoloniais de relacionamento conosco, com o

outro, com o mundo. E está impresso no legado que essas mulheres negras tem construído e nos deixado. Olhar e ouvir essas trajetórias, nos convida a pensar sobre o potencial

educativo presente na memória. Trazem elementos que nos

sugerem um entendimento integral de vida, podemos enxergar a força de criação dessas mulheres, em novas gramáticas, novos repertórios, novos modos, e então podemos imaginar novos horizontes políticos de constituição de sociedade e cultura abarcando os diferentes saberes e as diferentes vozes que configuram os tecidos desse país. 3 METODOLOGIA Quando nós, pessoas negras, firmamos o desejo de sair da “lata de lixo da sociedade brasileira” (GONZALEZ, 1984), e buscamos formas de concretizar esse desejo insurgente, é quando produzimos novos códigos de existência, novos pactos e modos de vida, baseados nas nossas experiências enquanto povo negro. É um desafio transformar em palavras a ppotência da brincadeira e das mulheres que mantém a tradição em movimento. É grandioso demais, e muitas das vezes não cabe na palavra do dizível. Por isso, o

percurso também, tal qual a própria

brincadeira é feita em conjunto, feito roda de ciranda de Lia de Itamaracá. Intui-se sempre juntar mão com mão de múltiplos referenciais, teóricos ou não, visto que a 142


pesquisa no território da cultura popular, da pedagogia engajada não é apenas de cunho teórico. É preciso convocar as vivências, as histórias, as lembranças, os mapas do saber que se dá na vivência. Há tanto ainda, para viver, por aprender, por dizer. 5) CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Esses novos horizontes educativos-políticos que as brincadeiras populares e as mulheres negras que as sustentam nos propiciam, estão muito relacionados à passagem, ao deslocamento. Uma travessia da calunga grande, que é o grande mar atlântico, onde vamos nos fortalecer e nos inspirar em diásporas. Vamos nos embeber desse mar, nos tornar todas atlânticas28 para transitar e transformar, de modo fluído, estratégico, rompendo com o tempo, a lógica e a norma ocidental. Estamos criando fendas no tempo do impossível, construindo territórios, disputando narrativas, resgatando uma força milenar

para sair dos escombros que fomos

jogadas. Estamos construindo utopias (DAVIS, 1997). Eu realmente penso que utopia é quando a gente se move em novas direções e visões. Utopia no sentido de que necessitamos de visões para nos inspirar e ir para frente. Isso tem que ser global. Precisamos achar um modo de dar conta e saber como vamos interligar nossas lutas e visões e chegar a algumas conclusões sobre como desenvolver novos valores revolucionários e, principalmente, como desatrelar valores capitalistas de valores democráticos (DAVIS, 1993, p.111).

REFERÊNCIAS HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017. GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs. p.223-244. 1984. MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições, 2018. MUNANGA, Kabenguele; GOMES, Nilma L. Para entender o negro no Brasil de hoje: História, problemas e caminhos. São Paulo: Global: Ação Educativa. 28

Referência à Beatriz Nascimento, no livro RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial/Instituto Kuanza, 2007.

143


Assessoria, Pesquisa e Informação, 2004.

144


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO DESBRAVANDO CAMINHOS PARA A DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE NAS AULAS DE ARTE DO ENSINO MÉDIO Jocy Meneses dos Santos Junior jocy.meneses@gmail.com (PPGACV/UFG) Jarlisse Nina Beserra da Silva jarlisse@hotmail.com (PROFEI/UEMA) Conceição de Maria Oliveira Souza conceicaopaixao503@gmail.com (PPGEB/UFMA) 1 APRESENTAÇÃO Gilmar Mendes, Ministro do Supremo Tribunal Federal, assevera que “as normas

legais que estabelecem a discussão sobre questões de gênero e

sexualidade nas escolas

estimulam os valores do pluralismo, da tolerância,

compreensão e empatia, contribuindo para que atos de violência e discriminação contra minorias sejam superados” (MENDES, 2020, p. 35). Compreendendo que mulheres cis e a comunidade LGBTQIA+ são alvos frequentes de discriminação e violências na sociedade brasileira, inclusive nas escolas, se faz salutar a discussão sobre gênero e sexualidade em sala de aula, a fim de

desconstruir ideias

preconceituosas e os comportamentos nelas pautados. A teoria e a prática da Arte podem ser utilizadas, com respaldo nos documentos

curriculares nacionais, para fomentar discussões a respeito da

construção social de diferenças que marginalizam e oprimem grupos minoritários com base em sua identidade de gênero e orientação sexual, contribuindo, dessa forma, para a promoção de direitos humanos e o enfrentamento de violências. 1.1 Justificativa A onda ultraconservadora que atinge o Brasil em diversas frentes tem como um de seus maiores objetivos impedir – e até mesmo criminalizar – a discussão sobre gênero e sexualidade no espaço escolar. Frente a esse cenário, impõe-se a 145


necessidade de conhecer os instrumentos que regem a educação brasileira, a fim de propor de forma respaldada a reflexão sobre esses temas em sala de aula. 2 OBJETIVO Este escrito tem por objetivo apresentar, nos documentos que regem o Ensino Médio brasileiro, orientações e recomendações que, direta ou indiretamente, versam sobre a importância da discussão sobre gênero e sexualidade no contexto escolar, destacando o papel da arte-educação no estímulo a um olhar sensível a respeito dessas temáticas. 3 METODOLOGIA O desenvolvimento da pesquisa ocorreu em duas etapas. Na primeira delas, foi realizado um levantamento das normas que regem a Educação Básica no Brasil, com ênfase na etapa do Ensino Médio, buscando dispositivos que demonstrem a necessidade da discussão sobre questões como as de gênero e sexualidade em contexto escolar.

Dentre os documentos estudados, estão a Lei de Diretrizes e

Bases da Educação (BRASIL, 1996), o Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014), as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2018a), o Programa Nacional de Direitos Humanos (BRASIL, 2009) e as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos

Humanos (BRASIL, 2012). Na segunda etapa,

buscamos, em documentos curriculares

nacionais – a saber: os Parâmetros

Curriculares Nacionais (BRASIL, 2002) e a Base

Nacional Comum Curricular

(BRASIL, 2018b) – formas de justificar a proposição de discussões como as aqui sugeridas no contexto escolar. 4 POR QUE DISCUTIR GÊNERO E SEXUALIDADE NAS AULAS DE ARTE DO ENSINO MÉDIO? A Lei de Diretrizes e Bases da Educação aponta, dentre as finalidades do Ensino Médio, o “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (BRASIL, 1996, p. 27837). O Plano Nacional de Educação em vigor traz dentre suas diretrizes a “ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”, a “formação para [...] a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade” e a “promoção dos 146


princípios do respeito aos direitos humanos, [e] à diversidade” (BRASIL, 2014, p. 1). Já as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio estabelecem que um dos princípios a orientar esse nível da Educação Básica brasileira é o “respeito aos direitos humanos” (BRASIL, 2018a, p. 21). Os artigos 20° e 27° das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio determinam a necessidade tanto da “realização [...] de ações fundamentadas nos direitos humanos e nos princípios éticos, de convivência e de participação democrática visando a construir

uma

sociedade livre de preconceitos, discriminações e das diversas formas de violência” quanto da “promoção dos direitos humanos mediante a discussão de temas relativos [...] a gênero, identidade de gênero e orientação sexual, [...] entre outros, bem como práticas que contribuam para a igualdade e para o enfrentamento de preconceitos, discriminação e violência sob todas as formas” (BRASIL, 2018a, p. 23-24). A Base Nacional Comum Curricular atribui “aos sistemas e redes de ensino, assim

como às escolas” o dever de “incorporar aos currículos e às propostas

pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local,

regional e global, preferencialmente de forma transversal e

integradora” (BRASIL, 2018b, p. 19). A BNCC menciona, dentre esses temas, a educação em direitos humanos, fazendo referência expressa a dois documentos: o Programa Nacional de Direitos Humanos e as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. O Programa

Nacional de Direitos Humanos propõe a

“formação de nova mentalidade coletiva para o

exercício da solidariedade, do

respeito às diversidades e da tolerância” como forma de “combater o preconceito, a discriminação e a violência” por meio da “educação transversal e permanente nos temas ligados aos Direitos Humanos e, mais especificamente, o estudo da temática de gênero e orientação sexual, [dentre outros]” (BRASIL, 2009, p. 32). As Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos conceituam a educação em direitos humanos como o “uso de concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos Humanos e em seus processos de promoção, proteção, defesa e aplicação na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de direitos e de responsabilidades individuais e coletivas”. São alguns dos princípios que fundamentam as referidas diretrizes a “igualdade de direitos” e o “reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades” (BRASIL, 2012, p. 48). Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio explicitam o potencial

da Arte de contribuir para o “exercício da cidadania e da ética”, 147


manifestando que o

“intuito do processo de ensino e aprendizagem de Arte” é

“capacitar os estudantes a

humanizarem-se melhor como cidadãos inteligentes,

sensíveis, estéticos, reflexivos, criativos e responsáveis, no coletivo, por melhores qualidades culturais na vida dos grupos e das cidades, com ética e respeito pela diversidade” (BRASIL, 2002, p. 50). Ao versar sobre a área de Linguagens e suas Tecnologias, da qual o componente

curricular Arte faz parte, a Base Nacional Comum Curricular

recomenda que ela seja

explorada de modo a promover um “engajamento

consciente, crítico e ético em relação

às questões coletivas” e a estimular os

estudantes a “refletir e participar na vida pública, pautando-se pela ética” (BRASIL, 2018b, p. 488-489). Tratando especificamente da Arte, a BNCC assevera que ela “contribui para o desenvolvimento da autonomia reflexiva, criativa e expressiva dos estudantes” e é “propulsora da ampliação do conhecimento do sujeito sobre si, o outro e o mundo compartilhado” (BRASIL, 2018b, p. 482). Assim, ao propor que se reflita a partir da teoria e da prática artísticas sobre gênero e sexualidade, se enseja contribuir para que “os estudantes possam assumir o papel de protagonistas como apreciadores e como artistas, criadores e curadores, de modo

consciente, ético, crítico e autônomo” (BRASIL, 2018b, p. 483). Essa

proposição mobiliza,

ainda, campos de ação social pertinentes à área de

Linguagens e suas Tecnologias, tais como o campo da vida pessoal, “de modo a possibilitar uma reflexão sobre as condições que cercam a vida contemporânea e a condição juvenil no Brasil e no mundo e sobre temas e questões que afetam os jovens” (BRASIL, 2018b, p. 488). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão sobre gênero e sexualidade no Ensino Médio atende integralmente ao que é preconizado pelos documentos normativos aqui discutidos. Desse modo, é fundamental que os professores de Arte do Ensino Médio os conheçam e utilizem para justificar a promoção de atividades que instrumentalizem o conteúdo dessa disciplina para incentivar reflexões e discussões sobre esses temas, especialmente no momento que atravessamos, no qual setores reacionários da classe política tentam criminalizar a

discussão sobre gênero no ambiente

escolar, desconsiderando o caráter democrático da 148

educação brasileira, cujo


princípio norteador é a promoção do respeito e da cidadania. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 134, n. 248, p. 27833- 27841, 23 dez. 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio — Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC, 2002. BRASIL. Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3 e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 146, n. 244, p. 17-36, 22 dez. 2009. BRASIL. Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012. Estabelece Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 149, n. 105, p. 48, 31 maio 2012. BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 151, n. 120-A, p. 1-7, 26 jun. 2014. BRASIL. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Resolução nº 3, de 21 de novembro de 2018. Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 155, n. 224, p. 21-24, 22 nov. 2018a. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018b. MENDES, Gilmar. O debate sobre questões de gênero e sexualidade nas escolas e o dever estatal de promover políticas públicas de igualdade e não discriminação. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Diversidade: jurisprudência do STF e bibliografia comentada. Brasília: STF, 2020. p. 35 36.

149


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO POR OUTRA(S) HISTÓRIA(S) OCEÂNICA(S) Matthews Rocha Mello matthews.rocha@gmail.com Graduando em Oceanologia (FURG) lucas lins carneebatatas@hotmail.com Graduande em Oceanologia (FURG) Caio Floriano dos Santos santoscaiof@gmail.com Pós-doutorando pelo Programa de Educação Ambiental (PPGEA-FURG) 1 INTRODUÇÃO Vem sendo disputado, no campo acadêmico da Oceanografia no Brasil, um outro projeto de currículo, mobilizado especialmente por discentes dos cursos de graduação que reivindicam outros conhecimentos necessários à formação acadêmico-profissional. A demanda por componentes curriculares que reconheçam e colaborem com diferentes grupos e dinâmicas sociais é latente em encontros acadêmicos e organizações de base estudantil; porém, a Ciência Oceanográfica presente nas Universidades é (ainda) resistente a propostas que desloquem seu perfil conservador. A Oceanografia hegemônica é performada29 e segue sendo legitimada sob a onto-epistemologia cartesiana e colonialista (Silva, 2019), que dita o que é ou não é (supostamente) científico e que, desde a violência epistêmica, inviabiliza os múltiplos corpos-territórios e seus modos de (re)produzir a vida (Moura, 2019). Entretanto, à medida que avançamos na compreensão desta crise socioambiental há tempos anunciada (e que agudiza com a pandemia de COVID-19), enxergamos a potencial contribuição de outra(s) história(s) na Oceanografia, repensada desde outros discursos e referenciada na luta por justiça dos grupos subalternizados. 1.1 Justificativa

29

Empregamos o termo no sentido da performatividade conceitualizada por Judith Butler, em que a performance é, ao mesmo tempo, produtora e reprodutora da norma/normatividade imposta (Butler, 2013).

150


Esta escrita emerge desta crise do ser (Quijano, 1992), buscando contribuir com as alternativas decoloniais, também a partir das/com as provocações da poética negra feminista (Silva, 2019), as quais se colocam a favor da vida frente às múltiplas dimensões de um corrente projeto de morte. A crise sobre a qual nos referimos está imbricada no modelo hegemônico, que se apropria, por meio da violência de todas as faculdades das mentes, corpos e outros territórios, com o pretexto do progresso econômico, do des-envolvimento30. É um modelo que impõe uma (mono)cultura não apenas sobre o que se denomina natureza, mas também sobre o saber (Santos, 2002), e que tem na Universidade um lugar importante para sua (re)produção. 2 OBJETIVO Assim, este trabalho tem o objetivo de refletir sobre o campo da Oceanografia a partir de um olhar que localiza a narrativa hegemônica como apenas uma das possibilidades, na potência de aberturas para outros fazeres oceanográficos. 3 METODOLOGIA Partimos de leituras, assim como de vivências, que conversam e convergem com outras “áreas” do conhecimento (História, Antropologia, Sociologia, Filosofia etc.) de modo mais integrado, buscando proporcionar, especialmente a partir de uma perspectiva decolonial, uma leitura crítica da Ciência Oceanográfica. 4 CONSIDERAÇÕES É preciso colocar que, frente a este modelo, nunca faltaram alternativas (Acserald, 2008), construídas coletiva e diariamente a partir das lutas dos movimentos sociais (indígena, negro, feminista etc.), que ao resistir e denunciar as violações de direitos fundamentais, produzem conhecimento e reivindicam justiça. Escrevendo outras versões da corrente história, os discursos dissidentes dos movimentos sociais conquistaram espaços na esfera pública e política, que sempre lhe foram negados (inclusive nas Universidades). Essas novas presenças, de mulheres pobres, pessoas negras, LGBTI+, com deficiência, de comunidades e 30

“Des-envolver é tirar o envolvimento (a autonomia) que cada cultura e cada povo mantém com seu espaço, com seu território; é subverter o modo como cada povo mantém suas próprias relações (...) entre si e (...) com a natureza” (Porto-Gonçalves, 2004, p. 39).

151


povos tradicionais, dentre outros grupos sociais historicamente vulnerabilizados, tensionam os limites do projeto de Universidade pública brasileira – a pintam de povo e denunciam o racismo e sexismo na cultura brasileira (Gonzalez, 1984). Essas pessoas vêm disputando a produção de conhecimento, histórias que tentam ser contadas, mas são programadas ao esquecimento, para que apenas uma História, a do sujeito universal, seja pronunciada. Elas vêm questionando este panorama de precariedade da vida e da reprodução desta Ciência eurocentrada, racista, machista e cisheteronormativa, situada no paradigma do “descobrimento”, que padroniza as experiências e coloniza os diferentes modos de ser, saber e poder. As organizações estudantis da Oceanografia vêm tentando escrever outras histórias para este campo, expressa nos encontros acadêmicos locais e nacionais, debatendo e propondo mudanças coletivas para a formação profissional. Porém, esse discurso contra-hegemônico muito timidamente é escutado por quem discute e define o perfil da profissão. Vale lembrar que essa outra proposta não tenta negar ou deslegitimar o conhecimento que já foi produzido, mas problematiza seu caráter de unicidade, como absoluto e verdadeiro e, assim, causa ruído no senso comum, no discurso hegemônico, naturalizante, de suposta neutralidade científica, que expropria as pessoas de suas relações. Durante uma palestra-performance, no ano de 2016 vinculada ao Centro Cultural São Paulo (e reexibida em plataformas digitais), Grada Kilomba, que é professora, artista e escritora interdisciplinar, fez um exercício enquanto nos apresenta sua tese sobre a produção do conhecimento: “Que conhecimento é reconhecido e a quem pertence este conhecimento?”. Pedindo para que as pessoas começassem a conversar com quem estava ao lado, ou até mesmo sozinhas em voz alta, ela continuou a falar, e, inevitavelmente, um grande ruído tomou conta da sala. Era impossível escutar o que Grada falava. Ninguém a escutava, ninguém mais se escutava, tudo virou barulho, uma atmosfera caótica de palavras - que não quer dizer que dentro desse caos não haja experiências importantes e falas necessárias de serem ouvidas, mas ninguém conseguia de fato se ouvir. Este exercício foi pedagógico para demonstrar a dificuldade na produção de outras histórias, principalmente de mulheres negras. Não é que apenas uma história aconteça ou apenas um discurso seja importante, mas que apenas uma experiência prevalece, só um discurso tem sido digno de ser escutado: aquele tachado de científico, em detrimento de todas as outras produções, que sistematicamente são 152


programadas a (se) calar. Conhecimentos que tensionam este currículo tradicional têm sido considerados como irrelevantes para a formação, no máximo ofertados como extracurriculares, quando não tratados como insuficientemente científicos. Mas o que queremos com a Oceanografia? Fazemos coro ao que anunciam Caio, Marcela e Mariana, que “só fará sentido falarmos de Oceanografia Socioambiental se [o] pensarmos como campo de reflexão, mobilização e bandeira de luta, em que o discurso da neutralidade e da técnica, como único, emitidos pela [C]iência [O]ceanográfica, até o presente momento, sejam repensados a partir dos conceitos dos conflitos ambientais e da justiça ambiental. Bem como, um campo em que a prática da educação ambiental pode ser uma das possibilidades do agir da Oceanografia Socioambiental.” (Santos et al., 2019, p. 56).

Queremos disputar o campo da Oceanografia junto a essas pessoas que vêm questionando e trabalhando por um projeto diferente de sociedade e de Ciência, apontando não somente para as feridas coloniais, mas para os caminhos de transformação31. Queremos que as pessoas pobres, negras, LGBTI+, indígenas, de povos de terreiros, da agricultura e pecuária familiar continuem nas Universidades, pintando o projeto branco de Universidade de colorido, desafiando o mundo com sua performance, com seu corpo presente, demonstrando que esse projeto (que também é um de sociedade) está em disputa, e que outro(s) são possíveis. Que a Oceanografia deixe de conhecer sobre elas, e passe a conhecer com elas. Queremos, enfim, escrever outra(s) história(s), que paute(m) a mudança radical em nossos padrões de vida, de relações, de conhecer, de pensar. A Oceanografia Socioambiental, como um eixo transversal à produção do conhecimento (Santos et al., 2019), não é um projeto inovador, tampouco pretende capitalizar ideias ou apaziguar conflitos e costurar discursos que não combinam. Nutrida pela decolonialidade, neste esforço da escuta para que nenhuma voz continue sendo proibida, pautamos a defesa de outras escritas e da diversidade da vida. Orientando-nos pelas perspectivas feministas antirracistas, nos é permitido debater com um olhar histórico, criando uma perspectiva sociológica sobre o conhecimento, importante para pensarmos em categorias que seguem sendo invisibilizadas. É o mesmo projeto que aprimora nossos sentidos para as 31 Na primeira escrita deste texto, utilizamos originalmente a noção de “caminhos de superação”, porém, como apontado por Vanessa Soares dos Santos (a quem agradecemos a contribuição), mais do que na esfera individual, trata-se de um processo coletivo, social, e, portanto, transformador.

153


interseccionalidades do ser e para a desconstrução da concepção biologizante e fixadora a partir da compreensão das diferenças da experiência (Gonzalez, 1984; Lorde, 2019; Lugones, 2014). Apenas assim poderemos, coletivamente, (des)organizar-nos e de(s)colonizar nosso pensamento. E é nesse marco que precisamos continuar a disputa pela produção de um novo currículo. Descolonizar o pensamento, e portanto apontar para uma outra formação, exige coragem para disputar um projeto político; exige transcender a negação de outros conhecimentos e construir junto com as outras ciências produzidas todos os dias em comunidades tradicionais, nas periferias, no cotidiano das mulheres negras, da comunidade LGBTI+ e das juventudes. Imaginemos outras vozes, que não sejam apenas de pesquisadoras(es), mas de todas as outras possibilidades que vem sendo deslegitimadas. Como seria saber e fazer Oceanografia quando esta Ciência assume a importância das interações sociais e as diversidades/dificuldades de ser? Como Grada nos alerta, não há escapatória. Precisamos dar um enterro digno a esta história colonial que nos aprisiona e assombra, para que, sem os fantasmas, possamos construir uma experiência mais bonita. E essa experiência só será possível pela organização política, pela desobediência epistêmica-poética frente à monocultura e à terra arrasada, articulando e situando os conhecimentos múltiplos. REFERÊNCIAS Acselrad, H. Sustentabilidade e articulação territorial do desenvolvimento brasileiro. II Seminário Internacional sobre Desenvolvimento Regional, Santa Cruz do Sul/RS, 2008. Butler, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, Civilização Brasileira, 2013. Gonzalez, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, p. 223-244, 1984. Kilomba, G. Descolonizando o conhecimento, São Paulo, Instituto Goethe, 2016. Lorde, A. Irmã Outsider: Ensaios e conferências, Autêntica, 2019. Lugones, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, 22 (3): 935-952, 2014. Moura, G. G. M. Construção da crítica à oceanografia clássica: contribuições a partir da oceanografia socioambiental. Ambiente e Educação, 24 (2): 13-41, 2019. Porto-Gonçalves, C. W. O desafio ambiental. Record, 2004. 154


Quijano, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Revista del Instituto Indigenista Peruano, 13 (29): 11-20, 1992. Santos, B. de S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63: 237-280, 2002. Santos, C. F. dos; Martins, M. S. L.; Mascarello, M. de A. Oceanografia socioambiental: O que queremos com isso?. Ambiente e Educação, 24 (2): 41-67, 2019. Silva, D. F. da. A dívida impagável, ed. Oficina de Imaginação Política, 2019.

155


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO CINEMA IMPLICADO E PEDAGOGIAS TRANSGRESSORAS: PAUTANDO AS DISSIDÊNCIAS SEXUAIS E DE GÊNERO NAS ESCOLAS Julia Araújo Ferreira da Silva juliaaraujofs@gmail.com Mestranda em Cultura e Sociedade (UFBA) 1 APRESENTAÇÃO Este trabalho surge a partir de pesquisa realizada durante o curso de especialização em Cultura e Educação (Flacso Brasil) e desenvolvida com base em experiências cineclubistas realizadas por um coletivo do qual faço parte, chamado Fluxo Cineclube, com turmas de ensino médio de escolas da rede pública de ensino das cidades do Rio de Janeiro e Duque de Caxias durante o ano de 2019. A partir da exibição de curtas-metragens nacionais que trazem subjetividades dissidentes e dialogam com proposições transgressoras e contra-hegemônicas, buscou-se realizar discussões com os estudantes e professores presentes sobre desconstrução de normatividades e construção de imaginários e identidades, com foco em questões relacionadas às dissidências sexuais e de gênero. Tendo a escola como instituição que reflete as relações sociais do contexto histórico-cultural no qual está inserida, se configurando como um local de disputa de discursos, sendo ao mesmo tempo ambiente de regulação e normatização e também um espaço potente de questionamentos e transformação, busco dialogar como um cinema implicado32 - um cinema que esteja densamente vinculado ao mundo e a tudo que o constitui (SANTOS, 2020, p.10) - pode ser uma possibilidade de pedagogia transgressora que intervém nos imaginários e visões de mundo. 1.1 Justificativa As atividades aqui analisadas ocorreram durante o ano de 2019, momento que marca o crescimento de uma onda conservadora na política e sociedade 32 Santos parte das sugestões da filósofa e artista Denise Ferreira da Silva acerca das possibilidades de destruição do Mundo Ordenado e da emergência de outros modos de ser e saber que permitem a Implicação como gesto fundamental da existência e do conhecimento. A travessia do Mundo Ordenado para o Mundo Implicado requer que deixemos para trás modos de saber, sentir e fazer. (2020, p.12)

156


brasileira refletido nos resultados das eleições presidenciais, que tem na questão LGBTQIA+, na educação e na cultura alguns de seus principais locais de embate, tendo o silenciamento do questionamento às normas e do pensamento crítico como caminho. Esse processo tem reverberado no ambiente escolar, criando uma tensão latente com relação ao debate de pautas relacionadas a gênero e sexualidade, já historicamente

silenciadas

nesses

espaços.

As

professoras

dos

colégios

participantes nas atividades aqui analisadas ainda reforçaram a relação desse silenciamento com a presença cada vez maior de discursos ligados a religiões evangélicas neopentecostais33 no cotidiano escolar por meio das famílias de estudantes e de alguns funcionários das escolas. Louro (2012, p.364) aponta que a educação tem se constituído historicamente como um campo disciplinador e normalizador, local do regramento e da obediência, a serviço da manutenção dos discursos hegemônicos. Ela nos propõe o estranhamento do currículo e das práticas no cotidiano escolar a partir da proposta de uma pedagogia queer34, voltada para o processo da produção das diferenças, problematizando a instabilidade e precariedade de todas as identidades, trazendo como foco a potência dos questionamentos, não das certezas. As comunidades escolares são formadas por relações e indivíduos ativos, que ao escolherem seus discursos e metodologias assumem posicionamentos que reverberam e dialogam com a comunidade ao seu redor, sendo não só reprodutor, mas responsável pela constante reformulação das relações sociais. Estratégias possíveis são apontadas justamente por pedagogias críticas e radicais (HOOKS, 2013) que trazem o diálogo, a transgressão e o questionamento como caminhos, contestando os regimes de verdade e visando um processo de ruptura e desaprendizagem das normas. O momento atual, portanto, coloca a escola mais ainda como um local de disputa de discursos, visto que, apesar da onda

33

"[...] os protagonistas mais visibilizados do conservadorismo moral religioso nos últimos anos têm sido os evangélicos pentecostais que entraram, mais do que em qualquer outro momento, na disputa pela moralidade pública para maior controle dos corpos, dos comportamentos e dos vínculos primários." (ALMEIDA, 2017, p.17) 34 Conexão proposta entre o pensamento queer e a educação. “Aposto na possibilidade dessa conexão e, para argumentar, preciso recuperar o queer como um conjunto de saberes (mais do que como uma teoria que lembraria sistematização e estrutura) e como disposição política. [...] Não são apenas novos temas ou novas questões que têm sido levantadas. São transformações que dizem respeito a quem está autorizado a conhecer, ao que pode ser conhecido e às formas de se chegar ao conhecimento.” (LOURO, 2012, p.365)

157


conservadora, questionamentos às estruturas sociais que geram desigualdades têm se tornado mais presentes em produções culturais de grande alcance e, principalmente, nas redes sociais, o que leva esses debates ao cotidiano dos jovens. 2 OBJETIVOS Esse cenário de tensão foi um dos impulsionadores para a realização das atividades cineclubistas aqui analisadas, na medida em que essa disputa de imaginários é uma questão em pauta também no cinema brasileiro contemporâneo, com diversos realizadores, curadores e coletivos buscando transformar o ambiente historicamente perpetuador de desigualdades estruturais e discursos hegemônicos que tem sido o cinema brasileiro, buscando estratégias para o reconhecimento e desmantelamento das estruturas de poder coloniais racistas e cisheteronormativas. Busco, então, pensar na possibilidade do cinema como pedagogia transgressora no sentido dessa cinematografia brasileira contemporânea estimular olhares críticos e opositivos35 para a sociedade e suas normas e estruturas, além de impulsionar fabulações de outros mundos possíveis. bell hooks (2018), dialoga com o pensamento de Stuart Hall (1989) para pensar como obras que rompem com as representações convencionais estereotipadas, racistas e sexistas, convidam o público a olhar de forma diferente, interferindo no processo de construção das identidades. Cinematograficamente, oferecem novos pontos de reconhecimento, incorporando a visão de Stuart Hall de uma prática crítica que admite a identidade como algo que se constitui “não fora, mas dentro da representação”, e nos convida a ver o cinema “não como um espelho de segunda ordem, usado para refletir o que já existe, mas como aquela forma de representação capaz de nos constituir como novos tipos de sujeito e, assim, possibilitar que descubramos quem somos”. (HOOKS, 2018, p.300)

3 METODOLOGIA As sessões cineclubistas foram realizadas com turmas de ensino médio de quatro escolas - três delas estaduais e um colégio federal – localizadas em bairros das zonas oeste e sul da cidade do Rio de Janeiro e no município de Duque de 35

Proposta de bell hooks, a partir da experiência de espectadoras negras, para questionar e confrontar esse cinema que fora reprodutor de estereótipos ou máquina de invisibilização, e construir novas possibilidades de imaginários. (hooks, 2018, p.298)

158


Caxias, na Baixada Fluminense. Como uma das organizadoras do projeto, parto aqui das minhas observações no percurso de construção e realização das atividades. Entretanto, trago também como fonte, para dialogar sobre as reverberações dos debates nas comunidades escolares, entrevistas com professoras e um aluno, responsáveis por organizar as atividades nas escolas. Os curtas selecionados pelo cineclube e exibidos nas atividades analisadas fazem parte desse momento de ampliação da presença de visualidades contra-hegemônicas

no

cinema

brasileiro

e

trazem

a

importância

da

representatividade – no sentido de indivíduos de grupos sociais historicamente invisibilizados estarem por trás e na frente das câmeras – para a construção de novas representações e imaginários. Privilegiamos filmes feitos no Rio de Janeiro, pois a proposta era contar com a presença, sempre que possível, de integrantes das equipes nos debates. 4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Pretendo

me

ater

à

experiência

de

diálogo

proporcionadas

pelos

curtas-metragens Afronte (2017)36 e NEGRUM3 (2018)37, filmes que sugerem táticas de descolonização das imagens e do mundo a partir da articulação entre negridade38 e dissidências sexuais e de gênero (SANTOS, 2020, p.160). O primeiro, foi um dos filmes exibidos durante um evento da Semana da Consciência Negra em um colégio estadual da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro e causou divergências entre os participantes, com alunos saindo da sala e indo até a diretoria questionar a validade da exibição daquele filme na escola, mas ao mesmo tempo sendo o filme mais aplaudido com agradecimentos no final por sua exibição. No debate posterior, o 36

Dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo. Disponível em: https://vimeo.com/234141762 Dirigido por Diego Paulino. Disponível em: https://canaisglobo.globo.com/assistir/canal-brasil/negrum3/v/8366927/ 38 Santos toma emprestada a categoria da negridade como pensada por Denise Ferreira da Silva: “Enquanto a Categoria da Negridade, como índice de uma situação social consistente e repetidamente nunca deixa de significar a escravidão, eu proponho que ela também expõe como a capacidade produtiva expropriada dos africanos escravizados continua a produzir excedente (surplus) no presente global. Mais significativamente, apesar de sua expropriação ininterrupta, o trabalho (simbólico e econômico) negro não desapareceu (como os cientistas do homem previram e esperavam). Para além do capital – e suas arquiteturas coloniais, nacionais e imperiais –, Negridade sinaliza a capacidade criativa, uma qualidade somente perceptível quando se contempla o Mundo como Plenum e não como Universo (totalidade ordenada)” (FERREIRA DA SILVA, 2019, p.95-96 apud SANTOS, 2020, p.160). 37

159


curta levantou também discussões sobre seu caráter interseccional, ao ter sua presença naquela semana deslegitimada por um professor – um homem branco, que se identificou enquanto gay – por, segundo ele, só tratar das temáticas de gênero e sexualidade,

não

de

questões raciais. Apontamento que foi rapidamente

desmontado por um grupo de alunos, com comentários sobre diálogo entre os marcadores sociais que formam as identidades daqueles sujeitos presentes no filme, indo além de ideias como desigualdades e invisibilidade, e trazendo o foco também para as potências presentes nessas identidades não-hegemônicas. O segundo curta foi exibido em um colégio federal no município de Duque de Caxias, em um evento organizado pelos alunos, chamado Semana da Diversidade. Nessa instituição, segundo os alunos organizadores, havia bastante contato com produções audiovisuais e discursos de movimentos sociais, além de forte organização estudantil. Entretanto, o filme causou grande impacto por sua estética e construção narrativa fora dos padrões hegemônicos. Até hoje eu tô impactado com o filme NEGRUM3. É um filme totalmente fora da minha casinha, sabe? [...] É uma coisa muito forte. Eu fiquei ... eu acho que a expressão correta é sem palavras. Eu acho que até hoje eu não consegui digerir tudo daquele filme. [..] São muitas camadas, muita coisa, e é uma explosão. E por mais que tenha me soado um pouco extremo, no sentido de não ser familiar com o que eu tô acostumado a ver, eu acho que esse impacto é importante. Você dar de frente com a narrativa, com a história, com a vivência de pessoas, com a qual você não tá acostumado. Lidar com coisas com as quais você não tá acostumado te faz crescer. Isso é muito importante. (aluno do colégio federal)

Nas

relações

criadas

dentro

das

comunidades

escolares

os

discursos

contra-hegemônicos encontram brechas. Nas atividades analisadas, o cinema funcionou como ferramenta pedagógica, trazendo estéticas e visões de mundo diversas e impulsionando questionamentos que reverberaram nas comunidades escolares, e, assim, causaram tensionamentos nos silêncios e normas impostas naqueles espaços com relação a questões relacionadas às dissidências sexuais e de gênero. Citando novamente um dos alunos do colégio federal: Uma narrativa, uma história, um filme – seja um curta, seja um longa – tem um poder muito grande de transmitir uma mensagem de uma maneira que realmente toca as pessoas. [...] E a gente pegar o cinema, que é uma arma tão poderosa na comunicação e usar isso pra disseminar nossos valores, nossas crenças, o que a gente acredita que deve ser um mundo melhor, eu acho que isso causa um 160


impacto inimaginável nas pessoas.

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Ronaldo de. A onda quebrada: evangélicos e conservadorismo. Cadernos Pagu, n. 50, Campinas, Epub 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cpa/a/Cr9ShrVJbCWsDHMrxTDm3wb/?format=pdf&lang=pt> Acesso em: 05 jun. 2021 CANDIDO, Marcia Rangel; MARTINS, Cleissa; RODRIGUES, Raissa FERES Júnior, João. Raça e Gênero no Cinema Brasileiro (1995-2016). Boletim GEMAA, n.2, 2017. Disponível em: <http://gemaa.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2017/06/Boletim_Final7.pdf> Acesso em: 01 jun. 2021 HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. HOOKS, bell. O Olhar Opositivo: Espectadoras Negras. In: Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. Pp. 291-300. Disponível em: <https://www.festcurtasbh.com/catalogos>. Acesso em: 05 jun. 2021 LOURO, Guacira L. Os Estudos Queer e a Educação no Brasil: articulações, tensões, resistências. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 2, n. 2, jul-dez 2012, pp. 363-369. Disponível em: <http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/87>. Acesso em: 05 jun. 2021 SANTOS, Matheus Araujo dos. Atravessando abismos em direção a um Cinema Implicado: negridade, imagem e desordem. In: Revista Logos, 52, vol 27, n.01., pp.11-24, 2020. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/view/51522/33927> Acesso em: 01 jun. 2021 SANTOS, Matheus Araujo dos. O que o cinema quer da gente é coragem: negridade e dissidência sexual & de gênero nas produções da Rosza Filmes. In: REBECA, 18, ano 9, n.02, pp. 158-173. jul-dez, 2020. Disponível em: <https://rebeca.socine.org.br/1/article/view/704>. Acesso em: 01 jun. 2021

161


EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO INTERVENÇÕES NO ESPAÇO ESCOLAR: PUBLICIDADE, GÊNERO E RAÇA EM DEBATE João Alexandre Jataí Alves alexandre_alves_123@hotmail.com Mestrando em História (PPGH/UFC) Marcela Souza Santos marcela.souzasantos@yahoo.com.br Mestra em História Social (UFC) 1 APRESENTAÇÃO O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) era mantido com recursos federais, voltados a estudantes dos cursos de licenciatura, visando tornar a carreira atrativa aos estudantes de graduação, assim como inseri-los em escolas públicas, para conhecer o espaço escolar e suas realidades, desenvolvendo atividades inovadoras e atrativas para os estudantes e contribuindo para a formação dos bolsistas. Na Universidade Federal do Ceará, sob inscrição e coordenação da professora Ana Rita Fonteles Duarte, foi aprovado através de seleção, a criação do PIBID interdisciplinar Educação em Direitos Humanos: Gênero e sexualidade na Escola, criado em 2012, que tinha como bolsistas alunos dos cursos de licenciatura em História e Ciências Sociais. Neste trabalho buscamos apresentar um relato de experiência de uma das atividades realizadas com alunos da escola pública Estado do Amazonas, da rede estadual, onde trabalhamos junto com estudantes do 1º ao 3º ano do Ensino Médio, representações da cultura machista na mídia, especialmente em propagandas. As atividades com todas as turmas da escola foram realizadas nos anos de 2014 e 2015. 1.1 Justificativa Objetivando promover os debates sobre direitos humanos na escola, propomos e realizamos uma intervenção discutindo os estereótipos machistas dentro da sociedade, usando como fonte principal a publicidade, percebendo como 162


as mulheres eram representadas nas propagandas utilizadas e relacionando estas representações com discussões sobre direitos das mulheres. Segundo o Mapa da Violência, de 2015, entre 2003 e 2013 houve um aumento de 21% nos números de homicídios contra mulheres no Brasil. Os contextos que envolvem as mortes de mulheres no Brasil são marcados pela violência doméstica e de gênero, violência esta sustentada por uma cultura misógina e machista que é constantemente reforçada por várias instituições, incluindo a mídia e a publicidade. Diante disso, consideramos essencial desconstruir junto a juventude estereótipos e arquétipos propagados pela publicidade, questionando assim as estruturas machistas presentes na sociedade. Estas discussões, mesmo geralmente ignoradas no ambiente escolar no período em que realizamos a atividade, estavam amparadas em documentos educacionais e em legislações, como os PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. 2 OBJETIVOS Apresentar e discutir, junto aos estudantes, aspectos do machismo estrutural presentes na mídia e na publicidade e que criam e reforçam estereótipos a respeito das mulheres, como a objetificação das mulheres negras, o modelo de beleza física feminina e a ideia da submissão feminina diante do homem. Desta forma, debatemos aspectos do machismo estrutural que estão além de suas consequências mais óbvias e graves, como a violência doméstica e o feminicídio, ampliando assim as percepções de como a cultura machista e patriarcal está entranhada na sociedade, por vezes de forma simbólica e em aspectos cotidianos, reproduzindo-se nas relações sociais. 3 METODOLOGIA Essa intervenção foi realizada em turmas de Ensino Médio da Escola Estado do Amazonas ao longo dos anos de 2014 e 2015, geralmente em aulas que eram cedidas por professores para que as atividades do projeto fossem realizadas. A intervenção nas turmas durava em média 2h/a, cerca de 100 minutos, em algumas ocasiões durando cerca de 3h/a. A atividade foi realizada em cerca de 12 turmas, 163


que tinham entre 30 e 35 alunos presentes cada uma. Essa intervenção era uma, dentre muitas que criamos ao longo desses anos que permanecemos atuantes na escola. Essa atividade foi realizada em diferentes períodos e turmas da escola ao longo de 2014 e 2015, pois o PIBID tinha outras ações e intervenções sendo realizadas e executadas nessa escola e na Universidade Federal do Ceará, além de contar com a disponibilidade de professores que cederam suas aulas para nossas intervenções. Iniciamos a atividade com a apresentação dos participantes dessa atividade, posteriormente exibindo propagandas para os alunos e lhes indagando acerca de suas interpretações sobre cada uma delas. As propagandas selecionadas eram de diversos segmentos, como cerveja, cosméticos, automóveis, joalheria, vestuário e cigarros (charuto), dentre outras, que representavam mulheres em posições de submissão e objetificação. A partir das propagandas e das impressões dos estudantes, debatemos como as representações na publicidade são uma parte das experiências femininas no cotidiano e não apenas no campo da imagem e do discurso. A presença discursiva e imagética na publicidade são uma evidência de que a sociedade tem experiências cotidianas de hiperssexualização de mulheres negras, do ideal branco como puro e das mulheres como produto e objeto, para satisfazer as vontades masculinas. As propagandas utilizadas eram das décadas de 1960 a 2000. Discutimos com os alunos como a violência contra a mulher foi se construindo e se consolidando historicamente, em processos que envolveram tensões sociais com movimentos de direitos e emancipação das mulheres. Ao se aproximar o encerramento da atividade, exibimos o curta Acorda Raimundo, acorda!, que apresenta uma inversão de posições sociais entre homens e mulheres, objetivando mostrar aos estudantes, especialmente aos alunos homens, uma representação do cotidiano de uma mulher casada, através dos olhos de um homem, buscando sensibilizá-los para o sofrimento que o machismo pode causar. Uma questão central nesse trabalho com estudantes é perceber como a violência contra a mulher é uma violência de gênero. Nesse sentido, pensamos o gênero na perspectiva da historiadora Joan Scott (1995, p.6): “(1) O gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos (2) o gênero é uma forma primária de dar significado as relações de poder.” Assim sendo, acreditamos que a representação destes estereótipos dentro da mídia e da publicidade acaba por reforçar essas relações de poder que colocam 164


a mulher em situação de submissão e inferioridade diante do homem na sociedade patriarcal. 4 RESULTADOS As alunas foram, de forma geral, as que mais participaram da atividade proposta, fazendo perguntas, emitindo opiniões e impressões. Boa parte delas demonstrou um posicionamento crítico diante das publicidades apresentadas, especialmente aquelas mais ofensivas em suas mensagens, como as propagandas da cerveja Devassa, do Sabonete Dove e da assistência autorizada da Volkswagen, a Via Costeira. Já os alunos pouco se manifestaram, a maioria permanecendo em silêncio durante a atividade. Alguns poucos se manifestaram de forma séria, fazendo perguntas e emitindo opiniões sobre o conteúdo e as mensagens transmitidas por estas propagandas. Outros manifestaram-se de forma jocosa, muitas vezes procurando descredibilizar a atividade e as críticas que buscamos tecer sobre o material que apresentamos. Assim, percebemos que ainda existe uma resistência dos alunos em debater temas relacionados aos direitos das mulheres, especialmente quando são colocados em posição de opressores, onde tomam posicionamentos mais defensivos. Os altos índices de violência doméstica e de gênero são resultados de uma estrutura machista, onde o homem é a figura dominadora e deve submeter às mulheres ao seu controle. Este modelo constrói estereótipos e arquétipos, tanto de homens como de mulheres, e estes estereótipos devem ser seguidos para que os indivíduos se enquadrem naqueles papéis que a sociedade espera que eles cumpram. Para tanto, várias instituições sociais replicam estes estereótipos para reforçá-los e manter a estrutura patriarcal como base da sociedade. A publicidade, neste ínterim, exerceu uma função essencial para esta manutenção, devido ao seu alcance e capacidade de penetração de mensagem que possuem, sendo uma das instituições mais eficientes em propagar arquétipos, valores e comportamentos. Entretanto, o público não reage passivamente a tudo que é veiculado pelas propagandas e pela mídia em geral. O que notamos, durante a aplicação da atividade, foi o senso crítico dos estudantes sendo exercitado e a capacidade de questionamento de mensagens replicadas pela publicidade, identificando elementos 165


machistas e racistas presentes nas propagandas e se posicionando diante de tais elementos de forma crítica. Ao longo das atividades, sendo confrontados com propagandas de vários teores e de diferentes épocas, a maioria dos estudantes, em especial as alunas, foram perfeitamente capazes de perceber os problemas nas imagens e mensagens apresentadas e, mais ainda, identificarem-se como alvos de opressão e representações que as diminuíam e as colocavam em posição de submissão. Ainda notamos uma resistência por parte de muitos alunos homens em se posicionar em relação às mensagens machistas que foram apresentadas. Esta resistência variou entre um posicionamento de relativização daquilo que estava sendo apresentado até o deboche com o debate em si. Percebemos que uma quantidade considerável de alunos homens apenas permaneceu em silêncio diante da discussão que propomos durante as atividades, enquanto alguns poucos se posicionaram de forma crítica as propagandas. REFERÊNCIAS LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2010. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul/dez.1995. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. 1ª Edição. Brasília: DF, 2015.

166


EIXO 3: GÊNERO, VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS

167


EIXO 3 - GÊNERO, VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS AS EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA INTERNET: DISCUSSÕES ATUAIS DE UMA QUESTÃO ESTRUTURAL Barbara Rebeca de Sousa Rodrigues barbara_1802.gs@hotmail.com Graduanda em Serviço Social (UECE) Jade Muniz Araújo jademuniz1999@gmail.com Graduanda em Serviço Social (UECE) Samara Dávila Lima Nogueira samaralima2845@hotmail.com Graduanda em Serviço Social (UECE)

1 APRESENTAÇÃO /INTERESSE DO TRABALHO A SER APRESENTADO O Brasil é um dos países que mais concentra casos de violência contra a mulher no mundo e essas estatísticas não se resumem somente ao mundo físico: com o crescimento exponencial do acesso à internet, o ambiente virtual tornou-se mais um espaço onde mulheres são vítimas de violência de gênero. O relatório anual sobre as mudanças no mundo digital desenvolvido pela We Are Social em parceria com a Hootsuite, mostrou que até janeiro de 2021, cerca de 4,66 bilhões de pessoas em todo o mundo usam a Internet, um aumento de 316 milhões (7,3%) se comparado ao ano de 2020, além disso, o número de usuários de redes sociais é agora equivalente a mais de 53% da população total do mundo. É inegável a aceitação e a dependência gerada pela internet, por se tratar de uma ferramenta de acesso à informação e comunicação rápida. Todavia, compreendendo a força dessa plataforma, se faz necessário apontar também as problemáticas que a envolvem. Para algumas pessoas o espaço virtual é apenas mais uma ferramenta, contudo para outras existe uma relação que constrói o seu modo de pensar sobre si e sobre os outros. Rudiger (2011, p. 239) defende que se deve tratar o meio virtual como um possível ambiente de crescimento e aprendizado e não como uma vida alternativa dando a mesma poderes para mutilar nossa existência. 168


Assim como outras problemáticas sociais, o machismo é estrutural e perpassa várias áreas da coletividade, entretanto atinge, principalmente, a subjetividade de cada mulher. Os discursos são uma das diversas formas de banalização das lutas feministas, pois corroboram para que o ódio seja semeado em um espaço que ainda não é tido por muitos como real, a internet. 1.1Importância /Justificativa do trabalho No Brasil, de acordo com o levantamento realizado pelo Centro Regional e Estudos para o desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), no ano de 2019, 74% da população (134 milhões de pessoas) possui acesso à internet, estando presente em 71% dos lares do país. Assim, é necessária a compreensão sobre a capacidade dessa plataforma de potencializar a fala, na medida em que oferece um alcance mundial de conteúdo, além de possibilitar o anonimato, dando a estes a liberdade de disseminarem e fortalecerem discursos, a depender de seus interesses. Desde seu advento por volta dos anos 60, a internet teve uma rápida consolidação no dia a dia da população. Kirmayer, Raikhel e Rahimi, (2013) percebem que constantemente a internet dá espaço e cria novas possibilidades de socialização, conhecimento e experiências boas e ruins, contudo, pouco se estuda sobre as demais

influências dessa ferramenta na vida das pessoas. Segundo

Phillips (1974), se destaca a carga de influência da internet nas decisões pessoais dos indivíduos, por isso, é necessária uma análise sobre as possibilidades que a mesma dispões para que a violência também se faça presente em seu meio, no caso deste artigo em específico a violência contra a mulher. De acordo com Natansohn e Rovetto (2019, p. 31), no estudo das ciências sociais e na antropologia, violência e sexualidade podem ser compreendidos a princípio como categorias relacionais, antes de serem percebidas como conceitos preestabelecidos, isso porque se tratam de relações construídas na cultura, e não de forma concreta e universal. Ou seja, implicar esses conceitos a uma sociedade machista e patriarcal, com distinções de gênero, renda, trabalho, acesso e etc, significa uma mudança em seu significado, na medida em que traja novas possibilidades de agravos, nas palavras de Pelúcio (2015): 169


[...] Imprimir nesse mundo digital marcas da cultura na qual estamos imersos, valores de classe, acentuar marcas de raça/etnia, ou borrá-las. [...] O fato de estarmos imersas em ambientes online não nos isenta de ter um corpo, ao contrário. A criação de um avatar, nossa identidade iconográfica, passa por corporificar-se. (PELÚCIO, 2015, p. 92)

Segundo a ONG Safernet, que promove a defesa dos direitos humanos na internet trabalhando junto ao Ministério Público Federal, em 2019 haviam 7.112 denúncias de violência ou discriminação contra a mulher na internet e em 2020 esse número cresceu para 12.698, mostrando que os casos de violência online contra mulheres aumentaram significativamente nos últimos dois anos e segue contando. O número de denúncias de violência e discriminação a mulheres na internet cresceu cerca de 78% na comparação entre 2019 e 2020. (SAFERNET, 2021) A violência contra a mulher desencadeada através da internet deixa sobretudo

sequelas psicológicas na medida em que atinge sua liberdade,

posicionamentos, autoimagem, autoestima e assim por diante. Isso se dá através da disseminação de

discursos machistas que reafirmam a sociedade patriarcal

como regra, impondo padrões estéticos capazes de desenvolver agravos mesmo na saúde física, se idealizando o corpo magro e potencializando os riscos de anorexia e bulimia, principalmente entre o público feminino adolescente, estando este em fase de formação e compreensão das regras sociais que as cercam. Para Henrietta Moore (1994), a ameaça de violência, assim como ela própria, é uma forma efetiva de controle social, onde se perpetua a luta do patriarcado pela manutenção de certas fantasias de poder e identidade. Cabe ressaltar que essa lógica

se aplica não somente ao gênero, mas também à classe e raça. Esse

processo se dá de forma contínua, e se ressignifica ao longo dos anos, a depender do contexto cultural de cada época. De acordo com uma nota da Câmara Municipal de São Paulo (2020) sobre a violência de gênero na internet, uma das expressões da violência contra mulheres no

âmbito digital ocorrem através da Pornografia de Vingança, quando há a

divulgação

de fotos intimas em sites ou redes sociais sem o consentimento da

vítima e geralmente por um ex-companheiro; da Sextorsão, quando há a ameaça de divulgação de imagens intimas para forçar a vítima a fazer algo, seja por vingança, humilhação, chantagem financeira e etc. 170


Também há a Perseguição Online, em que o agressor faz a vítima se sentir vigiada e perseguida com a invasão de sua privacidade, outro exemplo é o Estupro Virtual, quando o autor do crime, por meio da violência psicológica, faz ameaças e chantagens à vítima, por ter posse de algum conteúdo íntimo e, com isso, exige favores sexuais por meio virtual, como coagir a mulher a despir-se em uma chamada de vídeo. Em todos esses casos a vítima passa por uma intensa violência psicológica podendo acarretar em violência física. 2 OBJETIVOS Dessa forma, se tratando de uma das plataformas mais utilizadas no mundo e sendo campo rico para discussão e disseminação de ideias, estudos como este se fazem necessários na tentativa de aprofundar a temática e trazer elementos que possam causar uma reflexão crítica. O presente trabalho tem como objetivo identificar a relação entre internet e a violência contra a mulher, expor como acontecem essas violências e discutir qual o papel da internet dentro de uma sociedade machista. 3 METODOLOGIA O presente trabalho é de caráter qualitativo, com o intuito de reunir as informações e os dados que serviram de base para o artigo, utilizou-se a pesquisa bibliográfica. Cervo e Bervian (1983, p. 55) definem a pesquisa bibliográfica como a que, Explica um problema a partir de referenciais teóricos publicados em documentos. Pode ser realizada independentemente ou como parte da pesquisa descritiva ou experimental. Ambos os casos buscam conhecer e analisar as contribuições culturais ou científicas do passado existentes sobre um determinado assunto, tema ou problema. (p. 55)

Utilizamos como critério de inclusão os sites que tratavam sobre a violência contra a mulher na internet e autores como Rudiger (2011), Natansohg e Rovetto (2019) e entre outros para discutirmos a relevância do espaço virtual na sociedade contemporânea e para analisarmos como é mais um espaço de reprodução da violência de gênero, especificamente, contra a mulher. 4 Considerações Parciais ou Finais O que se percebe atualmente é a ferramenta internet se aprimorando cada vez mais e de fato possibilitando um avanço para a população que a acessa, na 171


medida

em que facilita a comunicação, a informação e até mesmo o comércio.

Todavia, como

supracitado, para que ocorra a manutenção do machismo na

sociedade e estes por sua vez sigam se confirmando como força maior, a internet acaba por potencializar cenários de violências diversas, temor e desrespeito para com inúmeras mulheres. Os aparatos de comunicação digital podem colaborar para o nosso desenvolvimento como indivíduos integrados em uma coletividade, quando surge um ambiente inovador no qual se verifica “uma completa reorganização da forma como conduzimos nossas tarefas, nossas escolas, nossas vidas e, em última análise, nosso sistema nervoso.” (RUSHKOFF, p.17 apud RUDIGER, p. 258). Muitas vítimas ainda têm medo de denunciar e sofrem em silêncio, seja por vergonha de se expor, certeza da impunidade dos agressores, ou desconhecimento sobre esses tipos de crimes virtuais. A legislação brasileira está se atualizando cada vez mais para abarcar essa nova realidade trazida pela internet. Muitos crimes já são previstos e tipificados, e os agressores podem ser punidos por seus atos. Portanto, o machismo é um elemento estrutural da sociedade patriarcal em que vivemos e vem tendo uma efetiva adesão de algozes que utilizam do campo virtual. Por outro lado, na busca de uma mudança social no modo de pensar e agir dos

indivíduos sociais, coletivos feministas têm gerado bastante discussão e

compartilhamentos de conteúdos na tentativa de barrar uma opressão de gênero historicamente construída. Se faz necessária ainda o amadurecimento de leis efetivas por parte do estado,

além do compromisso ético de coletivos, é emergente a discussão do

machismo em escolas, e espaços públicos na tentativa de sensibilizar e politizar os sujeitos sociais.

Dessa forma, as discussões não se esgotam neste artigo,

compreendemos que essa acadêmicos e buscamos o

pauta é de bastante relevância para trabalhos amadurecimento das ideias. Reconhecemos a

indispensável e urgente defesa dos direitos das mulheres por toda sociedade. REFERÊNCIAS CERVO, Amado Luiz; BERVIAN, Pedro Alcino. Metodologia científica: para uso dos estudantes universitários. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1983.

172


INFORMAÇÃO, Centro Regional e Estudos para o desenvolvimento da Sociedade da. Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros. Tic domicílios. 2020. Disponível em: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20201123121817/tic_dom_2019_livro_eletr onico.pdf. Acesso em: 22 abr 2021. GREGORI, Maria Filomena. Limites da sexualidade: violência, gênero e erotismo. Revista de Antropologia, p. 575-606, 2008. MOORE, Henrietta. “The problem of explaining violence in the social sciences”. In: HARVEY, Penelope.; GOW, Peter. (org.). Sex and Violence:The Psychology of Violence and Risk Assessment. 1 ed. London: New York: Routledge, p. 138–155, 1994. SÃO PAULO, Câmara Municipal de. Violência de gênero na internet: como é e como se defender?, 2020. Disponível em: <https://www.saopaulo.sp.leg.br/mulheres/violencia-de-genero-na-internet-o-que-e-e como-se-defender/>. Acesso em 03 de junho de 2021. PHILLIPS, David P. The influence of suggestion on suicide: Substantive and theoretical implications of the Werther effect. American Sociological Review, p. 340- 354, 1974. MORRISON, Catriona M.; GORE, Helen. The relationship between excessive Internet use and depression: a questionnaire-based study of 1,319 young people and adults. Psychopathology, v. 43, n. 2, p. 121-126, 2010. NATANSOHN, Graciela; ROVETTO, Fiorencia. Internet e feminismos: olhares sobre violências sexistas desde a América Latina. 2019. PLANT, Sadie. Zeros + Ones: Digital Women + The New Technoculture. London: Forth Estate, 1997. MISKOLCI, Richard. “Do armário à discrição? Regimes de visibilidade sexual das mídias de massa às digitais”. In: PELÚCIO, Larissa; PAIT, Heloísa; SABATINE, Thiago. No emaranhado da rede: gênero, sexualidade e mídia; desafios teóricos e metodológicos do presente. São Paulo: Annablume, 2015. RÜDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores. Porto Alegre: Sulina, 2011, 338 páginas. SOCIAL, We Are. Digital 2021: The latest insights into the ‘state of digital’, 2021. Disponível em:https://wearesocial.com/blog/2021/01/digital-2021-the-latest-insights into-the-state-of-digital. Acesso em: 22 abril de 2021. SAFERNET. Indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, 2021. Disponível em: <https://indicadores.safernet.org.br/> Acesso em: 03 de junho de 2021. KIRMAYER, Laurence J.; RAIKHEL, Eugene; RAHIMI, Sadeq. Cultures of the 173


Internet: Identity, community and mental health. 2013.

174


EIXO 3 - GÊNERO, VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS CÍRCULOS CONCÊNTRICOS: A CONSTRUÇÃO DA ARQUITETURA SILENCIOSA DA VIOLÊNCIA PATRIARCAL Josélia Barroso Queiroz Lima joseliabqlima@gmail.com Professora Adjunta (UFVJM) Nilma Lino Gomes nilmalinogomes@gmail.com Professora Emérita (PPGE/UFMG) 1 APRESENTAÇÃO Este artigo sintético resulta do processo de capacitação, feito junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação da professora Nilma Lino Gomes, no

qual aprofundamos na temática: educação, gênero e etnia.

Baseando-nos

na

literatura

problematizamos o papel social

feminista

negra,

nacional

e

internacional,

da Igreja Católica na construção da racialidade

branca e do mito da democracia social. Focando o documento público- Catecismo Anticomunista, editado em 1962 e reeditado em 2010, analisamos como o projeto educacional

da

cristandade,

pela

metodologia

concêntricos, produziu o sistema de

pedagógica

dos

círculos

dominação patriarcal, naturalizando na

sociedade brasileira o racismo, o sexismo, a

branquitude. Discutimos sobre as

Políticas Afirmativas de Direito e a Inclusão social como conquistas dos movimentos sociais de negros, indígenas e de mulheres,

condições necessárias à

democratização social. No cenário político pós-golpe de 2016, refletimos os motivos que levam a circulação em redes sociais do Catecismo nos contextos pré-golpes (o militar, 1964 e o político, midiático e institucional,2016).Defendemos a educação pública, laica, gratuita e a necessidade de educar para a transgressão. Inscrevemos o artigo no eixo Gênero, violência e violação de direitos, pois entendemos que o projeto educacional religioso naturaliza

as violências do racismo, do sexismo

através da branquitude e da manutenção do mito da democracia racial. 2 IMPORTÂNCIA, JUSTIFICATIVA DO TRABALHO E METODOLOGIA 175


Em

continuidade

às investigações sobre o catolicismo institucional,

analisamos o papel social da Igreja Católica em criar discursos e preceitos que justificam a desigualdade social, as hierarquias sociais, reafirmando a branquitude e os privilégios sociais patriarcais. Portanto, analisamos o projeto educacional católico cristão que produz o racismo social, institucional e moral. Se nomeamos o projeto educacional católico como

racista, o fazemos, pois na ocultação dos fatores

históricos, no silenciamento de ser a Igreja, no período colonial, a principal empresa promotora do tráfico negreiro, sendo pois

responsável pela escravidão,

comercialização e nomeações atribuídas aos africanos: negros/pretos, inferiores, incapazes,

sem alma, eróticos/pecadores,irracionais etc;

identificamos os

elementos estruturantes da sociedade patriarcal que produziu a desigualdade racial e social. A branquitude foi/ é o valor moral/ social/ normativo do ideal cristão . Problematizamos

o

Catecismo

Anticomunista,

publicado

por

Dom

Sigaud39[1], arcebispo de Diamantina, MG, em 196240[2]. A análise qualitativa do conteúdo do catecismo tem o caráter de explicitar o papel educativo da igreja, ao atingir públicos heterogêneos,

no que tange a classe, raça e gênero e pela

educação informal (e formal) homogenizar as ações sociais, que mediadas pelo atendimento hospitalar, educação técnica, organização de sindicatos dos produtores rurais e dos trabalhadores rurais, pela assistência social/ entendida como caridade, como “dádiva” das mulheres brancas, da elite política, presentificou no interior de 39

Arcebispo fundamentalista, atuou no Vale do Jequitinhonha por décadas, um dos responsáveis pelo cercamento das terras comunais da região, a inserção das formas de produção capitalista. O responsável pelo início do maior plantio de eucaplito, que hoje leva o Vale a ser reconhecido como possuidor do Mar Verde. O cercamento das terras teve por conseqüência a destruição do cerrado, o empobrecimento de comunidades tradicionais e a intensificação da migração, bem como o êxodo rural. O Catecismo Anticomunista, não pode ser entendido como uma produção inédita de Dom Geraldo de Proença Sigaud, pois apoiou-se em outra publicação do arcebispo norte-americano: F.J. SHEEN: Ópio do Povo, publicado em 1952. Ambas publicações tiveram/tem por objetivo conter o avanço do pensamento democrático, republicano, nomeado e significado como comunista/ socialista. Vivíamos a Guerra Fria, na América Latina um outro catolicismo nascia pela aproximação de parte da Igreja Católica com os povos oprimidos. Dialeticamente, a aproximação que objetivava a contenção do avanço dos movimentos sociais, promoveu, no dizer de Santos(2014) a surgimento de uma teologia progressista, contra-hegemônica. Assumindo um fazer cristão comprometido com o povo e a transformação social- a Teologia da Libertação.No questionamento da ideologia hierarquizante, elitista, patriarcal da Igreja fundamentalista e recriava sentidos para e pela luta política. Conter o “comunismo” era também conter a ideologia da Teologia da Libertação. No cenário atual, a Teologia da Libertação continua sendo silenciada e marginalizada pelas lideranças papais de João Paulo VI ao papa Francisco. 40 Nova publicação em 2010 reafirmam as hierarquias, os silenciamentos, as prescrições necessárias a ordem social patriarcal capitalista. As edições anteciparam o golpe institucional de 2016. Ver: https://edicoescristorei.com.br/produto/catecismo-anticomunista/;https://www.amazon.com.br/Catecis mo Anticomunista-Geraldo-Proen%C3%A7a-Sigau/dp/8566764161.

176


Minas e do Brasil um modo de fazer do Estado brasileiro, não o Estado Democrático de Direito, mas o autoritário, ditatorial, clientelista e patrimonial. No discurso catequético justificou-se o status quo colonial, garantiu-se o silenciamento da diferença, da desigualdade racial, da desigualdade de gênero ao legitimar as formas de opressão com as quais o povo negro, indígena e as mulheres já conviviam. Assim, adentramos ao efeito da branquitude como conseqüência do projeto

educacional patriarcal, de modo a compreender como nos pactos

narcísicos41[3] produzidos seja nos nomeados negros, seja nos brancos, garantiu a naturalização da ideologia do mito da democracia racial e a concepção ideológica do homem universal (católico, branco,

heteronormativo) alienando os sujeitos

sociais na racialidade branca ( BENTO, 2002). Tais ideologias dificultam a ruptura com as violências simbólicas que organizam as relações

sociais, onde as

opressões entre os sujeitos sociais, e as hierarquias culturais e (superioridade, meritocracia; inferioridade/incapacidade) subordinam as

simbólicas relações

intersubjetivas e institucionais reificando, no silêncio do tabu o simbólico racista, a lógica de supremacia branca. 3 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS/ FINAIS O Catecismo Anticomunista foi organizado em 17 eixos temáticos, através de perguntas e respostas, o arcebispo diamantinense orienta os católicos sobre a „seita internacional que segue a doutrina de Karl Marx, e trabalha para destruir a sociedade humana baseada na lei de Deus e no Evangelho‟ (SIGAUD,1962p.7), produzida por

Satanás,chamada Comunismo. Adverte: mesmo não sendo o

socialismo igual ao

comunismo, ambos devem ser combatidos de modo a

resguardar a doutrina da Igreja e a ordem hierárquica natural. Cabe ressaltar que na década de 60, do século XX, no contexto brasileiro, nem 1% da população negra acessava a universidade. As discussões das teorias marxistas como já apontado por Lopes (2017) se intenficaram na década de 70, do século XX. Portanto, entender o cenário político, social e educacional no qual o 41

Em Pele Negra. Máscaras brancas, Frantz Fanon (2008), analisa o simbólico que leva a internalização da branquitude e das relações de subordinação racial que atravessam o funcionamento social, político e intersubjetivo da sociedade francesa e dos negros antilhanos, descreve que os pactos narcísicos levam a alienação da consciência tanto de negros, como de brancos. Aqueles por desejarem ser brancos, estes por internalizarem as hierarquias, naturalizando a subordinação que nega a humanidade ao negro, o inferiorizando. E de outro lado, não problematizam os privilégios da branquitude como processo histórico social, que violenta e objetifica os outros.

177


Catecismo foi publicado nos aponta o caráter de controle disciplinar e moral que leva a Igreja a publicá-lo. Se evidencia nos itens colocados no catecismo, a disputa ideológica entre socialismo/comunismo e capitalismo. Se evidencia ainda o lugar político assumido pela Igreja. Quem divulgará o catecismo? A quem será dirigido? Quais os agentes mediadores do mesmo? O que ele quer colocar sobre controle? Pelo contexto descrito, podemos

afirmar: os agentes mediadores foram as

catequistas brancas, as instituições formadoras

(magistério, serviço social,

associações sindicais vinculadas a Igreja), as crianças brancas e negras foram alvos do Catecismo, mas sobretudo, a população negra e as comunidades negras, apartadas do acesso à terra, à educação, e ao trabalho formal

assalariado. E

mesmo nos anos 80 do século XX, não podemos dizer que o saber marxista já compunha o fazer universitário, pois conforme Gonzalez (2020,p.234) em 1986, „a minoria da população negra(1%) que consegue chegar à universidade e sofre um processo de perda da identidade. Ou seja, o branqueamento vai se dando de forma tal que, de repente, quando vê, se virou branco.” De igual modo, nos anos 90, do século XX,

tais teorias não eram hegemonicamente problematizadas nas

universidades públicas e ou privadas. Ao divulgar e antecipar a veiculação em massa do “pensamento marxista” a Igreja, pelas mãos de dom Sigaud, maneja simbólicos e significações que remetem ao esquecimento (JOVICHELOVITCH, 2008) e mantém a ausência de memórias históricas

que pudessem colocar em xeque o social. Como agência publicitária,

midiática, formadora de opinião, por via da divulgação oral e escrita instituída, e estando inserida em diversos e

diferentes regiões do país, a Igreja preparou o

terreno para a manutenção do ethos social de sulbaternidade e hierarquia necessárias ao estado „mínimo‟, autoritário e neoliberal; mas também justificou o discurso desenvolvimentista, patriota, capitalista e positivista de

ordem e progresso necessários à ditadura militar. Conter as

manifestações da população e o acesso das mesmas as idéias revolucionárias que exigiam as transformações sociais eram (e ainda o são) os objetivos silenciados via o credo religioso. Evitando que em solo brasileiro acontecesse a revolução social, ocorrida em Cuba (1961). Assim, as ditaduras militares nas Américas aconteceram com o apoio institucional da Igreja Católica. E se em 1986, apenas 1% dos negros acessava a universidade, em 2016, quando do golpe midiático, político e institucional, a realidade social e educacional era outra. O sexismo e o silenciamento 178


da violência sexual, psicológica, patrimonial, física

imposta, secularmente, pela

dominação de homens brancos e negros, à mulher negra ficará evidenciado na pergunta 41, que questiona: A que título a família faz parte da classe social? De acordo com a lei natural e a doutrina da Igreja, a família participa de algum modo, não só do patrimônio, como da dignidade, honra e consideração de seu chefe, com o qual forma um só todo e a cuja classe social pertence. Sendo inerente à família a transmissão aos filhos, não só do patrimônio dos pais, como também, de certo modo, da honra e consideração que se prende ao nome paterno, a presença da família na classe social dá a esta certo caráter de continuidade hereditária(SIGAUD, 1962, p.19) (grifos nossos).

Honra, dignidade, patrimônio, transmissão e „consideração que se prende ao nome paterno‟. Qual classe social legitima o nome paterno?? Quais famílias recebem o direito de herança, honra e dignidade hereditária?? E as relações familiares matrilineares, marcas culturais das populações marginalizadas e excluídas, feitas desiguais, negras e indígenas, muitas resultantes de estupros, violação dos corpos e dos afetos das mulheres negras/ índias, objetificadas/coisificadas pelos senhores brancos. No Brasil e nos interiores, os filhos „naturais‟ e os filhos „legítimos‟, eram e ainda são, hoje, formas de

expressão/ nomeação para dizer das relações que

extrapolam os limites dos lares

católicos. O direito ao conhecimento e

reconhecimento do “nome do pai”, herança e continuidade hereditária somente foi conquistado pós a Constituição de 1988. Aprofundar na estratégia metodológica, pedagógica da Igreja Católica em produzir o simbólico da cristandade, analisando a função dos círculos concêncritos na construção da arquitetura silenciosa da violência, envolveu diferentes afetos: o espanto, a raiva, à indignação. Mas, indicou-nos, por outro lado, os caminhos a serem trilhados, reafirmados

no cotidiano do fazer educacional. É necessário

inverter o giro do círculo: “Da mãe cristã, das famílias cristãs para a sociedade cristã”. A educação democrática, contra hegemônica, feminista exige o giro no sentido contrário: “da sociedade plural e diversa que almejamos, para as relações familiares que escolhermos, para mulheres/ homens que desejarem ser mães”. Portanto, é necessário provocar dúvidas, a criticidade, colocar entre parênteses a crença/ os dogmas naturalizados, estranhar/romper a tradição social da hegemonia cristã. É fundamental educar para a transgressão (hooks, 2013) 179


REFERÊNCIAS Bento. M. A. S. Pactos Narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público./ Maria Aparecida Silva Bento. São Paulo:s.n; 2002, p.169. CISNE, Mirla. Gênero, Divisão Sexual do Trabalho e Serviço Social. Mirla Cisne. 2 ed. São Paulo: Outras Expressões, 2015. 152p. FANON, Frantz. Pele Negra: Máscaras Brancas. Salvador. BA. EDUFBA,2008 GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017 GONZALES. Lelia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. LOPES, Eliane Marta Teixeira. Da Sagrada Missão Pedagógica. 2 ed. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2017 JOVCHELOVITCH, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleção Psicologia Social).

180


EIXO 3 - GÊNERO, VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS ESTRATÉGIAS DE COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER EM TEMPOS DE PANDEMIA42 Jordianne Moreira Guedes jordguedes@gmail.com Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher 1 APRESENTAÇÃO O presente trabalho aborda os números da violência contra a Mulher no Brasil e no Ceará, e as estratégias de combate a esse fenômeno em tempos de pandemia do novo Corona vírus. Com o isolamento social, imposto em decorrência da alta transmissibilidade do vírus e da doença, os índices de violência doméstica contra a mulher tiveram aumento, assim como o número de feminicídios no Brasil, considerando como parâmetro de análise o comparativo dos números entre os anos de 2019 e 2020. Diante de tais números, algumas campanhas foram lançadas pela sociedade civil e pelo poder judiciário, bem como movimentos feministas se mobilizaram para exigir do poder público mais transparência na comunicação, e mais celeridade no atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica. A violência contra a mulher pode ser interpretada como expressão máxima da desigualdade entre os gêneros43, resultado de uma relação de poder baseada em traços de uma cultura patriarcal44. O combate a essa cultura opressora passa por conquistas advindas de muitas lutas dos movimentos de mulheres,

que se

converteram em ações de cunho legal, refletidas na promoção de direitos e na punição de quem pratica a violência. 1.1 Justificativa A escrita deste trabalho se justifica primeiro pela relevância da temática relacionada à violência contra as mulheres, bem como pela relevância da 42

Jordianne Moreira Guedes. Mestre em História pela Universidade Estadual do Ceará. Especialista em Estratégias de Enfrentamento à Violência contra a Mulher pela Escola de Saúde Pública do Ceará 43 o termo “gênero",torna-se uma forma de indicar ‘construções culturais’ - a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. "Gênero" é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. (SCOTT.1995, p. 75) 44 Poder simbólico atribuído ao homem, controle da sexualidade feminina por ele, uso legítimo da força, de acordo com SAFFIOTI.

181


compreensão do contexto atual pandêmico, que trouxe consigo muitos problemas sociais, nos quais se insere o aumento da violência doméstica contra as mulheres e a necessidade da efetivação das políticas públicas voltadas para a prevenção e o combate a esse fenômeno. A Justiça em todo o Brasil, no ano de 2019, recebeu 563,7 mil novas denúncias, o que representou um aumento de 10% em relação ao ano anterior. Já no tocante às Medidas Protetivas de Urgência, em 2019 foram 70 mil decisões judiciais expedidas a mais do que em 2018, perfazendo um total de 403,6 mil, e representando um aumento de 20% em relação ao ano anterior. Esses dados são oriundos do Painel de Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) É nesse contexto que chega ao Brasil a pandemia do novo Corona vírus e as determinações de isolamento social, aproximando ainda mais vítimas e agressores, e deixando as mulheres em situação de risco mais severa. A partir dessa nova realidade, observa-se, no Ceará, no ano de 2020, uma queda no número de denúncias, se comparadas ao ano anterior, 2019, e um aumento nos casos de feminicídios. Tomando por base os registros feitos no mês de março de 2020, houve uma queda em relação ao ano de 2019, quando foram registrados, naquele ano, 1.924 denúncias, e em março de 2020, um total de 1.364, tendo ocorrido também, consequentemente, uma queda na expedição de Medidas Protetivas, 325 expedidas em março de 2020, contra 413 expedidas no mesmo período, em 2019. Já os números de feminicídios aumentaram em 22,2% em 12 estados do país, entre os meses de março e abril, se comparados ao ano de 2019, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nesse contexto, os números do Ceará cresceram 33,33%, e dentre os estados do Nordeste, o de maior índice foi o Maranhão, com um aumento de 166,7% em relação ao mesmo período do ano anterior. Apesar da diminuição de denúncias nas delegacias, foi registrado, no País, um aumento nas chamadas telefônicas para os números 180 e 190, canais que dão acesso a centrais telefônicas ligadas ao Governo Federal, e à Polícia de cada 182


Estado. As ligações para o 180 tiveram um aumento de 15% em março de 2020, em relação a março de 2019. Os

números

supracitados

demonstram

uma

situação

de

maior

vulnerabilidade e risco imposta às mulheres, que em face do estreitamento no convívio cotidiano com seus agressores, estão mais expostas e menos capazes de realizar denúncia, já que têm a liberdade ainda mais cerceada. Daí surgirem campanhas que dão visibilidade às situações de violência doméstica e mobilizam a sociedade, chamando a atenção para esse fenômeno que não é novo, mas que apresenta agravantes na conjuntura atual. Dentre algumas, bastante veiculadas nas redes sociais e mídia em geral, estão a Campanha Sinal Vermelho, do Poder Judiciário, o vídeo “Call” do Instituto Maria da Penha, e a botão de denúncia do aplicativo do Magazine Luíza, que direciona para uma ligação ao número 180. No Ceará, mais especificamente em Fortaleza, no início do mês de abril, passados cerca de 15 dias do início do isolamento social, movimentos de mulheres, com destaque para o Fórum Cearense de Mulheres, manifestaram-se cobrando ao poder público uma maior transparência e efetividade nos canais virtuais de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica, queixando-se de que os telefones informados não estavam funcionando a contento. Observou-se, a partir de tal pressão, uma resposta dos órgãos ligados ao Executivo e ao Judiciário, através de mais ampla divulgação dos canais de atendimento, demonstrando assim a importância e a força do monitoramento dos movimentos de mulheres. Após dois meses de isolamento social, já em maio de 2020, foi promulgada no Ceará, a Lei 17.211, que dispõe da obrigatoriedade de comunicação pelos condomínios residenciais aos órgãos de segurança pública, da ocorrência ou de indícios de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente e/ou idoso, em caso de registro nos livros de ocorrência. No mês de julho, houve a promulgação da Lei federal 14.022, que inclui os atendimentos prestados a mulheres vítimas de violência doméstica nos serviços essenciais, e disciplina várias questões relacionadas aos prazos processuais, modos de denúncia e expedição das Medidas Protetivas, numa tentativa de desburocratizar os caminhos da denúncia e acelerar a tomada de providências para a proteção à mulher. 2 OBJETIVOS 183


● Apresentar dados relacionados à violência contra as mulheres no Brasil e no Ceará, antes e durante a pandemia; ● Apresentar estratégias de combate à violência doméstica contra a mulher idealizadas em 2020; ● Discutir sobre a violência doméstica e a importância da efetivação de políticas públicas voltadas ao seu enfrentamento 3 METODOLOGIA Trata-se, o presente artigo, de trabalho realizado a partir de abordagem metodológica quantitativa e qualitativa, efetivada através de pesquisa documental e bibliográfica, a qual aliou levantamento de dados sobre a violência doméstica e familiar contra as mulheres à discussão baseada em conceitos e categorias de análise. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do panorama traçado a partir dos números de denúncias anteriores à pandemia e durante o período de isolamento social, dos casos de feminicídios, e das providências em termos de leis e campanhas de combate à violência doméstica contra a mulher, pode-se concluir que há uma atenção dos movimentos feministas, da sociedade em geral e dos governos voltada em maior ou menor escala para este fenômeno social. Contudo, sem o desdobramento necessário no que consiste na efetivação de políticas públicas de atendimento e proteção às mulheres, como, por exemplo, um maior número de equipamentos de atendimento, com mais profissionais e com programas e projetos de autonomia para as mulheres, não se terá uma mudança drástica nos números da violência.

O investimento em políticas

públicas voltadas para a proteção das mulheres é uma forma concreta de tocar nessa ferida exposta, que já necrosa. REFERÊNCIAS Aplicativo Magalu traz botão para denunciar casos de violência doméstica. UOL, São Paulo, 28 e maio de 2020. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/05/28/aplicativo-magalu-divu 184


lga-botao-para-denunciar-casos-de-violencia-domestica.htm.> Acesso em: 10 jul. 2020. BOND, Letycia. Casos de feminicídio crescem 22% em 12 estados durante pandemia. Agência Brasil, São Paulo, 01 de jun. de 2020. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-06/casos-de-feminic idio-crescem-22-em-12-estados-durante-pandemia>. Acesso em: 01 jul. 2020. BRASIL.. Lei N.°11.340, de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Brasilia, DF, Ago. 2006,. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 10 de jul. 2020. _____. Lei Nº 14.022, de 7 de Jul. de 2020. Altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, Brasília, DF, jul. 2020. Disponível em: < https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/872381576/lei-14022-20>. Acesso em: 16 jul. 2020. _____. Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as mulheres. Brasília, SPM, 2011. CEARÁ (Estado). Lei nº 17.211, de 19 de Maio de 2020. Fortaleza, CE, jul. 2020. Disponível em: <https://www.cge.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/20/2020/05/LEI-Nº17.211-19-de -maio-de-2020.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2020. MELO, Emanoela Campelo de. 703 ocorrências de violência doméstica em 24 dias de quarentena. Diário do Nordeste, Fortaleza, 18 de abr. de 2020. Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/703-ocorrencias-de-violenc ia-domestica-em-24-dias-de-quarentena-1.2235843>. Acesso em: 01 jul. 2020. PRATA, Pedro; ORTEGA, Pepita. Justiça registrou 563 mil novos casos de violência doméstica em 2019. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/03/11/justica-registro u-563-mil-novos-casos-de-violencia-domestica-em-2019.htm. Acesso em: 14 jul. 2020. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero Patriarcado Violência. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2004. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. 2020. Ed. 2. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/06/violencia-domestica-covi d-19-ed02-v5.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2020. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v.lS, n .2, jul./dez. 1990, traduzido da versão em francês. 185


EIXO 3 - GÊNERO, VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER TEM UM CULPADO, O PATRIARCADO Caroline dos Santos de Sant’Anna caroline.santannna@gmail.com Assistente Social, graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Resumo: A compreensão acerca da violência contra a mulher necessita passar pela discussão sobre o patriarcado, por isso, este trabalho busca apontar algumas reflexões que podem auxiliar nesse debate. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica em fontes primárias, com o objetivo de construir uma perspectiva de análise que explicite a íntima relação entre a sociabilidade patriarcal com a ocorrência da violência contra a mulher. Por fim, aponta-se que ao estabelecer essa relação de causa e consequência, a extinção do problema só ocorrerá com a eliminação do patriarcado, que se mostra ser um grande desafio para toda a sociedade e que precisa ser enfrentado em conjunto com o Estado. Palavras- chave: Violência. Mulher. Patriarcado. Abstract: The understanding of violence against women needs to go through the discussion about patriarchy, therefore, this work seeks to point out some reflections that can help in this debate. For this, a bibliographical research was carried out in primary sources, with the aim of building an analytical perspective that explains the intimate relationship between patriarchal sociability and the occurrence of violence against women. Finally, it is pointed out that by establishing this relationship of cause and consequence, the extinction of the problem will only occur with the elimination of patriarchy, which proves to be a great challenge for the entire society and that needs to be faced together with the State. Keywords: Violence. Woman. Patriarchy. 1 APRESENTAÇÃO A violência contra a mulher é um fenômeno que está presente em nosso cotidiano, entretanto naturalizar sua ocorrência aponta uma postura de conivência e de banalização com esse grande problema social. Este trabalho busca, a partir de uma revisão de literatura apontar que a violência contra a mulher é um fenômeno decorrente de um modo específico de sociabilidade, o patriarcado. Desse modo, a partir de uma discussão iniciada no trabalho de conclusão de curso, que constrói-se o debate aqui exposto, tendo como principal objetivo refletir a relação entre o patriarcado e a violência contra a mulher, sendo esta forma de estruturação da sociedade que vem violando e ceifando a vida de muitas mulheres. Compreende-se que há um longo caminho para a sua superação, mas só será com a

extinção da hierarquização entre homens e mulheres que, os sujeitos poderão 186


viver em harmonia, com igualdade plena e, o Estado tem um papel fundamental nessa luta. 1.1 Justificativa A sociedade contemporânea conta com inúmeros avanços nas discussões acerca da violência contra a mulher, pode-se notar, por exemplo, a abrangência da descrição das formas de violações45 que esse sujeito pode sofrer em seu cotidiano. Entretanto, ainda é evidente uma cultura de romantização nos relacionamentos, principalmente entre heterossexuais, que coloca o homem no papel de príncipe encantado, que de tudo faz para salvar e amar a sua “dama em constante perigo”. Esses papéis sociais atribuídos à homens e mulheres nas suas relações de íntimo afeto, são como caixas que os aprisionam em padrões propagados e reproduzidos socialmente, sem que haja uma reflexão crítica a seu respeito. Nesse sentido, ao construir uma análise sobre tal perspectiva, observa-se a naturalização de

determinados comportamentos machistas, como inerentes às relações entre

homens e mulheres, que difundem a discriminação e, por conseguinte, a violência. É importante ressaltar que entende-se como patriarcado a organização social em que coloca-se o homem em uma posição de superioridade em relação à mulher (SAFFIOTI, 2011). A partir disso, os locais, os costumes, os hábitos e as relações são moldadas para manter este padrão e, ações decorrentes desta organização, com base

nesta mesma autora visam favorecer o homem, logo, são ações e

comportamentos machistas, que dão vantagem ao macho. Assim são essas atitudes que nos visibilizam essa estrutura desigual e excludente da ordem de gênero, que também é atravessada por outras opressões. As discussões sobre tais comportamentos são essenciais na busca pela sua extinção, assim, ao abordar esta problemática, aponta-se uma importante reflexão acerca de tais padrões e, considera-se que um dos caminhos para sua superação, passa pelo debate e pela educação em gênero. Por isso, este trabalho justifica sua relevância social ao colocar em cena questões que para muitos passam despercebidos, mas que contribui para a manutenção dos elevados dados46 de

45

Ver art. 7º da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020), em 2019, o crime de feminicídio teve um aumento de 7,1% em relação ao ano anterior, somando 1.326 mulheres assassinadas. 46

187


violência sofrida por mulheres em todo o país. Entende-se aqui que a violência contra a mulher é gerada a partir da diferença social constituída pelo patriarcado. Segundo Saffioti (2011), a ordem patriarcal de gênero consiste em um modo de hierarquizar a sociedade seguindo uma noção de superioridade dos homens em detrimento das mulheres. Essa autora ainda afirma que, esse modo de organização social define os papéis sociais desses sujeitos e, é através dessa separação que há uma socialização diferenciada para ambos. Portanto, é a partir dessa divisão que os homens assumem o papel de dominador nas relações e, as mulheres nessa organização sexista, ocupam o lugar de submissas, criadas para serem amáveis e frágeis. Ao compreender as problemáticas que estão envolvidas nessa forma de socialização, pode-se analisar o quão prejudicial

elas são para homens e mulheres, que têm a sua vida em

sociedade determinada a

partir de padrões sociais desiguais, impedindo-os de

expressar a sua verdadeira natureza, que certamente não preza pela exclusão e discriminação. Ao compreender a relação entre as inúmeras facetas de diminuição da mulher na sociedade, fica evidente como a violência cumpre um papel fundamental na manutenção da ordem patriarcal. Visto que, é através das atitudes violentas que assegura-se a submissão da mulher, afinal, é desse modo que, seja pela força física e/ou pelo poder, os homens conseguem que os outros sujeitos realizem os seus desejos (SILVA, 2005). Além disso, cabe observar que a sociedade se estrutura a partir de diferentes marcadores – gênero, raça, classe, geração e etc. – logo, todas essas clivagens agem em conjunto, uma vez que conformam as identidades dos sujeitos e, as suas respectivas hierarquizações atravessam e complexificam as exclusões vivenciadas (SAFFIOTI & ALMEIDA, 1995). A relação desigual entre homens e mulheres também possui um importante papel na legitimação do modo de produção capitalista, pois, enquanto o primeiro se coloca no campo produtivo da economia e das relações, à mulher é delegado o campo da reprodução, conforme analisa Nogueira & Passos (2020). Essa diferença sexual é convertida em uma diferença social, utilizada para assegurar a dominação de um

grupo sob o outro e, a violência é um dos pilares para sustentar essa

sociabilidade (SAFFIOTI, 2011). Sendo assim, a discussão sobre as relações entre homens e mulheres devem ter como pano de fundo noções acerca dos determinantes sociais e econômicos 188


dessa

sociabilidade. Além disso, é a partir dessa concepção que pode-se

compreender que os contos de fadas tão associados ao amor puro e inocente, por vezes tende a valorizar comportamentos machistas e abusivos, uma vez que, são produzidos seguindo os valores dessa sociedade. 2 OBJETIVOS Este trabalho tem como principal objetivo apontar uma reflexão acerca da violência contra a mulher como fruto da sociabilidade patriarcal e, como isso está relacionado com o modo de produção capitalista. Para isso, é necessário apresentar a relação entre o patriarcado e o capitalismo, além de demonstrar a funcionalidade da submissão da mulher ao modo de produção capitalista. 3 METODOLOGIA Utilizou-se a revisão de literatura, através da pesquisa bibliográfica para a construção deste trabalho. Cuja investigação teórica se deu a partir de temas como patriarcado, violência contra a mulher e divisão sexual do trabalho, para assim localizar autores que discutem tais perspectivas. Essa pesquisa se deu a partir de uma investigação prévia para a construção de uma monografia, utilizando essas referências como base para construir este trabalho e balizar esta discussão, abordando autores como Saffioti (2011), Nogueira & Passos (2020) e Silva (2005). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão apontada neste trabalho teve como base a noção de que o patriarcado – que faz parte da estrutura da sociedade – tem normatizado os papéis sociais desenvolvidos por homens e mulheres. Nesse sentido, as concepções e imagens atribuídas à esses sujeitos transformam as suas relações de forma substancial e as prejudicam. Vale ressaltar que, ao comparar as consequências dessa estrutura, as mulheres são as mais afetadas (SAFFIOTI, 2011). Saffioti (2011) aponta que o patriarcado atua integrado ao capitalismo e ao racismo, logo, pode-se perceber que a socialização feminina preza pela submissão da mulher ao homem, restringindo-a ao ambiente doméstico e a essas atividades. Essa restrição contempla a lógica capitalista de reprodução da vida social, em que, cabe a mulher a manutenção da família, o cuidado com os seus membros e, 189


consequentemente, estará garantindo a permanência desse modo de produção, pois irá assegurar a reprodução da mão de obra proletária (NOGUEIRA & PASSOS, 2020). Nesse sentido, a análise de todo o contexto que envolve a violência contra a mulher deve considerar os inúmeros marcadores que atravessam a sua vivência em sociedade. Afinal, como bem discute Akotirene47(2018), os fenômenos atingem as mulheres de forma diferenciada a partir das suas identidades de raça/etnia, gênero, sexualidade, condição social, geração, deficiência e etc., logo, sua ação é em conjunto e complexa demais para se reduzir a análise de apenas um fator como determinante para a violência. Saffiotti (2011) argumenta que normalmente separa-se as categorias para que se possa investigar melhor a sua ocorrência, contudo, os sujeitos ao sofrerem as opressões não as vivenciam por um ou outro fenômeno separadamente, mas por sua ação conjunta. Assim, entende-se que racismo, patriarcado e classismo (assim como

outros marcadores), agem em intersecção48 para oprimir e submeter as

mulheres numa estrutura desigual e marcada pela exclusão deste grupo social. Outro ponto que deve ser considerado, diz respeito à sexualidade feminina, ainda repleta de tabu, pois segue a lógica de reprodução da vida social, conforme aponta Saffioti (2011). Ao manter a sexualidade como algo dissociado da natureza feminina, ao mesmo passo que a corresponde somente a reprodução humana, encontramos mais uma fonte patriarcal de submissão da mulher (SAFFIOTI, 2011). Nesse sentido, tem-se uma estrutura social muito forte, de benefício mútuo – para o capitalismo e o patriarcado –, em que a sua manutenção precisa ser assegurada através de outros mecanismos, como a cultura, o lazer e as artes, por exemplo. Considera-se que, a partir dessa estrutura patriarcal de dominação da mulher, são geradas violências, que estão presentes em todos os campos da vida social, seja na restrição da mulher ao espaço doméstico e/ou quando sua sexualidade é reprimida. As histórias fantasiosas de contos de fadas compõem o vasto acervo de instrumentos de limitação e dominação da mulher, para que esta cumpra o suposto papel que possui na sociedade: mãe, esposa e do lar. Não critica-se aqui que a mulher ocupe essas funções, mas argumentamos que, ela deve ter o direito de 47

Carla Akotirene é uma das autoras com maior destaque na discussão sobre interseccionalidade, recomenda-se a leitura de suas obras sobre o tema para aprofundar o conhecimento sobre o assunto. 48 5 Ver mais sobre Interseccionalidade em Akotirene (2018).

190


escolher sob elas, mas toda a sociedade está organizada de modo a cercear sua liberdade e, a violência

é um dos instrumentos mais cruéis utilizados para a

manutenção dessa ordem. Portanto toda discussão sobre violência contra a mulher deve considerar inicialmente a estrutura patriarcal da sociedade, buscando desmitificar conceitos e paradigmas que permeiam o senso comum. Afinal, ignorando esse sistema de dominação, pode não haver mudanças significativas, haja vista que buscamos a igualdade de gênero e, para isso, discutir e eliminar o patriarcado se faz urgente. Por isso, pressionar o Estado por mais medidas de enfrentamento e educação em gênero precisa ser uma bandeira permanente de luta, uma vez que, são essenciais para evitar que mais mulheres sejam submetidas à violências por razões de gênero. REFERÊNCIAS AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2018. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ano 14. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 12 nov. 2020. SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado, violência. 1ª ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1741437/mod_resource/content/1/G%C3% A Anero%2C%20Patriarcado%2C%20Viol%C3%AAncia%20%20%28livro%20comple t o%29.pdf. Acesso em: 28 abr. 2020. SAFFIOTI, H; ALMEIDA, S. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Revinter, 1995. Disponível em: https://www.academia.edu/37152570/Heleieth_Saffioti_Viol%C3%AAncia_de_g%C 3 %AAnero_Poder_e_impot%C3%AAncia?auto=download. Acesso em: 28 abr. 2020. SANT’ANNA, C. Como uma mulher vítima de violência pode se tornar autora de um delito? Um estudo de caso sobre a condição da mulher assistida pela CEAPA, em Salvador – Bahia. 80f. Monografia (graduação) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020. SILVA, S. O serviço social frente à questão da violência doméstica: a realidade social revelada nas ações judiciais da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Serviço Social, 2005. cap. 2, p. 16 - 30. 191


NOGUEIRA, C.; PASSOS, R. A divisão sociossexual e racial do trabalho no cenário de epidemia do COVID-19: considerações a partir de Heleieth Saffioti. v. 33. Caderno CRH. Salvador, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ccrh/v33/0103-4979-ccrh-33-e020029.pdf. Acesso em: 30 abr. 2021.

192


EIXO 3 - GÊNERO, VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS ABANDONO PATERNAL: REBATIMENTOS A PARTIR DA ANÁLISE DE PAPÉIS DE GÊNERO NAS FAMÍLIAS EM SITUAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA DE POBREZA Fernanda Gomes Duarte Cavalcante Anselmo fernanda.duarte@aluno.uece.br. Mestranda no Mestrado Acadêmico em Serviço Social (MASS/UECE) Maria Juliana Soares juliana.soares@aluno.uece.br. Mestranda no Mestrado Acadêmico em Serviço Social (MASS/UECE) 1 APRESENTAÇÃO / INTERESSE DO TRABALHO A SER APRESENTADO Este trabalho é resultado, especialmente, das discussões da disciplina Desigualdades de Gênero do Mestrado Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (MASS) da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e de outras disciplinas importantes no debate de classe e raça. O tema em tela entrecruza categorias dos objetos das duas autoras deste ensaio, isto é, as discussões concernentes a família, aqui, recortadas para o abandono paternal e as discussões de gênero, recortadas para os papéis de gênero. É através deste entrecruzamento e a partir da compreensão que precisamos adensar esse debate no Serviço Social, que surge nosso interesse em estudar o abandono paternal alinhado à dimensão de gênero. 1.1 Importância / Justificativa do trabalho A histórica desigualdade de gênero de mulheres e homens amplamente estudada em diversas áreas têm entre seus recortes a desigual requisição de homens e mulheres no exercício da parentalidade. Requisição desigual mesmo entre as famílias que vivenciam as determinações econômicas da condição de pobreza. Nem a sociedade, tampouco o Estado, demanda homens e mulheres equitativamente quando se trata do exercício da maternidade e da paternidade. Desse modo, há uma naturalização do abandono paterno, compreendido neste ensaio como o abandono material e afetivo dos homens para com seus filhos, enquanto as mulheres socialmente não possuem escolha, senão fazer parte da 193


estatística de “quase 12 milhões de famílias formadas por mães solo” (Instituto de Psicologia da USP, 2019). Portanto, a justificativa deste ensaio deve-se ao fato da necessidade de ampliarmos o debate a respeito do abandono paternal nas pesquisas sobre gênero e, consequentemente, propagar os resultados socialmente, contribuindo para desconstruir

o

histórico

papel

de

centralidade

destinado

às

mulheres,

costumeiramente compreendido como se fosse algo biológico e não social. 2 OBJETIVOS Analisar os impactos do abandono paternal nas famílias em situação sócio-econômica de pobreza, alinhado aos papéis de gênero. 2.1 Objetivos específicos Discutir a partir dos dados quantitativos e qualitativos a condição das mulheres/mães em situação sócio-econômica de pobreza que vivenciam a maternidade solo; compreender de que forma a dimensão de cuidado se apresenta para as mulheres/mães em situação sócio econômica de pobreza; discorrer sobre o abandono paternal em famílias que vivem em situação econômica de pobreza e suas articulações com os papéis de gêneros. 3 METODOLOGIA A pesquisa em tela é de natureza quali-quantitativa e é de tipo bibliográfica, o que significa dizer que foi elaborada a partir do levantamento e análise de bibliografia de referência em cada temática, além do uso de dados acerca de abandono paternal. A pesquisa bibliográfica é feita a partir de material impresso ou digital (livros, artigos, etc) e permite ao pesquisador a possibilidade de realizar um panorama a partir da análise do conteúdo analisado (FONSECA, 2002). Dentro dos limites deste ensaio, buscamos responder os objetivos propostos a partir de estudo de cada categoria de análise, articulando-as, contrapondo-as, observando em que ponto se encontram, assim como onde se repelem com o objetivo de refletir a problemática do abandono paterno e sua relação com os papéis de gênero. 4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS OU FINAIS 194




















































































































































































Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook

Articles inside

A violência contra a mulher tem um culpado, o patriarcado

14min
pages 186-198

Estratégias de combate à violência doméstica contra a mulher em tempos de pandemia

8min
pages 181-185

Intervenções no espaço escolar: publicidade, gênero e raça em debate

18min
pages 162-174

Círculos concêntricos: a construção da arquitetura silenciosa da violência patriarcal

10min
pages 175-180

Por outra(s) história(s) oceânica(s

19min
pages 150-161

Discussões sobre homossexualidade(s) masculina(s) em um canal do youtube

8min
pages 133-138

Trans-identidades e educação – gênero e políticas para a população trans* na educação

7min
pages 128-132

Travessias em utopias: cultura popular, feminismo negro e processos educativos

17min
pages 139-149

Coletivos feministas da universidade estadual do ceará: resistências plurais na pandemia

9min
pages 122-127

Princesa Raya: diálogos sobre empoderamento feminino na educação de meninas

32min
pages 103-121

Performatividade de gênero: (des)construção no espaço escolar

18min
pages 79-90

“Bixa, nunca se esqueça daquilo que precisa lembrar para viver”

38min
pages 38-61

Melissa Reis: estórias da vida de uma travesti

8min
pages 73-78

Lugar do corpo: individuação e alteridade a partir de Leonilson

33min
pages 13-37

Conceitos introdutórios sobre bissexualidade e bifobias: aspectos sociais e históricos

17min
pages 62-72

diversidade sexual e de gênero: uma educação para os direitos e cidadania dos/as lgbtq

16min
pages 91-102

História de resistência: vida de Sadia Jaló

9min
pages 8-12
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.