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História de resistência: vida de Sadia Jaló

EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA: VIDA DE SADIA JALÓ Fatumata Djarai Baldé

fatumatad.balde@gmail.com Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

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1 APRESENTAÇÃO

Este trabalho é um testemunho baseado na realidade guineense de certos grupos socias tradicionais, que tem como objetivo mostrar as resistências de mulheres que de uma forma ou de outra resistiram contra a hegemonia da tradição. Mesmo sendo silenciadas e obrigadas a cumprirem algumas práticas tradicionais elas negam e lutam arduamente para viver a vida que elas querem realmente viver. Com isso, quero mostrar que tem mulheres sem nível de escolaridade avançada que vivem no campo, mas mesmo assim, elas resistem quando negam a obedecer a qualquer prática que lhes obrigam a cumprir ensinamentos como forma obrigatória, entendidos como destino das mesmas. Como diz a escritora moçambicana Paulina Chiziane (2013), em muitas comunidades se percebe que o único papel destinado a uma mulher é casar e ter filhos, assim, para as mulheres não são permitidos sonhos e desejos, visto que uma boa mulher é quem aceita casar e obedecer ao marido, cuidar da casa e dos filhos.

1.1 Justificativa

Eu, como uma mulher, africana da etnia fula da Guiné-Bissau, quero problematizar e despertar atenção para outras mulheres que não têm oportunidade de estarem na universidade como eu tive, para que possam saber que elas podem se tornar independentes e estudarem como os rapazes. Por esse testemunho, desejo destacar que elas podem falar que não querem ser tratadas de forma desigual em relação aos homens. Por isso, espero que este trabalho possa ajudar a abrir um caminho para as mulheres do campo, que são forçadas a aceitarem um casamento quando elas não querem ou não estão preparadas a poderem tomar a decisão certa para o que elas querem seguir.

1.2 Objetivos

1. Apresentar uma possibilidade de resistência, no caso de uma mulher guineense do campo, independentemente do nível da escolaridade. 2. Destacar a trajetória de uma mulher camponesa de Guiné Bissau. 3. Compreender como essa mulher, assim como outras mulheres, lidam com o enfrentamento às práticas tradicionais sem intervenção do Estado.

2 METODOLOGIA

Para escrever este relato de história de vida, o que me impulsionou foi de ter oportunidade de ler vários livros de feministas principalmente negras, no curso de literatura e feminismos contra hegemônicos, onde consegui ligar muitos textos com a história da pessoa que faz parte da minha vida. E segundo a Audre Lorde “Eu estou tentando ser a pessoa mais forte. Eu posso voltar a viver a vida que me foi dada e ajudar em mudança efetiva em torno de um futuro vivível para esta terra e para minhas crianças” (LORDE, 1977, p. 1). Com isso, pensei em escrever para mostrar as mudanças de outras mulheres que resistiram e mudaram suas vidas e vida dos seus filhos. Talvez essa escrita é a minha única arma para ajudar outras/os. Este é um relato de história de vida baseada na realidade de uma pessoa próxima, também é relacionada a algumas disciplinas cursadas ao longo do meu percurso na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro brasileira (UNILAB), como “Literatura e feminismos contra hegemônicos”, curso ministrado pela Profa. Dra. Luana Antunes Costa.

3 DESENVOLVIMENTO

Sadia Jaló nasceu numa família camponesa, em Quebo, Guiné Bissau, com onze irmãos paternos, onde sete são maternos. Viviam de cultivo de arroz, bananas e laranjas. Desde cedo, com onze anos, Sadia sonhava em ser uma boa profissional de saúde, motivo esse pelo qual ela vendia goiabas que tirava na goiabeira que tinha perto da casa onde moravam, para vender e usar o dinheiro para se matricular na escola. Com todas as dificuldades que ela passava sem apoio nenhum, mesmo assim ela tirava boas notas.

De acordo com a tradição de sua etnia, Sadia, qual seja, fula, ela tinha que se casar muito jovem a fim de poder cumprir com essa tradição. O seu pai, o Fadja, era conhecido como o homem mais bravo da tabanca onde eles moravam. Sadia com 17 anos já estava a estudar sexto ano, e na tabanca dela na altura só tinha escolaridade até esse nível. Assim, para que ela pudesse continuar com os seus estudos, ela tinha que ir para o capital, Bissau. Nesse momento, seu pai estava numa viagem a um país vizinho, Senegal. Com a viagem do pai, o irmão mais valho da sua mãe, tio Mamadu, veio com a ideia de entregar Sadia ao casamento. Como a mãe dela, Umo era tão mansa e fácil de convencer, o tio Mamadu acabou por convencê-la a dar a filha ao casamento na ausência do pai. Eles a deram um rapaz de nome Alfa. E assim a cerimônia do casamento foi feita. Passado um ano do casamento, ela teve a sua primeira gravidez e teve uma menina chamada de Dja. Depois de algum tempo, Sadia, Alfa e a filha foram morar em Bissau, em busca de melhores condições de vida, assim, Alfa arrumou um emprego, mas não muito bem pago. Como a Sadia tinha criança pequena de menos de um ano, ela ficava em casa a cuidar da bebé, da casa e da comida da família. mas como eles eram muito jovens, Sadia então com 19 anos e Alfa com 26, eles não paravam de ter problemas no relacionamento. Com tudo isso, Sadia não teve como continuar os seus estudos, mas como ela era muito teimosa, queria estudar custasse o que custasse, aí aumentou o problema dela com o marido. Depois de dois anos de casada e com uma filha, ela decidiu se separar do Alfa, porque ela queria estudar e ele não a permitia. Quando Sadia explicava para a mãe dela, a tia Umo, que queria se separar, a mãe a aconselhava a não se separar porque o respeito de uma mulher estava no casamento. Quando Sadia cansou de verdade dessa situação, decidiu contar ao pai tudo o que ela passava com o marido e a sua família durante aqueles dois anos de casamento, como o Fadja era bravo – fora dos padrões - e não se interessava muito sobre a questão da tradição, perguntou para a Sadia, qual seria sua escolha entre o casamento e a escola. E assim, ela escolheu estudar. O Fadja disse: “então o casamento terminou”. Arrume as suas coisas e volta para a minha casa. Eu sou o seu pai e vou sustentar a ti e a tua filha até quando tu terminares o teu curso. E Sadia foi buscar as suas coisas e a filha na casa de Alfa. Como o Alfa não estava preparado para isso e nem queria se separar dela,

ele começou a criar problemas para ficar com a filha, mas o pai da Sadia, o Fadja, era mais problemático que o Alfa e quase toda tabanca tinha medo dele. O pai se meteu no problema e acabou ficando com a neta. Com a decisão tomada por Sadia e seu pai, o tio Mamadu decidiu não falar mais com ela, porque para ele, o fato de Sadia não querer ficar no casamento isso é desobedecer a tradição e fez com que ele passasse vergonha diante da comunidade. Passou a chamá-la de muitos nomes, como mal-educada pelo pai, atrevida, desobediente entre outros. Depois que o problema passou, Sadia foi para Bissau novamente a fim de continuar os seus estudos, mas desta vez ela foi morar com seu primo que tinha uma mulher e estava a criar duas filhas da esposa. Quando Sadia chegou àquela casa, a esposa do primo começou a tratá-la mal, tinha dias que ela não comia antes de ir para a escola e era abrigada a fazer todos os trabalhos domésticos. Isso a obrigava, às vezes, a se atrasar para as aulas. Sadia morou na casa do primo durante três anos até que num belo dia, ela encontrou com um rapaz de nome Anssumane que trabalhava e morava sozinho. Eles começaram a conversar para se conhecerem. Depois de um tempo, as coisas deram certo e eles começaram a namorar e foram morar juntos. Passando dois anos que eles estavam morando juntos e ela já no último ano de seu ensino médio, ela ficou grávida. Como a tradição dela não permite que duas pessoas se casem depois de terem um filho sem se casarem, a família a obrigou a terminar aquele relacionamento. Pouco tempo depois abriu inscrições na Escola Nacional de Saúde de Guiné-Bissau para as vagas do curso de enfermagem, ela concorreu e conseguiu ser admitida. A Sadia custeava as suas despesas todas sem ajuda de nenhuma pessoa da família. Ela decidiu pedir ajuda ao irmão, que vivia nos Estados Unidos, para poder se manter na universidade. O irmão lhe ajudava toda vez que podia, assim ela passou por dois anos. Novamente, ela conheceu um homem que queria se casar com ela. Com a pressão e ao mesmo tempo desprezo que ela sofria por parte da família, chegou a querer casar para manter a paz e o respeito, como dizia a sua mãe. Assim ela se casou com aquele homem que também lhe ajudou financeiramente a terminar o curso, porque ela já estava no último ano. Depois da formatura, Sadia teve a sorte de ser colocada para trabalhar num

hospital da região próxima. Com sacrifícios e muitas lutas, finalmente ela se tornou no que tanto sonhou. Nesse momento, toda a família voltou a falar com ela, até o tio Mamadu a visita de vez em quando. Agora, cada pessoa da família que tiver algum problema de saúde recorre primeiramente a Sadia. Vale à pena ressaltar que ela continuou vivendo com marido e as duas filhas que ela teve antes daquele casamento, e pouco tempo depois ela teve mais um menino com o atual marido. Eles estão trabalhando, seguindo suas carreiras, e criando os filhos juntos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este testemunho busca, portanto, problematizar a questão do gênero e da tradição, salientando que, ele nos convida a pensar sobre a vida das mulheres do campo e da cidade, em Guiné Bissau, mostrando a resistência de mulheres, independentemente do lugar de origem ou do grau de escolaridade.

REFERÊNCIAS

CHIZIANE, Paulina: Eu mulher...por uma nova visão do mundo. Ed. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e África da UFF, Vol. 5, n◦10, abril de 2013.

LORDE, Audre. The Transformation of Silence into Language and action. Apresentação lida no painel sobre Lesbianismo e Literatura, da associação da Língua Moderna, em Chicago, Illionois, em 28 de dezembro de 1977. Literatura e feminismos contra hegemónico, período letivo 2019.1, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, UNILAB, professora Luana Antunes Costa.

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