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Círculos concêntricos: a construção da arquitetura silenciosa da violência patriarcal
EIXO 3 - GÊNERO, VIOLÊNCIA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS CÍRCULOS CONCÊNTRICOS: A CONSTRUÇÃO DA ARQUITETURA SILENCIOSA DA VIOLÊNCIA PATRIARCAL
1 APRESENTAÇÃO
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Josélia Barroso Queiroz Lima
joseliabqlima@gmail.com Professora Adjunta (UFVJM)
Nilma Lino Gomes
nilmalinogomes@gmail.com Professora Emérita (PPGE/UFMG)
Este artigo sintético resulta do processo de capacitação, feito junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação da professora Nilma Lino Gomes, no qual aprofundamos na temática: educação, gênero e etnia. Baseando-nos na literatura feminista negra, nacional e internacional, problematizamos o papel social da Igreja Católica na construção da racialidade branca e do mito da democracia social. Focando o documento público- Catecismo Anticomunista, editado em 1962 e reeditado em 2010, analisamos como o projeto educacional da cristandade, pela metodologia pedagógica dos círculos concêntricos, produziu o sistema de dominação patriarcal, naturalizando na sociedade brasileira o racismo, o sexismo, a branquitude. Discutimos sobre as Políticas Afirmativas de Direito e a Inclusão social como conquistas dos movimentos sociais de negros, indígenas e de mulheres, condições necessárias à democratização social. No cenário político pós-golpe de 2016, refletimos os motivos que levam a circulação em redes sociais do Catecismo nos contextos pré-golpes (o militar, 1964 e o político, midiático e institucional,2016).Defendemos a educação pública, laica, gratuita e a necessidade de educar para a transgressão. Inscrevemos o artigo no eixo Gênero, violência e violação de direitos, pois entendemos que o projeto educacional religioso naturaliza as violências do racismo, do sexismo através da branquitude e da manutenção do mito da democracia racial.
2 IMPORTÂNCIA, JUSTIFICATIVA DO TRABALHO E METODOLOGIA
Em continuidade às investigações sobre o catolicismo institucional, analisamos o papel social da Igreja Católica em criar discursos e preceitos que justificam a desigualdade social, as hierarquias sociais, reafirmando a branquitude e os privilégios sociais patriarcais. Portanto, analisamos o projeto educacional católico cristão que produz o racismo social, institucional e moral. Se nomeamos o projeto educacional católico como racista, o fazemos, pois na ocultação dos fatores históricos, no silenciamento de ser a Igreja, no período colonial, a principal empresa promotora do tráfico negreiro, sendo pois responsável pela escravidão, comercialização e nomeações atribuídas aos africanos: negros/pretos, inferiores, incapazes, sem alma, eróticos/pecadores,irracionais etc; identificamos os elementos estruturantes da sociedade patriarcal que produziu a desigualdade racial e social. A branquitude foi/ é o valor moral/ social/ normativo do ideal cristão . Problematizamos o Catecismo Anticomunista, publicado por Dom Sigaud39[1], arcebispo de Diamantina, MG, em 196240[2]. A análise qualitativa do conteúdo do catecismo tem o caráter de explicitar o papel educativo da igreja, ao atingir públicos heterogêneos, no que tange a classe, raça e gênero e pela educação informal (e formal) homogenizar as ações sociais, que mediadas pelo atendimento hospitalar, educação técnica, organização de sindicatos dos produtores rurais e dos trabalhadores rurais, pela assistência social/ entendida como caridade, como “dádiva” das mulheres brancas, da elite política, presentificou no interior de
39 Arcebispo fundamentalista, atuou no Vale do Jequitinhonha por décadas, um dos responsáveis pelo cercamento das terras comunais da região, a inserção das formas de produção capitalista. O responsável pelo início do maior plantio de eucaplito, que hoje leva o Vale a ser reconhecido como possuidor do Mar Verde. O cercamento das terras teve por conseqüência a destruição do cerrado, o empobrecimento de comunidades tradicionais e a intensificação da migração, bem como o êxodo rural. O Catecismo Anticomunista, não pode ser entendido como uma produção inédita de Dom Geraldo de Proença Sigaud, pois apoiou-se em outra publicação do arcebispo norte-americano: F.J. SHEEN: Ópio do Povo, publicado em 1952. Ambas publicações tiveram/tem por objetivo conter o avanço do pensamento democrático, republicano, nomeado e significado como comunista/ socialista. Vivíamos a Guerra Fria, na América Latina um outro catolicismo nascia pela aproximação de parte da Igreja Católica com os povos oprimidos. Dialeticamente, a aproximação que objetivava a contenção do avanço dos movimentos sociais, promoveu, no dizer de Santos(2014) a surgimento de uma teologia progressista, contra-hegemônica. Assumindo um fazer cristão comprometido com o povo e a transformação social- a Teologia da Libertação.No questionamento da ideologia hierarquizante, elitista, patriarcal da Igreja fundamentalista e recriava sentidos para e pela luta política. Conter o “comunismo” era também conter a ideologia da Teologia da Libertação. No cenário atual, a Teologia da Libertação continua sendo silenciada e marginalizada pelas lideranças papais de João Paulo VI ao papa Francisco. 40 Nova publicação em 2010 reafirmam as hierarquias, os silenciamentos, as prescrições necessárias a ordem social patriarcal capitalista. As edições anteciparam o golpe institucional de 2016. Ver: https://edicoescristorei.com.br/produto/catecismo-anticomunista/;https://www.amazon.com.br/Catecis mo Anticomunista-Geraldo-Proen%C3%A7a-Sigau/dp/8566764161.
Minas e do Brasil um modo de fazer do Estado brasileiro, não o Estado Democrático de Direito, mas o autoritário, ditatorial, clientelista e patrimonial. No discurso catequético justificou-se o status quo colonial, garantiu-se o silenciamento da diferença, da desigualdade racial, da desigualdade de gênero ao legitimar as formas de opressão com as quais o povo negro, indígena e as mulheres já conviviam. Assim, adentramos ao efeito da branquitude como conseqüência do projeto educacional patriarcal, de modo a compreender como nos pactos narcísicos41[3] produzidos seja nos nomeados negros, seja nos brancos, garantiu a naturalização da ideologia do mito da democracia racial e a concepção ideológica do homem universal (católico, branco, heteronormativo) alienando os sujeitos sociais na racialidade branca ( BENTO, 2002). Tais ideologias dificultam a ruptura com as violências simbólicas que organizam as relações sociais, onde as opressões entre os sujeitos sociais, e as hierarquias culturais e simbólicas (superioridade, meritocracia; inferioridade/incapacidade) subordinam as relações intersubjetivas e institucionais reificando, no silêncio do tabu o simbólico racista, a lógica de supremacia branca.
3 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS/ FINAIS
O Catecismo Anticomunista foi organizado em 17 eixos temáticos, através de perguntas e respostas, o arcebispo diamantinense orienta os católicos sobre a „seita internacional que segue a doutrina de Karl Marx, e trabalha para destruir a sociedade humana baseada na lei de Deus e no Evangelho‟ (SIGAUD,1962p.7), produzida por Satanás,chamada Comunismo. Adverte: mesmo não sendo o socialismo igual ao comunismo, ambos devem ser combatidos de modo a resguardar a doutrina da Igreja e a ordem hierárquica natural. Cabe ressaltar que na década de 60, do século XX, no contexto brasileiro, nem 1% da população negra acessava a universidade. As discussões das teorias marxistas como já apontado por Lopes (2017) se intenficaram na década de 70, do século XX. Portanto, entender o cenário político, social e educacional no qual o
41 Em Pele Negra. Máscaras brancas, Frantz Fanon (2008), analisa o simbólico que leva a internalização da branquitude e das relações de subordinação racial que atravessam o funcionamento social, político e intersubjetivo da sociedade francesa e dos negros antilhanos, descreve que os pactos narcísicos levam a alienação da consciência tanto de negros, como de brancos. Aqueles por desejarem ser brancos, estes por internalizarem as hierarquias, naturalizando a subordinação que nega a humanidade ao negro, o inferiorizando. E de outro lado, não problematizam os privilégios da branquitude como processo histórico social, que violenta e objetifica os outros.
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Catecismo foi publicado nos aponta o caráter de controle disciplinar e moral que leva a Igreja a publicá-lo. Se evidencia nos itens colocados no catecismo, a disputa ideológica entre socialismo/comunismo e capitalismo. Se evidencia ainda o lugar político assumido pela Igreja. Quem divulgará o catecismo? A quem será dirigido? Quais os agentes mediadores do mesmo? O que ele quer colocar sobre controle? Pelo contexto descrito, podemos afirmar: os agentes mediadores foram as catequistas brancas, as instituições formadoras (magistério, serviço social, associações sindicais vinculadas a Igreja), as crianças brancas e negras foram alvos do Catecismo, mas sobretudo, a população negra e as comunidades negras, apartadas do acesso à terra, à educação, e ao trabalho formal assalariado. E mesmo nos anos 80 do século XX, não podemos dizer que o saber marxista já compunha o fazer universitário, pois conforme Gonzalez (2020,p.234) em 1986, „a minoria da população negra(1%) que consegue chegar à universidade e sofre um processo de perda da identidade. Ou seja, o branqueamento vai se dando de forma tal que, de repente, quando vê, se virou branco.” De igual modo, nos anos 90, do século XX, tais teorias não eram hegemonicamente problematizadas nas universidades públicas e ou privadas. Ao divulgar e antecipar a veiculação em massa do “pensamento marxista” a Igreja, pelas mãos de dom Sigaud, maneja simbólicos e significações que remetem ao esquecimento (JOVICHELOVITCH, 2008) e mantém a ausência de memórias históricas que pudessem colocar em xeque o social. Como agência publicitária, midiática, formadora de opinião, por via da divulgação oral e escrita instituída, e estando inserida em diversos e diferentes regiões do país, a Igreja preparou o terreno para a manutenção do ethos social de sulbaternidade e hierarquia necessárias ao estado „mínimo‟, autoritário e neoliberal; mas também justificou o discurso desenvolvimentista, patriota, capitalista e positivista de ordem e progresso necessários à ditadura militar. Conter as manifestações da população e o acesso das mesmas as idéias revolucionárias que exigiam as transformações sociais eram (e ainda o são) os objetivos silenciados via o credo religioso. Evitando que em solo brasileiro acontecesse a revolução social, ocorrida em Cuba (1961). Assim, as ditaduras militares nas Américas aconteceram com o apoio institucional da Igreja Católica. E se em 1986, apenas 1% dos negros acessava a universidade, em 2016, quando do golpe midiático, político e institucional, a realidade social e educacional era outra. O sexismo e o silenciamento
da violência sexual, psicológica, patrimonial, física imposta, secularmente, pela dominação de homens brancos e negros, à mulher negra ficará evidenciado na pergunta 41, que questiona: A que título a família faz parte da classe social? De acordo com a lei natural e a doutrina da Igreja, a família participa de algum modo, não só do patrimônio, como da dignidade, honra e consideração de seu chefe, com o qual forma um só todo e a cuja classe social pertence. Sendo inerente à família a transmissão aos filhos, não só do patrimônio dos pais, como também, de certo modo, da honra e consideração que se prende ao nome paterno, a presença da família na classe social dá a esta certo caráter de continuidade hereditária(SIGAUD, 1962, p.19) (grifos nossos).
Honra, dignidade, patrimônio, transmissão e „consideração que se prende ao nome paterno‟. Qual classe social legitima o nome paterno?? Quais famílias recebem o direito de herança, honra e dignidade hereditária?? E as relações familiares matrilineares, marcas culturais das populações marginalizadas e excluídas, feitas desiguais, negras e indígenas, muitas resultantes de estupros, violação dos corpos e dos afetos das mulheres negras/ índias, objetificadas/coisificadas pelos senhores brancos. No Brasil e nos interiores, os filhos „naturais‟ e os filhos „legítimos‟, eram e ainda são, hoje, formas de expressão/ nomeação para dizer das relações que extrapolam os limites dos lares católicos. O direito ao conhecimento e reconhecimento do “nome do pai”, herança e continuidade hereditária somente foi conquistado pós a Constituição de 1988. Aprofundar na estratégia metodológica, pedagógica da Igreja Católica em produzir o simbólico da cristandade, analisando a função dos círculos concêncritos na construção da arquitetura silenciosa da violência, envolveu diferentes afetos: o espanto, a raiva, à indignação. Mas, indicou-nos, por outro lado, os caminhos a serem trilhados, reafirmados no cotidiano do fazer educacional. É necessário inverter o giro do círculo: “Da mãe cristã, das famílias cristãs para a sociedade cristã”. A educação democrática, contra hegemônica, feminista exige o giro no sentido contrário: “da sociedade plural e diversa que almejamos, para as relações familiares que escolhermos, para mulheres/ homens que desejarem ser mães”. Portanto, é necessário provocar dúvidas, a criticidade, colocar entre parênteses a crença/ os dogmas naturalizados, estranhar/romper a tradição social da hegemonia cristã. É fundamental educar para a transgressão (hooks, 2013)
REFERÊNCIAS
Bento. M. A. S. Pactos Narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público./ Maria Aparecida Silva Bento. São Paulo:s.n; 2002, p.169.
CISNE, Mirla. Gênero, Divisão Sexual do Trabalho e Serviço Social. Mirla Cisne. 2 ed. São Paulo: Outras Expressões, 2015. 152p.
FANON, Frantz. Pele Negra: Máscaras Brancas. Salvador. BA. EDUFBA,2008 GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017
GONZALES. Lelia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
LOPES, Eliane Marta Teixeira. Da Sagrada Missão Pedagógica. 2 ed. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2017
JOVCHELOVITCH, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleção Psicologia Social).