8 minute read

Melissa Reis: estórias da vida de uma travesti

EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES MELISSA REIS: ESTÓRIAS DA VIDA DE UMA TRAVESTI Jean Souza dos Anjos

jeanjos09@gmail.com Doutorando em Sociologia (PPGS/UECE)

Advertisement

1 APRESENTAÇÃO

Conheci Melissa Reis, em 2015, na Cabana do Preto Velho da Mata Escura / Ilê Asé Ojú Oyá, terreiro de Umbanda e Candomblé localizado no bairro Bom Jardim, periferia de Fortaleza, Ceará. Melissa se tornou minha principal interlocutora na pesquisa sobre a Festa da Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas13 que ocorre no referido terreiro, sempre em novembro. Melissa é a cambone da Pombagira, isto é, ela assessora a entidade em tudo. Cambone tem a função, dentro dos terreiros, de cuidar das organizações dos rituais. Melissa, por exemplo, segura a taça de bebida da Pombagira, suas cigarrilhas e fica sempre ao seu lado durante todo o tempo em que ela está incorporada. A Pombagira é uma mulher. Ela é uma entidade que desafia os valores morais de uma sociedade machista e patriarcal. Pombagira bebe, fuma, dança e gargalha realizando, assim, seu trabalho espiritual no mundo material. Ela provoca e subverte a lógica que submete a mulher ao mundo doméstico. Sendo um Exu Mulher, vive nas encruzilhadas e nas ruas. Sua manifestação no mundo é força e comunicação. Por transgredir as normas sociais impostas, inclusive as de gênero e sexualidade, Pombagira é respeitada e temida por todos e todas. Neste sentido, Pombagira é o que ela quiser. Este trabalho apresenta estórias da vida de Melissa Reis entrelaçadas com o mundo social e religioso em que vive. Sua vida está intimamente ligada à Umbanda

13 Este trabalho é parte da minha dissertação de mestrado em Antropologia no PPGA Associado da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), defendida em 2019. A pesquisa teve apoio financeiro da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Amor, festa, devoção: a rainha Pombagira Sete Encruzilhas. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/50245 Acesso em: 04 jun. 2021.

e ao Candomblé, religiões em que ela deposita sua fé. Desta forma, esta reflexão colabora com os estudos de gênero e religiões afro-brasileiras.

1.1 Justificativa

Os crimes de ódio contra LGBTQIA+'s, no Brasil, não são contados por um sistema oficial e estatal de denúncia. Em artigo na revista Le Monde Diplomatique Brasil, o Prof. Dr. Renan Quinalha (2019) denuncia que os direitos LGBTQIA+'s sob o governo Bolsonaro estão na linha de tiro. O atual governo brasileiro representa valores associados à defesa da família tradicional, à heterossexualidade compulsória e a uma visão de mundo religiosa. E mais: as bandeiras do governo cogitam o êxito de um pânico moral alimentado há tempos e coloca a comunidade LGBTQIA+ como alvo das políticas e práticas de morte. Oliveira (2021) constata que a maioria das pesquisas denuncia a ação perversa do racismo, mas ignora a diversidade de gênero e de orientação sexual. E indica que, de acordo com o Grupo Gay da Bahia e o Instituto Brasileiro Trans de Educação, o risco de uma travesti ou mulher trans ser assassinada é 14 vezes maior em relação a homens gays. Neste cenário, justifico trazer narrativas biográficas de Melissa Reis, travesti negra e periférica, cabelereira, ativista dos Direitos Humanos, umbandista e candomblecista, para o debate. A vida de Melissa dá subsídios para compreender o mundo social e suas complexidades.

2 OBJETIVOS

O objetivo principal deste trabalho é apresentar trajetórias de vida de Melissa Reis, que, atualmente, se identifica como travesti. Tais narrativas biográficas, como exercícios etnográficos, ajudam a compreender experiências sociais brasileiras da vida trans e travesti. A reflexão sobre a transfobia dentro das religiões afro-brasileiras e as práticas de resistência de trans e travestis no mundo religioso também são objetivos desta comunicação.

3 METODOLOGIA

Dialogo com Kofes (2001; 2007) quando se refere a “estórias de vida” considerando estas como fontes de informação que ultrapassam o sujeito que fala e informam sobre o contexto social; evocação do sujeito transmitindo a dimensão

subjetiva e interpretativa destes; e reflexão que se resulta da relação entre pesquisador e o/a interlocutor/a. Butler (2015) oferece uma profunda reflexão sobre a responsabilidade diante do Outro14 . Para expor Melissa aqui é preciso, primeiro, respeitar Melissa e sua estória de vida. É uma condição ética primeva. Por fim, deixo-me ser afetado no sentido que Favret-Saada (2005) indica como metodologia, permitindo me entranhar na pesquisa com meu corpo em uma densidade particular onde o compreensível só chega mais tarde.

4 TRAJETÓRIAS DE MELISSA

Melissa Reis nasceu em Fortaleza, Ceará, no ano de 1975. Sua infância foi entre os bairros Bela Vista e Bom Jardim, estudou em escolas públicas, descobriu sua sexualidade logo cedo e já entendia que não era igual aos outros garotos. Melissa nasceu menino, sendo nomeado Washington Luis Reis Pereira. Embora sua família fosse umbandista, sua mãe queria afastá-la da Umbanda porque entendia que a religião era frequentada por gays e lésbicas, e achava que Melissa poderia ser influenciada. Mas a estratégia da mãe de Melissa não deu certo, pois sua orientação sexual não dependia de fatores externos, mas viria dos seus desejos. Melissa rompeu as regras no sentido que Louro (2015) indica como subversão e desobediência. Na juventude, Melissa conheceu o trabalho como cabeleireira em salões de beleza da cidade, mas também conheceu a prostituição na Av. José Bastos, conhecida via de Fortaleza. Da José Bastos foi para a cidade de São Paulo de carona de caminhão com Carol, uma amiga. Em São Paulo, Carol foi assassinada. Melissa sofreu com a morte da amiga, mudou-se para o Rio de Janeiro, se prostituiu na Lapa, cometeu pequenos delitos e encontrou um amor. Com muitas dificuldades, Melissa retornou à Fortaleza onde recomeçou a vida. Recomeçar é um verbo caro para Mel, como gosto de chamá-la. Melissa voltou a trabalhar em salões de beleza e foi envolvendo-se com o mundo das drogas. Sofria com o preconceito para conseguir empregos, pois os donos de salões não queriam empregar travestis. Em alguns casos era pedido que ela cortasse o cabelo e se vestisse como homem. Sem emprego e envolvida com o

14 “Outro” escrito em maiúsculo converge com o pensamento de Lévinas (2009). É um lugar de relação ética infinita.

75

tráfico, devendo grandes valores por conta do consumo de crack, Melissa chegou ao fundo do poço. Até que um dia recebeu um recado. A Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas mandou avisá-la que estava sabendo do seu sofrimento e que iria ajudá-la. Melissa acreditou. É importante ressaltar que ela nunca deixou a religião. Seus guias sempre a acompanharam. Mas o chamado da Rainha Pombagira foi especial. Em 2011, Melissa entrou no Candomblé e, a partir de 2014, começou a cambonar a Rainha Pombagira. Sua vida, como um milagre, foi restaurada. Mas a vida não é só flores. No terreiro, Melissa, como outras travestis e trans, enfrentam preconceitos. Olhares enviesados, palavras maledicentes, ataques desrespeitosos chegam sem avisos prévios. Presenciei alguns deles e tenho me envolvido para transformar esse cotidiano junto com Melissa. A vida dentro dos terreiros não é diferente do mundo social. Questões estruturais, como racismo e transfobia, são visíveis e precisam ser questionadas. Assim como Dias (2020), busco compreender, enfrentar e superar os processos de violência dentro dos terreiros de Umbanda e Candomblé. Hoje, Melissa mantém seu salão de beleza no bairro Bom Jardim, atende seus clientes da Umbanda e mantém ativismo em Direitos Humanos. Durante a pandemia por conta da Covid-19, Melissa organizou o projeto A Fome não Espera para arrecadar alimentos para a população mais carente de sua comunidade. Seu trabalho incansável na defesa das minorias é um exemplo para todas nós. Em 2020, ela participou do filme As Cores do Divino15 , dirigido por Victor Costa Lopes. No documentário, ela fala sobre sua relação com o sagrado e suas experiências de vida no Candomblé e na Umbanda.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A expectativa de vida de transexuais e travestis no Brasil é de 35 anos16 . Quando exponho a vida e a luta de Melissa Reis quero reforçar a reflexão sobre gênero e violência nas populações trans e travestis. As vulnerabilidades sociais

15 As Cores do Divino. Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bKwECUDwKVs Acesso em: 05 jun. 2021. 16 Expectativa de vida de transexuais e travestis no Brasil é de 35 anos. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-travestis-no-brasil-e-de-35-anos/ Acesso em: 05 Jun. 2021.

estão postas nas experiências apresentadas aqui. Neste sentido, este trabalho é uma prática de resistência e aponta para urgências de enfrentamentos. As estórias de vida de Melissa desvelam um mundo onde tantas outras travestis e mulheres trans passaram e passam. Em todos os lugares onde ela andou teve que conviver com a violência e o preconceito. No terreiro, Melissa é acolhida pela Pombagira, uma entidade que trasgride as normas da sociedade patriarcal e machista, mas, ainda assim, sofre com os preconceitos de algumas pessoas da sua própria experiência de fé. Viver, para Melissa Reis, é estar sempre organizando trincheiras e estratégias de sobrevivências. Sigo, com ela, fabricando resistências17 .

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. DIAS, Claudenilson da Silva. Identidades trans em candomblés: entre aceitações e rejeições. Salvador-BA. Editora Devires, 2020. FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Tradução de Paula Siqueira. Cadernos de campo n. 13: 155-161, 2005. KOFES, Suely. Uma trajetória, em narrativas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001.

_______Experiências sociais, interpretações individuais: Histórias de vida, suas possibilidades e limites. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 3, p. 117–141, 2007. LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Racismo e homotransfobia como política de morte do governo. Cult – Revista brasileira de cultura. São Paulo. Ano 24. Edição 269, p. 26-29. Maio, 2021. QUINALHA, Renan. Os direitos LGBT sob o governo Bolsonaro. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo. Ano 12. Número 143, p. 4-5. Junho, 2019.

17 Fotografias de Melissa Reis, produzidas por mim, foram selecionadas para a Exposição Fotográfica Contrastes, nesta edição do Curta O Gênero 2021.

This article is from: