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Performatividade de gênero: (des)construção no espaço escolar
EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO: (DES)CONSTRUÇÃO NO ESPAÇO ESCOLAR
1 APRESENTAÇÃO Julia Moreira Guimarães
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jumoreirag@discente.ufg.br Universidade federal de Goiás (UFG)
Durante estágio realizado, em 2017, em um colégio estadual no município de Goiânia/GO fui responsável, juntamente com uma colega, por uma disciplina optativa sobre arte urbana. Dividimos a disciplina por oficinas semanais e tínhamos os muros da escola disponíveis para as experimentações. Nas semanas seguintes após a aula de lambe-lambe18 algumas “intervenções” foram feitas em um lambe colado nas paredes internas do pátio da escola.
Figura 1. Intervenção em lambe no Colégio Estadual Pedro Xavier Teixeira. Crédito: Leticia Almeida
Apesar da intervenção criativa como resposta ao que foi escrito, parece ser normal um adolescente ter o direito de sair por aí falando que “gozou dentro mesmo”, propagando a ideia de que sexo sem prevenção é algo aceitável assim como não perguntar se havia o consentimento da companheira. Este texto surge a partir de análises feitas no trabalho de conclusão de curso (TCC) do curso de licenciatura em artes visuais (FAV/UFG)19 que buscava discutir como o machismo,
18 “Lambe-lambe” é uma técnica que consiste na colagem de posters em superfícies diversas com uma mistura de cola. 19 Faculdade de Artes Visuais / Universidade Federal de Goiás
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as desigualdades e as perfomatividades de gênero20 são refletidas e reforçadas dentro do espaço escolar. Criarmos e reproduzirmos os estereótipos e as discriminações desiguais de gênero. Como trabalhar o contexto escolar para desconstruir os padrões degênero ao invés de reforçá-los? Esse menino que escreveu no cartaz, cresceu sendo ensinado que homens têm mais direitos que as mulheres e mais, que os homens têm direitos sobre as mulheres. Neste cenário, a responsabilidade da escola é grande, pois ela pode tanto combater esses estereótipos, como reforçá-los, reproduzindo o padrão que cria as normas machistas e sexistas. Escutando falas de docentes da educação básica de Goiânia/GO que participaram do curso de extensão “Ensino de Arte, Questões de Gênero e Visualidades: Estreitando Relações”, elaborado através do programa PROVEC/UFG no ano de 2017 e da professora de artes do colégio campo de estágio parece evidente a necessidade dessa discussão a partir do professorado. Uma das professoras participante do curso de extensão expos que acredita que boa parte do reforço dos padrões e desigualdades de gênero nas escolas vem por parte do próprio grupo de docentes. Nas palavras dela: “Infelizmente na sala dos professores ouvimos e vemos muitos preconceitos, eu falo que é o pior local da escola é a sala dos professores, porque realmente o preconceito é grande nesse local”. Já a professora entrevistada enfatizou que percebe a falta de disposição que docentes têm de repensar suas atitudes, porque segundo ela, “quando você entra com muito sonho, às vezes a animação logo acaba, porque você ganha pouco e esquece os “ideais”, sabe? Comprar essa briga tem que estar disposta e aberta a mudar nossas práticas e adotar novas visões de mundo”. A professora entrevistada ainda comentou sobre a importância de levar as discussões consideradas “polêmicas” para a classe e incentivar debates em que todos os sujeitos tenham voz escutando o que estudantes tem a dizer sobre essas questões, mas completou dizendo que ainda acha muito difícil essa dinâmica porque percebe que muitas atitudes vindas de docentes ainda precisam ser
20 Judith Butler desenvolve o conceito de performatividade de gênero, descrevendo-o como comportamentos que aprendemos desde cedo e vamos reproduzindo-os ao longo da vida em relação aos comportamentos que reforçam a normatização dos corpos masculinos e femininos, de feminilidades e masculinidades.
desconstruídas para que isso aconteça.
1.1Justificativa
Antes mesmo de nascermos já nos é designado um gênero a partir da nossa genitália. O “sexo biológico” é, por lógica da obrigação e ausência de questionamentos, designado para distinguir pessoas a partir de parcelas do corpo físico e, consequentemente nessa sociedade estipular ações pré-definidas para homens e mulheres fazendo com que qualquer sujeito que ultrapasse essas fronteiras esteja fugindo das normas. Essa prática de repetição de signos já existentes para que se seja ensinado e aprendido a ser mulher ou homem, são chamadas por Judith Butler de perfomatividade de gênero, e esses signos e normas do jeito que conhecemos são por regra cis-heteronormativos, ou seja, tem a heterossexualidade21 cisgênera22 como a maneira correta de se estruturar os costumes e relações. Depois de separar, a partir da lógica binária, homens e mulheres em caixinhas distintas começa a ser ensinado como devemos nos portar. O estudante que fez a intervenção no lambe não fez apenas por ser menino, fez porque aprendeu que podia fazer. Aprendeu que tinha o direito de se colocar em posição superior, nesse caso, a discussão de violência contra mulher que estava ocorrendo com o lambe, e mais, que deixar isso explicito dessa maneira nessa intervenção era bom para ele de algum jeito. Nos construímos e somos construídos pelo modelo de sociedade em que estamos inseridos, aprendemos padrões normativos e os passamos para frente. O ambiente escolar é mais um dos espaços de relações em que se é reforçado esses padrões. bell hooks23 (2017, p.53) vai dizer que “Nenhuma educação é politicamente neutra. Mostrando que o professor branco do departamento de literatura inglesa que só fala das obras escritas por “grandes homens brancos” está tomando uma
21 “Heterossexualidade” é a nomenclatura utilizada para nomear a orientação sexual em que o desejo se dá para o sexo oposto. 22 “Cisgênera” é a nomenclatura utilizada para nomear quem se identifica com o gênero/sexo imposto no nascimento. 23 “bell hooks” está escrito neste trabalho em letras minúsculas para respeitar um desejo da própria autora.
decisão política”. Nesse sentido Guacira Lopes Louro (2020) explica que escolhemos o que vamos ensinar e compartilhar em sala de aula, e com isso escolhemos então o que não vamos trabalhar, quando fazemos uma escolha de metodologia estamos deixando outras opções de fora, então pergunto, o que levamos em consideração nas nossas práticas pedagógicas? Ela acrescenta:
Portanto, ao se eleger a desconstrução como procedimento metodológico, está se indicando um modo de questionar ou de analisar e está se apostando que esse modo de análise pode ser útil para desestabilizar binarismos linguísticos e conceituais (ainda que se trate de binarismos tão seguros como homem/mulher, masculinidade/feminilidade) (LOURO, 2020, p. 41). Nenhuma resposta ao acontecido no lambe foi tida a partir da equipe da escola, precisou que nós, estagiarias, propuséssemos uma roda de conversa e ainda sim apenas com estudantes que quisessem esse diálogo. Nós docentes temos a responsabilidade de a repensar essas dinâmicas de acordo com a importância de diversificar os conteúdos e criar espaços independentes, para debater essas temáticas urgentes. Afinal, a escola é um dos espaços onde formamos as pessoas que podem fazer com que, futuramente, tenhamos uma sociedade mais respeitosa e igualitária.
2 OBJETIVOS
Esse trabalho tem como objetivo identificar e debater, a partir do ponto de vista do professorado, como os processos de construções de identidade e performatividade de gênero são vistos e reforçados dentro do ambiente escolar. Identificar e problematizar as práticas pedagógicas que reproduzem os estereótipos de gênero e, assim, elaborar estratégias que criem possibilidades de construir um ambiente favorável e democrático. Pensando a intenção de promover discussões e criar possibilidades de estratégias pedagógicas que fomentem relações de gênero mais igualitárias e respeitosas no contexto educacional.
3 METODOLOGIA
A investigação narrativa é uma metodologia que valoriza os relatos e as experiências vivenciadas. Segundo Larrosa (1994, p. 65) “é contando histórias,
nossas próprias histórias, o que nos acontece e o sentido que damos ao que nos acontece, que nos damos a nós próprios uma identidade no tempo”. Assim, ao narrarmos nossas próprias experiências não estamos apenas descrevendo fatos, estamos, também, rearticulando significados e criando subjetividades sobre o que foi vivido. Para Connelly e Clandinin, o uso das narrativas em pesquisas dentro do contexto educacional justifica-se porque nós, seres humanos, "somos organismos contadores de histórias", individual e coletivamente, "vivemos vidas relatadas" (1995, p.11). Essa metodologia representa, portanto, as formas como vivenciamos e experimentamos o mundo. Nessa direção, podemos entender que a educação é um cenário de construção e reconstrução de histórias pessoais e coletivas de pessoas que constroem o cotidiano, a comunidade escolar. Os autores também apontam que a investigação narrativa deve valorizar as vozes dos sujeitos participantes da pesquisa (p.21), pois, trata-se de uma relação colaborativa entre quem pesquisa e quem é pesquisado.
4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Acredito que ainda temos muito o que discutir e estudar a respeito das construções de identidade e performatividade de gênero. Repensar nosso papel enquanto docentes nesse processo de (des)construção desses reforços normativos dentro do espaço escolar é um possível caminho em direção à espaços mais acolhedores e democráticos. Trabalhar questões que trazem à tona os pontos de vista dos grupos que são marginalizados ou inferiorizados é uma tarefa importante e cada vez mais necessária, haja visto as tensões que presenciamos nos últimos tempos advindas do repertório de maldades das políticas públicas. Também é imprescindível colaborar com a escola para ajudá-la a levar a realidade do alunado para dentro dos muros dos colégios, suas vivências devem fazer parte dos currículos e dos processos de ensino, entre elas, as questões de gênero e sexualidade.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/ 20ª ed - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. CONNELLY, Michael & CLANDININ, Jean. Relatos de experiencia e investigación narrativa. In: LARROSA, Jorge. Déjame que te cuente. Barcelona: Editorial Laertes, 1995.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz T. O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 1994. p.35-86.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2020.
EIXO 2 - GÊNERO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO ENTRE ESCOLAS E IGREJAS: UMA CARTOGRAFIA DAS RELAÇÕES DE PODER E DO CAPITAL SIMBÓLICO NOS PRESÍDIOS FEMININOS DO ESTADO DE SÃO PAULO
1 APRESENTAÇÃO DO TRABALHO Beatriz Vasconcelos1
vasco.be78@gmail.com Mestranda em Educação (PPGE/UNIFESP)
O objetivo desta pesquisa está em investigar a relação entre o trabalho de escolas e de igrejas nas penitenciárias femininas do Estado de São Paulo. A hipótese da pesquisa sustenta que há uma tendência de tais instituições reforçarem os estereótipos e os papéis sociais femininos, segundo agenciamentos subjetivos de capitais simbólicos manejados pela estrutura de nossa sociedade patriarcal. Emerge daí uma série de questões: não haveria um gradiente de contradição a ser exposto entre pretensas práticas sociais aceitas dentro das penitenciárias femininas que, em nome da ressocialização, da transformação da condição humana visando a reintegrá-la na sociedade e, não menos importante, por intermédio de imposição da distinção social catapultada pela formação escolar e pela conversão religiosa que, no fundo, continuam a amalgamar valores, atitudes, comportamentos e modos de ser necessários ao funcionamento conservador da sociedade? Não haveria uma correlação direta na manutenção contraditória dessa dinâmica com a própria manutenção da exploração da mulher pela sociedade capitalista? Quais tipos de aportes teóricos podem ser suscitados para colocar em evidência tais contradições quando se busca afirmar outros modos de produção de subjetividade feminina em nossa sociedade?
1.1 Importância/Justificativa
A presença feminina no sistema criminal e no sistema carcerário é mais uma forma de dominação por parte da esfera masculina, tão inculcada nos comportamentos e nos modos de pensar dominantes que implicam, inclusive pelas genereficado pelos homens (FEDERICI, 2019). Por ser uma violência simbólica, isto é, não visível, torna-se ainda mais dificultosa para as mulheres a tarefa de se
libertar dessas relações de dominação, justamente porque as normas estão profundamente enraizadas nas categorias do pensamento e da ação do habitus. Outrossim, o poder-saber produzido nos discursos da classe dominante e apreendido pela classe dominada está presente tanto nas igrejas quanto nas escolas. Ele não é percebido claramente porque não é apenas da ordem da proibição e da punição, mas “ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 1997, p. 11). Assim como a necessidade imperativa da educação, a Lei de Execução Penal e as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos reiteram a presença das instituições religiosas nas prisões, dando abertura para que presos exerçam sua liberdade religiosa. A receptividade e a forte presença das igrejas nas prisões de todo o País são alvo de muita investigação, como visto, já que possuem uma capacidade considerável de assistência e intervenção no ambiente, além de serem grandes instrumentos de educação, disciplina e moralização dos presos e das presas. A realidade da legislação penal de São Paulo vem se demonstrando inflexível quando se trata de práticas educativas formais e informais, mas sempre mais aberta às instituições religiosas. Percebe-se a existência de propostas de afastamento da conscientização do indivíduo e de sua realidade que poderiam ser atingidas pela via educativa. É notório que o olhar científico foi construído para e por homens, de modo que mulheres dentro desse espaço mostram-se como uma manifestação de resistência (RUSSEL; ALEXANDER, 2019). A abordagem mais encontrada em pesquisas afins a esta considera que as mulheres presas são “homens que menstruam”, ou seja, não existe a menor diferença de tratamento entre ambos. Mais profundamente, a ciência patriarcal não demonstra interesse em estudar mulheres encarceradas, justamente por desconsiderar essa vivência e a luta importantes. Desse modo, a presente pesquisa desponta como um modo não apenas de produzir conhecimento acerca das implicações do cárcere feminino para a condição da mulher, mas de trazer a lume para as Ciências Sociais e, especificamente, a Educação, uma problematização pertinente à nossa capacidade de contribuir para que, cada vez mais, pesquisadoras sejam capazes de refletir e de intervir sobre e nas condições femininas em uma sociedade capitalista racista e patriarcal.
2 OBJETIVOS
Assim, o objetivo geral desta pesquisa é o de investigar as formas de execução das políticas penitenciárias femininas do Estado de São Paulo, bem como os seus executores, considerando que ambos, dentro do sistema carcerário brasileiro e dos mecanismos de poder que dele emanam, um habitus é reforçado para a condição feminina. A proposta analítica consequente da cartografia, nesse caso, visa a contribuir para a redução das diversas formas de desigualdades que, no País, se acentuam em decorrência de nossa herança patriarcal. Há nisso também um combate contra a planificação subjetiva da condição feminina periférica, muitas vezes reforçada pela falta de acesso à educação formal, ainda mais dentro das penitenciárias.
3 METODOLOGIA
Considera-se elementar para a concepção da pesquisa uma fundamentação teórica que busque articular produções teóricas relacionadas, assim como a apresentação do que já foi pensado anteriormente sobre o tema. Para tanto, será preciso um levantamento bibliográfico que enriqueça teoricamente a discussão, favorecendo a construção da pesquisa. Os conceitos de função-sujeito, poder disciplinar e relações de poder, desenvolvidos por Michel Foucault, serão fundamentais para perspectivarmos como o poder agenciado nas prisões acaba por se constituir em gabarito comportamental visando a ajustar as subjetividades ao habitus reinante. Com efeito, é mister saber se, a partir daí, criam-se bloqueios para práticas educativas não conformes ao poder do capital simbólico circulante nas prisões. Por isso mesmo, as noções de habitus, capital simbólico e violência simbólica, eivadas do pensamento de Pierre Bourdieu precisarão ser perscrutadas. Aqui, Bourdieu será utilizado como base igualmente importante para o entendimento das relações de dominação a partir da religião, da educação, das questões de gênero, bem como da manifestação do habitus nas figuras dominantes e dominadas. Dados produzidos por instituições públicas, privadas e por trabalhos científicos serão utilizados para ilustrar em forma estatística a realidade da condição penitenciária.
4 CONSIDERAÇÕES
O jogo do poder disciplinar apresenta-se como força capaz de manipular e de conter o que Foucault (2006, p. 69) denominou de “singularidade somática”. A força exercida pelo poder disciplinar, assim, visa a permitir que “a função-sujeito venha se ajustar exatamente à singularidade somática: o corpo, seus gestos, seu lugar, suas mudanças, sua força, seu tempo de vida, seus discursos, é em tudo isso que vem se aplicar e se exercer a função-sujeito do poder disciplinar”. Interessa ao poder disciplinar orquestrar-se em um ambiente administrável, donde, por sua vez, as próprias condições de se questionar as relações de poder precisam ser minimizadas. Ora, a escola, quando aparece no sistema prisional, compõe mais um dentre os diversos elos na cadeia do poder disciplinar. O reforço ao bom comportamento funciona como processo de seleção do próprio habitus. Assim, apenas determinadas pessoas são merecedoras da economia simbólica e da distinção circulantes nas prisões em função de seus bons comportamentos. As igrejas, entretanto, oferecem-se para todos, pois todos são merecedores e podem ser perdoados aos olhos de Deus. Não obstante, entende-se que apenas Ele tem a força para regenerar e transformar a vida de um indivíduo. Esse discurso religioso regenerador funciona como potente carga simbólica e demanda disciplinar subjetiva. Assegurando, pelo processo de conversão, a transformação individual e, sobretudo, a curto prazo, a regeneração espiritual, a adesão religiosa apresentam atrativa face ao lento processo civilizatório e humanizador da formação humana demandada pela educação. Por seu turno, a escola e as experiências de educação formal perdem lugares no sistema prisional, como se fossem parasitadas pelo capital simbólico religioso. Frequentar as aulas no sistema prisional, embora auxiliando na comutação da pena não promete nem regeneração de força simbólica, galardão no céu ou identificação imediata no habitus pretensamente transformador da função-sujeito. Mas há um paradoxo que tensiona esses lugares e que merece lugar na pesquisa. Poder-se-ia argumentar que a religião aparece como uma ferramenta que de fato tem a capacidade de transformar o posicionamento e a cosmovisão de um indivíduo, estimulando-o a buscar melhores formas de viver, de interpretar e de sentir. A expressão da fé, assim, poderia contribuir para a população carcerária
buscar a reintrodução nos estudos, melhores relações familiares e a busca por um emprego. A inserção do indivíduo na atmosfera ritualística, a frequência em reuniões e cultos, a abertura para a conversa e a mudança para um ambiente acolhedor, acompanhada de fiéis e de diversos projetos que trazem as narrativas religiosas como reflexão são relatos e experiências de vida muito encontrados e pretensamente demonstram uma mudança positiva na postura dos presos e presas. Mesmo quando não há presença de igrejas, os pequenos cultos são espalhados por todo o espaço, e as presas se apropriam das palavras de fé para se agarrar à religião junto às companheiras de cela. Da mesma maneira, ocorrem diversas aulas espalhadas pelos pavilhões, onde “quem sabe mais ensina quem não sabe”, tirando dúvidas, fazendo equações de matemática, lendo e passando o tempo. Ambas as instituições estão tão fortemente enraizadas nas práticas coletivas e individuais que, mesmo em casos de privação de liberdade, continuam presentes nos hábitos diários, sendo praticamente impossível impelir suas existências ali. Assim, é possível enxergar que no sistema carcerário encontram-se formas educacionais que podem tanto se inclinar para um viés mais laico quanto mais religioso. Nos presídios, tais formas podem aparecer nas escolas e nas igrejas. Cabe ao poder do Estado julgar o que é mais conveniente e menos agressivo para a manutenção do seu status quo, facilitando e legitimando a entrada das partes que são capazes de manter a ordem e a mansidão.
REFERÊNCIAS
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MulhereSemPrisão: Enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal/ Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; coordenação de obra coletiva: Maria Clara D’Ávila Almeida, Mariana Boujikian Felippe, Raissa Carla Belintani de Souza e Roberta Olivato Canheo. São Paulo: ITTC, 2019. Tecer Justiça: presas e presos provisórios na cidade de São Paulo / Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e Pastoral Carcerária Nacional; coordenação de obra coletiva: Heidi Ann Cerneka, José de Jesus Filho, Fernanda Emy Matsuda, Michael Mary Nolan e Denise Blanes.– São Paulo : ITTC, 2012. LAVAL Christian. Foucault, Bourdieu e a questão liberal. São Paulo: Elefante, 2020. PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (Orgs.). Pistas do método da cartografia. Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020. RUSSELL, Jeffrey B.; ALEXANDER, Brooks. História da bruxaria. São Paulo: Aleph, 2019.