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Lugar do corpo: individuação e alteridade a partir de Leonilson
EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES LUGAR DO CORPO: INDIVIDUAÇÃO E ALTERIDADE A PARTIR DE LEONILSON
Lúcio Flávio Gondim da Silva
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luciofgondim@gmail.com Universidade Federal do Ceará (UFC)
1 APRESENTAÇÃO Marina Baltazar Mattos
marinagmattos@gmail.com Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Judith Butler (2002), desde o título de seu livro, Cuerpos que importan, pressupõe que há, perante a lógica colonial, neoliberal e conservadora, alguns (corpos) que não importam. Segundo a autora, são abjetos, ininteligíveis ou deslegítimos, teoricamente, não se materializam, dentro de uma ontologia desafiadora. Mas justamente a partir de sua ambivalência constituinte, esses corpos existem: como poder excluído, disruptivo, contradição normativa proposital, efeito de pressuposição através da performance. Diante dessa leitura, procura-se pensar a existência de corpos abjetos dentro e fora da literatura e suas expansões, para além da sua constituição enquanto materialidade. Poderia tratar-se de diversas subalternidades que têm reivindicado sua fala, mas, escolhemos, aqui, partir das obras do artista plástico cearense José Leonilson - trabalhos que falam por si só e carregam uma multidão consigo, inclusive a produzir constante significado, legitimidade, lugar de fala e representatividade. Ao se colocar como um corpo homossexual que expõe desejos e interditos, relacionando-se diretamente com os sofrimentos de outros corpos socialmente indesejáveis, Leonilson perfomatiza, segundo Paul B. Preciado (2014), uma contraversão:
No âmbito do contrato contrassexual, os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como falantes, e reconhecem os outros corpos como falantes. Reconhecem em si mesmos a possibilidade de aceder a todas as práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história determinou como masculinas, femininas ou perversas. (PRECIADO, 2014, p.21).
Como nos fala a teórica Preciado (2014), os significantes desses corpos reivindicam-no, ao clamar por uma existência legitimada, por um discurso dito por eles próprios. No caso de Leonilson, seu desejo parece ser o motor central para o estabelecimento da sua luta corpórea. É a necessidade incessante de um Outro que o faz criar, até o momento em que se descobre portador do vírus HIV, e, então, passa a ser a doença – o outro agora é, por meio de metáforas médicas orientadas por um quadro de guerra, um micro-organismo “invasor”, contra quem é preciso “lutar” para viver – no caso de Leonilson, a luta começa por meio da própria linguagem, na tentativa de elaboração e esvaziamento da doença enquanto fim. Quando isso acontece, sua arte passa a ser, como sempre o foi, pano de fundo para minimamente compreender-se e fazer-se compreender, em sua multiplicidade significativa, o que uma enfermidade então pouco conhecida representa diante de um modo afetivo antiquíssimo e ainda hoje contestado. O perigoso (1992) retrata bem esse panorama, sendo composto por uma gota de sangue sob a qual é escrito o vocábulo que o nomeia. Leonilson escreve com a própria corporeidade sua sina: a de ser um dissidente em invariável condição de exclusão. Ele é um risco iminente e se coloca/é colocado em uma posição de perigo, sem, no entanto, deixar de, em seu silêncio, gritar verbal e visualmente seu veto social. Em sua individuação, a alteridade se faz presente incessantemente, tornando-o um eu repleto de outros, não-padrões e também padrões, se pensamos que estes são os que o nomeiam e atualizam física e emocionalmente como um corpo que não importa.
Figura 1 – O perigoso. 1992. Leonilson, 1957 Fortaleza – 1993 São Paulo. Tinta de caneta permanente e sangue sobre papel. 30,5 x 23 cm. Fotografia: © Rubens Chiri / Projeto Leonilson.
1.1 Justificativa
José Leonilson é um artista que tem uma aparição latente no cenário artístico brasileiro e internacional contemporâneos. Desde sua produção inicial, na década de 1970, faz uso de variados suportes, procedimentos e textualidades, na construção de uma obra heterogênea, inclassificável e aberta à (re)interpretação. Alguns eixos temáticos que se repetem ao longo de seus trabalhos tratam e até mesmo partem do corpo, tanto o seu quanto o do outro, em uma identidade individual fixada a partir da diferença da alteridade, que se abre com e para o mundo, em criação contínua e recíproca. O desejo não só de criação da arte, mas do artista e também de um conflito com a solidão são registrados a partir de uma intimidade escancarada (ou dedicada) ao público, em que o cotidiano é escrito de maneira concisa e poética. Sendo assim, ver, ler ou escutar os diários de Leonilson – espalhados por seus desenhos, bordados, agendas, cadernos de viagem ou gravações – nos permitem elaborar a existência não apenas de uma poética, mas também de um corpo, do artista e seus desejos. Um corpo deixado como abertura para se pensar as relações entre arte, vida e seus desvios (vale ressaltar que aqui desvio é positivo, ir contra uma lógica do sistema enquanto abertura de possibilidades múltiplas e não unas, mais condizentes com os próprios movimentos da vida) – a reivindicação de uma homossexualidade que vai se libertando de preconceitos e cria linguagens. Por outro lado, Leonilson recorre a todo instante a imagens que remetem a signos fálicos. Embora busque liberdade e reconhecimento, parece agir como os demais homens, sem ser uma “bichinha” – palavras suas a Adriano Pedrosa (2014, p. 244), no livro Leonilson: truth, fiction – que, ao desejarem e se manifestarem, “se comparam o tempo todo com o ideal de falo exatamente porque são dotados de um pênis, e não de um falo, estando, pois obrigados a demonstrar sua virilidade de maneira compulsiva [...]” (PRECIADO, 2014, p.77). É o que se vê em telas como Na neblina, o bom piloto (1988):
Figura 2 – Na neblina, o bom piloto. 1988. Leonilson, 1957 Fortaleza – 1993 São Paulo. Hidrográfica sobre papel. 10,5 x 7,4 cm. Fotografia: © Vicente de Mello / Projeto Leonilson.
Leonilson tem no falo um farol, afirmando, segundo Judith Butler (2016), agora em Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, “a postulação de uma sexualidade normativa que esteja “antes”, “fora” ou “além” do poder constitui uma impossibilidade cultural e um sonho politicamente impraticável” (BUTLER, 2016, p.65). De todo modo, é possível igualmente fazer uma leitura libertária desse pênis que se coloca de pé em direção a um outro pênis e/ou a um ânus, afirmando uma sexualidade em dissonância e, como vimos, que vai assumindo uma corporificação cada vez mais perigosa a partir da época da criação da obra em questão, o final da década de 1980.
2 OBJETIVOS
Analisar algumas das muitas obras de Leonilson a fim de compreender sua abertura para dialogar com e a partir do corpo e seus desdobramentos. Para tanto, cabe a nós lançar hipóteses sobre a manutenção e a soltura do artista diante de normativos sexuais, posto que é a partir do desejo que ele parece construir a cartela temática de suas obras.
3 METODOLOGIA
Além do apoio teórico de Butler (2002; 2016) e Preciado (2014), partimos da vasta obra de Leonilson, em especial presentes no catálogo Leonilson: truth, fiction (2015). Propomos, por meio dos referenciais supracitados, uma percepção crítico-metodológica, por pressuposto questionadora e reflexiva, orientada por questões de gênero, subversão e corpo, bem como por obras plásticas e visuais interessadas em estabelecer questionamentos que transbordam os campos artísticos e a barreira (in)existente entre arte e vida.
4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Percebemos, de antemão, em Leonilson, um corpo que se mostra frágil e, justamente a partir disso, mostra sua potência. Quando ele (o corpo do artista que se mistura, se elabora e é representado por meio da arte) se coloca desejante, quanto mais frágil se mostra ou apresenta, mais parece se fortalecer. Sendo assim, o corpo que beira o fim demonstra tal decrepitude, tanto do desejo que não se
concretiza quanto do corpo que perece, acolhendo e ressignificando, em público, esse processo fragilizante de um corpo possível, que pesa, dói e, portanto, importa. É o que podemos ver em Sua montanha interior protetora (1989), na qual olhos de fora enxergam, mas não alcançam completamente um corpo envolto por tinta azul. A possível montanha protetora do título, que blinda, fortalece, preserva e cuida de um corpo exposto em toda sua fragilidade, mas também em toda sua força. Leonilson, assim, nos brinda também com uma proteção: seu afeto transformado em cada uma de suas obras que abraçam nossos abismos e rochedos, nossas mortes e nossas resistências.
Figura 3 – Sua montanha interior protetora. 1989. Leonilson, 1957 Fortaleza – 1993 São Paulo. Tinta de caneta permanente, nanquim e aquarela sobre papel. 25,5 x 18 cm. Fotografia: © Fotógrafo desconhecido / Projeto Leonilson.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo” - 1a ed. Buenos Aires: Paidós, 2002. _____. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2016. PEDROSA, Adriano. Leonilson: truth, fiction. São Paulo: Pinacoteca do Estado; Cobogó, 2014. PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014.
EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES NAS RUAS DO BENFICA EU TE AMEI: A RESISTÊNCIA LGBTI+ NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO DO BAIRRO
1 APRESENTAÇÃO
Leysliane Bandeira Sales
Psicóloga CRP 11 - 16860 ed.leysliane.sales@gmail.com
O presente trabalho pretende-se a dialogar sobre como o sentimento de pertencimento e a afetividade construída com o território do bairro Benfica na cidade de Fortaleza/CE potencializa as relações de enfrentamento e impulsiona a resistência de sujeitos LGBTI+ ao se afirmarem enquanto existência na cidade e terem nas ruas do bairro espaços de sociabilidade que permitem a expressão de suas vivências. Buscamos identificar a partir das categorias de pertencimento e afetividade quais fatores fazem com que um bairro que não é propriamente o seu território, considerando que muitos sujeitos migram das periferias para se encontrarem em um bairro central da cidade, ocupe um lugar de afeto na vida do indivíduo e suas relações sejam tecidas dentro desse espaço com um sentimento de liberdade. O Benfica é um bairro de casas e moradores antigos, tradicional e central na cidade de Fortaleza/CE, ao mesmo tempo é um bairro universitário, cercado por bares e pode ser considerado até um lugar de passagem, pela grande movimentação de avenidas e ser via acesso a outros grandes polos. A inquietação deste trabalho partiu da observação de uma mudança nos padrões de ocupação do espaço deste bairro, que começou a ter pessoas que se deslocam de seus territórios, em sua maior parte periféricos, para fazer do Benfica o ponto de encontro e união de uma multiplicidade de sujeitos, juntos no objetivo comum de vivenciarem sua liberdade e expressão de afetos. Identificamos essa ocupação como ato de resistência, do indivíduo ou grupo que impõe sua presença naquele lugar e o faz como seu por direito. Refletir sobre os grupos de resistência que estão se organizando frente ao caos encontrado em nossa sociedade,
se mostra como uma possibilidade efetiva de encontro e trocas entre as pessoas. (FERREIRA, 2008, p.479) As categorias de análise delimitadas derivam da Psicologia Ambiental, escolhida por voltar-se para a forma que as pessoas sentem, pensam e vivenciam o espaço em que estão implicadas. (LIMA, BOMFIM, 2009, p 492) Trabalharemos com o sentimento de pertencimento, os significados atribuídos ao lugar do bairro Benfica e o apego construído com aquele espaço de vivências, assim como com a afetividade, considerando que o corpo se afeta a todo o momento pelas coisas que o rodeiam, mas também tem o poder de afetar. (BERTINI, 2014, p.82) Sendo capaz assim de analisar as relações entre pessoa-ambiente presentes na teia de afetos de um grupo delimitado, os sujeitos LGBTI+ e a sua ocupação do espaço público como estratégia de resistência frente as dinâmicas de violência e negação da sua existência. A escolha pelo bairro como objeto deste estudo é afetiva e conta sobre um processo de ocupação do bairro de família que começou a se chocar com as liberdades dos jovens que passaram a ocupar as praças do Benfica. Pereira retrata um pouco do início da popularização da presença de grupos LGBTI+ neste espaço:
Essa paisagem comum transmuta-se as sextas-feiras a partir das 18hs quando, o número de residentes na praça é quase nulo, estudantes de ensino médio, universitários e moradores de outros bairros da cidade para lá se dirigem a fim de usufruírem do local. Esses ocupantes atribuem uma dinâmica diferenciada, tornando a “Pracinha da Gentilândia” , como normalmente é denominada, reconhecida em toda a cidade pelo público GLBTTT. (2008, p. 24).
Apenas através de um olhar mais atento é possível perceber essas relações que vão se constituindo no bairro, no morar e conviver, enquanto fonte de legitimação dos grupos e os seus movimentos. (VASCONCELOS, 2017, p.18) A cultura LGBT tornou-se objeto de pesquisas, mas, é necessário dar aos indivíduos que compõe este meio o seu lugar de sujeitos na história e apresentar de que maneira eles (as) resistem a homofobia a partir de elementos do seu cotidiano. (DAVI, 2011, p.143)
1.1 JUSTIFICATIVA
Justifica-se a relevância deste trabalho como forma de reforçar as dinâmicas de resistência LGBTI+, trazendo a oportunidade de fomentar discussões políticas cotidianas como a ocupação do espaço público por grupos em situação de vulnerabilidade social, mas que ainda assim encontram estratégias de enfrentamento frente os embates sobre liberdade e expressão de afetos.
2 OBJETIVOS
Partimos da seguinte pergunta norteadora: O que faz o Benfica ser um bairro potencial de pertencimento e afetividade para a sua ocupação como forma de resistência dos sujeitos LGBTI+? Delineando como objetivo geral compreender como o sentimento de pertencimento e afetividade faz com que o bairro Benfica seja escolhido pelos sujeitos para ocupar e vivenciar. Tendo como objetivos específicos investigar as formas de ocupação do espaço do bairro Benfica pelos sujeitos LGBTI+; dialogar sobre os afetos de percorrer a cidade para chegar até o bairro Benfica e discutir que fatores podem construir o sentimento de pertencimento e liberdade de afetar-se no lugar.
3 METODOLOGIA
A pesquisa aqui proposta é de natureza qualitativa, pois aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas (MINAYO, 1994, p.22) e caráter descritivo, indo além da simples identificação da existência de relações entre variáveis e se propondo a determinar a natureza dessas relações. (GIL, 1987, p. 42)
O referencial teórico será construído a partir de artigos, dissertações e livros selecionados a partir da plataforma https://www.researchgate.net/ com a busca simples e combinada das palavras-chave: afetividade, resistência LGBT, pertencimento, ocupação de espaço público e bairro Benfica, verificando posteriormente se os mesmos vem de fontes de repositórios ou banco de dados com validade científica e tendo como critérios de inclusão a relevância do material para os objetivos da pesquisa e como critérios de exclusão materiais de publicação datada a mais de 20 anos ou que pactuem com uma abordagem equivocada ou discordante de uma postura ética sobre o trato com a temática LGBTI+.
Apropriando-se do método de observação-participante, onde o pesquisador está inserido no território e não é apenas observador, faz parte das vivências e afetos, que de acordo com Fernandes e Moreira (2013, p. 518) é caracterizada pela promoção de interatividade entre o pesquisador, os sujeitos observados e o contexto no qual eles vivem. Sendo assim um método que exige atenção dos nossos sentidos a cada interação sujeito-ambiente e se utiliza do instrumento do diário de campo para registrar essas percepções.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esperamos com a conclusão desse material termos sido capazes de compreender as motivações desse processo de deslocamento e ocupação do território e identificar os fatores que estabelecem essa relação de pertencimento e a teia de afetos envolvida no percurso. Um território considerado estranho por não ser o seu habitual transformou-se em espaço de resistência e apropriação para a comunidade LGBTI+. Vemos que o Benfica se tornou muito mais do que um bairro de amores passageiros, mas fez das suas ruas lar para que os sujeitos possam viver sua identidade e sexualidade plenamente. É só percorrer o caminho numa noite de sexta-feira para sentir a vibração da festividade ou sentar em um dos bancos da praça para acompanhar os encontros furtivos, quem sabe esperando um ônibus que demore um pouco mais a chegar na parada você tenha a oportunidade de entender um pouco mais sobre o desejo e a alegria de chegar e se encontrar no Benfica.
REFERÊNCIAS
BERTINI, F. A vivência ético-política-afetiva na comunidade.Cadernos Espinosanos, n. 31, p. 81-88. 2014 DAVI, E. H. D. Resistências e recusas: a cultura LGBT contrapondo-se a homofobia em Uberlândia. Caderno Espaço Feminino. Uberlândia, v. 24, n. 1, p. 141- 161, Jan./Jun. 2011.
FERNANDES, Fernando Manuel Bessa; MOREIRA, Marcelo Rasga. Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na Saúde Coletiva. Physis, Rio de Janeiro , v. 23, n. 2, p. 511-529, June
2013 . Available from . access on 25 Sept. 2020. https://doi.org/10.1590/S010373312013000200010.
FERREIRA, L. F. S. Apontamentos para uma reflexão sobre a ocupação dos espaços de lazer por grupos de resistência. Conexões, v. 6, n. 11p. 478-486, 2008. GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2009. LIMA, Deyseane Maria Araújo; BOMFIM, Zulmira Áurea Cruz. Vinculação afetiva pessoa ambiente:Diálogos na psicologia comunitária e psicologia ambiental. Psico/UFRGS, Porto Alegre, v. 40, n. 4, p.491-497, outdez 2009. MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 80 p. ISBN: 8532611451. PEREIRA, Ilaina Damasceno. Lugares no bairro: uma etnografia no Benfica. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008.
VASCONCELOS, Monica Monteiro da Costa. A cidade em movimento: práticas educativas do morar e conviver no bairro Benfica. 2017. 105f. – Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira, Fortaleza (CE), 2017.
EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES “EI, TU É?” CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA NO NORDESTINO ATRAVÉS DA LINGUAGEM
Francisco Henrique Cardoso da Silva
henriquecardoso220@gmail.com Faculdade Princesa do Oeste
1 APRESENTAÇÃO/INTERESSE DO TRABALHO A SER APRESENTADO
O escrito manifesta uma discussão das expressões da linguagem provenientes do nordeste brasileiro, com o interesse de trazer à tona expressões da linguagem verbal e não verbal que expõem representações da homossexualidade masculina em contexto. Nesta perspectiva, a linguagem é compreendida como um sistema de expressão e comunicação de pensamentos e sentimentos através dos sons, da fala ou dos símbolos e escritos (LANE, 2006). Elementos estes utilizados por uma comunidade de fala, e desenvolvidos em práticas sócio-históricas, incluem a linguagem não verbal que se mostra através de expressões, gesticulações e movimentos corporais. Como vemos nas palavras da Aurélia, a dicionária da língua afiada (VIP; LIBI, 2004), com destaque nordestino, um dicionário com dialetos e gírias LGBT, bastante usadas pela comunidade LGBTQIA+. A leitura foi ao encontro de aprofundamentos da questão: como a homossexualidade foi construída, percebida e dialogada entre as pessoas.
1.1 Importância/justificativa do trabalho
A homossexualidade é interrogada e reflexionada (FRY; MACRAE, 2012). Por isso, podemos perceber que a homossexualidade não é alguma coisa em si; ela é uma infindável interrogação partindo das relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Podemos visualizar que ela se dá de uma forma na Grécia Antiga, e outra na Europa do Século IXI, que se apresenta especificamente entre os índios Guaiaqui do Paraguai, produzindo sentidos e significados para o trabalhador rural do Mato Grosso e outros para um candidato a governador do Ceará, por exemplo.
Diante disso, buscamos analisar como essa homossexualidade é apresentada, representada, percebida, construída no imaginário social nordestino através das expressões de linguagem. Para tanto, lançaremos análises sobre como essas palavras são faladas e gesticuladas. Compreendendo que, muitas vezes, essas expressões da linguagem são utilizadas pejorativamente, a fim de ridicularizar homossexuais, colocando-o, em situações de constrangimentos, chacotas, humilhações e menosprezo. Este fato, no qual o pólo opressor utiliza do seu lugar de poder, de privilégio para subalternizar as pessoas que não estão dentro das sexualidades ou expressões de gêneros aplaudidas e aceitas pela a sociedade, pode ser compreendida como partícipe dos mecanismos homofóbicos dentro do heterocispatriarcado (OLIVEIRA, 2018). Assim, aquele utiliza da própria manifestação da singularidade destas para lhes colocar em lugar de não legitimidade de existir, rebaixando-as, discriminando-as e hostilizando-as. São instrumentos deste mecanismo palavras como: bicha, baitola e viado.
1.2 Objetivos
Analisar as expressões da linguagem verbal e não verbal do contexto nordestino com o intuito de contextualizar as representações da homossexualidade masculina.
2 METODOLOGIA
Este trabalho se inscreve na seara das pesquisas qualitativas (MARCONI; LAKATOS, 2003) objetivando a captação do significado subjetivo e singular das questões, os significados latentes, descrevendo-os e reconstruindo-os na complexidade das situações. Neste sentido, buscamos descobrir novos aspectos da situação em foco e contribuir para novas discussões. A investigação seguiu alguns passos para a coleta de dados: 1) busca ativa de material para a caracterização da amostra; 2) seleção de matérias que dessem conta da problematização proposta: Aurélia, a dicionária da língua afiada (VIP; LIBI, 2004); Cenas do Curta Metragem: Travessia Curta LGBT (2012); e uma imagem
simbolizando o gesto (mão inclinada para baixo)1 para indicar que a pessoa é homossexual: “Aí Tu é?”; “ei cara tu é”. Posteriormente a seleção, foi realizada uma leitura crítica sobre Aurélia, com o intuito de sublinhar as expressões comuns no nordeste. Em seguida, foi feita uma análise fílmica (MOMBELLI; TOMAIM, 2014) do Curta Metragem Travessia, que mostra uma cena de homofobia de agressão verbal. O curta foi filmado no Sertão do Pajeú em 2012 e foi exibido em 17 de maio do mesmo ano, dia internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, por uma iniciativa da Secretaria de Saúde de Afogados da Ingazeira – Pernambuco (PE). Para dar suporte à discussão, buscamos materiais bibliográficos que viessem ao encontro ou compusessem aparato teórico para a construção da narrativa. Nessa vereda, analisamos e interpretamos o material da amostra de acordo com as orientações de Marconi e Lakatos (2003), onde, em um primeiro momento, evidenciamos as relações existentes entre fenômenos estudados e outros fatores e, posteriormente, procuramos dar significado e sentido mais amplos às respostas, vinculando-as a outros tipos de conhecimentos.
3 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS OU FINAIS
Numa rápida passada de olhos por produções que discutem as homossexualidades masculinas, uma gama de termos desenvolvidos, em sua grande maioria por homens cis heterossexuais brancos, procuram convencer a comunidade de que a única e possível prática sexual aceitável socialmente era e continua sendo a cis heterossexual (OLIVEIRA, 2018). Já na prática social cotidiana, não se figura diferentemente. Podemos visualizar diversas expressões que são utilizadas para se referir às pessoas homossexuais, em termos estigmatizantes. São algumas delas, de acordo com Oliveira (2018): anel de couro, bofe, arrombada, asilada, baitola, gay, baitolagem, bicha, bichice, bicha-louca, boiola, dar pinta, guenza, queimar a rosca, viadagem, viado, asilada, boqueteira e fuleragem dentre outras. Nesse terreno, tais termos afirmam e reafirmam pela repetição falada e escrita que o relacionamento afetivo e sexual entre pessoas do mesmo sexo e/ou do
1 Disponível em: https://images.app.goo.gl/hpLdTfjdPZEbZikP7. Acesso em: 31 mai. 2021.
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mesmo do gênero masculino não é humano; não é de natureza honesta; é desprezível; está fora do eixo; está no lugar para quem expressa o pecado, perigo, anormalidade, fragilidade física e até mesmo emocional, e por isso, inadequadas a determinadas atividades profissionais. Além disso, soma-se a representações de falta de caráter, propensão ao crime e a visão limitada de que são pessoas não apropriadas para viver em sociedade (FRY; MACRAE, 2012; OLIVEIRA, 2018). Ao analisarmos a palavra “bicha”, concordamos com Oliveira (2018) que ela nasce do discurso, pois antes mesmo de termos a consciência do potencial repressivo que esse termo tenta impor, ela é lançada como um torpedo que almeja um aniquilamento. Perceba as ocorrências, um grito que ecoa do outro lado da rua, ou no ambiente escolar; um desenho tosco na parede de um banheiro coletivo; uma pregação religiosa. Espaços nos quais a palavra “bicha” pode ser lançada de forma repressiva contra homossexuais. Nessa trama dialógica, é imprescindível trazermos a construção histórica sobre as quais as relações sociais e sexuais foram construídas, com ideal binário de separação em “coisas de menina” e “coisas de menino”. As relações sexuais esperadas também seguiram estas normas, nas quais o padrão é heterossexual em termos de papéis sexuais. Nesse ponto, produz-se o “desviante”, pois mantém relações ditas homossexuais não em termos fisiológicos, mas diante dos papéis sexuais (sociais). Todavia, estas representações não se detém a acepções diferenciativas entre relações heterossexuais e relações homossexuais, apenas. Nesta norma, as mulheres e bichas correspondem, se “encaixam”, com homens; e os homens e “mulheres-machos” se relacionam com as mulheres. Dessa forma, a heteronormatividade recai na aceitação de um reconhecido homem se relacionar sexualmente com uma bicha. Nesta sucessão, o que causa escândalo é quando bicha se relaciona com bicha. Esta sim é vista como uma relação “homossexual”, que por vezes é ridicularizada no ditado popular “bicha com bicha dá lagartixa” (FRY; MACRAE, 2012). De forma ilustrativa, destacamos uma cena do curta-metragem “Travessia”, desenvolvido pela Secretaria de Saúde de Afogados da Ingazeira, em Pernambuco. A cena escancara três pessoas na rua, sendo um casal heterossexual, e o terceiro, o amigo dos dois. Passa na rua um rapaz afeminado, e eles desferem: “ei boneca,
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boneca, viado, passiva, viado”. Essa cena expõe o cotidiano de muitos homossexuais nordestinos. Quando se fala em pessoas que se relacionam afetivo e sexualmente com pessoas do mesmo sexo, imagina-se, este tipo de encontro de forma pejorativa, ofensiva. Assim, as expressões “bichas”, “baitolas”, “queima rosca”, “boiolas”, dentre outras, são utilizadas como forma de enquadrar e deslegitimar essas vivências. As representações da homossexualidade perpassam os padrões sociais impostos e aceitos socialmente, construindo assim pela linguagem um esquema de inteligibilidade normativo. Neste, há vidas que são realmente consideradas vidas e defendidas e salvas; em contraste, há vidas que não são reconhecidas como vivas, respeitadas dignamente como vidas (BUTLER, 2015). A linguagem não verbal também se apresenta em expressões de opressão, como o gesto das mãos em direção para baixo, a conhecida “mão quebrada”, muitas vezes acompanhada da fala: “Ei, tu é?; Tu é, né?”, fazendo referência a ser gay/homossexual. Estas expressões e linguagens, comuns no espaço escolar, por exemplo, obrigam estudantes gays a esconder sua orientação sexual, provocando conflitos identitários, de gêneros e sexuais, ao sistema comunicacional pautado em preconceitos e discriminações. Portanto, a linguagem é o instrumento pelo qual a homofobia opera. É necessário tensionar tal tema, pois a linguagem opera a manutenção e subversão das relações de opressão. “A homossexualidade”, como representação de um grupo historicamente subalternizado, compreende subjetividades atravessadas pela normatividade organizadora de vida, sobre as quais são direcionadas palavras, olhares, ações e comportamentos que podem contribuir para um acolhimento ou aniquilamento da experiência subjetiva dessas pessoas que se insurgem à normatividade.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Quadros de guerras: quando a vida é passível de luto?. Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade?. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.
LANE, Silvia T. Maurer. O que é psicologia social. 22. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. MOMBELLI, Neli Fabiane; TOMAIM, Cássio Dos Santos. Análise fílmica de documentários: apontamentos metodológicos. Lumina, v. 8, n. 2, 2014. OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Trejeitos e trajetos de gayzinhos afeminados, viadinhos e bichinhas pretas na educação!. Revista Periódicus, v. 1, n. 9, p. 161-191, 2018. TRAVESSIA CURTA LGBT. 2012. 1 vídeo (23:12). Publicado no canal Aurélio Lima. Disponível em: https://youtu.be/lzafi-EZWIE. Acesso em 31 mai. 2021. VIP, Angelo; LIBI, Fred. Aurélia, a dicionária da língua afiada. Editora da Bispa, 2004.
EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES QUEM PODE RECUPERAR O CORPO? UM ENSAIO SOBRE OS ASPECTOS MORAIS EM TORNO DO CICLO REPRODUTIVO DA MULHER
1 APRESENTAÇÃO Alana Aragão Ávila
alanaavila01@yahoo.com.br Doutoranda e mestre em Antropologia Social (PPGAS/UFSC)
Virgínia Squizani Rodrigues
virginia.squizani@gmail.com Doutoranda e mestre em Antropologia Social (PPGAS/UFSC)
Este trabalho coloca em evidência alguns dos aspectos morais em torno do ciclo de vida reprodutivo da mulher observados em campo, durante os processos de pesquisa para as dissertações das autoras (ÁVILA, 2020a, 2020b; RODRIGUES, 2020a, 2020b). A partir de relatos de mulheres encontrados em grupos online de Facebook, nos propomos a analisar como os eixos menstruação/contracepção e gestação/parto são/vêm sendo experienciados por algumas mulheres cisgênero; além de procurar compreender quem são as mulheres que conseguem/buscam “recuperar o próprio corpo” e como o fazem por meio do compartilhamento de suas experiências corporais em espaços online. Enquanto Rodrigues (2020) navegou por grupos online de mulheres que estavam deixando de fazer uso da pílula anticoncepcional - seja porque não desejavam mais fazer uso de contraceptivos hormonais, seja porque haviam experienciado problemas de saúde2 em decorrência do uso do medicamento em questão - Ávila (2020b) observou grupos online mulheres que estavam em busca do parto natural e humanizado, muitas vezes com essa busca vinculada a desfechos negativos em partos anteriores ou mesmo ao medo da violência obstétrica. Apesar de ambas observações tratarem de grupos diversos sobre, inclusive, diferentes fases do ciclo reprodutivo das mulheres, notamos algumas preocupações e “reclamações” de fundos semelhantes entre as autoras dos relatos. Pois, tanto as mulheres que estavam recusando a contracepção hormonal, em nome de métodos contraceptivos tidos como “menos invasivos ao corpo”, quanto as mulheres que
2 Como o tromboembolismo venoso que pode levar a um Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou a uma embolia pulmonar.
estavam recusando cesarianas eletivas e outras formas de medicalização do parto, em nome de partos normais e humanizados, apontavam para uma supervalorização do ciclo reprodutivo da mulher, ao mesmo tempo em que pareciam recusar o que esses relatos apontavam como “artificial” (o uso de hormônios sintéticos). Além disso, outros apontamentos comuns entre os relatos online observados foram os modos como as relações médico-paciente são/vêm sendo estabelecidas nos consultórios ginecológicos e obstétricos contemporâneos. Seja para tratar a respeito de métodos contraceptivos ou para realizar o acompanhamento de uma gravidez, o incômodo, o desconforto e o descontentamento dessas mulheres ficou latente. Pacientes cada vez mais informadas, os relatos observados revelam mulheres em busca de diálogo e informação e suas dificuldades em “driblar” práticas médicas convencionalmente estabelecidas: pílula e cesariana para um determinado universo de mulheres3 .
1.1 Justificativa
Considerando a urgência das discussões em torno do ciclo reprodutivo das mulheres cisgênero - colocado como eixo central de diversas políticas públicas destinadas a esse público e utilizado como massa de manobra em regimes de dominação e exploração - cabe tensionar quem são e o que dizem as mulheres que ocupam diferentes espaços online. A existência de diversos grupos de Facebook sobre: diferentes métodos contraceptivos não hormonais; relatos de experiência de quase morte em decorrência do uso da pílula anticoncepcional; relatos de violência obstétrica; relatos de partos naturais de sucesso ou de “fracasso”; apontam para uma necessidade de comunicação e compartilhamento de experiências (sejam essas positivas ou traumáticas), assim como para a busca de informações, em meio alternativos, a respeito dos mais variados momentos do ciclo de vida reprodutivo da mulher.
1.2 Objetivos
3 Vale ressaltar que esse “universo” refere-se a uma parcela de mulheres cisgênero, brancas, muitas vezes pertencentes às classes médias. Quando se trata de relatos de parto, por exemplo, não é incomum encontrar relatos de mulheres negras a quem anestesias e procedimentos cirúrgicos são negados na hora do parto sob a alcunha de que “mulheres negras suportam mais dor” que mulheres brancas. Sobre o tema, as pesquisadoras Bonadio (1998), McCallum e Reis (2002) e Hirsch (2015) têm extensos trabalhos que dizem da diferença no pré-natal e parto tanto de mulheres de classe média e popular, quanto de mulheres racializadas dentro de serviços de saúde.
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Este texto tem o objetivo duplo de relatar e refletir sobre o tema da recuperação do corpo feminino a partir dos movimentos de combate à extensiva medicalização relativa ao ciclo reprodutivo. Busca-se, assim, repensar tanto a relação estabelecida entre mulheres - em sua maioria brancas e de classe média com a medicina hegemônica, quanto as moralidades envolvidas nos ideais de recuperação do corpo no embate com a medicina. Num primeiro encontro com os relatos de mulheres nos meios online, percebemos o movimento e a pesquisa ativa dessas mulheres em relação a suas próprias experiências corporais4 . A busca por mais informações sobre o funcionamento dos corpos das mulheres cisgênero, por meio das redes que vão se estabelecendo online, aponta para uma reapropriação do corpo realizado pelas autoras dos relatos que não necessariamente passa pela intermediação médica. A reclamação de que se encontra “pouca informação nos consultórios médicos” é frequente. Entretanto, ao mesmo tempo, o desejo de compreender o “verdadeiro” funcionamento de seus ciclos menstruais (sem a influência externa de estrogênios e progesteronas), assim como o desejo de conhecer a “verdadeira” experiência de parir (sem a indução de ocitocina) abre portas para a análise de possíveis aspectos morais e essencializantes do que viria a ser, para essas mulheres, uma relação mais ou menos “natural e verdadeira” com seus corpos.
2 METODOLOGIA
As observações nos grupos online se deram, principalmente, durante os anos de 2018 e 20195 . No período citado foram realizadas observações diárias, assim como trocas com as interlocutoras que se dispuseram a relatar suas experiências no processo de recuperação do corpo e tomada de decisão informada. Além das observações dos grupos online, ambas pesquisadoras também
4 Optamos por não especificar e nomear os grupos online em questão para preservar as identidades das mulheres que compartilharam seus relatos. Alguns desses grupos são privados, ou seja, é preciso que uma moderadora aceite a sua presença antes que você possa interagir com as publicações. Assim como alguns grupos são públicos, de acesso aberto. Geralmente, tais grupos têm abrangência nacional e contam com a participação de um grande número de seguidoras (alguns possuem mais de 100 mil mulheres registradas). 5 Ainda que as pesquisadoras já participassem anteriormente dos grupos enquanto mulheres interessadas em informações sobre os próprios ciclos reprodutivos.
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realizaram pesquisa de campo presencial na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, com o intuito de expandir suas análises e corroborar, ou não, o que vinham observando nos meios online. Apesar de se tratarem de duas pesquisas de mestrado distintas, mas realizadas em paralelo, dialogamos constantemente a respeito das confluências e diferenças de nossos campos. Por isso, para este trabalho em específico, nos valemos da comparação de nossos diários de campo em que registramos nossas observações dos grupos de mulheres online e buscamos observar possíveis estruturas comuns entre os relatos do que chamamos de “recuperação do corpo”.
3 Considerações Parciais
A partir das pesquisas realizadas pelas autoras, notaram-se algumas características entre os públicos dos grupos online pesquisados em si, assim como nas pesquisas realizadas presencialmente na cidade de Florianópolis. Entre as interlocutoras de Rodrigues (2020a) notou-se uma prevalência de mulheres brancas de classe média, assim como em Ávila (2020b). Enquanto na pesquisa de Rodrigues os relatos apontavam para o abandono da pílula anticoncepcional em prol de outros métodos anticoncepcionais, na pesquisa de Ávila, suas interlocutoras eram mulheres que possuíam condições financeiras para contratar equipes particulares de assistência ao parto, sendo este domiciliar ou realizado em ambiente hospitalar. Na pesquisa de Rodrigues, observou-se confluência entre os relatos das mulheres coletados em campo e observados nos meios online. Já na pesquisa de Ávila, os relatos online diferem substancialmente dos relatos das mulheres entrevistadas em campo, uma vez que o público difere drasticamente6 . Observamos, então, que apesar de a internet potencialmente servir à democratização da informação relativa ao ciclo reprodutivo da mulher, retirando as mulheres da dependência de profissionais médicos, a mesma ainda opera como um grande filtro em relação ao acesso de mulheres de camadas populares a estas informações. Seja pela ausência de equipamento específico, de provedores de
6 As interlocutoras de campo de Ávila eram mulheres moradoras de um bairro de classe popular da cidade de Florianópolis. Entre estas últimas, a discussão da não medicalização excessiva do parto ou mesmo da humanização não chegava mediada por grupos ou comunidades online, mas pela fala de profissionais de saúde que atuavam no Centro de Saúde da Família, onde estas mulheres estavam vinculadas e realizavam seus acompanhamentos de pré-natal.
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internet ou do tempo necessário para realização da extensiva pesquisa em torno dos conteúdos relativos à contracepção/gestação/parto, ainda operam exclusões entre as mulheres que podem exercer a ‘recuperação do corpo’ e conhecer os direitos e as possibilidades dentro da lógica da tomada de decisão informada. Além disso, notamos uma espécie de moralização em torno das mulheres que optam por continuar utilizando medicamentos ou intervenções consideradas danosas para seus corpos. Nessa homogeneização são colocadas à revelia as mulheres que não tem sequer acesso a essas discussões, inclusive pela impossibilidade financeira de trocar de profissional, método contraceptivo ou decidir onde parir. A nosso ver, não se trata de uma culpa ancestral, mas da produção, recuperação, transformação e adequação de culpabilizações baseadas em preceitos morais constantemente atualizados e que coexistem entre as diversas formas de ser mulher no mundo. É a produção desta "culpa" moralizante que inviabiliza toda uma discussão de gênero, raça e classe necessária quando da questão do acesso à direitos reprodutivos no Brasil.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, A. A. Dentro e fora do manual: experiências de mulheres realizando pré-natal através do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento. Florianópolis, 2020a. Dissertação (Mestrado). Curso de Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. ÁVILA, A. A. Humanização do pré-natal e ativismo online: experiências de mulheres em busca do parto natural. Novos Debates, 6(1-2): E6208, 2020b. RODRIGUES, V. S. Controvérsias em torno da pílula anticoncepcional: usos e recusas do medicamento por jovens mulheres das classes médias urbanas. Florianópolis, 2020a. Dissertação (Mestrado). Curso de Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.
RODRIGUES, V. S. “A pílula nos castra”: Narrativas sobre recusar o contraceptivo hormonal. NOVOS DEBATES, 6(1-2): E6209, 2020b. BONADIO, I.C. "Ser tratada como gente": a vivência de mulheres atendidas no serviço de pré-natal de uma instituição filantrópica. Rev. Esc. Enf. USP. v. 32, n. l, p. 9-15, abr. 1998. MCCALLUM C, Reis AP. Re-significando a dor e superando a solidão: experiências do parto entre adolescentes de classes populares atendidas em uma maternidade pública de Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(7), p. 1483-1491, jul, 2006.
HIRSCH, Olivia Nogueira. O parto “natural” e “humanizado” na visão de mulheres de camadas médias e populares no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 229- 249, 2015.