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“Bixa, nunca se esqueça daquilo que precisa lembrar para viver”
EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES “BIXA, NUNCA SE ESQUEÇA DAQUILO QUE PRECISA LEMBRAR PARA VIVER”# . Manoel Nogueira Maia Neto
maianeto.mn@gmail.com Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
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1 APRESENTAÇÃO /INTERESSE DO TRABALHO A SER APRESENTADO
Numa discussão, estávamos em um quarto-kitnet alugado. Eu em pé; ele, numa cadeira. Era pela manhã, prato sujo e xícara usada na mesa. A insistência veio de mim. "Esse é o problema: comunicação. Eu me canso de ficar adivinhando ou interpretando o que você quer dizer. Isso [dificuldade de expressar] não é meu.
Fala, criatura! Diz!". "Falar é coisa de branco", respondeu. Então, ele começou uma contação de cenas que envolviam o atual trabalho (com gente branca, sem noção) até aparecerem histórias mais antigas, de uma vida. Sala de aula, grupos de pessoas, falar-falar-falar. Estar num lugar de falatório, de mostrar, de como gente branca faz. Lattes, lugares onde foi, as referências e referências não tão usadas, ter "dinheiro" do tipo que não é problema. Mãe, tio, avó, alguém estende a mão. Pessoal que usa a palavra "herança", que teve/tem "mesada" há anos. Já ele não. Estar nesse falatório com gente assim cansa. Dá vontade de revirar os olhos, ignorar, rir da cara. Todo dia isso. E eu ia concordando. Alguns puxavam assunto, insistiam. "Conhece [nome de referência italiana]?
Já viu o trabalho de [autor francês]? Sério, não sabe? Mas e teus projetos, o que vai fazer agora?".
Branco fala muito, sabe muito, manda muito. Branco impõe muito, mata muito, mente muito e isso tudo porque teme muito. Teme muito. Se liga, nóis tamo voltando para acertar as conta, doido, vai ficar barato não (SILVA, 2018, p. 15).
Dessa vez, fui eu que perguntei. "O que?! Não entendi (...) Eles te roubaram isso, falar?!". Eu senti os minutos. Silêncio. Você já passou um tempo olhando e estando com alguém assim, sem qualquer distração, só vocês? Parece que o tempo come a gente. Quem sabe o que fazer agora? Como se eu fosse língua, o empurrava contra a parede: "fala!". "Falar é coisa de branco", eu ouvia de mim mesmo. Em um post antigo, que já não está mais no Instagram, Luedji Luna (@luedjiluna) fala sobre a dívida do racismo na maneira como ela se relacionava. Nas cobranças, nas autocobranças, na presença de um medo de que se acabe, na autoestima e no quanto demorou para namorar. "Quem vai pagar essa dívida?", escreve Luedji nesse post que citei. Quem vai pagar essa dívida que o racismo fez arranhar nos nossos afetos? Veiga (2019a, p. 86) lembra que “(...) o racismo afeta a maneira como amamos a nós mesmos e como nos relacionamos com o outro a partir desse amor”. Nesse texto meio confuso, não consegui deixar tanto o verbo no presente: ainda lembro o "Falar é coisa de branco" e continuo lá. Estar nessa relação foi um grande tema de terapia na época. Antes, eu não tinha estado tão ligado e sem boa comunicação com alguém ao mesmo tempo. No grupo de homens negros do qual participava no mesmo período disso tudo, ele já não me aparecia tanto. Estranhamente, talvez eu tenha entendido ele mais naquela época, hoje menos. Tendo ideia de como ele se comportava e sentia, quando estava em algum silêncio, o ter desresponsabilizado pode ter sido um erro. Hoje, já não nos falamos. Ainda não sei quem vai pagar essa dívida.
(...) vivendo com uma sensação iminente de rejeição, a bixa preta, por vezes, cai em um desses complicados dilemas: ou não se permite amar e não suporta receber o amor do outro quando amada, ou ama e se submete a uma relação em que não é amada, ou ama e é amada, mas vive em estado permanente de ansiedade devido à ansiedade de que a qualquer momento esse amor pode acabar (VEIGA, 2019a, p. 89).
Estar em grupo de homens negros, para mim, funcionou como uma ajuda para ver o que estava pedindo em mim para ser visto. É um começo, ter apoio. Eu me colocava para escutar dúvidas tão reais do pessoal. Sobre ser hétero, sobre ter
medo de se parecer com o pai, sobre dinheiro e emprego. E, nisso tudo, ouvir poesia autoral, trocar indicação de filme, receber abraço. Eu ainda não tinha passado por isso, estar em um grupo de homens, metade sendo héteros, e ainda ficar confortável, sem medo. Cainã, membro do grupo de homens negros MilTons:
Um milagre estatístico: um monte de homem negro se juntando para conversar sobre masculinidade e, imediatamente, ter um clic, em que a gente configura um círculo de proteção, de partilha, de crescimento mútuo. Isso aí é resistência individual e coletiva, de maneira mais poética possível, é maravilhoso. O que não quer dizer perfeito, mas é justamente por ser imperfeito que vale a pena (ALBINO, 2019, p. 213).
Parafraseando Lucas Veiga (2019b), o encontro entre pessoas negras pode ser de cura. Nessa possibilidade, mesmo agridoce, com certeza, só acontece por estarmos juntos: “Sem a comunidade, qualquer coisa que façamos é apenas uma trégua temporária entre um indivíduo e sua situação particular” (LORDE, 2020, p. 66).
2 IMPORTÂNCIA /JUSTIFICATIVA DO TRABALHO
Não faço ideia do desejo de quem lê, do seu, mas me apresento-defino mesmo assim, seguindo os conselhos de Audre Lorde (2020). Sou bixa, psicólogo negro, cuidador, cearense e bastante curioso sobre memórias, diários relatos de experiência e outras formas de biografica da/o negra/o sobre a/o negra/o, porque já li que “Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo” (SOUZA, 1983, p. 17). Em Tornar-se Negro, especialmente nessas primeiras páginas que acabei de citar, Neusa Santos Souza (1983) contesta: a produção de conhecimento científico está bastante alierçada no lugar de pessoas brancas sobre as negritudes, uma manobra de poder onto-epistemológico, me fazendo lembrar que epistemicídio é como fantasma que parece ser sobre conhecimento válido para esconder quem se valida nisso. A cientificidade nos é questionada quando produzimos, “como se alguns cargos conferissem maior cientificidade a quem escreve o texto, a quem profere a fala” (JESUS, 2018, p. 209). Interrogações que propõem um exercício tanto de deslegitimar nosso estatuto de cognoscência/legitimidade quanto de jogar um véu de silenciamento sobre o lugar (da branquitude) que pergunta. Este é um
sinal do pensamento colonialista, que é universalista, contudo nega que assim seja (VEIGA, 2019b). O tão insistente, adoecido e adoecedor negacionismo.
3 OBJETIVOS
Para tal proposta, o objetivo geral se dá em compreender alguns efeitos emocionais para bixas negras do racismo vivenciado em relações amorosas, assim, mais especificamente, facilitando a promoção de filiações e identificações numa rede de “bixalidade” nutridora de afetos, mesmo textual, neste país anti-negro (VEIGA, 2019a) e contexto pandêmico também anti-negro (SANTOS et al, 2020). Junto a isso, construir um espaço discursivo do negro sobre si mesmo (SOUZA, 1983), afirmando uma disputa efêmera de produção e validade onto-espitemológica.
4 METODOLOGIA
Em isolamento social-sanitário, escrevi diários. Alguns viraram matérias para uma mídia negra cearense (Ceará Criolo), a qual contribuo com uma coluna de frequência bastante irregular chamada Psicoterapreto. Estamos no “ano 2” da pandemia, e encontrei nessa escrita um jeito de reunir, só um exemplo, um relato de amigo que casava com o que eu tinha vivido (fim de relacionamento logo no começo do primeiro lockdown cearense, em março de 2020), o que era motivo de umas videochamadas de algumas horas, sobrando umas palavras costuradas nesses diários. Me ouvi e, também, o de dois ou três amigos no decorrer dos meses depois disso. O tema ia se repetindo no meu trabalho como cuidador/psicoterapeuta. Teimoso, este texto aconteceu. As referências bibliográficas vieram de leituras mais dispersas que tive especialmente recentemente. Antes dos anos pandêmicos, 2020-2021, não tive tanta a chance de ler o que queria sem uma ementa de disciplina e, em isolamento social, exercitei essa oportunidade, por exemplo, com Lorde (2020) e Silva (2018), estando presentes aqui. Já indo escrevendo, lembrava de leituras feitas anteriormente, como Veiga (2019a; 2019b) e Albino (2019), ratificando pontos e firmando minhas filiações.
5 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS OU FINAIS
Meu primeiro atendimento como psicólogo me parece uma fotografia, uma ficção-fricção que lembro assim: chego à sala e, dali em diante, gaguejo e suo algumas várias vezes. Ouço um adolescente, que pouco fala logo quando nos vemos. É estranho porque parece dizer tanto. O corpo dele está dizendo. A maneira como olha para os lados, a voz bem baixa que me faz pensar se estou entendendo mesmo o que ele está dizendo. Sempre me lembro de respirar e puxar o ar.
De repente, ele chora, fala sobre amor, família e medo. Diz do namorado no colégio e, como eu pareço começar em algo sendo terapeuta, ele também parece começar a falar sobre isso em voz alta. Em seguida, brevemente escuto a mãe dele. Uma mulher desorientada sobre o filho estar se isolando e se calando pela casa. Tudo era inesperado para ela. A mãe falou de um adolescente que não parece ser o mesmo que ouvi. Acaba o atendimento. “É sobre amor, minha senhora”, penso dentro. Volto à Sala de Supervisão e eu sinto dor de me ver nele, de preferir não atender pessoas se forem assim, de— Minha professora-orientadora me para. Com os colegas, refazemos a cena de atendimento que acabou de acontecer. Por um momento, dramaticamente sou o adolescente; depois volto a ser eu-terapeuta. Como um estalo de osso, a minha dor vira uma ponte que me liga a ele. Eu posso entendê-lo. Aqui, não é um problema sentir dor.
Fazer Psicologia é trabalhar com o amor. E como podemos amar se não vivemos o amor, se não vivemos de amor, se viver de amor é considerado uma ingenuidade fadada ao fracasso? Vivemos todas e todos sedentos por sermos amados, mas como é difícil, para a maioria de nós, amar! [...] Se o amor cura (Hooks, 1995), quem sabe uma Psicologia inclusiva, que ame o humano (e não o tome como um mero objeto de estudos), possa curar o sofrimento e o ódio, quiçá promover uma vida mais plena? (JESUS, 2015, p. 211).
Lembro de uma frase de Castiel Vitorino Brasileiro: “se consigo enxergar a cura, por que meus olhos ainda doem?“ (MOMBAÇA, 2019, online) para não esquecer que temos dois olhos: um pra chorar, outro para curiar o que faz o mundo fazer essa dor (EVARISTO, 2016) ou o que fazem dores como desse adolescente e a minha ainda terem sentido nesse mundo.
Sinto que somos muitos em lembrar disso (do ato de cuidar) e de querer que esse mundo dê errado logo, o mais urgente possível.
REFERÊNCIAS
ALBINO, Airam. MilTons: múltiplas trocas em tom de conversa. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf. Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2019, p.197-227. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2016. JESUS, Jaqueline. Lições para uma Psicologia das Oprimidas. In: Aluísio Ferreira de Lima; Deborah Christina Antunes; Marcelo Gustavo Aguilar Calegare. (Org.). A Psicologia Social e os atuais desafios ético-políticos no Brasil. Porto Alegre: ABRAPSO, 2015, v.1 , p. 208-217. LORDE, Audre. Sou sua irmã. São Paulo: Editora Ubu, 2020. MOMBAÇA, Jota. “Aqui foi o Quilombo de Pai Felipe”. Buala, 2019. Castiel Vitorino Brasileiro. Disponível em: http://www.buala.org/pt/galeria/aqui-foi-o-quilombo-do-paifelipe. Acesso em: 29 maio 2021.
SANTOS; Márcia; NERY, Joilda; GOES, Emanuelle; SILVA, Alexandre; SANTOS, Andreia; BATISTA, Luís; ARAÚJO, Edna. População negra e COVID-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estudos Avançados, v. 34, n. 99, 2020, p. 225-243. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3499.014. Acesso em: 28 maio 2021. SILVA, Ana Carolina. Apropriação. In: __________. Lembranças ancestrais. Brasília: AUA Editorial, 2018, p.14-15. SOUZA, Neusa. Tornar-se negro ou vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora Graal, 1983. VEIGA, Lucas. Além de preto é gay: as diásporas da bixa preta. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf. Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2019a, p.77-93. VEIGA, Lucas. Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, v. 31, p. 244-248, 4 set. 2019b.
EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES O LUGAR DA SAÚDE MENTAL NO PROCESSO DE TRANSGENITALIZAÇÃO NO SUS: UMA REVISÃO DA LITERATURA
1 APRESENTAÇÃO
Flávio Gabriel Alves do Amaral
gabriel.alves.amaral642@gmail.com Universidade Federal do Ceará (UFC)
Milena Araújo Frota Pinto
milenafrota137@gmail.com) Universidade Federal do Ceará (UFC)
O histórico da cirurgia de transgenitalização é recente no Brasil. Sua realização no país foi autorizada pelo Conselho Federal de Medicina em 1997, ainda em caráter experimental, por meio da Resolução n. 1.482/97. Tal resolução estabeleceu como critérios para eleição à cirurgia a pessoa ser transexual, portadora de “desvio psicológico permanente de identidade sexual com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio” (Conselho Federal de Medicina, 2010 apud ROCON et al., 2020) e que passasse por um processo de avaliação por uma equipe multiprofissional (ROCON et al., 2020). Dessa forma, é notável que a prática clínica em geral, direcionada à população transgênero, tem sido pautada na psiquiatrização da transexualidade, considerada como “transtorno de identidade de gênero”, sendo esta uma condição para o acesso à saúde e exercício da cidadania (ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição (DSM-V) define a transexualidade como “disforia de gênero”, o que para algumas pessoas foi considerado como um avanço na despatologização, visto que a transexualidade deixou de ser entendida como um transtorno, porém, outras acreditam que a patologização se mantém sob nova nomenclatura (LIMA; CRUZ, 2016). Há muita discussão em torno dessa psiquiatrização e patologização da transexualidade, pois apesar de isso ter proporcionado visibilidade às pessoas trans e legitimidade à cirurgia de redesignação sexual como questão de saúde, ela reforça a exclusão social em virtude de seu caráter patologizante, desconsiderando os aspectos históricos, políticos e subjetivos da transexualidade (ARÁN; MURTA;
LIONÇO, 2009).
1.1 Justificativa
Visto que, historicamente, populações LGBTQ+ foram colocadas numa posição social de subalternidade, é necessário entender como suas demandas e pautas são acolhidas e como os cuidados com essa população são construídos em uma sociedade a qual ainda pratica, recorrentemente, atos de violência contra ela. Em especial, no que concerne às pessoas trans e questões de Saúde Mental, Peres (2008) afirma que há uma abundância de relatos sobre depressão, crises de ansiedade e sensações de pânico por pessoas trans, mas, em alto contraste a isso, não existem muitos estudos e dados sobre Saúde Mental desse segmento. Aliando-se os aspectos supracitados, mostra-se necessário entender e trazer à tona os desejos, preocupações e necessidades da população trans quando se pauta sua saúde, para que os processos que a envolvem não perpetuem lógicas de violência, de apagamento de identidades e de patologização.
2 OBJETIVOS
Entendendo que a ótica médica e patologizante se mostra profundamente incisiva na construção de identidades trans a partir da legislação e do conhecimento produzido na sociedade brasileira, procurou-se investigar neste trabalho como se desenvolvem os cuidados em Saúde Mental para essa população visto que “a clínica não deve enrijecer seu paciente uma identidade rígida, [...] mas deve produzir liberdade de fluxo plena de responsabilidades [...] e outras configurações do sujeito (Toledo; Pinafi, 2012), mas muitas vezes é convocada ao contrário. Para isso, procurou-se agrupar as produções científicas que analisam o processo de transgenitalização em relação às pessoas trans e suas perspectivas e necessidades em Saúde Mental e também buscou-se levantar o que foi desenvolvido sobre o tema, como as produções o abordam e o que se mostra de específico desse tema dentro da realidade brasileira.
3 METODOLOGIA
Para os objetivos deste trabalho, foi realizada uma revisão sistemática.
Iniciou-se reduzindo o horizonte de pesquisa a artigos científicos e foi feita uma procura nas plataformas eletrônicas Scielo, BVS Psicologia e Portal CAPES no mês de outubro de 2020. Foram utilizados descritores escolhidos com base no tema que seria investigado, priorizando aspectos chave do objetivo. Na busca dentro das plataformas, foram usados os descritores "Transgenitalização", "Saúde Mental", "Saúde Coletiva" e "Psicologia" combinados entre si com o auxílio do operador booleano AND. Nessa etapa foram encontrados 94 artigos. Após isso, foram utilizados como critérios de inclusão textos que abordassem o tema da transgenitalização dentro do SUS com referências às áreas de Saúde Coletiva, Saúde Mental e/ou Psicologia; podendo ser de qualquer data. Já os critérios de exclusão escolhidos foram textos que estivessem em outras línguas que não o português, que abordassem em primeiro plano o aspecto jurídico do processo e que fossem repetidos. Como resultado final, foram obtidos apenas sete artigos que apresentaram em seus títulos, resumos e corpos de texto os dados que os pesquisadores buscavam encontrar com relevância para entender o tema.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De um total de 94 (noventa e quatro) artigos alcançados pelos descritores, 7 (sete) se mantiveram após a filtragem nos critérios de inclusão e exclusão. Estes foram organizados duas vezes em grupos sob dois critérios. Sob o critério da existência de relatos de pessoas trans para análise do tema: cinco (5) dos artigos analisam por meio de relatos de pessoas trans suas relações com as instituições de saúde e o processo de transgenitalização (ARÁN; ZAIDHAFT; MURTA, 2008; OLIVEIRA, 2014; ROCON; SODRÉ; ZAMBONI; RODRIGUES; ROSEIRO, 2018; ROCON; RODRIGUES; ZAMBONI; PEDRINI, 2016; SAMPAIO; COELHO, 2012); e dois (2) artigos analisam a partir das instituições de saúde em seus âmbitos político, legislativo e de profissionais que as compõem, sem trazer tais relatos pessoais (ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009; POPADIUK; OLIVEIRA; SIGNORELLI, 2017). Sob o critério da área de conhecimento dos autores: em seis (6) artigos, os autores têm formação em psicologia (ARÁN; ZAIDHAFT; MURTA, 2008; ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009; OLIVEIRA, 2014; ROCON; SODRÉ;
ZAMBONI; RODRIGUES; ROSEIRO, 2018; ROCON; RODRIGUES; ZAMBONI; PEDRINI, 2016; SAMPAIO; COELHO, 2012); e em seis (6) artigos, eles têm formação em Saúde Coletiva (ARÁN; ZAIDHAFT; MURTA, 2008; ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009; POPADIUK; OLIVEIRA; SIGNORELLI, 2017; ROCON; SODRÉ; ZAMBONI; RODRIGUES; ROSEIRO, 2018; ROCON; RODRIGUES; ZAMBONI; PEDRINI, 2016; SAMPAIO; COELHO, 2012). Além disso, percebe-se uma publicação contínua desde 2008 até 2018, ou seja, a primeira publicação foi feita no ano em que a transgenitalização foi implementada no SUS (BRASIL, 2008). Os únicos autores que se repetem são: Alexsandro Rodrigues, Daniela Murta, Jésio Zamboni, Márcia Arán e Pablo Cardozo Rocon. Cada um aparece em no máximo 2 artigos. Apesar de o local de produção de algumas pesquisas não ser apenas no eixo Sul-Sudeste, os locais de publicação são todos (exceto o online) localizados nesse contexto. Isso pode se dar também porque no eixo Sul-Sudeste se concentra uma grande parte da população trans que procura o processo de transgenitalização e também possui, em conjunto, três das seis instituições que realizam esse procedimento atualmente no Brasil (ANTRA, 2020). Através da análise teórica e das falas das pessoas trans que surgem nas produções, há uma referência à patologização e à redução das possibilidades da existência transexual que vai de encontro ao produzido por essas pessoas durante o processo de transgenitalização. Nota-se que há a necessidade de criar uma clínica e um cuidado integral que seja pensado a partir das demandas e das pluralidades apresentadas pela população trans ao invés da perspectiva patologizante e de transexualidade como falta. No estudo realizado por Sampaio e Coelho (2012), no qual foram entrevistadas quatro pessoas trans, os entrevistados reivindicaram que os psicólogos estejam capacitados, a fim de não promoverem um maior desconforto, sentimentos de exclusão e discriminação, o que, por vezes, pode gerar uma tentativa de promover uma cura ou convencimento da desistência das cirurgias e outras intervenções, sob o argumento da seriedade e irreversibilidade das mesmas. Existe uma menor referências a falas, a análises sobre os processos de saúde e a vivências de homens trans em detrimento de mulheres trans. Dos 5 artigos que trouxeram falas de pessoas trans, apenas 3 trouxeram falas de homens
trans, e ainda, geralmente, em menor número dentro dos estudos, se comparado ao de mulheres trans. Ainda que a maioria das produções entrem na área da Psicologia e de Saúde Coletiva, a primeira se mostra em menor evidência. Dentre os textos, poucos apresentam uma perspectiva da atuação do profissional da Psicologia, uma atuação que, quando discutida, se mostra em uma linha tênue entre a criação de uma autonomia, de processos de autocuidado e autoconhecimento, mas também de diagnóstico, visto que através da psicoterapia será entendido também uma aptidão para o procedimento, sendo os(as) candidatos(as) às cirurgias submetidos a um processo terapêutico por, no mínimo, dois anos (SAMPAIO; COELHO, 2012). No entanto, a entrada da perspectiva de Saúde Coletiva demonstra uma possibilidade em aberto para que vários saberes possam tentar compreender as demandas e as vivências dessa população e assim trazer uma perspectiva integral para os cuidados.
REFERÊNCIAS
ARÁN, M; ZAIDHAFT, S; MURTA, D. Transexualidade: corpo, subjetividade e saúde coletiva. Psicol. Soc. v. 20, n.1, p. 70-79, 2008. ARÁN, M; MURTA, D; LIONÇO, T. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro. v. 14, n. 4, jul./ago. 2009. ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais. COMO ACESSAR O SUS PARA QUESTÕES DE TRANSIÇÃO?. [S. l.], 27 jul. 2020. Disponível em: https://antrabrasil.org/2020/07/27/como-acessar-o-sus-para-questoes-de-transicao/ . Acesso em: 31 maio 2021.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n°1.707. Diário Oficial da União 18/08/2008.
LIMA, F; CRUZ, K. T. Os processos de hormonização e a produção do cuidado em saúde na transexualidade masculina. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, v. 23, p. 162-186, ago. 2016.
OLIVEIRA, M. Uma etnografia sobre o atendimento psicoterapêutico a transexuais. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 22, n. 3, set./dez. 2014. PERES, W. S. Travestis: corpo, cuidado de si e cidadania In: Fazendo Gênero 8: corpo, violência e poder. Florianópolis, 25/28 ago. 2008.
POPADIUK, G; OLIVEIRA, D; SIGNORELLI, M. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT) e o acesso ao Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS): avanços e desafios. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1509-1520, 2017. ROCON, P; RODRIGUES, A; ZAMBONI, J; PEDRINI, M. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 21 n. 8, 2016. ROCON, P; SODRÉ, F; ZAMBONI, J; RODRIGUES, A; ROSEIRO, M. O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde? Interface (Botucatu), v. 22, n. 64, p.43-53, 2018. ROCON, P; WANDEKOKEN, K; BARROS, M; DUARTE, M; SODRÉ, F. Acesso à saúde pela população trans no Brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, 2020. SAMPAIO, L; COELHO, M. Transexualidade: aspectos psicológicos e novas demandas ao setor saúde. Interface (Botucatu), v. 16, n. 42, p. 637-649, 2012.
TOLEDO, Lívia Gonsalves; PINAFI, Tânia. A clínica psicológica e o público LGBT. Psic. Clin., Rio de Janeiro, v. 24, ed. 1, p. 137-163, 2012.
EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES A DOBRA DO GÊNERO BINÁRIO: PROCESSO DE DEFINIÇÃO DO SEXO DOS
BEBÊS DA NEONATOLOGIA DE UM HOSPITAL PEDIÁTRICO E SEUS DESDOBRAMENTOS SOCIAIS Pedro Henrique Almeida Bezerra
pedro.almeida1192@gmail.com Doutorando em Sociologia (PPGS/UECE)
1 APRESENTAÇÃO
A dobra do gênero binário e os processo de definição do sexo dos bebês da neonatologia de um hospital pediátrico e seus desdobramentos sociais é o tema que pretendo abordar ao longo desse estudo e esse tema está inserido no contexto da unidade de neonatologia de um hospital pediátrico. Durante a minha vivência (rodízio) nessa unidade pude observar várias questões de cunho social que atravessam a experiência da hospitalização de neonatos. O contexto social, econômico, a trajetória de vida, as dificuldades diversas enfrentadas por os bebês e seus familiares são inerentes e indissociáveis do processo saúde-doença. Um fato que chamou minha atenção em específico foi o de recém nascidos com "problemas" de má formação, sexo indefinido ou genitália ambígua. Essa situação desencadeia uma resposta centrada no biomédico-legal em que a definição de um sexo enquadrável nas normas do gênero hetero-compulsório binário urge como demanda imputável das partes envolvidas. A sociedade, centrada na família, necessita saber qual o "sexo" do bebê. São eles que durante meses alimentaram uma expectativa sobre o espaço que aquele ser recém nascido iria ocupar nas suas vidas e histórias. A frustração do indefinido não encontra consolo enquanto o "não-ser" estiver em disputa. A instituição hospitalar, centrada no saber biomédico-legal, encarnado na pessoa do médico, demanda através de exames e tecnologias diversas, avançadas e sofisticadas a busca até nos níveis cromossômicos por uma resposta para dualidade indefinida que representa o bebê naquele momento. Por vezes a toda a trajetória terapêutica se vê em suspense aguardando a tão esperada definição indispensável.
E por fim, o Estado demanda que aquele ser recém nascido se torne uma pessoa. Que ele ou ela tome posse dos direitos que configuram a condição de cidadão. Para que alguém tenha acesso a certidão de nascimento/registro civil, precisa ter genitores, nascer, ter registrado a data e horário de nascimento na declaração de nascido vivo (DNV) junto com outras informações básicas. Mas é ela uma informação indispensável: o sexo. Sem sexo definido não é possível ter um documento civil, logo não há cidadã e sem ele não há direitos. O caso Adélaïde7 foi um dos casos ao qual eu acompanhei durante minha permanência no bloco da neonatologia. Pude observar de perto, desde a internação até a alta, re-internações, acompanhamento ambulatorial e o desfecho para o óbito. Esse caso em específico me chamou a atenção devido a experiência intensa de acompanhamento e vivência que pude compartilhar com esse neonato em particular e sua família. Por isso, devido minha experiência pessoal, e pelo fato de que Adélaïde foi uma paciente que serve de cognato para tantos outros que são atendidos nesse mesmo bloco. Dessa forma, a análise desse caso tem potencial de expressar características que podem ser comparadas e assemelhadas com outros da mesma espécie.
1.1 Justificativa
Tendo em vista meu posicionamento em um hospital pediátrico, e tendo sido meu primeiro rodízio o cenário da neonatologia, o caso Adélaïde me chamou atenção devido os motivos explicitados no fim do tópico anterior. Visualizei nesse caso a oportunidade de dar continuidade8 aos meus estudos sobre gênero. Busco aprofundá-los, nesse momento, utilizando um exemplo concreto e específico verificado no serviço de saúde ao qual me encontro. Do ponto de vista científico e social, pode-se considerar a necessidade de intercorrência de conexões analíticas capazes de identificar no terreno do real, da
7 O nome Adélaïde foi escolhido para substituir o nome verdadeiro do neonato (por questões éticas) em homenagem a hermafrodita Adélaïde Herculine Barbin que foi uma pessoa intersexo francesa atribuída como do sexo feminino ao nascer. O caso de Herculine Barbin foi comentado por Michel Foucault na introdução do livro de memórias “Herculine Barbin: o Diário de um Hermafrodita” 8 Durante a minha trajetória acadêmica (graduação e mestrado) me debrucei sobre os estudos de gênero e da performance. Dessa forma, a presente investigação se configura pelas linhas de continuidade do meu interesse e trajetória de pesquisa.
vida cotidiana, das práticas institucionais, um processo dialético capaz de desdobrar e conectar as formulações teóricas com seus rebatimentos e influxos no campo das práticas e vivências. Conceitos como gênero ou "mesa de parto do gênero" PRECIADO (2014); BUTLER (2003).
2 OBJETIVOS
Examinar os processos de definição de gênero no caso Adélaïde no que diz respeito ao manejo biossocial empregado durante sua permanência no setor de neonatologia em um hospital pediátrico. Analisar a abordagem biossocial empregada no caso Adélaïde de forma crítica e reflexiva no que diz respeito ao potencial, ou não, de desconstrução da binariedade de gênero.
3 METODOLOGIA 3.1 Cenário
O cenário do estudo é o setor de neonatologia de um hospital pediátrico. Nele são admitidos bebês recém-nascidos com problemas de saúde dos mais diversos para receber atendimento de caráter multiprofissional e interdisciplinar9 . O perfil de pacientes da unidade em questão são crianças recém-nascidas até os três meses de idade. Caso a internação ultrapasse esse tempo elas são transferidas para outras unidades de enfermaria ou terapia intensiva para crianças com idade maior que três meses.
3.2 Participantes
Por se tratar de um estudo de caso pretendo estudar o percurso de Adélaïde e sua família durante a internação, alta, retorno ambulatorial e desfecho para o óbito da paciente. Essa análise leva em consideração não só a experiência da paciente e de sua família, mas também sua relação com a instituição hospitalar e os profissionais que estiveram envolvidos durante esse processo.
9 Nesse cenário de estudo existe uma equipe multiprofissional e interdisciplinar composta por médicos(as), enfermeiras(os), técnicas(os) de enfermagem, profissionais do serviços gerais, assistentes sociais, fisioterapeutas, farmacêuticos(as), nutricionistas, terapeutas ocupacionais, cirurgiões dentistas e psicólogos(as). Todas as profissões de nível superior citadas a cima também possuem estagiários e residentes atuando no interior da unidade.
3.3 Tipo de pesquisa e técnicas a serem utilizadas
A presente pesquisa é de caráter qualitativa considerando que o mundo social deve ser entendido, preferencialmente, mediante sua explicação e compreensão do ponto de vista teórico metodológico. As ciências sociais, segundo Martucci (2001) devem partir de métodos hermenêuticos ou interpretativos, com vistas a descobrir e comunicar as perspectivas de significado das pessoas e situações estudadas. A pesquisa aqui apresentada é do tipo estudo de caso etnográfico105 . Está é proveniente de uma longa tradição de pesquisa científica qualificada como um estudo descritivo exaustivo Martucci (2001) ou um esforço reiterado para uma descrição densa. Para Geertz (1989) o fazer etnográfico é muito mais do que “[...] estabelecer relações, selecionar informações, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante”, é “[...] o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’ [...]” (GEERTZ, 1989, p. 15), que seria a forma viável de descrição inteligível possível no fazer etnográfico. O caso em questão foi escolhido pois por si só é um caso digno de ser estudado, de um lado, e de outro porque tem o potencial de ser representativo de muitos outros. A presente pesquisa organizou-se em três etapas (MARTUCCI, 2001, p. 6): 1) planejamento, ou seja, construção e elaboração do projeto de pesquisa e sua qualificação; 2) permanência prolongada e sistemática no campo de trabalho e/ou coleta de dados; 3) momento final de sistematização e elaboração do relatório final de pesquisa. Como técnica de pesquisa utilizei (MARTUCCI, 2001, p. 6-7): a observação participante, entendida como um processo pelo qual o pesquisador obtém algum grau de interação e participação com a situação estudada, abrindo-se então a possibilidade de afetar e ser afetado por ela. Para Martucci (2001) o trabalho de campo etnográfico deve ser desenvolvido por um longo período de tempo, com encontros constantes com os interlocutores estudados, em seu
10 5 O estudo de caso etnográfico é qualificado para um caso único e particular, estritamente distinto de outros, mas que também possua traços de similaridade com outros casos e situações semelhantes. Dessa forma, essa metodologia é adequada quando a preocupação com a compreensão e descrição do processo forem os pontos focais do estudo. Esse é exatamente o foco do estudo do caso Adélaïde.
ambiente natural, acompanhando e participando de suas atividades cotidianas a fim de compreender os múltiplos significados de suas ações.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dessa forma, o processo de definição do sexo dos neonatos é uma chave central para os múltiplos envolvidos na atenção e cuidado do infante. Além de central esse elemento é indispensável, imprescindível e inalienável no processo de tornar-se pessoa, de virar humano, de ser alguém na lógica do existir. Porém, esse processo carece de flexibilidades que aceitem o não-normal, o outsider, o estranho, o ambíguo como legítimo e inteligível para tudo e todos. Esse processo amarra em um código binário, normativo, massacrante e inexorável a verdade do gênero absoluto criado e concebido pelo homem e para o homem através da ciência, da religião e tradição. É o disforme outsider, o não-normal e o indefinido que me interessam observar. São as camadas de escape, de dobra, de limbo que precisam ser constatadas, anotadas e evidenciadas como provas cabais da ineficiência do gênero binário. Quais são os processos de definição de gênero foram acionados no caso Adélaïde e suas implicações e desdobramentos do ponto de vista institucional e social com relação ao gênero binário? Concluo que o processo de definição do gênero dos recém-nascidos da unidade neonatal de um determinado hospital infantil são nós amarrados com desprezível soltura das normas binárias de gênero baseadas e aplicadas pelos preceitos biomédicos legais. Os escapes a essas normas, quando constatados, registrados e evidenciados tem potencial disruptivo e distensivo dos preceitos até então instituídos.
REFERÊNCIAS
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Tradução Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 136p. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século
XX. Org. José Reginaldo Santos Gonçalves. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
COELHO, Juliana Frota da Justa. Ela é o show: performances trans na capital cearense. Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2012. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. 1ª ed. São Paulo: Paz & Terra, 2014. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. 1ª ed. 13ª reimpressão. Rio de Janeiro: LTC, 2008. MARTUCCI, Elisabeth Márcia. Estudo de caso etnográfico. Revista de Biblioteconomia de Brasília, v. 25, n.2, p. 167-180, 2001. PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrasseuxal: práticas subversivas de identidade sexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014. SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução e notas Guaciara Lopes Louro. 1ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 235p.
EIXO 1 - GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADES CONSTRUÇÃO DE UM QUESTIONÁRIO DE MITOS E TABUS SOBRE MENSTRUAÇÃO, VIRGINDADE E PRAZER SEXUAL FEMININO
1 APRESENTAÇÃO Ingrid Sâmia Furtado Teixeira
ingrid.furtado@aluno.uece.br Graduanda em Psicologia (UECE)
Profª Ma. Mariana Gonçalves Farias
Mestre e professora de psicologia (UECE)
A sexualidade feminina ainda é cercada por preconceitos, estereótipos, mitos e tabus. Além disso, nossos corpos e desejos ainda são interpretados e impactados por crenças negativas advindas de uma sociedade patriarcal, falocêntrica, racista e moralista que demarcam a sexualidade das mulheres desde a infância até a velhice. Entendendo isso, busquei pesquisar no trabalho de conclusão de curso o endossamento de mitos e tabus sobre a menstruação, a virgindade e o prazer sexual por universitárias e estudantes da pós-graduação. A menstruação historicamente esteve associada à sujeira, algo que contaminava e por isso, necessitava ser purificado, e atualmente ela continua sendo permeada por representações, assim, em diferentes culturas pode ser relacionada tanto ao pecado e à impureza quanto ao sagrado e à potência. Em 2018, uma pesquisa realizada com 1.500 mulheres de 14 a 24 anos naturais do Brasil, África do Sul, Índia, Filipinas e Argentina revelou dados vivenciados cotidianamente pelas mulheres. Os resultados da amostra brasileira apontaram que 74% deixam de entrar na piscina quando estão menstruadas, 42% pedem absorventes para outra mulher como se fosse um segredo, somente 22% não sentem medo de levantar durante a aula no período menstrual e 7 em cada 10 entrevistadas se preocupam em descartar o absorvente no lixo porque outras pessoas podem ver (SEMPRE LIVRE, 2018). Esses dados demonstram o quanto ainda existe crenças negativas, desinformação e mitos sobre o período menstrual. Esse desconhecimento, vergonha e receio não se restringem somente à menstruação, mas também à virgindade e ao prazer sexual feminino. Nesse sentido,
diferentemente da menstruação, a virgindade comumente é associada a comportamentos positivos, sob a noção de pureza e recato feminino, atributos também advindos da doutrina cristã e reforçados por séculos também por outras instituições, como a família e a escola. Nessa perspectiva, o comportamento recatado era o que se esperava de uma mulher respeitável, honesta e de família (CAUFIELD, 2000), desse modo, quando a mulher iniciava sua vida sexual fora da instituição do casamento e da aprovação religiosa, a perda da virgindade era relacionada à perda de valores morais. É importante pontuar que a valorização da virgindade feminina era uma forma de controle sobre o corpo, da autonomia e dos desejos das mulheres, e isso se repercute diretamente na vivência do prazer sexual feminino até os tempos atuais, a partir da noção de que para as mulheres o sexo deveria ser visto com finalidade reprodutiva e não para o prazer sexual. Esse discurso por muito tempo amparou-se no saber médico e científico, normatizando e controlando o que era permitido ou não na sexualidade e nos desejos das mulheres. Logo, nota-se que a liberdade do prazer sexual feminino foi negada por muito tempo e isso ainda repercute em muitas mulheres por meio da culpabilização, insegurança e desinformação.
1.1 Justificativa
Compreendendo essas problemáticas, mas também reconhecendo os avanços e conquistas das mulheres por direitos de igualdade de gênero, trabalhistas, sexuais e reprodutivos que permitiram maior liberdade e autonomia, maior conhecimento do próprio corpo e de novas formas de prazer, é possível haver mudanças na forma como a sexualidade feminina é percebida atualmente. Dessa forma, para investigar o endossamento de mitos e tabus sobre a menstruação, virgindade e prazer sexual por estudantes universitárias e da pós-graduação foi necessário, inicialmente, elaborar um questionário que operacionalizasse tais mitos e tabus, em função da escassez de escalas e questionários nessa direção em contexto brasileiro.
2 OBJETIVOS
O objetivo deste estudo é descrever o processo de construção e de
análise de evidências de validade de conteúdo de um questionário de endossamento de mitos e tabus sobre a menstruação, a virgindade e o prazer sexual feminino por estudantes universitárias e da pós-graduação.
3 METODOLOGIA
O presente estudo desenvolveu-se em etapas: construção dos itens do instrumento, análise de juízes, análise semântica e cálculo de Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC). A construção do questionário se realizou a partir da literatura científica na área da sexualidade feminina, bem como pela revisão bibliográfica de escalas e questionários desenvolvidas em outros países, como a Escala Metcon - Botello-Hermosa, a Menstrual Attitude Questionnaire - MAQ e a Development of the Virginity Beliefs Scale. Inicialmente, foram construídos 60 itens distribuídos em três categorias sobre a sexualidade feminina, especificamente foram 27 itens de Menstruação, 15 itens de Virgindade e 18 itens de prazer sexual. Para identificar a adequação dos itens, foi solicitada a avaliação de quatro juízas especialistas em três elementos, a saber: clareza de linguagem, pertinência e relevância teórica. As juízas utilizaram uma escala de 1 a 5 pontos para avaliar o nível de adequação dos itens aos critérios avaliados. Contou-se com a participação de pesquisadoras e professoras de Psicologia que possuíam experiências com as temáticas do presente estudo e, portanto, apresentavam conhecimentos teóricos e técnicos pertinentes para avaliar a adequação dos itens elaborados. Após a atribuição das notas das juízas, foi calculado o Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC), proposto por Hernandez-Nieto (2002) para cada item do instrumento (CVCc) e para o instrumento como um todo (CVCt). O ponto de corte adotado por Hernandez-Nieto para determinar níveis satisfatórios é de CVCc ≥ 0,80 tanto para os itens como para o instrumento no geral. Dos 60 itens do questionário, quatro obtiveram valores inferiores a CVCc=0,80 e por isso três foram excluídos e um passou por melhorias a partir das sugestões das juízas. Em relação aos valores do CVCt, eles foram satisfatórios: clareza de linguagem (CVCt=0,97), pertinência (CVCt=0,95) e relevância teórica (CVCt=0,97). As juízas recomendaram também a adição de novos itens abordando de forma mais ampla a questão do prazer sexual. Ao final desse processo, o
questionário passou a ter 62 itens (Apêndice), especificamente 26 itens de Menstruação, 17 itens de Virgindade e 19 itens de Prazer sexual feminino. Em seguida, essa versão passou pela análise semântica com uma amostra de 05 estudantes universitárias ou pós-graduandas para avaliar se os itens estavam inteligíveis para o público-alvo do questionário. Essa etapa não indicou a necessidade de nenhuma alteração. É preferível que o questionário seja aplicado por meio de plataformas online, como o Google Forms, contendo as afirmações sobre tabus e mitos relacionados à menstruação, à virgindade e ao prazer sexual feminino, como também perguntas de cunho sociodemográfico. O questionário utiliza uma escala de respostas Likert: 1 – Discordo totalmente, 2 – Discordo, 3 - Nem discordo, nem concordo, 4 – Concordo, 5 – Concordo totalmente. Estima-se que o preenchimento do questionário seja de, aproximadamente, 15 minutos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acredita-se que o questionário apresentou evidências satisfatórias de validade de conteúdo e espera-se que este questionário possibilite a realização de pesquisas empíricas que auxiliem na compreensão sobre o endossamento dos tabus e mitos relacionados à menstruação, à virgindade e ao prazer sexual feminino por estudantes universitárias e da pós-graduação, bem como proporcione análises das características sociais e culturais relacionados com o endossamento desses estigmas referente à sexualidade feminina. E ainda, espera-se que o questionário contribua para a literatura existente da área e se apresente como uma possibilidade de ampliar as discussões e as reflexões sobre gênero e sexualidade feminina, especialmente sobre menstruação, virgindade e prazer sexual feminino, na comunidade acadêmica como na sociedade.
REFERÊNCIAS
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). São Paulo: UNICAMP, 2000. HERNÁNDEZ-NIETO, Rafael. Contributions To Statistical Analysis: The Coefficients of Proportional Variance, Content Validity and Kappa. Mérida: Universidad de Los Andes, 2002.
SEMPRE Livre lança pesquisa global sobre menstruação. Inova Social, 2018.
APÊNDICE
A fim de respeitar as normas técnicas do presente congresso constam-se somente os itens do questionário. Menstruação: - Durante a menstruação, deve-se evitar cozinhar para não estragar alguns alimentos. - Conheço as fases do meu ciclo menstrual. - Costumo conversar com meu(minha) parceiro(a) sobre menstruação. - Lavar o cabelo menstruada aumenta o fluxo. - Costumo conversar sobre menstruação com minhas amigas. - A tensão pré-menstrual (TPM) não existe. - Me assustei com a minha primeira menstruação. - Quando preciso trocar o absorvente, eu o escondo para as pessoas não saberem que estou menstruada. - Durante a menstruação, deve-se evitar pisar descalça no chão frio para não aumentar as cólicas. - Tomar sorvetes ou ingerir bebidas geladas menstruada pode causar hemorragia. - O sangue da menstruação é impuro. - Só mulheres jovens apresentam tensão pré-menstrual (TPM). - Durante a menstruação, a mulher não pode tomar banho de mar ou de piscina. - Quando menstruei pela primeira vez, não entendi o que estava acontecendo. - A mulher precisa menstruar todo mês para purificar o seu corpo. - Tenho vergonha de comprar absorvente. - A menstruação é suja. - Durante a menstruação, a mulher não deve ter relações sexuais. - Não costumo conversar sobre menstruação. - A menstruação é nojenta. - Quando menstruei pela primeira vez contei para minhas amigas. - Costumo conversar sobre menstruação com meus familiares. - A tensão pré-menstrual (TPM) dura o mês inteiro. - Sinto vergonha quando estou menstruada. - As mulheres usam a tensão pré-menstrual (TPM) como desculpa para tudo. - Fico constrangida quando as pessoas percebem que estou menstruada.
Virgindade:
- Mulheres virgens são puras. - A virgindade feminina deve ser encorajada. - A mulher só perde a virgindade quando há o rompimento do hímen. - A primeira relação sexual da mulher deve ser com o seu marido/esposo. - Considero a virgindade como algo positivo. - Mulheres virgens sangram na primeira relação sexual. - Fazer sexo antes do casamento é pecado. - Planejei minha primeira relação sexual junto com meu(minha) parceiro(a). - Quando tive minha primeira relação sexual, contei para minhas amigas. - Minha virgindade foi um presente para meu(minha) parceiro(a).
60
- Quando tive minha primeira relação sexual, tive medo de que meus pais descobrissem. - Me senti culpada quando perdi a virgindade. - Tive receio que descobrissem que eu não era mais virgem. - Quando tive minha primeira relação sexual, contei para meus pais. - Quando tive minha primeira relação sexual, tive medo de que minhas amigas descobrissem. - Tive vergonha de dizer para meu(minha) parceiro(a) que não era mais virgem. - Me senti impura quando perdi a virgindade.
Prazer sexual feminino:
- Conheço os lugares do meu corpo que me dão prazer. - Consigo ter prazer sexual mesmo sem penetração. - Me senti culpada ao usar brinquedos sexuais. - Sinto vergonha de pedir para meu(minha) parceiro(a) usar brinquedos sexuais durante o sexo. - Costumo conversar sobre prazer sexual com minhas amigas. - As mulheres precisam satisfazer sexualmente seu(a) parceiro(a). - Sinto vergonha de comprar brinquedos sexuais. - A masturbação feminina é pecado. - A mulher só tem orgasmo com a penetração vaginal. - Costumo me masturbar. - Já comprei brinquedos sexuais. - Gostaria de ter um vibrador (aparelho/brinquedo sexual). - Costumo conversar sobre prazer sexual com meu(minha) parceiro(a). - Somente mulheres lésbicas se masturbam. - Costumo falar sobre o que gosto no sexo para meu(minha) parceiro(a). - A masturbação feminina causa problemas mentais. - A mulher não deve se masturbar. - Sinto vergonha de comprar preservativo. - Mulheres que se masturbam com frequência sentem dificuldade para atingir o orgasmo durante o sexo.