INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS EDIÇÃO Nº 16 MARÇO-ABRIL 2014
CURTA O GÊNERO
O QUE ACONTECEU NA 3ª EDIÇÃO página 6
ARTIGO LIBERDADE DE OPRESSÃO
Lola Aronovich fala sobre o humor que não se ri página 5
FÁBRICA ENTREVISTA MAGDALENA VALDIVIESO
FÁBRICA DE IMAGENS NA TEIA NACIONAL
Feminismos do Sul
II Encontro Gênero nos Pontos Mostra Audiovisual Curta O Gênero
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página 11
EDITORIAL
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hegamos à 16ª edição do Informativo Fábrica de Imagens e à terceira edição do Curta o Gênero. Um longo caminho trilhado pela ONG Fábrica de Imagens tem resultado na abrangência de suas ações. O Curta o Gênero 2014 foi um marco de público, programação e duração. A matéria de capa ilustra um pouco de tudo o que foi e representou o evento para a história e o ativismo da Fábrica de Imagens. Essa trajetória reflete-se nas ações em que a Fábrica de Imagens é convidada/convocada a participar. São eventos locais e nacionais,
importantes espaços de discussão sobre cultura, gênero e diversidade, como os registrados nas primeiras notícias. Desafiar e expandir algumas discussões de gênero dá o tom deste informativo. Parte das temáticas e pesquisas trazidas por convidadxs do Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mudança inspiraram a maioria das nossas pautas. O “Cinema de Mulheres” na época da ditadura, pesquisa da historiadora Ana Maria Veiga, traz debate de gênero no cinquentenário do golpe militar. Trazemos também uma matéria que reflete sobre conceitos dos
Feminismos do Sul, levantando questões que desafiam o feminismo tradicional. Em entrevista, as pesquisadoras Cláudia Lima Costa e Flávia Teixeira reforçaram a crítica com argumentos do movimento transexual e de prostitutas. Entrevista com a professora Magdalena Valdivieso também traz outras reflexões sobre Femininos do Sul a partir do contexto social da América Latina. A professora Lola Aronovich, outra convidada do evento, debruçou-se sobre o Humor e seus limites, discutindo possibilidades de críticas e de fazer diferente. Aproveitem a leitura!
PROGRAMA CULTURA VIVA PEDE RENOVAÇÃO EM SEUS 10 ANOS Por Marcos Rocha | Diretor da Fábrica de Imagens | Membro da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura/GT Gênero
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ara seguir as considerações sobre o Programa Cultura Viva, iniciadas no nosso último informativo, é imprescindível refletir um pouco sobre seus aspectos conceituais, sua inovação e seu sentido. Nesse momento, o Programa completa 10 anos e nos aproximamos da Teia e do Fórum Nacional dos Pontos de Cultura, agora, no final de maio. Nesse campo, afirmo que se os Pontos de Cultura marcaram uma viragem nas políticas culturais no Brasil, a integração das ações em identidade e diversidade no escopo do Programa Cultura Viva poderá marcar outra viragem. Neste caso, somente se o Ministério da Cultura e os próprios Pontos de Cultura empreenderem conjuntamente uma política cultural radical de defesa e promoção das cidadãs e cidadãos mais discriminados e violados em seus direitos, em que destacamos pobres, mulheres em geral, negros e negras, sujeitos LGBTT, pessoas com deficiência, minorias religiosas, crianças, adolescentes, jovens e, especialmente, idosos e idosas. As questões que aqui se apresentam conceitualmente são: o Ministério da Cultura e a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SDCD) reestruturarão de fato o Programa Cultura Viva à altura dos desafios postos, incluindo de modo prioritário os segmentos acima listados? Os próprios Pontos de Cultura, ativistas em políticas culturais, artistas e os autointitulados “fazedores de cultura” percebem a necessidade de radicalização do Programa Cultura
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Viva nesse sentido? Sentido que não é outro senão o da afirmação da cultura como fenômeno político, antropológico e histórico e o entendimento de que as políticas culturais têm, como assinalado pelo ex-ministro Gilberto Gil em seu discurso de posse, “o papel de contribuir objetivamente para a superação dos desníveis sociais”. Não tenho como precisar se na origem existia a percepção que trago neste artigo, todavia imagino que pelo menos em parte sim, pois são significativas algumas afirmações de Célio Turino, então secretário da SCDC, como as que assinalo abaixo: “Pontos de Cultura com ênfase em juventude há em todos os estados, mas nem enviam propostas voltadas para questões de gênero, idosos, indígenas, cegos, trabalhadores rurais; no conjunto da rede de Pontos, estes são subconjuntos que também devem estar presentes”; “A cultura tradicional também foi inventada um dia, incorpora preconceitos, ideologias, comportamentos machistas. Ao promover a ideia da emancipação da mulher, o Ponto de Cultura com ênfase em gênero pode estar alterando comportamentos e pontos de vista em um Ponto de cultura popular, por exemplo”; “A rede de gênero pode influenciar na modificação de comportamentos machistas nas redes de hip hop ou de cultura popular, que trazem consigo muitos preconceitos machistas ou sexistas, por exemplo”.
Mesmo que no seu livro “Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima”, de onde extrai os excertos acima, Célio Turino algumas vezes mencione o tema “direitos” e “direitos humanos”, faz ainda explícita referência às questões de gênero, raciais e geracionais várias vezes, pois, mesmo considerando que a Teia (grande encontro dos Pontos de Cultura) de 2008 tenha ocorrido trazendo como tema “Cultura e Direitos Humanos”, de fato o Programa avançou de modo muito tímido no campo das relações entre cultura e direitos humanos, binômio na minha percepção fundamental num programa intitulado Cultura Viva e gerido por uma Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural. Em parte, isso se explica na época pela divisão de atribuições entre Secretaria da Cidadania Cultural e Secretaria da Identidade e Diversidade na gestão Gilberto Gil / Juca Ferreira, mas ontem à semelhança de hoje, pode também ser explicado pelo sempre tenso clima de disputa políticopartidária dentro do Ministério e pelo ranço da ideia obsoleta e corporativista de que o campo da cultura é o campo dos artistas, produtores culturais, das linguagens e das expressões. O importante aqui é destacar o Programa Cultura Viva, sobretudo como um Programa Cultural para a promoção da cidadania, da democracia e dos direitos. Para finalizar, acrescento que na próxima edição trataremos de um tema não menos difícil, as relações entre Estado e sociedade civil e a tão maltratada ideia de gestão compartilhada.
ENCONTROS SOCIOAMBIENTAIS COM LENINE Por Sarah Coelho FOTO: DIVULGAÇÃO
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m março de 2014, o cantor Lenine deu início à uma turnê diferente. Desta vez, como expectadores, não apenas os habituais fãs, e sim grupos formados por comunidades, gestores e técnicos de projetos socioambientais. Ao todo, 12 projetos estão sendo visitados pelo cantor, que aproveita a oportunidade para conhecer a comunidade local e também a história de outros projetos parceiros, além de oferecer um show gratuito. “A arte é um instrumento de aproximação poderoso por uma sociedade mais justa. Gosto de acreditar que a minha música vai além do que meramente canto”, pontua Lenine. A Fábrica de Imagens, representada pelo diretor Marcos Rocha, foi convidada
a conversar sobre o projeto CACTO Centro de Referência em Cultura, Arte, Comunicação e Novas Tecnologias para a Promoção dos Direitos Humanos, da Equidade de Gênero e da Diversidade Sexual. O projeto é patrocinado pelo Programa Sociombiental da Petrobras e foi o único representante fora da parcela ambiental do Programa a participar do evento no Ceará. Lenine ganhou um kit contento vários vídeos e materiais educativo-informativos produzidos pela ONG, especialmente no âmbito das formações políticas em direitos humanos, gênero e diversidade sexual, além das linguagens audiovisuais, fotográficas etc. O local escolhido, o município
de Chaval, tem um estuário que é a segunda maior área de manguezais do Nordeste, importante berço de peixes e crustáceos, além de reduto para espécies marinhas brasileiras em extinção. O projeto anfitrião foi o Pesca Solidária, que constrói e fortalece espaços de gestão compartilhada, para que as comunidades desenvolvam sua atividade em equilíbrio com o meio ambiente. Participaram também os projetos De olho na água, No clima da Caatinga e Esporte e Educação: essa é a nossa praia. As atividades terminaram em uma grande limpeza da praia de Jericoacoara, uma ação de educação ambiental realizada pela equipe do Pesca Solidária.
FÁBRICA NO DEBATE com Aids é possível”, “Vagas para amor de carnaval”, “Surdos e Surdas” e “Mulheres e DST/Aids”. Também participaram os coletivos Eu Livre, Fitovida e Plante Gentileza. Já no dia 3 de abril aconteceu no Rio de Janeiro mais um Seminário União Europeia-Brasil em Direitos Humanos de Sociedade Civil. A Fábrica de Imagens foi uma das organizações da sociedade civil convidadas para debater sobre educação, esporte e direitos humanos, com vistas
a propor diretrizes para o diálogo entre o Brasil e os Estados-membro da União Européia. O posicionamento da ONG foi no sentido de exigir políticas de educação na perspectiva de combate ao machismo e à discriminação com base na orientação sexual e na identidade de gênero, assim como a cobrança internacional por uma resposta do governo brasileiro ao crescente número de violação de direitos humanos das populações LGBTT no país. FOTO: THYAGO NOGUEIRA
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Fábrica de Imagens está sempre buscando oportunidades de debater com outras instituições e organismos as temáticas trabalhadas no dia a dia da ONG. O diálogo nos permite a troca de experiências e a construção de uma rede mais forte e atenta. Foi pensando nisso que a equipe da Fábrica aceitou dois convites para participar de eventos ligados à área de direitos humanos, gênero e diversidade sexual. De 12 a 15 de março, representantes da Fábrica de Imagens participaram da 4ª Mostra Nacional de Experiências em Atenção Básica/Saúde da Família. O encontro teve o intuito de contribuir com a reflexão e constante melhoria na produção do cuidado em saúde nos serviços de atenção básica, que constituem o principal ponto de contato dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Dentro da programação, instituições que utilizam o audiovisual como ferramente para informar e sensibilizar a população apresentaram as suas produções. A Fábrica de Imagens apresentou os curtas-metragens “Viver
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FOTO: IMAGEM DA INTERNET
CINEMA DE MULHERES EM TEMPOS DIFÍCEIS Helena Solberg - cineasta que iniciou carreira em 1960 Por Monique Linhares
Do tempo em que falar, fazer e até pensar diferente do regime militar era censurado e reprimido. Para ser mulher então, era preciso mais força e criatividade. Foi assim que algumas cineastas resistiram.
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s anos de chumbo e sonhos no escuro vividos na ditadura militar brasileira são lembrados em seu cinquentário no ano de 2014. Foi um período de grande ebulição política, onde nasciam novos movimentos de esquerda e grupos de guerrilha; eram militantes de um lado, militares de outro e a sociedade em cima da muralha do crescimento e estabilidade econômicos, fachada erguida pelo governo e pela mídia envolvida. A cultura brasileira, que já estava em intensa transformação quando o golpe aconteceu, em destaque na música e no cinema, passou por mudanças significativas durante o período. A Fábrica de Imagens relembra agora os 50 anos do golpe militar pela perspectiva feminista e de gênero, através da pesquisa “Cineastas Brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades”, da historiadora Ana Maria Veiga, uma das convidadas para a mesa de abertura do Curta o Gênero 2014. A pesquisa de Ana Maria envolvia inicialmente o contexto latino-americano, mais especificamente Brasil e Argentina. “Depois das pesquisas, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, percebi que seria comparar o incomparável, diante do material riquíssimo que eu encontrei no Brasil, referente às cineastas Tereza Trautman, Helena Solberg e Ana Carolina. Aí mergulhei nesse objeto, que é o cinema realizado por mulheres brasileiras durante o período da ditadura civil-militar no país”, conta a pesquisadora. Segundo ela, uma vez que a especificidade do cinema realizado por essas diretoras era justamente a intersecção entre feminismo e ditadura, a tese explora como cada uma delas lidou com a influência do feminismo que chegava ao Brasil e à América Latina, principalmente nos anos 1970, e com a repressão política 4
e moral do regime ditatorial, que via nas mulheres de família um importante pilar da sociedade conservadora que buscavam instituir e manter. “Um dos resultados é que cada cineasta investigada lidou com isso de maneira singular e isso aparece claramente na estética e na política que seus filmes engendram”, completa. Expressões mais corriqueiras da cultura, a oficialmente permitida, acompanhavam uma tendência forte da estratégia estatal até os anos 1970, que era de manter o status quo da sociedade brasileira para além da censura a ideias opostas, mantendo as mulheres no seu papel, de dona de casa e mãe de família, e os homens na função de controle, autoridade e poder. Ao mesmo tempo, a pesquisa de Ana chega à constatação que existia para as mulheres um “ambíguo apelo à modernidade, também para elas, colocava-as em uma situação de duplo chamado, criando assim um paradoxo: enquanto o projeto nacional as queria no âmbito doméstico, os anos 1970 foram cenário do grande salto da entrada das mulheres no mercado de trabalho brasileiro”, conforme Ana Maria em trecho de seu artigo “’Cinema de mulheres’ e ditadura: o contexto brasileiro”. Então, nada mais previsível que o cinema feito por mulheres, em que elas próprias seriam protagonistas, não fosse socialmente aceitável nesse Brasil. Considerado uma insurgência dessa época, o cinema de mulheres já promovia festivais específicos e apresentava “uma resposta a toda uma cultura de submissão e de exclusão da vida pública, considerando também o acesso à produção cinematográfica. Em seus moldes europeus, ele foi uma resposta ao cinema clássico de Hollywood e ao voyeurismo sobre os corpos das mulheres; foi também uma resposta à
teoria feminista do cinema britânica que provocava as mulheres a assumirem as câmeras e a realizarem um contra-cinema, rompendo com os padrões hegemônicos”. Nos idos de 1960/70, impulsionado pelo cineasta Glauber Rocha, o Cinema Novo conseguia ser a maior expressão cultural de resistência para apreciadores e estudiosos do cinema brasileiro. Mas, para Ana Maria, o cinema de mulheres contestava algumas ideias conservadoras camufladas nos filmes de Glauber, pois eles “também jogavam as mulheres para a periferia da história, [elas] eram estigmatizadas e raramente apareciam como sujeitos, com direito ao seu próprio corpo, nem representadas como mulheres modernas. O esquema de punição e castigo era bastante forte àquelas que buscavam se destacar, dentro das narrativas, que muitas vezes as colocava no papel das ‘malditas’, aquelas que destruíam a vida dos protagonistas/ homens/heróis. Temos diversos exemplos disso nos trabalhos do próprio Glauber Rocha”, cita em sua pesquisa.“O ‘cinema de mulheres’ considero mais radical dos que os cinemas vistos como radicais, porque além da ordem do gênero, que ele tenta combater, no caso das brasileiras temos ainda o reforço dessa ordem, se considerarmos o conservadorismo do regime militar. Além disso, a resistência a esse regime se fazia necessária, e é isso que eu vejo nas obras de Tereza Trautman, Helena Solberg e Ana Carolina, cada qual em seu estilo, traduzido em usos próprios e singulares da estética e dos discursos fílmicos, em meio ao emaranhado da política. Cinema é política e o ‘cinema de mulheres’, em sua versão brasileira, esteve duplamente engajado na resistência a uma dupla opressão, vivida intensamente por suas diretoras naquele momento” conclui Ana Maria.
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
ARTIGO
LOLA ARONOVICH A LIBERDADE DE OPRESSÃO DOS ABERTAMENTE PRECONCEITUOSOS Por Lola Aronovich
“Chegamos num ponto em que quase sempre que alguém bate no peito pra dizer que é politicamente incorreto, você pode se preparar porque lá vem asneira...”
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oi vendo o documentário O Riso dos Outros (para o qual tive a honra de ser entrevistada), de Pedro Arante, que descobri que Preta Gil é uma muleta no humor brasileiro. Parece que, quando a noite de um comediante de stand-up não está rendendo e o público não ri, o humorista faz uma piadinha falando que a Preta Gil é gorda e feia, e o pessoal gargalha. Tem gente que adora chamar negro de macaco, mulher de vadia gorda, homossexual de viado, e faz desse tipo de “humor” uma bandeira contra o politicamente correto. Pra essa gente, a pior praga que tem neste planeta não é a fome ou a violência, é o politicamente correto. Por que como é que pode?! Durante séculos, esse pessoal pôde escrever e falar besteiras à vontade, fazer piada com tudo, e de repente surge alguém para criticá-los?! A cada nova discussão, os humoristas bradam “Censura!” Eles reclamam que há uma “patrulha”, uma “ditadura do politicamente correto”, que não permite que realizem seu
trabalho, que, dizem eles, é apenas o de fazer rir. Porém, há uma inversão de valores que já foi consolidada pelo senso comum. Enquanto os comediantes são vistos como modernos e despojados – apesar das palavras francamente reacionárias que saem de suas bocas –, as pessoas que lutam por mudanças na sociedade são consideradas caretas e atrasadas. O resultado é que hoje politicamente incorreto virou eufemismo para abertamente preconceituoso. Chegamos num ponto em que quase sempre que alguém bate no peito pra dizer que é politicamente incorreto, você pode se preparar porque lá vem asneira contra qualquer grupo que costuma ser discriminado. O problema não é um grupo ser discriminado; o problema é alguém te achar uma besta quadrada por você fazer piada com um grupo que costuma ser discriminado! O humor pode sim ser transgressor. Mas o que esse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já
eram preconceituosos. Certamente eles já comparavam negros com macacos, e já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia tem em ser estuprada. Quem ainda adota essas piadas no século 21 não está sendo ousado ou criativo, só está seguindo uma tradição. Ousadia é querer mudar o mundo, começando pela forma que falamos. Não há nada de novo ou de rebelde ou de engraçado em eternizar velhos preconceitos. E não existe isso de “é só uma piada”. Piadas não são neutras. São armas que podem ferir, destruir, perpetuar preconceitos, e também derrubá-los. O humor é um discurso como outro qualquer, não está acima da lei. Querer que o humor se responsabilize pelo que diz não é censura – é também liberdade de expressão. Mas muitos humoristas parecem querer manter, a qualquer custo, a liberdade de opressão. Lola Aronovich é professora de Literatura em Língua Inglesa da UFC, e autora do blog Escreva Lola Escreva 5
CURTA O GÊNERO 2014
LIBERDADE, GÊNERO, SEXUALIDADE E DEMOCRACIA Por Monique Linhares
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ONG Fábrica de Imagens – Ações Educativas em Cidadania e Gênero realizou o Curta O Gênero 2014 entre os dias 7 e 11 de abril de 2014, na Casa Amarela Eusélio Oliveira no Benfica, bairro universitário e importante pólo cultural de Fortaleza. Foi a 3ª edição do evento, com mais de 350 inscritos e ouvintes participando das atividades. A programação fixa da Mostra Audiovisual e do Seminário “Gênero, Cultura e Mudança” teve uma proposta internacional, inédita, para ampliar ainda mais o debate acadêmico e político em torno das relações entre liberdade e gênero, sexualidade, democracia, arte, fundamentalismos, violações de direitos e feminismos na contemporaneidade.
FOTOS: THYAGO NOGUEIRA
EXPOSIÇÃO
CONTRASTES
GÊNERO, TEMPOS LUGARES E OLHARES
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evento acontece desde 2012, e agora conta com uma programação mais extensa, com convidados e convidadas internacionais e vídeos de outros países também. Nas duas primeiras edições, mais de 50 curtas-metragens foram exibidos, entre ficções, documentários e animações, de um total de 200 produções do Brasil e de outros 4 países inscritas. Este ano, foram projetados 30 filmes selecionados a partir de um total de 170 filmes inscritos. Umas das novidades de 2014 foram os Simpósios Temáticos do Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mudança, em que acadêmicas e acadêmicos de todo o país puderam compartilhar suas pesquisas. Foram 28 apresentações de trabalhos de um total de 40 inscritos. Ainda no ensejo da colaboração, a exposição Constrastes – gênero, tempos, lugares, olhares – com o tema Gênero 6
e Liberdade, em que os ensaios foram compostos por fotografias pessoais, como narrativas de suas histórias com relação ao seu corpo, sua sexualidade e identidades por meio da imagem. A noite de abertura foi encerrada com show da cantora Di Ferreira e theDillas, banda expoente do cenário musical da noite fortalezense. A última noite teve recorde de público, quando a Casa Amarela esgotou sua capacidade máxima de pessoas no auditório Benjamin Abrahão e em uma das salas de aula com transmissão simultânea, com quase 250 expectadores para assistir à exibição gratuita do longa-metragem “Tatuagem”. O filme - dirigido por Hilton Lacerda, vencedor de diversos prêmios em festivais e com grande repercussão de público conta histórias da trupe de teatro Chão de Estrelas, que coloca discussões de gênero e inquietações políticas, tudo com muita irreverência e sensualidade.
CURTA O GÊNERO REVISITADO O Curta o Gênero é um projeto que propõe a transformação de mentalidades por meio do debate e difusão de obras audiovisuais, fotográficas e cênicas comprometidas com a denúncia das desigualdades de gênero, com a construção ou invenção de outras representações e interpretações simbólicas, baseadas na equidade de gênero e na afirmação da diversidade sexual. Participantes circulavam o dia inteiro pela Casa Amarela durante os dias de programação, com a realização de minicursos e simpósios pela manhã; de mesas do seminário pela tarde; e da mostra audiovisual pela noite. O Curta o Gênero atraiu um público diverso, vindo inclusive de outros estados, como Gabriela Paes, estudante de Dança da Universidade Federal de Uberlândia (MG): “A troca e a liberdade de conversar que rolou essa semana me inspirou muito. Me ensinou a ouvir, a falar, não só a caminhar na trajetória de gênero, mas trocar com as pessoas mesmo. A proposta do evento é muito particular e inovadora, e fez a gente olhar pra esse tema, que tem sido abordado por tanta gente durante tanto tempo de um outro jeito. Espero poder contribuir mais e vir em todas as próximas edições”, comenta.
O Simpósio atraiu pesquisadores e pesquisadoras de diversas regiões do Brasil e áreas de estudo transversais às temáticas abordadas no Seminário, como no caso de Luciana Sttefen, do Rio Grande do Sul, que é musicoterapeuta, doutoranda em Teologia e estuda gênero, deficiência e musicoterapia. Ela afirma que é “muito importante ter esses espaços de discussão, principalmente nessa área de gênero, que é quase inexistente na musicoterapia, também não tão divulgada dentro da teologia. É importante se discutir gênero em todas as áreas e aprimorar a ciência do país como um todo”. As provocações lançadas nesta terceira edição partem da compreensão de que as lutas democráticas, a efervescência das ruas, a recusa ao disciplinamento machista, misógino e homofóbico sobre os corpos e comportamentos dos indivíduos supõe aspirações de liberdade. É este o cenário de discussões que marcaram esta edição do Seminário Gênero, Cultura e Mudança, trazendo mais uma vez à Fortaleza um conjunto de pesquisadores/as, escritores/as e ativistas/as de referência nacional e internacional. A abertura do Curta o Gênero 2014 teve Mesa composta por María Magdalena Valdivieso, do Centro de Estudos da Mulher da Universidade
Central de Venezuela, e Ana Maria Veiga, doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. No encerramento, foram debatidos os desafios do pensamento feminista na conferência com a portuguesa Conceição Nogueira, doutora em Psicologia Social pela Universidade do Minho. Para falar sobre práticas e prazeres sexuais dissidentes, vieram nomes importantes de pesquisa da área, como a professora colombiana María Elvira Benitez, de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Bruno Zilli, pesquisador associado do Centro Latinoamericano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM/IMS/UERJ. Para discutir diversos olhares feministas, a programação contou com a colaboração da professora associada de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina, Cláudia Lima Costa. A ativista Sônia Corrêa, coordenadora no Brasil do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch, SPW), projeto sediado na Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), e o argentino Mario Pecheny, professor e pesquisador em diversas universidades e grupos acadêmicos, entre eles Universidade de Buenos Aires, dividiram a Mesa “Horizontes incertos: Estado, fundamentalismos e direitos sexuais e reprodutivos no Brasil”.
NOS CORREDORES Nos intervalos da programação, participantes poderiam flanar pela MiniFeira de livros, com exposição de exemplares especiais sobre gênero, diversidade e liberdade da livraria Lua Nova. A Feira Criativa também ocupou os corredores com os bonecos da BudegAma e artigos personalizados da Guarderia de Meninos.
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feminista e pesquisadora Magdalena Valdivieso, da Universidade Central da Venezuela, faz o registro de sua participação no Curta o Gênero 2014 mostrando a necessidade urgente de resistir e de criar espaços de discussão sobre as temáticas. “Eu felicito e valorizo esta apresentação tão diversa que vocês têm organizado, que nos
mostra estes distintos modos de resistir, criatividades e ao mesmo tempo uma sólida proposta alternativa. Creio que esse seja o caminho, complexo, porque esta explosão da diversidade traz novos desafios. É muito mais difícil o momento de poder encontrar estratégias comuns, dialogar, construir juntas e juntos, muito mais difícil era quando tínhamos ideias únicas,
quando acreditávamos solitariamente em uma revolução que seria de determinada forma com um um sujeito privilegiado. Agora não há sujeito privilegiado, somos todas e todos sujeitos privilegiados deste processo e aportamos nossa diversidade e criamos espaços também diferentes, como a Universidade, onde possamos discutir estas temáticas”. 7
FÁBRICA ENTREVISTA
MAGDALENA
VALDIVIESO Por Cristhian Caje
FEMINISMOS DO SUL DEMOCRACIA, POLÍTICA E LIBERDADE
O auditório da Casa Amarela Eusélio Oliveira estava lotado para ouvir a conferência de abertura do Curta o Gênero 2014 sobre Feminismos do Sul, ministrada pela professora doutora da Universidade Central da Venezuela (UCV), Magdalena Valdivieso. Ela, que é diretora do Centro de Estudos da Mulher na UCV e especialista no estudo das mulheres e seu ambiente, conversou com um pouco mais com a equipe da Fábrica de Imagens sobre o assunto. Confira!
Como foi a sua trajetória dentro do feminismo e dos estudos de gênero? Eu me graduei na Universidade do Chile. Havia muitos anos que eu estava na Escola de Ciências Políticas, e saí do Chile por conta do golpe de Estado em 1973, e vivi a vida inteira como exilada política na Venezuela. Lá trabalhei na Universidade Central da Venezuela, a qual pertenço e onde terminei a carreira profissional, no Centro de Estudos da Mulher, que tem uma maestria nos estudos de gênero. Pouco a pouco, durante a carreira profissional, pude ir dedicando-me aos temas de gênero e ao feminismo, e também à militância política. Na militância, estive em quantas organizações de mulheres podíamos criar. Em um primeiro momento, no interior dos partidos de esquerda na América Latina, fazíamos um feminismo autônomo, devido às relações complexas que as feministas têm com os partidos políticos que conservam um grau de machismo, mas que são importantes em nossos países. Então, fiz meu doutorado em Ciências Políticas e, do ponto de vista dos títulos, sou professora titular da Universidade Central de Venezuela e doutora em Ciências Políticas. Atualmente, trabalho tanto na Universidade Central da 8
Venezuela, como no Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais, que é um organismo criado pela Unesco, que reúne investigadoras e investigadores latinoamericanos, e ali sou coordenadora de um grupo de trabalho - o grupo de feminismos, transformações e alternativas para América Latina e Caribe - e também organizo seminários virtuais em uma plataforma que o Conselho Latino-americano tem, que chega a todos os países latino-americanos. Portanto, é por ali que tenho andado e escrito o que creio que possa ter alguma importância, ou que ao menos possa ser útil a estas novas gerações. E em relação à essa proposta que você traz como Feminismos do Sul, como você poderia defini-lo de uma maneira mais objetiva? Bem, sobre a conversa que tivemos na Conferência de abertura do Curta o Gênero 2014, sobre feminismos do sul, mas também sobre democracia, política e liberdades, creio que falar de democracia política e liberdades na América Latina nos remete necessariamente a estes projetos de estados nacionais, que se instalaram excluindo uma quantidade de populações e que se centraram demais nesse caráter de estados nacionais ou
de projetos de estados nacionais latinoamericanos, com essa gramática original, tão colonial, tão eurocêntrica, que têm pretendido ser estados homogeneizantes de populações que são a toda vista e a toda vida diversas. Lá passam os temas de cidadania, desta cidadania deficitária, desta democracia sempre em dívida, desta liberdade que nós temos. Na América Latina, a cidadania é mais um privilégio que um direito, e democacracia é mais uma manifestação de vontade que uma realidade. Sobre o significado de feminismos do sul, fazemos alusão à metáfora de Boaventura de Souza Santos, quando ele se refere às epistemologias do sul. Não um Sul geográfico, e sim a um sul metafórico, mas que também é um sul geopolítico. Este Sul é um lado do mundo invisibilizado, colonizado, inventado, olhado sempre com olhos de fora, com olhos que sempre quiseram nos colonizar, nos inventar e nos negar como realidade; impor sobre nossas próprias realidades um modelo distindo, que nos trouxe modernidade. Então, tomando isso como base, se pergunta como fazer feminismo nesses espaços; um feminismo enraizado, situado; um feminismo que responda a nossa complexa situação. Por que complexa? Porque se entrecruzam situações diversas que levam a diversas manifestações do
padrão de poder dominante. Nosso padrão de poder dominante é um padrão de poder, sem dúvida, no mínimo colocial, capitalista e patriarcal, e essas dominações se entrecruzam. Quando se quer trabalhar em política ou se tem uma proposta social ideológica, uma proposta de troca social, você tem que se dar conta que está em um continente onde essas variáveis, raça, gênero, etnia e lugar de nascimento se entrecruzam. Então, que opções temos como feministas? Uma opção é fazer o que vinha se fazendo desde o feminismo liberal, e trazer à América Latina os avanços dos progressos conquistados pelas mulheres em um mundo ocidental norte-americano e europeu. Sem dúvida essa foi uma estratégia útil. Não se pode negar os avanços que alcançamos no reconhecimento de direitos em geral, que são direitos que competem a toda a humanidade, como o direito à vida, mas uma vida livre de violência; o direito ao trabalho, mas sem discriminações; o direito à saúde, que não está reconhecido em muitos países latino-americanos. Esta complexidade que temos é de uma superposição de capas; de ter sido originalmente um tipo de população e logo ter a capa da colonização, da conquista que nos tranformou em outra coisa. Agora, buscando essa origem, mas respondendo também à situação atual. Esse ponto de vista é impossível, creio eu, realizar um trabalho político feminino sem assumir que o continente está dominado pelo processo de globalização capitalista, pelo patriarcado e pelo colonialismo, de modo que a situação das mulheres da qual somos parte, com a qual queremos trabalhar, não são só as situações de subordinação de gênero, porque essa situação de gênero está mediada, está marcada, está determinada por seu caráter também de raça, de etnia, de lugar de vida. Se não se leva isso em conta, pouco é o diálogo; pouco útil é o feminismo que podemos fazer. Seria um feminismo bastante inútil para a mobilização social e para a efetiva transformação social que aspiramos. O pensamento feminista é transformador por definição, de maneira que não se trata somente de ter explicações epistemológicas do que é a opressão das mulheres, se não for um feminismo situado e comprometido com a transformação social, política e econômica, e isso requer se dar conta de que é colonial, é patriarcal e é capitalista.
Você falava de uma condição latinoamericana entre iguais sabendo também que há países na América do Sul com realidades muito diferentes. Qual seria a sua perspectiva para pensar o Brasil dentre deste panorama? Bem, primeiro reconhecer a heterogeneidade dos países sulamericanos. Sem dúvida temos diferenciais importantes entre os diversos países, mas se há algo em comum nesses Estados é que seguem sendo marcadamente patriarcais. Essa é uma condição que nos iguala em algum sentido. Por outro lado também há situações distintas das mulheres. No feminismo, não podemos cair no universalismo que criticamos, então efetivamente não podemos falar de uma maneira de fazer feminismo, mas agora falamos dos feminismos no plural e nas muitas formas de fazê-lo. Na América Latina, neste momento, podemos diferenciar estados em que há Estados liberais que fazem um grande esforço em manter sua condição de Estados neoliberais, apesar de terem sociedades bastante mobilizadas e que têm feito protestos bastante significaticos nos últimos anos, dos quais não têm escapado países que se mostram exitosos dentro do modelo. No caso do Chile, as mobilizações em 2011 mostram que um país que alcançou, em termos de cifras macroeconômicas, talvez os maiores benefícios do modelo capitalista neoliberal, apresenta uma sociedade profundamente insatisfeita com os avanços, porque o que estava em questão com as manifestações estudantis era as mobilizações pela situação ambiental, de defesa da terra, do modo de vida etc. Mas temos Estados que estão pretendendo levar adiante projetos alternativos. O mundo ia ser globalizado capitalisticamente e não havia outra alternativa, mas aos poucos outro tipo de movimento tem sido despertado na América Latina, com importantes debates sobre outras formas de vida, sobre o que chamamos de bem viver.
comunidade e fortalecendo a ideia de comunidade. Neste momento vivemos uma ditadura de mercado, em todos os nossos países impera o mercado. Com as mulheres isto se vê claríssimo com o tema do corpo. O Estado tem se tentado dominar o corpo da mulher pelo mercado, com todas as normas e leis que tentam regular como nós vivenciamos nossos corpos e como podemos atuar sobre eles. As igrejas vivem tentando impor isto através do mercado, como devem ser os corpos das mulheres, e ainda lhes oferecem uma ampla gama de possibilidades para transformar os corpos de acordo com os ditados do mercado. Esse processo, ao qual se refere Edgardo Lander, das tendências, processos e tendências à mercantilização de todas as formas de expressão da vida. Creio que o caminho é complexo porque esta explosão da diversidade traz novos desafios. É difícil o momento de poder encontrar estratégias comuns, dialogar, construir juntas e juntos. Muito mais difícil era quando tínhamos ideias únicas, quando acreditávamos solitariamente em uma revolução que seria de determinada forma e com um um sujeito privilegiado. Agora não há sujeito privilegiado, somos todas e todos sujeitos privilegiados deste processo.
Que caminhos nos restam diante deste cenário? Eu creio no que aquele cartaz que está lá fora diz: nem ditadura militar, nem ditadura civil, nem ditadura do Estado, nem ditadura do mercado. Ele mostra muito do que se quer, do desejo de viver de acordo com cada grupo e cada 9
Por Sarah Coelho
Realidades particulares e vivências plurais escancaram a necessidade de pensarmos para onde estamos indo com o feminismo. Mas que feminismo? Antes de prosseguir com a leitura deste texto, permita-se duas reflexões: Reflexão número 1: A luta por um corpo e um comportamento libertos vinha de um tempo em que o pai dizia que ela não poderia estudar sozinha na capital porque “era mulher”. O feminismo, portanto, apareceu como um bom amigo e tornou-se caminho para entender o lugar que poderia ocupar no mundo. Entretanto, anos depois, ao trabalhar como pesquisadora com pessoas trans e prostituas, viu que aquele feminismo também poderia lhe virar as costas. Entendeu, então, que a mulher de que o feminismo falava era determinada unicamente pela biologia de seu organismo; e o corpo, que se desejava tão livre, poderia ser novamente aprisionado se a dona dele o transformasse em meio de trabalho ou ocupação. Era tempo de rever conceitos. “Como um movimento, que reivindica o afastamento das bases da natureza, que diz que ‘ser mulher não é destino’, vira para as pessoas trans e diz que elxs não são legítimxs porque não são naturais? E como esse movimento, que também reivindica o direito da mulher de dizer sobre seu corpo, retira esse direito no momento em que ela é prostituta?”, provoca ela. Reflexão número 2: Anos de formação em universidades americanas a muniram de argumentos para embasar um discurso pós-moderno que ia contra raízes. “Raízes nos aprizionam”, pensava. Com o retorno ao Brasil, veio a oportunidade de trabalhar com mulheres semteto e, com ela, uma constatação: “Tudo pelo que aquelas mulheres lutavam era por um sentido de pertencimento, por uma raiz, uma identidade”. O que fazer com todas as teorias aprendidas?
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s situações relatadas são verdadeiras e introduzem algumas inquietações que têm feito tantxs pesquisadorxs e ativistas pelo mundo a voltarem suas produções para uma outra lógica de pensamento, as chamadas epistemologias do sul. A primeira foi vivida pela professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Cláudia Lima Costa, e a segunda pela professora da Universidade Federal de Uberlândia, Flávia Teixeira. As duas educadoras foram levadas por vivências pessoais a revisitarem conceitos e teorias tradicionais e concluirem que, em certos casos, apenas um nova leitura, ancorada em visões de mundo contra-hegemônicas e questionadoras, seria capaz de dar conta de realidades particulares. No que se refere ao feminismo, segundo Claudia Lima Costa, a mais recente noção que tem aparecido é a de feminismos descoloniais, que teriam emergido nas regiões andinas com o
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surgimento de uma indigeneidade, ou seja, o indígena surgindo como um forte e novo movimento social, representante de uma outra ontologia. “A partir da figura do indígena, começase a pensar a possibilidade de outros saberes, como o dos quilombolas. Isso começa a aglutinar, a agrupar pessoas preocupadas com isso, e começa a pipocar aqui e ali uma reflexão”, comenta. Para Cláudia, ao falar de gênero, a tradução – e consequentemente o signifcado - que vamos dar, vai mudar de um local pro outro. “As categorias parecem ser sobre a mesma coisa, mas na verdade são diferentes”. Descolonizar o saber é produzir um conhecimento que esteja atento a essas peculiaridades. Flávia Teixeira levanta ainda outros desafios ao feminismo tradicional, que, segundo a professora, infelizmente ainda reproduz visões de mundo que reforçam o capitalismo, o
colonialismo e o patriarcado. Para ela, grandes discussões têm sido levantadas pelo movimento Transexual: “Para se construir essa pessoa [trans], se constrói também um único jeito de ser transexual. A mulher trans tem que ter repulsa pelo pênis; o homem trans tem um seio intocável. (...) Então o que dizer quando um homem trans reivindica o direito de amamentar? Ou quando mulheres trans começam a tomar hormônios masculinos para serem mulheres com músculos tipicamente masculinos?”. Inquietações também são levantadas pela professora ao falar sobre a relação do feminismo com as prostitutas: “Quando se fala que a prostituição usurpa o corpo feminino, se esquece que existe a prostituição masculina e que existem as mulheres como clientes. Quando eu falo em mercado do sexo, de que é que eu estou falando?”, reflete ela.
FOTO: IMAGEM DA INTERNET
DESCOLONIZAR É PRECISO
FOTO: DIVULGAÇÃO
FÁBRICA DE IMAGENS NA TEIA NACIONAL DA DIVERSIDADE Por Marcos Rocha
A programação da Teia conta com duas intervenções da Fábrica de Imagens: o II Encontro Gênero nos Pontos e a Mostra Internacional Audiovisual Curta O Gênero
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cidade de Natal (RN) recebe a Teia e o Fórum Nacional dos Pontos de Cultura entre 19 e 24 de maio deste ano. Evento marcante dentro do Programa Cultura Viva, tanto pelo seu aspecto político quanto pelo seu valor e potencial estéticos, sobretudo pela integração dessas duas dimensões. Esses momentos convidam a todas e todos os interessados no Programa a mergulharem em processos de avaliação, percepção crítica dos caminhos que o mesmo tem trilhado e suas perspectivas para os próximos dois anos, pelo menos. Nesse contexto, a Fábrica de Imagens se fará presente no evento através de duas ações que se complementam e se reforçam estética e politicamente, o II Encontro Gênero nos Pontos e a primeira itinerância da Mostra Internacional Audiovisual do Curta o Gênero 2014. O II Encontro Gênero nos Pontos é o espaço para se avaliar em que nível de prioridade e em que intensidade as questões de gênero têm influenciado e contribuído, de certa forma, para a estruturação do Programa Cultura Viva. Encontros como este já foram realizados em 2008, na Teia Iguais na Diferença de Brasília; em 2010, na Teia Tambores Digitais de Fortaleza e na programação do Curta o Gênero 2012, através do I Encontro Gênero nos Pontos.
Para esse encontro, o Ponto de Cultura Outros Olhares – equidade e diversidade, da Fábrica de Imagens, e o Ponto de Cultura panelladexpressão, do Distrito Federal, uniram esforços para tecer uma programação que englobará duas mesas de discussão e três rodas de conversa. Nas mesas, de caráter mais conceitual, a discussão apresenta o tema: “O lugar da cultura para a superação das opressões de classe, gênero, raça e orientação sexual” e as relações entre “Políticas Culturais e Políticas de Gênero/ Mulheres – desafios e perspectivas dentro do Programa Cultura Viva”. Quanto às rodas de conversa, estas terão um direcionamento mais avaliativo e propositivo de caráter político e estratégico para uma inserção mais consistente do tema gênero no Programa Cultura Viva. Leila Negalaize, uma das organizadoras, alerta-nos sobre a necessidade de fomentar momentos e debates sob essas perspectivas, e reforça que “um país onde os fundamentalismos ganham eco social de seus preconceitos, só pode estar caminhando para uma cultura da morte. País laico é um país que produz cultura livre de preconceitos. Reflete a arte de viver nas diferenças sem medo”.
MOSTRA INTERNACIONAL AUDIOVISUAL CURTA O GÊNERO
Já a Mostra Internacional Audiovisual Curta o Gênero, ação aprovada na seleção artística da Teia Nacional, insere-se nesse contexto como uma ação referencial de integração entre cultura, política cultura e gênero, integrando-se a proposta do II Encontro Gênero nos Pontos. A Mostra, em sua passagem por Natal, exibirá 18 realizações nacionais e internacionais que apresentam ao expectador um painel de questões e desafios urgentes no campo das relações de gênero e suas conexões com questões de classe, orientação sexual, raça, geração, dentre outras. Estes documentários e ficções oferecem ainda a possibilidade de refletir sobre o machismo, o sexismo e a heteronormatividade e suas repercussões sociais diárias, desde as mais “inofensivas” até as mais dramáticas como a violência e o assassinato de mulheres e sujeitos LGBTT. Importante ainda destacar que a segunda itinerância do Curta o Gênero e sua Mostra Audiovisual já tem pouso certo. Em julho levaremos oficinas, a exposição Contrastes e a própria Mostra Internacional Audiovisual para Florianópolis, Santa Catarina. E outras itinerâncias ainda podem seguir por outras paragens, através de parcerias e convites que outras instituições tenham interesse. A Fábrica de Imagens está de caminho aberto. 11
sER.á.Linha_do Eliana Moeckel Foto: Iza Guedes Exposição Contrastes
EXPEDIENTE Este jornal é uma publicação do projeto Cacto realizado pela ONG Fábrica de Imagens - ações educativas em cidadania e gênero. Coordenação Geral: Marcos Rocha Coordenação Socioeducativa: Christiane Ribeiro Gonçalves, Tel Cândido e Taiane Alves
Design Editorial: Thyago Nogueira Jornalista Reponsável: Monique Linhares MTB JP 2630/CE Reportagens: Sarah Coelho e Monique Linhares Endereço: Rua Odilon Benévolo, 1133, Maraponga, Fortaleza - CE Contatos: (85) 34951887 / fabricadeimagens@fabricadeimagens.org.br www.fabricadeimagens.org.br