INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS EDIÇÃO Nº 18 AGOSTO-SETEMBRO 2014
8 ANOS DA LEI MARIA DA PENHA: ENTRE O REAL E O IDEAL página 4
ARTIGO VISIBILIDADE LÉSBICA Ellen Souza fala de sua experiência e militância
ARTIGO CULTURA VIVA Percusos atuais do Programa
FÁBRICA ENTREVISTA VERA MASAGÃO O que muda com o Marco Regulatório das ONGs?
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Editorial
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sta edição do Informativo está com menos páginas que as duas anteriores, mas não com menos conteúdo. Trazemos reflexões e avaliações sobre pautas que vieram à tona nos meses de julho e agosto, tanto pela novidade quanto pelo significado da data. Em julho, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil foi sancionado pela presidente Dilma Housseff, uma importante conquista para a trajetória de reivindicações dos movimentos sociais e sociedade civil organizada. Entrevistamos Vera Masagão, diretora da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) para
esclarecer alguns pontos e projetar próximos passos. No ensejo pelo fortalecimento da democracia participativa, o diretor da Fábrica de Imagens, Marcos Rocha, avalia os percursos do Programa Cultura Viva em seu último artigo da série, que trouxe uma perspectiva crítica sobre essa política pública nas três edições anteriores. Também em julho, foi aprovada a Lei da Cultura Viva, importante bandeira de luta dos Pontos de Cultura brasileiros. Sobre percursos, a matéria de capa busca compreender o que se colheu com os oito anos da Lei Maria da Penha, completados no último 07 de agosto. O resultado dessa análise
trouxe mais questionamentos, o que impulsiona um debate sobre o que ainda é preciso ser feito pela política para mulheres no País. Ainda em agosto, lembramos que a visibilidade é ainda forte instrumento político para a transformação de mentalidades e, por consequência, para criação de políticas afirmativas. O 29 é dia em que se firma a Visibilidade Lésbica no Brasil. Convidamos a educadora em Gênero e Sexualidade e membro da Articulação de Mulheres Brasileiras, Ellen Sousa, que nos conta sua própria experiência de vida, como lésbica e ativista. Boa leitura!
Percursos atuais do Programa Cultura Viva
INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS / ED. 18
Por Marcos Rocha | Diretor da Fábrica de Imagens | Membro da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura/GT Gênero
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ste é o último de uma série de quatro textos sobre o Programa Cultura Viva. Depois das considerações gerais, de tocar em questões conceituais e de discutir um dos princípios mais importantes dessa política, a gestão compartilhada, esse último artigo traz uma apresentação e avaliação panorâmica sobre a Lei Cultura Viva e a ultrapassagem de fronteiras do Programa, que tem se espalhado pela América Latina. Como fruto de muita luta e articulação dos Pontos de Cultura e, especialmente, da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura, foi sancionada no dia 23 de julho a Política Nacional Cultura Viva, tornando-se uma política de Estado que tem como base a parceria entre a União, Estados, Municípios e sociedade civil no campo da cultura. Na nossa avaliação, é o mais importante instrumento legal existente para garantir o acesso da população brasileira aos direitos culturais, tanto no que se refere à fruição, quanto a processos de formação e produção. Mesmo com esse largo passo dado, é importante ainda que essa lei seja devidamente regulamentada e que se faça o controle social das políticas e medidas previstas na mesma. Em ambas as situações, a participação da Comissão Nacional dos Pontos
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que Cultura é indispensável. Ao longo dos próximos meses, as mais de 300 pessoas que compõem a Comissão eleita no Fórum Nacional dos Pontos de Cultura em Natal, terão a tarefa tanto de construir com o Ministério da Cultura a regulamentação da Lei, quanto acompanhar seus primeiros passos operacionais, garantindo a efetividade dos avanços que a ela preconiza. Sobre a Lei em si, destaco dentre vários pontos a garantia do pleno exercício dos direitos culturais aos cidadãos brasileiros, dispondolhes os meios e insumos necessários para produzir, registrar, gerir e difundir iniciativas culturais e a criação do mecanismo do Termo de Compromisso Cultural que substitui o instrumento do convênio que, ao longo dos 10 anos do programa, evidenciou-se ineficiente, ineficaz e que, muitas vezes, inviabiliza o projeto cultural. Este Termo, que ainda carece de regulamentação, tem o objetivo de, sem prejuízo da fiscalização por parte dos órgãos de controle do Estado, simplificar a prestação de contas entre Pontos de Cultura e Ministério da Cultura. Olhando o cenário brasileiro, sobretudo no âmbito legal, é importante registrar que a ideia de Pontos de Cultura há muito já cruzou
as fronteiras brasileiras e que hoje é uma realidade latino-americana. Em maio de 2013, com a participação de 17 países e, aproximadamente, 1.200 pessoas ocorreu em La Paz o I Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária. Em abril deste ano, ocorreu em San José na Costa Rica o VI Congresso Ibero-Americano de Cultura que, dentre outras deliberações, lançou o II Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária a ser realizado na Guatemala em 2015. Foi apresentada uma proposta de festival latino-americano de cultura viva comunitária a ser realizado em Campinas e foi defendido o Fundo de Apoio Iber Cultura, uma iniciativa brasileira de cooperação internacional que objetiva fortalecer ações continentais do Cultura Viva. Embora em cada país a ideia de Cultura Viva e Pontos de Cultura, bem como sua operacionalização, passem por modificações, pois não existe um modelo único. O fato é que em todas as situações um princípio permanece: o Ponto de Cultura como lugar de florescimento de ideias, práticas, expressões, performances, significados e artes que não tem lugar no mercado, que são escondidas ou mesmo perseguidas por uma dada cultura hegemônica.
FOTO: MAKING OF CURTA CORDAN
fábrica em movimento CACTO EM FASE FINAL
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m agosto, todo o conteúdo absorvido durante o primeiro semestre dos cursos Cacto começou a tomar forma. As turmas de audiovisual, jogos eletrônicos e animação estão a todo vapor na criação dos produtos, previstos para serem finalizados nos últimos meses do ano: quatro curtas-metragens, quatro animações e dois jogos. O desafio é unir o conhecimento técnico ao crítico para abordar questões sobre gênero, diversidade sexual e problemas socioculturais nos materiais produzidos, um dos grandes objetivos do projeto Cacto. No audiovisual, até setembro as filmagens já terão sido rodadas, passando para o processo de montagem
e edição. As duas turmas se dividiram em quatro grupos de trabalho para produzirem as ficções: Cordan; Entre colheres e sopas; Outono; Ego rojo. Dentre os roteiros, o primeiro a ser rodado foi Cordan, que conta a história de Corina, uma transexual que por muito tempo buscou encontrar sua real identidade. Agora, depois de finalmente encontrá-la, a garota passará por um árduo processo de aceitação. As turmas de animação e jogos eletrônicos estão em processo de modelagem de cenários e personagens, para histórias sobre sexualidade, racismo, discriminação e construção de conhecimento. A última dará a tônica do jogo que se dividirá em duas fases,
como detalha o professor dos cursos, Nonato Neves: “É um jogo só, dividido em dois módulos. O protagonista-herói vive num mundo sem preconceitos, onde o desenvolvimento social aboliu pensamentos e atitudes ruins, até que uma entidade começa disseminar o mal. Para combatê-la, o personagem usa o conhecimento para chegar a grandes personalidades da paz. Não há violência física; ele coleciona objetos místicos, para aprisionar a entidade que representa o mal”. Com essas turmas encaminhadas, o Cacto abre outra turma para o curso de Animação em 2D, com início marcado para o começo de setembro e duração de 80 horas/aula.
Preparativos para o III Seminário Outros Olhares
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ste ano, a Fábrica de Imagens realiza a 3ª edição do Seminário Outros Olhares, marcada para 12, 13 e 14 de novembro, na Casa Amarela Eusélio Oliveira, em Fortaleza/CE. A programação do evento contará com simpósios temáticos, mesas de debate, mostra audiovisual e apresentações artísticas. A temática mergulha nos questionamentos relacionados aos modelos de desenvolvimento, abordados sob a perspectiva dos direitos humanos quando se consideram os impactos
sociais na democracia. Nesse contexto, analisa-se a participação social como um mecanismo com potencial de afetar positivamente os direitos humanos e a democracia. Na proposta de aprofundar o debate e os diversos olhares sobre o tema, os simpósios temáticos foram definidos nos seguintes eixos: Direito à cidade; Comunicação, Educação e Direitos Humanos; Raça, Gênero e Direitos Humanos; Sexualidade e Direitos Humanos. As inscrições de trabalhos ficam até meados de setembro.
O Outros Olhares é um Ponto de Cultura cuja atuação contempla um conjunto de iniciativas que visam contribuir para a formação de educadores, agentes culturais e ativistas no que tange à educação em direitos humanos, com ênfase nas áreas de gênero e diversidade sexual. Suas ações vão desde oficinas formativas e distribuição de materiais informativos até a realização anual do Seminário Outros Olhares.
encontro discute políticas de aids
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ntre 07 e 10 de agosto ocorreu o IV Seminário de Incidência Política - Novo Momento, Novas Respostas da Pastoral da Aids, em Porto Alegre (RS). Christiane Ribeiro Gonçalves, diretora e coordenadora socioeducativa da Fábrica de Imagens, e Jacqueline Sampaio, coordenadora administrativo-financeira, participaram representando a ONG. O Seminário teve como objetivo pensar novas estratégias de
enfrentamento à epidemia da Aids e posicionamento da Pastoral nesse contexto. Também se discutiu sobre a importância cada vez maior de inserção do movimento social e desafios a serem vencidos, no que se refere ao controle social das políticas voltadas para a Aids. Além dos agentes da Pastoral da Aids de 19 Estados brasileiros, o Seminário contou com a participação de gestores das esferas municipais,
estaduais e federal. Ao final, foi aprovada a Carta de Porto Alegre, documento dirigido aos conselhos de saúde, aos gestores de políticas de Aids, à comunidade eclesial, aos agentes da Pastoral e à sociedade como um todo, contendo compromissos a serem assumidos para o enfrentamento da Aids no Brasil, bem como para a consolidação e defesa do SUS. 3
8 anos da lei maria da penha: entre o real e o ideal Por Sarah Coelho
INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS / ED. 18
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oi no meio de uma discussão boba que ele deu um tapa no rosto dela pela primeira vez. Depois vieram os empurrões, os xingamentos e os hematomas no corpo. As amigas mais próximas cobravam atitudes: que ela saísse de casa e o denunciasse. Mas ela já tinha ouvido dizer que essas denúncias não surtiam efeito, pois bater em mulher não era crime sério e, por isso, sentia medo. Até o processo ser concluído, onde moraria? Com quem dividiria as contas? Pensava na raiva que ele poderia sentir e temia pela própria vida e pelo bem-estar
dos filhos. A história que inicia este texto é real e retrata a vivência de mulheres brasileiras oito anos atrás. Nessa época, qualquer ato de violência contra a mulher era considerado um crime de “baixo potencial ofensivo”, pago, portanto, com multas, prestação de serviços à comunidade ou doações de cestas básicas. Até que em 7 de agosto de 2006 foi criada a lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, ela passou a vigorar em setembro do mesmo ano, constituindo um marco na defesa dos direitos humanos no Brasil. A partir daí, o Estado instaurou medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Passou-se a punir com rigor os homens que agredissem as companheiras e/ou ex-companheiras e montou-se um extenso aparato de segurança e justiça, com delegacias, defensorias públicas, promotorias e tribunais especializados em violência doméstica.
não, contra a história de subordinação. “A divulgação dos estudos, das pesquisas e das conclusões de debates travados no ambiente acadêmico, além de sua importância em levar a público informações sobre o que vinha acontecendo, serviu para denunciar falsas concepções que haviam [sic] conquistado foro de verdade por muito tempo”, afirma. Toda essa movimentação confluiu para que a história de uma dessas mulheres, a que dá nome à lei, virasse um ícone da luta de muitas brasileiras. Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica cearense, viveu anos ao lado do marido violento, que tentou matá-la duas vezes. No livro “Sobrevivi... Posso contar”, ela narra que a agressividade começou a aparecer apenas depois dele, que era colombiano, receber a nacionalidade brasileira. “Tentei agradá-lo, me anulei como mulher, tentei conversar, me separar, mas ele não aceitava. Em 1983, eu estava dormindo e acordei com um estampido; não consegui me mexer. Na hora, eu achei que tinha
morrido e por isso não me mexia, mas havia [sic] levado um tiro. Fui socorrida pelos vizinhos, levada ao hospital, mas fiquei paraplégica.”, relembra. Na ocasião, o marido tentou esquivar-se da culpa, alegando que a família sofrera uma tentativa de assalto e que o tiro fora acidental. Apenas depois de receber um documento chamado separação de corpos, Maria da Penha deixou a casa onde vivia. Antes disso, tinha medo que a atitude fosse interpretada como abandono de lar, o que poderia custar-lhe a guarda das filhas. “Até esse momento, ele não havia sido acusado. Mas encerrado o inquérito, a Secretaria de Segurança Pública concluiu que o meu marido havia [sic] simulado o assalto na nossa casa e teria sido ele o responsável pelo tiro. Foram 19 anos e seis meses que passei lutando por justiça, para que ele fosse punido pelo que fez. Realizaramse dois julgamentos e em ambos ele saiu livre do fórum”, conta. A informação sobre a impunidade sofrida por Maria da Penha chegou, 15 anos depois da agressão, ao
Mudança de cenário
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necessidade de uma lei específica para o assunto foi reconhecida somente quando os legisladores entenderam que a violência em geral é diferente da que ocorre no âmbito familiar. Em caso de agressão física pura e simples - sem nenhum crime, como morte, roubo ou estupro associado - dificilmente o acusado alojava-se em prisão preventiva, significando que depois de ter conhecimento da queixa e de prestar depoimento, ele retornava para casa. Portanto, no caso da violência doméstica, ele, provavelmente, encontrava a vítima que o denunciara. Assim, a probabilidade de novas agressões e ameaças acontecerem tornava-se grande, levando em conta a vulnerabilidade da mulher diante do agressor. No contexto dessa mudança, a professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Maria do Socorro Ferreira Osterne destaca a importância das análises universitárias sobre a mulher, realizadas a partir da década de 1980, e da luta de muitas mulheres, feministas ou 4
FOTO: IMAGEM DA INTERNET
conhecimento de duas importantes ONGs: o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (Cejil - Brasil) e o Comitê Latino-americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem - Brasil). As duas instituições uniram-se à Maria da Penha e enviaram uma petição contra o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA). Em 2001, a OEA, por meio
do informe nº 54 do mesmo ano, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão no caso em questão e listou uma série de recomendações a fim de inibir a violência doméstica, uma vez que o país é signatário de diversos tratados, convenções e atos internacionais relacionados ao assunto. O caso específico representava uma espécie de evidência de um padrão sistemático de omissão e negligência do
poder público brasileiro em relação à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras. “O resultado foi que a OEA agiu e recomendou ao Brasil uma mudança na legislação para proteger as mulheres. Nosso país já tinha assinado tratados internacionais sobre o tema, mas não os executava. Em 2006, foi criada a lei 11.340”, explica Maria da Penha.
o contraste entre o rigor das normas e a força dos costumes
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o aniversário de oito anos, apesar do indubitável avanço relacionado ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres no Brasil, a Lei Maria da Penha continua apresentando estatísticas que evidenciam a necessidade de ir além do recrudescimento de penalidades para mudar a mentalidade do país. Em 2012, após extenso levantamento de dados, o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela) e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) divulgaram o Mapa da Violência 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil, que revelou informações importantes. Se no ano seguinte à promulgação da Lei Maria da Penha, tanto o número quanto as taxas de homicídio de mulheres apresentaram visível queda, a partir de 2008, a espiral de violência retomou os patamares anteriores, indicando claramente que as políticas adotadas ainda são insuficientes para reverter a situação. Para o supervisor do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Estado do Ceará, Daniel Monteiro Mendes, é preciso aumentar a quantidade e a qualidade dos órgãos pertencentes à
Rede de Combate à Violência contra a Mulher. “A lei dá mecanismos bastante eficazes, mas precisamos garantir a estrutura. Precisamos estruturar a Rede, para que as mulheres sintam segurança e rompam com o ciclo de violência que estão vivendo, já que muitas ainda têm medo que os agressores concretizem as ameaças que fazem. Toda a Rede precisa ser fortalecida, com os órgãos todos conectados. Não temos delegacias especiais na maioria dos municípios do interior, muitos também não têm abrigo para receber as mulheres que não podem voltar para casa. Além disso, investir em campanhas, em publicidade, em material informativo é muito importante para que as informações cheguem às mulheres e elas se sintam empoderadas”, explica. Segundo dados do sistema de estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa o 7º lugar de 84 países em níveis de feminicídio, com taxa de 4,4 homicídios para cada 100 mil mulheres. “A realidade da violência contra as mulheres é resultado de uma sociedade patriarcal, que precisa de mudanças em seus costumes e hábitos, que precisa reconstruir suas relações de poder, e isso só é possível através de
um processo educativo. A lei foi muito importante para trazer o tema para o centro dos debates, mas, de fato, não resolveria a situação”, alerta Sarah Luiza Moreira, técnica do Esplar e militante da Marcha Mundial das Mulheres. Também coordenadora de um projeto que fomenta a autonomia econômica e o fortalecimento da autoorganização das mulheres no semiárido cearense, Sarah aponta alguns gargalos nessas políticas públicas. “As poucas delegacias de mulheres que existem, são nove ao todo, ainda não têm estrutura 24 horas nem quadro preparado para o atendimento. Não tem escrivã que ouça realmente essas mulheres, e muitas delas ainda voltam para casa sem registrar a denúncia porque o policial diz que ela trate de conversar com o marido que eles vão ficar bem. E aí ela volta sem apoio nenhum, o que é especialmente difícil para as mulheres rurais, que muitas vezes enfrentam longas distâncias até chegarem aos equipamentos. As mulheres ainda são culpabilizadas [sic] pela situação e pensam em todas as pessoas, na família, nos filhos, no marido, menos nelas mesmas”, afirma.
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FÁBRICA ENTREVISTA
O QUE MUDA COM O MARCO REGULATÓRIO DAS ONGS?
VERA
MASAGÃO
Por Monique Linhares
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS / ED. 18
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ransparência. É o que o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, sancionado no final de julho deste ano, trará para as parcerias entre as organizações e o Governo Federal. Entendendo que as organizações ainda são alvo de criminalização desde o estouro da CPI das ONGs, ocorrida entre 2007 e 2010, em que se investigava favorecimento de repasses públicos a grupos políticos aliados e partidários do governo Lula, a lei pretende coibir a corrupção e trazer segurança à atuação das entidades comprometidas com o interesse
público. Um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em novembro 2013, mostrou que a União transferiu, entre 2003 e 2011, aproximadamente R$ 29 bilhões a 10 mil entidades sem fins lucrativos (ESFLs). Cerca de 36 mil convênios foram analisados. O fim dos convênios é uma das principais reivindicações da Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais (Abong) e o ponto principal da lei, dentre os quais também se destacam: a seleção das ONGs por
meio de chamadas públicas; os valores dos projetos a serem desenvolvidos terão de ser publicados anualmente; dois tipos de contrato: “termo de colaboração” e “termo de fomento”; estão proibidas parcerias do governo com organizações civis dirigidas por ocupantes de cargos em órgãos ou entidades da administração pública. Para fazer uma avaliação dessa conquista e da própria lei, conversamos com Vera Masagão, diretora executiva da Abong.
que explicitasse o que pode e o que não pode, principalmente, que criasse seu instrumento próprio para não mais usar o convênio. Agora vamos trabalhar nesse instrumento que se chama Termo de Fomento e Colaboração.
pontos ela fere um pouco da autonomia das organizações criando punições indevidas, mas acho que em muitos pontos ela avança. Então é um bom começo, a gente ter um instrumento próprio que reconhece o fomento e a colaboração. Parte de nós, da sociedade civil, de irmos construindo essa participação democrática, pressionando para que a cara das organizações, a criatividade, o modo da gente fazer as coisas também estejam expressos no nosso projeto, mesmo que financiado com recursos públicos.
ENTREVISTA O que representa para as ONGs a sanção do Marco Regulatório com relação aos fortes entraves para a atuação dessas entidades? É uma agenda que a ABONG já batalha há mais de 20 anos e que, durante o período Lula, a gente teve uma grande expectativa, porque era um governo que vinha dos movimentos sociais. Mas, de fato, não teve avanços na mudança desse quadro para dar mais segurança jurídica às organizações. Algumas acessaram recursos federais, aumentando a insegurança, dando origem ao escândalos (mencionados no texto acima) e cada vez mais os departamentos jurídicos pedindo regras absurdas para se defenderem. Por exemplo: não pode contratar pessoal com a verba do convênio. Isso não existe! As entidades trabalham basicamente com pessoas, como é que não vai contratar? Não são órgãos públicos que já tem lá seu pessoal fixo. A gente começou a trabalhar numa lei 6
Qual a especificidade desses novos instrumentos de contrato: Termo de Fomento e Termo de Colaboração? Essas duas palavras são interessantes. Um termo reconhece que existe colaboração quando existe uma política pública que essa organização participa; e o de fomento reconhece que essas organizações também têm uma atividade autônoma e criativa, inclusive para exercer controle social das políticas públicas, e que o governo pode fomentar autonomamente, não precisa necessariamente estar alinhado às políticas governamentais. Então, é uma lei que pra nós não é perfeita, talvez ainda que tenha muitos controles burocráticos, em alguns
Quais os próximos passos para monitoramento de parcerias e fortalecimento das ONGs? O importante é a gente continuar mobilizada para trabalhar numa regulamentação, que vai dar muito detalhe na prática de como vai ser e, eventualmente, ver como a gente pode aperfeiçoar no futuro. Mas, a regulamentação, acompanhamento
e assessoria para implementação são importantes, lembrando que um dos grandes avanços se dá pelo fato de que a lei não é só Federal, ela vai servir para Estados e Municípios. Dados do Ipea mostram que está crescendo o repasse de recursos para entidades sem fins lucrativos, no plano do Estado e do Município, e diminuindo no Federal. Então, a gente precisa dessa lei geral
muito dirigida aos pobres diretamente ou a entidades de atendimento, e é preciso aumentar a visão que também são importantes as organizações que realizam educação, direitos humanos, comunicação. A gente não vai conseguir construir uma sociedade sem uma profunda mudança de valores, e as organizações da sociedade civil tem papel importante nisso.
máscaras. – Oi, eu sou a Ellen e sim, eu sou sapatão! Quando entrei pro movimento LGBT, só pensava que eu tinha que fazer alguma coisa pra que ao perceber sua homossexualidade as pessoas não se culpassem tanto como eu me culpei. Hoje, depois de 7 anos de movimento ainda acho que não fiz nada. Mesmo depois de muitas paradas da diversidade, marchas das vadias, beijaços, músicas cantadas e tocadas junto às minhas companheiras batuqueiras do Tambores de Safo, palestras em universidades, acho que ainda não é o suficiente. Principalmente quando eu escuto, “mas quem é a mulher da relação?” ou “ah, você é sapatão porque nunca encontrou o cara certo” e a pior de todas “não, ela não é casada. Ela mora com uma amiga”. Sempre gostei do ditado “Quem não é visto, não é lembrado”, e depois de adulta, passei a pensar que quem não é visto, não é respeitado. Quando você se cala diante do fatídico “é uma amiga dela”, você reproduz a noção de que ser sapatão é feio, é errado, é sujo. Quando você percebe que vai ter uma cena do casal homossexual da novela, você muda de canal , só pra evitar que na sala alguém possa tocar no assunto. Isso é omissão. Por isso nesse 29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica, eu lembro de
uma música do Chico Buarque, que a Gal e a Simone gravaram juntas. Bárbara é o nome dela e diz:
FOTO: TRAÇO COLETIVO
que de fato vai exigir de todas as instâncias governamentais um cuidado para se adequar às regras. Cria uma referência única pra gente trabalhar do ponto de vista jurídico. Daí, a gente pensar em formas de incentivar a própria sociedade, as pequenas empresas e as pessoas para doarem para as organizações. Aqui no Brasil a gente tem uma cultura de doação
VISIBILIDADE LÉSBICA Por Ellen Souza
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esde os dez anos de idade, me percebi tendo um apego especial pelas “tias” da escola. Sei lá, algo diferente, queria ficar abraçada, ficar pertinho da “tia” o dia inteiro. Nem entendia direito o que era aquilo. Daí fui crescendo e os apelidos começaram, “machifemea”, “saboeira”, “SAPATÃO”. Achava tudo um absurdo, nem passava pela minha cabeça ficar com mulheres. “Eca, nãm, deurmelivre!!!”, eu pensava. Daí eu conheci alguém que “BUUMMM!”, fez o meu olhinho brilhar. Passada querydah! Como pode, eu apaixonada por uma mulher? Tá errado isso! Passei por todo aquele processo de culpabilização. “Ai meu deus, vou pro inferno!”. Enfim, num rolou com essa menina, mas acabou rolando com outra e depois outra e mais outra e mais outras.... Entendi que nunca seria feliz fingindo ser quem eu não era, principalmente depois que me vi obrigada a escolher entre o “conforto” da casa de meu pai e viver (mas isso é outra história pra outro momento, talvez um artigo sobre violência, intolerância, lesbofobia ou um livro de drama mesmo). Escolhi viver! Aí quando eu digo viver, eu falo no sentido pleno da palavra: V-I-V-E-R. Saí de casa e casei com minha primeira companheira, aos 19 anos, e decidi: não escondo mais nada! Quem quiser se aproximar de mim, será sem
“Vamos ceder enfim à tentação Das nossas bocas cruas E mergulhar no poço escuro de nós duas Vamos viver agonizando uma paixão vadia Maravilhosa e transbordante, como uma hemorragia” Se faz necessário mostrar ao mundo quem nós somos. Somos mulheres que trabalham, estudam, escrevem, pintam, cantam. Mulheres que riem, choram, menstruam, sangram e gemem. Gemem de prazer e de dor. Mulheres que podem parir homens ou ideias. Que fazem barulho, fazem fila, fazem o jantar, fazem amor. Que tocam e que se tocam. Mulheres que dão a luz, dão o sangue, ou dão um trocado. E principalmente, devemos bradar diariamente que somos mulheres que amam. MULHERES QUE AMAM OUTRAS MULHERES.
Ellen Souza é educadora em Gênero e Sexualidade. Compõe a Rede Sapatá, é percussionista no Grupo Tambores de Safo e membro da Articulação de Mulheres Brasileiras. 7
Debates mostras simpósios
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NOVEMBRO
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EXPEdiENtE este jornal é uma publicação do projeto cacto realizado pela ong Fábrica de imagens - ações educativas em cidadania e gênero. Coordenação Geral: Marcos rocha Coordenação Socioeducativa: Christiane ribeiro Gonçalves e Taiane alves
design Editorial: Thyago Nogueira Jornalista reponsável: Monique linhares MTb JP 2630/Ce reportagens: sarah Coelho e Monique linhares Endereço: rua Odilon benévolo, 1133, Maraponga, Fortaleza - Ce Contatos: (85) 34951887 / fabricadeimagens@fabricadeimagens.org.br www.fabricadeimagens.org.br