Revista arco edição 03

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Arco ANO 2 - N o 3 - 2012

Artes e Comunicação



Índice 04 Editorial 05 Àqueles fora da curva 06 Krishna e o diabo na terra do Gonzaga 09 O medo da cegueira na filosofia da solidão 12 Cela invisível de uma mente incomum 15 Engole um capitalista, mas não um morcego 17 Você nada pra fora e a vala te puxa 20 Abriu-se a janela e curou-se a ferida 21 Na base da ficção científica, vivendo um mundo até que real 24 Sem grilo, a lagartixa foi pro mato 27 Um mar de orgasmos no deserto da felicidade 30 O sangue não escorre mais entre garfos e facas

33 O preço de se tornar a própria arte


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Editorial

“Sem pedras, o arco não existe”. Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis

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essoas que, em termos existenciais, se situam perto do que, para muitos, são as margens da sociedade sempre garantiram personagens de grande interesse jornalístico. Os “outsiders”, como são universalmente identificados pela cultura pop, têm um exemplo clássico no mendigo escritor Joe Gould, imortalizado pelo norte-americano Joseph Mitchell nas páginas do New York Times e, posteriormente, em livro. Outras vezes, o próprio repórter encarna o papel de outsider, como fez o também norte-americano Hunter Thompson, que era, ele próprio, seu melhor e mais desajustado personagem. Seja qual for o caso, os outsiders flertam com formas não-convencionais de convívio social, quando não as abraçam de modo incondicional. Por trás de cada um deles, existe uma história que merece ser contada. Foi com essa certeza que a turma do 8º semestre do Curso de Jornalismo da Católica UNISANTOS saiu à procura de personagens cuja vida fosse marcada pela recusa em se enquadrar, rigidamente, às normas da sociedade. O resultado dessa busca está nas páginas deste terceiro número da Revista Arco – Artes e Comunicação. Aqui, o leitor vai encontrar relatos de santistas que vivem numa cidade diferente, e que veem o cotidiano da maioria como parte de um estilo de vida há muito deixado para trás, abandonado em favor de noções bastante particulares de como gerir o próprio destino. O leitor que acompanhou a Arco no seu primeiro ano de existência já sabe que encontrará um projeto gráfico diferente do das edições anteriores. Esse é um dos princípios básicos do projeto da revista. O que esperamos não ter mudado é o cuidado dos alunos na elaboração do texto e na apuração das informações. E, no caso do tema deste número 3 da Arco, também esperamos que nossos repórteres tenham conseguido traduzir em texto o que faz dos outsiders personagens tão interessantes. Charles Bukowski, escritor e desajustado genial, deu uma pista sobre esse fascínio quando disse que “algumas pessoas nunca enlouquecem. Que vidas terríveis elas devem levar”. Ele sabia do que estava falando.

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urante as décadas de 1960 e 1970 figuras como o cartunista Robert Crumb e o escritor Charles Bukowski ganharam destaque num movimento rotulado de contracultura. A contracultura era um movimento de protesto que questionava os valores vigentes na cultura ocidental. Talvez por isso tenha sido encabeçado por pessoas que se negavam a aceitar as visões já consolidadas. Todos que não se enquadram nos valores vigentes estão às margens da sociedade. São os marginais, os undergrounds, os outsiders.

Mas, que diabos é um outsider? Seria o cara que não se enquadra? O sujeito que não faz questão de pertencer a nenhuma turma? Seria, talvez, o cara que no colégio sentava na última carteira, não falava com ninguém e ia embora sozinho? A junção de todos eles? Numa sociedade em que se tornou comum a busca pela fama, pela notoriedade, a simples idéia de que alguém queira ser um “ninguém” é, no mínimo, curiosa. Camus e Hemingway ressaltaram a sua natureza prática. É o problema de viver; o problema de esquema ou finalidade da vida. O Outsider é aquele que não pode aceitar a vida tal como ela é, que não pode considerar sua existência, ou a de qualquer outro, como necessária. Ele vê “muito fundo, e demais”. É ainda uma questão de auto-expressão.

Desenho/sobre fotografia de Bukowski: Fagner Alves

Àqueles fora da curva D 7

Em resumo, é o indivíduo que se recusa a permitir que outros digam como ele deve ou não viver. Você conhece alguém assim? Conhece seus hábitos e costumes? É nesse clima psicodélico que preparamos esta edição da Revista Arco. E convidamos você a nos acompanhar em busca de semelhanças com conhecidos, ou quem sabe, com você mesmo. Boa leitura!

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Krishna e o diabo na terra do Gonzaga Texto: Girliani Martins e Natália Fifres

Na busca pelo sagrado, ele cultua alguns prazeres: cigarro, bebida e tecnologia

Diagramação: Raphael Farias

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om oito relógios ornados nos braços e com um capacete de ciclista ostentado na cabeça, um homem de 62 anos desce de sua bicicleta cheia de apetrechos e senta no chão, de pernas cruzadas. O rito indica mais um dia de trabalho. De comum em seu visual, apenas as roupas, que se perdem em meio às inúmeras bolsas que carrega. Elas vão desde as estampas mais comuns, na cor preta, ao modelo print. De uma delas, retira o Bhagavad Gita, uma espécie de bíblia sagrada dos indianos. Carlos Celso Bulhões segue pontualmente, de segunda a segunda, incluindo os dias de chuva, das 19h às 23 h, uma rotina sagrada. O Gonzaga é seu reduto de fé. Na sala, boa parte do espaço Os olhares não o incomodam, tampouco o barulho dos carros que cruzam a Avenida Ana Costa e se mescla com as conversas dos pedestres. Tanta movimentação foi o que lhe fez ironicamente escolher o local há cerca de um ano para meditar e divulgar a doutrina Hare Krishna.

é ocupado por pertences que eram do irmão. Carlos possui apenas uma mesa com remédios, um porta-retrato e mais alguns objetos

Sentado em frente a uma pilastra das Lojas Americanas, ele raramente se levanta e espera, com paciência, que alguém se aproxime para que possa cumprir sua missão doutrinária: distribuir xerox que elucidam o que é o movimento Hare Krishna e conversar sobre a crença. Durante o tempo em que está ali, vez ou outra, lê em voz alta alguns trechos do livro Bhagavad Gita. As frases dele são sempre finalizadas com um “em

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si”, repetidos como uma espécie de “amém”. Boa parte do “expediente” está marcado pelo silêncio e pelas meditações. Ao conversarmos com ele, nos damos conta de um homem de estatura média e olhar sereno, que pode ser visto até mesmo por detrás de seus grandes óculos. O movimento que o impulsionou a viver dessa maneira surgiu no país em meados de 70 e tinha regras muito rígidas, exigia que os adeptos morassem nos templos, usassem a indumentária indiana e proibia qualquer tipo de vício. Com o tempo, alguns desses requisitos deixaram de ser elementos obrigatórios. Carlos é o retrato disso. Não se prende aos enquadramentos do movimento religioso, não frequenta templos, até porque não existem na Cidade e segue os ensinamentos de Krishna por si só, sem deixar de tragar seus cigarros. De vez em quando, o squeeze que carrega perde a coloração dourada da cerveja. A bebida é substituída por refrigerante ou água. Ele justifica o vício com humor. “É, vai contra, mas eu sou pecador, caramba”. Carlos optou pelas ruas depois de algumas transformações na vida, não sabe ao certo quando começou a seguir o Hare Krishna. Antes disso, tinha uma vida considerada normal


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para os padrões sociais, casou-se e trabalhou formalmente como datilógrafo. Depois de um acidente de trânsito, se aposentou por invalidez. As mortes da mulher e do irmão, que menciona com frequência, o tornaram um homem solitário. Hoje, passa a maior parte do tempo sozinho, e a movimentação das ruas é uma forma de preencher as lacunas da solidão. O timbre rouco, em decorrência de 40 anos de fumo, perde força ao falar de Krishna e da relação afetuosa com o irmão, os principais assuntos de sua vida. O cotidiano dele não se prende às mordaças sociais. Ele não se preocupa em ser tachado como normal. “Eu vivo a minha vida”. Fora do Gonzaga, em casa, quase não existe nenhum registro da presença do místico, apenas alguns calendários espalhados pelos cantos que marcam o seu tempo e alguns objetos que parecem estar escondidos. Seus pertences se restringem ao seu quarto, que mais parece um depósito: caixas espalhadas, livros velhos mal cuidados, vidros de janela quebrados, guardachuvas e um computador largado. Objetos que

Universidade Católica de Santos parecem não ser tocados há muito tempo. A residência herdada da mãe tem cara de lugar de passagem e serve como um recôncavo para dormir, lavar roupa, ler, fazer exercícios, entre outras tarefas comuns. Misticismo e tecnologia As janelas fechadas e as portas sempre abertas indicam que ele não fica ali por muito tempo. Sua preferência é pelas ruas, quando fala com desconhecidos e aproveita para divulgar sua fé. Renega as “coisas materiais”, mas usufrui dos adventos tecnológicos: faz exercícios com um equipamento Polishop, usa celular, computador com internet, dvd e quer substituir seus óculos por lentes transitions. Para os que veem aquele homem diariamente, como Nathan Fernandes, que trabalha em uma loja próxima ao ponto de Carlos, ele é até um amigo. “Conversamos o dia todo, principalmente quando eu venho para fumar. Falamos de rock clássico e religião”. Para Rubem Abreu dos Santos, vendedor em uma banca de jornal, o homem tranquilo e introspectivo foge do conceito que as pessoas têm de modelo social. “A sociedade tem um padrão e quando alguém sai desse padrão, ela vê com maus olhos”. O universo particular de Carlos Celso desperta inquietação para os que não estão acostumados a verem o diferente. Talvez, ele seja o contraste urbano que precisava para quebrar as noites do Gonzaga.


Fotos: Edmar de Souza

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OO medo medo da da cegueira cegueira na na filosofia filosofia da da solidão

Texto: J. Fagner Diagramação: Márcio Ribeiro Douglas Vital

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Avesso ao convívio social, ele cita Nietzsche. “Não me roube a solidão se não me trouxer verdadeira companhia”.


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afael Garbelini Viana acendia o segundo cigarro da noite enquanto caminhava pela Avenida Conselheiro Nébias, onde cursa o primeiro semestre de Filosofia, até a sua casa no Bairro do Boqueirão. Trajava calça jeans azul e uma camisa cinza sem estampa – não gosta de cores fortes, desenhos ou qualquer detalhe em sua roupa que chame a atenção e por isso todas as suas camisas possuem um tom neutro, que varia entre o branco, cinza ou preto. Chuviscava após um temporal havia caído menos de 45 minuto antes. Garbelini levou o cigarro à boca, encheu os pulmões de fumaça, olhou para o céu escuro como quem procura respostas. Os pingos molhavam seu rosto . Gesticulou fazendo movimentos circulares com a mão direita, hábito muito comum quando fala em tom mais sério, quase professoral.Soltou a fumaça e disse: - Você não perguntou do que é que eu tenho medo? - Do que é que você tem medo? -De ficar cego. -Por que a cegueira? -Eu não poderia mais ler, respondeu, lacônico. Voltou a colocar o cigarro na boca. Garbelini é formado em Direito, mas nunca exerceu a profissão de advogado. Trabalha com análise e planejamento de sistemas de computadores para empresas da Capital. Trinta e três anos, caucasiano, estatura mediana – por volta de 1, 70 m - . começou a aprender sozinho os rudimentos da programação aos 19 anos com um computador que ganhou do padrinho. Apesar de autodidata também em filosofia, começou este ano a cursar o bacharelado na disciplina socrática. “A filosofia é a paixão da minha vida. O Direito e a programação são as amantes”. Rafael Garbelini tem poucos amigos, aversão a baladas e festinhas, e

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asco às conversas que considera fúteis. Não poupa críticas ao que classifica como “a deplorável situação em que se encontra a cultura do país”. Acredita na necessidade da erudição como ferramenta para o pensamento livre, mas critica seu uso como puro instrumento de ostentação. “Marilena Chauí tem uma vasta cultura filosófica, mas onde está a filosofia desenvolvida por ela?”, questiona em tom jocoso, se referindo à autora de Um Convite à Filosofia. Sobre namoro, Garbelini se sai no melhor estilo Bukowski. “Eu não gosto de mulher, eu gosto é de boceta. Infelizmente, a mulher vem junto”. Aos dois anos de idade, seus pais se divorciaram num processo traumático – ele só voltaria a se aproximar da figura paterna aos 31 anos, embora o pai morasse em São Vicente. Na infância, a mãe reclamava que Garbelini era uma criança calada, amuada. Não acredita numa relação entre a separação dos pais e o próprio comportamento. “Algumas pessoas já têm certas tendências. Eu tive sorte de não ter sido criado por ele, porque teria me tornado um covardão”. Por não gostar de aglomerações, freqüenta a faculdade com certo distanciamento social. Prefere passar o final de semana em casa, sozinho, vendo um filme ou lendo um livro. “Eu tento me aproximar das pessoas que me acrescentem algo”. Garbelini diz não sentir necessidade do convívio social, e se irrita com quem tenta tirá-lo do seu estado de misantropia. Como defesa, ele cita Nietzsche. “Não me roube a solidão se não me trouxer verdadeira companhia”.


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Durante seu último ano no curso de Direito frequentou as baladas santistas, mas não conseguiu se adaptar. “São lugares de grandes solidões, está todo mundo sozinho ali fingindo que está acompanhado”. Garbelini é adepto do existencialismo. Mas ao invés de se interessar pelas obras de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, o objeto de estudo de Garbelini é a obra de Arthur Schopenhauer. “Ele possui uma visão realista pela capacidade de separar e analisar a sociedade”. Ao chegar à porta do seu apartamento, já está com a chave correta na mão. Não gosta de ficar perdendo tempo procurando. “O tempo urge”, diz, citando Santo Agostinho. Seus livros na estante são organizados em ordem cronológica ao invés de seguirem as regras de catalogação bibliográfica. Como mora sozinho e trabalha em casa, Garbelini consegue fazer seu próprio horário. Por conta do sono fragmentado, escreve suas linhas de código durante a madrugada ou sempre que aparece um novo insight. Seu convívio social se restringe ao mínimo necessário. “Na solidão sai à superfície tudo que somos”, justifica, desta vez citando São Bruno.

Garbelini é católico apostólico romano. “Pode colocar aí que eu sempre gostei da liturgia romana, põe isso aí”. Tentou seguir a vida monástica, mas acabou desistindo, pois “precisaria gostar de gente para seguir esse caminho”. De qualquer forma, costuma passar seus natais isolado, quase sempre no Mosteiro de São Bento, em São Paulo. “Como eu tenho contato com eles desde moleque, desenvolvi uma amizade muito grande. Quando eu morava com a minha família e chegava o mês dessas festividades, eu me mandava para lá”. Por volta dos 10 anos de idade, Rafael Garbelini se aproximou da Paróquia Nossa Senhora das Graças, em Praia Grande, onde morava na época. Ficou fascinado com o símbolo da crucificação. Aquele homem que morria sozinho, “abandonado por todos”, mexeu com seu imaginário de criança. Para ele, foi um momento de êxtase, quase um nirvana, perceber que aquele homem, que era o próprio Deus encarnado, morrera ali na cruz, na solidão dos próprios pensamentos. “Uma vida sem reflexão não é digna de ser vivida”, explica, citando Sócrates enquanto contextualiza o dogma da crucificação. “Aproveitar a vida para mim é refletir. Eu acho que nós fomos chamados à vida para conhecer”, conclui. Sempre em tom sóbrio, com voz pausada, Garbelini afirma que compreende a necessidade do convívio social. Não luta contra o status quo, mas não consegue se enxergar se relacionando mais com as pessoas. Devaneia sobre a hipótese de algum dia morar afastado da cidade, longe de tudo, mas diz que para isso precisaria de alguém que cuidasse dos seus suprimentos diários. “O que eu gosto da cidade de Santos é a questão urbanística, da praticidade, eu desço e compro meu pão. Dessa forma, eu passo menos tempo fora de casa”. Comentando sobre o porquê de preferir viver entre os monges a outros como ele, responde sem hesitar: “Os iguais não me acrescentam nada”. Uma frase que gosta de repetir o tempo todo e que, talvez tenha se tornado sua máxima, é que “qualquer escolha tem um preço”.

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Fotos: Carla Martuscelli

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Cela invisível de uma mente incomum 7 Texto: Mayara Rached e Bruna Almeida

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Diagramação: Isadora Mosqueira

Viciado em movimento estudantil, Felipe Faria transpira política para não se encaixar nos padrões da sociedade


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e Santos, a mãe de Felipe mal sabia o que acontecia. Era um hábito colocar o nome do filho no Google e saber o que poderia aparecer. No dia 17 de fevereiro de 2011, lá estava: a foto de Felipe, acorrentado. Eram nove horas da manhã quando ele se encontrou com seus amigos e partiram rumo a uma reunião com os vereadores de São Paulo. Dos seis, quatro teriam que se acorrentar para garantir que nada fosse feito contra eles. Do lado de fora da prefeitura, o caos se desenhava. Socos, pontapés e muita confusão. Era vereador contra a polícia, polícia contra manifestantes e apenas a porta da Prefeitura de São Paulo para separá-los. Acorrentado por um dia e por uma ideologia. Dez horas preso na Prefeitura seria uma atitude impensável há dois anos, quando mudou de forma radical a sua vida. Felipe Camargo hoje é estudante de Relações Internacionais na USP e o contato informal com ações ligadas aos direitos iguais, termo usado por ele. Santista, mas um pouco distante da cidade natal, o jovem vive com a cabeça em outro mundo, considerado por ele, ainda insignificante, mas com grande potencial por acreditar que a sua luta pode fazer a diferença na sociedade. As mãos inquietas e uma risada tímida revelam o foco da nossa conversa que logo se dispersa. Felipe não cansa de falar de sua ideologia, mas não se sente tão à vontade para detalhar a vida pessoal. A infância e adolescência de Felipe são narradas pela mãe que sempre observou bem de perto o ritmo dele. Ela conta que o filho foi bagunceiro até os 4 anos e, a partir dessa idade, se tornou tranqüilo e nunca deu trabalho, principalmente, no quesito acadêmico.

Utopia e “bandidos”

Os movimentos estudantis fazem parte dessa onda idealista de Felipe. Braços e faixas erguidas representam a persistência de jovens que rascunham a utopia. As palavras de Thomas Morus reforçam a necessidade de Felipe e de outros defensores dessa causa que, muitas vezes, procuram uma comunidade perfeita. O autor do livro A Utopia enfatiza que nesse mundo utópico a ociosidade e a preguiça são impossíveis. Felipe vive em paralelo a esse lugar descrito por Morus. Dedicar um pedaço do seu dia para exigir o direito dos cidadãos fica por conta da vontade e do esforço de poucos. Eles vivem em meio à guerra, porém existe uma negação dessa palavra aos utopianos. Um trecho da obra descreve perfeitamente como eles vibram o sucesso. “Os utopianos choram amargamente sobre os louros de uma vitória sangrenta; envergonham-se mesmo, considerando absurdo comprar as mais brilhantes vantagens ao preço do sangue humano. Para eles, o mais belo título de glória é o de ter vencido o inimigo à força de habilidade e artifício.” O que mais lhe chamou a atenção durante os protestos na Capital foi justamente a maneira como

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os PMS costumam conter esse tipo de movimento. O estudante enfatiza que fica indignado como esses atos são reprimidos e que “manifestação é permitida por lei, faz parte da democracia e você se sente como um bandido”. A foto com a frase ‘não vou me adaptar’ é a chapa de Felipe e onde ele encontra meios para exigir maior participação dos estudantes da USP nas assembleias da universidade. Nessas ocasiões, são discutidos assuntos como prioridades orçamentárias e reformas curriculares. Para ele, as medidas são tomadas sem diálogo, sem democracia e os estudantes não têm voz ativa. Logo que entrou na faculdade, o jovem se interessou por essa luta e, durante algum tempo, só acompanhou indiretamente reuniões do Centro Acadêmico da USP. Levando em consideração também horas de estudos, ele entendeu por completo como funciona o movimento estudantil e, há quase dois anos, estuda e luta por uma sociedade justa. Esse processo lento era compartilhado dentro de casa. Suas pesquisas, conceitos e também idéias


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Balas de Borracha

Hoje, presente no Centro Acadêmico de duas a três vezes por semana, Felipe permite que o envolvimento atinja níveis de pura tensão. Esperto ou veloz, no protesto contra o reajuste nas passagens, ele era simplesmente mais um alvo perdido no meio da multidão desordenada, desviando de tiros de bala de borracha. Ele se uniu a 25 mil estudantes em luta pela democratização da USP, no ano passado. É em ações de grandes proporções como essa que Felipe acredita no potencial desses movimentos. Na visão dele, “esses atos têm índices de pico e para pautar os rumos da universidade precisam atingir, por exemplo, a universidade inteira e, assim, todos pararem para refletir”. A fim de exemplificar manifestações grandiosas, Felipe se lembra de uma greve que resultou na contratação de 200 professores em 2000. Conquistas realçam a cor dessa atividade. Independentemente dos resultados positivos, Felipe busca encontrar uma razão para uma sociedade tão distante desse pequeno grupo cheio de vontade e percepção de mundo perfeito. “Eu acredito que tudo é resultado do tipo de sociedade, cada vez mais individualista”. É preciso se envolver, mas não deixar o tempo arrastar a cobrança, segundo o jovem. Ele sempre se interessou por política e conhecer a fundo alguns aspectos desse meio fez com que Felipe ficasse cada vez mais inconformado. Mesmo focado na área de educação, ele extravasa e pauta outros problemas, muitas vezes, interligados. Filiado ao PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), o estudante esperava se enquadrar nesse grupo por ser favorável aos movimentos. “Eu conheci pessoas que apresentavam boas propostas e defendiam uma concepção democrática”. Até mesmo uma viagem em família se transforma na editoria política da vida de Felipe. “Fiquei sabendo da existência de um partido primo do PSOL na Inglaterra e marquei lá mesmo uma entrevista com a militante para saber sobre a situação deles”.

Meu Filho não é vândalo

Propositalmente, ele já percorreu outros lugares fora de São Paulo para protestar como Goiânia, Rio de Janeiro e o nítido cenário político de Brasília. “Faz parte do que eu sou”. Felipe sempre se esquiva dos assuntos voltados ao dia a dia. Só a política mesmo o deixa desinibido. Ao insistir, é possível retirar respostas diretas e bem curtas da sua boca. Ele enfatiza a vontade de trabalhar no setor público e também conta que “quer ter uma vida confortável, mas não tem a preocupação em ganhar

Fotos: Arquivo Pessoal

passaram a ser freqüentes nas conversas entre mãe e filho. Depois do primeiro protesto, a preocupação dos pais foi inevitável. Felipe conta que a sua participação mais intensa foi pela rejeição ao aumento da passagem de ônibus, que reuniu em torno de mil estudantes da universidade.

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T muito dinheiro”. Hoje sustentado pela mãe, ele mora em uma república com quatro amigos. Um deles com a opinião contrária a dele, mas que, apesar de trazer algumas discussões, não é radical ao ponto de causar grandes conflitos na casa. Felipe ainda deixa rastros na sua terra natal, principalmente, na rotina de sua família. Na mala, os livros escondem o volume tão pequeno de roupas. A irmã Bárbara Faria conta que “ele está envolvido nessa questão até o último fio de cabelo”. Quando a mãe do jovem foi questionada sobre a curiosidade na participação do filho nos protestos, Bárbara nem deu espaço para a resposta. “Ela fica fuçando sempre”. E a mãe se defende. “Alguns são vândalos e ele não é assim”. A mãe conhece bem esse jeito do filho e revela aos poucos o arquivo pessoal. O computador reúne fotos e vídeos de alguns protestos. O primeiro passo durante as constantes investigações é pesquisar na internet. É assim: ele preso e ela, conectada.


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Engole um capitalista, mas não um morcego

Texto: Tatiana Paiva e Nilsen Silva Herdeiro da anarquia, Ozzy acredita que o capitalismo é o mal do mundo. “O dinheiro é cancerígeno”.

Diagramação: Michele Carvalho e Gustavo Chagas


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le é um sujeito que busca se desprender. De calça jeans larga, camiseta e chinelos nos pés, Marcos dos Santos - ou Ozzy, como é conhecido entre os mais próximos -, leva a música a sério e a vida na brincadeira. Como o verdadeiro Ozzy Osbourne, a influência do rock e do blues está presente em seu mundo – as seis bandas das quais participa e seu jeito de viver, inconsequente e despreocupado, são prova disso. Assim como seu homônimo famoso, o Ozzy santista é imprevisível – mas não chega ao ponto de comer cabeças de morcego no meio de um de seus shows. Neto do fundador do Partido Comunista em Santos e filho de um casal de sindicalistas, ele cresceu em um cenário onde o prato principal no almoço era política e, no jantar, ideias esquerdistas. Para ele, o pensamento anticapitalista, que vai contra toda a filosofia da sociedade de consumo, é algo que sempre fez parte de quem ele é. Ir contra o sistema não é uma forma de pensar, é um jeito de sobreviver. Vindo de uma infância feliz e tranquila, no fim da adolescência tomou um caminho diferente. Perto dos 18 anos, depois de alguns conflitos com os pais, a mãe de Ozzy descobriu que o filho fumava maconha e o colocou para fora de casa. O empurrão veio em boa hora, já que ele pretendia mesmo deixar a casa dos pais e seguir novos rumos. Mudou-se para um lugar chamado Casa de Família, uma espécie de abrigo para conhecidos que compartilhavam o mesmo ideal: pensar e ser diferente. Lá, Ozzy conviveu por dois anos com mulheres feministas e pôde participar todos os dias de discussões anarquistas e debates sobre os direitos das mulheres. Não dá para dizer que, desta forma, Ozzy tomou gosto e se identificou com o anarquismo. Ele não se define assim e não acredita que as coisas funcionem desse jeito. Por outro lado, outros conceitos que ele conservava foram sendo derrubados pouco a pouco. “Mudei muito os meus pensamentos machistas nessa época. Praticamente tinha vergonha de ter pênis”, falou rindo.

características de seu comportamento. Seguindo essa ideia e sem muito planejamento, caiu na estrada com o amigo Flauto (ver matéria na página XXX) e conheceu cidades do interior de Minas Gerais, como São Tomé das Letras e São Lourenço. Usando o mínimo dinheiro possível, os dois fizeram todo o percurso pegando caronas com caminhoneiros. Além disso, contavam com ajuda de assistentes sociais das cidades pelas quais passavam e com o apoio de comunidades autossustentáveis, forma de viver considerada ideal por Ozzy. O desconhecido não o assustou. A vontade de ser livre já o levou a lugares e situações que jamais serão conhecidos por quem está cercado de barreiras. Há pouco mais de dois anos, Ozzy divide o espaço do Centro dos Estudantes de Santos, o CES, com outras

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Dinheiro, o câncer

Ozzy acredita que o dinheiro e a sociedade capitalista levam à degradação do ser humano. Prefere deixá-los de lado na maior parte das questões de sua vida e viver “nas brechas da sociedade”. “O dinheiro é cancerígeno”. Na época em que morou na Casa de Família, vivia com pessoas que tinham o mesmo pensamento. Lá, pagava uma espécie de aluguel, de valor simbólico, apenas para ajudar nas despesas da casa. Convictos de que a sociedade atual, sempre à procura de um status melhor, desperdiça muitas coisas que poderiam ser aproveitadas, ele e os outros moradores se alimentavam basicamente da “xepa” da feira, aquilo que não é comprado pelos consumidores e seria descartado pelos feirantes. Inconsequente, mas não impulsivo. Embora estes sejam adjetivos, na mesma frase, formem um pensamento contraditório, é assim que Ozzy define uma das

PINTURAS e frases que, à primeira vista, podem parecer alheias, mas dão todo o significado da vida outsider deste personagem


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17 Fotos: Nilsen Silva

três pessoas. O sustento no local vem de doações e de shows culturais promovidos na própria casa para arcar com as principais despesas. A quase inexistente preocupação com a aparência do lugar e as paredes preenchidas com expressões dos mais diversos gostos - de desenhos animados a frases em latim que remetem ao desprendimento e à outra forma de viver a vida – refletem um pouco quem Ozzy é. O quarto dele fala por si só. Cama desarrumada, sapatos deixados no meio do quarto, calças rasgadas largadas em um canto do ambiente e paredes repletas de desenhos e fotos que remetem a seu ocupante anterior. Corintiano, Ozzy mantém um pôster na parede que mostra o time do Palmeiras, pertencente a um dos antigos moradores do CES. Ele simplesmente não se importa.

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AO LADO, uma das paredes do CES, atual casa do Ozzy “EU quero ser livre para não ter convicção de nada” Ozzy se define como ateu, por ter uma forma de pensar contrária aos ideais da Igreja Católica. Quando perguntado se o ateísmo é uma convicção, rebate com uma resposta direta: “Eu quero ser livre justamente para isso, para não ter convicção sobre nada”. Em meio às certezas, Ozzy às vezes transmite a imagem de alguém durão e, como qualquer outro ser humano, também tem sonhos. Para ele, é isso o que move a vida, tudo é um sonho, e o maior deles é ter uma casa no campo para poder colher e comer o que plantar. A expressão tranquila no rosto comprova o pensamento otimista: Ozzy confia nas pessoas e tem esperança nelas. E a esperança de, um dia, ver seus sonhos realizados é o que o motiva e incentiva a conviver com um sistema tão corrompido. Hoje em dia, Ozzy se reaproximou dos pais, que compreenderam o estilo de vida que o filho decidiu levar e, dentro de suas diferenças, segue com o que considera o certo a se fazer. Avesso a rotinas, já trabalhou em grandes empresas como a Petrobras e Usiminas, fato que não conseguiu levar adiante. “Eu sou desprendido da ideia de que só há um jeito de viver a vida: trabalhar, casar, chegar do trabalho e ler o jornal. Tem vários jeitos de se viver. Todo mundo não precisa seguir o mesmo padrão”. Com esse discurso convicto, Ozzy não teve dúvidas para voltar a dedicar seus esfor


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Você nada pra fora e a vala te puxa 7 Texto: Isabella Castro, Juliana Marcello e Paula Ribeiro ‘O Capital’ adormece na cabeceira e sistema é a palavra que mais odeia. Embora tente viver à sua maneira, ele sabe que faz parte da engrenagem.

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Diagramação: Jéssica Amato


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ia do silêncio. Nenhuma televisão. Nenhum jornal do dia. Nada. Ficar um dia da semana sem contato com o mundo foi o meio encontrado pelo biólogo Vinicius Cantarelli, de 43 anos, para se esconder um pouco, dar um tempo da rotina do trabalho, aproveitar a natureza e realmente se desligar da sociedade. Vini, como gosta de ser chamado, tira o dia para ir à praia, fazer colares de conchas e dormir até tarde. Haveria dia melhor para um “dia do silêncio” do que uma segunda-feira? A antiga casa dos pais, em Itanhaém, acabou tornando esse desejo possível. Ela fica em um lugar afastado, no Jardim Regina, longe até do centro da cidade. Nos cruzamentos das ruas próximas não se veem semáforos e os motoristas, lá, provavelmente não conhecem a palavra trânsito. A rua onde Vini mora é de paralelepípedo. Um dos caminhos que levam até a casa ainda é de terra batida. A 100 metros do portão de entrada, estão os trilhos por onde um dia já passaram os trens da antiga Sorocabana. Um cenário bem propício para quem, como Vini, quer fugir de um mundo onde a correria

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do dia a dia é a regra. Antes de se mudar para Itanhaém, ele morava em um apartamento de frente para a praia, em Santos. A mudança foi grande. Vini decidiu sair da agitação para a total tranquilidade. Com isso, acabou sofrendo perdas. O círculo de amizades, por exemplo, ficou menor. Ele não conhece muita gente no Jardim Regina, mas não se importa. Itanhaém é só um lugar de passagem. Quando não está viajando, ele passa boa parte do dia na ONG. “Aqui é o lugar para eu dar uma sossegada, trocar as pilhas e dar uma recarregada, descansar um pouco”. Ao entrar pelo portão da casa, o verde recepciona os visitantes. A área reservada para as plantas é, aparentemente, maior que a da própria casa. Muitas flores, árvores, e mais de 100 mudas de plantas formam uma paisagem que ajuda a relaxar. Na varanda, filtros de sonho e cataventos feitos por ele mesmo. Na sala, nada mais que poltronas e uma mesa. Nem sinal de rádio, tevê, ou sequer um jornal. Não é só trabalhar às segundas-feiras que Vini não aceita. “Não aceito um monte de coisa do sistema”, afirma. Suas leituras preferidas são livros de Karl Marx e o jornal Brasil de Fato, que traz matérias sobre socialismo, filosofia e marxismo. Nada de informação factual, como nos jornais diários, nem portais de noticias na Internet. Antes de conhecer o pensamento de Vini, o que mais chama a atenção nele é a pele morena, sempre exposta ao sol, por força do trabalho com o meio ambiente, e as 17 tatuagens espalhadas pelo corpo. Cada uma representa um momento importante da vida dele. A favorita é a folha verde desenhada no braço direito, símbolo da ONG Caá-oby, que ele fundou em 1993 para fazer trabalhos de levantamento da fauna e


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Fotos: Isabella Castro

Dentre as 17 tatuagens, a Caá-oby é a predileta flora do litoral. Para se locomover entre a casa em Itanhaém, o escritório da ONG em Santos, a faculdade que cursa em São Vicente e a casa dos pais, em Pedra Bela (interior de São Paulo), Vini recorre a um Palio preto, fabricado há quase 15 anos. “Tenho o carro só pra ir de um lugar ao outro, e pela segurança”. Não fosse por isso, bastaria a ele a bicicleta, que considera seu “xodó”. Para ela, Vini elaborou uma lanterna que fica ligada enquanto ele pedala. Quando sabe que vai passar dias fora de sua casa em Itanhaém, carrega a bicicleta no Palio. Com frequência, deixa o carro na faculdade e vai pedalando para os compromissos, ou para a sede da Caá-oby, na Aparecida, em Santos. No carro, além da bicicleta com a lanterna movida a pedaladas, existe mais um sinal de quem vai na contramão do gosto geral, um toca-fitas. O aparelho já não funciona, mas antes de quebrar, Vini fazia questão de passar as músicas dos CDs para as fitas cassete, só para ouvir no carro. A atitude em relação ao celular não é muito diferente. O telefone movel é só para usar no trabalho. Nos finais de semana, fica desligado. A ONG é uma forma que Vini encontrou para unir a vontade de fugir do sistema e sua paixão, a biologia. Ele diz que não conseguiria mais trabalhar 40 horas por semana, como fazia antigamente. “O que eu venho buscando é fazer vários trabalhos de forma alternativa, de uma maneira que eu não precise ficar preso a um salário, gastos altos, isso pra mim é muito difícil”.

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Engajado em diversas causas ambientais, Vini comenta que o interesse pela área começou quando “pirou” pela primeira vez, como ele mesmo diz. Há pouco mais de 20 anos, largou o emprego formal na Rhodia, a família e a noiva, em São Caetano. Abandonou bens materiais e veio para Santos. Tudo para realizar o sonho de fazer um curso superior de Biologia. “Foi ali onde eu realmente me encontrei”. Quando trabalhava na Rhodia, ele era obrigado a vestir terno e gravata. Nessa época, Vini estava “totalmente inserido no sistema capitalista”. Hoje, isso faz parte do passado. Ele afirma, “com toda a certeza”, ser uma situação em que não se imagina mais. A biologia e a vida que leva permitem que ele ande quase todo o dia do jeito que gosta, de bermuda e chinelo. Shoppings e lojas não são, exatamente, a praia de Vini. Ele faz compras de roupas e calçados uma vez por ano. “E olhe lá”. A segunda vez que Vini “pirou” foi quando levou um tiro na perna, durante um assalto em São Paulo. Após esse choque, tentou a vida fora do País. O lugar escolhido foi uma ilha em Boston, nos Estados Unidos. Lá, morou 6 meses, gastou todo o dinheiro que levou e no final sobreviveu de alguns serviços. Trabalhando em um barco de pesca, navegou durante um mês até o Canadá. Ele passou por momentos difíceis, quando sequer tinha dinheiro para a passagem de ônibus. Hoje, ainda não tem – nem quer ter - renda fixa. Basta o necessário para garantir gastos básicos, com comida e gasolina. Um dos trabalhos que mais o entusiasma ele realiza em Ilhabela, onde a Universidade Estadual de São Paulo monta uma base de pesquisa para a fauna e flora. Foi na Unesp que Vini conseguiu a bolsa de iniciação técnico-científica que garante, por dois anos, sua independência financeira. Mesmo assim, 10% do que recebe são repassados à Caá-oby. A bolsa também permite que Vini coloque em prática seu inconformismo político. O trabalho de pesquisa consiste em buscar espécies de plantas ameaçadas de extinção com o objetivo claro de barrar a construção de uma estrada numa trilha do Bonete de 15 quilômetros. As diferenças com a sociedade e o ativismo em favor da natureza não fazem Vinicius Cantarelli se ver como alguém que faz coisas incomuns. “Não me acho diferente, os outros devem me achar assim, porque todas as pessoas vivem de uma forma convencional”. A partir de suas experiências, Vini segue uma filosofia de vida muito particular. “Aprendi a sobreviver dentro do sistema sem estar em um lugar fixo. Não almejo um carro e uma casa cara. Não tenho vontade de lugar fixo, isso é entrar de cabeça no sistema. Não quero garantias”.


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Na base da ficção científica, vivendo um mundo até que real

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Designer de 32 anos rasgou os documentos e sobrevive na linha entre o consumismo e a liberdade Texto: Pedro Henrique Fonseca, Dalyene Oliveira, Thales Mauá e Pedro Nogueira

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Diagramação: Dalyene


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No filme “Na natureza selvagem”, o personagem principal, Chris, tem uma família que oferece a ele as melhores condições de vida. Só que Chris não pensa em seguir o caminho dos pais. Ele não segue os padrões da sociedade e não se importa com o que as pessoas pensam. Inspirado na obra cinematográfica de Sean Penn, o designer Antônio Flauto, 32 anos, fez como o personagem do filme, destruiu os documentos e passou a tentar se excluir de uma sociedade que gira em torno do dinheiro. Em 2007, foi morar na sede do Centro dos Estudantes de Santos, na Avenida Ana Costa. Lá conheceu a fotógrafa Marcela Matos. “Eu conheci o Flauto nesse contexto, na época do lançamento do filme. Quando ele me contou que rasgou os documentos, nem fiquei surpresa”, comenta Marcela. Flauto acabou exercendo influência sobre boa parte dos estudantes do CES. Para muitos, ele era um líder, rótulo que rejeita. Ele explica que, na época, era obrigado a se manter no prédio e, para isso, tinha que estar envolvido com tudo, ter opinião sobre tudo e estar sempre disposto a um sacrifício. “Me tornei uma referência natural, mas cada vez mais isso vai se dissipar. Hoje, já atenuou bastante”. A percepção diferenciada de Flauto sobre o mundo começou na infância, quando ele já sentia que não se enquadrava nos padrões das demais crianças. Na escola, era introspectivo. E quanto mais o tempo passava, mais as coisas pioravam. Fazer trabalhos em conjunto era “detestável”. “A escola era uma merda”. Flauto preferia atividades individuais, como desenhar. “É uma obsessão de infância”. Desde a época da escola, as amizades sempre foram circunstanciais. Enquanto andavam juntos e tinham o mesmo pensamento, ok, eram amigos. Conforme as ideias iam mudando, o contato e as amizades iam se perdendo. “A amizade depende da afinidade no momento”. Hoje, ele se diz anarquista, por não reconhecer autoridades nem leis. Ao mesmo tempo, não quer se relacionar com a política. Para começar, não tem mais titulo de eleitor, e não vota desde 2007. “Eu não assisto ao noticiário, não reclamo do Governo, nem elogio a presidente”. Esse jeito de pensar e agir fascina as pessoas mais próximas. “Eu admiro o estilo de vida dele. Também tento, de certa forma, me livrar de várias amarras do capitalismo. Não cheguei a rasgar meus documentos, me livrar dos meus vínculos, mas acredito que o caminho é esse para quem está insatisfeito com esse mundo, enxergando inúmeras coisas erradas”, reflete a amiga Marcela. Na adolescência, Flauto começou a entender o mundo e aprendeu a buscar suas próprias referências. Começou a comprar discos e livros. Comprou um computador. Se encantou pela poesia de Álvares de Azevedo, Álvaro de Campos e Augusto dos Anjos, que ainda hoje são suas referências. Apesar de dizer que nunca foi de ler e que não gosta de leitura, a poesia agradou por conta da rapidez. Não ligava para fazer coisas de adolescente, estava apren-

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dendo a estudar as coisas que interessavam. Aos pais, Flauto pediu para que “ficassem fora dessa historia”. Sua relação com eles era de compreensão, mas “meio fria”. Não se envolviam muito em suas escolhas. Em 2000, saiu de casa sem nada. Tinha 20 anos, na época, e passou a buscar formas de continuar morando sozinho. Mudava de emprego e moradia frequentemente. Tentou morar com a namorada, mas resolveu voltar para casa, depois de algum tempo. Foi quando percebeu que não conseguia mais se entrosar com os pais e os quatro irmãos. “O contexto familiar para mim era altamente insalubre”. Seria impossível viver lá como antes. Flauto nunca se preocupou com a “moral” e o fato de não trabalhar. Não se adaptava em rotinas de emprego. Em sete anos vividos fora de casa, sua vida foi praticamente a mesma da adolescência. “Eu, no meu computador, escrevendo e desenhando”. Quando conheceu o Corel Draw, aquele virou seu trabalho. A partir daí, teve a convicção de que não precisava mais entregar currículos, porque tinha como se virar sozinho. Tornar-se autônomo foi a principal mudança em sua vida. “Não preciso ser um bom cidadão, não preciso ser uma pessoa cortês, não preciso ter a barba feita, só preciso do dinheiro”. Não tinha um trabalho convencional e, portanto, podia fazer o que quisesse. Desde 2007 Flauto trabalha como designer, num site onde faz criação de logos, páginas de web e ilustrações. A arte foi um meio de expor ideias e se comunicar de forma espontânea. Flauto sempre procura relacionar ideia a imagens. “Hoje eu não busco o desenho mais bonito, e sim falar alguma coisa”. Em 2009, depois de se livrar de todos os documentos “como quem joga fora uma coisa que não precisa mais”, recebeu a noticia de que seria pai. Mas, alegando que o ex-companheiro não tinha condições de assumir a responsabilidade, a mãe de sua filha negou a ele o direito de conhecer a criança. O que restou para Flauto foi correr atrás do que considerava justo. O problema é que “correr atrás de justiça é igual a documentos, fórum, juiz, um monte de obstáculos”. Depois de um tempo, deixou o assunto “de molho”. Ele não vai “corromper um ideal de vida” e se valer de um sistema com o qual não tem nada a ver. Não quer “olhar aquela mulher arrogante” (a juíza), que vai decidir friamente sobre sua vida. Acredita que, provavelmente, ficaria nervoso numa audiência e acabaria saindo do fórum preso por desacato a autoridade. Ele nunca a viu a filha, hoje com dois anos. Mesmo sem concordar com o sistema, lutou pelo direito de ver a menina. Durante alguns meses “terríveis”, ia até o prédio onde sua ex-companheira morava, e tentava invadir o apartamento, brigar e discutir. Não faz mais essas coisas, mas afirma que não vai mudar seu estilo de vida. Admite apenas tentar “melhorar” o modo de agir, não só pela filha, mas também para “continuar vivo”.

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Abriu-se a janela e curou-se a ferida

Fotos: Juliana Vicente

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7 Texto: Ana Paula Lima* Noelle escrevia apenas para desabafar e liberar sentimentos escondidos. Da folha em branco, tornou-se cineasta e compreendeu os demônios que a feriam.

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Diagramação: Marina Aguiar e Rodrigo Matos


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eninas costumam conversar com as amigas, trocar experiências, falar sobre o que sentem umas às outras. Noelle também tinha essa necessidade, porém a companhia eram o papel e a caneta. Ela registrava suas dúvidas e sentimentos ali, sozinha em seu quarto, botava para fora tudo que a corroia por dentro, no silêncio da escrita. Apenas o leve som dos riscos no papel a acompanhavam. Os textos tomaram uma proporção maior e se transformaram em duzentas folhas lapidadas à mão, que posteriormente se tornaram material de um livro. Não pelo glamour de ser publicado, Noelle desejava que aquele conteúdo colocasse um ponto final na angústia que viveu na adolescência. “Terminei o livro, e agora acabou eu não posso mais mexer no que foi escrito. Só posso seguir adiante”. Noelle Falchi é natural de São Paulo e mora em Santos, tem 22 anos e, desde os 14, usa a literatura como forma de exteriorizar o que sente, de se comunicar com o mundo e com ela mesma. Muitos filmes, livros e infinitas anotações, escritas em letra de forma, em diversas folhas de sulfite compõem o quarto dela. Noelle é escritora, cineasta e, ironicamente, administradora de empresas. As profissões escolhidas por Noelle são como água e óleo; não se misturam. A jovem sonhadora e poética, qualidades de qualquer escritor, é também fria e racional, requisitos de um administrador competente. Ela sempre foi considerada a “artista da família” pela dedicação à escrita e aos desenhos, mas os pais dela nunca imaginaram que uma brincadeira se transformaria em algo sério. “Quando eu entrei na faculdade eu não entrei com esse intuito artístico, eu entrei porque era uma coisa legal, um curso de comunicação”. O que começou como uma opção mais tranquila de curso tornou-se o atual ofício. Ela não sabia o significava fazer cinema, que descobriu no decorrer da faculdade. “Eu acho que tudo o que eu fiz até hoje, muita coisa é de referência da universidade. De conhecimentos adquiridos durante o curso e das minhas vivências, principalmente das vivências informais”. Mesmo assim, a maior referência dela sempre foi à literatura, nunca o cinema. No começo, escrever foi uma válvula de escape. Noelle escrevia sobre o que sentia no momento, de forma autobiográfica, como se fosse um diário. Tudo que ela fez, até hoje, em questão artística, cinematográfica, literária, foi para encontrar algo dentro de si mesma. Sentimentos que ela não conseguia entender e não sabia o que eram. Para descobrir a própria sexualidade, escrever foi muito importante, porque ela podia expressar o que sentia sem que ninguém pudesse interrompê-la e julgá-la.

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Na faculdade, Noelle amadureceu quando teve mais liberdade de viver o que estava sentindo, tanto no aspecto pessoal quanto no artístico. A homossexualidade é uma questão de escolher viver ou não essa situação. Sim, ela é homossexual assumida, e hoje, não tem problemas em falar sobre o assunto. O primeiro projeto cinematográfico dela foi o curta “Cortiço”, filmado logo no começo do curso Rádio e TV, no Centro Universitário Monte Serrat. O filme trata de sustentabilidade social, que desmascara a miséria velada na sociedade. A ideia desse projeto surgiu de coisas diferentes do cotidiano que são chamadas da mesma forma, porém possuem significados diferentes para diversos tipos de pessoas. Não é possível usar o mesmo discurso pra pessoas com realidades diferentes. Ela nunca havia entrado em um cortiço na vida. Não tinha ideia de como era. O choque de realidade foi imediato. “Quando fomos gravar no local os moradores nos ensinaram várias coisas. Um rapaz que tinha nove filhos ofereceu almoço para a nossa equipe. Um catador de lixo guardava no quarto um monte de papelão amontoado e

Noelle volta ao local onde dirigiu “A Janela Poética”


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eu perguntei para que servia todo aquele material e ele me disse que aquilo era como se fosse dinheiro embaixo da cama. Apertou à situação, a gente vende”. “Cortiço” ganhou o prêmio de voto popular no “Curta Santos”, o primeiro prêmio dela. Esse não foi o único projeto cinematográfico dela; depois desse, tiveram o “Oito” e “Janela Poética”. A inspiração para o “Oito” nasceu de um episódio curioso na vida de Noelle. Tudo começou com um texto, é claro. Em uma madrugada, quando ela estava voltando da praia com um amigo de carro, ele reduziu a velocidade e ambos viram uma mulher de pijama e um homem em uma cadeira de rodas, no meio da rua. Ela ficou pensando naquela situação e começou a escrever um texto pequeno, supondo o que haveria levado os dois àquela situação. A “Janela Poética” foi o primeiro curta-metragem que teve o roteiro e direção de sua própria autoria. Ela usou como referência o livro “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, que havia lido da época da escola. No começo, o trabalho laboratorial de “A Janela Poética” foi difícil, pois Noelle tinha dificuldade de transmitir como seriam as características dos personagens para os atores. Carol Monnerat, atriz que interpretou Sabrina, disse que a cineasta era muito complexa e literal ao se expressar. “Para um ator, isso é muito complicado, pois é necessário interpretar as emoções por meio de ações. Porém, esse jeito literal faz parte da sua essência.” Glaucia Franchi, atriz que interpretou Ana no mesmo filme, explicou que Noelle soube deixar os atores confortáveis em cena, e também sabia entender o lado deles. Para ela, o aspecto humano de Noelle foi um diferencial, fez com que ela se sentisse mais a vontade, assim como os outros atores. Além disso, a atriz salientou a tranquilidade e a calma de Noelle ao dirigi-los. “Noelle não se desespera quando alguma cena não dá certo. Ela tenta de outro jeito, sem deixar os atores aflitos. Sempre mantendo a calma, uma qualidade que poucas pessoas têm e que faz a diferença para a equipe inteira.” O livro escrito por Noelle na adolescência, “Lise”, que significa tecnicamente ‘falência celular’ nos termos biológicos, aguarda a aprovação de uma editora para ser publicado. O livro retrata um pouco do que Noelle passou na sua infância, e adolescência, e foi a maneira que ela encontrou para se conhecer e tirar todos os nós de sua cabeça. *Com a colaboração de: Juliana Vicente, Marina Aguiar e Rodrigo Matos

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Sem grilo, a lagartixa foi pro mato 7 Texto: Fabiana Pardini, Jéssyca Rolemberg, Juliana Vieira e Vanessa Luiz

Fidalgo encontrou em sua profissão uma forma de sobreviver, mas fez dos textos um refúgio da rotina.

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Diagramação: Fabiana Pardini


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última casa da Rua Aparecido Ferreira Vidal, também chamada de Rua 14, no bairro das Posses, fica distante de todo o roteiro turístico e comercial da interiorana Serra Negra. Localizada a 153 km da Grande São Paulo e com aproximadamente 27 mil habitantes, a cidade acolheu mais um morador no ano de 2011. No topo de um morro, que beira a estrada de terra, há uma casa – a única da rua -, construída em um terreno irregular, com grandes janelas e extensa área verde. A cada estação nascem no quintal acerolas, seriguelas, mangas, jabuticabas e mexericas. É aí que vive José Roberto Fidalgo. Um cenário improvável para o jornalista que nasceu e viveu em Santos, e aos 58 anos decidiu trocar o mar pelo mato. Para muita gente, uma decisão como esta seria difícil. Para Fidalgo, não. Mudar a rotina por completo foi simples, mas nem ele mesmo sabe explicar por que ocorreu. O certo é que Santos já não correspondia às expectativas de quem viveu um período da cidade em que o sindicalismo, as ideias de vanguarda e o cenário cultural eram marcantes. Ele já não conseguia convi-

ver com a expansão imobiliária desenfreada e as novas prioridades dos santistas “De repente, a cidade começou a mudar. As pessoas mudam, as direções mudam”, comenta Fidalgo. “E, enfim, você começa a ficar incomodado com algumas coisas da cidade”. Assim, ele acabou seguindo um conselho da mãe, que dizia “os incomodados que se mudem”. Serra Negra foi escolhida por acaso. Ao passar uns dias na casa de um amigo, ele simpatizou com a cidade e começou a procurar um lugar para morar. Conseguiu, mas não se livrou dos problemas. Se na cidade passava o dia com inúmeras tarefas a serem resolvidas, no interior não é diferente. Aposentado, continua escrevendo, mas agora também se dedica a trabalhos braçais. Cuida do terreno, das plantas e de seus cães e pássaros. A tentativa de exílio, a busca por novos ares, não é novidade na vida de Fidalgo. Durante a juventude, se aventurou e tentou viver refugiado nas praias do litoral paulista, em um tipo de comunidade hippie. Lá, todos tinham atividades estabelecidas. Uns caçavam, outros pescavam, alguns cultivavam a horta e outros realizavam

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Fotos: Juliana Vieira

trabalhos manuais. Fidalgo percebeu, então, que não se encaixava nesse meio, porque “não tinha o dom” para nenhuma dessas atividades. Sua vocação, de fato, era para a escrita. Demorou apenas seis meses para a urbanidade da qual tinha fugido fazer falta e ele retornar a Santos. Assim como o acaso o levou para Serra Negra, também determinou sua escolha profissional. Fidalgo conta que, no vestibular, todos os seus amigos buscavam o curso de Engenharia, principalmente pelo status. Para não ser diferente dos demais, ele também esteve em busca dessa formação, que abandonou depois de quatro meses de cursinho. “Não tem matemática? É esse que eu vou fazer”, referindo-se ao curso de Jornalismo. A escolha, aparentemente, foi correta. Para ele, o jornalismo representou a sobrevivência. “Eu não sei fazer mais nada, não sei fazer pastel, não sei ser pedreiro. Só sei, realmente, escrever”. Embora tivesse facilidade com o texto, as limitações exigidas pelos meios de comunicação dificultavam suas criações. Escrever tornou-se algo penoso. Era difícil se adequar às regras impostas pelo texto jornalístico. Por essa razão, sua preferência sempre foram os textos livres, soltos e sem amarras. Literários. “Escrever como escrevo hoje é uma forma de lidar com a vida. É uma maneira de colocar as coisas em perspectiva”, avalia. Fidalgo se mantém próximo das palavras por meio de um blog, chamado O Ano da Lagartixa. Ele surgiu da ideia de publicar um de seus livros em vários episódios. Foi uma válvula de escape para fugir da rotina e da “parte pesada” do jornalismo. As influências de seus textos incluíram desde ídolos do rock até escritores “malditos”. Na década de 60, a música da contracultura trazia linguagem simples, e temas que não eram comuns em canções populares, como carros, pontos de ônibus, sanduíches. Fidalgo se impressionou com isso. “Minha formação política e filosófica foi através da música”. Do rock, mais especificamente. Há quem diga que seus textos têm influência da literatura beat dos anos 50, mas ele diz que já escrevia num estilo semelhante antes mesmo de conhecer os autores deste movimento literário. Além disso, viveu na era da ditadura militar, quando muitos autores e compositores tinham que fugir da censura utilizando metáforas. Daí vem o gosto pela linguagem enigmática e as histórias misteriosas, cheias de situações inusitadas. Ao falar dos escritores que mais admira, Fidalgo destaca o norte-americano Henry Miller, que seduzia os jovens com textos carregados de sexualidade. Foi uma mistura de influências que tornou sua escrita diferente do padrão e o ajudou em sua fuga da objetividade. Fidalgo percebeu que, juntando os diversos textos que havia escrito, poderia lançar um livro. Foi assim que surgiu sua primeira obra, O Ano da Lagartixa, lançado em 2006, que também deu nome ao blog. Com 200 exemplares, o livro teve um lançamento convencional, na livraria Realejo, em Santos. Já no segundo, João e Jeremias – A Porra da História, de 2009, decidiu não fazer lançamento, disponibilizando apenas 50 exemplares

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FIDALGO conta detalhes de sua trajetória de vida

para venda pela Internet. Hoje, ele possui um projeto, em parceria com o amigo Gilvan Gomes, relacionado à música e poesia. A Porra da Cidade conta as experiências de dois santistas frustrados e a relação de amor e ódio deles com Santos. Casado pela segunda vez, Fidalgo tem dois filhos e dois enteados, com quem mantém contato. Aproveita a tecnologia atual para se comunicar com eles. É um dos poucos pontos positivos que ainda vê na vida urbana. Há quase dois anos morando em Serra Negra, o futuro do aposentado José Roberto Fidalgo é uma dúvida até para ele mesmo. Não sabe dizer se ficará na cidade até morrer, ou se antes disso voltará a se exilar em algum outro lugar. Como menciona em O Ano da Lagartixa, quem sabe se, durante a busca por um lugar que o inspire a escrever, ele não encontrará o esconderijo perfeito.

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Foto: José Claudio Pimentel

Um mar de orgasmos no deserto da felicidade Texto: José Claudio Pimentel, Luane Fratelli e Lincoln Spada

A obra de Flávio Viegas Amoreira é seminal, inspira outros artistas. Do livro “Escorbuto - Cantos da Costa”, o trecho “Chuva no mar é desejo” se tornou música assinada de Gilberto Mendes, lambe-lambe na Bienal Internacional de Gravura de Santos e detalhe em coleção de vestidos de noiva.

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Diagramação: Letícia Cortês

“Os textos de Flávio são como rios muito densos que desembocam nos leitores. A dinâmica de sua obra desperta uma força criativa”, diz o jornalista Alessandro Atanes. “Como uma lanterna política”, o iconoclasta Flávio é definido como um catalisador e uma voz para a militância artísitca e homossexual.


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tetizam sentimentos pessoais e entregam visões ideológicas - e não políticas, como até pode se acreditar. Flávio veste o oceano e o amor pela literatura, motivado, certamente, pelo engajamento cultural. Desde 2000, publica livros. São dez ao todo, entre coletâneas, poemas e contos. Na biblioteca pessoal, garante ter mais de 3 mil títulos. O escritor diz que procura ser original em tudo o que faz. Ele acredita que todo e qualquer início de criação deve vir do ser humano, este, por sua vez, não um simples e desqualificado sujeito pensante, mas instigado pelas próprias ações e sentimentos individuais, conquistados ao longo do tempo e desmistificados ao quebrar paradigmas. Desta forma, condena vigorosamente o capitalismo. É, portanto, de esquerda. Socialista assumido que diz ter ficado triste com o fim da única peça que poderia ser decisiva para a humanidade: a queda do Muro de Berlim (1991), responsável por dividir a capital da Alemanha entre dois mundos, o ocidental e o oriental, e as duas formas de governar e sociabilizar. Ele diz que as pessoas perderam com a comercialização da vida. Na rede virtual do Facebook, pratica o chamado “FaceCult”. Lá, compartilha com as pessoas: desde depoimentos, além de opiniões e trechos da própria obra. O militante culpa a ditadura, época em que pouco atuou, pela capacidade de reprimir e extinguir qualquer tipo de ação que possa acrescentar à sociedade. Engajado nos ideais, participou de movimentos e acompanhou processos de integração dos homossexuais no meio em que vivia. Sofreu, inclusive, pela escolha que fez, o que resultou, anos mais tarde, na dependência ao álcool e até mesmo uma síndrome do pânico, ambos já superados.

s 9h15 de uma manhã histórica, em 12 de abril de 1961, o primeiro homem a chegar ao espaço, o tenente russo Iuri Gagarin, viu com os próprios olhos aquilo que, até então, parecia surreal. “A Terra é azul”, reportou o astronauta - estarrecido - ao centro de controle. Quatro anos mais tarde, mal sabia ele, nascia um garoto, em Santos, litoral de São Paulo, que, de tantas possibilidades, simplesmente se apaixonou por quem produziu aquela cor: o mar. Flávio Viegas Amoreira, 47 anos, é caiçara, mas digno paulista da capital. Descobriu aos 13 que nascera para ler e escrever - mas não se entregou à literatura logo de cara. Subiu a Serra, se estarreceu e se empanturrou de cultura - até a boemia. Cursou História na PUC Campinas. Sofreu com o homossexualismo, temeu a Aids, chorou a queda do Muro de Berlim, burlou a ditadura, fez desafetos e, existencialista, diz não ser feliz.

“Prefiro comprar livros e CDs a ter um carro. Não vou dirigir” Escritor, agitador, militante, jornalista, dramaturgo. Amoreira parece estar presente em todo o meio cultural. Encontrou-se com a reportagem, atendendo ao pedido do entrevistado, em um lugar onde se sente bem, na Pinacoteca Benedicto Calixto, próximo de onde mora, no Boqueirão, em Santos. Fervoroso no andar, impetuoso na fala, é reconhecido por muitos e espiado por tantos outros, enquanto caminha pelo antigo Casarão Branco, de mais de 110 anos. Vestindo uma camisa azul, que esconde uma camiseta preta estampada, onde na gola nota-se duas canetas presas e, usando uma calça vermelha, senta-se no coreto da fonte e de costas para o mar - a grande paixão. Para ele, as cores sin-

“Felicidade é uma sucessão de orgasmos múltiplos e intermináveis” Flávio não é uma pessoa feliz; na verdade, diz nunca ter sido. E, para ele, este sentimento não existe para ninguém. Justifica a posição ao compreender que qualquer tipo de satisfação existente e absorvida pelo indivíduo é momentânea. Da mesma forma que o prazer sexual termina ao fim de uma relação, explica, a definição da palavra, de fato, não é real.


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Sobre filhos e família? O agitador diz ter muitos amigos e mais: que já manteve relacionamentos sérios e duradouros, mas não pensa em deixar herdeiros de sangue ou casar. É um homossexual bem resolvido. Quando a Aids chegou de vez, foi pego de surpresa ao ver amigos próximos consumidos pela doença. Cazuza é um exemplo citado. O cantor, afirma o militante, era amigo da família. A relação começou durante viagens na capital Paulista, e quando vinha a Santos, não deixava de visitá-lo. É um receio da vida que ele guarda. Hoje, tornou-se militante e defende a causa.

referem ao modo do autor se expressar, “como uma metralhadora de palavras”, causando incômodo aos menos envolvidos. “Por outro lado, ele é capaz de nos alertar pra uma série de pensamentos que nos escapam no dia -a-dia”, ressalta Márcio, que se pudesse descrevê-lo em apenas uma palavra, arriscaria “puerilidade”.

“A nobre arte de dar o rabo” Quando escreve assim, Amoreira não quer julgar ou escandalizar: tem a intenção de fazer com que as pessoas se familiarizem com o vocabulário de hoje em dia. Ele explica que são muitos os escritores que utilizam este tipo de artifício para quebrar uma série de tabus e pensamentos retrógrados na sociedade que, ao próprio olhar, comete ações mais condenáveis do que uma simples frase escandalosa. A intenção é ser atual, contemporâneo. Das palavras, extrai a sabedoria e dissemina as próprias ideias; do oceano, vem a paixão e a inspiração para poder ser o que é. “Tenho quase que uma relação homoafetiva com o mar”. Todos os livros que escreveu possuem capas azuis, em alusão àquilo que venera. Por mais explícito que fique a relação, é um tanto quanto complexo compreender o sentimento. Muitos poderiam dizer que a felicidade está aí... Os milhares de livros que guarda em casa - seja em Santos ou em São Paulo - foram lidos por Flávio Viegas Amoreira – é o que ele garante. O agitador-militante burguês tem uma vida pacata, mas com trilha sonora. “Todos devem buscar uma”. Seja ao som das ondas do mar, do leve ruído de um lápis para escrever memorosos textos, das discussões fervorosas com acadêmicos, ou até o toque delicado de uma taça de vinho na madrugada com amigos. Suas atitudes “tornam-te quem tu és!”, diria o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, tão querido por este outsider.

Flávio Viegas, ame-o ou deixe-o Apesar da imagem hostil, de quem não tolera a ignorância, Flávio mostra-se volúvel aos olhos dos amigos. “A agressividade do Flavio, na verdade, serve como uma couraça para toda a meiguice que ele tem”, elogia Márcio Barreto, que o conheceu há cerca de três anos, e, juntos, começaram a trabalhar em eventos literários, como o ‘Sarau Caiçara’. Desde então, brotou em Márcio um interesse quase necessário de conhecer a figura tão atípica de Viegas mais a fundo, a ponto de publicar seu mais novo livro, ‘Desaforismos’. “O Flávio representa totalmente as obras dele, fácil de se amar e odiar, devido a sua profunda e extensa erudição, causando, muitas vezes, uma certa incompreensão por parte dos leitores”. Outras características apresentadas por Márcio se

Zero Um “Apaixonado de Mar”, “Stallone, a Pândega e o Pederasta”, “O Gato de Guima” e “Nazca”, todos escritos por Flávio, são os primeiros textos apresentados na antologia “Geração Zero Zero”. A obra organizada por Nelson de Oliveira registra as palavras de 21 ficcionistras brasileiros que estrearam na literatura no início do século 21. Tarefa árdua, já que o país do futebol também publica 1.500 novos títulos mensalmente. A partir de seus critérios, Nelson selecionou durante três anos as obras de 150 autores nacionais com, pelo menos, mais de dois livros publicados. O fio condutor da publicação é o polêmico, o absurdo, o bizarro. Ao contrário das antologias de melhores textos dos autores, o livro mantém a tradição das coletâneas “Geração 90”, contendo os textos dos melhores autores: histórias inéditas.


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O preço de se tornar a própria arte 7 Texto: Paula Lira e Jonatas Oliveira

“Sexo, drogas e rock and roll” é uma filosofia que se encaixa muito bem para ele. Sem emprego ou compromissos fixos, entre a casa da mãe e da namorada mineira, vive só de música. Nada de rótulos. Ele é o que é. Diagramação: Letícia Villarinho e Amanda Camargo

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eu nome? Nem f... Eu odeio o meu nome, que caras que tocavam há 10 anos”. Foi nesta época ele é muito comum”. O músico John Hansen que começou a ser mais notado e montou sua prinão quer ser um cara comum. E ele pode ser meira banda. tudo, menos comum. Os cabelos crespos, grisalhos e volumosos, junto com a barba farta, dificultam a Sucesso dos acordes visão completa de seu rosto. Tirar uma foto sem que ele esteja com óculos escuros e sua guitarra Jackson Sem a preocupação de ganhar a vida, tudo o que é impossível. Ambos fazem parte de sua identidade. recebia era gasto em discos, até que percebeu que Aliás, Hansen deixa claro que a melhor maneira de deveria investir em equipamentos. Assim, vendeu conhecê-lo é ouvir a música que ele faz. parte de sua coleção para comprar a primeira guitarA negação do nome de registro começou quanra, uma Gibson. “Foi aí que comecei a ter um estilo, do ainda era bem uma identidade”. Ele aceitou Paula Lira jovem. Aos 14 anos, o convite para tocar no Vulcase autodenominou no, banda santista que estava Johnny Lee. Com o precisando de um guitarrista, tempo, passou a ser já que o anterior havia deixaconhecido como John do a banda. Todos os shows Arthur Hansen. Agora, já estavam agendados e Hanapenas Hansen. Seu sen, resolveu ajudar os amigos nome não é John e enquanto não encontravam muito menos Hansen. outro integrante. Sua breve Ele criou para si uma participação acabou virando identidade baseada uma experiência de um ano e em referências enconmeio. E durante sua “estadia” tradas no cinema e na resolveu propor um som mais música, uma mistura pesado, escreveu algumas de John Lennon, Brumúsicas, passou para o inglês ce Lee, Arthur Fonzae transformou a banda em relli (personagem da Black metal. série de TV americana Na época, Hansen particiHappy Days) e irmãos pava de muitos shows com três Hanson (do filme Vale ou quatro bandas tocando no Tudo, da década de mesmo dia, e o que mais ouvia 70). era que ele tinha sido o melhor Paulistano, muguitarrista da noite. “Guitarrisdou-se para Santos tas acabam desenvolvendo um aos 8 anos. Um ano ego meio grande. Nunca chedepois, teve o primeiro gavam a dizer que a música da contato com a música. banda era legal, o que eu fazia Foi quando sua família basicamente era um punk rock comprou uma vitrola. com solos de cinco minutos”. Ele ouvia o que os seus Mas quando percebeu que pais ouviam. Nada de não precisava tocar muito bem muita música nacional, HANSEN e sua inseparável companheira para tocar punk rock, passou o que predominava era a ter vergonha de se apreseno som estrangeiro. tar nos shows, porque não era mais necessário tocar O jovem Hansen virou beatlemaníaco, e acabou bem. se fixando em referências culturais européias. Dos BeFoi durante este período, aos 23 anos que caiu atles, passou a Alice Cooper, famoso nos anos 70 por no alcoolismo e não tardou a chegar nas drogas. “O fazer shows que teatralizavam a violência da época. álcool é uma merda porque ele te puxa pra baixo, “Alice Cooper foi o primeiro som de ruptura entre o e eu achava que a maconha seria mais um passo gosto dos meus pais e o meu. Foi aí que comecei a me para minha autodegradação, mas estava enganado. interessar por música mais pesada, como Led ZeppeQuando experimentei, achei muito legal, já que oulin, Deep Purple e Black Sabbath”. via as músicas com muita nitidez, e parecia ter um Seu interesse não era só ouvir rock, mas tamsom ligado na minha cabeça, tudo com muito eco”. bém tocar. Do piano, passou para o baixo e logo cheHansen, deixou a Vulcano e pouco tempo degou a vez da guitarra. Estava no último ano do Ensino pois, em 1985, formou o Harry and The Addicts em Médio e no primeiro semestre com a guitarra, saía 1985. Logo depois, com o nome encurtado para Harda escola e ficava a tarde e a noite treinando. Parava ry, surgia uma das primeiras bandas eletrônicas do só para comer. “Em seis meses, eu tocava melhor do Brasil. O Harry ganhou reconhecimento nacional,


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mas ao longo da década de 90 lançou apenas uma coletânea com quatro músicas inéditas. Mesmo com o sucesso da banda, ele não viu mal em continuar a usar drogas. Sua teoria é de que os Beatles não foram do iê iê iê para o Sgt. Peppers em quatro anos à toa. “Sem drogas, eles não teriam chegado lá. Não conheço nenhuma obra realmente relevante que não tenha droga no meio, tanto no rock como no jazz”. Durante seis anos, Hansen experimentou de tudo: maconha, ácido, cocaína, e só não passou para a heroína, porque tinha trauma de agulha. Passou por alguns sustos, mas continuou usando de tudo até 1991, quando uma overdose de ácido o levou às 2 horas da manhã para o hospital. “Eu estava sem camisa, na maca de metal, fria, com aquela luz branca. Eu não tinha muita certeza se ia sair vivo dali. Prometi pra mim mesmo que iria mudar de vida”. Ele confessa que ainda fuma maconha “de vez em quando”, quando oferecem. Não vê mais necessidade de fumar ou beber todos os dias, e pode passar muito tempo sem usar nada. “Eu bebo o que tiver, menos cerveja. Não gosto do álcool, e sim do efeito do álcool. Por isso procuro beber coisas fortes, como rum, vodca e uísque, para chegar mais rápido no efeito”, explica.

gadas à música. Para o mercado de trabalho, isso não era o suficiente. Para sobreviver, acabou desembarcando no mundo dos filmes pornô. Trabalhou por algum tempo em uma produtora, experiência que não considera muito positiva. Apesar de gostar, deixou de ver filmes do gênero com o olhar que tinha antes. “Só é divertido no primeiro ano. Não existe tesão em set de gravação de filme pornô. Os atores usam remédios para estimular a ereção. Depois que trabalhei com isso, passei a reconhecer quando o ator está fingindo”. Hansen atribui a essa “vibe negativa” o fator que o levou à depressão e à síndrome do pânico, que o tornaram dependente de remédios para conseguir continuar a vida. Com a insatisfação profissional e o drama psicológico, começou a fazer uma série de questionamentos sobre sua condição. Ele não conseguia fazer um trabalho que não o satisfazia, e nem pagava seu tratamento.

Depressão Longe dos palcos, Hansen tentou ganhar a vida como comerciante. Teve uma loja de discos que não vingou, e quando começou a busca por um outro emprego, se deu conta de que o tempo tinha passado. “O pessoal não olhava meu currículo, só perguntava minha idade. Na época, eu estava com 37 anos, e eles só contratavam com no máximo 30”. Seu currículo mostrava que as experiências profissionais tinham sido todas li-

Três fases da vida de Hasen (Fotos: Arquivo Pessoal)

De volta à guitarra Hoje, Hansen ainda tenta sobreviver da música. Mantém uma banda cover de pop-rock em São Tomé das Letras, que toca desde Elvis e Beatles até Ramones, e faz shows em São Paulo como H.A.R.R.Y. Para se manter, se diz até disposto a acompanhar outra banda, seguindo carreira como instrumentista. Sua única ambição é comprar equipamentos. “Eu me sustento, não é fácil, mas eu me viro”. Com a chegada da meia idade, Hansen não liga mais para o que os outros pensam. Quer é ser o melhor guitarrista da noite, não importa se o público gosta ou não da música. Um amigo - um advogado conhecido, que quando jovem queria ser vocalista de rock - disse que o invejava pela liberdade que tinha. Ele não disse nada, mas teve vontade de responder que também tinha inveja das viagens do outro pela Europa. Em alguns momentos, Hansen traz à tona seu arrependimento por ter sido, como diz, “imaturo” para lidar com as escolhas da carreira. Ele acredita que poderia ter feito escolhas diferentes. “Toda escolha tem um preço. Não é que a escolha desse meu amigo tenha sido mais acertada que a minha, ou que a minha foi melhor. O preço para ele é ter a frustração de não fazer um monte de coisas que gostaria de fazer e que eu posso. Só que eu não tenho grana para curtir a vida tanto quanto poderia. Não foi uma escolha tão premeditada assim. Fui indo meio à deriva e vim parar aqui”.

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O sangue não escorre mais entre garfos e facas 7 Texto: Luiz Linna, Mayra Veríssimo e Guilherme Lemes Ser vegan não foi apenas uma opção, mas o caminho para alcançar sua paz interior.

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Diagramação: Pablo Menin


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espertar, dormir, respirar e se alimentar são funções comuns na vida de um ser humano, mas o detalhe está no quanto isso pode ser diferente para cada um. O sistema que nos cerca traz diversas imposições que se difundem pela sociedade, mas o ponto chave é quando uma pessoa tenta burlar essas supostas regras e ser diferente, como diria o célebre matemático Pitágoras. “O homem é mortal por seus temores e imortal por seus desejos.” Portanto, a definição de bem estar não pode ser respondida pelo sistema, mas pela própria pessoa. Ao longo da vida, Andrea de Oliveira Martins, hoje com 46 anos, decidiu quebrar algumas barreiras, que não foram construídas por ela, e sim por pessoas

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mentar chocou ainda mais a mãe dela, que desconfiava da escolha sexual. Antes, era apenas uma homossexual assumida; agora, é uma vegan. O preconceito é o que mais a impressiona. “Acho que todas as pessoas têm uma tendência ao preconceito já que, involuntariamente, em alguma hora, acabam se indignando com as escolhas do outro e esquecendo o respeito que deveriam ter com os outros, independente das opções”.

Isolamento

Andrea sofreu represálias de uma colega que também sofria por conta de sua opção sexual. “Íamos comer e ela simplesmente pediu ao garçom se ele tinha palha, pois era a única Pablo Menin coisa que eu comia”, diz Andrea, indignada com o comportamento de alguém que já tinha sofrido com o estigma. Por conta de situações como essa, Andrea optou por viver sozinha e se afastar do círculo de amizade. Convencer os outros seria impossível, aguentar piadas seria intolerável; por isso, a vegan preferiu se afastar e buscar a convivência consigo mesma. “Eu prefiro me afastar, assim não tenho que ouvir piadas que não gosto. Acredito que Deus colocará no meu caminho pessoas que aceitem minhas escolhas; então, busco agora meus objetivos e um ANTES o trabalho e ideias para projetar não fluiam. Hoje desliza. dia encontro alguém que ficará ao meu lado”. que insistem em viver sob padrões pré-estabelecidos. Os primeiros passos dessa transformação partiram Essa moça, de estatura mediana, que não se preocude um recomeço e uma renovação espiritual. Primeiro, pa com padrões estéticos, decidiu ir contra tudo e toadotou a purificação da mente e do corpo como uma fidos. Duas vezes. losofia de vida e, consequentemente, vieram às mudanHá dois anos, Andrea decidiu mudar totalmente o ças na sua alimentação e no seu comportamento. rumo de vida. Os pratos com comidas pesadas, matuPassou a rezar com mais freqüência e meditar, e tamradas e sangrentas não estavam mais presente no seu bém decidiu estudar novas formas de como lidar com a cardápio. A manteiga e o óleo vegetal não fritavam e rejeição. “Eu estava necessitando, o meu corpo estava nem cozinhavam mais os alimentos. Roupas de lã, coupedindo para eu ser mais conectada com o meu interior”. ro ou qualquer coisa que trouxesse alguma lembrança A necessidade de mudar os seus hábitos começou do mundo animal sacrificado passariam longe da nova no exato momento em que ela encontrou um lugar difeAndrea. Essa opção pelo diferente, com conceitos pourente das experiências que tinha vivido. Os conselhos, as co conhecidos, custou caro. diretrizes adotadas e os estudos cativaram não só a pesPela segunda vez, Andrea se deparou com um soa física, mas também a espiritual. Esse lugar é conhecimundo novo em que todos iriam olhar para ela de um do como a “Sagrada Ordem dos Sacerdotes e Guardiões modo diferente. Mais uma mudança drástica emergiu da Chama Violeta”, em São Vicente. quando ela, hoje vendedora e projetista de móveis, reO lugar se parece como uma pousada, uma casa velou a escolha sexual. Foram os piores anos, segundo simples com retratos, livros e conceitos espirituais. Há ela, de convivência com a depressão. Mas a opção ali-


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também um pomar e uma horta. A ordem, local em que Andrea busca desenvolver sua mediunidade e alcançar a purificação, recebe pessoas de todos os tipos, não importa a raça, cor ou credo, só a vontade de se espiritualizar e conhecer algo novo. Os mantras, os dizeres e os ensinamentos são guiados por interlocutores espirituais, que recebem as entidades guiadas pelas religiões orientais, os guias. Por conta desses mestres, Andrea decidiu se tornar uma vegan. “Eles te mostram um caminho, mas não impõe nada sobre você, até porque em qualquer religião tem o livre arbítrio, a escolha é pessoal e os motivos para as mudanças dependem apenas das próprias pessoas.”

mis, que mostram a ligação dela com a filosofia oriental. “Cada dia, eu tento fazer um pássaro menor, esse lado aflorou em mim, após eu entrar para a ordem”. Elza de Souza é a gerente da loja de móveis planejados onde Andrea trabalha e tem contato quase que diário com a vegan. As duas começaram a trabalhar juntas na mesma época em que a opção de se tornar vegetariana foi feita por Andrea. Elza percebeu que, com essa mudança, o comportamento de Andrea também se alterou. Ela estaria mais tranquila e centrada. Apesar disso, durante as confraternizações, o comportamento de Andrea é um pouco diferente. “Ela tem se afastado das pessoas, pelo menos na hora de comer”, afirma Elza. Andrea explica que isso acontece porque o cheiro da carne se tornou muito forte e desagradável para ela. Elza já trabalhou como diretora de escola e mais especificamente na parte de inclusão social. Para ela, Andrea é como uma pessoa qualquer; a única diferença é a alimentação. “Eu escolhi. Essa é uma opção que eu defini para a minha vida. Hoje sou uma pessoa menos ansiosa e que entende os valores da vida tanto espiritual quanto comportamental e os sentidos que ela tem. Não quero influenciar ninguém, só quero ser feliz”. As experiências e escolhas ao longo da vida mostraram para Andréa que o prazer, as emoções e a religião não estão necessariamente ligadas às imposições criadas pela sociedade.

Mantra e vida discreta

Todos os dias, Andrea acorda às cinco horas da manhã para fazer o mantra, mas às vezes, ela diz que tem preguiça de sair da cama. Para não se sentir culpada, ela levanta e faz todo o ritual que é necessário na religião. Para a família, Andrea sempre foi uma pessoa diferente. A mãe já se acostumou com o jeito da filha. No trabalho, Andrea tenta não ser a diferente, não chamar atenção, e sim fazer o que ela sabe de melhor: vender. Na mesa dela, algumas revistas sobre decoração, um computador na qual ela planeja e mostra para os clientes os desenhos e os móveis planejados, além de cadernos e canetas. O que chama atenção são os seus origa-

Pablo Menin

Eu estava necessitando, o meu corpo estava pedindo para eu ser mais conectada com o meu interior


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