Testemunho do ricardo 4º e 5º mês

Page 1

4º e (quase) 5º mês “Alunos, tenho uma má notícia para vos dar”. “O que se passa professor? Vai ter de ir embora mais cedo? Alguém está doente? Faleceu alguém?” “Não. A notícia é precisamente o contrário. Terão de arranjar força para me aturar até ao final do ano lectivo. Ficarei cá até Outubro.” “YES! Que fixe! Isso não é nenhuma má notícia, pelo contrário…” Foram estas a palavras com que o meu mês anterior começou. Palavras que serviriam para me dar alguma alegria e disfarçar a incerteza que ainda tinha sobre aguentar mais 4 meses cá. Mas, agora a decisão estava definitivamente tomada e nada me poderia fazer voltar atrás. Neste momento se nada tivesse sido alterado faltariam dez dias para regressar a casa. E quanto dói pensar nisso. As saudades de facto são tremendas, a necessidade de outro suporte, de desabafar tudo com alguém cara-a-cara é enorme e faz parecer que os meses que ainda faltam serão muito mais complicados que aqueles que já passaram. Talvez essa saudade e essa dor tenham feito com que estes quase 2 meses tenham sido cobertos de asneiras da minha parte e talvez também por isso me tenha custado tanto escrever este testemunho. Ao mesmo tempo foram tempos de muita agitação e com coisas sempre novas a acontecer. Duas visitas à Suazilândia, uma peregrinação de 75km “non-stop” até Namaacha e a grande festa de Nossa Senhora Auxiliadora. Momentos cumulados de bênçãos e ao mesmo tempo de grandes falhas e de cedências às tentações por parte deste voluntário. Há 6 semanas atrás estávamos (eu e o voluntário alemão) a despedir-nos da Suazilândia. O facto de o outro voluntário ter de renovar o visto de 30 em 30 dias saindo do país dá-nos a oportunidade de visitar outras paragens. E que melhor opção poderia haver do que visitar os Salesianos em Manzini (a maior cidade da Suazilândia, que, ainda assim, deve ser mais pequena que a cidade do Seixal). De facto foi muito interessante ver um trabalho Salesiano totalmente diferente, mas com uma grande importância naquele que deve ser um dos países mais pequenos de África, mas que se encontra bem à frente de Moçambique em termos económicos, sociais e de desenvolvimento. Apesar deste desenvolvimento e dos shopping’s que vão nascendo quase colados uns aos outros, isso não dá casa a várias crianças, adolescentes e jovens que vivem nos subúrbios da cidade de Manzini e que são acolhidos por pequenas casas feitas pelos Salesianos que contratam um casal de senhores para servir de mãe e pai durante o dia para o grupo de cerca de 12 rapazes que vive em cada casa. Isto dá-nos de facto a dimensão da globalidade que é feito pelos Salesianos e como a forma de atuação muda consoante o ambiente. Ainda assim, o objetivo mantém-se: ajudar crianças, jovens e adolescentes. De regresso à nossa missão, a amizade com os alunos vai crescendo. Talvez pela falta cada vez mais sentida das amizades em Portugal. Isso traz novas conversas, novas brincadeiras, novas ideias e até como que um novo ambiente. Começam a surgir mensagens de algumas raparigas que mostram algo mais do que amizade pelo voluntário que chega de Portugal e por vezes chega a haver a tentação de dar continuidade a essas mensagens pois às vezes acaba por saber bem sentirmo-nos amados e desejados, quando parece que aqueles que verdadeiramente nos amam estão a 12.000 km de distância. Duas semanas passadas da chegada de Manzini e preparamo-nos para a grande peregrinação ao santuário de Nossa Senhora de Fátima em Namaacha (dias 17 e 18). Mais de 75km caminhando uma tarde e uma noite inteira e com apenas duas paragens. Algo que parecia quase impossível, mas que uma dose de fé e alguma loucura me fazia querer passar por esta experiência. O facto é que o que parecia impossível tornou-se possível. Sempre no limite do esforço físico e com bolhas gigantes que me cobriam quase toda a sola, lá consegui chegar ao santuário pelo meu pé e totalmente lavado em lágrimas. Pena foi que as celebrações da peregrinação a partir daí fossem apenas uma


miragem, pois o corpo não teve força de se levantar para a via-sacra, a procissão das velas e a adoração durante a noite. Restou a missa dominical, repleta de gente e de festa que culminou assim com mais esta grande aventura. Uma semana mais tarde seguir-se-ia a festa de Nossa Senhora Auxiliadora. Primeiro a festa na escola (6ª-feira, dia 23) e depois na paróquia (sábado, dia 24). A festa da escola começou com a eucaristia seguida dum jogo de futebol entre Escola Comercial e Centro de Formação Profissional e duma sessão cultural algo atabalhoada e extensa, mas que provou como este povo sabe de facto dançar e pôr os seus talentos a render. Depois do almoço (também um pouco atabalhoado) e de algum tempo de festa à moda moderna (com música para abanar o esqueleto, como diziam os professores), eu e o outro voluntário aproveitamos o balanço para irmos sair à noite com alguns dos alunos. Foi uma noite não esperada em contexto de missão, mas que ajudou a matar um pouco as saudades de estar num ambiente mais festivo e que mostrou como os moçambicanos quando não há condições para fazer festa, eles criam-nas. Assim, terminámos a noite no meio do bairro do Chamanculo, numa casa que guardava as bebidas, com apenas uma janela com grade onde eram passadas as bebidas e um carro com música em alto volume lá encostado fazia o resto. No dia seguinte, seguia-se a festa da paróquia e não havia tempo para descansar do que tinha sido a festa do dia anterior. Bem cedo eu ia apressar os nossos rapazes da banda que calmamente vestiam a farda quando já deviam estar com os instrumentos prontos a tocar (há coisas que não se podem mudar, e o cumprimento de horários aqui é uma delas). Com mais insistência da minha parte lá consegui metê-los prontos para darmos as primeiras notas e começarmos a concentrar as pessoas para a procissão que foi feita em clima de muita oração e dignidade. Seguiu-se a eucaristia presidida pelo pe. Américo, antigo inspetor, que assim se veio despedir de Moçambique para seguir viagem para Roma onde assumirá o papel de responsável pela região de África e Madagáscar. A tarde foi marcada por mais futebol e por uma sessão cultural bem mais organizada que a do dia anterior. Tudo terminaria com a despedida algo emocionada do pe. Américo e com a limpeza e arrumação para um regresso ao ritmo normal no Domingo. Quem diria que passado apenas mais um mês estaria eu de regresso à Suazilândia. Quando estivemos lá da primeira vez falaram-nos de um festival grande de música que ia haver por lá e pareceu que esta era uma oportunidade que os dois voluntários aqui da casa não podiam perder. Por isso, dia 30 estávamos de regresso a Manzini (e a sensação era que nunca de lá tínhamos saído, tal a forma como o tempo passa depressa) para nos dias 31, 1 e 2 irmos ao famoso “Bushfire” (o grande festival de música da Suazilândia). Quando chegámos para o campismo o 1º espanto foi ver a quantidade de pessoas brancas à nossa volta (acho que já não estava habituado). De facto este seria para mim um dos aspetos mais negativos deste festival, o facto de poucas pessoas africanas terem condições monetárias para participar nele. O festival decorreu dentro do que é normal, cerveja (talvez demasiada), música (com bandas que não conhecia mas que agradavam), noites em branco e outros excessos e pecados que fazem parte deste tipo de eventos e desta fase da juventude. Fica o sentimento de gratidão por podermos tirar estes dias num ambiente totalmente diferente e também o sentimento de culpa por todos os excessos que podíamos ter evitado. Fica a certeza que ainda há muito para crescer com Nosso Senhor, sobretudo quando os ambientes nos pressionam a coisas que não são de Deus. Uma nota para aquilo que para mim foi mais positivo: as acções de solidariedade que marcaram todo o festival, sobretudo com muitos fundos a irem para organizações que ajudam crianças órfãs. É bom ver a consciência que ainda há muito por fazer por África e é bom aproveitar estes momentos para consciencializar o mundo disso mesmo. Outra nota final para a excelente organização deste festival que é prova de que quando o povo africano quer fazer algo bem feito, fá-lo. Depois de todas estas emoções foi tempo de regressar a casa e começar a corrigir testes (muitos e muitos testes). Agora, com o semestre já terminado, valha-nos o descanso de termos um mês de férias da escola comercial. Ainda assim, os nossos rapazes da primária não terão estas férias e por isso há que continuar com as baterias ligadas. Como disse o pe. Francisco Pescador “resta tentar não pensar no mal feito e sim nas boas obras já realizadas pois só assim podemos perceber as graças que Deus vai operando na nossa vida e continuar a cantar as maravilhas que ele faz em nós.” Ricardo Mendes


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.