Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças Evangelii Gaudium, 49 Posso dizer que já há muitos anos que o desejo missionário existia dentro de mim. A vontade de mudar o mundo para melhor era uma vontade constante, mas estava preso à comodidade e às seguranças que existiam no meu mundo e, por isso, a ideia de ir para África, trabalhar com os que mais necessitam não passava de um sonho. Depois de terminada a minha licenciatura em Terapia da Fala, foi inspirado nas palavras do Papa Francisco nas Jornadas Mundiais da Juventude no Rio de Janeiro e mais tarde na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium que decidi romper com tudo o que me prendia e dar passos definitivos e concretos para concretizar a minha missão ad gentes. Foi assim que no dia 19 de Janeiro, depois de uma preparação cuidada, através da Fundação D. Bosco – Projeto Vida e da Fundação para a Fé e Cooperação, parti do aeroporto de Lisboa rumo à Paróquia-Missão de S. José de Lhanguene, em Maputo. Quando aterrei em Maputo o termómetro marcava 26ºC e não demorei a perceber ‘no terreno’ que todas as camisolas com que trazia vestidas, para me proteger do frio lisboeta, de nada me serviriam. O choque inicial não foi dramático como me diziam ser, talvez por estar já à espera do pior, mas ainda assim era impossível que as ruas fizessem parecer com que estávamos numa capital de um país ou mesmo numa cidade. A luz na estrada era pouca, o estado da estrada não era de todo o melhor, as pessoas sentavam-se à beira da estrada, onde existia lixo que se misturava com a areia, esperando que alguém lhes comprasse uma garrafa de Coca-cola por 20 meticais. Aqui em casa, vim encontrar-me com uma pequena comunidade religiosa, constituída por 2 padres e 3 irmãos Salesianos. Ao nosso lado começava, no dia seguinte, foi visitar as duas camaratas dos rapazes que iríamos acolher, cada uma com mais de 30 camas. Cada rapaz teria direito a uma cama, um cacifo para guardar todos os seus pertences pessoais e uma carteira na sala de estudo onde podiam colocar todo o material escolar, certamente mais do que muitos poderiam ter em casa. Assim começava a primeira semana, a conhecer e a preparar, com a ajuda dos assistentes, tudo o que era necessário para a chegada de cerca de 60 rapazes que iriam viver aqui para terem uma oportunidade de estudar. O entusiasmo pela novidade não parava e havia a sensação de ser a preparação de um dos momentos mais marcantes da minha vida. Na semana seguinte as saudades já começavam a surgir, o sentimento de não saber muito bem o que fazer e por onde ajudar começava a aparecer, mas tudo ia sendo suportado através das partilhas animadas com os assistentes e com a ajuda da oração comunitária diária. Tudo haveria de se compor ainda mais com a chegada dos miúdos e começo das aulas, no dia 2 de Fevereiro. Não demorei muito tempo para perceber as dificuldades escolares que muitos apresentavam, sobretudo ao nível da leitura e escrita, área onde eu melhor podia intervir. Desde aí o trabalho não tem parado, não só na ajuda escolar, como também como catequista e nas aulas de solfejo. É assim que tento cada dia ajudar estes rapazes a crescerem. “Esta casa serve para vocês crescerem”, dizia o pe. António, “é importante que saiam daqui não só bons alunos, como boas pessoas”, concluía o irmão Gomes. A sensação de gratificação cresce a cada dia, através dos sorrisos, brincadeiras e conversas. É verdade que, por vezes, este sentimento ainda é abalado por algumas saudades e frustração quando não conseguimos cumprir o esperado. Contudo, essa frustração faz-me perceber a importância de quando me disseram “não queiras mudar o mundo pelas tuas forças”, pois o verdadeiro objetivo que pode fazer a diferença é entregarmo-nos a cada criança com o Amor de Deus, o amor que levou D. Bosco a construir os Salesianos. Só isto pode fazer a diferença porque é esta entrega que fica, enquanto nós vamos. Por tudo isto, termino dizendo que tem sido fantástico estar nesta casa; tem sido fantástico fazer parte da obra que D. Bosco quis edificar e que continua tão viva; tem sido fantástico fazer parte da vida destes rapazes. E se nada ficar retido dentro das suas cabeças da minha presença, que fique guardado nos seus corações que em 2014 um jovem, por vontade de Deus, quis sair de Portugal para lhes entregar um pouco da sua vida. Deus pede-nos tudo, mas ao mesmo tempo dá-nos tudo Evangelii Gaudium, 12 Ricardo Mendes Maputo, 20 de Fevereiro de 2014