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A revista MINAS FAZ CIÊNCIA completa 20 anos... Falamos de ciência o tempo todo. As ciências estão presentes nas salas de aula, nos laboratórios e nas novas tecnologias, mas também na linguagem e no nosso olhar sobre o mundo. Falar de ciência é falar de cultura. Gosto de pensar na ciência como um caminho para conduzir a curiosidade humana, desde uma pequena experiência escolar até a descoberta de novos cálculos que permitem registrar um buraco negro no espaço. Tão importante quanto a ciência é a sua divulgação. Graças a ela, podemos conhecer e entender o que os cientistas, de todas as outras áreas, estão fazendo para ajudar a sociedade. Divulgação científica é oportunidade de conexão. Uma forma de unir cientistas, divulgadores e público pela recriação de discursos. Quando este elo se estabelece com afeto, a capacidade de compreensão e produção do conhecimento é potencializada. Divulgar ciência é um exercício de cidadania e compromisso social. MINAS FAZ CIÊNCIA assume esta missão de maneira competente, com a exploração de novas linguagens e plataformas, em exercício permanente de experimentação. MINAS FAZ CIÊNCIA busca propor, a seus públicos, experiências, diálogos e reflexões em torno da construção de saberes. Outro grande desafio desta caleidoscópica revista, elaborada, com muito carinho, é ampliar o debate acerca dos parâmetros, das inquirições e das multipotencialidades da ciência. Quando entrei na faculdade de jornalismo, escrever sobre ciência não era algo que estava nos meus planos. Mas a vida colocou a divulgação científica em meu caminho, e, nesta mesma estrada, estava a MINAS FAZ CIÊNCIA. Ainda bem! Desde então, direta ou indiretamente, a ciência fez parte da minha vida de leitora e de jornalista em formação, de professora de comunicação e de pesquisadora em divulgação científica. É um privilégio trabalhar com o que a gente gosta, escrever sobre o que a gente ama e entrevistar quem a gente admira. Talvez este sentimento de orgulho, que contagia toda a equipe, esteja por trás de sua qualidade, de sua relevância. Cada vez que a revista chega da gráfica, a sensação é parecida com a de ter um filho nas mãos. Eis o meu registro, para a eternidade. Vida longa à MINAS FAZ CIÊNCIA! Muito obrigado a vocês, leitores! Alessandra Ribeiro, Breno Ribeiro, Fatine Oliveira, Lorena Tárcia, Luana Cruz, Luiza Lages, Maurício Guilherme Silva Jr., Tuany Alves, Vanessa Fagundes, Verônica Soares (Esta Carta ao Leitor foi escrita a partir dos depoimentos da equipe responsável pela MINAS FAZ CIÊNCIA em celebração ao aniversário da revista. Veja os textos completos em nosso Instagram: @minasfazciencia)
AO LEI TO R
MINAS FAZ CIÊNCIA Diretora de redação: Vanessa Fagundes Editor-chefe: Maurício Guilherme Silva Jr. Redação: Alessandra Ribeiro, Breno Ribeiro, Lorena Tárcia, Luana Cruz, Luiza Lages, Mariana Alencar, Maurício Guilherme Silva Jr.,Tuany Alves, Vanessa Fagundes, Verônica Soares. Editoração: Fatine Oliveira Montagem e impressão: GlobalPrint Editora Gráfica ltda. Tiragem: 25.000 exemplares Capa: Fatine Oliveira
ÍNDICE
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ENTREVISTA
Professor da UFMG, Elcio Loureiro Cornelsen analisa fértil relação entre literatura e futebol
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MEMÓRIA
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FARMÁCIA
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MEDICINA
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FÍSICA
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DEMOGRAFIA
Nanotecnologia é empregada em tratamento alternativo e mais eficaz contra cravos e espinhas
Nanofibras são usadas em embalagens inteligentes, capazes de ampliar durabilidade de produtos alimentícios
MATEMÁTICA E COMPUTAÇÃO
ALIMENTAÇÃO
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ECONOMIA
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Relatório da ONU mostra magnitude dos desafios para que, ainda hoje, mulheres tenham autonomia sobre a própria fecundidade
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HIPERLINK
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CONTEMPORÂNEAS
Custo de exportação do Brasil a 178 países é tema de pesquisa da Universidade Federal de Viçosa
MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019
ESPECIAL
Histórias, princípios e desafios da revista MINAS FAZ CIÊNCIA, que, em 2019, completa duas décadas de divulgação dos saberes
Há um século, astrônomos estrangeiros desembarcavam em Sobral (CE) para comprovar a Teoria Geral da Relatividade
SAÚDE MENTAL
Biofortificação alimentar permite melhoria nutricional das culturas com adição de elementos como iodo, selênio, ferro ou zinco
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Dissertação de mestrado investiga dilemas da tarefa de comunicar a morte em hospitais de emergência
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Ferramenta auxilia investidores a prever movimentos financeiros da bolsa de valores
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Pesquisa analisa efeitos do tabagismo no Brasil em três dimensões temporais: passado, presente e futuro
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Estudo busca compreender laços de afetividade de população migrante com o quintal das residências
ENGENHARIA
HISTÓRIA
Tese de doutorado investiga consequências de desastres naturais ao desenvolvimento de crianças e jovens
Newsletter do projeto “Minas Faz Ciência”, curiosidades científicas dos leitores e recursos educacionais online
Plataforma Lattes completa 20 anos de existência e implementa plano de modernização
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EDUCAÇÃO
Programa Outlab reúne laboratórios da UFMG engajados em auxiliar métodos pedagógicos de escolas mineiras
CIÊNCIA ABERTA
Que memórias
do interior
você e sua família
incorporaram à vida
na cidade?
A pergunta acima baseou-se em reportagem da jornalista Tuany Alves, publicada nesta edição (páginas 10 a 13), sobre pesquisa que investiga a memória das pessoas em relação aos quintais de suas casas
“Fazer o sinal da cruz quando passamos por qualquer igreja, do tamanho que for. Sentar no meio fio, na rua. Um dia, eu e meus amigos jogamos badminton no meio de um cruzamento, no bairro Floresta. Descalços. Parávamos o jogo a todo o momento para os carros passarem. Foi como viajar ao meu passado, nas ruas de pedra da minha casa. Não dá para fazer isso todo dia, já somos ‘adultos’ e ‘cheios das responsabilidades’, mas... foi uma tarde de domingo muito bonita. Três crianças atrapalhando o trânsito.”
“Não era no interior, mas tinha quintal, e a horta do meu avô: couve, alface, cebolinha, jiló pros passarinhos, melancia, mamão (pena que só dava mamão macho, incomível).”
Rafael Soal Via Facebook
“Nooooo! Fazer doce com as mangas verdes recolhidas da área externa do Cedecom [Centro de Comunicação da UFMG], fazer licor e bolo de jabuticaba, fazer doce de goiaba trazida de fazendas do interior, e considerar o Mercado Central o meu quintal.”
“Sobre o quintal de casa, eu costumava enterrar alguns brinquedos, para desenterrá-los no ‘futuro’. O que não aconteceu, pois não tenho mais acesso à casa onde morei. Então, permanecerão lá para sempre, ou até que uma escavação, ou obra, algo assim, tire-os de lá. Enterrei carrinhos, coleção de tazos etc.” Cassio J. Teles Via Facebook
Leo Cunha Via Facebook
“Fazer pão e sentar na varanda, apreciando a vista.” Lorraine Candido Via Facebook
Rosaly Senra Via Facebook
“Fazemos a nossa comida usando ingredientes modos de fazer tradicional, o que é uma forma de preservar nossa cultura do interior.”
“Tomar a ‘bença’ à minha mãe, a meus tios e avós, sempre que acordo, antes de dormir, antes de sair e quando os vejo pela primeira vez no dia.”
patypibs Via Instagram
Esdras Moreira Via Facebook
dantas_renata_pires Via Instagram
“Cafezinho com broa, à tarde.”
MINAS FAZ CIÊNCIA tem por finalidade divulgar a produção científica e tecnológica do Estado para a sociedade. A reprodução de seu conteúdo é permitida, desde que citada a fonte. MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2017
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ENTREVISTA
Gol de letra! Professor da UFMG, Elcio Loureiro Cornelsen analisa potencialidades e desafios dos estudos literários em torno de personagens e narrativas do futebol
Maurício Guilherme Silva Jr.
Paixão nacional, o futebol não se restringe às quatro linhas ou ao universo das negociações milionárias. Também como narrativa, o esporte das multidões bate um bolão! Para além das inúmeras obras de ficção dedicadas a retratar personagens e episódios ligados ao fascinante universo do “ludopédio”, há que se destacar a relevância, para os estudos literários, de inúmeros escritos (biográficos e autobiográficos) em torno de jogadores brasileiros. Que o diga o ofício do professor Elcio Loureiro Cornelsen, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, há anos, dedica-se, dentre outros tantos projetos e linhas de pesquisa, à investigação das relações entre literatura e futebol. Doutor em Estudos Germanísticos, pela Freie Universität Berlin, na Alemanha, com pós-doutorados em Estudos Organizacionais (FGV, 2005), Teoria Literária (Unicamp, 2010) e História Comparada (UFRJ, 2018), ele coordena, na UFMG, o Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes. Integra, ainda, o Núcleo de Estudos de Guerra e Literatura (Negue). Nesta entrevista a MINAS FAZ CIÊNCIA, Cornelsen aborda nuances de
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seu mais recente projeto de pesquisa – “Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasileiros” –, analisa percepções tradicionais sobre o esporte e fala das muitas possibilidades de estudo acerca do tema. O que faz um pesquisador da área de literatura comparada, com ênfase em língua alemã, se enveredar pelo estudo das narrativas sobre o futebol? O interesse pelo futebol remete a minha infância em São Paulo. Meu pai jogava futebol e sagrou-se campeão paulista amador em 1966. Cresci num ambiente de sedes de futebol amador. Porém, levaram décadas até que eu começasse a cogitar a possibilidade de adotar o esporte em geral – e o futebol, em especial, como objetos de estudo em nível acadêmico. Na pesquisa brasileira, como se dá a relação entre tais áreas? Na área de Letras, mesmo nos dias atuais, ainda há certa resistência ao tema como objeto de estudo. Provavelmente, tal quadro ainda guarda resquícios de outros
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tempos, em que o futebol era considerado “ópio do povo”, algo que não seria digno de atenção e que seria usado para “alienação das massas”. Embora não seja linha de pesquisa formalmente reconhecida pela academia, a relação entre literatura e futebol representa eixo temático com grande potencial de estudo. Há certos lugares comuns que, todavia, têm fundo de verdade, como a célebre frase de José Lins do Rego: “O conhecimento do Brasil passa pelo futebol”. É inegável que, por seu significado para a cultura brasileira, o esporte figure como âmbito em que a própria sociedade se manifesta. Isso se reflete, também, na literatura, no modo como, cada vez mais, o futebol tem sido representado em verso e prosa. Em que seara de estudos enquadram-se investigações como “Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasileiros”, coordenada pelo senhor? Após a fundação do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (Fulia), na Faculdade de Letras da UFMG, em maio de 2010, passei a desenvolver pesquisas regulares sobre o assunto. O
Acervo pessoal
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Elaborada em 2016 e aprovada em 2017, a proposta contou com bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Pesquisa e Tecnologia (CNPq).
Além de auxílio do CNPq, a pesquisa recebeu bolsa do Programa Pesquisador Mineiro (PPM), concedida pela FAPEMIG.
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primeiro deles versava sobre “Literatura, música e futebol: um estudo das letras de hinos de clubes de futebol brasileiros”. A partir de 2014, desenvolvi nova investigação: “A memória do trauma de 1950 – relatos, ficções, imagens”. Portanto, tem sido contínua a produtividade de pesquisa a contemplar o tema do futebol no âmbito da literatura e das artes. Além disso, desde 2011, ministro, semestralmente, disciplinas de graduação, na Faculdade de Letras da UFMG, sobre a temática, como “Futebol em verso e prosa”; “Cinema e futebol no Brasil”; “Futebol e linguagem”; e “Futebol e Memória”. Esta última me motivou a elaborar o projeto “Memória e futebol no Brasil: escritas da vida de jogadores brasileiros”. Em termos gerais, busco debater a presença temática do futebol no âmbito da literatura, e, especificamente, em obras de cunho memorialístico: biografias e autobiografias. A partir daí, é possível analisar o discurso memorialista, formado a partir de obras biográficas ou autobiográficas sobre ex-jogadores do futebol brasileiro, estudar as especificidades de possíveis narrativas que alimentam o “mito” da “pátria em chuteiras”, e, respectivamente, do “estilo brasileiro de jogar”. Por fim, é possível contribuir para os estudos da relação entre “história e memória” no campo da Teoria Literária. Como escolher narrativas biográficas em País com tamanha tradição de craques? A partir do objeto de estudo – as escritas da vida de jogadores brasileiros –, definimos, como corpus de análise, uma série de obras de e sobre jogadores brasileiros, segundo os critérios de “cronologia”, “relevância” e “contexto histórico”. Pretendeu-se, assim, abranger momentos do futebol brasileiro, em que determinado jogador revelou protagonismo, como Charles Miller, Neco, Arthur Friedenreich, Heleno de Freitas, Garrincha, Nilton Santos, Pepe, Pelé, Tostão, Roberto Rivellino, Falcão, Zico, Sócrates, Ronaldo e Neymar. Contemplamos, basicamente, cinco fases do futebol brasileiro: os primórdios e a consolidação (1895-1945), os tempos de tragédia e glória (1945-1962), de glória e
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ufanismo (1963-1976), os tempos rumo à democracia (1977-1993) e de globalização (1994-2014). Qual a visão dos brasileiros acerca da “persona do jogador de futebol”? São muitos os estereótipos e preconceitos sobre o ofício? A questão é de difícil resposta. A pesquisa desenvolvida, em si, não me permite conclusões a esse respeito. Apenas como impressão pessoal, parece-me que a visão dos brasileiros acerca da “persona do jogador de futebol” é igualmente cambiante e condicionada ao contexto. Nos primórdios, por exemplo, havia certo preconceito quanto à prática do esporte. Tomemos a crônica “Hora de football”, de João do Rio, publicada em 1916: “[...] Fazer ‘sport’ há vinte anos ainda era para o Rio uma extravagância. As mães punham as mãos na cabeça quando um dos meninos arranjava um haltere. Estava perdido. Rapaz sem ‘pince-nez’, sem discutir literatura dos outros, sem cursar as academias – era homem estragado”. E não só a prática de esportes em geral, e do futebol, em especial, era criticada, como, também, o caráter que a modalidade adquiria ao se popularizar nas décadas de 1920 e 1930, além da aparente “impropriedade” frente a outras atividades. O jogador Mario de Castro, do Clube Atlético Mineiro, por exemplo, costumava usar o pseudônimo de Orion para esconder da família que praticava futebol. Para o então estudante de Medicina, um dos grandes craques de seu clube, jogar bola seria quebrar as expectativas da família. Não foi por acaso que, aos 26 anos de idade, Castro tenha abandonado a carreira, para se dedicar à Medicina. Como aponta o jornalista Eduardo Murta, “[n]aquele período, muitos consideravam o esporte uma opção marginal”. Se a prática poderia constranger as famílias tradicionais à época em que Mário de Castro atuou, na segunda metade dos anos 1920, o mesmo parece não ter ocorrido com o craque rebelde do Botafogo de Futebol e Regatas, Heleno de Freitas, nos anos 1940, que se tornara bacharel em Direito, e, embora não tenha exercido a profissão, era chamado, por cronistas e pelos próprios jogadores, de “Dr. Heleno”. Décadas mais tarde, seria
a vez de Sócrates, o “Doutor”. É inegável que o preconceito socio-racial, que grassa no País, contribui para que a “persona do jogador de futebol” seja vista de maneira negativa. Por outro lado, como diria Roberto DaMatta, como “drama de justiça social”, o futebol também oferece, aos que se destacam na modalidade, uma mobilidade social, que, pela secular falta de vontade política de nossos governantes, lhes é sonegada, principalmente, pela falta de educação de qualidade a todos os cidadãos, e pelos mecanismos mantidos para garantir privilégios a determinados segmentos da sociedade brasileira. Para esses, que vislumbram a carreira de futebol como possibilidade de ascensão social, a visão da “persona do jogador de futebol” se alterou. Basta tomarmos a obra O planeta Neymar, do jornalista Paulo Vinicius Coelho, de 2014, para termos ideia de que, para muitos garotos, as referências não são mais os jogadores que atuam no Brasil. Seus ídolos se chamam Messi, Cristiano Ronaldo, Salah etc. Trata-se, pois, de quadro muito complexo. Que narrativas lhes chamaram a atenção, durante as pesquisas, pelo inusitado? Certamente, há histórias muito curiosas sobre craques do futebol brasileiro. O jogador corintiano Neco, por exemplo, segundo relato de Antonio Roque Citadini, em Neco: o primeiro ídolo (2001), numa partida contra o Palestra Itália (futura Sociedade Esportiva Palmeiras), teria se envolvido em briga com o goleiro alviverde Primo, e lhe teria dado uma surra de cinta: “Ao chocar-se com o goleiro palestrino Primo, desfere-lhe alguns pontapés reagindo à agressão do goleiro. Neco, em seguida, teria tirado a cinta, que prendia seu calção, dando a impressão aos espectadores de que agredia o goleiro com ela”. Independentemente de a agressão ter ocorrido, o curioso no episódio é o fato de que, àquela época, jogadores atuavam com cinta para prender o calção. Sem dúvida, um dos jogadores brasileiros que mais rende em termos de “causos” é Garrincha. Um dos episódios narrados por Ruy Castro na célebre biografia do “anjo de pernas tortas”, intitulada Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrin-
cha (1995), versa sobre a partida disputada entre as seleções do Brasil e da União Soviética na Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Garrincha estreara naquela partida, dera muito trabalho aos zagueiros russos e teria destruído o “futebol científico”: “A anticiência por excelência, o Anti-Sputnik, o anticérebro eletrônico ou qualquer cérebro. Kessarev, Krijevski, Voinov, Tsarev e, mais que os outros, Kuznetzov, todos os zagueiros russos foram driblados por Garrincha em algum momento do jogo: um de cada vez, dois, três ou, em fila, todos ao mesmo tempo. Garrincha deixava um russo sentado e dizia como se ele pudesse entendê-lo: ‘Conheceu, papudo?’”, conta Ruy. Cada zagueiro russo era mais um “joão” driblado pelo extraordinário ponta direita. Por fim, um episódio a envolver o maior craque de todos os tempos. Em partida realizada no dia 17 de julho de 1968, no estádio El Campin, na capital colombiana, Bogotá, entre o Santos Futebol Clube e a Seleção Olímpica da Colômbia, o árbitro Guilhermo Velázquez expulsou Pelé, para revolta dos torcedores, conforme narrado na “autobiografia” do Rei do Futebol: “Começaram a gritar: ‘Pelé! Pelé!’ Tinham desembolsado dinheiro para me ver e não deixariam que um juiz estragasse o programa. A única solução foi uma medida sem precedentes: expulsar o próprio Chato. E, com o árbitro expulso, eu pude ser ‘desexpulso’. Fui readmitido no jogo e todo mundo ficou feliz. Todo mundo menos o Chato, claro”.
rização (com Heleno, Barbosa, Garrincha, Nilton Santos, Pelé, Tostão e Rivellino). O mesmo podemos dizer a respeito do futebol globalizado de nossos dias (com Neymar), mas que já dava seus sinais a partir da década de 1980, com Falcão, Zico, Sócrates, Romário e Ronaldo.
É possível falar na presença de elementos – profissionais, existenciais etc. – similares à trajetória dos atletas brasileiros do futebol? Há muito mais distinções do que propriamente elementos similares na trajetória dos jogadores, devido a origem, classe social, acesso à carreira, contexto etc. Porém, algo os une: o elevado nível técnico com que praticam ou praticaram o futebol, atestado pelo fato de que todos envergaram a camisa da Seleção Brasileira. Trata-se, pois, de jogadores diferenciados, sem que percamos de vista a questão do contexto: os primórdios do futebol – com Charles Miller, Neco e Friedenreich – representavam outros desafios aos jogadores, se comparados à fase de sua popula-
conhecimento do Brasil passa
No universo da produção literária, que escritor nacional se destaca pela produção de narrativas sobre o (ou em torno do) “ludopédio”? Dentre os escritores estudados até o momento, destacaria o saudoso Renato Pompeu, campineiro e torcedor da Associação Atlética Ponte Preta. Além de obras magistrais, como os romances Quatro olhos (1976) e A greve da rosa (1980), Pompeu não deixou de tratar do tema do futebol, uma de suas paixões. Além da biografia de José Ribamar dos Santos, intitulada Canhoteiro, o homem que driblou a glória (2003), o escritor publicou o romance A saída do primeiro tempo (1978), em que o “espectro da Ponte Preta” paira sobre os céus de Campinas, e o conto Memórias de uma bola de futebol (2002), em que a própria bola – uma narradora inusitada – expressa suas “vivências”.
Há certos lugares comuns que, todavia, têm fundo de verdade, como a célebre frase de José Lins do Rego: “O pelo futebol”. É inegável que, por seu significado para a cultura brasileira, o esporte figure como âmbito em que a própria sociedade se manifesta. Isso se reflete, também, na literatura, no modo como, cada vez mais, o futebol tem sido representado em verso e prosa.
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MEMÓRIA
Cantinho secreto Estudo elaborado na UFV analisa relação da população mineira nascida no interior com o quintal das casas
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Já dizia Manoel de Barros: “Meu quintal é maior que o mundo”. Em tal “pedacinho”, a poesia faz morada; as pessoas se reúnem para conversas de fim de tarde; regam-se plantas e saberes ancestrais; germinam sentimentos, laços e memórias. Mais do que punhados de terra, quintais são oásis numa casa, principalmente, no ver daqueles que nasceram e viveram em tais áreas, mas, depois, migraram para ambientes urbanos, em busca de oportunidades. Afinal, é neste emaranho de ervas, flores e versos que elas criam e recriam o passado, o presente e, claro, o futuro. Relação que transcende a espacialidade e a temporalidade, a ligação entre as pessoas do campo e o quintal é tão importante que se tornou tema de estudo do pesquisador Yan Victor Leal da Silva. A investigação, que uniu poesia, vivência e história, abordou o vínculo de sete moradores do bairro Nova Viçosa, na mineira Viçosa (MG), com os seus quintais. Às margens do município, a comunidade analisada está em transição do rural ao urbano, o que permite que, por ali, ainda se encontrem áreas externas nas casas – o que não se verifica na região urbana, formada, em grande maioria, por prédios residenciais. De acordo com Silva, o tema surgiu ainda na graduação, quando, em estudo sobre sobre a agrobiodiversidade urbana na periferia de Ibirité (MG), ele percebeu que as pessoas vindas do interior falavam do quintal com muita saudade. “Alguns romantizavam a roça, como algo idealizado. Outros diziam que, agora, tinham uma vida na cidade. O impasse ‘rural/urbano’ me aproximou dos quintais e da memória”, conta. A aproximação também o levou a questionar aspectos para muito além da agricultura verificada nos quintais da comunidade. “Queria entender, por exemplo, de onde veio a configuração do quintal, as posições das plantas ou suas escolhas. Em que momento isso apareceu na vida dessas pessoas?”, explica. As indagações deram origem à dissertação “Plantando com a memória: os quintais como espaço de vida na poética de gente, tempo e lugar”, defendida junto ao programa de pós-graduação em Extensão
Rural da Universidade de Viçosa (UFV), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Segundo Marcelo Lelles Romarco de Oliveira, professor da UFV e orientador do estudo, apesar de o programa estar dentro das Ciências Agrárias, há preocupação, em seus estudos, com o entendimento das transformações do mundo rural, a partir de relações socioeconômicas, culturais e históricas.
Em comunhão Para responder a tais questões, no entanto, Yan Silva optou pela imersão no objeto de pesquisa. Ele se mudou, de “mala e cuia” para a comunidade analisada. Durante todo o ano de 2018, morou em Nova Viçosa. “Eu desejava ser afetado pelo estudo. Ou seja, precisava trabalhar em conjunto com os moradores. Queria, enfim, fazer pesquisa solidária, e não solitária”, destaca. Após a mudança, por meio de sua vivência, o pesquisador selecionou sete moradores para entrevistar e conviver. Fotos: Yan Silva
Há pessoas que, na cidade, romantizam "a roça", presente, de algum modo, nos quintais MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019
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Segundo Marcelo Oliveira, neste sentido, a pesquisa revela-se bem antropológica: “Não estávamos preocupados em entrevistar um número grande de pessoas”, conta. Yan Silva explica que buscou compreender muito mais as trajetórias de vida, e a relação dos sujeitos com os quintais ou a própria comunidade, do que comprovar teorias ou produzir estatísticas. “Um dos principais fundamentos da Etnografia é realizar densa descrição. Em meu caso, quanto mais profunda ela fosse, melhor. Tentei acompanhar, ao máximo, o cotidiano das pessoas, para descobrir coisas. Como exemplo, lembro-me de que eu chamava de ‘centro da cidade’ o que, para os moradores, era, simplesmente, ‘rua’”, conta. Outra descoberta do pesquisador diz respeito à memória: em grande medida, a
relação entre os moradores e seus quintais remete à infância. “Perguntei o que eles fazia, no quintal da roça, e muitos me respondiam: ‘Eu brincava, mexia nas coisinhas da horta, ajudava meus pais’. Ou seja, tratava-se de espaço de deleite”, esclarece. Uma das chaves metodológicas para a descoberta de tais particularidades foi o alinhamento do relato etnográfico – a experiência – com a historicidade. Segundo o pesquisador, este desafio agregou um diferencial à investigação. “Todos os trabalhos sobre a comunidade – e eu cito vários – não tiveram a sensibilidade de ir até lá. Munido dessa experiência, passei a questionar a visão de outros autores sobre o bairro. Alguns chegaram a descrever a área como degradada, feia, poluída”, destaca. No ver do professor Marcelo Oliveira,
Antes dos quintais Viçosa foi construída à beira do ribeirão São Bartolomeu, na Zona da Mata. Cidade mineira com características interioranas, desenvolveu-se a partir da federalização da então Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (Uremg) – e, portanto, da criação da Universidade Federal de Viçosa (UFV) –, em 1969. À época, o município tornou-se região promissora, e as pessoas interessadas em conhecimento e emprego migraram para lá. Nem tudo, porém, eram rosas na cidade. De acordo com Marcelo Oliveira, professor da UFV, tal processo migratório “empurrou” as pessoas de baixa renda ao entorno da cidade. Isso se deu, segundo o pesquisador Yan Silva, porque os terrenos próximos à Universidade se valorizaram muito. “Há, até mesmo, relatos históricos de pessoas que foram expulsas do centro de Viçosa, por meio de lei, que não permitia, ali, a construção de casebres. Isso caracteriza o processo que chamamos de gentrificação”, explica. Nova Viçosa surge em tal contexto, junto à promessa de ser o bairro com a infraestrutura ideal àqueles que chegavam à cidade, em busca de vida nova. O projeto apresentava preços acessíveis a quem pretendia se instalar, e a recomeçar do zero. Atualmente, a área passa por vasto processo de expansão e urbanização. “Tanto é que os quintais estão ficam cada vez menores, ou deixam de existir”, frisa Marcelo Oliveira. Na acepção de Yan Silva, contudo, muito ainda há de ser feito. “Umas das questões fundamentais na região é a assistência técnica dos quintais, as áreas produtivas e coletivas. Além disso, é preciso fortalecer a identidade coletiva do bairro”, conclui.
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passar um ano na comunidade permitiu, ao orientando, adentrar o cotidiano das pessoas. Para Yan Silva, conduzir o estudo, por meio da vivência, foi algo difícil, e, por isso entende os motivos pelos quais outros pesquisadores preferiram ir à comunidade e dormir fora, sem se envolver. “Isso não é melhor ou pior. Trata-se, apenas, de escolha metodológica. Afinal, nossa influência também diz muito. E pode, inclusive, ser violenta, já que o simples fato de você usar óculos de marca, naquela comunidade, já diz alguma coisa”, completa.
Memória e futuro Segundo Marcelo Oliveira, algo forte no estudo se refere à questão da lembrança, e à forma como ela possibilita a ligação entre dois mundos: o urbano e o rural. “Os quintais ajudam a preservar e a acionar a memória dessas pessoas, que vieram de um espaço rural e estão em momento de transição”, afirma. Em relatos, os moradores contam que o trabalho industrial não fez com que deixassem de trabalhar na terra, de ter afeto e cuidado por ela. “Do ponto de vista sociológico, isso é muito interessante, já que a literatura clássica diz que o processo de desenvolvimento acabaria com o camponês. O que se vê hoje, principalmente, na América Latina, é o seu aumento”, informa Yan Silva. O estudo deu voz às pessoas, tornando-as protagonistas de suas histórias. Segundo Oliveira, ao trabalhar com a memória individual do sujeito, foi possível acionar aspectos de suas relações e raízes com o espaço. “Isso gerou dois ganhos. Em primeiro lugar, permite-se que as gerações futuras entendam como se deu o processo de transformação do espaço urbano da cidade de Viçosa. Além disso, é possível ver como a transformação ocorre em um microcosmo, o que nos ajuda a perceber mudanças reproduzidas em sistemas macro”, ressalta o professor.
Colhendo fé Para as pessoas, os quintais são espaços que lhes permitem a aproximação com a terra, mesmo em áreas urbanas.
Relação de muitos moradores com seus quintais remete a memórias de infância
No entanto, mais do que falar sobre tal relação, no âmbito da memória e do fazer diário, a pesquisa desvendou elementos produzidos naquele ambiente. “O trabalho revelou o que é cultivado nos quintais: ervas, plantas e aspectos culturais”, conta Marcelo Oliveira. O levantamento foi realizado em quatro dos setes quintais visitados. “Nessa hora, surgiu ‘meu lado biólogo’, mas, claro, sem perda das preocupações culturais. Descrevi quais eram plantas medicinais (arnica, fumo, cana de macaco, dipirona); com caráter espiritual (comigo ninguém pode, lágrima de Nossa Senhora, arruda); e usadas para a alimentação, como couve, carambola, taioba, ora-pro-nóbis. Ou seja, fui além da Biologia”, esclarece Yan Silva, ao lembrar, ainda, que certas espécies tinham mais de uma função. E de onde essas plantas vêm? Diferentemente do que se possa imaginar, os quintais são formados, principalmente, por meio de trocas. Segundo o pesquisador, existe, na comunidade, um circuito social de permutas de mudas e sementes. “Foram poucas as plantas que eles trouxeram da roça. Algumas vêm, inclusive, de outros estados, trazidas por parentes. Curioso é perceber que tal estratégia é muito comum ao ‘mundo urbano’”, conclui o pesquisador. MINAS FAZ CIÊNCIA •SET/OUT/NOV 2019
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FARMÁCIA
Nanotecnologia contra as espinhas Veiculação de ácido retinoico em nanopartícula é alternativa mais eficaz e segura para tratamento da acne
Luiza Lages
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Principal bactéria envolvida na patogênese da acne, promove a inflamação dos folículos pilosos (estruturas que dão origem aos pelos), causando as espinhas.
Para se livrar de cravos e espinhas, muitas pessoas recorrem à farmácia. Diversos tratamentos estão disponíveis como solução ao problema: há opções de cremes, géis, sabonetes e antibióticos orais no mercado. O ácido retinoico é um dos principais e mais eficientes ativos usados no combate à acne. A substância regula o processo de renovação celular e controla a colonização da Propionibacterium acnes (P. acnes). O ativo tem outras ações, sendo muito usado para rejuvenescimento facial. “O ácido retinoico reestrutura todo o processo de descamação, induz à formação de mais colágeno, e a pele fica cada vez mais lisinha”, explica Gisele Goulart, professora da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisadora trabalhou no desenvolvimento de nova composição farmacêutica para o tratamento da acne, a partir do ácido. Produtos que contêm ácido retinoico podem provocar vermelhidão, descamação, sensação de ardência e ressecamento da pele. Trata-se de reações adversas, que levam muitos pacientes a desistir do tratamento. O objetivo do estudo coordenado por Goulart é, justamente, reduzir a irritação causada pelo ativo. Para tal, os pesquisadores encapsularam o ácido retinoico dentro de uma partícula lipídica. A tecnologia transforma a maneira como o ativo é veiculado. Nas formulações convencionais, a substância
permanece livre, molecularmente dispersa no produto, o que faz com que entre em contato direto com a pele. “Nesse sistema, associamos o ácido retinoico a uma amina, com grande cadeia lipofílica. Desse modo, também produzimos certa imobilização do grupo ácido: ele se liga à amina formando um par iônico, dentro da partícula lipídica”, explica a professora. O grupo ácido do ativo é uma das causas da irritação à pele, e a ligação química com a amina reduz tais efeitos adversos.
Adesividade
Os pesquisadores avaliaram a liberação do ácido retinoico em estudos de permeação cutânea, que se mostrou mais controlada em relação à formulação convencional. Realizaram, ainda, estudos de segurança e eficácia, ao usar modelos animais, de epiderme humana reconstruída, e, mais recentemente, de segurança em humanos. “Quando colocamos o fármaco numa nanopartícula, a formulação adquire a propriedade chamada ‘adesividade’. A nanopartícula se encaixa melhor à estrutura da pele e fica ali retida, inclusive, no folículo pilossebáceo, foco de ação da acne”, explica Goulart. O fármaco é liberado lentamente e não entra em contato direto com a pele. “Assim, diminuo a irritação e não Classe de compostos químicos orgânicos, contém nitrogênio em sua estrutura.
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comprometo os resultados, pois o ativo ficará retido e será liberado continuamente. Ganho muito em segurança e não perco nada em eficácia”, completa a professora. O ácido retinoico não se solubiliza em água. Normalmente, ele é solubilizado em álcool, e, depois, incorporado à formulação. Por isso, produtos à base de ácido retinoico têm, também, álcool em sua composição. A nova tecnologia permite que o ativo seja administrado em veículo
aquoso, menos agressivo para a pele do que o álcool, uma substância desidratante. “A formulação pode ser aplicada em creme, gel, pomada. A ideia, contudo, é que ela seja veiculada em bases mais suaves, para ir ao encontro de um mercado que não existe, em função dessa limitação com a solubilização”, diz Goulart. A tecnologia foi patenteada em abril de 2019 e já está disponível para empresas que tenham interesse em usá-la.
O processo da acne Na renovação celular da pele, os queratinócitos (células que formam as camadas da epiderme) passam por descamação e são substituídas por novas estruturas celulares. Com a acne, o processo é alterado. Ocorre o acúmulo de queratinócitos, e as glândulas sebáceas e os folículos pilossebáceos são obstruídos por óleo e células mortas. Isso cria um ambiente mais anaeróbico, que favorece o aumento da colonização por P. acnes. “Todos esses agentes produzem um quadro de inflamação muito característico. Pode ser que a parede do folículo piloso se rompa, com liberação de secreção, ou que fique aquele nódulo inflamado e fechado”, afirma Gisele Goulart, professora da Faculdade de Farmácia da UFMG. A acne é um processo inflamatório multifatorial, que pode ter causas genéticas, infecciosas e hormonais. O ácido retinoico regula o processo de renovação celular e promove a aeração do sistema, o que controla a colonização da P. acnes, até que a pele volte ao estado normal.
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ENGENHARIA
Longa vida, in natura Embalagens alimentícias produzidas com nanofibras prolongam durabilidade dos produtos e podem reduzir riscos para a saúde dos consumidores Alessandra Ribeiro
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Na indústria de alimentos, especialmente na de produtos cítricos, o óleo de laranja, extraído da casca da fruta, costuma ser descartado como lixo orgânico, para biocompostagem, ou destinado à produção de cosméticos. Uma das substâncias presentes em sua composição é o limoneno, um solvente orgânico, com potencial para substituir materiais sintéticos com a mesma propriedade. Depois de fazer testes com uma série de óleos e outros materiais, para produção de nanofibras (fibras produzidas em escala microscópica), o engenheiro de alimentos Kelvi Wilson Evaristo Miranda constatou que o óleo de laranja poderia substituir o tolueno, solvente sintético empregado na preparação do poliestireno – polímero que serve de matéria-prima à fabricação de embalagens resistentes a altas temperaturas, como isopor e copos descartáveis. O tolueno, popularmente conhecido como tíner, também é largamente usado para diluir tintas. “Na indústria alimentícia, tem-se todo o cuidado para que não haja resíduo do solvente na embalagem, nem migração para o alimento. Por isso, se conseguirmos substituir uma linha sintética de potencial risco à saúde, acredito que viveremos melhor, segundo as possibilidades de uma ciência mais orgânica”, prevê o pesquisador. Mais do que reduzir a exposição a substâncias passíveis de provocar doenças e reações alérgicas, em caso de contaminação acidental dos alimentos, o solvente orgânico tem outras vantagens. “Sabemos que o sintético demanda mais investimentos e matérias-primas. Usar resíduo agrícola para gerar novo produto com grande potencial
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tecnológico é muito melhor, inclusive, em relação ao meio ambiente”, defende. “As nanofibras que obtivemos têm como característica a biofuncionalidade contra fungos e bactérias, principalmente, de origem alimentar”, destaca Wilson. Elas poderiam ser usadas na produção de embalagens aptas a conservar carnes e alimentos vegetais minimamente processados.
Subprodutos
A produção da nanofibra, a partir do óleo de laranja, foi uma das três etapas da pesquisa desenvolvida ao longo do doutorado de Kelvi Wilson, realizado junto ao programa de pós-graduação em Engenharia de Biomateriais da Universidade Federal de Lavras (Ufla), com orientação do professor Juliano Elvis de Oliveira, do departamento de Engenharia. Os testes foram realizados no Laboratório Nacional de Nanotecnologia aplicada ao Agronegócio, localizado na unidade da Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa) em São Carlos, no interior de São Paulo, sob coorientação do pesquisador Luiz Henrique Capparelli Mattoso. A segunda etapa da pesquisa consistiu na produção de sachês para a conservação de vegetais. Neste caso, em razão de sua porosidade, as nanofibras foram utilizadas para envolver absorvedores de umidade e de etileno (hormônio de maturação dos vegetais), distribuídos em dois compartimentos. “Em um dos compartimentos do sachê, a substância chamada permanganato de potássio, fundida, em baixa concentração, encapsulada em parafina – que também é um subproduto petrolífero –,
consegue absorver o etileno liberado pelos frutos e hortaliças”, detalha. Em experimentos com tomates verdes, ao longo de sete dias, com uso dos sachês, 70% dos frutos não amadureceram. Para efeito comparativo, 95% dos tomates acondicionados sem o sachê atingiram a maturação completa no mesmo período. “Em toda a pesquisa, visamos ao aproveitamento máximo do alimento, assim como à extensão de sua qualidade, nas características in natura”, resume Wilson. Na terceira fase do trabalho, desenvolveu-se a “nanofibra inteligente”, instrumento para verificar a qualidade dos produtos próprios ao consumo. Inicialmente, os testes foram feitos com vinhos, para identificar possíveis processos de fermentação e deterioração. A ideia seria usar o material em um círculo com o diâmetro da boca da garrafa. Depois de um período de cinco a 15 minutos (variável de acordo com o tipo de vinho), em contato com o vapor da bebida, a nanofibra muda de cor, caso a acidez esteja acima da recomendada. “Se o vinho estiver acidificado, ela sai de sua coloração azul-roxeada e passa ao amarelo-laranja. A modificação de cor ocorre, normalmente, com pH em torno de 4,3, considerado ácido, o que não é uma característica do vinho, mas do vinagre”, descreve.
etapas da pesquisa. Ainda assim, afirma que ainda não houve procura de empresas interessadas. “Uma coisa é a pesquisa laboratorial, em pequena estrutura. Outra diz respeito à grande escala, em planta industrial, que demanda muitos fatores”, pondera. A tecnologia usada para obtenção dos nanomateriais é a fiação por sopro (ar comprimido), ou SBS [sigla em inglês para Solution Blow Spinning], ainda indisponível em escala industrial. “Ela é totalmente possível, contudo, pois exige um equipa-
mento muito barato, e o nível de produção em larga escala é altíssimo”, garante. Para o pesquisador, o processo é bem mais complexo do que apenas desenvolver o produto e lançá-lo no mercado: “A ciência já deu grandes passos na área da Nanotecnologia, mas a sociedade absorve tudo muito lentamente. Até porque, ainda é preciso de muito mais informações. Temos que realizar estudos, trabalhar com processos de conscientização e de aceitabilidade do consumidor. Assim, aos poucos, incorporam-se novos produtos”.
Escala industrial
Kelvi Wilson conta que ele e o orientador resolveram não patentear as tecnologias desenvolvidas, mas torná-las amplamente acessíveis, com a publicação de artigos científicos sobre cada uma das
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MATEMÁTICA E COMPUTAÇÃO
Previsão correta, decisão acertada Pesquisador do Cefet-MG desenvolve arcabouço que auxilia as pessoas a investir no mercado financeiro Mariana Alencar
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Todo mundo conhece alguma história de alguém que guardava dinheiro sob o colchão, como forma de juntar quantia suficiente à realização de sonhos materiais. Na infância, as crianças ganham porquinhos e pequenos cofres para guardar cada moedinha que ganham. Há, ainda, aqueles que preferem deixar as economias na poupança, para que o dinheiro renda com o passar do tempo. O comportamento do brasileiro assalariado em relação às finanças, entretanto, alterou-se nos últimos anos. Hoje, já não é tão vantajoso conservar dinheiro na caderneta de poupança, nem mesmo debaixo do colchão. Com as mudanças ocorridas na economia brasileira, ao longo da última década, os juros da Selic – a taxa básica de juros da economia, por meio da qual o Banco Central controla a inflação – diminuíram consideravelmente, tornando muito pequenos os rendimentos poupados. A saída, para muitos, está no investimento em mercado de ações, que, por ser importante a qualquer economia, apresenta-se, hoje, como objeto de estudos diversos. Daí a busca por modelos e a ânsia por informações capazes de ajudar a previsão do comportamento do mercado. Em tal contexto, destaca-se a pesquisa de Carlos Alberto Silva de Assis: “Predição de tendências em séries financeiras utilizando meta-classificadores”. Defendido junto ao Programa de Pós-Graduação em Modelagem Matemática e Computacional, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), sob a orientação dos professores Adriano César Machado Pereira (DCC/UFMG) e Eduardo Gontijo Carrano (DEE/UFMG), o trabalho consiste na apresentação de método para previsão de séries temporais financeiras, por meio do uso de técnicas de inteligência computacional combinadas. “O investimento na bolsa de valores exige trabalho de acompanhamento. Você põe o dinheiro na bolsa, mas ele pode sumir, da noite para o dia. Isso aconteceu com as ações da Vale, que despencaram após o desastre de Brumadinho. O objetivo da pesquisa foi encontrar
soluções para ‘prever o futuro’ e, assim, ajudar a tomada de decisão do investidor”, explica Assis.
Algoritmos Há alguns anos, pesquisadores da área tentam desenvolver técnicas que ajudem a previsão do comportamento de ativos financeiros. Entretanto, mesmo com os inúmeros estudos, antecipar preços e tendências não é algo fácil. Realizar predições é lidar com as incertezas do mercado financeiro e outros imprevistos. “Além disso, o ser humano é feito de emoções. Quando vê seu dinheiro rendendo, e percebe que o ativo tem subido, ele investe maior quantia, mas não é capaz de calcular o risco de queda. Por falta de conhecimento, a pessoa perde dinheiro”, detalha o pesquisador. Em sua pesquisa, Assis desenvolveu um meta-classificador, baseado em métodos de inteligência computacional, para descobrir tendências de preços para ativos de bolsa de valores. “Trata-se de um arcabouço composto de algoritmos internos. Em meu estudo, desenvolvi um meta-classificador composto por sete algoritmos, que foram aplicados em ambientes simulados”, conta. Os meta-classificadores funcionam da seguinte forma: se o médico informa que alguém está com uma doença grave, o paciente pode optar por ouvir outras opiniões. Ele, então, busca novos profissionais, para mais informações sobre seu estado de saúde. “Cada médico procurado é um algoritmo dentro do meta-classificador. No caso de minha analogia, o paciente escutaria a avaliação de sete médicos, para, então, tomar decisões”, esclarece. Conforme o exemplo “medicinal”, na economia, há sete técnicas de inteligência computacional aptas a descobrir tendências em séries financeiras: Programação Genética (PG); Máquinas de Vetor de Suporte (SVM); Florestas Aleatórias (RF); Redes Neurais (MLP); Árvore de Decisão (J48); Otimização Mínima Sequencial (SMO); e Redes Bayesianas (BN). Os meta-classificadores apresentam um importante diferencial dos classificaMINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019
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dores tradicionais, ao prever qual avaliação tem maior peso. No mercado financeiro, dirão se as ações sofreram alta ou queda, e, ao fim, informarão as melhores atitudes a serem tomadas. Ou seja, a abordagem proposta é capaz de indicar, ao investidor, se ele deve comprar novos ativos, retirar o dinheiro ou continuar a investir. Uma das formas de calcular os riscos se dá por meio da análise de dados históricos da bolsa de valores. A partir dos padrões comportamentais do mercado financeiro, os meta-classificadores conseguem traçar estimativas de futuro. A ferramenta leva possíveis anomalias em consideração. Há cada quatro anos, por exemplo, ocorre uma alteração no mercado devido às eleições presidenciais. Essa sazonalidade é calculada e considerada pelos algoritmos. Para o desenvolvimento do meta-classificador, Assis testou ativos de nove empresas: Petrobras; Cielo; Itaú Unibanco; Índice Bovespa; Usiminas; Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig); Gerdau; Kroton Educacional e Gol Linhas Aéreas Inteligentes. Os resultados foram satisfatórios, ao mostrar acurácia, na classificação, de até 57%, além de ganhos financeiros de até 100% do valor de capital inicialmente investido. Constatou-se, tam-
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bém, que o meta-classificador apresentou índices muito superiores em relação a outros mecanismos de machine learning. “Algumas simulações mostraram retorno de 100%, diferentemente de outros métodos já desenvolvidos. Ou seja, se a pessoa aplica R$ 10 mil, ao tomar as decisões corretas, com a ajuda do meta-classificador, pode ter retorno acumulado de até R$ 20 mil em um ano”, comemora. Ramo da inteligência artificial que parte da ideia de que sistemas podem aprender com dados, identificar padrões e tomar decisões, sem necessidade de intervenção humana.
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Horizontes Carlos Assis integra o grupo de estudos Finanças Computacionais (Fico) da UFMG, formado por alunos, pesquisadores, professores, profissionais de várias áreas e empresas do setor econômico. O caráter interdisciplinar da equipe influenciou a formulação do problema central do pesquisador, uma vez que o trabalho não envolve apenas a Matemática Computacional e as Finanças, mas, também, áreas do conhecimento como Ciência da Computação, Ciência de Dados, Economia e Estatística. Os resultados positivos do estudo são indicativos de potencial aplicabilidade do modelo em ambientes reais. Por isso, Assis está focado, agora, em desenvolver um projeto de pós-doutorado que busque a aplicação do que desenvolveu em sua tese.
ALIMENTOS
“Superalimentos” contra a fome oculta
Pesquisadores aumentam valor nutricional de uma série de produtos por meio de técnicas de biofortificação alimentar Luiza Lages
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Na década de 1980, países europeus passaram a restringir a importação de trigo proveniente dos Estados Unidos e do Canadá, para incentivar a produção agrícola interna. Medições feitas na Finlândia, porém, mostraram que o teor de selênio era quatro vezes menor no trigo produzido na região. O solo europeu é naturalmente mais pobre, no que se refere ao elemento, se comparado ao norte-americano. No período, também foi aferida a redução do nutriente no plasma sanguíneo da população: notou-se aumento na incidência de câncer. A resposta ao problema veio como política pública. Desde então, naquele país, é obrigatório que a composição de fertilizantes usados nas lavouras inclua taxa mínima de selênio. A prática adotada na Finlândia é um exemplo de biofortificação alimentar. A produção de “superalimentos”, que tenham maior valor nutricional, é um dos grandes desafios atuais da agricultura. Diversas pesquisas, em todo o mundo, têm testado a adição de elementos como iodo, selênio, ferro e zinco às culturas. Há cerca de dez anos, na Universidade Federal de Lavras (Ufla), são feitos testes de enriquecimento de nutrientes em arroz, soja, feijão, milho e hortaliças diversas, inclusive o ora-pro-nóbis. Os testes são realizados em áreas agrícolas nas cidades de Lavras, Lambari, Uberaba e Patos de Minas. A diversidade das regiões permite análises em diferentes tipos de solo e clima. Os pesquisadores testam os compostos isoladamente ou em conjunto, para determinar a quantidade a ser absorvida e o teor ideal para cada cultura.
Agricultura funcional
“Tivemos grandes ganhos na agricultura. Incorporamos tecnologias e conseguimos, com melhoramento genético, aumentar a produção de uma cultura por área. Além disso, passamos a produzir materiais tolerantes à seca e ao ataque de pragas. O interessante, agora, é produzir plantações que consigam extrair mais nutrientes do solo”, diz Luiz Roberto Guimarães Guilherme, do Departamento de Ciência do Solo da Ufla. O professor coordena, em parceria com a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig),
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uma rede internacional conhecida como HarvestZinc. Nela, cientistas de 13 países desenvolvem estudos sobre a biofortificação de alimentos. Segundo o pesquisador, o momento é da chamada “agricultura funcional”. Cresce mundialmente, afinal, o interesse pela produção de alimentos funcionais, que ajudam a combater a má nutrição e oferecem benefícios à saúde. Melhores técnicas de cultivo e fatores como o aumento da presença de gás carbônico na atmosfera levam ao aumento da produção em uma mesma área de plantio. “Se, antes, eu produzia cinco toneladas de um alimento em uma área, e aumentei a dez, o teor de nutrientes é diluído entre as plantas. Por isso, preciso ampliar a quantidade de nutrientes disponíveis na lavoura, para não gerar produtos com baixo valor nutritivo”, explica Guimarães Guilherme.
Combate à fome oculta
Produtos alimentares “vazios”, com poucos nutrientes, são parte de um problema que afeta milhões de pessoas: a fome oculta. O conceito difere da abordagem original para a fome, pois leva em consideração a falta de nutrientes, e não apenas a falta de comida. Pessoas que aparentam se alimentar podem desenvolver graves carências de micronutrientes, como vitamina A, zinco e ferro. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 44% dos países vivem, ao mesmo tempo, sérios níveis de subnutrição e sobrepeso, incluindo obesidade. São fatores associados ao desenvolvimento de doenças crônicas, como diabetes e câncer. Nesse contexto, a biofortificação contribuiria com a ingestão diária de cada nutriente, a partir de culturas com grande alcance populacional, como arroz, feijão, soja e trigo. “Nos países onde esses nutrientes não são deficientes no solo, é possível, simplesmente, cultivar plantas com maior capacidade de absorvê-los”, diz Luiz Roberto Guimarães Guilherme. Tal seria uma das ações plausíveis da “biofortificação genética”, que inclui a seleção de espécies vegetais com os melhores genes ou genótipos para absorção de nutrientes específicos. Outra possibilidade
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passa pelo desenvolvimento de organismos geneticamente modificados. Para solos pobres, entretanto, a estratégia genética torna-se frustrada. Nesses casos, é interessante que ela seja pensada em conjunto com a “biofortificação agronômica”, técnica de adubação das plantas, com uso de fertilizantes enriquecidos com nutrientes estratégicos. O objetivo é que eles sejam absorvidos e acumulados nas culturas. “Particularmente nas regiões mais pobres do planeta, que tendem a estar localizadas em faixas de terra onde os solos são mais carentes, não se pode trabalhar com um método isolado. Não dá para pensar, apenas, no material genético que absorverá mais nutrientes em uma área onde o teor natural dos mesmos é baixo”, afirma o pesquisador.
Custos
Enquanto a biofortificação genética não apresenta custos adicionais, a estratégia agronômica inclui gastos com fertilizantes. O método apresenta duas técnicas possíveis de aplicação: nas folhas ou no
solo. A pulverização foliar requer quantidade menor de nutrientes e pode ser feita junto à aplicação de pesticidas, realizada, frequentemente, por muitos agricultores. Entretanto, a técnica não apresenta efeito residual: os nutrientes serão absorvidos por apenas uma safra. “Como, no Brasil, temos capacidade de produzir mais de uma lavoura por ano, é interessante fazer a aplicação no solo. Há a possibilidade de várias plantas, de diferentes safras, absorverem os nutrientes”, explica Guimarães Guilherme. O pesquisador explica que, para o grande produtor, que já faz a pulverização das culturas, a biofortificação não representa grande diferença nos custos produtivos. Para o pequeno produtor, salienta os ganhos possíveis. Além de gerar produtos com maior valor agregado, com crescente demanda em mercados externos, a adição de nutrientes traz uma série de benefícios às lavouras. O selênio está associado a processos antioxidantes, antienvelhecimento. Embora não seja essencial para o crescimento da planta, suas propriedades produzem maior resistência contra falta de água, presença
No organismo Confira os efeitos de cada elemento em seu corpo
Iodo (I) Importante ao funcionamento normal da glândula tireoide. Sua carência está relacionada ao desenvolvimento de bócio endêmico e hipotireoidismo.
de pragas, doenças e outras situações típicas das lavouras. O zinco é outro exemplo. Já usado por produtores, o composto é essencial ao desenvolvimento e ao aumento da produtividade da planta. Entretanto, o elemento ainda não é aplicado em quantidades suficientes para trazer benefícios à alimentação humana. “Alguém precisa estar disposto a pagar esse ‘extra’, em termos de ganho nutricional. Para quem quiser operar no mercado de produtos diferenciados, gourmet, isso é fácil. Nosso objetivo, porém, é que esse tipo de produto chegue às populações de baixa renda. O ideal seria que o governo criasse políticas públicas de saúde para motivar os produtores”, afirma o professor da Ufla. No Brasil, um exemplo – embora não se trate de biofortificação – é a obrigatoriedade da adição de iodo ao sal, decretada, em 1956, pelo presidente Juscelino Kubitschek. A legislação brasileira de fertilizantes já recomenda a aplicação de zinco nos solos, e, desde 2016, sugere a adição de selênio.
Enxofre (S) Facilita o transporte de outros minerais dentro do organismo humano. Sua deficiência pode causar distúrbios no sistema nervoso.
Ferro (Fe) Atua na síntese das células vermelhas do sangue e no transporte de oxigênio em todo o corpo.
Selênio (Se) Tem propriedades antioxidantes e contribui para o funcionamento do sistema imunológico. A carência do elemento está relacionada a certos tipos de cânceres e a problemas cardiovasculares.
Zinco (Zn) É fundamental à estrutura e à função de enzimas vitais à homeostase, condição que equilibra as composições químicas do organismo.
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ESPECIAL
Conhecimento em revista Duas décadas depois de sua primeira edição, MINAS FAZ CIÊNCIA celebra expansão de possibilidades narrativas e discute o presente e o futuro dos saberes Verônica Soares da Costa
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Em 1998, o primeiro produto de divulgação científica da FAPEMIG foi uma série de minidocumentários em parceria com a Rede Minas de Televisão. Segundo Vanessa Fagundes, foi um início importante, pois a TV possibilitou que a Fundação atingisse, rapidamente, grande número de pessoas. “Isso contribuiu para o nascimento da revista, pois o retorno do público chamou a atenção: as pessoas começaram a falar sobre as pesquisas e a escrever para a Fundação, como forma de elogiar e pedir mais ações de divulgação científica”.
Beatriz Sarlo afirma, no artigo “Intelectuales y revistas: razones de una práctica”, que a iniciativa de elaborar uma revista ilustra a decisão de fazer política cultural. Se considerarmos a pesquisa e a divulgação do conhecimento como práticas constituintes da cultura de uma sociedade, é possível lançar mão do pensamento da escritora e crítica literária argentina para afirmar: investir em uma publicação de ciências é, também, fazer “política científica”. No caso de MINAS FAZ CIÊNCIA, a decisão foi tomada há 20 anos, em dezembro de 1999, com a publicação da edição n° 1, cujas chamadas de capa destacavam temas como bioterrorismo, câncer e poluição sonora – desafios ainda atuais às ciências do século XXI. Criada pela FAPEMIG, a revista é parte de um movimento que se intensificou no Brasil, na virada da década de 1990 aos anos 2000, rumo à ampliação de ações de divulgação e popularização da ciência. Assim, ao mesmo tempo em que nascia a publicação, outras iniciativas de popularização do conhecimento surgiam em todo o País. Nem todas, porém, revelaram-se tão longevas quanto a iniciativa mineira. A revista não foi o primeiro projeto de divulgação científica da FAPEMIG. Outras ações já estavam em andamento na Instituição, como a produção de boletins de notícias e de minidocumentários. Após o diagnóstico da necessidade de maior integração da comunidade científico-tecnológica com outros setores da sociedade, a revista foi idealizada como estratégia de aproximação entre públicos diversos, para
mostrar, à população, os resultados das pesquisas desenvolvidas com recursos do Estado. Assim está no texto do primeiro editorial: “São assuntos ricos, infelizmente pouco divulgados. Por isso estamos produzindo esta revista voltada para o público leigo, mostrando a produção de C&T em formato de jornalismo científico”. Os pontos fundamentais desta história já foram discutidos em artigo acadêmico, publicado em 2017. Contudo, com a proximidade das celebrações dos 20 anos de publicação da revista, o editor-chefe, Maurício Guilherme Silva Jr., e a diretora de redação, Vanessa Fagundes, encontraram-se para um bate-papo, com o intuito de relembrar o passado e, ao mesmo tempo, projetar futuros possíveis para a publicação. Com anos dedicados ao projeto “Minas Faz Ciência” – que hoje também contempla produtos desenvolvidos para Trata-se de artigo apresentado no IV Encontro Regional Sudeste de História da Mídia, em 2016, e, posteriormente, publicado, sob o título “Reflexões e experiências jornalístico-acadêmicas desenvolvidas no projeto Minas faz Ciência”. no livro Divulgação Científica: novos horizontes (Belo Horizonte: Mazza Edições, 2017. [ePub]), que você pode acessar, gratuitamente, neste link: http://bit.ly/livrodivulgacaocientifica. Leia, também, o artigo de Beatriz Sarlo, citado na abertura da reportagem, disponível em http:// bit.ly/beatrizsarlo.
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o ambiente digital –, Maurício e Vanessa têm suas histórias e escolhas profissionais e acadêmicas entrelaçadas ao projeto. São também defensores das políticas de divulgação científica e de sua importância para o desenvolvimento científico, social e econômico de uma nação. Nos trechos a seguir, eles falam da relação afetiva que desenvolveram com MINAS FAZ CIÊNCIA, da expansão do projeto, por meio do Programa de Comunicação Científica, Tecnológica e de Inovação (PCCT), das motivações para continuarem o trabalho com a comunicação pública da ciência e seus desafios, além do entendimento de que a revista é parte da história da própria FAPEMIG e do desenvolvimento científico em Minas Gerais. “Duas décadas não são dois dias. Efemérides são uma oportunidade para olhar para o passado e vislumbrar um futuro”, sintetiza Maurício.
Histórias entrelaçadas
A iniciativa busca disseminar e popularizar a ciência, a tecnologia e a inovação (CT&I) no Estado. O PCCT fomenta e desenvolve vocações na área da difusão das ciências, com a concessão de bolsas de incentivo à formação de profissionais dedicados à cobertura na área, de modo a ampliar o espaço dedicado à ciência em veículos da grande mídia e divulgar projetos e programas desenvolvidos com o apoio da FAPEMIG. Leia a deliberação que aprovou o programa, de agosto de 2010, em http://bit.ly/ pcctfapemig.
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“A minha história com a Minas Faz Ciência começa muito antes de eu trabalhar na FAPEMIG”, conta Vanessa Fagundes, atual coordenadora da Assessoria de Comunicação Social da Fundação. Ela ainda era estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) quando se interessou pelo jornalismo científico e decidiu atuar na área. “Comecei a pesquisar projetos que trabalhassem com essa temática e descobri a revista. Eu me tornei assinante, gostei muito da proposta e mandei uma carta, algo comum na época, para a então editora responsável, me apresentando como candidata a um estágio”, relembra. Foi só depois de ter se formado, no entanto, que Vanessa recebeu uma ligação da editora, Karina Almeida, para fazer parte da equipe. “Vim à FAPEMIG para atuar, principalmente, na revista, como jornalista. Depois de produzir reportagens sobre as pesquisas desenvolvidas em Minas Gerais, eu me encontrei profissionalmente e, mais tarde, me tornei servidora na Fundação”. Seu nome apareceu pela primeira vez na revista nº 12; cinco edições depois, já assinava como editora. “Foi um grande desafio, pois a função exige que se pense a revista como um todo, com a definição
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Dados do Boletim Epidemiológico de Monitoramento dos casos de dengue, chikungunya e zika, publicados pela Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, indicavam o registro de 466.796 casos prováveis (confirmados + suspeitos) da doença no Estado e 125 óbitos, até o dia 12 de agosto de 2019. da linha editorial e de abordagens temáticas, de maneira mais ampla do que no cotidiano do trabalho como jornalista”. O ofício se revelou solitário por alguns anos, até a criação do PCCT, em 2010, edital que selecionou profissionais para atuarem na produção de conteúdo do projeto “Minas Faz Ciência”. “A entrada de outros jornalistas, com novos olhares e experiências, acrescentou muito à iniciativa. A revista cresceu em qualidade, em proposta, em objetivos”, avalia. Maurício Guilherme Silva Jr. começou a participar da produção da revista a partir de 2011, quando foi aprovado no primeiro edital de seleção do PCCT. No ano seguinte, passou a atuar como editor de MINAS FAZ CIÊNCIA. Sua estreia foi na edição nº 43, cuja reportagem de capa tratava da dengue – tema que continua a assombrar os mineiros, em função do aumento do número de casos no Estado. O trabalho como editor começou na edição de nº 51, e segue até hoje. “Lidar com ciência, jornalismo e textos de revista tem forte relação com minha caminhada profissional anterior, e, hoje, com minha prática docente. Fui assessor de comunicação na UFMG, mas, ainda como estudante de Jornalismo, já tinha me apaixonado pela divulgação das ciências. Antes mesmo de integrar o grupo de profissionais do PCCT, conhecia e admirava a publicação. Quando me candidatei, vislumbrei a possibilidade de aprender e colaborar com a proposta, também como pesquisador e professor”, comenta, ao frisar que ser editor de uma revista de divulgação científica é motivo de orgulho, por tudo o que ela representa: “Principalmente,
como locus de discussão de uma ciência que permite às pessoas ter experiências singulares de leitura e apreensão de textos e narrativas”, define.
MINAS FAZ CIÊNCIA são muitas
“A revista propõe leituras que podem ser fragmentadas, mas têm a própria fragmentação como potência, com diversidade de olhares e de possibilidades de imersão. É bonito acompanhar os desdobramentos dessa trajetória, as transformações visuais, as mudanças gráficas, as propostas de experimentação desenvolvidas nos últimos anos. E ver MINAS FAZ CIÊNCIA se metamorfoseando, de acordo com dinâmicas sociais que atravessam a prática do jornalismo científico”, analisa Maurício. Tal processo de transformação e adaptação pode ser notado, por exemplo, no passeio pelas capas de todas as edições publicadas, ininterruptamente, ao longo dos últimos 20 anos. Para Vanessa Fagundes, um dos motivos da relevância da revista é o fato de a FAPEMIG ter se comprometido a dar publicidade e a ampliar o conhecimento da sociedade sobre o que é feito em laboratórios, salas de aula e grupos de pesquisa mineiros. Ela também destaca a estratégia da divulgação científica ampliada, focada não só em um produto, mas, sim, nas múltiplas possibilidades de diálogo com pessoas de diferentes perfis, a partir da diversidade de linguagens e formatos, e, até mesmo, de eventos que proporcionam imersão em atividades científicas e debates sobre o tema. “Neste sentido, o PCCT fortaleceu a intenção de diversificar as ações de divulgação, porque a chegada de profissionais com diferentes habilidades permitiu, também, que trabalhássemos em novas plataformas de publicação, como podcasts, vídeos e outras ações na internet, quando as redes sociais e os blogs estavam apenas começando a se estabelecer”. Muito antes de as palavras “transversalidade” e “transmídia” estarem em voga, o projeto “Minas Faz Ciência” já sinalizava que a multiplicidade de produtos e experiências possíveis de contato com as ciências era um caminho promissor para projetos bem-sucedidos de divulgação científica.
Além dos 25 mil exemplares impressos, distribuídos gratuitamente pelo Brasil, a revista MINAS FAZ CIÊNCIA está disponível, para leitura, em sua versão digital, no endereço http://bit.ly/revistasMFC. As edições especiais temáticas, por exemplo, apresentaram-se como desafio desde a primeira experiência, que surgiu da demanda de evento científico que seria realizado no Estado. “Por um tempo, a ideia da edição especial foi abandonada, mas havia temas muito salientes nas discussões sobre CT&I, como a importância da internacionalização das pesquisas, o que motivou a criação de uma edição anual, extra, capaz de abordar os assuntos de maneira mais profunda”, relembra Vanessa. Havia, no entanto, o antigo desejo de conversar com o público infantojuvenil, em idade escolar. “Falar com crianças não é simplificar a linguagem, nem tratar o
leitor como dotado de inteligência menor. Por isso, ao conceber a revista MINAS FAZ CIÊNCIA infantil, em 2015, elaboramos um projeto que buscava dialogar com as crianças, considerando a complexidade dessa missão”, conta. Para Maurício Guilherme, a proposta de falar com o público infantil levou a equipe a estudar e a aprender muito: “Chamamos autores de livros infantojuvenis e especialistas, como o escritor Leo Cunha, para dialogar; promovemos conversas com mães e pais para avaliar a recepção; e, mesmo hoje, quando produzimos a quinta edição infantil, seguimos aprendendo sobre formatos e linguagens”. Um dos desdobramentos da revista MINAS FAZ CIÊNCIA infantil foi o podcast As edições especiais e as revistas MINAS FAZ CIÊNCIA infantil podem ser acessadas em suas versões digitais no link http://bit.ly/ MFCEspecial.
O podcast Ondas da Ciência surgiu em 2011, antes mesmo que o consumo de informações neste formato virasse tendência no Brasil. Já são mais de 225 programas gravados e disponíveis nas principais plataformas, como Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts, Castbox, Iheart, Anchor, SoundCloud, Spreaker, Podbean e Podcast addict. Ouça também pelo site: http:// bit.ly/OndasDaCiencia.
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“Viagem de Tiê”, idealizado e produzido pela jornalista Luiza Lages e lançado como material complementar à edição de 2018.
A marca
Em função da multiplicidade de abordagens, Maurício Guilherme defende que MINAS FAZ CIÊNCIA é mais do que uma revista impressa: “Somos uma marca de narrativa jornalística, que recebe interferências externas e internas muito ricas, capazes de ampliar suas potencialidades. Devemos falar não só de um produto impresso, mas de uma trajetória de pensamento de divulgação científica, que culmina com a versão impressa da revista e outras materialidades a compor esta narrativa”. A marca MINAS FAZ CIÊNCIA é, assim, cambiante: amplia-se e se expande em outros suportes, como o ambiente digital, sem perder sua essência, conforme destaca o editor. “A revista reposiciona sua marca o tempo todo, não sem considerar estratégias de persuasão e construção narrativa colaborativa. Enquanto estamos Para ouvir os programas da série, acesse http://bit.ly/ViagemDeTie.
Rapidinhas!
reunidos para pensar pautas e reportagens, reconhecemos a importância de manter a versão impressa em circulação, e, também, a necessidade de ampliar o diálogo com outros territórios. Tudo está integrado, para que haja ampliação narrativa, transmídia, com engajamento de novos públicos nesses outros espaços e ambientes”. A estratégia passa, primeiramente, por um investimento institucional da Fundação, além do perfil do grupo de jornalistas que compõem o PCCT nos últimos anos, o que possibilita, também, fazer ciência por meio da revista, pelo incentivo à produção de artigos e de análises sobre o campo da comunicação pública da ciência. Um dos valores compartilhados pela equipe é a de que as estratégias de todo o projeto editorial precisam ser pensadas e repensadas continuamente e, no caso de MINAS FAZ CIÊNCIA, a possibilidade de fazer a revista circular de mão em mão, para seus 25 mil assinantes, é vista como um diferencial estratégico para ampliação de públicos. Atualmente, a publicação é distribuída a assinantes individuais, e a escolas municipais de Belo Horizonte, instituições de ensino e pesquisa, bibliotecas e jovens pesquisadores de todo o Estado e
de outras partes do Brasil. “A chegada da versão física à casa das pessoas transforma a relação da ciência no dia a dia. Uma capa de revista impressa, hoje, no meio de uma sala, num quarto de estudos, estimula a relação material de diversas pessoas com aquele produto. Os leitores do impresso não são únicos: nós, potencialmente, atingimos muito mais do que 25 mil assinantes”, destaca Maurício. Além disso, o público de estudantes nas séries iniciais do ensino fundamental desenvolve, desde muito cedo, novas relações com a ciência, mediadas pela revista. “Recebemos relatos do impacto desse momento de contato com a revista, que é vista pelas crianças quase como um presente, mesmo entre aquelas já acostumadas a
Todo mundo tem uma pauta, uma entrevista, uma capa e uma reportagem especial favorita. Conheça as preferências de quem está à frente da revista MINAS FAZ CIÊNCIA:
Edição predileta Maurício – Gosto muito da discussão sobre o corpo, que fizemos na edição nº 62.
Vanessa – Me tocou muito a discussão sobre suicídio, na edição nº 63. O resultado da abordagem foi fantástico, apesar do tema delicado.
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Além da revista impressa, hoje, o projeto “Minas Faz Ciência” contempla dois sites, um deles dedicado ao público infantojuvenil, um canal no YouTube, o podcast “Ondas da Ciência” e perfis nas principais plataformas de redes sociais: somos @minasfazciencia no Instagram, no Facebook e no Twitter.
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Capa preferida M – Todas as capas infantis são esteticamente bonitas, e sempre apresentam uma pergunta, uma provocação.
V – A primeira capa em que usamos uma metáfora visual, a de nº 49, com um Davi, de Michelangelo, em proporções distintas da obra original, para falar sobre obesidade.
consumir informação na internet. Há uma vivência, uma experiência muito diferente, que deve ser valorizada por quem quer despertar o interesse, a curiosidade e a futura vocação em carreiras tecnológicas e científicas”, completa Vanessa.
Bastidores da produção O processo de produção da revista começa com dois meses de antecedência da data de circulação, em encontros coordenados por Maurício Guilherme, em que são debatidas sugestões recebidas de pesquisadores, de outras instituições, temas factuais e, ainda, pesquisas do banco de dados da FAPEMIG. “Temos preocupação com a variedade de fontes que nos chegam, e, também, em equilibrar as áreas do conhecimento, pesquisadores e pesquisadoras, a diversidade das instituições e regiões de Minas Gerais, que devem ser igualmente contempladas”, detalha. Definidas as pautas, os jornalistas da equipe partem para o trabalho de pesquisa e apuração juntos aos cientistas. “Aspecto importante desse momento é que as reportagens não se restringem ao momento da entrevista com o pesquisador; é necessário estudar e entender o tema, previamente, para fazer as melhores perguntas”, observa a diretora de redação, Vanessa Fagundes. Maurício Guilherme, cuja trajetória de pesquisa está no campo dos estudos literários, resgata o conceito de transcriação para descrever esse processo de construção das reportagens: “Há muitas relações na construção de textos jornalísticos. A transcriação diz de um território de convivência dos públicos com os pesquisadores, com a ciência e os jornalistas. É uma mistura. Não fazemos tradução literal e direta do discurso dos cientistas, o que seria impossível. Assumimos o lugar de uma ‘criação outra’, de um diálogo que parte do pressuposto de que todos podemos construir esse texto, a partir de nossas experiências individuais, em diálogo com o que a revista nos apresenta. Não é o discurso dos cientistas, nem da ciência; também não é uma aula. Trata-se, antes, de um convite: vamos conversar sobre ciência? É, enfim, uma antiaula: vamos ter dúvidas?” Depois de prontas, as reportagens passam pelo processo de edição, que ade-
qua os textos ao estilo e à linha editorial da revista. Segue-se, assim, à diagramação, que vai muito além de mera técnica para organizar textos no espaço: o objetivo é oferecer informação visual sobre a pesquisa em questão. “As ilustrações e imagens são também criações, e servem à divulgação científica, não estão ali só para enfeitar", pondera Vanessa.
Desenvolvimento mineiro A trajetória da publicação constrói caminhos narrativos para a ciência no Estado: “Quando olhamos uma revista isolada, talvez isso não seja tão perceptível, mas, ao observarmos o conjunto dos últimos 20 anos, vemos a história da ciência em Minas naquelas páginas. Ao revisitar as publicações, me marcou muito a abordagem sobre o novo marco legal da ciência e da tecnologia, algo de nossa história recente que mudou a perspectiva da produção científica para pesquisadores do Brasil inteiro. MINAS FAZ CIÊNCIA não deixou de debater cada um de seus aspectos, como a inclusão da inovação como eixo fundamental do desenvolvimento científico e as demais dificuldades legais enfrentadas pelos cientistas. Construímos essa história com as abordagens jornalísticas, por meio de nossas escolhas e do movimento das instituições”, observa Vanessa. Maurício Guilherme explica que, do ponto de vista jornalístico, é importante que haja clareza sobre diferentes níveis de entrelaçamento entre sensibilidades, significados da ciência e modos de experimentação: “Não podemos ignorar as especificidades de um jornalismo também institucional, que se vincula ao modo como o Estado lida com suas políticas de ciência e suas relações nacionais e internacionais”. Revisitar as páginas dos 20 anos de MINAS FAZ CIÊNCIA é, também, pensar como o próprio jornalismo foi imaginado e como as sensibilidades se concretizam em narrativas que tratam da ciência no Estado, em sua relação com a história do conhecimento no Brasil e no mundo. “É como falar da gota para discutir o oceano, mas de maneira muito rica. Uma só edição não dará
conta de todo o processo ligado à discussão da ciência. É preciso pensar cada novo número em seu tempo, e com os desafios de cada período, para, então, refletir sobre o conjunto”, completa.
Os próximos 20 anos Tanto a diretora de redação quanto o editor-chefe acreditam que a publicação representa a história da instituição e da ciência em Minas, além de revelar a própria evolução dos profissionais envolvidos na equipe. “É interessante ver como questões que antes não nos tocavam aparecem mais forte agora, o que demonstra nosso crescimento como pesquisadores da área, e, também, nosso compromisso ético com pautas que começaram a mobilizar a comunidade acadêmica no século XXI”, conta Vanessa Fagundes, em meio às reflexões sobre os desafios da inclusão e da diversidade, por exemplo. Ela acredita que o projeto “Minas Faz Ciência” construiu a história de uma equipe, que já teve diversos colaboradores ao longo dos anos: “Cada um deixou sua marca nas páginas da revista”, diz. Para Vanessa, duas décadas é uma marca a ser intensamente comemorada, além de representar a oportunidade para repensar o significado da divulgação científica e de seus públicos: “Hoje, é muito raro encontrar um projeto com essa história, que mantenha sua característica original, como revista distribuída a qualquer interessado, em qualquer parte do Brasil. Isso diz de uma estratégia maior da instituição, de realmente compartilhar o que está sendo produzido e investir na divulgação do conhecimento. É algo a ser festejado, mas que também nos leva a refletir: por que queremos comunicar ciência? Qual a relevância do trabalho que fazemos? Para quem direcionamos nossos esforços? Essa visão do que é a ciência contribui para o desenvolvimento social e científico? São temas em constante discussão no grupo, que alimentam e valorizam o projeto ‘Minas Faz Ciência’. Avançamos a partir desses questionamentos”, destaca.
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ECONOMIA
Pesquisa avalia evolução dos custos “tarifários” e “não tarifários” do comércio entre o Brasil e 178 países Luiza Lages
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“Se o mundo fosse livre de imperfeições, um produto exportado pelo Brasil chegaria, a qualquer país importador, pelo mesmo preço. A diferença de valor, normalmente, inclui custos de transporte e uma série de outras medidas e restrições”, diz Orlando Monteiro da Silva, professor do departamento de Economia da Universidade Federal de Viçosa (UFV). No passado, o comércio internacional foi marcado pelas barreiras tarifárias. A taxação de produtos importados funcionava como ação protecionista, para dar vantagem ao produtor interno. Tal tipo de tarifa impacta no preço final de mercadorias e serviços, e leva o consumidor a buscar o que é feito no próprio país, com preços menores. Também eram comuns, no comércio entre nações, restrições quantitativas, chamadas de “cotas”. Governos determinavam limites de importação sobre determinados produtos. Com o limite da quantidade de entrada de mercadorias, o preço unitário do produto subia, levando à menor competitividade no mercado externo. “As tarifas e cotas geravam distorções de preços entre os países, e, consequentemente, redução do comércio internacional”, explica Silva. O pesquisador coordenou estudo sobre os custos do comércio internacional brasileiro. Foram selecionados 178 países, em recorte temporal entre 1995 e 2013, com dados já atualizados até 2015. Analisou-se a diferença de preço entre os produtos exportados pelo Brasil e seus parceiros comerciais. A pesquisa mostrou que, ao longo dos anos, os custos tarifários foram reduzidos. Surgiram, então, as medidas não tarifárias, como as sanitárias e fitossanitárias, sobre produtos agrícolas. “Os custos tarifários, considerados transparentes, diminuíram, por causa da visibilidade e da contestação que geram. O que vai substituí-los são as barreiras não tarifarias”, completa o pesquisador. O estudo procurou calcular o tamanho de tais barreiras sobre o preço dos produtos, além de entender do que são constituídas e como evoluíram.
Barreiras não tarifárias
No início de 2018, a União Europeia embargou a entrada de produtos de carne
– principalmente, aves – de 20 fábricas brasileiras que tinham autorização para exportar aos países europeus. O embargo foi justificado por argumentos de que existiam deficiências no controle de salmonela do frango exportado. A medida é fruto de desdobramento das investigações da Polícia Federal à BRF, companhia do ramo de alimentos. A empresa foi implicada na operação Carne Fraca, com a alegação de que burlava os padrões de segurança alimentar. A BRF, por sua vez, argumentou que a decisão da Comissão Europeia não se baseou em questões sanitárias, e se configurava como medida de proteção ao mercado local. Orlando Monteiro da Silva lembra que o embargo à BRF não é um caso isolado. Nos últimos anos, diferentes fábricas e produtos brasileiros sofreram restrições de comercialização, com países diversos. “Essas medidas levaram a uma queda drástica das importações e exportações de alimentos, e, especificamente, de carnes. Tais situações chamam, e continuarão a chamar, a atenção do comércio internacional. Isso ficou claro em nosso trabalho: se um país quiser exportar com mais intensidade, terá que observar, muito bem, questões sanitárias e fitossanitárias dos produtos que comercializa”, afirma o professor. A necessidade de cumprir normas sanitárias para viabilizar a exportação de produtos eleva os custos de produção e, consequentemente, do produto final. “Se, para se adequar a essas condições, não é possível trabalhar com custos baixos ou aumentam-se os gastos, perde-se competitividade”, diz Silva. Questões técnicas, como rotulagem, embalagem e adequações às características culturais dos países, também são fatores significativos, hoje, para o aumento dos custos do comércio internacional.
Blocos econômicos
Em função da heterogeneidade associada aos países avaliados, a pesquisa da UFV teve foco no comércio internacional do Brasil com grandes blocos econômicos. “Fez-se a pergunta: será que estar em um bloco econômico reduz custos? Os países, normalmente, juntam-se para reduzir
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as barreiras comerciais entre eles, e para realizar integração comercial”, explica Orlando Monteiro da Silva. Calcularam-se, então, os custos do comércio brasileiro com Mercosul, Comunidade Andina, Nafta, União Europeia e Asean. No período, mais de 80% do comércio do País foi feito com nações pertencentes aos cinco blocos. Segundo a análise, os produtos foram divididos em “agrícolas” e “manufaturados”, ou “industrializados”. Os resultados mostram que o custo do comércio dos manufaturados tem diminuído, principalmente, em função da queda das tarifas ao longo do tempo. O mesmo não acontece com os itens agrícolas. De maneira geral, o custo do comércio do Brasil com os países do Mercosul é mais baixo, em função da menor distância entre os integrantes do bloco. Esses valores, porém, aumentaram no período. “Um bloco de integração como o Mercosul, que seria tão importante para o Brasil, tem sido prejudicado por deficiência de infraestrutura, de exigências sanitárias e de fronteiras, além de uma série de outras medidas não tarifárias, inclusive, institucionais e de procedimento alfandegário”, afirma Monteiro. O pesquisador lembra que a Argentina barrava caminhões carregados
com produtos agrícolas brasileiros, na fronteira com o Rio Grande do Sul. A liberação demorava tanto que as remessas eram perdidas. “A perecibilidade das mercadorias fazia com que o custo do comércio com a Argentina fosse maior”, conta.
Custos estruturais
Os 178 países estudados foram divididos em países ricos, de renda média e baixa. “Vimos que o comércio do Brasil com nações de alta renda tem custo menor. Isso ocorre em função da infraestrutura e da tecnologia daqueles países, que facilitam o comércio”, explica o pesquisador. A estrutura também afeta a relação comercial com nações próximas, fronteiriças. “Espera-se que o custo de comércio com esses países seja mais baixo, pois a distância entre eles é menor. Isso, porém, nem sempre é verdadeiro”, esclarece. A pesquisa mostrou que pode ser mais caro comercializar com países da Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru), por exemplo, do que da Europa ou da América do Norte. “Apesar de estarem próximos ao Brasil, tais nações não têm boas estradas ou portos, e acaba sendo mais caro comercializar com eles”, completa Monteiro.
PARTICIPAÇÃO DA FAPEMIG PROJETO: Os custos do comércio internacional brasileiro: trajetória recente e efeitos sobre o crescimento do comércio bilateral COORDENADOR: Orlando Monteiro da Silva INSTITUIÇÃO: Universidade Federal de Viçosa (UFV) CHAMADA: Universal VALOR: R$ 50.400
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HISTÓRIA
O tabagismo no tempo Pesquisa da UFMG apresenta retrospectiva e realiza projeções sobre os efeitos do consumo de cigarros no País Alessandra Ribeiro
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Nos últimos 30 anos, o Brasil assistiu à queda vertiginosa do número de fumantes. Em 1989, a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição – primeiro levantamento a incluir informações sobre o tabagismo no País –, revelou que 34,8% da população adulta brasileira eram fumantes. Entre os homens, o índice chegava a 43,3%, e, no que tange às mulheres, a 27%. Dados mais recentes, apurados em 2013, na Pesquisa Nacional de Saúde, mostram que 14,7% do total da população fumam. O atual percentual é de 18,9% na população masculina e de 11%, na feminina. “O Brasil é referência no que diz respeito ao combate à epidemia do tabagismo. De 1989 a 2013, houve redução de mais de 50% na prevalência. Nos países desenvolvidos, a diminuição foi mais lenta”, observa Cristiano Sathler dos Reis, autor da pesquisa que traça a história do tabagismo no Brasil. Sua tese de doutorado foi defendida, em fevereiro de 2019, junto ao Programa de Pós-graduação em Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Pesquisa publicada na revista PLoS Medicine, em 2012, avaliou o efeito das políticas antitabagistas implementadas no Brasil, entre 1989 e 2010. Os resultados apontam que a medida mais importante para a redução da prevalência do tabagismo foi a política de aumento de impostos (48%), seguida por leis de ambiente livres de fumo (14%), restrições de comercialização (14%), programas de incentivo de cessação (10%), avisos de saúde (8%), campanhas de publicidade e propaganda (6%) e maior restrição ao acesso de tabaco entre os jovens (inferior a 1%).
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As principais fontes de dados consultadas foram a Pesquisa Especial de Tabagismo (2008), incluída na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad); os censos demográficos de 1980, 1991, 2000 e 2010; e estimativas do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, e da Divisão de População da Organização das Nações Unidas. No mesmo ano em que o tabagismo foi incluído, pela primeira vez, numa pesquisa nacional sobre saúde no Brasil, em 1989, também implementou-se o Programa Nacional de Controle do Tabagismo, com adoção de uma série de medidas subsequentes: banimento da propaganda do tabaco em todos os tipos de mídia; criação de mensagens de advertência nas embalagens dos produtos de tabaco; proibição de fumar em lugares fechados; aumento de impostos e preços dos produtos de tabaco, dentre outras. Em março de 2019, o Governo Federal criou um grupo de trabalho, no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para avaliar a possibilidade de diminuir a tributação dos cigarros fabricados no Brasil. Uma das justificativas seria a possível redução do consumo de produtos estrangeiros contrabandeados e de baixa qualidade. Na avaliação do pesquisador, se implementada, tal medida iria “na contramão” dos países desenvolvidos. “As pesquisas que observam os efeitos das políticas públicas de combate ao fumo mostram que o imposto no preço do cigarro influencia a redução da prevalência do tabagismo, e, consequentemente, a mortalidade dos indivíduos nas nações”, destaca. Nos termos usados pela pesquisa de Cristiano Sathler dos Reis, os estudos sobre “a epidemia do tabagismo” começaram com atraso no Brasil, em comparação a outros países. Segundo a retrospectiva traçada por ele, a primeira pesquisa do gênero foi publicada em 1939, na Alemanha, e mostrou que parcela significativa de pessoas com câncer de pulmão (32%) eram usuárias do tabaco. Em 1950, começaram a ser publicados estudos em outros territórios, como Inglaterra e Estados Unidos. “No Brasil, em relação aos países desenvolvidos, a epidemia começou mais tarde. Não tínhamos dados sobre isso”, explica.
A pesquisa
Primeiramente, fez-se a reconstrução da história do tabagismo no Brasil, com base nas seguintes variáveis: coorte, ou seja, grupo de pessoas com uma mesma característica (nascidos entre 1929 e 1983); idade (15 a 79 anos); e período (1948 a 2008). “A pesquisa disponível era a PNAD, de 2008; nela são feitas perguntas sobre o histórico de consumo de tabagismo de cada pessoa. Os mais velhos que captei tinham de 75 a 79 anos. Em 1948, esse grupo etário tinha de 15 a 19 anos”, detalha. Os critérios foram observados entre homens e mulheres, pertencentes a dois grupos de escolaridade: “ensino superior completo e incompleto”, e “sem instrução”. Também foram produzidas estimativas de mortalidade atribuível ao consumo de cigarro no País, para a população adulta, com idade a partir de 35 anos, entre 1980 e 2015. Para tanto, consideraram-se a taxa de mortalidade por câncer de pulmão e as estimativas do risco relativo de morte de fumantes em comparação ao de não fumantes. Com base nessas informações, pôde-se realizar projeção dos efeitos do tabagismo sobre a mortalidade brasileira até 2030.
Sexo e cigarro
A história do tabagismo no Brasil mostra que o padrão de consumo do cigarro é diferente entre os sexos. Independentemente da idade e do período analisado, a prevalência do hábito de fumar é superior na população
masculina. Comparativamente, observou-se atraso de pelo menos 15 anos na propagação da epidemia entre as mulheres. A tendência não é uma particularidade brasileira: também se observou maior consumo de tabaco entre os homens, ao longo do tempo, em países como Alemanha, Espanha, EUA e Japão, o que se explica por motivos socioculturais. Estudos citados na pesquisa atribuem o menor consumo de tabaco entre as mulheres à desaprovação social e ao status socioeconômico mais baixo. Nos Estados Unidos, mais de 50% da população jovem masculina fumou cigarros em 1920, enquanto, entre as mulheres, as maiores prevalências foram atingidas em 1950. Na Itália, o crescimento da prevalência revelou-se significativo entre nascidas a partir de 1960. O pico da prevalência do tabagismo no Brasil se deu entre homens com menor escolaridade, na faixa etária de 30 a 34 anos, em 1963 – 68,4% eram fumantes. No caso das mulheres brasileiras, o ápice ocorreu entre aquelas que tinham de 25 a 29 anos, em 1988 – 40,6% fumavam. No período de 1980 a 2015, o tabagismo foi responsável por 6,5 milhões de mortes no País: 4,7 milhões entre os homens e 1,8 milhão entre as mulheres. Segundo as projeções realizadas por Cristiano Sathler dos Reis, para o período de 2015 a 2030, se excluída a mortalidade atribuível ao tabagismo, a expectativa de vida adulta é maior em relação à do total da população em todo o período analisado.
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Para os homens, os ganhos seriam de 3,9 anos, para o conjunto de todas as causas, e de 1,1 anos, excluída a mortalidade atribuível ao tabagismo. Os ganhos na expectativa de vida entre as mulheres seriam, respectivamente, de 1,9 anos e 1,6 anos.
a idade fértil (dos 15 aos 39 anos), aquelas que desejam engravidar podem ter motivações mais fortes para evitar o consumo do tabaco em relação aos homens.
Melhor saber
A escolaridade é outro fator com forte influência no consumo do tabaco, especialmente para os homens, em todas faixas etárias analisadas: indivíduos menos escolarizados tendem a fumar mais. Entre as mulheres, a relação se revelou mais fraca, sobretudo, entre as nascidas de 1934 a 1948 (subdivididas em coortes de quatro anos), e de 1954 a 1958. Embora a tese não seja conclusiva sobre a associação entre nível educacional e tabagismo, há indícios de que o acesso à informação, sobre os efeitos nocivos do vício para a saúde, seja uma variável importante. Um modelo de evolução da epidemia do tabaco na Europa, por exemplo, usado como referência para a tese de Reis, mostra a introdução do hábito de fumar, primeiramente, entre médicos, em razão da maior renda disponível. No entanto, à medida que os riscos do tabaco tornaram-se conhecidos, os mesmos profissionais foram os primeiros a reduzir o consumo. O comportamento se repete na população em geral, quando as pessoas começam a se conscientizar acerca dos malefícios do tabagismo. Outro estudo demonstra que a iniciação ao hábito de fumar na adolescência está relacionada à falta de compreensão mais apurada sobre os riscos associados ao consumo do tabaco. A iniciação é crescente nesse período da vida, e rara em idades mais avançadas, quando a cessação torna-se mais comum. “Os jovens estão na fase de iniciação ao tabagismo. Os primeiros grupos etários que começam a fumar vão dos 15 aos 24 anos. É muito raro que pessoas depois dos 30 anos comecem a fumar”, observa o pesquisador. Há evidências científicas de que a idade tem influência sobre o hábito do tabagismo, associada a processos biológicos e sociais de envelhecimento dos indivíduos. Isso se aplica, por exemplo, no início da fase adulta das mulheres. Durante
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s da PesEstudo realizado em 2016, a partir dos dado 2008, Pnad na ída quisa Especial de Tabagismo, inclu e irs mãe , mostra que as influências familiares (pais rtanimpo mãos) sobre a iniciação do tabagismo são com o sexo tes. Os efeitos parentais variam de acordo r influência de pais e filhos. As mães exercem maio os filhos. A sobre as filhas, enquanto os pais, sobre tem mais nto, enta no s), relação entre irmãos (e irmã os joentre o gism taba importância para a iniciação do o, etud sobr – s filho vens do que a relação entre pais e entre pares de irmãos do mesmo sexo.
MEDICINA
Mensageiros do fim
Estudo desenvolvido por pesquisadora da Fiocruz-MG mostra que, apesar de frequente nos hospitais de emergência, a morte se revela um tabu até mesmo para os médicos Mariana Alencar
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A finitude da existência é uma das poucas certezas da humanidade. A emoção relacionada à morte, entretanto, apresenta-se como fenômeno subjetivo, atrelado a contextos socio-históricos. Ou seja, muitos não sabem lidar com “o fim”, mesmo cientes de sua inevitabilidade. Tal dificuldade, aliás, não é problema exclusivo de quem perde entes queridos. O dilema atinge, também, a comunidade médica, cujo propósito reside nos cuidados com a vida humana e a quem cabe o difícil papel de comunicar, a familiares e amigos, as piores notícias. Nos hospitais de emergência, por exemplo, embora a morte seja um evento frequente, devido à gravidade dos casos atendidos, os médicos percebem a vivência de comunicá-la como uma das mais árduas tarefas de seu fazer profissional. Isso acontece porque a função vem acompanhada por dificuldades culturais, éticas, políticas, ambiguidades e falta de preparo com o tema. Tal dificuldade cotidiana da comunidade médica inspirou a psicóloga Gislaine Alves de Souza, doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou – Fiocruz Minas, a desenvolver a dissertação de mestrado “Comunicar a morte em um hospital de emergência: a significação da experiência na percepção do médico”. Com especialização em programa de residência integrada multiprofissional em Saúde do Idoso, a maior parte de sua carga horária deu-se na assistência hospitalar. “No mestrado, elegi como proposta aprimorar e aprofundar os estudos sobre a comunicação da morte em um hospital de emergência. Devido ao impacto do fenômeno nos envolvidos, e às implicações no cotidiano da assistência à saúde, interessei-me por discutir a temática”, explica.
Análise de dados Além de inquirir o modo como os médicos lidam com a necessidade de comunicar o falecimento de pacientes às famílias, a pesquisa buscou compreender as relações do médico com os limites entre vida e morte. O estudo de Gislaine de
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Souza, afinal, integrou projeto mais amplo da Fiocruz, intitulado “Vidas em risco: uma abordagem antropológica sobre as representações da morte entre médicos que trabalham em setores de urgência”. Dessa forma, o primeiro passo da investigação foi a coleta de dados, por meio da etnografia, realizada pela antropóloga Janaína de Souza Aredes. Durante nove meses, ela entrevistou e acompanhou 43 médicos que atuavam junto a pacientes graves, com risco de morte em um hospital de pronto-socorro, referência em trauma na América Latina, localizado no hipercentro de Belo Horizonte, Minas Gerais. “Com o intuito de compreender o contexto em que os dados da etnografia foram coletados e produzidos, também realizei visita técnica ao hospital. Após a leitura exaustiva das entrevistas e do diário de campo, iniciei a categorização dos dados de interesse para o estudo, assim como as análises. A pesquisa foi desenvolvida segundo a abordagem qualitativa guiada pela Antropologia Interpretativa”, detalha Gislaine de Souza. A análise dos dados coletados mostrou que a relação com a família, usualmente, é rápida e impessoal. Além disso, a comunicação ocorre sem conversas prévias, de maneira a conciliar a atenção aos parentes à própria dinâmica das emergências. Observou-se que, mesmo com a existência de diretrizes que apontam formas de comunicar a morte, os médicos anunciam o falecimento de modo indireto, com uso de eufemismos e metáforas por veem a morte como tabu e fracasso. Em outros termos, eles fazem uso de mecanismos defensivos, enfatizam a gravidade clínica e informam, progressivamente, sobre o agravamento do quadro, para que a morte seja aguardada pela família e se encaixe na rotina da emergência. “Trata-se de comunicação pensada nos moldes do modelo informacional, mas que, na prática, é dinâmica e traz à tona significados envoltos por aspectos afetivos e socioculturais. Via de regra, a morte é interpretada
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como adversidade: o pior desfecho, a má notícia”, comenta.
Falar X Agir A pesquisadora relata, ainda, que, no contexto do hospital de emergência, a cultura institucional predominante é intervencionista, ancorada no paradigma biomédico. Cabe ao profissional da saúde lutar contra a morte e silenciar suas emoções diante dos familiares e dos colegas. “O médico vivencia reações e emoções por ser o portador ‘oficial’ da comunicação da morte. E, embora tente lidar com ela de modo a não afetar sua vida pessoal, interage com o familiar que sofre, é tocado pela reação do outro e lida com suas limitações, confrontando-se com o sofrimento próprio e alheio”, reflete Souza. O estudo constatou que os signos e os significados correlacionados ao paradigma biomédico apresentam a morte como tabu ou fracasso, enquanto, em suas ações, o fim e a interação intersubjetiva revelam-se terreno obrigatório de emoções – as quais, por vezes, são escondidas pelo profissional. Isso porque a forma de pensar e agir, conforme cultuada em um hospital de emergência, deixa transparecer que, na comunicação da morte, não está em jogo a naturalidade da finitude dos seres vivos, mas a impossibilidade médica de salvar o paciente, além da subjetividade de todos os envolvidos. Dentre os resultados da pesquisa, o que mais surpreendeu Gislaine Alves de Souza foi a contradição entre a fala e a ação dos médicos. Ela conta que, mesmo que
Método de investigação, por excelência, da Antropologia. De ampla abrangência, une técnicas de coleta de dados e incorpora, na análise, elementos observados e obtidos no campo. Na Saúde Coletiva, o mecanismo auxilia a compreensão das ações de profissionais e pacientes, a partir do contexto em que estão inseridos.
alguns deles aleguem não ter dificuldades de comunicar a morte, de modo contrário, na ação de comunicar a morte evidenciam que o processo não é fácil. Os médicos, ainda que se demostrem frios, interpretam esse posicionamento como máscara para não interagir com o familiar que sofre, administrar seus afetos e minimizar a sobrecarga emocional de sua profissão. Acabam por se emocionar escondido no hospital, em outros ambientes e durante as entrevistas. Os setores de urgência e emergência hospitalar configuram-se como lugares onde se luta pela vida. Além disso, comunicar é uma prática social: “Existem construções sociais sobre a morte que impossibilitam a neutralidade do fenômeno. As dificuldades estão envoltas por questões que não se referem às informações técnicas e ao repasse da notificação do óbito biológico, mas a ações que agregam aspectos humanos, intersubjetivos, psicossociais e culturais. Inicialmente, as perspectivas de interpretação dos médicos do hospital me eram distantes, mas a abordagem etnográfica do ofício me possibilitou compreender que existe diferença entre ‘o que dizem e o que fazem’”, alega. A pesquisadora conta que um novo artigo está em desenvolvimento. Nele, serão analisados os elementos que influenciam a comunicação da morte, em um hospital de emergência, conforme as características do paciente, a circunstância da ocorrência, o contexto de cuidados, a religião, o preparo para o fim e a formação médica. Outra ação resultante do estudo será a devolutiva aos participantes: “Considero que as dificuldades com a morte, em cascata, influenciam as habilidades interpessoais e comunicacionais, assim como o próprio cuidado”, conclui Souza.
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FÍSICA
Cem anos atrás, Sobral, no Ceará, foi palco de expedição que revolucionou a ciência moderna Luiza Lages
O que um eclipse tem a ver com a Teoria Geral da Relatividade?
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Há exatos 100 anos, um eclipse solar levou o Brasil ao centro de uma observação astronômica que impactou a história da ciência. Em maio de 1919, dois astrônomos ingleses chefiaram uma expedição científica em Sobral, no Ceará. A missão era fornecer dados para comprovar a Teoria Geral da Relatividade, publicada, em 1915, por Albert Einstein. Nela, o físico alemão lida com a gravidade e argumenta que tal fenômeno é provocado pela deformação do espaço e do tempo nas proximidades de um objeto material.
“Uma das previsões da teoria é que a luz de uma estrela distante, quando passasse próxima a um corpo de grande massa, sofreria curvatura em sua trajetória”, diz Domingos Savio de Lima Soares, professor do departamento de Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma das formas de comprovar a curvatura provocada pela gravidade seria observar o céu em um eclipse solar total. Durante o eclipse, a lua bloqueia o Sol. A “noite” em pleno dia permite aos cientistas medir as posições relativas das estrelas cujos raios luminosos passam nas imediações do Sol. Ao comparar com medições feitas durante a noite, seria possível verificar se essas estrelas apresentam o deslocamento aparente previsto por Einstein, provocado pela massa do Sol.
A faixa do Eclipse
No dia 29 de maio de 1919, um eclipse total do Sol aconteceu e foi visível em faixa que incluía todo o Nordeste brasileiro e parte do continente africano. Arthur Eddington, influente astrônomo inglês, organizou duas expedições científicas para observação do eclipse: uma no Brasil; a outra, na Ilha do Príncipe, na costa ocidental da África. Os astrônomos Andrew Crommelin e Charles Davidson chefiaram a expedição em Sobral, município recomendado, aos ingleses, por astrônomos do Observatório Nacional do Rio de Janeiro. Além de estar localizada na região onde seria visível o eclipse, a cidade fica próxima a Fortaleza, o que facilitaria a comunicação e o transporte de equipamentos.
Por que Sobral? A expedição em Sobral A equipe de astrônomos ingleses trouxe dois instrumentos para realizar as medições: uma câmera astrográfica, de Greenwich, e um telescópio irlandês, com lente de dez centímetros de diâmetro. Os astrônomos fizeram as medidas durante o eclipse, ao meio dia.
(Um mês depois...) Depois de pouco mais de um mês, os ingleses retornaram a Sobral e fizeram novas medições das estrelas, à noite. Com uma média das marcações obtidas em Sobral e na Ilha do Príncipe, a equipe anunciou ter comprovado a Teoria da Geral da Relatividade.
Incerteza Os resultados obtidos em Sobral foram, e ainda são, alvo de críticas. “Não havia condições técnicas para obter a medida do deslocamento das estrelas com a precisão necessária”, critica Soares, ao explicar que, devido a problemas com equipamentos, à dificuldade de controlar condições externas e à tecnologia disponível, seria muito difícil, à época, obter o nível de certeza necessário à comprovação do deslocamento estelar.
Evidências da curvatura espaço-tempo Segundo Domingos Soares, outros experimentos confirmaram a teoria de Einstein. “Posteriormente, comprovou-se a deflexão não da luz visível, mas de ondas de rádio”, conta. Ondas emitidas por quasares, objetos distantes no Universo, também defletem ao passar pelo Sol. Hoje, o desvio luminoso é observado em inúmeras fotografias dos telescópios orbitais, como o Hubble, nos chamados efeitos de lentes gravitacionais. MINAS FAZ CIÊNCIA • SET/OUT/NOV 2019
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EDUCAÇÃO
Educar pela ciência Laboratórios da UFMG buscam ampliar conexão com as escolas públicas e privadas Lorena Tárcia
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Serviços personalizados, bilíngues, com equipes de professores doutores qualificados e disponíveis a atuar em parceria com as escolas de Belo Horizonte – e, até mesmo, do exterior. Eis alguns dos diferenciais de três laboratórios integrantes do Programa Outlab, parceria da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) com a Pró-Reitoria de Pesquisa da UFMG (PRPq/UFMG), com vistas a estreitar as relações entre a classe científica, o ecossistema de inovação e a sociedade. Segundo o pró-reitor de pesquisa da UFMG, professor Mario Fernando Montenegro Campos, os resultados das pesquisas têm grande potencial. “A Universidade conta com ampla e diversa infraestrutura laboratorial, por meio da qual são conduzidas pesquisas na fronteira do conhecimento. Resultados dessas investigações científicas, frequentemente, apresentam grande potencial de se tornar produtos ou serviços inovadores, e com expressivo impacto social”, explica. Dentre os 25 laboratórios selecionados para a primeira etapa do programa, três se dedicam a ampliar as conexões com escolas, e a trabalhar a inovação nos processos de ensino e aprendizagem. O projeto “Science School”, proposta coordenada pelas professoras Sílvia Guatimosim e Maristela Poletini, atua com escolas de Belo Horizonte desde 2015. “Iniciamos tudo de forma tímida, sob o nome ‘Educa com ciência’, uma forma de dar oportunidade para que alunos de pós-graduação exercessem a docência e a divulgação científica, no ambiente da educação básica”, conta Poletini. A equipe interdisciplinar identificou fragilidades no ensino de ciências no ensino básico e, a partir daí, oferece soluções criativas para que as escolas melhorem seu desempenho. Alunos entediados, falta de fôlego dos professores em ampliar o escopo de atividades e e estrutura laboratorial precária são itens presentes no diagnóstico do estudo, que reflete a realidade de boa parte das escolas de Minas e do Brasil. Como consequência, dados do
Pisa, prova realizada em 70 países, põem o País na 63º posição no que se refere ao ensino de Ciências. A solução proposta pelo “Science School” envolve práticas científicas para aprendizagem ativa, interessante e engajadora, a partir de espaço físico adequado e insumos laboratoriais diferenciados. As imersões dos estudantes nestes ambientes podem acontecer na própria escola, na UFMG, ou de forma híbrida. Também existe a possibilidade de oficinas de férias, no formato summer school, e cursos de atualização em ensino de ciências para os professores. “A proposta vai além da interface da UFMG com a educação básica. Nosso desafio é possibilitar a imersão do estudante na ciência realizada na Universidade, em viés de divulgação científica”, pontua Marina Poletini, ao destacar tal ponto como importante diferencial.
Interação
Outro laboratório dedicado à conexão entre universidade e ensino básico é o Núcleo de Educação e Comunicação em Ciências da Vida (Neducom), do Instituto de Ciências Biológicas (ICB). Por meio do projeto “Interagir”, a equipe de professores e alunos oferece às escolas parceria para capacitação de educadores e educandos no âmbito da saúde. Oficinas destinadas aos estudantes abordam quinze temáticas, como drogas, educação sexual e viagem ao corpo humano. Já a formação de professores passa por oito assuntos, dentre os quais, depressão, ansiedade e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). As interações integram ações teórico-práticas, com uso de jogos, dinâmicas e equipamentos médicos. Ao lidar com peças anatômicas reais, ou, até mesmo, cadáveres, o projeto também pretende contribuir com o despertar vocacional dos estudantes. “Trabalhamos com objetos educacionais disponíveis somente em universidades”, destaca a coordenadora, Rafaellla Cardoso Ribeiro. Além disso, “o contato com os monitores de diversos cursos da área da saúde facilita o engajamento dos estudantes, que, muitas vezes, deixam de fazer determina-
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dos tipos de questionamento a seus professores, principalmente, sobre assuntos relacionados à educação sexual”, pontua. A equipe multidisciplinar do laboratório é formada por professores doutores das áreas de Anatomia, Genética, Fisiologia e Histologia. Com abordagem ampliada, o Laboratório de Conexões Intermídia (Labcon), da Faculdade de Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, trabalha a interface entre comunicação e educação, na construção de narrativas em múltiplas plataformas, capazes de incorporar, à didática e aos projetos pedagógicos, as habilidades midiáticas características dos jovens estudantes do ensino médio. Por meio de metodologia própria, dentro de dinâmicas conhecidas como transmidiáticas, o projeto Transmedia Education desenvolve de materiais didáticos diferenciados a projetos de imersão nas escolas, para construção coletiva de soluções
de aprendizagem diferenciadas, conectadas aos anseios de alunos e professores. A coordenadora, professora Geane Alzamora, considera esta conexão uma importante maneira de ampliar as relações entre a academia e a população. “A universidade pode contribuir muito com o processo de ensino e aprendizagem, nas dimensões social, cultural e política, pois, nelas, são desenvolvidas pesquisas de ponta em áreas de interesse das escolas, e não apenas do ponto de vista da didática, mas, também, da socialização”, destaca. No caso do Labcon, as pesquisas enfatizam a visão crítica dos estudantes em relação àquilo que consomem nos meios de comunicação de massa. “O que nos mobiliza é compreender o consumo midiático estudantil fora da sala de aula, e como este hábito pode ser aproveitado nos processos escolares”, ressalta Alzamora.
Desafios
Para o pesquisador e professor Alfredo Gontijo de Oliveira, presidente da Fundep, “transformar as pesquisas científicas em produtos comercializáveis é um processo longo, que envolve diversas etapas e muitos riscos”. O programa Outlab, segundo ele, foi idealizado a partir da identificação de entraves nessa fase de transformação, com a proposta de ajudar a capacitar os laboratórios da UFMG no processo de aproximação com o setor empresarial. A maior dificuldade dos três laboratórios, ao se avizinhar do mercado, segundo as coordenadoras, está na conexão com as escolas privadas. Ou seja, a identificação e a captação de possíveis parceiros. “Vimos, no Outlab, uma oportunidade para profissionalizar nosso trabalho, de forma mais efetiva, neste sentido”, conclui Maristela Poletini.
Para saber mais Outlab: www.programaoutlab.com.br Contatos com os laboratórios: Science School: scienceschool.ufmg@gmail.com Interagir: interagir.ufmg@gmail.com Transmedia Education: transmediaeducationufmg@gmail.com
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DEMOGRAFIA
Pelo direito de decidir Relatório do Fundo de População da ONU revela que milhões de mulheres ainda não têm autonomia sobre sua fecundidade Alessandra Ribeiro
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Em 1969, as mulheres tinham, em média, 4,8 filhos. Dentre as casadas, apenas 24% usavam algum método contraceptivo para retardar ou evitar a gravidez. Nos países menos desenvolvidos, onde somente 2% usavam algum método contraceptivo, o número de filhos por mulher chegava a 6,8. Naquela época, o movimento de emancipação feminina lutava por igualdade de acesso à educação, de oportunidades de emprego e de remuneração, pelo direito ao divórcio e, até mesmo, à propriedade de imóveis. Passados 50 anos, a liberdade e os direitos reprodutivos tornaram-se realidade para muitas mulheres. Ao mesmo tempo, em relação a outras, persistem desafios que impedem o exercício pleno desses direitos. Centenas de milhões ainda enfrentam barreiras econômicas, sociais, institucionais, dentre outras, que as impedem de tomar suas próprias decisões sobre quando, com que frequência e de quem engravidar. Esta é a principal constatação do “Relatório sobre a situação da população
Casamento infantil: estima-se que 800 milhões de mulheres vivas, hoje, casaram-se quando eram crianças.
mundial 2019: um trabalho inacabado”, documento publicado anualmente, desde 1978, pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, na sigla em inglês). Oficial de programa para População e Desenvolvimento do Fundo de População da ONU no Brasil, Vinícius Monteiro, mestre em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, justifica o subtítulo da publicação. “Metas estabelecidas pela comunidade internacional, há 25 anos, ainda não foram completamente cumpridas. O relatório destaca, por exemplo, que mais de 200 milhões de mulheres querem evitar a gravidez, mas ainda enfrentam barreiras para concretizar esse desejo por meio de métodos contraceptivos”, diz.
Vinícius Monteiro se refere ao plano elaborado com a participação de 179 países, em 1994, no Cairo, durante a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. As metas previam o desenvolvimento sustentável baseado nos direitos, nas escolhas individuais e na conquista da saúde sexual e reprodutiva para todos. Em 2016, com a inclusão do acesso universal ao atendimento e aos serviços de saúde sexual e reprodutiva na “Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável”, novos objetivos foram traçados: zerar as mortes maternas evitáveis e os índices de violência ou prática nociva contra mulheres e meninas, além do atendimento a 100% das demandas de contracepção.
Métodos anticoncepcionais
No Brasil, a população saltou de 92,9 milhões, em 1969, para 212,4 milhões em 2019, segundo dados do Fundo de População da ONU. Neste período, a taxa de fecundidade (estimativa de filhos por mulher) caiu de 5,2 para 1,7 – abaixo da
Marcos para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres
1970
1971
Conselho de População da ONU estabelece o Comitê Internacional para a Pesquisa em Contracepção
1973
1975
1979
Legalização do aborto nos Estados Unidos Abertura da Década das Mulheres, instituída pela ONU
1984 Primeira transferência de embrião de uma mulher a outra resulta em um nascimento vivo
Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres (Cedaw) é adotada O Dispositivo Intrauterino (DIU) Dalkon Shields entra no mercado
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média global, de 2,5 filhos. “A taxa de fecundidade do Brasil, hoje, está abaixo do que chamamos de nível de reposição, de 2,1 filhos por mulher. Se a média for mantida ao longo do tempo, a tendência é que a população se estabilize, pare de crescer. Abaixo disso, há tendência de declínio, em médio e longo prazos”, explica o demógrafo do UNFPA. Hoje, 77% das brasileiras casadas, ou em qualquer tipo de união, na faixa etária dos 15 aos 49 anos – a chamada idade reprodutiva –, usam algum método contraceptivo moderno (esterilização, DIU ou pílula) para retardar ou evitar a gravidez. O percentual supera os índices de contracepção em nível mundial (58%) e na América Latina (70%). “Isso representa avanços que o Brasil conquistou nas últimas décadas, principalmente, com o Sistema Único de Saúde, o SUS, que oferece oito tipos de métodos contraceptivos à mulheres que desejam evitar a gravidez”, analisa Monteiro. A adesão aos chamados contraceptivos modernos só é maior na China (82%), no Reino Unido (79%) e na Finlândia
1985 1986
(78%). Costa Rica e Nicarágua apresentaram índices semelhantes ao brasileiro (77%). O relatório do UNFPA destaca que as taxas de prevalência de contraceptivos são, geralmente, mais baixas entre os 20% mais pobres da população, e mais altas entre os 20% mais ricos. No caso do Brasil, apesar do índice elevado, há fortes diferenças regionais, também influenciadas por fatores como raça, cor, idade, nível socioeconômico e escolaridade. “Observamos que, no meio urbano, as mulheres têm número de filhos mais próximo ao que gostariam de ter, enquanto, no ambiente rural, não conseguem controlar sua fecundidade da maneira que gostariam”, compara.
Aborto
Segundo o relatório do Fundo de População da ONU, 42% das mulheres em idade reprodutiva vivem nos 125 países onde o acesso ao aborto seguro é altamente restrito. No entanto, os dados sugerem que a frequência da prática não é significativamente impactada por restrições legais: as taxas em nações com leis restritivas
1987
África do Sul retira o banimento a casamentos inter-raciais
1995
1997
4ª Conferência Mundial das Nações Unidas Sobre Mulheres
Primeira criança nascida de uma mãe de aluguel sem relação com os pais
aproximam-se das registradas naquelas com legislação mais permissiva. A diferença é que, quanto mais restritivo o contexto legal, maior a proporção de abortos inseguros, que varia de menos de 1% (nos países menos restritivos) a 31% (mais restritivos). Em todo o mundo, apenas 55% dos abortos são seguros e contam com método recomendado, administrado por profissional capacitado. Vinícius Monteiro lembra que a questão foi tratada na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, em 1994. À época, os países concordaram que, em nenhuma hipótese, o aborto poderia ser promovido a método de planejamento familiar. Os países, porém, teriam autonomia para decidir em que situações ele seria legalizado ou não. “A prevenção da gravidez indesejada deve ser sempre tratada como prioridade pelos países, para evitar a necessidade de aborto. Independentemente da causa, nos casos em que isso acontecer, é necessário fornecer apoio amplo, além de todo o acesso aos serviços de saúde”, esclarece.
2007 UNFPA lança Programa Global de Insumos para a Saúde Reprodutiva
Divórcio é legalizado na República da Irlanda
Lançamento da Iniciativa Maternidade Segura
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Gravidez na adolescência Outro dado que chama a atenção refere-se à gravidez precoce. No mundo, o número de filhos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos chega a 44. Entre as brasileiras, são 62, mesmo número apurado entre as jovens latino-americanas. “Apesar de ter reduzido a taxa de fecundidade, a gravidez na adolescência é um desafio muito significativo, no caso do Brasil, e na América Latina, como um todo”, aponta Monteiro. O relatório revela que, apesar da ampla evidência de que muitos adolescentes não casados são sexualmente ativos, normas sociais e, até mesmo, impedimentos legais podem limitar ou proibir discussões sobre saúde sexual e reprodutiva, ou acerca de sexualidade entre os jovens. Em 2017, 68 dos 108 países que enviaram dados ao Programa Conjunto das Nações Unidas
2009
2012
Pílula do dia seguinte é aprovada pelo órgão americano Food and Drug Administration (FDA) para uso por adolescentes de 17 anos
2013
2016
Assembleia Geral da ONU adota resolução sobre a prevenção à mutilação genital feminina
Comissão da ONU sobre o Status de Mulheres exige que os estados ponham fim à prática de casamento infantil, precoce e forçado
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sobre HIV/AIDS (Unaids) indicaram a exigência de consentimento dos pais para que menores de 18 anos possam acessar serviços de saúde sexual e reprodutiva. Mesmo quando o objetivo da legislação é proteger os menores, isso pode desencorajar adolescentes a buscar apoio profissional especializado. As jovens são as principais afetadas, já que sofrem as consequências sociais e físicas de uma gravidez não intencional. “É necessário avançar nas causas que chamamos de ‘determinantes indiretos’. Tudo se relaciona ao serviço de saúde e à informação, mas, também, a questões de gênero. Muitas vezes, a adolescente tem acesso à camisinha, e sabe da importância do preservativo, mas, na hora da relação sexual, não consegue negociar com o parceiro. É necessário trabalhar o empoderamento da mulher e o conhecimento dos homens, para que haja impacto nos indicadores”, destaca o pesquisador.
2017 Milhões de pessoas em 168 países unem-se à Marcha das Mulheres
Acesso universal ao atendimento e aos serviços de saúde sexual e reprodutiva é incluído nas Metas de Desenvolvimento Sustentável
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Do controle à saúde O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) foi criado em 1969, quando a população mundial alcançou a marca de 3,6 bilhões de habitantes. O número representava um aumento de cerca de 1 bilhão de habitantes, em apenas 17 anos. A preocupação era que o crescimento populacional prejudicasse o progresso econômico e o meio ambiente. O Fundo passou a apoiar programas nacionais de população, que distribuía contraceptivos em escala sem precedentes. Isso acabou por estimular políticas de controle populacional nas décadas de 1970 e 1980. Com financiamento e incentivo de países doadores e fundações, alguns países implementaram programas que coagiam ou forçavam casais a usar contraceptivos ou a limitar o tamanho de suas famílias – inclusive, com incentivos financeiros. Anos mais tarde, com a pressão de movimentos feministas e defensores da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, houve mudança de paradigma. O foco, antes voltado a questões populacionais e à redução da fecundidade, passou a ser os direitos dos indivíduos e dos casais de prevenir ou retardar a gravidez, além de alcançar a saúde sexual e reprodutiva. Para além dos métodos contraceptivos, a saúde e o bem-estar sexual e reprodutivo das mulheres passaram a englobar outros fatores, como a capacidade de prevenir e administrar complicações do aborto inseguro; sua capacidade de evitar ou tratar infecções sexualmente transmissíveis, o que inclui o HIV; e os cuidados que recebem durante a gestação e o parto. A prevenção e o manejo da infertilidade e do câncer ginecológico também foram definidos como partes da saúde sexual e reprodutiva feminina.
SAÚDE MENTAL
A falta castiga,
o excesso destrói Estudo busca avaliar como inundações e secas impactam a saúde mental de crianças e adolescentes Mariana Alencar
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Na literatura acadêmica, a estimativa é de que, em média, ocorra, a cada dia, um desastre ambiental – que pode ser definido como evento imprevisível, capaz de causar danos enormes, como destruição e sofrimento humano. De modo específico, as tragédias naturais são provocadas por desequilíbrios da natureza, sem atuação humana, embora possam ser potencializados por ela. Ao redor do Planeta, ano após ano, é possível notar aumento de tais catástrofes, principalmente, relacionadas ao desequilíbrio climático, a exemplo de tempestades, ciclones e temperaturas excessivas. No Brasil, as secas e as inundações são os desastres naturais mais frequentes. De acordo com a Agência Nacional das Águas (ANA), só em 2017, ao menos 40 milhões de brasileiros foram atingidos por um dos dois fenômenos. Dentre os impactos das tragédias na sociedade, destacam-se problemas à saúde mental dos atingidos, efeitos, por vezes, maiores que os danos físicos. Ainda que as vítimas consigam se recuperar ao longo do tempo, muitos passam a apresentar queixas diagnósticas como “transtornos mentais”. Diante deste cenário, Sabrina de Sousa Magalhães investiu no trabalho “Desastres decorrentes de eventos climáticos extremos: impacto na saúde mental e acompanhamento prospectivo de sintomas em crianças e adolescentes”, tese de doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Medicina Molecular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O principal objetivo da investigação foi avaliar a saúde mental de indivíduos entre 6 e 18 anos, expostos à seca e às inundações. “A pesquisa teve caráter exploratório. No contexto de mudanças climáticas, queríamos ver como isso se dava no Brasil, em relação, principalmente, a um público pouco estudado: as crianças”, conta Magalhães. A escolha de trabalhar com os pequenos e pequenas, além dos jovens, foi influenciada, justamente, pela escassez de estudos similares. Além disso, crianças e adolescentes são mais vulneráveis do que os adultos aos impactos de estressores ambientais. Outros trabalhos já mostraram que a vivência de tais desastres, durante
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a infância, afeta a pessoa de forma significativa. Os sintomas de ansiedade podem acompanhar a vítima até a vida adulta. Daí a importância da pesquisa no auxílio precoce a problemas que podem surgir mais tarde. Outro elemento que motivou Sabrina Magalhães diz respeito ao caráter multidisciplinar do estudo, e à convergência com sua trajetória acadêmica. “Ainda na graduação, fiz iniciação cientifica na área de Neuropsicologia do envelhecimento, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Depois me formei em Psicologia, e fiz mestrado na área. À época, tive contato com um professor da UFMG, que me incentivou a fazer o doutorado”, conta. Na Universidade mineira, já existia um projeto, coordenado por Marco Aurélio Romano-Silva, que precisava de alguém que o levasse adiante. “Por conta do caráter interdisciplinar da proposta, senti-me confortável em assumir o desafio. Trata-se, portanto, de trabalho que aborda aspectos da Medicina, Psicologia e da Geografia, além de contar com grande aplicabilidade social”, frisa a pesquisadora.
Região Norte
O primeiro passo para realização da pesquisa referiu-se à escolha dos locais de ação. Cogitaram-se São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, mas foi na capital do Acre que Magalhães e sua equipe encontraram as condições ideais para entrevistar crianças e adolescentes expostas às inundações. Por se situar no Norte do País, Rio Branco apresenta clima equatorial chuvoso. Isso significa que, por ali, praticamente não há estação seca. Além disso, trata-se de área com maior nível pluviométrico anual da nação. No que diz respeito à seca, o local escolhido foi o Norte de Minas Gerais, ou, mais especificamente, a cidade de Francisco Sá. A região apresenta clima semiárido, com baixas taxas pluviométricas. Diferentemente das inundações, a aridez foi considerada, na pesquisa, como desastre ambiental crônico, pois a população está constantemente exposta a ela. Todos os jovens que participaram do estudo foram recrutados em escolas públicas, a partir do seguinte critério de
inclusão: ter entre 6 e 18 anos; estar matriculado em escola da região; ter autorização do responsável e interesse próprio em participar da pesquisa. “O primeiro contato com os jovens foi via Secretaria Municipal de Educação ou da Saúde. Depois de realizado o convite, deslocamo-nos para os locais, em equipe com três ou quatro pessoas. Com todos os documentos de autorização e assentimento assinados, entrevistamos, primeiramente, os pais e, em seguida, os jovens”, conta a pesquisadora.
Métodos adaptados
Para a realização das entrevistas, recorreu-se a dois instrumentos comuns da Psicologia: o questionário chamado “Inventário de comportamentos da infância e da adolescência”, respondido por pais ou responsáveis pelos jovens; e a escala “Children Revised Impact of Event Scale (Cries)”, que avalia os sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em crianças e adolescentes. O TEPT ocorre quando uma pessoa é exposta a episódio concreto de ameaça de morte, lesão grave, ou, ainda, ao testemunhar acontecimento traumático com outros indivíduos. Tais quadros impactam diretamente no funcionamento social e educacional das vítimas. Alterações de humor, intrusão de lembranças angustiantes e fuga de estímulos que remetem ao episódio traumático são sintomas comuns nos casos ligados ao Transtorno. Para a pesquisa, foi necessário, ainda, que Magalhães e sua equipe adaptassem a escala Cries para a realidade da população infantil brasileira. Feito isso, o contato com os jovens permitiu que os pesquisadores extraíssem o máximo de informações, para que a saúde mental fosse precisamente avaliada, sob vários aspectos. “A partir do contato com as crianças e os adolescentes, avaliamos dados de saúde mental, variáveis cognitivas, como inteligência, atenção e memória, e realizamos tarefas qualitativas, para ver como elas vivenciaram os desastres. Também realizamos a coleta de materiais biológicos, como sangue e cabelo. Isso tudo para que a saúde mental pudesse ser analisada sob
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diversos âmbitos: molecular, comportamental e cognitivo”, detalha.
Surpresas Os primeiros resultados apresentaram discrepância entre relatos dos pais e dos jovens. Segundo a pesquisadora, os depoimentos das crianças e dos adolescentes foram mais efetivos para a avaliação do que o comportamento relatado pelos responsáveis. A partir da coleta dos dados, observou-se que a maioria das crianças, tanto aquelas expostas a inundações quanto as que vivem em condições de seca, não desenvolveram o TEPT. A pesquisa, entretanto, mostrou que alguns dos sintomas relatados podem ser relevantes para o funcionamento social e educacional dos indivíduos. Após a realização da primeira coleta de dados, os pesquisadores realizaram o acompanhamento prospectivo dos jovens que participaram da pesquisa. Para o grupo da inundação, os questionários foram aplicados 14 meses após a primeira entrevista. Em relação ao da seca, o novo contato foi feito depois de 17 meses.
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Na inundação, 57,4% das crianças e 94,7% dos adolescentes foram rastreados positivamente para TEPT. Já na seca, 16% das crianças e 23,5% dos adolescentes foram positivamente rastreados para TEPT. No processo, observou-se que, em geral, a maioria dos sintomas apresentou remissão ao longo do tempo. Contudo, no ambiente de seca, os sintomas relativos ao TEPT e à ansiedade foram mantidos, ou mesmo aumentaram, neste período. “O resultado foi surpreendente para mim, pois acreditava que os jovens submetidos à seca já estavam adaptados àquele ambiente. Houve remissão dos sintomas na população exposta às inundações porque as condições foram reestabelecidas após o desastre”, explica Magalhães, ao lembrar que, em relação à aridez, a condição é crônica. “Além disso, no caso da inundação, as famílias apresentavam resiliência muito grande, o que, acreditamos tenha permitido a diminuição dos sintomas. As me-
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diações social e familiar foram importantes nestes contextos”, reflete.
Frentes de pesquisa
O percurso da pesquisa e os resultados obtidos instigaram Sabrina Magalhães a aplicar a metodologia em outras regiões. A pesquisadora pretende investigar desastres ambientais fortemente influenciados pela ação humana, como no caso dos desabamentos das barragens de Bento Rodrigues e Brumadinho. “Cogitamos realizar a pesquisa nestes locais, mas ainda não há equipe para abrir nova frente de trabalho. Isso está no horizonte. Temos a hipótese de que desastres causados diretamente pela ação – ou omissão –, humana possuem impacto mais intenso do que os naturais”, comenta. Ainda que não tenha sido possível expandir o estudo a outras áreas, a pesquisadora acredita na relevância da proposta, e, também, do que já foi realizado: “Os estudos contribuem com o aumento da conscientização da comunidade científica e do poder público acerca das consequências de desastres naturais, principalmente, ao desenvolvimento de crianças e adolescentes”.
HIPERLINK Lorena Tárcia
Ciência inbox
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Curiosidades científicas I
Perguntamos a nossos seguidores do Instagram: “O que você gostaria de saber sobre as pesquisas científicas produzidas em Minas?” Recebemos várias e ótimas respostas, a serem transformadas em reportagens para nossos sites e para a revista. Os mineiros querem saber, por exemplo, se existem programas de incentivo para aproximar estudantes do ensino médio com a ciência, e se há pesquisas sobre a redução do consumo de plástico e uso de bioplástico nas grandes cidades. Também quer contribuir? Envie sua sugestão para revista@fapemig.br ou converse conosco em nossas redes sociais (Face, Instagram e Twitter).
Curiosidades científicas II
Você tem ideia de quais palavras-chaves mais levam pessoas a nosso site infantil? As pesquisas que mais direcionam são “telescópio caseiro”, “por que fevereiro tem 28 dias?” e “minhocuçu”. Já no site MFC, eis as temáticas campeãs: “respiração das plantas”, “química forense” e “cobra coral verdadeira”.
Recursos educacionais I
Escola Digital é um portal gratuito e aberto, com milhares de recursos digitais mapeados. São vídeos, áudios, games, livros digitais, aplicativos e outras ferramentas que podem ser usadas dentro ou fora do ambiente escolar. O usuário pode fazer buscas genéricas – apenas pelo nome da disciplina ou pelo tipo de mídia de interesse – ou mais específicas, da seleção de conteúdos envolvendo temas transversais a recursos multidisciplinares. Também é possível se cadastrar para aproveitar todos os recursos de interação e criação, além de participar do curso a distância, disponível, gratuitamente, para professores e gestores escolares: https://escoladigital.org.br.
Recursos educacionais II
Outro repositório online de recursos para uso em sala de aula é o Instituto Net Claro Embratel. Há recursos para ensinar, aprender e se inspirar. É possível pesquisar por nível de ensino ou por área de conhecimento. No campo de ciências, por exemplo, há planos de aula sobre como construir átomos e material detalhado para auxiliar o professor a explicar a febre amarela, dentre outros tantos recursos gratuitos. Acesse: http:// bit.ly/recursosgratuitosmfc.
Curiosidades científicas III
O que é uma estrela cadente? Como passear por Marte por meio da tela do computador? Qual a duração do dia nos outros planetas do Sistema Solar? Essas curiosidades são respondidas no Blog do Espaço!, mantido pelo Espaço do Conhecimento UFMG. Acesse lá: http://bit.ly/blogespaco.
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CONTEMPORÂNEAS
Sob novas funções No ano em que completa 20 anos, plataforma Lattes se moderniza para facilitar integração do currículo a outras bases de dados Em abril de 2019, começou a circular nas redes sociais a notícia de que a plataforma Lattes estava prestes a acabar. A informação, entretanto, era falsa. Na ocasião, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) não só desmentiu o boato, como anunciou a modernização do serviço. Criada em 1999, a ferramenta é, hoje, responsável por integrar, em um único sistema de informação, bases de dados de currículos, grupos de pesquisa e instituições. Trata-se do mais importante conjunto de informações acadêmico-científicas do País, com cerca de seis milhões de documentos cadastrados. A importância da plataforma vai além da quantidade de currículos cadastrados. Sua dimensão engloba, também, ações de planejamento e gestão de agências de fomento federais e estaduais, fundações de apoio à ciência e à tecnologia, instituições de ensino superior, institutos de pesquisa, além do próprio CNPq. Trata-se, ainda, do instrumento que auxilia ações de órgãos governamentais e políticas estabelecidas pelo Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). “Nesses 20 anos, o principal fenômeno resultante da criação da plataforma foi a capilarização a partir da adoção do currículo, o que aconteceu em 16 de agosto de 1999. Hoje, quase tudo no mundo acadêmico envolve informações do currículo Lattes, que, ao longo do tempo, foi reconhecido como espaço para registro da vida acadêmica do pesquisador”, comenta Vinícius Medina Kern, professor de Ciên-
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Mariana Alencar
cia de Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Modernização anunciada
Em dezembro de 2018, o CNPq anunciou o plano de modernização da plataforma. Com o intuito de tornar o sistema mais eficiente, a proposta deve repensar o posicionamento estratégico do Lattes. A ideia é aprimorar as tecnologias e a qualidade das informações, por meio da correção de falhas identificadas na ferramenta. A principal mudança, já implementada, é a integração da plataforma com o Orcid (Open Researcher and Contributor ID), um código identificador amplamente usado no meio acadêmico, sobretudo fora do Brasil, para identificação de autores de trabalhos científicos. O preenchimento das informações no currículo Lattes é de
responsabilidade do pesquisador. Ou seja, cabe ao usuário o fornecimento de dados, o que acaba por aumentar o risco de fraudes e erros. Com a integração ao Orcid, a certificação dos dados será refinada, posto que se torna mais fácil cruzar as informações com outros identificadores. Segundo Kedma Duarte, pesquisadora membro da Comissão de Gestão da Plataforma Lattes (ComLattes), a proposta de modernização visa a transformá-la em sistema essencialmente digital. “Até então, há dificuldade para o pesquisador estrangeiro se cadastrar. Com a integração ao Orcid, isso ficará mais fácil. Todos poderão integrar seu currículo ao de outros países. Além disso, as informações de outros currículos internacionais poderão ser importadas automaticamente”, explica. Atualmente, ao menos 120 mil pesquisadores brasileiros adotam essa assinatura digital única. Isso faz com que o Brasil ocupe a sexta posição no ranking de países a usar o identificador. Com a integração ao Lattes, a expectativa é que o número aumente e o retrabalho de inserção de dados em sistemas diversos seja minimizado. Nesse sentido, outra mudança, implementada aos poucos, é a integração com bases de dados nacionais. Kedma Duarte explica que, com a alteração, o pesquisador poderá importar as informações para pesquisa do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). O plano de modernização do Lattes prevê, também, integração com a plataforma Sucupira, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que trata da avaliação da pós-graduação “O coordenador poderá importar, de uma vez só, todos os currículos dos docentes envolvidos no trabalho. Isso, hoje, é muito trabalhoso, pois também há informações duplicadas. As mudanças são a oportunidade de aproximação com pessoas fora da comunidade acadêmica. O CNPq trabalha, também, no desenvolvimento de um aplicativo, para que os pesquisadores possam acessar o Lattes pelo celular. Haverá ainda outros apps para tomada de decisão das universidades”, detalha Kedma Duarte.
Burocracias e dificuldades
Em duas décadas de existência como banco nacional de currículos acadêmicos, a plataforma Lattes é referência nas universidades. Hoje, mesmo alunos de graduação, no início da trajetória acadêmica, precisam ter seus currículos registrados na ferramenta, para que possam desenvolver trabalhos de iniciação científica. Ao longo dos anos, a plataforma passou por diversas transformações. Vinícius Kern destaca a mudança que aconteceu ainda nos primeiros anos de existência do Lattes: “Em 2003, houve imensa perda sistêmica. As mudanças de governo, à época, criaram dificuldades. Até 2002, o CNPq envolvia várias instituições de ensino e pesquisa na evolução do Lattes. Essas instituições expunham suas demandas sobre o que era importante mudar no currículo”, lembra, ao comentar, ainda, que a grande virtude disso era que, mesmo que não fosse atendida, a comunidade saberia que o currículo iria mudar em determinada direção. “Isso permitia que as instituições se adaptassem às mudanças. Em 2003, com a ruptura, a participação acabou. Hoje, as universidades sabem das mudanças apenas por meio da observação”, relembra o pesquisador. As transformações pelas quais a plataforma passou revelam que o atual processo de modernização não indica a obsolescência do sistema. Trata-se, na verdade, de ação necessária, que visa acompanhar as mudanças tecnológicas e informacionais das últimas décadas. “Vejo com bons olhos que a base curricular e a plataforma, que é uma coisa viva, precisam progredir. Entretanto, há outros pontos a serem adaptados, mas que não estão previstos na modernização. Há, por exemplo, falta de definição sobre o que significam as informações e categorias a serem preenchidas”, destaca. Como exemplo, Kern pergunta: “O que é um projeto de pesquisa?”. “Na plataforma, precisamos informar sobre ‘projetos’ e ‘projetos de pesquisa’. Algumas definições tornam-se confusas para pessoas que têm contato pela primeira vez com o sistema. Tal situação, inclusive, dá margem a acusações de fraude. Por vezes, porém, trata-se, simplesmente, de preenchimento malfeito”, completa.
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Abner Barbosa
Videomaker e fotógrafo, social media e web designer, com experiência em produção de conteúdo audiovisual, Abner Barbosa é bacharel em Jornalismo pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), com formação em cinema documentário, pela Escola Livre de Cinema de Belo Horizonte.
VARAL
O conhecimento e seus iluminares.
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PARA USO DOS CORREIOS MUDOU-SE
DESCONHECIDO RECUSADO FALECIDO AUSENTE
NÃO PROCURADO END. INSUFICIENTE CEP
NÃO EXISTE Nº INDICADO
INFORMAÇÃO ESCRITA PELO PORTEIRO OU SÍNDICO REINTEGRADO AO SERVIÇO POSTAL EM ___/___/___ ___/___/___
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