Minas Faz Ciência 57

Page 1



Redação - Rua Raul Pompéia, 101 - 12.º andar, São Pedro - CEP 30330-080 Belo Horizonte - MG - Brasil Telefone: +55 (31) 3280-2105 Fax: +55 (31) 3227-3864 E-mail: revista@fapemig.br Site: http://revista.fapemig.br

Blog: http://fapemig.wordpress.com/ Facebook: http://www.facebook.com/FAPEMIG Twitter: @fapemig

GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Governador: Alberto Pinto Coelho SECRETARIA DE ESTADO DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E ENSINO SUPERIOR Secretário: Narcio Rodrigues

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais Presidente: Mario Neto Borges Diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação: Evaldo Ferreira Vilela Diretor de Planejamento, Gestão e Finanças: Paulo Kleber Duarte Pereira Conselho Curador Presidente: João Francisco de Abreu Membros: Alexandre Christófaro Silva, Antônio Carlos de Barros Martins, Dijon Moraes Júnior, Flávio Antônio dos Santos, Júnia Guimarães Mourão, Marcelo Henrique dos Santos, Marilena Chaves, Ricardo Vinhas Corrêa da Silva, Sérgio Costa Oliveira, Valentino Rizzioli, Virmondes Rodrigues Júnior.

Ruas e avenidas sendo revitalizadas, aeroportos em processo de expansão, manifestações públicas, obras por toda a parte. Nas capitais brasileiras, os efeitos de um megaevento como a Copa do Mundo de Futebol podem ser sentidos diariamente. Para além da infraestrutura urbana, tais eventos de porte mundial, que envolvem a mobilização de milhares de pessoas e o investimento de cifras vultosas, também têm efeitos sobre as estruturas políticas, sociais e culturais das nações que se oferecem como anfitriãs. Por isso, quando a bola rolar no Mundial, não só torcedores estarão atentos, mas também pesquisadores interessados em avaliar as consequências imediatas e em longo prazo de um evento dessa magnitude. Espalhados pelo país, eles estão curiosos, por exemplo, sobre a forma como as prioridades de investimento são redefinidas, a elaboração de políticas sociais, a disseminação e a contenção de doenças relacionadas a viagens e aos viajantes. Como mostra nossa reportagem especial, este será um espaço privilegiado para aprofundar pesquisas e discutir os vários significados de um megaevento. E já que o assunto é paixão nacional, quem resiste ao arroz com feijão? A mistura, presente nos pratos de brasileiros de Norte a Sul do país, não é apenas apetitosa, mas também rica em nutrientes que se complementam. Uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Viçosa (UFV) promete enriquecer ainda mais esses alimentos por meio de um “troca-troca” de nutrientes. O grupo desenvolveu um procedimento que, utilizando uma espécie de revestimento biodegradável e hidrossolúvel, permite que os nutrientes do arroz sejam repassados ao feijão durante o cozimento, e vice e versa. Com isso, seria possível oferecer os benefícios da combinação àqueles que não têm o hábito de consumir os grãos juntos – o que costuma ser comum, por exemplo, entre crianças. Gostou do tema? Então acesse o nosso blog (http://blog.fapemig.br) e acompanhe os programas das séries Ondas da Ciência e Ciência no Ar para saber mais sobre o assunto. A partir dessa edição, sempre que se deparar com os ícones (abaixo) é sinal de que o assunto também será abordado em nossos outros canais de comunicação. A proposta é expandir nossa cobertura por diferentes meios, agregando novas informações e utilizando as potencialidades de cada veículo para contar as histórias. Dentro dessa proposta, a participação dos leitores/ouvintes/telespectadores é muito importante. Periodicamente, publicaremos enquetes e desafios que nos ajudarão a elaborar nossas próximas pautas. Contamos com sua contribuição por meio do nosso blog e das redes sociais, no Facebook (www.facebook.com/ minasfazciencia) e no Twitter (@minasfazciencia). O que está esperando? Nas próximas páginas, é possível conhecer pesquisas relevantes em todas as áreas: um novo kit de diagnóstico com biomarcadores para identificação da meningite; mapeamento de novas espécies de anfíbios e répteis na Serra do Espinhaço; práticas de cooperativismo com resultados positivos para a comunidade. Convido a todos, ainda, para apreciar a bela imagem enviada pela bióloga Núbia Monteiro, que estampa a sessão Varal. Boa leitura! Vanessa Fagundes Diretora de redação

AO LEI TO R

EX P ED I EN T E

MINAS FAZ CIÊNCIA Diretora de redação: Vanessa Fagundes Editor-chefe: Maurício Guilherme Silva Jr. Redação: Ana Luiza Gonçalves, Camila Alves Mantovani, Diogo Brito, Maurício Guilherme Silva Jr., Vanessa Fagundes, Verônica Soares, Virgínia Fonseca e William Ferraz Diagramação: Fazenda Comunicação Designer gráfico: Alice Barreto e Breno Maia Revisão: Sílvia Brina Projeto gráfico: Hely Costa Jr. Editoração: Fazenda Comunicação & Marketing Montagem e impressão: Rona Editora Tiragem: 20.000 exemplares Capa: Hely Costa Jr.


Í N D I CE

12

ENTREVISTA

37

administração

20

Zoologia

41

biomedicina

24

Computação

45

LEMBRA DESSA?

27

Genética

46

5 PERGUNTAS PARA...

30

Presidente da Academia Brasileira de Ciências, Jacob Palis Junior fala sobre os desafios da pesquisa no Brasil

Espécies de anfíbios e répteis da Serra do Espinhaço são mapeadas para afastar ameaça de extinção

Pesquisa da PUC Minas busca aproximar os mais velhos dos modernos dispositivos móveis

Iniciativas buscam difundir informações sobre enfermidades sanguíneas de origem genética

Engenharia de alimentos

Especialistas da UFV transferem nutrientes do arroz ao feijão – e vice-versa

33

arte e educação

Alunos mineiros são estimulados a perceber a polissemia da dança como expressão artística

48

Projeto da Universidade Federal de Alfenas dissemina princípios do cooperativismo para produção do marolo

6

ESPECIAL

Reportagem explora implicações sociopolíticas, econômicas e culturais dos megaeventos sobre a rotina de uma nação

Estudo interdisciplinar almeja melhorar tratamento da epilepsia

Projeto reúne pesquisadores mineiros para conversão de lixo urbano em fonte limpa de energia

Virgílio Almeida comenta nuances do Marco Civil da Internet

hiperlink

Casas sustentáveis, futebol e outras novidades do blog Minas faz Ciência

16

Biotecnologia

Fiocruz desenvolve kit de diagnóstico com biomarcadores para identificação da meningite


“Recebi o número 56 da revista MINAS FAZ CIÊNCIA, que leio sempre imediatamente. Escrever ao editor nunca foi uma atitude minha. Entretanto, outros tempos. Excelente a entrevista com Tomaz Aroldo da Mota, colega do ICB [Instituto de Ciências Biológicas da UFMG], amigo especial, pessoa que fez e faz a universidade de forma clara, calma e lúcida. Parabéns ao jornalista Maurício Guilherme Silva Jr. pela condução da entrevista, e, principalmente, pela sua transcrição, fidedigna das ideias do entrevistado. Como disse o Tomaz, ‘para entender o ICB, temos de mergulhar em sua história e na trajetória da UFMG’. Ao abordar, ainda, a grande encruzilhada dos críticos à ciência – básica X aplicada – e “Prezados senhores, recebi MINAS FAZ CIÊNCIA, por algum tempo, no Centro Federal

as inutilidades de certas pesquisas, permitiu-se que alguém com propriedade e conhecimento tornasse a questão de fácil compreensão. Muito bom para esta

de Educação Tecnológica (Cefet) de Bambuí

revista, que viaja e é lida por pessoas tão diferen-

– hoje, IFMG Bambuí. Como estou aposenta-

tes, para além da fronteira científica. [...] No interior

do, gostaria de continuar a receber a revista

de Minas, um certo farmacêutico recebia a revista.

em casa, caso seja possível. Agradecendo

Sua viúva, hoje com 87 anos, lê todas as edições

antecipadamente por sua atenção, aproveito

e, depois, as doa a um polo de ensino a distância,

para parabenizá-los pela alta qualidade da

instalado na cidade. Daí meu comentário”.

publicação, que, hoje, é motivo de orgulho

Marilene Suzan Marques Michalick

aos pesquisadores de Minas Gerais”.

Professora aposentada da UFMG

José Ferreira de Noronha

Belo Horizonte / MG

Bambuí (MG) “Gostaria de lhes agradecer pelo recebimento “Olá, pessoal! Desejo receber MINAS FAZ CI-

da revista MINAS FAZ CIÊNCIA em minha re-

ÊNCIA. Sou professora de redação técnica e de

sidência, além de parabenizá-los pelo belís-

português instrumental e utilizo os textos da re-

simo conteúdo disponibilizado à sociedade.

vista para trabalhá-los em sala de aula. Além de

E de maneira gratuita. Abraços!”.

atualizadas e de pertencer ao campo da divulga-

Geraldo Júlio Pinto Filho

ção científica, as reportagens são de excelente

Estudante / Chromos

qualidade. Isso permite aos alunos que tenham

Belo Horizonte / MG

contato com as mais recentes pesquisas desenvolvidas nas universidades brasileiras”.

“Prezados, boa tarde! Recebo a revista regular-

Daniela dos Santos Costa

mente e acho as matérias muito importantes!”

Professora / Universidade Federal de Viçosa

Fábio S. Duarte Melo

Florestal / MG

Via e-mail

Para receber gratuitamente a revista MINAS FAZ CIÊNCIA, envie seus dados (nome, profissão, instituição/ empresa, endereço completo, telefone, fax e e-mail) para o e-mail: revista@fapemig.br ou para o seguinte endereço: FAPEMIG / Revista MINAS FAZ CIÊNCIA - Rua Raul Pompéia, 101 - 12.º andar - Bairro São Pedro Belo Horizonte/MG - Brasil - CEP 30330-080

MINAS FAZ CIÊNCIA tem por finalidade divulgar a produção científica e tecnológica do Estado para a sociedade. A reprodução do seu conteúdo é permitida, desde que citada a fonte.

CARTAS

a aposentadoria nos devolve tempo para recuperar


especial

HErcÚleos efeiTOs Responsáveis por reflexos sociopolíticos, econômicos e científicos, megaeventos mobilizam cidadãos, realocam capitais e redefinem identidades nacionais Maurício Guilherme Silva Jr. e Vanessa Fagundes

6

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014


Uma vez mais, Neymar ajeita o (novo) corte de cabelo. Observado pelos milhares de torcedores a lotar a Arena Corinthians – palco de estreia da seleção canarinho na Copa do Mundo 2014, promovida pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) –, o jogador não se dá conta, naquele instante, de que a comezinha ajeitada nos fios será também observada por outros tantos bilhões de atentos espectadores, espalhados pelos quatro cantos do planeta. Em momento de tamanha responsabilidade pessoal, o craque brasileiro possivelmente não se recordará dos estratosféricos esforços (financeiros, técnicos, estruturais, humanos etc.) para que todo o imenso circo do esporte, no qual é protagonista, pudesse se tornar realidade. O interessante a ressaltar é que o próprio atleta de múltiplos talentos, mechas capilares mutantes e centenas de milhões no bolso há de ser considerado, tão somente, como um dos inúmeros elementos capazes de transformar a mais importante festa mundial da bola no que se pode chamar, com propriedade, de “megaevento”. Trata-se de conceito complexo, em torno do qual reúnem-se pesquisadores (brasileiros e estrangeiros) ligados às mais diversas áreas do conhecimento. “É bastante ampla a literatura dedicada à temática. O termo tem sido aplicado a eventos de porte internacional – normalmente, culturais e esportivos –, com características proeminentemente comerciais, que envolvem, portanto, produções/realizações de larga escala, enorme alcance midiático, grande número de agentes públicos e privados e de atores sociais – os quais, frise-se, têm interesses, por vezes, conflitantes”, ressalta Hélio Rodrigues de Oliveira Jr., coordenador do Núcleo Belo Horizonte do projeto “Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo/2014 e Olimpíadas/2016” (veja box à página 8), iniciativa ligada ao Observatório das Metrópoles. Tais acontecimentos assumem, segundo o pesquisador, proporções grandiosas em termos de investimentos financeiros (públicos e/ou privados). “Além disso, têm impactos não negligenciáveis sobre as estruturas econômicas, políticas, sociais, culturais e urbanas, que conformam e ca-

racterizam os contextos em que são realizados”, destaca Hélio Rodrigues. Na visão de Ricardo Ferreira Freitas, professor do curso de Relações Públicas da Faculdade de Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e integrante, na instituição, do grupo de pesquisa “Comunicação Urbana, Consumo e Eventos”, para além da questão espacial, megaeventos são encontros que repercutem bastante na mídia. “Isso ocorre antes, durante e depois do acontecimento, despertando o interesse de milhares ou milhões de pessoas”, resume o pesquisador, ao atentar para a importância da análise do alcance de público pelos meios de comunicação de massa e pelas redes sociais. “É fundamental compreender se, meses ou anos antes e depois do evento, parcelas significativas da sociedade acabaram por se expressar sobre o assunto”, completa. Afora a relevância da disseminação de informações, na acepção do professor Luís Eustáquio Moreira, do departamento de Engenharia de Estruturas da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), megaeventos envolvem o desenvolvimento sociopolítico e econômico de uma nação, de modo a exigir coerentes megalogísticas. Em sua visão, acontecimentos de grande vulto são responsáveis por efeitos imediatos e em longo prazo. “A difusão cultural motivada por um evento como a Copa do Mundo tende a trazer 95% de efeitos positivos ao País, ficando os possíveis 5% negativos relacionados às naturais perturbações em torno de todos os fenômenos sociais”, analisa.

“Comunicação Urbana, Consumo e Eventos” é um grupo de pesquisa e extensão, cadastrado no CNPq e apoiado pela Faperj, que pretende definir e conceituar os megaeventos, de modo a produzir maior arcabouço teórico relacionado ao fenômeno. Dentre as áreas de estudos relacionadas às metrópoles, destacam-se investigações sobre comunicação, consumo, violência, meio ambiente, cultura popular, artes e esportes. “Em todas essas áreas, a cidade se revela como protagonista ou cenário das pesquisas. Quanto à extensão, trabalhamos com escolas públicas e alunos de licenciatura, no sentido de provocar maior reflexão sobre o consumo na sociedade contemporânea”, explica Ricardo Ferreira Freitas.

Trata-se de laboratório do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nacional, o grupo reúne instituições em rede para realização de pesquisas – comparativas e multidisciplinares – acerca dos impactos metropolitanos da mudança de modelo de desenvolvimento em 13 metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Belém, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Natal, Recife e Salvador, além da aglomeração urbana de Maringá.

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

7


Mas e o Brasil?

Por sua magnitude, megaeventos tendem a ressignificar sociabilidades, técnicas e padrões éticos. Neste sentido, o que dizer de tais transformações em países ainda em desenvolvimento, a exemplo do Brasil? De outro modo: quais as benesses e os prejuízos – financeiros, humanos, tecnológicos, científicos etc. – dos efeitos provocados por imensuráveis “tsunamis” comerciais, como a Copa do Mundo, o show de uma superbanda ou as Olimpíadas? Em primeiro lugar, segundo Hélio Rodrigues, há que se ressaltar algo de extrema relevância: a rota dos megaeventos mundiais é determinada pelo capital. “Dito de outro modo, é fato que a escolha do país-sede de um megaevento está atrelada à capacidade de se satisfazer as condições exigidas por interesses econômicos privados de diversas ordens, que atuam em inúmeras instâncias e com graus diferenciados, mas sempre de forma conexa, complementar, na expectativa da obtenção ampliada e continuada de lucro”, comenta.

A Fifa, por exemplo, não realiza uma Copa do Mundo sozinha. Conforme destaca o pesquisador, os parceiros da entidade movimentam-se de maneira fortemente articulada nessa busca. “Por isso, o fracasso e o sucesso de candidaturas para sediar os jogos da Copa do Mundo podem ser pensados em termos da capacidade de resposta a interesses, do cenário político e econômico local, dos agenciamentos entre público e privado”, destaca Hélio Rodrigues. Segundo o pesquisador, tais elementos – mais ou menos favoráveis e propícios à oferta dos vultosos recursos que viabilizam o megaevento – reduzem os gastos e maximizam o lucro da empresa organizadora e de seus parceiros. Além disso, a concorrência se estabelece com base nas melhores possibilidades de sucesso do investimento. O Brasil entrou na rota dos megaeventos, portanto, não apenas por ter condições, mas, principalmente, por se dispor a satisfazer uma

série de exigências. “E, enquanto se mostrar atrativo para viabilização desses interesses e estiver disposto a fazer as concessões às exigências que lhes acompanham, o País será forte candidato ao acolhimento de eventos dessa magnitude”, esclarece Hélio, ao lembrar, ainda, que não se deve pensar a metrópole como entidade neutra, alheia aos processos que nela ganham forma e conteúdo. “Obviamente, é muito forte a articulação entre os interesses relacionados à realização de megaeventos e aqueles diretamente ligados aos processos pelos quais a metrópole se ergue”, completa. Ricardo Freitas considera que o Brasil não entrou “definitivamente” na rota dos megaeventos, apesar de vivenciá-los desde a realização dos Jogos Pan-americanos, no Rio de Janeiro, em 2007. “As últimas administrações da capital fluminense compreenderam os megaeventos como plataformas de negócios que projetariam a cidade internacionalmente, transformando-a em um produto mais atraente”, afirma.

Do estádio ao lar Proposto pelo Observatório das Metrópoles (www. observatoriodasmetropoles.net), o projeto “Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo/2014 e Olimpíadas/2016” estrutura-se em 12 núcleos de trabalho. A iniciativa estabelece o monitoramento das implicações dos megaeventos esportivos acolhidos pelo País sobre a estrutura urbano-metropolitana das cidades-sede: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza, Natal, Manaus e Cuiabá. “Os impactos e especificidades no contexto belo-horizontino, assim como nos das demais cidades-sede, são investigados por meio de quatro eixos de análise complementares, levando-se em conta aspectos econômicos, políticos, sociais, culturais, urbanísticos, ambientais, dentre outros”, explica Hélio Rodrigues de Oliveira Jr. Confira as vertentes de investigação do projeto: »» Eixo 1 – Desenvolvimento econômico: análise dos impactos econômicos dos megaeventos sobre as metrópoles, sob o ponto de vista da integração e da justiça sociais. Busca-se identificar os setores e os agentes beneficiados pelas intervenções, bem como aqueles que sofrem seus efeitos negativos.. »» Eixo 2 – Esporte e segurança pública: pesquisa dos efeitos sobre o acesso aos equipamentos e serviços vinculados ao esporte e à política de segurança pública.

8

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

»» Eixo 3 – Moradia, mobilidade e meio ambiente: iinvestigação de reflexos sobre a configuração socioespacial das cidades, em termos da implantação de equipamentos e serviços coletivos, da realização de obras de mobilidade, da ampliação do acesso à moradia, da distribuição dos diferentes grupos sociais na cidade – com identificação de eventuais processos de diferenciação, segmentação e segregação urbana – e dos impactos ambientais das intervenções. »» Eixo 4 – Governança urbana e metropolitana: estudo da ação dos megaeventos sobre as coalizões de forças sociais e políticas e a governança urbana e metropolitana das cidades, no que tange à emergência de novas composições de agentes e interesses, à ampliação dos espaços de participação sociopolítica, aos processos de organização de movimentos sociais, de monitoramento e controle social e às novas modalidades de financiamento das políticas urbanas. »» Eixo extra – Estudo comparativo com experiências internacionais: verificação dos impactos em países/ cidades que abrigaram megaeventos esportivos, com vistas a avaliar a recorrência de fatores manifestos nesses contextos e a emergência de posturas refratárias ao acolhimento/ realização dos megaeventos – posto que, a partir de tais fatores, desenvolvem-se importantes questões de ordem política, econômica e social.


No caso de Belo Horizonte, segundo Hélio Rodrigues, é sintomático o fato de que a capital mineira experimente, hoje, uma forma de planejamento urbano que não apenas prioriza o atendimento às demandas da Copa do Mundo – em detrimento das necessidades da cidade e de seus moradores –, mas, principalmente, usa o megaevento como fator preponderante ao licenciamento, à legitimação e à catalisação de políticas urbanas de favorecimento a capitais com papel determinante na construção da urbe. “Mais do que isso, a ideia de que a Copa deva deixar um legado funciona, tão somente, como pretexto para autorizar a inclusão de obras que, a princípio, estariam marginalmente relacionadas ao megaevento, e que, como tal, carecem de legitimação quanto a sua conformidade com o interesse de capitais financeiros e do mercado imobiliário, e a seu deslocamento da política urbana e do planejamento estratégico”. Por sua vez, o professor Luís Eustáquio Moreira chama a atenção para a necessidade de os brasileiros compreenderem que o País tem recebido pessoas, e não deuses provindos de “mundos” mais adiantados. “Desse modo, todos terão condições de se defender daqueles que não estiverem bem intencionados. Os efeitos positivos virão em médio e longo prazos, por meio do estreitamento dos laços entre brasileiros e estrangeiros”, acredita, ao sublinhar que megaeventos representam

um grande passo para “nos entendermos como povo colonizado, mas com direitos iguais aos dos colonizadores”. Afinal, segundo o pesquisador da UFMG, o desenvolvimento de uma nação está na cultura material realizada. “Somos muito capazes, individualmente ou em grupo. Relacionar-se e se comunicar são as chaves para que tomemos consciência das diferenças, das desigualdades, dos conceitos e preconceitos. Neste sentido, um megaevento é responsável por provocar o impacto de todas essas coisas juntas”, conclui. Neste cenário, estudos acadêmicos revelam-se imprescindíveis. “O intercâmbio internacional de conhecimentos tecnológicos aumentou significativamente nos últimos 14 anos e tem gerado rápidos reflexos positivos”, afirma Luís Eustáquio. O aumento da visibilidade das pesquisas científicas, por outro lado, tem atraído alunos de todas as partes do globo, de modo a aprimorar a expertise nacional. “Em termos de Engenharia, há, hoje, grandes construtoras com obras no Brasil e no exterior. A construção de uma barragem como a de Belo Monte revela-se, sem dúvida, um megaevento, e, a não ser por questões sociopolíticas, ela pode ser administrada e construída por engenheiros brasileiros e empresas nacionais, ainda que contem com suportes e consultorias de outras nações”, completa.

O que pesquisar?

Por sua inata complexidade, megaeventos apresentam-se como tema bas-

tante rico aos pesquisadores. Segundo Hélio Rodrigues, por suas gigantescas proporções e pelos impactos gerados, as feiras internacionais, a exemplo da Expo 98 Lisboa/Portugal, as Olimpíadas realizadas a partir dos anos 1970 e as Copas do Mundo Fifa mais recentes – searas de recursos monumentais, grandes interesses em jogo, enormes números de agentes envolvidos e atores impactados – têm se constituído como referências concretas para análises comparadas sob diversos contextos. Se, por um lado, a literatura especializada dedica-se, com maior afinco, às dimensões econômicas e espaciais dos impactos produzidos pelos megaeventos, por outro, tem aumentado o interesse pela forma como as dimensões simbólicas, políticas e sociais são por eles afetadas. “Também nos interessam a maneira como se (re)definem os investimentos considerados prioritários em cada contexto, o modo como as populações são atingidas, a natureza da participação e as políticas urbanas e sociais traçadas a reboque dos megaeventos”, esclarece o pesquisador. No Brasil, o projeto “Metropolização e Megaeventos”, o Observatório das Metrópoles e a rede de pesquisadores que dele fazem parte têm dado grande atenção ao tratamento de tais questões. “Isso porque, afora a variabilidade de características e de condições que informam países e cidades-sede para os megaeventos, há necessidade de se compreender as razões pelas quais certos fatores neles manifestos

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

9


BH na Copa Dados da pesquisa “Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo/2014 e Olimpíadas/2016” revelam que os valores apurados, referentes aos investimentos ligados à realização do megaevento da Fifa na capital mineira, põem em evidência o poder público federal como protagonista. “Oficialmente, estão previstos pouco mais de R$ 2,7 bilhões, entre financiamentos e investimentos na cidade-sede de Belo Horizonte, sendo, aproximadamente, 75% oriundos do governo federal”, explica Hélio Rodrigues. Deste total, mais de R$ 1,4 bilhão são investimentos financiados pela esfera federal, sendo que R$ 400 milhões (ou 28%) provêm de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para obras de reforma e adaptação do Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão. O restante se refere às obras de mobilidade urbana, financiadas pela Caixa Econômica Federal. Quanto à distribuição dos recursos previstos para Belo Horizonte, destacam-se os financiamentos federais (51%), seguidos da aplicação direta de recursos pelos governos federal (19%), estadual (13%), outros (9%) e municipal (7%). “A participação do governo federal, seja por meio de financiamento ou de aplicação direta, representa expressivos 70% dos recursos previstos, enquanto os governos estadual e municipal apresentam participação mais tímida”, comenta o pesquisador.

10

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Comparativamente, a capital mineira apresenta maior dependência dos recursos federais do que a média de todas as cidadessede (43% para o financiamento federal e 19% para aplicação direta de recursos). Quanto à aplicação pelos governos estaduais e municipais, BH encontra-se perto da média nacional – de 16% e 7%, respectivamente. “Ora, o somatório de recursos empregados para realização da Copa do Mundo no Brasil bate, hoje, na casa dos R$ 30 bilhões investidos. Assim como em Belo Horizonte, os recursos que viabilizam este megaevento nas demais cidades-sede são majoritariamente de origem pública. É fácil perceber que a alocação financeira para esta finalidade colide com demandas de investimentos importantes em outras áreas”. Segundo o pesquisador, à medida que se reconhece a existência de um déficit histórico de investimentos (e, portanto, de problemas) em áreas consideradas prioritárias – como habitação, saúde, saneamento básico e educação – e que se revelam as demandas de investimentos para viabilização e realização de megaeventos, faz-se necessário reconhecer que há evidente desequilíbrio entre as forças e os interesses envolvidos nestes processos. “A flexibilização e a facilitação de meios que beneficiam os agentes privados e contam com a condescendência dos agentes públicos tornam o megaevento bastante atrativo, direta ou indiretamente, aos capitais envolvidos em sua produção e aos que atuam nos processos próprios à metrópole”, pontua Hélio Rodrigues.


têm se mostrado alinhados à adoção de modelos neoliberais de políticas sociais e urbanas, denotando o favorecimento de capitais que atuam na construção da cidade e exacerbando as condições de desigualdade”, avalia. A verdade é que nem tudo são flores. Na opinião de Hélio Rodrigues, é fundamental que se compreenda, em primeiro lugar, o modo como se estabelece a confluência, “por vezes perversa, entre interesses econômicos privados e negociações políticas de legitimidade contestável – e, em certos casos, escusas”. Por fim, também se faz imprescindível a investigação dos “rumos” de cidades que, amiúde, desprezam as necessidades concretas e os anseios dos cidadãos que nela vivem e trabalham. “Isso tem sido apontado por nossa pesquisa. Daí a relevância de se construir e promover os meios de enfrentamento e de mudança dessas condições”, finaliza. Medicina do viajante é um novo campo novo de atuação, que abrange outras especialidades médicas, como infectologia, medicina tropical, preventiva e ocupacional. Todas as variáveis relacionadas aos diversos tipos de viagens e viajantes são temas de estudo da área. “As viagens são cada vez mais comuns e acessíveis em todo o planeta e, com o aumento exponencial do número de viajantes, faz-se necessário estudar mais profundamente os impactos na disseminação de doenças e formas de prevenção”, destaca Adelino Freire Jr, que é membro da Sociedade Internacional de Medicina do Viajante. Ele explica que, além das orientações aos viajantes – cuidados preventivos –, os médicos dessa especialidade avaliam pessoas que adoecem durante a viagem, com males que podem ter sido adquiridos no local de origem, como a malária em países africanos, ou no local de destino, como a dengue em Belo Horizonte. Outra possibilidade são as pessoas que adoecem algum tempo depois de retornarem para casa com enfermidades que possuem períodos de incubação de alguns dias ou mesmo de semanas, como a hepatite A.

Impactos na saúde

Pesquisador da Uerj, Gilmar Mascarenhas lembra, no artigo “Megaeventos esportivos e urbanismo: contextos históricos e legado social”, que tais empreendimentos são oportunidade para um novo modelo de planejamento e gestão das cidades, além de chance para pensar e enfrentar problemas urbanos crônicos. Afinal, para receber grande número de visitantes, é necessário rever toda a infraestrutura local, que inclui desde o sistema de telecomunicações e transporte até a rede de hotelaria e comércio, com a revitalização dos pontos turísticos. Outra área afetada pelos megaeventos é a da saúde. Grandes aglomerações humanas são ideais para a transmissão de doenças como a gripe. Há de se considerar, ainda, a presença de visitantes estrangeiros e a possibilidade de transmissão de enfermidades comuns em outras regiões do planeta, a exemplo do sarampo. Também é importante prever possíveis sobrecargas nos serviços de saúde, já que, durante o período de duração do megaevento, a população local aumenta de forma significativa. No caso da Copa do Mundo de Futebol, que terá início em junho, milhares de estrangeiros e brasileiros irão transitar por diversas partes do País para acompanhar os jogos das 32 seleções participantes. O médico infectologista Adelino de Melo Freire Jr., especialista em medicina do viajante, conta que, apesar dos vários impactos possíveis, eventos esportivos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, normalmente, não geram grandes problemas de saúde – tanto à população local quanto aos turistas. “Dentre os agravos mais comuns, relacionados a esses eventos, posso citar insolação, desidratação, traumas leves e abuso de álcool e drogas”, diz. O especialista, contudo, não deixa de dar recomendações. No caso da população local, é importante estar com o cartão de vacinas em dia e de acordo com a faixa etária. Para adultos e idosos, eis a maneira eficiente de prevenção contra doenças infecciosas. Evitar aglomerações é uma forma de prevenir enfermidades de transmissão respiratória, como a gripe e a

meningite. Além disso, há que se lembrar de usar preservativos em qualquer tipo de relação sexual. No caso dos viajantes, o conselho do médico é procurar atendimento ao menos quatro semanas antes da partida, para receber orientações de prevenção de acordo com características individuais, itinerário e programação de atividades durante a viagem. “As orientações gerais aos viajantes relacionam-se aos cuidados com água e alimentos e à prevenção de doenças transmitidas por insetos, de doenças sexualmente transmissíveis, de trombose em voos de longa duração, de traumas e acidentes”, explica. As recomendações não são apenas para os estrangeiros: existem, no Brasil, regiões de risco para certas doenças, como a febre amarela e a malária. Antes de visitá-las, é importante tomar as precauções necessárias, expressas em uma vacina ou no uso de repelentes. Com relação à Copa do Mundo 2014, o governo brasileiro divulgou nota, no início do ano, na qual informava que cerca de 10 mil profissionais de saúde foram capacitados para atuar durante o evento. Além disso, as 12 cidades-sede terão aparato de 531 unidades móveis do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), 66 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e 67 hospitais funcionando de forma integrada, para atendimento aos turistas e à população. Na página www.saude.gov.br/viajante, é possível encontrar informações diversas sobre cuidados para quem visita outros países ou o Brasil, além de contatos dos serviços de emergência.

Dica de leitura Livro: Legados de megaeventos esportivos Organizadores: Rejane Penna Rodrigues, Leila Mirtes Magalhães Pinto, Rodrigo Terra e Lamartine P. DaCosta Ano: 2008 Disponível em: www.esporte.gov.br/ arquivos/sndel/esporteLazer/cedes/LegadosMegaeventosEsportivos.pdf

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

11


ENTREVISTA

A ousadia como princípio Na visão do matemático Jacob Palis Junior, um dos mais premiados pesquisadores do País, a ciência brasileira carece de arrojo para aproveitar melhor as oportunidades Maurício Guilherme Silva Jr.

Ao ouvir suas saborosas gargalhadas, repletas de energia e simplicidade, é incrível imaginar que, há décadas, ele se dedique à complexidade de temas como sistemas dinâmicos e hiperbólicos, difeomorfismos, fluxos, atratores ou ciclos de Poincaré e suas bifurcações. Pois nesta entrevista a MINAS FAZ CIÊNCIA, o matemático Jacob Palis Junior, atual presidente da Academia Brasileira de Ciências, revela naturalidade, objetividade e competência não apenas para elucidação de intrincados teoremas, mas, também, para elucidação de (enormes) desafios ligados à atividade científica no Brasil. Nascido em Uberaba (MG) Palis é Doutor em Matemática pela Universidade da Califórnia. Professor titular do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), instituição que dirigiu de 1993 e 2003, detém diversas condecorações nacionais e internacionais – dentre as quais, os prêmios Moinho Santista (1976), TWAS em Matemática (1988), InterAmerican Prize for Science (1995), Prize Mexico for Science and Technology (2001), Trieste Science Prize (2006) e International Prize Accademia Nazionale dei Lincei for Mathematics (2008) –, presidiu a Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS) e a União Internacional de Matemática (IMU).

12

Autor de mais de 80 artigos científicos em periódicos no Brasil e no exterior – o que o torna recordista de publicações em sua área no País –, Palis é responsável pela formulação das Conjecturas de Estabilidade, que apontam para uma hipótese global do comportamento caótico, e da teoria das bifurcações, que trata do modo como se modificam as estruturas dos sistemas que dependem de parâmetros. Abrangentes, suas pesquisas aplicam-se a áreas e funções distintas, como Mecânica Quântica, turbulência de fluidos, competição evolutiva das espécies, previsão do tempo e, até mesmo, mapeamento do genoma. De que maneira o senhor analisa, hoje, o mito social em torno da ciência? Nesta segunda década do novo milênio, o que mudou na percepção das pessoas em relação à prática científica? Pesquiso termodinâmica, área da matemática que, por coincidência, foi também tema de investigação de Jules Henri Poincaré [1854-1912], um dos mais importantes matemáticos de todos os tempos. Além de tudo o que realizou, Poincaré apreciava discussões filosóficas e escreveu importantes livros sobre ciência. Em suas obras, discute tais questões de modo inovador. Ao abordar a questão do “valor da ciência”,

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Eis as mais importantes obras de Poincaré sobre teoria e práxis científicas: A ciência e a hipótese, Ensaios fundamentais e O valor da ciência.


Arquivo Pessoal

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

13


busca pensar tal valor em referência à sociedade. Como atividade humana, a ciência propõe a compreensão de modelos capazes de explicar, por exemplo, os fenômenos da natureza. Felizmente, em nosso tempo, a aceitação das práticas científicas pela sociedade é crescente, apesar de lenta. Em retrospectiva, voltemos à época da Biblioteca de Alexandria: naquele período, questões como estas eram trabalhadas por matemáticos e físicos. De lá para cá, o assunto tem evoluído. E considero consistente essa evolução. Ideias elaboradas pelo homem, a exemplo das criações de Deus ou da Terra como centro do universo – princípios apoiados por Aristóteles – acabaram por retardar o entendimento público da ciência, que, neste século, é muito mais consistente para a sociedade do que no século anterior. Neste sentido, hoje, o mito da ciência tem fundamentos muito mais sólidos do que antes. Isso se deve ao fato de acertarmos muito mais. Cientistas de quaisquer áreas buscam, no presente, compreender o futuro com certo grau de incertezas. Afinal, jamais teremos cem por cento de certezas sobre algo. Com o tempo, por meio de novas técnicas e conjecturas, é possível apurar métodos e aumentar o grau de certezas. A incerteza é parte da ciência. E é bom que assim seja. Qual sua visão acerca da divulgação científica realizada no Brasil? Tomando-se como pressuposto a importância de aproximar os jovens da ciência, com vistas, por exemplo, à construção de vocações, as instituições de ensino superior não viveriam, ainda, numa espécie de “redoma de vidro”? A divulgação da ciência é importantíssima. Os cientistas e suas iniciativas, afinal, precisam do apoio da sociedade. Sou inteiramente a favor de tal difusão e aprecio muito a divulgação da ciência. Comenta-se, é verdade, que os cientistas da área básica têm preconceito à divulgação de suas atividades. Creio, porém, que esta visão esteja equivocada. E espero que não mais se refiram a nós desta forma. Estou convicto de que estamos cada vez mais cientes da relevância da comunicação científica. Aqueles que se dedicam à divulgação merecem nosso maior respeito. Afinal, esforçam-se para que toda a socie-

14

dade possa compreender o trabalho do cientista. Gostaria de também discutir outra importante questão paralela, referente à aproximação entre os cientistas e a indústria. Percebo que há grande preconceito em relação à mistura das práticas científicas com o poder econômico. E preciso, contudo, compreender a importância do papel da indústria. Na Academia Brasileira de Ciências, lançamos a ideia da criação de fóruns, realizados em diversas regiões do País, sob o nome de “AcademiaEmpresa”. Buscamos, desse modo, divulgar a importância do desenvolvimento de pesquisas nas próprias sedes das empresas. Desde que criamos tal iniciativa, nenhum cientista reclamou dela na Academia Brasileira de Ciências. Nas últimas décadas, cresceu significativamente o número de citações a pesquisas e pesquisadores brasileiros no exterior. Além disso, temos ampliado os índices de registros oficiais de patentes, principalmente, em áreas de ponta, como genética e nanotecnologia. Neste cenário de desenvolvimento, o que significaria, para o Brasil, a possibilidade de receber um Prêmio Nobel? Que parte da grande estrutura da produção – e disseminação – da ciência seria modificada em função do que aqui chamarei de “reconhecimento internacional”? A ciência brasileira é relativamente jovem. O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] foi criado em 1951, ano em que também é fundada a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Ambas as entidades, portanto, são muito recentes. No mundo, há instituições do século XVI. Na França, o Collège de France surge, em 1530, porque a Universidade de Paris revela-se muito conservadora. Buscavam-se, portanto, outros desafios. A ciência brasileira é realmente muito nova. E a verdade é que nosso processo de colonização não contou com muito espaço para a produção científica. Os portugueses nunca se preocuparam com a construção de escolas ou de universidades. Nesse aspecto, aliás, viva Tiradentes! [risos] Na realidade, co-

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Como atividade humana, a ciência propõe a compreensão de modelos capazes de explicar, por exemplo, os fenômenos da natureza. Felizmente, em nosso tempo, a aceitação das práticas científicas pela sociedade é crescente, apesar de lenta.

Por meio da iniciativa, pretende-se promover a aproximação entre a comunidade científico-tecnológica e o meio empresarial, de modo a beneficiar não apenas as partes envolvidas, mas, principalmente, a economia e a sociedade brasileiras.


meça-se a desenvolver ciência no Brasil, por meio de escolas de superiores, apenas no século XIX. Além disso, o País não aproveitou boas oportunidades – ao contrário, por exemplo, da Argentina, que, na virada do século XIX, quando estava bem economicamente, devido à produção de carnes, e por ocasião da Primeira Guerra Mundial, recebeu cientistas de peso, ligados a diversas áreas do conhecimento. Com base nesta história, não acho que seja acaso o fato de, em um período relativamente curto de tempo, terem aparecido dois prêmios Nobel por lá [Bernardo Houssay e César Milstein receberam o Nobel de Fisiologia/Medicina, respectivamente, em 1947 e 1984]. Perceba que, na Argentina, há uma sequência. Neste caso, trata-se, mesmo, de uma linhagem, já que um dos ganhadores foi aluno do outro. No Brasil, deveríamos conviver mais com grandes cientistas. Para tal, precisamos abrir mais as portas, de modo a aproveitar oportunidades. Em 2008, por exemplo, passávamos por uma situação econômica relativamente privilegiada, em comparação com outros tantos países. Naquele momento, precisávamos estar preparados para abrir as portas, pagar bons salários e trazer grandes figuras ao Brasil. De vez em quando, ouço dirigentes afirmando que pagam “salários condignos” aos pesquisadores. Não gosto da expressão, pois os cientistas precisam, na verdade, de “salários competitivos”. Impossível trazer cientistas de renome ao País e só lhes oferecer pagamento “condigno”. É necessário que sejamos ousados.

Permitir que crianças de 4 ou 5 anos tenham fundamentos de Matemática ou de linguagem é abrir vastos horizontes. E não há nada de milagroso nisso. Precisamos, tão somente, de um ensino pré-escolar de qualidade, que proponha uma série de desafios aos alunos.

De modo geral, de que forma o senhor analisa os modelos de gestão da ciência, da tecnologia e da inovação no Brasil? Eu gostaria de ver mais consistência, mais arrojo. Hoje, investimos cerca de 1,2% do PIB [Produto Interno Bruto] em ciência. Em várias ocasiões, temos proposto – principalmente, por meio da Academia Brasileira de Ciências – que o Brasil caminhe para os 2%. Afinal, cada vez mais, é preciso ampliar o suporte a laboratórios etc. Resultados efetivos, atualmente, dependem disso. Daí a necessidade de políticas mais efetivas e consistentes.

Com relação ao ensino da Matemática, um de seus campos de estudo, em que estágio o Brasil se encontra? A Matemática evoluiu muito no País, mas o ensino ainda peca. Não temos aprendizagem de qualidade, o que é bastante crítico. Hoje, está comprovado que, independentemente de ainda ser criança ou de estar no período pré-escolar, o aluno pode aprender os primeiros fundamentos de Matemática e de linguagem. Isso faz uma grande diferença. Permitir que crianças de 4 ou 5 anos tenham fundamentos de Matemática ou de linguagem é abrir vastos horizontes. E não há nada de milagroso nisso. Precisamos, tão somente, de um ensino pré-escolar de qualidade, que proponha uma série de desafios aos alunos. Os cientistas sociais dirão que, desse modo, acabaremos por forçar demais as crianças. Estou de outro lado, por pensar de modo distinto. Sou a favor dos desafios. E quanto mais cedo melhor! O que não quer dizer que as crianças precisem deixar de brincar e de se divertir. A pesquisa na área da Matemática no Brasil começou a tomar corpo, de forma mais consistente, a partir dos anos 1950, quando se tornaram concretas as oportunidades para que os pesquisadores viajassem ao exterior, para fazer doutorado ou participar de programas de intercâmbio. Tudo foi melhorando à medida que os pesquisadores voltavam às universidades. A Matemática brasileira passou, então, a ter prestígio internacional. O ensino, contudo, não acompanhou este processo. Daí a necessidade de investirmos na base. Em 2010, numa entrevista que concedi à CNN, perguntavam-me como estava a Matemática no Brasil. À época, disse ao entrevistador que a própria pergunta precisaria ser qualificada. Afinal, na “ponta” – a pesquisa –, temos muito prestígio, ao menos em certos setores. Enquanto isso, na base, há que se melhorar muito. Diante de tal paradoxo, o repórter não se conformava: “Mas como é que pode?”. Para mudar esse panorama, a própria Capes criou mecanismos de incentivo, de modo a fazer com que os próprios cientistas contribuam para o ensino. A iniciativa tem dado certo. O processo, contudo, é lento. Afora tal iniciativa, há as Olimpíadas da Matemática, que envolvem muita gente – o que inclui crianças de diversas idades – e têm gerado bons resultados.

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

15


biotecnologia

Rápido, mas nada rasteiro

Desenvolvido por pesquisadores da Fiocruz, kit de diagnóstico com biomarcadores permite identificação eficaz e “personalizada” da meningite Verônica Soares

16

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014


Por meio de metodologia inovadora, já é possível identificar as proteínas da resposta inflamatória dos hospedeiros da meningite, de modo a garantir a análise exata do quadro clínico do paciente, a partir de uma leitura sequencial dos resultados. Tais “biomarcadores” serão empregados em kits para a identificação das meningites malignas e benignas. Atende-se, assim, à vasta demanda por critérios que orientem, de maneira precisa, a decisão clínica pela abordagem terapêutica adequada. Sob liderança do pesquisador Roney Santos Coimbra, doutor em Microbiologia pela Universidade René Descartes (Paris 5), a “Pesquisa de biomarcadores e identificação de alvos terapêuticos para as meningites” foi desenvolvida no Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR-Fiocruz Minas), com a colaboração de Rosiane Pereira, também pesquisadora do CPqRR e coproponente do projeto junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e Guilherme Oliveira, coordenador do Centro de Excelência em Bioinformática (CEBio), que é fruto de uma ação da FAPEMIG e do CPqRR. A pesquisa básica que deu início à investigação, financiada pelo CNPq, consistiu na análise do conteúdo proteico do líquor, fluido corporal presente entre as membranas cerebrais, que também preenche as cavidades do cérebro. “Nossa hipótese era a de que, no líquor, haveria sinais específicos da resposta do paciente às meningites causadas por diferentes patógenos – cujos tipos determinam a abordagem terapêutica adequada. Um diferencial do método é que o diagnóstico se baseia na resposta inflamatória do paciente, e não na detecção do patógeno”, explica Coimbra. O rápido diagnóstico dos tipos de meningite é um dos fatores cruciais para o sucesso do tratamento. O kit desenvolvido a partir da identificação dos biomarcadores propõe uma solução inédita, que pretende apresentar resultados imediatos. Comparado às estratégias já existentes de identificação da meningite, o kit configura-se como instrumento útil e acurado, auxiliando o médico na tomada de decisões para o tratamento.

Precisão e rapidez

É comum que pacientes procurem os hospitais já com um quadro avançado da doença, de modo que a janela de tratamento disponível, por vezes, torne-se curta. Atualmente, os médicos têm que se basear na experiência clínica, adquirida ao longo do tempo e com risco de erro: “O clínico precisa ter dados para tomar uma decisão urgente e não perder nenhum caso de meningite bacteriana, não confundindo com a viral, menos grave. Se o médico não iniciar o tratamento com antibiótico e abordagens de controle da inflamação adequados, o paciente pode morrer em questão de horas”, esclarece Coimbra. Com o novo método, além do resultado disponível em alguns minutos, ainda é possível reduzir o número de internações preventivas em hospitais. De acordo com o pesquisador, o método de diagnóstico a partir da observação dos sintomas e a experiência do profissional continuam sendo soberanos no critério final de decisão: “Apesar disso, com esta pesquisa, conseguimos desenvolver um instrumento mais confiável do que os que temos hoje. Os testes existentes avaliam parâmetros não específicos da meningite, como níveis liquóricos de glicose, proteína e leucócitos, que podem ser alterados de acordo com tipo de alimentação, idade e histórico de doenças, dentre outros fatores”. O desenvolvimento do kit está sendo conduzido a partir de duas estratégias: uma delas usa o teste imunológico Elisa (enzyme-linked immunoassay), que é bastante comum e pode ser feito diretamente em laboratório hospitalar, a fim de identificar o tipo de agente causador da inflamação das meninges. A outra abordagem consiste em sistema que utiliza anticorpos artificiais em parceria com a empresa Bioaptus, que desenvolveu um protótipo de leitor de eletroforese capilar capaz de permitir ao médico receber, imediatamente, o resultado. A Fiocruz estabeleceu, com a Bioaptus, um contrato de pré-licenciamento do novo método para diagnóstico diferencial das meningites. Na pesquisa, foram usadas amostras de líquor de pacientes, em sua maioria, do MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

17


Hospital João Paulo II, a partir de parceria com a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig): “O líquor já é coletado na rotina dos hospitais quando se tem suspeita de meningite. Por isso, não causamos transtorno ou desconforto adicional aos pacientes”, explica Roney Coimbra. A coleta do material é feita com punção liquórica na região lombar da coluna vertebral: “Trata-se de procedimento de risco, mas que, nesse caso, se justifica. Além disso, o método é recomendado pela Organização Mundial de Saúde”. O estudo envolveu amostras doadas por pacientes ou por seus responsáveis legais, adultos e crianças. Os pacientes foram tratados de maneira individualizada, sendo divididos em quatro classes – que

18

contemplavam os quadros de meningite viral (a forma benigna), meningocócica e pneumocócica, além de um “grupo controle”, no qual, ao final dos procedimentos, foi descartada qualquer infecção do sistema nervoso central, assim como de doenças neurodegenerativas ou psiquiátricas que poderiam se confundir com meningite. “O projeto já nasceu orientado para a aplicação, devido à parceria com o Hospital João Paulo II. Isso é, sem dúvida, um facilitador nessa etapa, que consiste em transformar o kit de diagnóstico em realidade”, argumenta Coimbra, que segue a desenvolver a formatação e a padronização do kit no método Elisa, a fim de que se possa realizar o registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

(Anvisa). Paralelamente, o pedido de patente do método de diagnóstico diferencial de meningites foi depositado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), em fevereiro de 2014, pela Gestec-NIT, órgão da Fiocruz responsável pela proteção intelectual.

Perspectivas

O potencial dos resultados da investigação conduzida por Roney Coimbra pode ir além do diagnóstico preciso das meningites e contribuir, também, para a evolução no quadro atual do tratamento da doença. Durante a pesquisa, foi possível identificar rotas de sinalização intracelular e metabólicas mais afetadas pelos diferentes tipos da doença, orientando a identifi-


cação de candidatos a alvos terapêuticos. “É um desdobramento que já está em desenvolvimento. Temos o mapeamento das rotas e, agora, podemos adequar o uso de anti-inflamatórios, substituindo aqueles de largo espectro, que também causam efeitos indesejáveis, como a morte celular programada de neurônios”. A nova pesquisa indica que seria admissível substituir os anti-inflamatórios por medicamentos adequados à causa exata da doença. “Buscamos estratégias para

reduzir as lesões cerebrais, os danos e as perdas de neurônios, sem ter que, necessariamente, recorrer a um anti-inflamatório com efeitos colaterais. Resultados preliminares de nosso grupo demonstram que o tratamento com uma molécula de origem natural, extraída de plantas, e capaz de modular uma das rotas de sinalização identificadas pela análise proteômica, previne a morte neuronal em modelo experimental de meningite pneumocócica”, destaca o pesquisador.

Conheça melhor a meningite Considerada doença endêmica no Brasil, a meningite consiste em um processo inflamatório das membranas que envolvem o cérebro e a medula espinhal, as meninges. Quando causadas por vírus, são, em sua maioria, benignas, e desenvolvem cura espontânea, sem deixar sequelas. Já as meningites bacterianas revelam-se extremamente graves, associadas a altos índices de mortalidade – da ordem de 30% a 40% – e, dentre os sobreviventes, até 50% podem ter implicações neurológicas permanentes, como surdez, déficit de aprendizado e paralisia cerebral, dentre outras. Dados do Ministério da Saúde indicam que os casos de meningites bacterianas em crianças de até dois anos têm diminuído no País. Nos tipos mais frequentes da doença – a meningocócica e a pneumocócica –, foi registrada queda, respectivamente, de 29% e 30%. Entretanto, casos da enfermidade são esperados ao longo de todo o ano, com a ocorrência de surtos e epidemias ocasionais, sendo mais comum a ocorrência das meningites bacterianas no inverno, e, das virais, no verão. A pesquisa da Fiocruz contribui, ainda, para o cumprimento de ações da agenda estratégica 2011-2015 da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, que tem entre suas metas a redução dos riscos e agravos ao bem-estar da população, por meio de ações de precaução e de promoção de hábitos saudáveis. Uma das iniciativas consiste em aumentar para 59%, até 2015, o número de casos de meningite bacteriana encerrados por diagnóstico laboratorial específico.

Projeto: Pesquisa de biomarcadores das meningites para o desenvolvimento de kits de diagnóstico Coordenador: Luiz Augusto Pinto Edital: Rede Mineira de Biotecnologia e bioensaios; Projeto estruturador do arranjo produtivo local de Biotecnologia Valor: R$ 110.000,00

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

19


zoologia

Fauna em apuros Mapeamento de anfíbios e répteis aponta ameaça por que passam áreas da Serra do Espinhaço Virgínia Fonseca

A espécie Bokermannohyla itapoty, presente na Serra do Curral, foi descrita pelos professores Felipe Leite e Paulo Garcia

20

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014


Mais de mil quilômetros de serras e formações montanhosas, em linha quase reta, cortando a região central do País no sentido norte-sul, da Bahia a Minas Gerais. A Serra do Espinhaço recebeu este nome em alusão a sua pequena variação longitudinal, que faz dela uma “espinha” – de Ouro Branco, em terras mineiras, à baiana Xique-Xique. Se você é aficionado pelas belezas naturais do Brasil, dificilmente não botou (ainda) os pés nessas paisagens que primam por características semelhantes e absolutamente singulares. Basta dizer que fazem parte desta construção geográfica alguns trechos bastante populares, como Serra do Cipó, Chapada Diamantina, Serra dos Cristais e Serra de Ouro Branco, dentre outros. Na América do Sul, essa cadeia de serras só perde, em extensão, para a Cordilheira dos Andes – motivo pelo qual pleiteia a denominação de “Cordilheira Brasileira”. Grande parte da singularidade deste ecossistema, porém, está seriamente ameaçada. Essa é uma das conclusões de estudo conduzido pelos professores Paulo Garcia, do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG), e Felipe Leite, do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Viçosa (UFV) – campus Florestal. Durante quase quatro anos, ao longo do doutorado de Felipe, uma equipe por eles coordenada realizou minuciosa varredura das espécies de anfíbios e répteis da Serra do Espinhaço e dos habitats que os abrigam. A pesquisa abrangeu toda a Serra do Espinhaço, desde a Serra de Ouro Branco, na porção Sul, até o Norte da Bahia, na Chapada Diamantina, pois, conforme destacam os estudiosos, não há, em Biologia, divisões políticas, mas “biogeográficas”. Existia, argumentam os cientistas envolvidos na investigação, um desconhecimento generalizado sobre a distribuição dos anfíbios na Serra do Espinhaço. “É comum conhecermos melhor apenas as regiões próximas aos centros urbanos, por uma questão de recursos e de acesso”, explica Paulo Garcia. Para se ter ideia, a região do Quadrilátero Ferrífero, em Minas, é a mais

trabalhada, pela proximidade e devido aos interesses econômicos que envolvem a área. Porções afastadas, por sua vez, não dispõem de foco específico, de forma que o acesso permanece restrito. Sem a complementaridade do trabalho e sem estudar a fauna como um todo, alegam os professores, não é possível compreender o que ocorre em determinada região. Assim, o desafio assumido foi o de montar uma base de dados com a distribuição geográfica de todas as espécies de anfíbios da Serra do Espinhaço. E, a partir dessa base, obter informações necessárias à proposição das regiões mais importantes para criação de novas áreas de preservação. O levantamento possibilita planejar e fornecer subsídios aos tomadores de decisão – especialmente, ao Estado – para a criação de novas unidades de conservação, além de verificar se as atuais são suficientes e comportam, de fato, as populações relevantes. Muitas unidades de conservação existentes foram criadas com base em aspectos mais cênicos do que biológicos. As normas que instituem o estudo de preservação, considerando fatores variados, são recentes. “Antes, fazia-se tudo com base em critérios cênicos, focados na paisagem, mesmo. Por isso, muitas unidades não atendem ao requisito básico, que é preservar a diversidade biológica, pois boa parte desta biodiversidade não está na reserva, mas fora dela”, revela Paulo Garcia.

Peculiaridades

A abrangência e a diversidade da Serra do Espinhaço embasaram a escolha do local para a realização da pesquisa. O complexo serrano engloba três tipos de biomas: Cerrado, Mata Atlântica e, ao Norte, Caatinga. Além disso, há formações específicas, como aquelas que ocorrem apenas nos campos rupestres ou de altitudes, um ambiente de transição, com componentes próprios. Além disso, comporta, nas partes de maior altitude, os chamados campos rupestres, conhecidos por sua fisionomia única e elevada riqueza de espécies endêmicas – ou seja, de ocorrência exclusiva. Os campos rupestres possuem mescla de composição de fauna de Cer-

rado, Mata Atlântica e Caatinga. O fato de abrigarem elementos endêmicos lhes confere importância especial no estudo, inclusive, das mudanças climáticas. Sabe-se que parte dessa fauna é relictual, remanescente de quando esses ambientes possuíam climas distintos do atual. “Os estudos dessas regiões podem nos ajudar a prever mudanças em andamento. Talvez, ao compreender o que houve no passado, consigamos prever ou imaginar o futuro”, defende o professor da UFMG. Dois momentos principais marcaram os trabalhos de pesquisa. A coleta de material foi realizada por meio de exaustivas saídas de campo, levadas a cabo, especialmente, na época das chuvas, de novembro a janeiro. Outra parte, igualmente importante, compunha-se de visitas às principais coleções de anfíbios e répteis do País – como Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, entre outras –, para verificar o que já havia sido coletado na Serra do Espinhaço e que constava nesses acervos. As coleções dão aos pesquisadores uma ideia do registro histórico, da época em que se coletou o material, além da referência de localização. Parte desses acervos, porém, foi registrada em regiões onde hoje se formaram cidades. Daí o fato de os animais não mais existirem naquele lugar. Felipe Leite menciona o exemplo de uma espécie que, anos atrás, havia sido coletada na capital, no bairro Santo Antônio. “Provavelmente, num período em que a região ainda era selvagem”, deduz. Mesmo no Parque das Mangabeiras, acrescenta o professor Paulo, muita coisa já não existe. Como parte da pesquisa realizada, todo o material precisou ser re-identificado, pois grande parte dele foi coletada em épocas distantes, com outros nomes e diferentes padrões de identificação. Já o trabalho de campo possibilitou aos biólogos outro aspecto fundamental: a exploração de lugares inéditos, que sequer constam nos registros (veja box à página 23). Como resultado de todo o esforço empreendido, os pesquisadores obtiveram 17 mil registros de anfíbios, totalizando

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

21


Preservação falha

Após a construção do banco de dados, o grupo realizou uma análise de lacunas, por meio da qual se estabelece a área necessária para que uma espécie seja minimamente preservada. O cálculo envolve a estimativa da extensão total da distribuição do animal e, com base em critérios previamente determinados, a definição do percentual desta área que precisa ser preservada. Quanto menor a distribuição total de uma espécie, maior a porcentagem da área de que ela precisa para garantir sua conservação. “Se determinado animal apresenta ocorrência numa região vasta, assumimos que parte daquela distribuição pode ser perdida por plantações, empreendimentos minerários e urbanização”, exemplifica Felipe Leite. Os pesquisadores constataram que a maioria esmagadora das espécies endêmicas está sub-representada dentro das atuais unidades de conservação – muitas não ocorrem em nenhum parque hoje delimitado. “Elas estão à mercê das transformações ambientais que, normalmente, ocorrem fora dessas unidades”, conclui Paulo Garcia. Além da análise de lacunas, a equipe realizou avaliação por distribuição potencial. Na impossibilidade de ir a todos os lugares, usam-se modelos para inferir a localização das espécies endêmicas e gerar o mapa com esses pontos. A representação é sobreposta à informação sobre vegetação remanescente, para ver o que já foi desmatado. Constatou-se, com isto, que muitas espécies perderam área significativa de distribuição potencial em função do desmatamento. Para nove es-

22

pécies, o quadro já torna inviável criar áreas de preservação nos moldes adequados para proteger o mínimo necessário. A má notícia não para por aí: comparação desse panorama com análises de lacunas do mundo todo apontou o caso da Serra do Espinhaço como o mais preocupante. A ideia, agora, é submeter os dados às autoridades, para que sejam recalculados os limites das áreas de preservação. Trabalho similar, realizado em São Paulo com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp) daquele estado, tem conduzido ao mesmo padrão. “São metodologias e lugares distintos, mas que chegam à mesma conclusão. Nossa forma de uso antrópico tem gerado uma situação complicada, que precisamos repensar”, adverte Paulo Garcia. Em Minas, o Quadrilátero Ferrífero também é afetado, de forma a isolar populações importantes de espécies endêmicas, o que, em longo prazo, pode resultar em extinção. “Não temos nenhum processo em andamento para reverter este quadro, e mesmo as unidades de conservação não são suficientes”, conclui. Para Felipe Leite, a palavra de ordem, neste cenário, seria “priorização”, pois facilitaria, inclusive, o diálogo entre as partes envolvidas – governo, empreendedores, mineradoras e outros interessados. “É impossível preservar toda a extensão da Serra. Porém, com o bom mapeamento das ocorrências, conseguimos selecionar áreas prioritárias e abrir mão de outras”, pondera.

Neste sentido, Paulo Garcia avalia positivamente a iniciativa de editais como o do Programa Biota Minas, da FAPEMIG, que possibilitou o mapeamento, mas adianta: a falta de continuidade gera grandes perdas. “A ausência de políticas públicas dificulta o andamento e provoca perda de dados significativos, os quais, em outro momento, precisarão ser novamente levantados”, conclui.

Referência

O trabalho realizado pelos professores Paulo e Felipe trouxe contribuições que devem refletir em outras pesquisas na área. A partir do material coletado, eles criaram uma completa coleção testemunho, que inclui, até mesmo, girinos e amostras de tecidos, para compor banco de DNA das espécies. Os exemplares estão depositados na Coleção Herpetológica, que faz parte das Coleções Taxonômicas do ICB-UFMG, grande acervo biológico representativo da fauna e flora de Minas e do País. Em breve, todo o material será transferido para um prédio próprio no campus, a ser construído com recursos federais obtidos pelo Comitê de Coleções Taxonômicas e pela Congregação do ICB. A coleção já se tornou referência nacional e foi selecionada pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF) e pelo governo do Estado, que irão custear a disponibilização de seu banco de dados para uso público. Isso tornará possível a consulta das infor-

Arquivo do projeto

163 espécies, 47 delas endêmicas – ou seja: só ocorrem na Serra do Espinhaço. Além disso, 13 espécies revelam-se potencialmente novas, enquanto outras cinco, comprovadamente inéditas, foram descritas e geraram trabalhos publicados pelo grupo. Felipe Leite esclarece que, embora tenha começado a pesquisa, oficialmente, em 2009, quando ingressou no doutorado, vinha coletando exemplares desde a graduação. “Suponho que contabilizo, neste material, mais de 10 anos de coleta de dados”. Já na estruturação da base de informações, o professor calcula que tenha levado cerca de dois anos e meio.

Encontrada na Chapada Diamantina, Bokermannohyla itapoty é uma das espécies endêmicas

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014


Arquivo do projeto

Projeto: Anfíbios e répteis da Serra do Espinhaço: preenchendo as lacunas do conhecimento de quatro áreas prioritárias para a conservação da herpetofauna de Minas Gerais Coordenador: Paulo Christiano de Anchietta Garcia Edital: Programa Biota Minas Valor: R$ 28.585,20

Leptodactylus oreomantis, também da Chapada Diamantina, descrito pelo professor Felipe Leite

Raquel Domingues

mações por instituições de todo o mundo, que poderão entrar em contato para solicitar material e detalhes sobre as espécies. Os pesquisadores também foram convidados, pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), a auxiliar na montagem da lista nacional de animais em vias de extinção. Outro resultado é o desenvolvimento de uma chave de identificação interativa para anfíbios. A equipe fotografa os animais com uma lupa especial, gerando imagens de qualidade, e transfere a um software específico, que facilita a identificação de espécies por meio da filtragem de suas características – cor, formato das partes do corpo, tamanho, local de coleta, entre outras. A ideia é oferecer o programa na internet, para que outras pessoas, inclusive leigos, auxiliem, de forma ágil, os processos de identificação. Isso facilitaria, inclusive, trabalhos de consultoria ambiental. Ainda na vertente tecnológica, foi gerado um guia eletrônico de cantos dos anfíbios, com foco no Quadrilátero Ferrífero. O material resultará em CD e em aplicativo que possibilita identificar o animal pelo som emitido.

Felipe Leite e Paulo Garcia ajudaram a compor coleção que se tornou referência

Sobrevivência na selva As expedições de campo para acessar locais inéditos na Serra do Espinhaço duravam, em média, 10 dias. Nesse período, os pesquisadores precisavam prescindir de praticamente todo o acesso à tecnologia. Como a maioria dos lugares eram picos, não havia sequer estradas, e os celulares não funcionavam. “Íamos de carro até onde dava e, depois, púnhamos mochila nas costas”, conta Felipe Leite. Os únicos aparelhos

indispensáveis eram o GPS e a lanterna – as coletas são feitas quase sempre à noite, já que os anfíbios, em sua maioria, possuem hábitos noturnos. Os pesquisadores contam que, por vezes, a tecnologia se restringe aos laboratórios. “Na mata, quanto mais habilidade para sobreviver sem tecnologia você tiver, tanto melhor”, assegura o professor, que compara as expedições

à atuação dos primeiros naturalistas. O veterano Paulo Garcia acrescenta que, para os participantes, trata-se de oportunidade única. “Este tipo de projeto ajuda a formar os alunos em situações práticas de campo e de laboratório, algo que apenas um curso de Biologia não proporciona. Estamos, portanto, qualificando recursos humanos altamente especializados para a pesquisa”, avalia.

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

23


Sabedoria em touchscreen

computação 24

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Iniciativa da PUC Minas pretende transmitir conhecimento aos idosos por meio de objetos de aprendizagem em dispositivos móveis Camila Alves Mantovani


O envelhecimento da população mundial é um fenômeno demográfico que desafia as sociedades contemporâneas. No Brasil, a população idosa cresce continuamente. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), extraídos da Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios (Pnad), realizada em 2012, o número de pessoas com mais de 60 anos correspondia a 12,6% da população, ou seja, quase 25 milhões de indivíduos. Resultante de uma série de fatores ligada às melhorias nas condições de vida da população, tal cenário apresenta impactos não apenas aos aspectos macrossociais do País, mas, também, aos sistemas de saúde e de previdência, assim como gera importantes consequências no dia a dia da população. Com idades entre 60 e 65 anos, os brasileiros iniciam o processo de aposentadoria, fato que provoca mudanças significativas em seus estilos de vida. Trata-se de alterações que vão da provável diminuição da renda à perda de inserção social, devido às dificuldades do sujeito em se manter atualizado. Sendo assim, é preciso pensar na promoção da qualidade de vida, para a população idosa, de maneira bastante ampla. Dentre os principais fatores que podem promover essa melhoria, destaca-se a oportunidade de o idoso conseguir manter-se atualizado, seja para trabalhar, seja para acompanhar conversas à mesa com a família. Áreas como Educação, Psicologia, Saúde e Computação têm se ocupado de estudos dessa natureza. Coordenado pela professora Lucila Ishitani, do Instituto de Ciências Exatas e Informática da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), o projeto “M-learning para usuários com restrições decorrentes da idade” pretende oferecer opções de atualização de conhecimento ao público idoso, a partir do desenvolvimento e da avaliação de objetos de aprendizagem em dispositivos móveis. De acordo com a pesquisadora, o aumento da longevidade tem levado muitos idosos a buscar formas de permanecer em atividade. Neste sentido, assim como as

opções de cursos presenciais, o ensino a distância surge como interessante opção, em função da flexibilidade – de horários e ferramentas – oferecida ao aluno. No entanto, se, até o final da década de 1990, os computadores eram os dispositivos mais emblemáticos do ensino virtual, a partir do século XXI, as mídias móveis, com destaque para os celulares e smartphones, entram em cena. A partir da digitalização e da ampliação da capacidade de processamento de dados, os recursos computacionais dos aparelhos têm se ampliado. Em função disso, o projeto da PUC Minas buscou conhecer e aproveitar melhor as potencialidades de tais dispositivos no contexto do mobile learning, ou m-learning (aprendizagem móvel, em tradução livre). Segundo Lucila Ishitani, o idoso de hoje, durante grande parte de sua vida, não lidou muito com os computadores – e menos ainda com os celulares inteligentes. Contudo, de acordo com resultados apontados pela pesquisa, o fato de não possuírem contato prévio não se revela impeditivo para a abertura ao uso dos aparelhos. “Apesar de não terem muita intimidade com a tecnologia, no momento em que tinham acesso, encantavam-se com as inúmeras possibilidades de uso”, afirma, ao lembrar que o foco nos dispositivos móveis deveu-se ao fato de o investimento em computadores mostrar-se alto, tanto do ponto de vista financeiro, quanto do esforço necessário à aprendizagem para utilização. “A realidade é que muita gente não vai comprar um computador. Foi por isso que pensamos nos dispositivos móveis. Eles até podem ter custo elevado, mas é possível ter um smartphone de valor inferior. Além disso, o dispositivo oferece menos resistência por estar ligado a um objeto que o indivíduo já usa, o telefone”, destaca Lucila.

Sensibilidade(s)

Vencida a barreira à escolha dos dispositivos móveis como forma de “ambiente” para busca de informações, é preciso pensar na experiência do usuário durante seu uso. A experiência é agradável? O idoso sente-se confortável e motivado? MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

25


Com base em tais questões, para além da preocupação com o conteúdo, a pesquisa apontou a necessidade de se pensar interfaces que atendessem às características do público mais velho. No que concerne a tal desenvolvimento, existe uma série de questões e pré-requisitos a ser considerada. Entre tais fatores, a pesquisadora destaca o tamanho da letra, o contraste de cor e o tempo de resposta, preocupações que se relacionam à diminuição das habilidades motoras, cognitivas e perceptivas resultantes do avanço da idade. Além disso, havia questões referentes à própria experiência de uso de equipamentos tecnológicos. Como exemplo, Lucila destaca as experiências realizadas, no projeto, com as telas touchscreen. A maior parte dos idosos pesquisados – e representativos de uma geração – não teve muito contato com a referida tecnologia, estando mais acostumados ao uso de botões. Ao experimentarem as telas sensíveis ao toque, os participantes da pesquisa acabavam por exercer pressão maior que a necessária, interferindo na interface. “Dependendo do aplicativo, eles não conseguem interagir, porque o equipamento não responde a determinado tipo de pressão. Por isso, os aplicativos desenvolvidos têm que ser pensados, por exemplo, para aceitar toques mais fortes”, conclui. Outro interessante resultado obtido refere-se à questão da dinâmica da atividade. A coordenadora destaca que a marcação de tempo para a realização de ações é algo que estressa bastante os idosos. Sendo assim, é recomendável criar iniciativas que não apresentem limitação de tempo para sua execução. Apesar de os resultados serem bastante expressivos, permitindo a caracteri-

26

zação do público em relação ao uso dos dispositivos, a pesquisadora destaca o fato de esse segmento apresentar grande heterogeneidade. “É uma faixa de idade muito grande, abarcada sob denominação única: terceira idade. Há pessoas com 75 anos que estão ótimas e outras que já têm a saúde fragilizada. Dessa forma, durante o desenvolvimento e a avaliação dos objetos de aprendizagem, procuramos trabalhar com as características mais gerais e representativas desse público”, pontua.

Desenvolvimentos futuros

Após a conclusão do projeto, as investigações encontram-se em nova fase. De acordo com Lucila Ishitani, estão sendo realizados estudos de usabilidade com o objetivo de desenvolver aplicativos para o público idoso. Tendo ainda como foco a questão da aprendizagem, o grupo tem se debruçado sobre o universo dos jogos, com vistas à incorporação dessa dinâmica aos aplicativos de cunho educacional. Ao tomar por base os chamados jogos sérios, o estudo busca descobrir, dentro desse universo, o que seja de interesse dos idosos, para o desenvolvimento de interfaces. A partir de aplicativos gratuitos já existentes, foram feitos testes com o público-alvo, e, com base nos resultados obtidos, iniciou-se a elaboração de um protótipo. Ao avaliar o projeto e seus desdobramentos, a pesquisadora destaca que um dos principais méritos do estudo foi confirmar a necessidade de se investir em investigações e iniciativas com foco nos mais velhos. “Vimos que é fundamental oferecer a esse público opções de novos aprendizados. Por que não continuar a aprender? A aposentadoria não pode significar o fim. Há muita vida pela frente”, conclui.

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Diferentemente de outras atividades lúdicas, os chamados “jogos sérios” (serious games) têm foco em aprendizado específico e intencional.


genética

eram os deuses geneticistas? Projeto de extensão procura socializar conhecimento sobre doenças sanguíneas de origem genética Virgínia Fonseca

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

27


Fazendo escola A vertente do projeto Nagente, conduzida em parceria com a PUC Minas, buscou socializar os conhecimentos da Genética com professores de Biologia da rede pública de Belo Horizonte. A partir da colaboração de docentes e estudantes do curso de Ciências Biológicas da universidade, foram desenvolvidos materiais de ensino capazes de facilitar o processo de ensino-aprendizagem nesta área.

Raquel Santiago

Práticas e jogos faziam parte do modelo pedagógico adotado, apresentado aos professores do ensino médio por meio de uma oficina que abordou conteúdos como variações das leis de Mendel; biologia molecular e biotecnologia; genética e princípios evolutivos. A equipe produziu oito modelos e jogos, além de uma apostila. Alguns foram entregues na Escola de Saúde Pública de Minas Gerais, em Belo Horizonte, e há outros em exposição no Centro de Integração e Valorização das Atividades Acadêmicas (Ceiva) do Departamento de Ciências Biológicas da PUC Minas.

Produção de modelos didáticos foi uma das faces do projeto

28

Em 1997, o mundo acompanhou, estarrecido, o anúncio de que cientistas do Instituto Roslin, na Escócia, haviam realizado inédita clonagem de um mamífero. Quem não há de se lembrar da famigerada ovelha Dolly? Já à época, também estava em andamento outro estudo, empreendido em nível global, com resultados admiráveis: o mapeamento genético da espécie humana. O Projeto Genoma Humano, que teve participação brasileira, iniciou em 1990 e concluiu, em 2003, o sequenciamento dos genes que constituem o homem. Ambas as iniciativas científicas compõem marcos da evolução das pesquisas em Genética e Biologia Molecular, campos que, nos últimos anos, sob holofotes, despertam curiosidade e controvérsia. Tanto na academia quanto fora dela, pontos polêmicos relacionados a pesquisa genômica, clonagem, emprego de células-tronco, produção e uso de organismos transgênicos têm sido discutidos, embalados pela visibilidade midiática. “As questões advindas destes temas convocam as pessoas a refletir e a opinar sobre benefícios, riscos, implicações éticas, morais e sociais das biotecnologias geradas a partir de pesquisas”, corrobora Cibele Velloso Rodrigues, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, campus Governador Valadares. Doutora em Genética Genética e especialista em Genética Molecular Humana, a pesquisadora idealizou propostas que buscam socializar os conhecimentos da área, estendendo-os, especialmente, aos pacientes com distúrbios sanguíneos hereditários – hemoglobinopatias e coagulopatias – investigados pela Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais (Hemominas). O projeto de extensão “Socialização da Genética: formação do Núcleo de Apoio e Orientação em Genética (Nagente)”, iniciado em 2009, presta orientação aos profissionais da Fundação Hemominas quanto a metodologias e interpretação de resultados de diagnósticos em Genética. Paralelamente, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), onde Cibele Velloso lecionava então, o grupo trabalhou com a criação de materiais didáticos para oficinas de educação continuada para professores de ensino médio de Belo Horizonte, bem como para profissionais de saúde.

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Ao possibilitar a vivência de atividades experimentais empregadas em Genética e Biologia Molecular, a proposta contribui, segundo a professora, para que a metodologia usada na produção de conhecimentos nestas áreas seja melhor compreendida.

Perfil aprofundado

Cada “microporção” do material de que somos feitos – minúsculas estruturas químicas (moléculas) que reúnem quatro bases, cuja sequência se alterna – carrega traços de nossos antepassados e pode influenciar no que seremos (nós e nossos descendentes). Com o mapeamento genético humano, grandes perspectivas se abriram aos estudos relacionados à prevenção e ao tratamento de doenças de origem genética. Na Fundação Hemominas, o grupo coordenado pela professora Cibele iniciou a proposta avaliando os prontuários dos pacientes cadastrados com um distúrbio de coagulação sanguínea conhecido como doença de Von Willebrand. Por meio de consultas médicas e de dados obtidos nos prontuários, os estudiosos criaram dois bancos informatizados, com informações clínicas e laboratoriais. “A partir de tais elementos, temos conseguido traçar um perfil da realidade desta doença genética, reclassificar alguns dos seus tipos e melhorar o atendimento a este público”, comemora a coordenadora. Ainda no que tange à atuação junto aos profissionais de saúde, a equipe realizou encontros de formação com funcionários da Fundação e produziu uma cartilha de orientação, a eles destinada, sobre a doença de Distúrbio hemorrágico resultante de defeito quantitativo e/ou qualitativo do fator Von Willebrand (FVW). Na maior parte das ocorrências, trata-se de doença genética, congênita, transmitida como caráter autossômico, resultante de mutações no gene que codifica o FVW. Das enfermidades hemorrágicas hereditárias, é a mais prevalente, chegando a um caso para cada 100 habitantes. Segundo dados do Ministério da Saúde, entretanto, ainda é subdiagnosticada no País.


ticipação de professores de Departamentos de Saúde e de Nutrição. No escopo da proposta está, ainda, o desenvolvimento de estudos com crianças das escolas municipais de Governador Valadares, nas quais serão avaliados dados antropométricos, de pressão arterial e informações familiares que possam gerar

o perfil fenotípico dos participantes. “Assim, poderemos investigar os riscos de hipertensão, obesidade e diabetes. Realizaremos, junto às escolas e aos familiares destas crianças, orientações genéticas e nutricionais”, adianta Cibele Velloso. Além disso, a ação envolverá professores de Biologia das escolas públicas da região. Paloma Araujo

Von Willebrand. Os dados trabalhados com os pacientes da enfermidade resultaram em novas possibilidades de desenvolvimento de pesquisas, e, segundo Cibele Velloso, têm fornecido suporte para o conhecimento mais abrangente e cuidadoso do público-alvo. “Além disso, tivemos a oportunidade de apresentar aos profissionais de saúde, e à direção da Fundação Hemominas, a necessidade de investir na melhoria do diagnóstico e do acompanhamento terapêutico dos pacientes”, comenta. O núcleo permanece ativo no acompanhamento dos pacientes com a doença, sob coordenação da médica Maria Sueli Namen Lopes, e na alimentação dos dois bancos de dados informatizados, organizados pela bióloga Stela Brener. Agora, os trabalhos estenderam-se ao Hemocentro de Governador Valadares, em parceria com o campus local da UFJF. A equipe formada ali pretende realizar, na cidade, pesquisa com pacientes de anemia falciforme e alfa-talassemia. O alcance da proposta também se ampliou, com atividades na área de Nutrição. O novo projeto, intitulado “Núcleo de Apoio e Orientação em Genética e Nutrição: NAOriGeN”, foi aprovado pela FAPEMIG em 2013, com par-

Minicurso proporcionou desenvolvimento de atividades práticas

Genética e prevenção segundo Angelina Jolie Em 2013, a atriz Angelina Jolie optou por se submeter à dupla mastectomia, como forma de prevenir uma doença de origem a que ela estaria sujeita devido a fatores genéticos. A notícia causou alvoroço e muito debate sobre o tema. Para a professora Cibele Velloso, a mídia tem traduzido e levado ao público não acadêmico informações relevantes das descobertas da Genética na área humana e, consequentemente, das questões éticas advindas destas investigações. “No entanto, ainda é preciso investir na formação continuada dos educadores das Ciências Biológicas que atuam nos ensinos fundamental e médio, para que tais informações sejam abordadas de forma menos abstrata e mais próxima da realidade dos estudantes e da comunidade em geral”, opina. Portaria publicada recentemente

pelo Ministério da Saúde deve contribuir para a socialização do conhecimento. Trata-se do documento que cria a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no Sistema Único de Saúde (SUS). Dentre as enfermidades, enquadram-se as que têm, como causa, a contribuição genética. Desse modo, usuários do SUS passarão a contar com rede de atendimento estruturada em serviços de atenção especializada e de referência – entre os quais, estarão o diagnóstico das doenças raras e o aconselhamento genético. “A curiosidade e a consciência das pessoas sobre o assunto devem aumentar significativamente nos próximos anos e demandar dos profissionais da saúde a capacidade de transmitir, de forma simples, mas fidedigna, conhecimentos da área”, prevê.

Projeto: Socialização da Genética: formação do Núcleo de Apoio e Orientação em Genética Coordenador: Cibele Velloso Rodrigues Edital: Extensão em Interface com a Pesquisa Valor: R$ 47.040 Projeto: Núcleo de Apoio e Orientação em Genética e Nutrição: NaOriGeN Coordenador: Cibele Velloso Rodrigues Edital: Extensão em Interface com a Pesquisa Valor: R$ 39.165

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

29


eNGENHARIA DE ALIMENTOS

Eles, definitivamente, se completam Técnica desenvolvida por estudiosos da Universidade Federal de Viçosa permite que se transmitam nutrientes do arroz ao feijão (e vice-versa) William Rocha Ferraz

30

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014


Presença indispensável nas receitas da culinária brasileira, o arroz com feijão tornou-se emblemático na cultura nacional, e, variando de estilo aqui e acolá, dá as caras nos quatro cantos do País. Fruto de miscigenação da tradição lusitana – que, por herança mediterrânea, tem o arroz como carro-chefe das refeições – com os costumes dos escravos africanos e ameríndios, que consumiam feijão em diversas formas, a combinação ganhou tanta popularidade em terras tupiniquins que, hoje, é difícil imaginar uma refeição sem o apetitoso dueto. Reza a lenda – fomentada pelo historiador, antropólogo e jornalista Luiz da Câmara Cascudo (1898-1986) – que o responsável pela harmonização dos grãos, em um mesmo prato, foi o monarca português Dom João VI, famoso por sua glutonaria inveterada e pela irrefreável apreciação à arte da Gastronomia. Controvérsias à parte, fato é que o ávido gosto do rei por novos paladares contribuiu para difundir, no Brasil, um hábito alimentar que redefiniu a qualidade de vida da população. A combinação parecia elevar o moral de soldados e trabalhadores rústicos. E não é para menos. A mistura assegura importante complementação nutricional. Ambos os alimentos possuem, em sua composição, substâncias essenciais ao bom funcionamento do organismo humano. Em termos de nutrientes essenciais, o que falta em um é fornecido pelo outro. “Ambos possuem extensa gama de vitaminas do complexo B, carboidratos e ferro. No arroz, encontram-se, exclusivamente, cálcio e folato. Já o feijão é detentor de proteína vegetal e de minerais fundamentais”, explica Nilda de Fátima Ferreira Soares, doutora em Ciência de Alimentos e coordenadora da equipe de embalagens ativas da Universidade Federal de Viçosa (UFV), ao lembrar, ainda, que o arroz possui metionina, enquanto o feijão, lisina. “Cria-se, desse modo, o elo entre aminoácidos indispensáveis à reparação de tecidos do organismo”. Ademais, a combinação apresenta um benefício extra: se consumido diariamente, mas sozinho, o arroz pode provocar aumento das taxas de açúcar e de insulina presentes

no sangue. Já em parceria com o feijão, tal efeito é controlado, por meio da conservação da estabilidade da glicose. “Todos esses fatores fazem do prato um dos mais completos do Ocidente”, ressalta Nilda Soares. Entretanto, apesar de sua popularidade, a iguaria ainda passa despercebida à mesa de muitos brasileiros, que não a têm como combinação palatável, principalmente, no que diz respeito ao feijão. Esse comportamento é muito frequente entre as crianças – e é na infância que a completa entrega de nutrientes provida pelos alimentos revela-se ainda mais importante, devido às necessidades de um organismo em formação. Ao pensar, inicialmente, nesse público, Nilda Soares e a equipe do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV deram início a projeto cujo objetivo seria a incorporação dos nutrientes de um alimento na composição do outro, com vistas à possibilidade de maior oferta de nutrientes essenciais a indivíduos que não têm por hábito o consumo dos grãos combinados, numa mesma refeição. A investigação resultou de outras duas pesquisas, desenvolvidas separadamente, com ênfase no enriquecimento do arroz e do feijão.

Liberação de nutrientes

Os estudos se enveredaram por estratégias pouco usuais, no sentido de agregação de valor nutricional aos alimentos. “Geralmente, o processo de enriquecimento alimentar dá-se por meio da incorporação de nutrientes à composição da comida, método que depende de maior dispêndio Trata-se de recipientes que apresentam interação com os produtos que abrigam. De acordo com Nilda Soares, “esses envoltórios são capazes de controlar uma propriedade que se deseja, como inibir o amargor de determinados alimentos ou exercer ação antimicrobiana. No projeto em questão, o objetivo é o armazenamento de nutrientes”, explica. Em 1998, a UFV, com apoio da FAPEMIG, trabalhou no desenvolvimento do primeiro projeto de embalagens ativas do País. Tal pesquisa foi tema de reportagem publicada na edição nº 9 de MINAS FAZ CIÊNCIA.

de fase laboratorial. A produção que experimentamos baseou-se na inserção dos nutrientes em uma espécie de revestimento biodegradável e hidrossolúvel, para que, durante o cozimento, eles fossem liberados no alimento”, explica Soares. A pesquisadora, que possui conhecimento na área de fabricação de embalagens ativas, explica que o método foi testado a partir do pressuposto de que o uso desse recurso permitiria uma produção mais dinâmica. “Isso se reflete na oferta do produto em maior escala e no atendimento mais eficaz às demandas de um prospecto de mercado”, comenta. Para introdução de nutrientes no alimento, a pesquisadora baseou-se no modelo de preparo de arroz instantâneo, cozido por meio de imersão em água fervente, sem retirada da embalagem. Nesse caso, buscou-se incorporar, ao invólucro, uma espécie de biofilme à base de celulose, modificada para preservar os nutrientes característicos do feijão. “Resistente à temperatura média de cozimento do arroz, entre 90º e 100°C, mas devidamente confeccionada para liberar os nutrientes quando em contato com a temperatura de cozedura, a tecnologia agrega valor nutricional ao arroz quando aquecida”, conclui. No caso do feijão, que requer procedimentos que inviabilizam o processo de cozimento rápido, a técnica aplicada envolveu metodologia inovadora. Os estudos iniciais consistiram no desenvolvimento de uma solução à base de amido, de consistência glutinosa, que demonstrou potencial para conservar as propriedades nutricionais do arroz. Na solução, os grãos de feijão são imersos. Após a secagem, os feijões, envoltos pela substância, estão prontos para transportar, ao prato do consumidor, também as propriedades do arroz. “Durante o cozimento, os nutrientes se diluem e se misturam ao caldo do feijão. O tipo de solução usada não interfere nos valores nutricionais propostos, nem adultera o sabor dos grãos”. Entretanto, a preocupação dos cientistas com a qualidade do produto estende-se, ainda, ao aspecto visual do alimento. “Durante os estudos, constatamos que o revestimento de amido confere

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

31


Daniel Sotto Maior

Nilda Soares: inserção de nutrientes é realizada durante cozimento

aos grãos uma tonalidade opaca, esbranquiçada. Considerando que essa característica pudesse comprometer a adesão do produto junto ao público, estamos conduzindo novos estudos”. Ainda em fase de testes, a matéria selecionada para compor o revestimento dos grãos foi a cera de carnaúba – que, natural e comprovadamente sem malefícios à saúde humana, é capaz de atender à proposta tal como a goma de amido. Entretanto, por ser mais translúcida, conserva o feijão em sua coloração própria. Encontrar o produto nas prateleiras de seu supermercado favorito, porém, ainda depende de muita ciência aplicada. De acordo com a pesquisadora, o projeto passa, atualmente, por importante fase, até que esteja pronto para distribuição ao público. “Conduzimos estudos que buscam identificar a sobrevida do produto, ou seja, o período de consumo seguro após a fabricação”, explica. Outro estudo em andamento diz respeito ao consumo simultâneo de arroz e feijão enriquecidos. “Desenvolvemos pesquisas sobre os valores toleráveis de consumo diário dos nutrientes em questão, para, então, determinar as taxas recomendáveis a cada pessoa, seja por faixa etária, gênero ou rotina. Já se pode garantir que não há malefícios no consumo dos produtos de maneira associada. O que se modifica é o volume das porções, de acordo com o estilo de vida de cada indivíduo”, esclarece a pesquisadora. Importante ressaltar, por fim, que o pro-

32

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

duto está em processo de patenteamento, fase que pode levar alguns anos.

Aspirações

Nilda Soares explica que as pesquisas já desenvolvidas representam apenas o primeiro passo para que se dê início a uma linha específica de investigações no campo da Engenharia de Alimentos. “Agora que nossa equipe constatou a funcionalidade do produto, buscaremos realizar estudos voltados à criação de produtos para nichos específicos, como idosos, populações infantis em regiões cuja alimentação ofereça baixo índice proteico, ou mesmo uma linha de alimentos especialmente desenvolvida para atender as necessidades nutricionais de atletas”, explica. A pesquisa também demonstra forte candidatura à abrangência internacional, uma vez que não é comum encontrar, em outras culturas, o hábito de combinar os grãos em suas refeições. “O uso da tecnologia seria uma excelente oportunidade para povos de outros países consumirem os nutrientes de nosso prato tradicional, mesmo em culturas cujo paladar não está acostumado à combinação do arroz com o feijão, ou em regiões onde o cultivo dos grãos seja pouco viável”, conclui.

Para saber mais sobre o assunto, acesse o blog Minas faz Ciência e acompanhe os programas Ciência no Ar e Ondas da Ciência.


arte e educação

Passos transcendentes Projeto trabalha o diálogo entre diferentes vocabulários da dança e estimula a educação sensível para a arte Ana Luiza Gonçalves

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

33


da Universidade Federal de Viçosa (UFV), onde fundou o curso de Dança (bacharelado e licenciatura). Aulas teórico-práticas sobre os diferentes gêneros da dança, fruição de vídeos, apreciação de espetáculos, oficinas e excursões pedagógicas foram as formas encontradas por Alba Vieira para debater, com os alunos, a amplitude do conceito da dança. Por meio do projeto, essa arte acabou valorizada e redescoberta por aqueles que se propuseram a fazer parte da iniciativa. Os pesquisadores notaram, contudo, que, mesmo com investimento e apoio para educar pessoas nesse âmbito, ainda há falhas a serem sanadas: recentemente, pesquisa realizada pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) e pela Fundação Perseu Abramo, com 2,4 mil pessoas de 25 estados da Federação, mostrou que seis em cada dez brasileiros nunca foram ao teatro e que 75% dos entrevistados jamais assistiram a um espetáculo de dança. Como se pode perceber, há deficiências nacionais que precisam de solução. Afinal, segundo os pesquisadores, existe um “condutor” que pode se quebrar a qualquer momento, caso não haja boas políticas de educação para os novos e diferentes olhares que a arte pode propiciar. Na acepção de Alba Vieira, tanto nos grandes quanto nos pequenos centros urbanos, é escasso o público interessado em dança, em compa-

ração ao tamanho da população brasileira. “A partir dessa identificação, percebemos a necessidade de buscar mecanismos capazes de apoiar a valorização e a difusão cultural, sobretudo a dança, além de ampliar o acesso ao conhecimento sensível, imagético e criativo da população, por meio da educação e da formação da sensibilidade estética do público”, esclarece. Neste sentido, o projeto trabalha o conceito de fruição da arte como “diálogo”, de modo a que o espectador interaja com as expressões artísticas como sujeito ativo. Desse modo, adquire autonomia e também se torna artista. “Nos corpos de quem faz, cria, assiste, ouve, sente, cheira e, às vezes, toca a obra de ‘outro’ ser artístico, está aberta a possibilidade de construir saberes, assim como de acompanhar, ressignificar e articular discursos próprios, estabelecidos por diferentes entendimentos, histórias de vida e valores – compostos, coletivamente, pelo contexto da arte”, comenta Alba Vieira.

Modos de olhar Para além de mera técnica, a preparação do olhar do(s) outro(s) para a arte requer tempo – da adaptação ao novo à aprendizagem do que seja fruição, observação e experimentação. Nessa perspectiva, as horas atuam, concomitantemente, como aliadas e vilãs: por um lado, o passar dos dias pode ser útil para que os

Alba Vieira

O que significa a dança para você? Talvez Alice e Paulo dissessem que são movimentos de mudança. Carlos, por sua vez, apontaria para o balé das nuvens no céu, enquanto Cecília, ainda pensando na questão, girasse e girasse, de modo a sentir o vento sobre o corpo. Por fim, Ana e Deborah, categóricas, afirmariam: vida! Aqui, os nomes são ilustrativos e renovam os conceitos em torno de uma das mais antigas atividades da humanidade. Contudo, essa variável de significações depende bastante do olhar do espectador, pois a dança pode ser e representar muitas coisas em um mesmo espaço – e para um único corpo. Imagine, agora, que a questão acima tenha sido feita a uma plateia com estudantes de escolas públicas dos ensinos médio e fundamental do interior de Minas Gerais. Diferentemente da elaboração das respostas de Alice, Paulo, Carlos, Cecília etc., percebem-se discursos tímidos, capazes, tão somente, de relacionar a arte à atividade física: “Dança, para mim, é esporte”. Tais palavras foram elaboradas por crianças e adolescentes das cidades de Viçosa e Paula Cândido, municípios da Zona da Mata mineira, como resultado da iniciativa intitulada “Educação para as artes: análise do impacto de projetos de interface entre pesquisa e extensão que focam na sensibilização estética ou no apreciar da dança pelo público mineiro”, coordenado por Alba Pedreira Vieira, professora

No estúdio de aulas práticas, alunos do 4º ano da Escola Municipal Dona Nanete participam da oficina de dança contemporânea.

34

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014


Alba Vieira

Alunos da Educação Infantil da Escola Municipal Anita Chequer durante apresentação de coreografia na Mostra de Dança Ladrilho, Ladrilhando e Brincando VIII - Arte e Meio Ambiente”, no Espaço Cultural Fernando Sabino da UFV.

alunos aprofundem seu conhecimento; por outro, trata-se de limitador aos profissionais, no que se refere às aplicações prática, estética, crítica e sensível. Para a coordenadora, tais questões permitem construir pontes dialógicas entre a realidade do sujeito e universos até então desconhecidos. Ao se deparar com o novo, por exemplo, a pessoa amplia a consciência de si mesma, e, simultaneamente, por meio da conversação estabelecida, torna-se auto-observadora. “Essas reflexões sugerem que nós, professores de arte e artistas, devemos considerar a inclusão da educação estética em nossa rotina, que desvela mundos até então ignorados ou pouco conhecidos. O conhecimento e a compreensão da diversidade na arte também podem levar à capacidade de aceitação das diferenças na vida cotidiana”, destaca. Outro aspecto discutido pela pesquisadora é o fato de que as pessoas só podem dizer se gostam ou não de arte se conhecerem, minimamente, as suas diversas possibilidades e expressões. “Para nós, o olhar do espectador que se permite conhecer, se lançar à vivência da arte ‘diferente’ cria uma tensão, um desequilíbrio que pode corresponder a uma aprendizagem estética em que há transbordamento

de novos significados. Assim, o primeiro passo para que o outro seja preparado/ educado para a arte é levá-lo a se abrir a essa diversidade”, comenta. Além disso, é necessário que se criem formas de incentivo à vivência artística, para que se forme o sentimento de pertencimento aos meios culturais. Ao pensar e planejar métodos de ensino, os profissionais envolvidos na área – tanto os educadores quanto os próprios artistas – devem considerar a importância do desenvolvimento do sujeito pela ampliação de sua consciência estética. “Ao investir no processo cognitivo holístico (mental e emocional), ampliamos as possibilidades dos sujeitos de processar informações de forma equilibrada e aprender em sentidos mais amplos, considerando a razão mental e o saber a partir do corpo”, reflete a pesquisadora. Para tal, Vieira aponta caminhos para a construção de políticas culturais de educação para arte que sejam acessíveis às diversas camadas sociais. Em primeiro lugar, está a difusão do alfabetismo em arte. Além disso, há necessidade de estreitar os canais de comunicação entre obra de arte, artista e público, de estabelecer relações entre universidade e sociedade e de democratizar o acesso à arte.

Trata-se de ação essencial, por permitir análises acerca da divulgação artística e sobre a sensibilidade apreciativa do público. A democratização do acesso aos bens da cultura permite, ainda, que os indivíduos desenvolvam o pensamento crítico. Por fim, a disseminação do conhecimento sobre arte significa a possibilidade de aproximar o indivíduo do próprio corpo, este importante meio de comunicação humana.

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

35


Resultados Dentre os problemas percebidos para a promoção da difusão cultural, destacam-se a massificação das obras pelos meios de comunicação e o imediatismo da vida na atualidade. Alba Vieira explica que a experiência investigativa levou os pesquisadores a sugerir propostas de educação apreciativa da arte – em particular, da dança –, privilegiando não apenas o produto, principal interesse da indústria cultural, mas, principalmente, a criatividade e a valorização do processo. Respeitaram-se, assim, as diversidades artística, cultural e corporal. “Desde a educação básica na escola, as pessoas devem ser estimuladas a apreciar obras de arte e a se questionar. Na universidade, problematizamos e discutimos o contexto das diferentes situações. Entendo que é nosso dever compartilhar esta atitude crítica com a sociedade, para minimizar os efeitos da massificação artística e cultural”, resume. Embora as escolas também percebam a barreira da inclusão da arte, foi dentro delas que Alba e sua equipe encontraram as principais dificuldades. Era preciso que as instituições participantes entendessem as expressões artísticas e a dança não como mero entretenimento, mas como área de conhecimento específica, que requer estudo e pesquisa. Mesmo com a verificação desses “percalços”, os resultados encontrados mostram que houve melhoria significativa quanto ao conhecimento artístico dos participantes: 73% deles consideraram que as atividades do projeto mudaram sua visão sobre o que seria a dança e 65% declararam ter outra concepção sobre os significados de uma apresentação da referida arte. “O trabalho permitiu enriquecimento cultural aos envolvidos, e, ao mesmo tempo, a valorização do patrimônio imaterial e histórico da região, do País e do exterior. Sugerimos que, por meio de metodologias educacionais diversificadas e duradouras de fruição e usufruição, seja possível ampliar a sensibilização estética e apreciação

36

artística em dança”, comenta a pesquisadora.

A dança como arte Durante o projeto, os alunos trabalharam, como intérpretes-criadores, na execução das mostras “Ladrilho, Ladrilhando e Brincando” e “Mosaico”. Nas apresentações, os educandos mostraram obras variadas, resultantes de processos colaborativos com a equipe do projeto. Além disso, as coreografias foram criadas pelos próprios alunos, englobando movimentos, gestos e expressões corporais em parceria com as professoras-pesquisadoras. Ao dialogar com a arte, é possível repensar práticas, e, também, dar novo sentido à vida. É possível perceber o amadurecimento dos estudantes em relação à dança. A mesma pergunta proposta ao início do projeto – “O que é dança para você?” – foi realizada ao final da iniciativa. Para além do “esporte”, a prática se revelou multifacetada: “É a arte que a gente descobre”; “É arte, é diferente”. Alba Vieira explica que a educação estética desenvolvida acabou por estabelecer, entre os participantes, as diferenças entre dança como arte e como atividade física. “A frase ‘É a arte que a gente descobre’, por exemplo, revela a descoberta da arte em si. Também pode se referir à capacidade da dança em nos estimular a descobrir algo sobre nós mesmos. Falo de aptidões, de gostos e limitações sobre os quais, por vezes, não temos plena consciência”, conta. A especificidade dos muitos estilos de dança também foi percebida pelos participantes do projeto. “Creio que isso diga respeito à diversidade de expressões vistas e experimentadas por eles, o que inclui gêneros novos em sua rotina, como o flamenco e a dança contemporânea”, comenta, ao lembrar que a pesquisa preocupou-se em estimular os alunos a buscar e identificar aspectos e nuances das obras – como a expressão facial do artista –, que antes passavam despercebidas a muitos deles.

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Projeto: Educação para as artes: análise do impacto de projetos de interface entre pesquisa e extensão que focam na sensibilização estética ou no apreciar da dança pelo público mineiro Coordenador: Alba Pedreira Vieira edital: Extensão em Interface com a Pesquisa Valor: R$ 37.183,66


Pautado em valores solidários, associativismo possibilita inserção alternativa de grupos no sistema produtivo Virgínia Fonseca

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

37

administração

Todos por todos


Com 20 mil habitantes, o município de Paraguaçu, no Sul de Minas Gerais, descobriu formas interessantes de geração de renda a partir de um fruto bastante comum no Cerrado. Trata-se do marolo – também conhecido como “araticum” –, espécie abundante na região e passível de ser empregado em produções diversas, do artesanato ao consumo in natura ou em licores, bolos, geleias etc. Na cidade, o trabalho de exploração consciente do fruto vem sendo conduzido pela Associação Terra do Marolo. A iniciativa segue a lógica do cooperativismo: a união de pessoas em torno das atividades de determinado foco produtivo que, isoladamente, seriam difíceis ou mesmo impossíveis de se realizar. Ao melhor estilo “a união faz a força”, a oficialização do grupo contou com o envolvimento de produtores, representantes da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG), do Departamento de Agricultura Municipal e de Associações Rurais locais, além de setores ligados a turismo, bares, hotelaria e cultura e de uma equipe de pesquisadores do campus Varginha da Universidade Federal de Alfenas (Unifal). Sob coordenação da professora Virgínia Carvalho, do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Unifal, a constituição da associação foi acompanhada e orientada, passo a passo, pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITPC) da universidade. A consolidação do empreendimento representou, aos integrantes e ao município, a possibilidade de explorar nova potencialidade econômica para a região, o resgate da tradição e da cultura locais relacionadas ao marolo, bem como a promoção de maior consciência acerca da necessidade de preservação da espécie. O associativismo e o cooperativismo baseiam-se na posse coletiva dos meios de produção, o que implica o direito de participar igualmente dos processos de gestão e distribuição de resultados. “Esse formato As ITCPs oferecem apoio e orientação à constituição de cooperativas e associações, caracterizadas como empreendimentos solidários.

38

produtivo tem se constituído como alternativa de geração de trabalho e renda para as populações social e economicamente excluídas do mercado formal de trabalho”, explica Virgínia Carvalho. Porém, embora unidos em torno de um empreendimento solidário, os membros da associação incubada no Sul de Minas não são indivíduos em situação de exclusão econômica e social, esclarece a professora. Eles estabeleceram, entre si, relações de cooperação frente aos problemas e objetivos comuns no trabalho com o fruto.

Valores adaptados

Em Paraguaçu, o processo de incubação da Associação durou cerca de dois anos, ao longo dos quais realizaram-se reuniões quinzenais entre os membros da ITCP/Unifal – discentes e professores – e os interessados na constituição do empreendimento. A iniciativa dividiu-se em três fases: caracterização, organização e ação gestora. Como parte do estudo acadêmico, durante a etapa de organização, realizou-se o levantamento dos valores atribuídos ao trabalho pelos membros do grupo, de modo a subsidiar o desenho e a implementação de ações desenvolvidas no transcurso do projeto. A percepção dos associados sobre os valores do trabalho foi comparada à concepção presente no ideário norteador da economia popular ou solidária. Dentre as limitações vivenciadas, os estudiosos ressaltam a dificuldade dos grupos em operar segundo princípios de autogestão. No caso do trabalho em questão, desde o início do processo de incubação, a partir das articulações com um pequeno grupo informal que reuniu os interessados na causa do marolo, percebeu-se a grande influência deste sobre os rumos do empreendimento. Tal situação tendeu a se consolidar com o tempo, a despeito dos esforços realizados pelos membros da ITCP/Unifal. “Em nossa análise, a tendência à centralização de decisões nas mãos de um pequeno núcleo de indivíduos poderia decorrer por influência das relações consolidadas na sociedade sobre a estrutura de poder no âmbito do empreendimento”, explica Virgínia Carvalho. Considerou-se, ainda, que as decisões e iniciativas ten-

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Quando se constituem em conformidade com a proposta da economia solidária, as associações e cooperativas devem pautar suas ações em princípios como solidariedade, cooperação, mutualismo e autogestão. diam a se mostrar centralizadas nesse núcleo. Por outro lado, todos os resultados das ações foram sempre igualmente compartidos entre os membros da associação, apontando que todos têm potencial de prestar grandes contribuições ao grupo. Os pesquisadores também viram com certa preocupação a concepção sobre a prioridade que deve orientar os empreendimentos solidários, no sentido de estabelecer se o êxito buscado é aquele gerado por meio de ganhos econômicos ou da concretização de outra realidade de trabalho. “São comuns os relatos de autores que apontam as dificuldades de implantação da autogestão no âmbito de tais empreendimentos”, lembra a coordenadora. Para ela, trata-se de questão delicada, pois, se, por um lado, a não observação dos princípios da economia solidária é capaz de descaracterizar a proposta, por outro, sua implementação integral permanece um desafio a demandar esforços e alternativas de enfrentamento. Dentre os membros do empreendimento estudado, os valores do projeto emergiram em uma hierarquia de importância que enfatizou, primeiramente, a “realização no trabalho” e, depois, as relações sociais, a estabilidade e o prestígio. Em comparação com os princípios da economia solidária, observou-se a existência de uma diferença na atribuição de importância às categorias de “relações sociais” e “realização no trabalho”. Esta distinção valorativa caracterizou-se como elemento de dificuldade para a concretização dos princípios solidários no interior do empreendimento, pois significava que os membros da associação buscavam no trabalho, essencialmente, satisfação pessoal, realização profissional e independência de pensamento e ação, princípios que apresentavam primazia ante os esforços de construir relações sociais positivas e contribuições para a sociedade, por meio do trabalho.


Mudar e refletir

e desenvolvimento da associação”, afirma a atual presidente da Associação Terra do Marolo, Gilmara Aparecida de Carvalho. Os 25 associados continuam a receber assistência e assessoria técnica por parte da ITCP/Unifal. E pretendem buscar outras contribuições, para além das reuniões mensais, por considerarem fundamental o trabalho da universidade junto à associação. Para Gilmara Carvalho, a economia solidária é hoje o caminho mais certeiro, e uma entidade que quer progredir deve sempre ter seus valores como objetivo. “Imagino que só por meio do associativismo teremos condições dignas e sustentáveis de trabalho”, opina.

Oposição ao capitalismo? A posição da economia solidária como contraponto à forma de produção tradicional do capitalismo é motivo de controvérsia entre os estudiosos do tema. Alguns defendem a ideia de que a economia popular e solidária pode se constituir como possibilidade de configurar, no interior dos empreendimentos, uma realidade laboral distinta, que promova a transformação individual e social, ainda que em âmbito local, modificando as perspectivas de realização pessoal e geração de renda por meio do trabalho. Já críticos de tal proposta são contundentes em abraçar a concepção de que a economia solidária consiste em apenas mais uma forma de precarização das atividades profissionais.

Pensamento solidário

No Norte das Minas Gerais, a 700 km de distância de Paraguaçu, a região de Montes Claros serviu como base a outro trabalho que estuda estratégias adotadas por famílias do Cerrado para geração de renda a partir de redes de solidariedade. “No campo das práticas, observa-se uma diversidade de formas econômicas, em que as pessoas se associam para produzir e reproduzir meios de vida com base em relações de reciprocidade e igualdade”, aponta a economista Luciene Rodrigues, professora da Universidade Estadual de Montes Claros e coordenadora do projeto de pesquisa.

Aquivo pessoal Luciene Rodrigues

De acordo com a coordenadora da pesquisa, este cenário, entretanto, não é estanque. Como se trata de empreendimento em fase de consolidação, é possível que se construam oportunidades de transformação da orientação valorativa relacionada ao trabalho, abrindo possibilidades de avanço rumo a um modelo de gestão mais alinhado ao ideal solidário. Virgínia Carvalho explica que, nesse sentido, o conhecimento, por parte do coletivo, dos limites do empreendimento configurou-se como primeiro passo no sentido de provocar reflexões necessárias. “Sabemos, porém, que a mudança de valores é um processo mais complexo, contra o qual se coloca o fato de estarmos inseridos numa sociedade fortemente marcada por valores capitalistas, dentre os quais o individualismo e a competitividade são apelos constantes”, admite. No que tange aos integrantes da associação, os pesquisadores contam com um ponto crucial para possível mudança do cenário: o reconhecimento da importância da atuação da ITCP. “Durante o processo de incubação, tivemos grande crescimento de todos os associados, por meio de palestras, cursos e atividades dinâmicas. A Unifal foi essencial no processo de criação

Na região de Montes Claros, cultura solidária favorece a formação de associações MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

39


A principal motivação para a existência de redes de solidariedade nos setores populares é um desejo libertário e de autodeterminação de suas vidas e da atividade econômica, com a centralidade do trabalho. O motor das ações, explica a professora, é o desejo de uma melhor qualidade de vida para a comunidade local e para a sociedade em geral, a partir de valores partilhados, como solidariedade, democracia, cooperação, preservação ambiental e direitos humanos. Nas frestas das formas mercantis dominantes, desenvolvem-se alternativas de produção fundadas em outras lógicas, muitas delas reconhecidas pela designação de “economia solidária”. No caso das iniciativas no Cerrado Norte Mineiro, o que se percebe são modos variados, em que algumas, embora não institucionalizadas como tal, funcionam como associações de trabalhadores, enquanto outras se revelam formas econômicas de produção e reprodução ampliadas de meios de vida, regidas por princípios associativistas. No Cerrado Norte Mineiro, as práticas comunitárias não são novidade: a solidariedade primária é parte da vida e da cultura camponesas, constituindo o cimento das relações sociais e econômicas. Diante dos processos de modernização e desagregação do campo, ao migrar para as cidades, muitas famílias levam a tradição comunitária da cultura do mundo rural para as relações no espaço urbano, processo esse que é transmitido para as gerações seguintes.

A partir de pesquisa de campo, Luciene e sua equipe constataram que a proliferação de formas de trabalho associativas, especialmente entre os setores de baixa renda, recupera a dimensão política do associativismo e de práticas de solidariedade social. Para além dessa percepção, entrevistas mostraram que se, por um lado, há pessoas que sonham em ingressar no mercado de trabalho formal, outras cultivam a convicção do valor do ofício associativo – modelo capaz de lhes garantir autonomia, autogestão e novas relações sociais e profissionais. Os pesquisadores distinguiram associações que se constituíram horizontalmente – a partir da vontade de seus membros – daquelas que aderiram a um programa institucional de economia solidária. Considerou-se, também, uma situação intermediária, em que a mobilização se faz de forma vertical, partindo do centro de iniciativa de uma associação para os empreendimentos ou investimentos singulares. “O tipo de iniciativa distingue os níveis de autonomia dos associados em relação aos projetos”, constata Luciene Rodrigues. A professora, agora, desenvolve uma proposta de continuidade dos estudos que permita contribuir para o desenho de políticas públicas aptas a fortalecer a economia solidária, não apenas no sentido de combater a pobreza, mas, também, de identificar experiências inovadoras para fomento dessas ações.

Mil possibilidades O marolo (Annona crassiflora) é uma fruta nativa do Cerrado brasileiro, pertencente à família das anonáceas, da qual também fazem parte a graviola, a fruta-do-conde, a pinha e a atemoia, dentre outras. Sua safra começa em meados de fevereiro e vai até abril. Com folhas grossas e galhos retorcidos, o maroleiro é uma árvore rústica, encontrada, principalmente, em campos abertos e pastagens. Quando começa a amarelar por baixo, é sinal de que o fruto está maduro. A polpa, de aroma perfumado, possui sabor forte e muito doce, apreciado para confecção de licores e doces. Por sua influência sociocultural, a fruta tornou-se um dos símbolos de Paraguaçu (MG). Os integrantes da Associação Terra do Marolo produzem e comercializam o fruto e sua polpa, além de mudas, doces, licores, geleias, bolos, pães de mel, sorvetes, biscoitos e objetos de artesanato.

40

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Projeto: Economia e vida: redes de solidariedade, recursos e estratégias de autoorganização do trabalho para a geração de renda e reprodução social de famílias pobres do Cerrado – Norte de MG Coordenadora: Luciene Rodrigues Edital: Demanda Universal Valor: R$ 44.770,32 Projeto: O processo de incubação em cooperativas populares e a percepção de valores do trabalho Coordenadora: Virgínia D. Carvalho Edital: Extensão em Interface com a Pesquisa Valor: R$ 33.796,35


Pesquisa interdisciplinar aglutina Engenharia e Biologia para compreensão e tratamento da epilepsia Camila Alves Mantovani

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

41

biomedicina

O cérebro e seus teoremas


O uso das tecnologias de informação e comunicação tem apoiado, cada vez mais, as pesquisas em diversos campos científicos. Em 1999, John Taylor, à época diretor geral do Departamento de Ciência e Tecnologia do Reino Unido, cunhou o termo e-Science (em português, e-Ciência) para designar estudos realizados por meio de um ambiente colaborativo, organizado em rede, e que empregava mecanismos computacionais de processamento, armazenamento e transmissão remota de dados. O envolvimento das tecnologias no fazer científico, sob o ponto de vista da e-Science, advém tanto de uma necessidade estimulada pela dispersão geográfica das equipes de trabalho quanto pelo fato de os pesquisadores em interação não pertencerem, necessariamente, ao mesmo campo disciplinar. Sendo assim, a e-Science pode ser compreendida a partir de dois aspectos: o primeiro diz respeito a pesquisas que têm sua realização possível graças ao uso de recursos computacionais, que não apenas integram equipes distantes – do ponto de vista geográfico –, mas podem se encontrar disciplinarmente separadas. O segundo representa o desenvolvimento tecnológico capaz de tornar real a nova conformação estrutural da prática científica. Mais que nos deter à questão material, contudo, pensar a introdução das tecnologias de informação e comunicação na ciência abre a possibilidade de vislumbrar as mudanças ocorridas na produção do conhecimento. Exemplos simples podem ser encontrados na prática científica contemporânea: a facilidade em recuperar referências na rede por meio de sites que oferecem acesso livre a artigos científicos, a rapidez com que se procede à identificação de pesquisadores que trabalham temas de interesse – no intuito de estabelecer parcerias – e o uso das tecnologias para mapear a produção científica de determinada área. Neste contexto, quando as tecnologias digitais passam a ser vistas como ferramentas de pesquisa, acabam por disseminar práticas de conhecimento

42

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

distintas, fornecendo traduções entre diferentes campos de pesquisa. Essas interpretações podem se dar em diferentes níveis e variam de acordo com o problema científico, as áreas em inter-relação e, ainda, a disposição e a capacidade dos pesquisadores envolvidos em manusear tais recursos. No caso de Antônio-Carlos de Almeida, coordenador do projeto “Efeitos dinâmicos dos mecanismos sinápticos e não sinápticos em epilepsias refratárias” – desenvolvido junto ao Laboratório de Neurociência Experimental e Computacional da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) –, a disposição para atuar em projetos com essas características apareceu desde muito cedo em sua formação. Graduado em Engenharia Elétrica, o pesquisador confessa eterno fascínio pelos princípios biológicos, assim como pela possibilidade de descrever um sistema físico por meio de equações matemáticas. Dessa forma, na Engenharia, ele encontrou os atrativos fundamentais para treinar o jogo de observação e descrição que, posteriormente, usaria para estudar os sistemas biológicos – e, mais especificamente, os processos epileptogênicos (fatores responsáveis pela epilepsia).

Caminho interdisciplinar

Nos anos 1990, ao ingressar no Programa de Engenharia Biomédica do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para cursar o mestrado, o pesquisador investiu no estudo da Neurociência, pela perspectiva da Engenharia. Contudo, apenas no doutorado – também realizado na UFRJ, sob a orientação do professor Antonio Fernando Catelli Infantosi –, é que o pesquisador dedicou-se, de fato, à modelagem matemática e às suas representações computacionais, voltadas ao estudo das epilepsias. À época, assumiu o desafio de modelar uma atividade cerebral denominada ritmo teta, bem como atividades epileptiformes. Durante esse período,


foi altamente incentivado por um grande neurocientista brasileiro, Hiss Martins Ferreira, do Instituto de Biofísica da UFRJ. De forma incansável, ele o entusiasmava ao estudo de outro fenômeno, também associado à epilepsia, denominado depressão alastrante. “Assim, ao assumir meu cargo na Universidade Federal de São João del-Rei, iniciei o desafio de construir um laboratório voltado à investigação das epilepsias e da Depressão Alastrante, o Lanec”, conta o pesquisador. Segundo Antônio-Carlos, os trabalhos do Laboratório são desenvolvidos com base na estratégia de realizar medidas experimentais em fatias do cérebro e reproduzir esses achados em simulações computacionais baseadas em representações matemáticas dos tecidos neuronais. Desse modo, a relação interdisciplinar entre a Engenharia e a Biologia, na visão do pesquisador, apresenta grande potencial científico. Seria muito difícil, afinal, abordar fenômenos biológicos complexos, a exemplo da epilepsia, sem o uso dos conhecimentos e práticas da Engenharia. Em sua perspectiva, o exercício fundamental consiste na descrição dos processos neurofisiológicos envolvidos, para, então, buscar-se identificar sob quais circunstâncias as alterações nesses processos poderão favorecer a deflagração de crises. “É exatamente aí que a pesquisa tem seus maiores ganhos”, afirma.

Cérebro equacionado

A pesquisa atualmente desenvolvida insere-se no âmbito do projeto “Neurociências Epilepsia” e tem apoio conjunto de FAPEMIG e Fapesp. O estudo busca contribuir para o entendimento das epilepsias refratárias a medicamentos, com destaque àquelas que afetam, em grande parte, pacientes na fase infantil. De acordo com o pesquisador, a investigação da excitabilidade neuronal durante as transições entre os períodos ictal (estado fisiológico durante a crise) e interictal (estado fisiológico entre crises), nesse tipo de atividade, envolve

Fenômeno de propagação associado à epilepsia e à enxaqueca, é o estado no qual ocorre um “silêncio” da atividade neuronal, que se propaga como onda, após o aumento da excitabilidade no cérebro. O efeito foi descoberto e descrito pelo médico e pesquisador brasileiro Aristides Azevedo Pacheco Leão. Daí ter ficado conhecido como “Onda de Leão”. sequência intrincada de interações de fluxos iônicos que não podem ser investigadas simultaneamente durante medidas experimentais. Neste caso, a simulação computacional é uma ferramenta poderosa, que permite testar hipóteses, agrupar informações experimentais de forma conexa e fazer previsões. As simulações auxiliam a investigação experimental da influência de alterações geométricas do tecido cerebral em função do desenvolvimento, e, ainda, de modificações morfológicas (não sinápticas) induzidas nos modelos experimentais de epilepsia. “Longe de desprezar a importância dos mecanismos sinápticos na gênese da epilepsia, a presente proposta considera que não se pode ignorar os mecanismos não sinápticos (MNS) na instalação, curso e progressão dessa patologia”, avalia. Para que se pudesse avançar nas proposições atuais da pesquisa, que envolvem interação com profissionais da área médica do estado de São Paulo, Almeida avalia a importância dos estudos realizados tanto para a modelagem matemática dos mecanismos associados ao fenômeno quanto para os processos não sinápticos, responsáveis pela transição entre os fenômenos epilepsia e Depressão Alastrante. O pesquisador destaca, ainda, a publicação, em 2008, do modelo matemático desenvolvido na revista Epilepsia, editada pela International League Against Epilepsy. Segundo Antônio-Carlos, o ponto forte dos trabalhos é o uso de amostras de tecidos cerebrais de pacientes com a doença, resultantes de ressecções de porções do cérebro identificadas como foco das crises epilépticas. MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

43


Nesses casos, os pacientes se encontram em situações nas quais os medicamentos disponíveis no mercado revelam-se ineficazes. De acordo com Almeida, os estudos têm demonstrado que essa ineficácia deve-se aos alvos de ação dos medicamentos, normalmente direcionados a mecanismos de interação entre neurônios envolvendo as sinapses. “Nossos achados indicam que, nesses casos, as crises são de origem fundamentalmente não sináptica”, pontua. Na fase atual, o pesquisador destaca o melhoramento do modelo matemático e a finalização de sua implementação. Para tanto, é preciso concluir a fase experimental,

que se refere aos experimentos com tecidos cerebrais de roedores, os quais fornecem informações importantes para verificação do modelo ou confirmação de predições advindas das simulações. “É nessa fase que identificamos os alvos antiepiletogênicos mais eficazes e que poderão favorecer o design de novas drogas”, explica. Para Antônio-Carlos, na medida em que os processos constituintes das epilepsias são representados por meio de equações matemáticas, entende-se, cada vez mais, a complexidade da doença. Diante dos consideráveis avanços alcançados, Almeida destaca como fundamental a ação colaborativa de diferentes especialistas envolvidos com

projeto: Efeitos dinâmicos dos mecanismos sinápticos e não sinápticos em epilepsias refratárias Coordenador: Antônio-Carlos Guimarães de Almeida Modalidade: Programa Pesquisador Mineiro Valor: R$ 48.000,00

44

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

o tema. Adotar a perspectiva interdisciplinar, portanto, revela-se, na visão do pesquisador, algo extremamente importante. Na experiência da UFSJ, Antônio-Carlos salienta não apenas a formação de mestres e doutores em Bioengenharia, mas, também, a proposição de um novo curso de graduação voltado à formação de profissionais dentro do perfil interdisciplinar da Engenharia Biológica. “É um grande desafio formar profissionais capazes de atuar de forma interdisciplinar. Porém, temos docentes com experiência de mais de 20 anos de atuação em suas áreas, e, portanto, com qualificação para realizar, com êxito, essa tarefa”.


Pesquisadores de Belo Horizonte reúnem-se para transformar resíduos urbanos em fonte limpa de energia William Rocha Ferraz Tudo o que é produzido para consumo humano, de automóveis a garrafas PET, revela-se como provável resíduo futuro. A problemática já bate à porta das autoridades nacionais. A produção de lixo no País – que cresce em ritmo mais acelerado do que a população urbana – chega a mais de 61 milhões de toneladas por ano. O vasto território brasileiro também cobra muito da natureza para manter suas lâmpadas acesas. Dados do Banco Mundial indicam que, em 2013, o Brasil foi a sétima nação em consumo total de energia. Por aqui, mais de 80% da energia gerada vêm de usinas hidroelétricas – o que é ambientalmente preocupante, visto que há necessidade de alagamento de grandes áreas. O que parece representar problemas vindouros para a sociedade brasileira, no entanto, pode ter encontrado solução prática nas mãos de pesquisadores mineiros. A proposta do projeto “Levantamento do potencial energético dos resíduos domiciliares e comerciais urbanos do município de Belo Horizonte” é o estudo do reaproveitamento de resíduos sólidos para geração de energia elétrica. Iniciada em 2009, a iniciativa é encabeçada pelo engenheiro civil e sanitarista Cláudio Jorge Cançado. A pesquisa foi tema de reportagem publicada em 2009, na edição 37 da MINAS FAZ CIÊNCIA. O pesquisador contou com a cooperação de equipe composta pelo químico Vitor Gouveia e pela engenheira química Marta Ribeiro, todos integrantes da Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais (Cetec), que, desde janeiro de 2014, foi integrada ao Instituto de Geociências Aplicadas (IGA), compondo o Instituto de Geoinformação e Tecnologia (IGTEC). A iniciativa contou com a colaboração de Flávia Komatsuzaki, mestre em estatística da Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG). Os estudos encontraram, no cenário socioambiental de Belo Horizonte, as condições ideais para justificar suas finalidades. O aterro sanitário da capital mineira, inaugurado em 17 de fevereiro de 1975, chegou ao limite

de sua capacidade em dezembro de 2007, com cerca de 24 milhões de metros cúbicos de resíduos aterrados. O lixo hoje gerado na cidade destina-se ao aterro de Macaúbas, em Sabará. O fato demonstra que alternativas para a questão dos resíduos não é necessidade para um futuro longínquo. De acordo com Cláudio Cançado, o uso da tecnologia de tratamento térmico de resíduos por plasma apresenta significativa vantagem para geração de energia – em relação aos métodos de aterramento ou incineração –, devido ao baixíssimo índice de emissão de gases de efeito estufa decorrentes do processo. As investigações tiveram início com a caracterização geográfica do lixo, realizada nas diferentes regionais de BH. “Nesta fase, mensuramos se havia variações do perfil de potencial energético dos resíduos produzidos nas regionais, em razão da classe social ali estabelecida, partindo do pressuposto de que, em áreas com maior poder aquisitivo, tem-se maior oferta de embalagens e afins”, explica. Entretanto, não houve expressiva diferença entre as amostras de resíduos domiciliares coletados, pela própria equipe, nas diferentes regiões. “Pudemos identificar que o lixo produzido no município apresentou, em todas as áreas, equivalente potencial calorífero, a capacidade de produção de energia”, conta.

Testes de laboratório

Na etapa laboratorial, o lixo foi triturado e encaminhado à realização de ensaios químicos. “Cada tipo de resíduo foi testado em relação a seu potencial. Fizemos um mapeamento dos materiais que permitem maior produção energética. Em seguida, concentramos os estudos em métodos para a determinação do potencial a partir de cada amostra”, esclarece Cláudio Cançado. Buscou-se, desse modo, determinar o Poder Calorífico Superior (PCS) e o Poder Calorífico Inferior (PCI) a serem gerados pela composição de cada amostra de resíduos.

Outra possibilidade para conhecer a energia potencial do lixo é reduzi-lo a seus componentes químicos: carbono, oxigênio, nitrogênio, hidrogênio e enxofre. Esta etapa contou com o apoio do Setor de Análises Químicas do Cetec. A partir dos resultados laboratoriais obtidos, chegou-se a equações de predição do PCS dos resíduos sólidos urbanos domiciliares e comerciais do município de Belo Horizonte. No intuito de ampliar o conhecimento sobre a caracterização dos resíduos sólidos urbanos e comerciais, a Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte – em cooperação com a Associação para a Preservação do Meio Ambiente da Cidade de Kitakyushu, no Japão – desenvolveu o “Projeto para a promoção da eficiência na gestão de resíduos sólidos no Brasil”. A iniciativa, que contou com a participação da equipe do Cetec, buscou o treinamento e a troca de experiências sobre o assunto com especialistas japoneses, país onde há grande uso da tecnologia de tratamento térmico para geração de energia elétrica muito usada. Além dos ensaios laboratoriais, os estudos em questão dependem da determinação de equações matemáticas, fundamental à avaliação da viabilidade técnica e econômica deste tipo de tratamento. “Os técnicos japoneses compartilharam conosco sua vasta expertise, chegando a resultados satisfatórios por meio de equações bem simplificadas. Essa cooperação nos levou a ganhar alguns anos de vantagem nas pesquisas”, conta Cláudio. Segundo o pesquisador, até hoje, foram realizadas 220 amostras de determinação dos índices PCS e PCI dos resíduos sólidos urbanos em Belo Horizonte, quantidade suficiente para demonstrar que o potencial energético oferecido pelo reaproveitamento dos resíduos domiciliares e comerciais da cidade – algo em torno de 3.500 kcal/kg – é bem representativo e proveitoso.

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

45

LEMBRA DESSA?

Alquimia à mineira


5 PERGUNTAS PARA...

Virgílio Almeida Professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, Virgílio Augusto Fernandes de Almeida acredita que o Marco Civil da Internet seja um grande passo para manter a liberdade de expressão na rede. Nesta breve entrevista à revista Minas faz Ciência, o atual Secretário de Política de Informática do Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI) garante, ainda, que o direito à expressão e à privacidade são itens essenciais para que a democracia no ciberespaço se revele mais viva do que nunca.

1 3

De que modo o senhor analisa os impactos sociais do Marco Civil da Internet? O Marco garantirá às pessoas as várias características de uso que assumimos que existem, mas não estavam garantidas, como a liberdade de expressão. Ela é garantida a partir do momento em que os conteúdos não possam ser censurados ou retirados da internet. Isso é algo fundamental. Vários países têm reivindicado a falta de expressão na rede. Outro ponto é a garantia da privacidade. Os registros que mostram em quais sites o usuário navegou – e quais aplicativos utilizou – são guardados por um ano, mas podem ser acessados apenas com autorização judicial.

No que tange ao processo de regularização da internet, como avaliar o Brasil, em comparação a outros países? O Brasil é extremamente avançado no que se refere à internet. Talvez seja a nação que tenha a experiência de governança hoje tida como a mais avançada. Trata-se do modelo multissetorial ou multisteakholder, por meio do qual a sociedade civil, o setor privado, os governos e a academia trabalham para a criação das regras relativas à governança da internet. De todo modo, alguns países já possuem legislação específica. No Chile, na Estônia e na Holanda, por exemplo, a neutralidade da rede já é garantida por lei.

A rede no Brasil era regida pelos princípios do Comitê Gestor da Internet. O Marco Civil representa uma segurança a mais? Na verdade, os princípios não têm força de lei. São apenas princípios da melhor prática, assim como as resoluções do Comitê Gestor da Internet (CGI). Agora, teremos um Marco Civil, que, sendo aprovado no Senado, deve ser cumprido.

Podemos, então, afirmar o que Brasil está à frente de países mais desenvolvidos? O conjunto de regras que o Marco Civil nos oferece é muito mais avançado porque a lógica dele é garantir os direitos dos cidadãos na internet. Isso está muito próximo aos direitos que temos offline, no que se refere à privacidade e à liberdade de expressão. O Marco Civil é uma legislação muito avança-

2 4

46

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

Diogo Brito da e foi construído por meio de processo de consultas públicas, que envolveram inúmeras reuniões dos participantes da sociedade para definir o texto, antes que fosse apresentado ao Congresso Nacional. As inovações do Marco Civil da Internet, portanto, começam já em seu processo coletivo de elaboração.

5

Por fim, o que o Marco Civil representará para o campo da Ciência, da Tecnologia e da Inovação? Por garantir a liberdade de expressão e a privacidade dos usuários, o Marco Civil da Internet permitirá que pequenas e médias empresas, startups e grupos de pesquisa possam propor novas ideias e competir em igualdade com as grandes corporações. Caso contrário, se não houvesse o Marco Civil, poderia haver descriminalização de tráfego, por exemplo. Neste caso, se um projeto que começou na universidade gerasse um novo tipo de produto ou tecnologia, e fosse competir com as empresas estabelecidas, poderia ser bloqueado se não houvesse a neutralidade de rede. Com o Marco Civil, a inovação continuará sendo mantida, favorecida pelo ambiente aberto, livre e neutro da internet.


O título desta obra – trabalho imprescindível aos especialistas e aficionados por divulgação científica e questões filosóficas relacionadas a uma das mais fascinantes atividades criadas pelo homem – revela, de modo objetivo, um dos grandes dilemas de nossa espécie: o que seria, enfim, a ciência? Publicado pela primeira vez em 1993, o livro de A. F. Chalmers reúne os resultados de sua criteriosa retrospectiva das principais teorias epistemológicas, com vistas a apresentar respostas plausíveis à referida (e “dramática”) inquirição. “Alguns dos argumentos para defender a afirmação de que teorias científicas não podem ser conclusivamente provadas ou desaprovadas se baseiam amplamente em considerações filosóficas e lógicas. Outros são baseados em uma análise detalhada da história da ciência e das modernas teorias científicas. Tem sido uma característica do desenvolvimento moderno das teorias de método científico que uma atenção crescente venha sendo prestada à história da ciência.”

Nos 14 capítulos de O que é ciência, afinal?, estão discussões em torno das múltiplas dimensões do senso comum, do problema da indução ou da dependência da observação em relação à teoria. Chalmers realiza, ainda, abordagem crítica em relação a preceitos relacionados ao Falsificacionismo, aos paradigmas de Kuhn, ao Racionalismo, ao Objetivismo e aos princípios anarquistas de Feyerabend. Trata-se, em suma, de obra indispensável aos apaixonados pelas expressões científicas – e seus mistérios sem fim.

Livro: O que é ciência, afinal? Autores: A. F. Chalmers Editora: Brasiliense Páginas: 224 Ano: 2014

Em nome das estrelas Stephen Hawking parece ter sido escolhido, pelos deuses do tempo – ou sabe-se lá que outras tantas entidades e/ ou ações metafísicas –, como representante máximo dos paradoxos da existência. Hoje, bastante debilitado pelos efeitos da doença da qual é portador, a esclerose lateral amiotrófica, o físico teórico e cosmólogo britânico é uma das mentes mais prodigiosas da ciência mundial. Em outros termos: preso à cadeira de rodas, o cientista não para de viajar, estimulado pelos inúmeros desafios da Astronomia. “Cheguei a Cambridge como estudante de pós-graduação em outubro de 1962. Eu me candidatara para trabalhar com Fred Hoyle, o mais famoso astrônomo da época e o principal defensor da teoria do estado estacionário. Digo astrônomo porque, naquele tempo, a cosmologia dificilmente era reconhecida como um campo legítimo. E era nesse campo que eu pretendia fazer a minha pesquisa, inspirado por um curso de verão que havia feito com um aluno de Hoyle, Jayant Narlikar. No entanto, Hoyle já tinha alunos demais e, para minha grande decepção, fui designado com Dennis Sciama, de quem eu nunca ouvira falar.”

Neste pequeno livro, o pesquisador – que também é um dos diretores do Departamento de Matemática Aplicada e Física Teórica (DAMTP) e fundador do Centro de Cosmologia Teórica (CTC) da Universidade de Cambridge – revive, desde a infância, a sua extraordinária trajetória. Além da beleza das narrativas e fotografias pessoais, o leitor encontra, na obra, comentários elucidativos em torno de algumas das mais complexas problemáticas referentes ao relacionamento entre o homem e o universo. Livro: Minha breve história Autores: Stephen Hawking Editora: Intrínseca Páginas: 142 Ano: 2013

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

47

LEITURAS

Dúvida imprescindível


HI P ER LI N K

As (novas) leis da internet O longo e caloroso debate sobre o Marco Civil da Internet (PL 2126/2011), iniciativa legislativa que visa à regulamentação do uso da rede de computadores no Brasil, com ênfase na previsão de princípios, garantias, direitos e deveres e na determinação de diretrizes para atuação dos governos, culminou com a aprovação da regra na Câmara dos Deputados e no Senado e com a sanção da presidente Dilma Rousseff, realizada no dia 23 de abril. O Projeto de Lei, que aborda não apenas os diretos e deveres dos usuários, mas também das empresas, gerou interpretações dúbias. Por um lado, especialistas consideram-na um avanço, principalmente, por tratar a comunicação como direito fundamental. Outros, ao contrário, veem no projeto uma ferramenta que, no futuro, pode ser usada para promover a censura e aumentar a vigilância à ação dos usuários. O programa Ondas da Ciência não ficou de fora do debate.

Blog Minas faz Ciência com novo endereço “Divulgar informações, incentivar o debate e mostrar que falar de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) não é apenas importante, mas também prazeroso”. A missão do blog Minas faz Ciência continua a mesma. Acessá-lo, contudo, ficou muito mais simples. O novo endereço é blog.fapemig.br. O blog é fruto do Programa de Comunicação Científica e Tecnológica (PCCT) da FAPEMIG, projeto que iniciou o ano de 2014 com nova – e crescida – equipe. A chegada de outros profissionais busca intensificar as atividades de difusão da ciência mineira.


Casas sustentáveis Muito em voga numa sociedade que começa a investir esforços na construção de um futuro mais verde, as casas sustentáveis têm se tornado elemento imprescindível à concretização desses alicerces. Apesar disso, você saberia dizer, de fato, o que é “arquitetura sustentável”? Muitos creem que, para receber tal título, basta incorporar elementos naturais à casa. A história, porém, é mais complexa. Especialistas calculam que grande parte dos impactos antiecológicos provocados por uma construção ocorre durante a habitação, e não ao longo da obra. Por isso, para além de boa adaptação, é fundamental adotar uma rotina ecologicamente consciente. Em Ciência no Ar, confira dicas para construir sem agredir o meio ambiente.

Do IDH à bola na rede Você já pensou que, para além do treino, dos investimentos do clube e da atmosfera da torcida, dados como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a data de nascimento podem condicionar o nível de rendimento e a ascensão profissional de um jogador de futebol? Estudo publicado em 2013 pelos pesquisadores Israel Teoldo da Costa e Felippe da Silva Leite Cardoso, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), e Júlio Garganta, do Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto do Porto, em Portugal, revela ser possível investigar a influência do IDH e da data de nascimento na produtividade dos atletas da bola. De acordo com os especialistas, jogadores nascidos nos primeiros meses do ano, em cidades com até 200 mil habitantes e Índice de Desenvolvimento Humano acima de 0,73, parecem reunir condições mais favoráveis ao sucesso nas quatro linhas. Quer saber mais? Veja no blog Minas faz Ciência (blog.fapemig.br)!


50

MINAS FAZ CIÊNCIA • MAR/ABR/MAI 2014

de Papa-Capim – pássaro do gênero Sporophila – no aconchego do ninho.

Registrada pela bióloga Núbia Monteiro, em um sítio no povoado de Barreiras, próximo ao município de Bonfim (MG), esta imagem mostra filhotes

VARAL

Crédito: Núbia Monteiro




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.