ALEX SHEARER nasceu em Wick,
no extremo norte da Escócia. Seu pai era ferreiro, e sua mãe, secretária. Desde pequeno sempre gostou de escrever e vendeu seu primeiro roteiro de televisão há uns trinta anos. Escreveu em seguida vários roteiros para séries de TV, peças de teatro, peças radiofônicas e roteiros de comédias. Depois, quando passou a escrever para crianças, seus romances Bootleg e The Greatest Store in the World foram adaptados para a televisão pela BBC. Seu romance The Speed of the Dark, de 2003, foi finalista do Prêmio de Ficção Infantil do jornal inglês The Guardian. Ele é casado e mora em Somerset com dois filhos adultos.
I m agine u m mundo s em ág ua , onde ilha s flutuam no céu . Onde a s ave ntur a s e a s viage ns s ão res er vada s ap e n a s p ara os cor ajos os. A p e n a s p ara os caçadores de nuve ns. . .
Em um mundo dominado pela conformidade, os caçadores de nuvens são figuras excêntricas, que vivem à margem. Para Christien, eles representam aventura e independência, tudo aquilo com que ele sempre sonhou. No universo do garoto, não há oceanos ou continentes, apenas centenas de ilhas, suspensas em uma atmosfera tão pesada que mantém as pessoas no alto... e tão densa que elas flutuam. Água é um artigo de luxo. Somente os caçadores de nuvens têm a coragem para buscá-la, desbravando os céus cheios de perigos à espreita. Christien não vê a hora de escapar de seu lar, tão seguro e sufocante. Quando Jenine, uma exótica e atraente caçadora de nuvens, chega à sua escola, Christien vê a chance de viver a aventura de sua vida. Ele poderá, afinal, conhecer os céus e suas criaturas mortais. E, quando menos esperar, perceberá que já não é mais um garoto. Mas será que ele encontrará o que procura nessa jornada com Jenine e sua família?
ISBN 978-85-8277-052-8
Os caçadores de nuvens é uma história rica e cativante sobre um garoto que vai em busca daquilo que o move e que o guiará pelo resto da vida...
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Alex Shearer
Tradução: Ana Carolina Mesquita
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jenine Quase no fim do ano letivo chegou uma aluna nova na escola. Ela se chamava Jenine e tinha duas cicatrizes no rosto, que iam da parte de baixo dos olhos até um pouquinho acima da boca. Não eram de acidente nenhum, nem marcas de nascença, e muito menos resultado de alguma espécie de ataque. Eram decorativas. Eram as cicatrizes do ritual e da tradição. Elas identificavam Jenine como errante, como nômade; uma imigrante de origem desconhecida. E, por tradição, pessoas assim eram chamadas de caçadores de nuvens. Um belo dia, o navio da família dela apareceu e atracou no porto. Depois que o pai de Jenine morreu — sumiu no meio de uma tempestade, segundo os boatos —, sua mãe assumira o comando do barco celeste (embora na verdade não houvesse muito o que comandar). O barco não era grande e a tripulação consistia de um homem só, um homem tão bronzeado que sua pele era quase negra. Seu nome era Kaneesh. Tinha as orelhas enfeitadas com argolas e uma tatuagem que rodeava seu braço inteiro numa única faixa, como se fosse uma pulseira. A cabeça era 7
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raspada e o peito, sem pelos, e ele parecia estar sempre brilhando, como se tivesse se lambuzado com óleo. A mãe de Jenine chamava‑se Carla, e, assim como a filha e Kaneesh, ostentava duas cicatrizes que desciam em direção à boca. Seu cabelo era negro como breu, comprido e grosso, e quase sempre estava preso para trás com uma faixa. Era alta, magra e parecia uma guerreira, mesmo quando ia aos encontros de pais. Tinha uma aparência exótica e usava um perfume com cheiro estranho e incomum. Minha mãe me disse que era almíscar. Disse que era retirado das glândulas das baleias‑celestes mortas, coisa que eu achei bem cruel e bizarra — e, de certa maneira, curiosa. Todas as manhãs, Carla e Kaneesh içavam vela, e todas as noites retornavam. Às vezes o dia era bom; às vezes, ruim, e eles voltavam de mãos vazias, com o porão de carga vazio. Se enfrentavam vários dias ruins seguidos, aventuravam ‑se para mais longe. Isso significava que só voltariam dali a uma semana ou mais. Aí, Carla pagava alguém para tomar conta de Jenine e lhe dar casa e comida, para que ela não precisasse faltar à escola. Queria que a filha estudasse. Pois uma coisa é ser caçador de nuvens por opção, e outra é ser caçador de nuvens porque você não tem escolha nem qualificação para fazer mais nada. Por outro lado, por mais qualificações que você tivesse, ainda assim não seria nada fácil conseguir um emprego, já que sua aparência seria um problema. Nos fins de semana, quando não havia aulas, o navio deles deixava o porto na sexta à tarde e só voltava domingo no fim do dia ou então na segunda de manhã bem cedinho, 8
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e Jenine chegava em cima da hora para a primeira aula. Se você perguntasse o que ela tinha feito, sua resposta era sempre a mesma. — Fomos caçar nuvens. — E aí, encontraram muitas? — Algumas. E você, fez o quê? Bem… um monte de coisas diferentes. Mas nenhuma jamais parecia tão legal, interessante ou aventuresco quanto deslizar ao longo de milhas e mais milhas de límpido céu azul, perseguindo tufos vaporosos distantes, disparando na direção dos trechos mais longínquos de nuvens para chegar lá antes de qualquer outra pessoa e depois voltar para casa com os tanques cheios de água para vender. Nada se comparava com isso. Não aos meus olhos. Eu morria de vontade de ir com eles, mas tinha medo de pedir, pois sabia que, se pedisse, eles diriam não. E, mesmo que concordassem em me levar, meus pais nunca me deixariam ir. Não é que me faltasse coragem para a jornada. O que me faltava era a coragem de pedir para ir junto. É estranho como, às vezes, é mais fácil agir do que falar. Eu pensava que fosse o contrário. Há pelo visto muito mais diferenças entre os meninos e as meninas do que apenas as óbvias. E, por mais que quando chegue certa idade os meninos passem um bom tempo pensando em meninas (e vice‑versa), a verdade é que não andam muito com elas. Pelo menos até eles começarem. Até começarem a andar com elas, quero dizer. No meu caso, esse era um começo que ainda demoraria um pouco para chegar. 9
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Por outro lado, como de certa maneira Jenine parecia um menino (no modo de pensar e agir), não foi muito difícil me aproximar dela. Acho que pensei que conseguiria capturá‑la, exatamente como sua mãe capturava nuvens: eu seria então dono da essência de Jenine, poderia destilá‑la. Na minha cabeça, a coisa devia ser mais ou menos igual às aulas de química, quando a gente reduz uma solução qualquer a umas poucas gotinhas e depois consegue guardá‑las numa garrafinha com um conta‑gotas ou então num tubo de ensaio. Se eu realmente achei isso, achei errado: não dá para capturar uma pessoa desse jeito, nem transformá‑la em água como se ela fosse uma nuvem. Dá para ser seu amigo, porém: basta respeitar o jeito como ela é e deixar claro que você não quer nada em troca de sua amizade. Nesse caso ela será sua, uma nuvem em sua mão. Se você não tentar fechar os dedos para prendê‑la, poderá guardá‑la. Mas, assim que tentar segurá‑la, ela simplesmente vai escapar entre seus dedos. Eu não ligava para as brincadeirinhas dos outros colegas, nem se eles caçoavam dizendo que Jenine era minha namorada (coisa que não era; ela era só uma amiga que por acaso era menina). Só que eu também não dava bandeira, não ficava conversando demais com Jenine, nem fazia isso de um jeito escancarado. Eu era apenas simpático, só isso; estava apenas alimentando uma amizade, esperando e ganhando tempo, até um dia encontrar a coragem para fazer o pedido. Com sorte, a resposta seria sim. Agora, entretanto, quando olho para trás, percebo que eu tinha muito mais do que um pedido a fazer. 10
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manhã Às vezes eu via os caçadores de nuvens zarpando do porto, na friagem do início da manhã. Para mim era difícil obrigar meus pés a seguirem caminho para a escola depois disso. A única coisa que eu conseguia ver na minha frente eram eles, a única coisa em que conseguia pensar era neles. Naquela época, eu não conseguia imaginar vida melhor, felicidade maior do que navegar sem rumo em busca das grandes nuvens macias como algodão. Mas eu era apenas um estudante, e meus pais, gerentes que trabalhavam em escritórios. Usavam ternos e roupas elegantes e tinham horários de trabalho regulares. Nem em um milhão de anos seriam caçadores de nuvens. Porque os caçadores de nuvens eram como os ciganos e os renegados, cheios de brincos e joias, mãos tatuadas, pulseiras e braceletes de ouro e aparência sombria e misteriosa. Eram marginais e aventureiros, e eu morria de vontade de ser um deles, do mesmo jeito que um cara comum se alista como soldado mesmo sem saber nada da vida militar ou de combates. A realidade da guerra e do que vem com 11
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ela, a dor e o medo, o terror, o desconforto e a privação, não querem dizer nada para ele. A única coisa que o ingênuo futuro recruta consegue ver é o romantismo da guerra. Pois é, eu queria ir com eles, queria voar para bem longe, perseguir as nuvens, navegar acima do sol até os confins distantes dos céus. Entretanto, sabia que nunca poderia fazer isso, nunca; nem dali a uma semana, nem dali a um mês ou um ano, nem num domingo nem em outro dia qualquer. Então minha chance apareceu e eu a aproveitei. E, por um breve período, também fui um caçador de nuvens. Foi isso o que aconteceu. Essa foi a minha boa sorte. E esta é a minha história.
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comerciantes Meu pai trabalhava em uma empresa de navegação privada, era um comerciante celeste. Existem tantas ilhas por aí, com produtos tão diversos, que há uma troca constante de mercadorias entre elas. As embarcações comerciais são gigantescas, uns navios cargueiros imensos e achatados com centenas de metros de comprimento. Às vezes as cargas são transportadas em barcaças enormes, uma amarrada na outra, todas puxadas em comboio por um rebocador que vai na frente. Em geral costuma haver uns batedores também, para patrulhar o trajeto das barcaças e garantir que ninguém tente roubar nada. Sempre existe o risco de pirataria no alto céu. Os grandes navios cargueiros e as barcaças navegam no vento solar de um jeito pesado e majestoso, avançando bem devagar e com grande dificuldade, como se fossem bandos de baleias‑celestes. Além de ficarem de olho nos piratas e sequestradores, as patrulhas de batedores precisam afastar os bichos ‑caroneiros celestes e os piolhos‑do‑céu. Os bichos‑caroneiros 13
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são animaizinhos do tamanho de gatos, bigodudos, com caras achatadas e pelagem macia, são uma espécie de parasitas, pois gostam de viajar agarrados no casco das embarcações. Eles conseguem voar sozinhos quando estão a fim, mas na maioria das vezes não estão. Preferem pegar carona com você em vez de fazerem todo o esforço por si próprios. Basicamente são uns bichos preguiçosos que só estão atrás da vida mansa. Em geral são inofensivos, pelo menos quando estão em bandos de apenas quatro ou cinco. O problema é que um gosta de ir atrás do outro (eles adoram ser sociáveis) e, logo, logo, se você não tomar cuidado, todo o casco de um navio pode acabar coberto de bichos‑caroneiros, que se grudam ali com toda a força graças às ventosas das suas patas. Rapidamente você terá uma colônia deles, que trará mais peso ao barco. Até mesmo a maior das barcaças corre o risco de afundar no céu se houver caroneiros demais presos nela. Quando ela cai, arrasta consigo as outras barcaças, até todas perderem o poder de flutuação e subitamente começarem a despencar na direção do fogo do sol, lá embaixo. Aí, é tarde demais. Mesmo que os bichos‑caroneiros abandonem o casco para salvar a própria pele, os navios acabam afundando por causa do impulso. Já se perderam cargas inteiras e muitas vidas assim. Por esse motivo, os batedores sempre seguem em pequeninas embarcações patrulhando as barcaças. Afastam os bichos‑caroneiros com empurrões e aguilhoadas (pois esses bichos têm um couro tão grosso que é possível dispensar 14
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todas as gentilezas) para evitar que eles se prendam nos cascos. No começo parece uma tarefa interminável: você bate neles, eles voltam; bate de novo, eles tornam a voltar. Mas, quando se está bem longe da terra, navegando pela Corrente Principal, a quantidade de bichos‑caroneiros diminui bastante e a barra fica limpa… pelo menos até as barcaças se aproximarem novamente de alguma ilha. O estranho é que, em terra firme, os caroneiros costumam ser tratados como animais de estimação queridos. Ficam na cozinha das pessoas, aninhados dentro de cestinhas, mordiscando petiscos, ou então sentados nos joelhos do dono. Minha avó mesma teve um. Ela o chamava de Gatinho‑Celeste e o deixava dormir na janela, ao lado de onde ela tricotava. Mas o bicho não servia lá de grande coisa. Se aparecia um rato‑do‑céu, ele só ficava olhando, sem fazer nada. Nem se dava ao trabalho de tentar caçar: era esforço demais. Todo o nosso mundo se baseia no comércio. Uma ilha produz frutas; outra, maquinário. E, apesar de a maioria das ilhas ser mais ou menos autossuficiente, nenhuma consegue produzir absolutamente tudo de que necessita. Por isso, sempre existe tráfego e grandes caravanas de comerciantes cruzando os céus, como nômades em um vasto deserto. Há também o problema da água. Água significa riqueza e prosperidade; significa influência; significa poder; e, portanto, significa política. É mais ou menos como o petróleo no mundo antigo, segundo o que contam os livros de história. Alguns países produziam petróleo e outros não, e os que produziam podiam controlar o preço ou o comércio de petróleo por meio de acordos e favores. Muitas vezes 15
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travavam‑se guerras por causa do petróleo, e no nosso mundo mesmo também já fizemos guerras por causa da água. No nosso sistema, os mais ricos não são aqueles que têm mais terras, e sim os que são donos de rios e reservatórios. As ilhas que não possuem reservas naturais de água nem os recursos para coletá‑la dependem dos caçadores de nuvens. São eles que captam água para ser usada tanto na irrigação quanto para beber. Sem essa fonte de abastecimento, seria o fim de muitas ilhas. Nunca há falta de clientes: só de nuvens. Pedi a Jenine para me trazer um pouco de água de nuvem um dia. Eu queria saber que gosto tinha. Ela trouxe. Eles haviam acabado de recolher aquela água, naquele fim de semana mesmo. Era fria e doce. Nela, quase dava para sentir o gosto da distância, o gosto da aventura, o gosto da jornada, o gosto do romantismo. Disse isso a Jenine, mas ela falou que eu era louco e que aquela água tinha gosto de água comum — ou seja, não tinha gosto de nada. Falou que o gosto não estava na água, e sim na minha cabeça. Mas não era isso o que eu achava.
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rastreadores A vida dos caçadores de nuvens nem sempre é fácil. Às vezes eles enfrentam longas semanas sem nuvens e uma seca prolongada. Às vezes o vapor parece não se levantar das águas e, por isso, não se formam nuvens. Os caçadores podem navegar dias a fio sem ver nada além do eterno azul. Esse é um tempo ótimo para quem está curtindo férias, mas não é muito bom para quem depende de nuvens para viver. Porém, se você for longe o bastante, acabará encontrando a névoa em zigue‑zague a distância ou as formações densas e brancas parecidas com dentes‑de‑leão, só esperando para serem colhidas e transformadas em água. Em outras ocasiões (assim me disse Jenine), as nuvens estão tão densas que parecem neblina. Não dá para ver aonde você está indo, e por isso é preciso navegar usando apenas os instrumentos. Não demora para os tanques se encherem de vapor condensado; as roupas das pessoas ficam úmidas; a camiseta gruda nas costas. Aí eles enchem os tanques‑reserva e lamentam não ter espaço para estocar mais. Em vez de esconderem dos outros caçadores de nuvens 17
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a localização daquele tesouro precioso, eles acendem o farolete e emitem um sinal de rádio avisando que ali existem nuvens o bastante para todo mundo. De outro modo, elas seriam simplesmente desperdiçadas. Então eles voltam para casa com o navio quase afundando de tão pesado, parecendo um balão inflado ou uma bolha prestes a estourar. Isso sempre me impressiona, o modo como as nuvens brancas podem se transformar em água transparente, como o insubstancial se transforma em substância. Existem muitas variedades e graus de pureza da água. Alguns tipos são bons para lavar, outros para cozinhar, outros apenas para beber. Esse último é, de vez em quando, tratado como um vinho raro, que as pessoas guardam na adega para degustar apenas em ocasiões especiais. Os entendidos o bebericam e giram‑no na língua, falando em “textura superior”, “safra excepcional” e “anos de envelhecimento”. Portanto, água não é só água, pelo menos não para algumas pessoas — ainda que Jenine pensasse o contrário. Nos velhos tempos, no antigo mundo, as pessoas costumavam caçar baleias. (Baleias de verdade, do mar, não as baleias‑celestes de hoje em dia.) Sempre havia um vigia na gávea, encarapitado no alto do mastro principal do navio para vasculhar o horizonte, com a mão protegendo os olhos e um telescópio a postos. Quando avistava a espuma de alguma baleia vindo à superfície, ele gritava: “Uma baleia veio respirar!”. Então o capitão virava o navio naquela direção e eles disparavam em busca do animal. Com os caçadores de nuvens é a mesma coisa. Todo navio tem um marujo, chamado de rastreador, cuja tarefa é 18
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sentir onde as nuvens estão se formando e decidir a direção que se vai seguir. Mesmo quando o céu está azul e limpo em todas as direções, até onde os olhos alcançam, o rastreador sabe para onde devem ir. Nisso existe um pouco de ciência e um pouco de arte, misturados com uma pitada de intuição. Há quem diga que se trata de uma espécie de instinto ou de poder premonitório. Seja lá o que for, um bom rastreador o tem e é capaz de sentir nuvens se formando a uma distância de até quatro ou cinco dias de viagem. O capitão sempre confia no rastreador e aponta o navio para onde ele indica, muito embora não seja possível saber com absoluta certeza se haverá mesmo nuvens. A única coisa que é possível é acreditar. E torcer. E, de vez em quando, duvidar. Pois é preciso ter coragem para se aventurar na vastidão azul quando o seu suprimento de água particular começa a rarear, quando não existe nem um fiapinho esfarrapado de nuvem à vista. Mesmo assim, lá vai você, seguindo em frente, navegando o vento solar. Às vezes se pode contar com a ajuda da brisa; aí o navio abre as velas para aproveitar o empuxo e disparar mais depressa rumo ao vazio. Passa por ilhas, algumas bem acima dele, outras abaixo. Algumas estão tão próximas que lançam suas sombras sobre a embarcação, outras se encontram perdidas na distância lá embaixo, em regiões onde você jamais se aventuraria. Ali existem terras diferentes, mais quentes, com outra espécie de pessoas. Se continuasse descendo, uma hora você acabaria topando com ilhas tão ferventes que nelas seria impossível existir qualquer vida humana, apenas répteis, 19
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plantas e peixes‑do‑céu com pele tão grossa que mais pareceria de couro curtido. Isso, pelo menos, é o que se diz. Porque, se nenhum ser humano é capaz de ir até lá, como podemos saber? Talvez, no seu trajeto, passe um cardume de peixes‑do ‑céu. Se você atirar uma linha de pesca com um ou outro inseto suculento no anzol, garantirá sua refeição; se atirar uma rede, apanhará um banquete. Pode ser ainda que apareça alguma água‑viva‑celestial flutuando no ar, semitransparente, uma enorme massa bulbosa de veios pulsantes. Ela arrasta seus tentáculos sob o corpo ao longo de centenas de metros. Se não for do tipo venenoso, é possível puxá‑la para baixo para cozinhá‑la. Basicamente são compostas de água e mais nada. Pode não parecer muito apetitoso, mas se você estiver com fome e sede o bastante, irá devorá‑las em um segundo. Não, um navio nuveeiro não é nada sem um rastreador. Às vezes eles são chamados de “adivinhos”, porque é isso que fazem: adivinham onde a água está, ou onde as nuvens estarão, ou onde é mais provável que elas se formem. Antigamente as pessoas faziam o mesmo para procurar poços em tempos de seca e nos desertos, só que usando forquilhas. Bastava segurar a forquilha sem muita força: quando ela tremesse para baixo, era só cavar que lá estaria a água. Às vezes, a única ordem de um rastreador é para que o navio fique onde está. Ele sente que aquele é o lugar certo. Não há necessidade de ir atrás de nuvens; elas é que virão ao seu encontro. Aí você fecha os painéis solares, enrola as velas do navio e atira a âncora‑satélite para permanecer imóvel. 20
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E espera. Talvez durante longas e silenciosas horas, sob o calor do sol e uma brisa leve. A distância, um grupo de golfinhos‑celestes faz uma cabriola, saltando divertidos, sempre brincalhões, sem aparentar nenhuma preocupação nesse mundo. Longas horas se passam, e as horas seguintes parecem mais longas ainda. A espera cobra seu preço. Você olha para o rastreador e começa a duvidar dele, cujo rosto é inescrutável, com olhinhos semicerrados que mais parecem pequeninas fendas no rosto bronzeado de sol (pode ser também que ele esteja usando óculos escuros; aí você não conseguirá ver seus olhos). Você dorme, acorda, organiza turnos de vigília, mas as nuvens teimam em não dar as caras. Aí passa ‑se um dia inteiro, depois dois, depois três, quatro. E nada de nuvens. Agora a sua garganta virou uma caverna seca, ressequida como uma duna de areia. Sua voz ficou rouca, parece a de um sapo; mas sua pele é seca, arde. Você desenrola as mangas da camisa para cobrir os braços; puxa a aba do chapéu para baixo. Engatinha para baixo do toldo a fim de se esconder do sol impiedoso. Mais um dia se passa e agora a sua língua inchou dentro da sua boca. Você mal consegue engolir, mal consegue falar. E o que haveria para se dizer? Mesmo assim, nada de nuvens. Você olha para o rastreador, desesperado, acusador. — Você falou para a gente ficar. Se tivéssemos continuado navegando, a essa altura estaríamos a salvo e os tanques estariam cheios de água até a boca. Mas não: continuamos esperando, e os tanques estão secos. E nem sinal de nuvem ainda. 21
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O rastreador nada responde. Permanece deitado na sombra, imóvel, inescrutável. Será que sabe mesmo o que está fazendo? Ou será que também está começando a duvidar? O tempo tenta passar, mas mal consegue se mexer; rasteja como uma lesma numa tarde quente. Um acará‑do‑céu passa voando por ali, seguido de um peixe‑palhaço‑celestial, com listras tão vívidas e surreais que ele parece a criatura mais estranha e milagrosa do universo. Ou, talvez, seja apenas uma alucinação causada pela falta de água. Você move os olhos para acompanhar os peixes, deitado ali sob o toldo; seco, ressequido e murcho sob o azul incessante. Os acarás‑do‑céu mergulham para baixo. Um cardume de peixes‑horrendos assume o lugar deixado por eles, pardos, sombrios e de olhos esbugalhados, com caras que parecem feitas de pedra. E nada de nuvens. Então… O rastreador se agita de leve. Move um dedo; abre mais um pouco os olhos. Sorri e, lentamente, estica as pernas. Você o observa. Por que ele está se mexendo? Não existe motivo nenhum para se mexer, nem para sorrir. Mesmo assim, o homem estende um braço e se põe de pé. Por que está gastando energia para se levantar? Deite aí, cara. Não seja imbecil. Aí você também sente o cheiro: frio e úmido; sente o gosto em sua boca; começa a sentir o ar se umedecer. Gotas de condensação molham seus lábios. Sua língua enegrecida se estica para fora da boca, como um rato faminto saindo de sua toca no rodapé da sala: você sentiu o gosto de água. 22
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Finalmente você vê as nuvens. Serão reais? Ou uma miragem? Será que é a sua própria sede que anda fabricando ilusões? Mas não: a nuvem está ali. Começa a se formar ao seu redor, em fiapos e lascas soltas. Logo se transforma em uma névoa fina, depois se adensa, escurece. Você sente a friagem, depois sente frio. Antes que perceba, mal consegue enxergar a própria mão na frente dos olhos. Você grita para o rastreador — (oh, tu, de tão pouca fé!) —, gargalhando, bebendo a umidade, engolindo o frescor pegajoso e molhado: — Você tinha razão! Ela está aqui agora! Está aqui! Então, é hora de lançar‑se ao trabalho. Você chama o resto da tripulação. A nuvem é tão densa que você só consegue ver silhuetas vagas no convés. Tateia com familiaridade até a ponte de comando, liga os motores e os condensadores. A bomba de sucção começa a trabalhar, atraindo a umidade do ar para os tanques reservatórios. É como se todo o navio estivesse com sede e sugasse a água para dentro de si como se para salvar a própria vida. Engole o vapor com apetite insaciável, voraz. Levam‑se horas até encher os reservatórios. Você desce para apanhar um impermeável, senão começará a tremer de frio, depois volta para o convés. A visibilidade não passa de poucos metros. O azul do céu agora é apenas uma lembrança; o calor do sol desapareceu. O condensador continua zumbindo, até que finalmente os tanques estejam cheios, transbordando de água até a boca, e o convés esteja encharcado. 23
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Hora de ir. Você vira o timão e estabelece o curso de volta. O rastreador senta na proa com um sorriso, tendo ao seu lado um merecido cantil cheio de água e uma travessa de camarões‑do‑céu fritos. Olha para você como se dissesse: “Viu, eu disse. Mas você não quis acreditar em mim, não é? Perdeu a fé. Duvidou”. Você finge que aquilo não é com você. Finge que em nenhum momento se abalou, que acreditou nele o tempo inteiro e que sempre irá acreditar. No fundo, entretanto, sabe que é mentira. Que dentro do seu peito sempre haverá uma ponta de dúvida, e provavelmente, dentro do dele também. Não existe nenhuma certeza em nada. Até mesmo o mais hábil dos caçadores erra uma hora ou outra. Ninguém é infalível; ninguém acerta sempre. Disso eu tenho cem por cento de convicção.
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