Revista da Feira do Livro de Maputo

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Destaque

Comiche exorta munícipes a juntarem-se a família literária

MOÇAMBIQUE • ANO 01 • EDIÇÃO 01 • DIRECTORA ISABEL MACIE • EDITOR AMOSSE MUCAVELE

Narrar um país através de vozes femininas A 6a edição da Feira do Livro de Maputo, foi dedicada ao tema “(Re) pensar a criação literária em tempo de pandemia” e teve Paulina Chiziane como escritora homenageada, a primeira moçambicana a publicar um romance. O encontro literário, organizado pelo Conselho Municipal de Maputo, reuniu cerca de 30 autores de 9 nacionalidades.

Alda Moreira Brincar: ler e transformar o mundo Regina Dalcastagnè Sobre literatura, resistência e afectos


EDITORIAL

Vitalidade e a essência da aposta na cultura Eneas Comiche

Presidente do Conselho Municipal de Maputo

C

om esta Revista damos início a uma publicação semestral que terá como propósito informar, acompanhar as actividades planeadas antes e depois da Feira do Livro de Maputo. Simultaneamente, este será o veículo informativo sobre intercâmbios, edição, debates, ideias, entrevistas, concursos e outras acções de relevo a acontecer ou que já tiveram lugar na Feira, como é o caso desta edição retrospectiva da Feira do Livro de Maputo 2020, a primeira edição 100 % on line. A realização da Feira do Livro de Maputo pelo Concelho Municipal de Maputo, marca um novo momento cultural para a cidade das acácias. O certame que nas seis edições já mostra a vitalidade e a essência da aposta na cultura, como factor de desenvolvimento e progresso social do país. Um acontecimento ímpar que a cada ano se converte num estímulo decisivo para acção cultural e turística da cidade capital. Assim, a Feira do Livro de Maputo, a cada edição se afirma como uma das maiores, a mais antiga e a mais exemplar festa literária dos países africanos de língua portuguesa. Sublinhe-se, que Moçambique tornou‐se o lugar mais seguro onde os escritores e intelectuais de várias nações aportam suas utopias. Ao longo destas páginas, o leitor estará a emigrar em inúmeras reflexões sugeridas pela programação, construindo um universo paralelo de questões e respostas que integram paulatinamente a defesa do tema central da Feira do Livro “(Re)pensar a criação literária em tempo de pandemia”. Trata‐se, aliás, de um dos múltiplos interesses, tal como afirma a professora brasileira Regina Dalcastagné, na sua magistral conferência inaugural, intitulada: Sobre Literatura, resistências e afectos, “Acredito que a retomada da literatura que vem acontecendo aqui durante a pandemia também está atrelada a isso. É uma retomada que significa resistência”. A grande importância e significado desta edição, reside

nas fronteiras partilhadas e nos olhares cruzados de diferentes autores de várias geografias literárias, o que o escritor português João Nuno Azambuja sustenta no debate em torno do tema: Literatura e resistência, para uma história do possível, lê-se: “É perante estas ameaças que todos nós e a literatura em particular, como parte importante das manifestações do ser humano, temos de resistir”. Recorde‐se que, Paulina Chiziane foi a escritora homenageada na sexta edição da Feira do Livro de Maputo, autora de Balada de amor ao vento (1990), Ventos do apocalipse, (1993), O sétimo juramento (2000), Niketche (2002), O alegre canto da perdiz (2008), entre outras. A romancista conhecida por fazer de sua arte uma forma de resistência. Afirma Paulina Chiziane em entrevista a professora brasileira Cintia Kütter, “Eu, venho de uma época em que a escrita era um lugar dos homens. E verdade que existiram mulheres que escreveram antes de mim a Gloria de Sant’anna que era portuguesa, fez contos, a Lilia Momplé, fez contos, a Noémia de Sousa, fez poesia... disso nunca mudou”. Em Dialécticas literárias em tempos de crise: que ideias para o futuro? mesa bastante concorrida, o poeta moçambicano Armando Artur, entende e defende que “ O futuro da literatura estará sempre associado aos processos históricos dum país, em particular, ou do mundo, em geral. Eu penso que, sem turbulências sociais e existenciais, pode ser difícil produzir-se literatura, tal como a concebemos. Falo de turbulências visíveis e invisíveis, duas dimensões das crises, a partir das quais o escritor descreve ou reinventa o seu mundo. Vale então sublinhar e prognosticar que a literatura continuará associada ao compasso dos processos e realidades sociais”. Boa leitura


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Comiche exorta munícipes a juntarem-se a família literária

Maputo recebe livros enviados por Arcos de Valdevez

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6 Sobre literatura, resistência e afectos - Regina Dalcastagnè

Feira do livro de Maputo entre as incertezas e as resistências-Amosse Mucavele

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Paulina Chiziane: a voz para além do Índico - Lucas Muaga

Literatura e resistência, para uma história do possível João Nuno Azambuja

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“Os acasos determinam às vezes as nossas reações” Cíntia Acosta Kütter

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Dialécticas literárias em tempos de crise: que ideias para o futuro? - Armando Artur

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Brincar: ler e transformar o mundo - Alda Moreira

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Os contos e poemas se escrevem no feminino - Lizete António Nhantumbo

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LITERATURA: O exercício para além do livro Lucas Muaga

Cartas para Paulina Chiziane - Luana Antunes Costa

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A literatura é o palco de criação de mundos alternativos - Ana Mafalda Leite

Alguns compassos para uma “sinfonia” literária Sara Jona


CMM

Destaque Eneas Comiche, Presidente do Conselho Municipal de Maputo

Comiche exorta munícipes a juntarem-se a família literária Cerca de trinta autores de Moçambique, Angola, Brasil, Cabo Verde, Argentina, Guiné Bissau, Portugal, Espanha e Timor - Leste participaram no maior encontro literário do país, a Feira do Livro de Maputo 2020, que decorreu sob o lema “(Re) pensar a criação literária em tempos de pandemia”.

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a cerimónia de abertura da Feira do Livro de Maputo, o Presidente do Conselho Municipal de Maputo exortou aos munícipes a juntarem-se a família literária de forma segura e sensata. Eneas Comiche disse “esta edição almeja identificar leituras e escritas para alimentar sonhos e utopias como forma de nos aproximarmos continuamente, nós, escritores, editores, ensaístas ou simples leitores, pensando na crise como pretexto para autosuperação”.

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Por sua vez, a Ministra da Cultura e Turismo, Edelvina Materula, disse que o Município de Maputo ao realizar anualmente a Feira de Maputo não só assume a responsabilidade social mas contribui sobremaneira para implementação da política cultural de Moçambique, no âmbito do livro e da literatura. Por outro lado, a Ministra explicou que a Feira de Maputo é fonte de inspiração para que num futuro próximo se possa realizar uma Feira Internacional, tor-

nando desta maneira Maputo a cidade mundial do livro. Edelvina Materula revelou que o Governo vai continuar a apoiar o CMM na realização de Feiras, festivais e outros eventos culturais. Durante a Feira, que decorreu nos dias 22,23 e 24 de Outubro 2020, realizaram-se debates, exposição virtual de livros, cruzamento entre literatura e outras artes bem como a homenagem a escritora Paulina Chiziane.


Destaque CMM

Cristina Manguele, João Pignatelli, Mª Amélia Paiva, Eneas Comiche, Lúcia Comiche e Isabel Macie (da esqª para dtª)

Maputo recebe livros enviados por Arcos de Valdevez O Município de Arcos de Valdevez (Portugal) ofereceu oito paletes de livros ao Município de Maputo. Os mesmos chegaram há dois meses, no decorrer das celebrações da sexta edição da Feira do Livro de Maputo. de maio de 2020, conforme determinado pela UNESCO. “O Município de Arcos de Valdevez demonstrou desde logo interesse por essa importantíssima data, bem como, em estreitar relações com outros países desta vasta comunidade linguística. Assim, através da Biblioteca Municipal, decidiu lançar uma iniciativa com o objectivo de oferecer à Cidade de Maputo livros actuais e em bom estado de conservação, focando várias temáticas e destinados a diversas idades. Através da oferta de livros ao Município de Maputo, o Município de Arcos de Valdevez pretendeu contribuir para a promoção da cultura e ciência em língua portuguesa junto dos munícipes maputenses, nomeadamente estudantes de todos os níveis de ensino.

desde o ensino básico ao ensino superior e, simultaneamente criar boas relações entre Maputo e Arcos de Valdevez.

MAV

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a capital do país, o Presidente do Conselho Municipal de Maputo, Eneas Comiche, agradeceu a iniciativa através de uma cerimónia na qual os dois concelhos estiveram ligados por videoconferência. Para tal, foi estabelecida uma ligação vídeo onde os dois edis, Eneas Comiche e João Manuel Esteves, na presença da Embaixadora de Portugal em Moçambique, do Director do Instituto Camões e de outros representantes de ambos os países, de acordo com Blogue do Minho, manifestaram o seu empenho em trabalhar em prol da promoção da língua portuguesa e da educação. Ainda segundo a mesma fonte, a cerimónia foi o culminar de um processo que teve como âncora a primeira edição do Dia da Língua Portuguesa, 5

João Manuel Esteves

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Professora titular livre de literatura brasileira da Universidade de Brasília e pesquisadora do CNPq. Coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e edita as revistas Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea e Veredas, da Associação Internacional de Lusitanistas. Publicou os livros Literatura e exclusão (organização com Laeticia Jensen Eble; Zouk, 2017); Sérgio Sant’Anna: um autor em cena (organização com Ângela Maria Dias; Editora UFF, 2016). Texto: Regina Dalcastagnè

Amália Gonçalves/Secom UnB

Ideias

Sobre literatura, resistência e afectos

Regina Dalcastagnè

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m um momento tão difícil, quando choramos nossos mortos e enfrentamos nossas crises, um encontro como este, dedicado aos livros e à cultura é expressão de resistência e de amizade, é uma tentativa de juntar forças e ferramentas para criar espaços onde possamos imaginar o futuro, um lugar onde a esperança tenha guarida. É disso, afinal, que se trata a literatura, de um convite

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à liberdade do outro. Agradeço, então, a possibilidade de compartilhar deste momento e aproveito para felicitar a Feira do Livro de Maputo pela homenagem a Paulina Chiziane, uma grande escritora, muito querida pelos leitores e, especialmente, pelas leitoras brasileiras. Sua obra fala a todas nós. E gostaria, também, de me solidarizar com o povo moçambicano pelos terríveis acontecimentos de Cabo

Delgado. Li sobre o assassinato, em Muidumbe, dos 52 jovens que se recusaram a ser recrutados por grupos extremistas, e sobre tantos outros horrores nos últimos meses. Confesso que pouco sei da história de Moçambique, e dessa história em particular. É que ela não aparece em nossos jornais, afinal: “Os mortos de Muidumbe não desconsolam o mundo


https://pt.wikipedia.org/wiki/Nelson_Sa%C3%BAte

Mas a poesia de Nelson Saúte (cujo trecho acabei de citar), de Armando Artur, de Amosse Mucavele, e de outros, me levou até lá. E por isso eu choro pelos mortos de Cabo Delgado. Mas me alegro, também, com a música, o teatro, a dança, com as artes plásticas, com a fotografia, com a literatura de Moçambique – um país onde jamais pisei. Desde que fui convidada para falar na Feira, tenho passado muito tempo tentando imaginar o país a partir das redes sociais, em um verdadeiro exercício de confinamento. Li reportagens, busquei informações, estatísticas, assisti a vídeos, vi fotos turísticas, até receitas, mas, como não poderia deixar de ser, é a literatura que me permite uma aproximação maior. Li muita poesia, contos, alguns romances, textos que falam de feridas e dores, antigas e recentes, mas também de esperança e de luta. Procurei escritores/as pelas redes sociais, procurei professores/as, jornalistas culturais, artistas – pessoas brilhantes que me mostraram suas obras, mas não só. Pessoas que, ao comentar o dia a dia, ao compartilhar informações que julgam relevantes, contribuem generosamente para o alargamento do mundo de alguém que está isolada no coração do Brasil. Então, meu muito obrigada a todas e todos vocês. Em tempos de tantas mentiras, de tanta manipulação, eu escolho ouvir sua palavra. Em Brasília, as escolas e universidades estão fechadas desde meados de março. Eu mesma não cheguei a me encontrar com meus alunos uma única vez neste ano. As aulas agora são à distância, diante de uma pequena tela, sem o risco do contato, sem as vantagens do contato. Tenho alunos deprimidos, alunas que perderam familiares para o coronavírus, que perderam emprego, que não conseguem acompanhar os cursos porque tudo saiu do lugar. Já ultrapassamos (no começo de outubro) o terrível número de 155 mil mortos pelo coronavírus no Brasil – com a certeza de que não precisaria ter sido assim. O presidente da república minimizou a doença, dizendo que

Ideias

o mundo está assoberbado com outros mortos o mundo urge para os outros mortos o mundo não tem empatia com os mortos de Muidumbe”.

Nelson Saúte

Mas os livros são necessários, ainda, para ajudar a entender o tempo presente. Daí as inúmeras coletâneas literárias sobre o cotidiano na pandemia; mas também sobre o golpe vivido em 2016 e suas repercussões hoje

não passava de uma gripezinha, que só os velhos e os já doentes morreriam (como se isso fosse aceitável). Seus apoiadores negam as mortes, propagam fake news, fazem campanha contra as medidas sanitárias para a contenção do vírus, fazem campanha contra uma possível vacina chinesa, porque “os comunistas querem dominar o mundo e alterar nosso DNA com ela”. Vivemos momentos difíceis no Brasil hoje. A educação, a ciência e o conhecimento são achincalhados, as artes e a cultura são abertamente menosprezadas. Só como um exemplo, há algumas semanas um casal de idosos se fez filmar xingando, rasgando e queimando em uma churrasqueira livros de Paulo Coelho, tudo porque ele criticou o governo. Uma cena macabra. Portanto, a crise que vivemos hoje não começou com a pandemia, é uma crise política muito séria, que nos desgasta terrivelmente desde 2016, com o afastamento da presidente legitimamente eleita, Dilma Rousseff. E uma crise ética, que faz com que o pior dos brasileiros – seu racismo, seu machismo, sua homofobia, seu autoritarismo – brote com muita força e se exiba quase sem contenção. Para entender um

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Ricardo Laf/divulgação

Ideias Adriane Garcia

pouco do que está acontecendo por aqui sugiro que leiam nossos melhores poetas, nossos melhores escritores/as, professores/as, intelectuais e artistas que pensam criticamente as desigualdades e injustiças que nos assolam. Imersos em tudo isso, seguimos resistindo em muitas frentes. Como diz a poeta brasileira Adriane Garcia: Mesmo não havendo esperanças Agiremos como se houvesse Jamais a adesão total Ao mal, ao funesto, ao terror Liberdade continuará pronunciada Sobre ou sob as mordaças Daremos trabalho, sempre Como hidras de duas cabeças Decepem-nos duas, nasceremos quatro Temos o treino, a expertise, a inteligência Dos secularmente derrotados. As crises nos deixam no vácuo, nos tiram o chão, mas também nos convocam à ação, nos impelem ao movimento. Na área cultural, necessitamos de recursos, e florescemos quando existem verbas, editais de financiamento público, compras de livros para bibliotecas públicas e escolas. Mas se tentam nos 8

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calar, e eles vem tentando, trabalhamos com o mínimo e sobreviveremos. E isso pode ser observado já no universo dos livros. Em meio a uma crise política, econômica e sanitária, não há dúvidas de que a venda de livros sofreria, como todo o mercado voltado à cultura. Mas, felizmente, já começam a aparecer os primeiros sinais de recuperação no Brasil, um país que pouco lê, é fato, mas com nossas dimensões continentais, o pouco é significativo. Em abril, no auge do isolamento no país, a venda de livros caiu 50%. Em julho, segundo pesquisa do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, as vendas tiveram um aumento real de 4% em relação ao mesmo período do ano passado – aumento puxado sobretudo pelo comércio digital: e-books e vendas pela internet. E aqui surge o problema. Sabemos bem que a saúde do mercado do livro depende de toda uma cadeia: escritores, editores, distribuidores, livreiros, leitores. Com as vendas pela internet, as livrarias físicas sofrem. Muitas, as maiores, já estavam em dificuldades antes, quebrando e quebrando editoras junto, por falta de pagamento. As pequenas estão com muitas dificuldades para continuar abertas. Precisaríamos de políticas públicas para salvar as livrarias, talvez algo como foi

feito com as agências lotéricas no Brasil, que passaram a receber uma porcentagem quando o governo decidiu que poderíamos apostar pela internet. Mas não esperamos nenhuma medida nesse sentido desse governo, que despreza os livros. Afinal, como diz o presidente Jair Bolsonaro, livros não interessam, “livros tem letras demais”. Até por isso, a proposta do governo agora é de taxar os livros em cerca de 12%, o que poderia gerar um acréscimo de até 20% no valor final para o consumidor. Lembro que foi anos 40, por iniciativa do então deputado Jorge Amado, que os livros no Brasil passaram a ser isentos de impostos. Taxá-los implicaria uma possível queda na venda de livros na mesma proporção: 20%. Desemprego, alta do dólar, dúvidas sobre a situação econômica, tudo se soma nessa crise, apontando cenários ruins para o livro no Brasil. Ao mesmo tempo, há muita coisa acontecendo, muito para os especialistas sobre o mercado e sobre o campo literário brasileiro se debruçarem. Em termos de literatura, há alguns anos estamos acompanhando o surgimento e fortalecimento de pequenas editoras, as vendas diretas, o financiamento coletivo de livros, a divulgação por outros meios para além dos tradicionais – jornais e revistas.


presente. Daí as inúmeras coletâneas literárias sobre o quotidiano na pandemia; mas também sobre o golpe vivido em 2016 e suas repercussões hoje; livros de autoria de grupos marginalizados, que têm tanto para dizer. Fora o conjunto significativo de obras que vêm sendo publicadas sobre a ditadura mais recente, vivida por nós entre 1964 a 1985, porque sabemos bem o que nos espreita. E os livros também nos oferecem, quando a leitura é compartilhada, um sentimento de coletividade que nos foi roubado pela impossibilidade de ir às ruas nos expressar, seja em grandes

manifestações, seja em encontros com os amigos. E, quem sabe, livros podem ser um espaço de articulação de ideias e de forças para a luta que nos espera. Sei que nem preciso dizer isso para cidadãos que enfrentaram tão recentemente uma guerra pela independência usando também a literatura como arma. Sabemos bem do poder das palavras e da importância de ter domínio sobre elas. Sabemos também que usamos a língua do dominador e que precisamos transformá-la constantemente para o nosso próprio uso. Embora Portugal nunca tenha querido que Brasil e outras colônias se olhassem, se vissem em suas possibilidades e similitudes – a começar pela semelhança entre nossos povos, sua subjugação e suas lutas – acredito que temos muito a aprender juntos, antes e agora. Entendo que nossas relações culturais sempre aconteceram a partir do esforço concentrado de alguns indivíduos, e de alguns conjuntos de indivíduos. No Brasil, elas passam pelo trabalho incansável de professores e pesquisadores nas universidades, que se empenham efetivamente em conhecer sua História, sua cultura, sua literatura, em uma perspectiva, cada vez mais, não colonial. Passam pela luta daqueles que conseguiram aprovar a lei de inclusão dos estudos da história e da cultura africana e afro-brasileira como obrigatórios nos currículos escolares brasileiros. Passam pelo incentivo que foi dado a pesquisas sobre África nos governos do Partido dos Trabalhadores, bem como pela criação, na mesma época, da Unilab, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira

no Nordeste brasileiro, que, todos os anos, recebe estudantes de diferentes países africanos. Passam pelas mãos de editores e livreiros, de editoras e livreiras, que apostam na comunicação entre nossos mundos. Passam pelos responsáveis pelas revistas literárias e acadêmicas, que dão visibilidade a essas produções, de lado a lado. Passam pelas palavras de nossos escritores e escritoras, aqui e aí. Pessoas que são, tantas vezes, pontes. Entendo que nossa luta, hoje, é por manter essas conquistas, ampliá-las, porque claramente ainda há muito o que se fazer. Se a cultura, a solidariedade, o gesto amigo não são valorizados pelas nossas instituições, precisamos agir pelas margens, atuando em pequenos grupos, pelas brechas, pelas pequenas editoras, pelas revistas digitais, pelos encontros possíveis. Só assim enfrentaremos as crises que nos abalam, e avançaremos. Porque, por mais cansados, por mais desesperançados que possamos ficar nesses momentos, é preciso lembrar que os pequenos gestos, as pequenas conquistas no campo da cultura se acumulam e que jamais poderão tomá-las de nós. Às vezes só precisamos de um tempo para respirar fundo e continuar a luta por aquilo em que acreditamos. Comecei me referindo às minhas pesquisas informais sobre Moçambique. Confesso que houve um momento em que eu abandonei os textos, as polêmicas políticas, as reportagens mais pesadas sobre o terrorismo no norte do país, enfiei o pé na areia virtual e fiquei muito tempo me divertindo com aquele hipopótamo nadando na praia deserta, na Ponta do Ouro (no sul de Moçambique), em abril deste ano. É uma cena linda, uma criatura magnífica como que dizendo: “este mundo também é meu”. Foi então que me lembrei que já tinha sido apresentada à literatura moçambicana, da forma mais afetiva que se pode imaginar. Meus sogros, os escritores Salim Miguel e Eglê Malheiros, editavam uma revista cultural chamada Sul, nos anos 1950, na pequena e periférica ilha de Santa Catarina, no sul do Brasil (a revista existiu por 10 anos e foram publicados 30 números). De lá, começaram a estabelecer relações com escritores e intelectuais de diferentes países af-

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Ideias

Vemos também a melhoria da qualidade dessas edições, além da eventual legitimação de autores publicados por pequenas casas editoriais, e mesmo às próprias custas – livros que vêm recebendo prêmios literários importantes. Há ainda a formação de novos leitores e a consequente criação de novos nichos de mercado. Penso que a formação desse novo público leitor passa pela recente democratização das universidades públicas, que duplicaram o número de vagas para estudantes e que instauraram as cotas, para pobres, para negros, para indígenas. Essa melhoria na formação acadêmica permite, e mesmo exige, a presença de novos produtores culturais, de escritoras e escritores vindos de outros grupos sociais, até pouco tempo bastante silenciados na sociedade brasileira. Começando pelas mulheres (que escrevem faz séculos, mas eram pouco valorizadas, pouco lidas), mas passando também pela autoria periférica, negra, indígena, LGBT. Grupos que desejavam se ver representados em nossa literatura e que, cada vez mais, encontram formas próprias de fazer isso. Ganha, é claro, a literatura brasileira como um todo. Afinal, novas perspectivas sociais exigem novas formulações estéticas para dizer de si e do outro. Acredito que a retomada da literatura que vem acontecendo aqui durante a pandemia também está atrelada a isso. É uma retomada que significa resistência. Resistência às tentativas de silenciamento, resistência à banalização da morte, mas também à banalização da vida de trabalhadores, de mulheres, de negros, de indígenas, da população LGBT, de velhos e crianças, de doentes, de pessoas com deficiências, de imigrantes pobres. Temos inúmeras necessidades agora (até de comida, porque a fome, que havia sido afastada, volta a assombrar o Brasil), mas também precisamos de cultura, e de livros. Talvez porque os livros sejam necessários para ajudar a enfrentar o distanciamento social. Quando já não aguentamos limpar a casa, fazer pão e compartilhar fotos pelas redes sociais, assistir séries de televisão e debates online, os livros voltam a ser bons e silenciosos companheiros. Mas os livros são necessários, ainda, para ajudar a entender o tempo


Edições Novembro

Ideias Luandino Vieira

ricanos, trocando textos, ideias, livros, compartilhando paixões e apreensões. Não eram tempos de internet, de e-mail, de WhatsApp. Toda a comunicação se dava pelo correio tradicional, por cartas, que levavam tempo a chegar e podiam ser censuradas. Estou falando dos anos 1950. Eram longas correspondências com pessoas como Antonio Jacinto, Luandino Vieira, Mário Lopes Guerra, Viriato da Cruz, Orlando Mendes, Domingos de Azevedo, Dulce dos Santos, Domingos Ribeiro Silveira, Manuel Felipe de Moura Coutinho... entre outros. Vinham pedidos de livros de todo tipo, inclusive obras marxistas, mas com muitas orientações para o envio: era preciso arrancar as capas, cortar os livros em partes, embrulhar esses pedaços em jornais, mandar separadamente, para tentar escapar à apreensão. Vinham também livros de poesia para o Brasil, e depois, alertas: guardem os livros aí, porque toda a edição foi queimada no país de origem. Vinham mensagens carinhosas, desalentadas, esperançosas, que se estenderam por anos. Há um conjunto de cartas que me emocionam particularmente. Tinham como remetente o português Augusto dos Santos Abranches, escritor, jornalista, artista plástico e agitador cultural, dono de uma livraria em Coimbra. Eram endereçadas da antiga Lourenço Marques, hoje Maputo, onde

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Abranches foi se refugiar, tentando escapar dos tentáculos da PIDE, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado de Portugal. Foram quase dez anos de correspondência, só tenho em mãos as cartas que chegaram, uma metade da história em delicado papel seda azul-claro. A primeira carta é de maio 1952; a última, enviada pela sua esposa, um poema escrito no hospital logo antes de sua morte, em junho de 1961. Nestas cartas, além de textos próprios e de impressões e sugestões sobre a literatura, Abranches enviava escritos alheios, recomendando-os fortemente. Em uma das cartas há uma boa lista de nomes: Natércia Freire (de Portugal), Filinto de Menezes (de Cabo Verde), António Jacinto, Humberto da Silvan, Leston Martins e Mário António Fernandes de Oliveira (de Angola), Domingos de Azevedo, Bertina Lopes, Duarte Galvão e Noêmia da Sousa (de Moçambique). Vários desses autores foram efetivamente publicados nos números seguintes da revista Sul, sendo divulgados entre os brasileiros, os hispano-americanos, os lusófonos africanos e entre os europeus por onde a revista circulava. E assim o diálogo crescia, se desenvolvia e em pouco tempo já estavam fazendo piadas, perguntando dos filhos que nasciam, contando das apreensões pelos amigos que desapareciam, provavelmente presos, alguns confina-

dos no Campo de Concentração do Tarrafal (em Cabo Verde), como António Jacinto, por exemplo. Talvez o que mais me emocione nessas cartas seja a possibilidade de encontro com um homem que não viveu a literatura como um projeto à parte, mas como uma paixão que se combinava a outras e repercutia em atuação política e afetiva. Não é difícil nos identificarmos com uma pessoa assim, somos muitos como ele hoje, basta olhar em volta, em Moçambique, aqui no Brasil – e isso é muito significativo. Quantas novas gerações de agentes culturais, de escritores, de escritoras, de editores e editoras nesses 70 anos que nos separam? Quantas revistas literárias e romances e volumes de poemas, de contos, crônicas, livros infantis, quadrinhos? Quantos estudos sobre toda essa produção? Quantos contatos e pontes estabelecidos entre nós? E, neste momento mesmo, quantos debates online permitindo que nos conheçamos? Com todos os nossos problemas, com todas as dificuldades que enfrentamos, com todas as nossas falhas, acredito que nós somos o sonho daqueles homens e mulheres dos anos 50, 60, 70... E penso que, por eles também, precisamos continuar sonhando. Que a literatura nos conduza. Brasília, 6 de outubro de 2020.


PanoDestaque de Fundo Editorialmediterrania

Euridice Monteiro

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Ana Elisa Ribeiro

Ana Manso

Feira do livro de Maputo entre as incertezas e as resistências dos leitores “O Município de Maputo, ao realizar anualmente a Feira do Livro de Maputo, não só assume a sua responsabilidade social, mas contribui sobremaneira na implementação da Política Cultural de Moçambique no âmbito da Literatura e Livro. O livro educa e forma o Homem. Livro e Cultura”, Edelvina Materula, Ministra da Cultura e Turismo. Texto: Amosse Mucavele

E

m meio a incerteza e alguma expectativa para o sector cultural, a sexta edição da Feira do Livro de Maputo, que decorreu no meio do surto da COVID 19, entre os dias 22,23 e 24 de Outubro de 2020, com o tema, (re) pensar a criação literária em tempos de pandemia, homenageou a escritora Paulina Chiziane, primeira moçambicana a publicar um romance, e reuniu autores, editores, jornalistas, investigadores e críticos de 8 países. Pelo sexto ano consecutivo o Conselho Municipal da Cidade de Maputo, voltou a acolher a Feira do Livro de Maputo, com a mesma proposta de sempre, alargar o espaço de reflexão em torno da relação leitor e autor, desta

vez no espaço virtual, dada a vigência da pandemia da Covid-19 que grassa o mundo. Mesmo no meio de tantas restrições, a literatura voltou a estar no centro das atenções na cidade das acácias e no mundo simultaneamente. Desde 2015, que a edilidade da capital moçambicana organiza a Feira do Livro de Maputo, com vista a celebrar e promover a literatura moçambicana, e não só, nas suas variadas formas de actuação, ligando-a com outras áreas artísticas e de conhecimento. A sexta edição, com um figurino diferente, totalmente virtual, homenageou a escritora moçambicana Paulina Chiziane, pelos seus 30 anos de criação literária, por isso assentou-se na sua

frase: “Digo-vos, porém, que cada mundo tem a sua beleza”. A sessão de elogio a homenageada esteve a cargo de diferentes professores, pesquisadores, editores e amantes da obra da escritora, com intervenções dos moçambicanos, Cremildo Bahule, Dionísio Bahule, Celso Muianga, Nelson Lineu, os brasileiros Savio Roberto Fonseca de Freitas, Áurea Santos, Luana Antunes Costa, Iris Amâncio, Tania Lima, Jorge V. Valentim e Eliane Debus, estes estiveram em foco no eixo programático A CAMINHO DA FEIRA, seguindo os depoimentos da actriz Ana Magaia, Salomé Cabo e do músico Cheny Wa Gune. A estes juntaram-se, como autores convidados da Feira, os cabo-verdianos,

FEIRA DO FEIRA DO LIVRO LIVRO

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Pano de Fundo

Danny Spínola e Eurídice Monteiro; a argentina Marcela Rosalez; o timorense Luis Cardoso, os portugueses, João Nuno Azambuja, Marília Miranda Lopes, Alda Moreira e Cristina Tanquelim; os espanhóis Esteve Bosch de Jaureguízar e Ana Manso; os moçambicanos, Armando Artur, Rogério Manjate, Teresa Manjate, Gilberto Milice, Eduardo Quive, Lucílio Manjate, Nelson Lineu, Jessemusse Cacinda, Cri Essencia, Ana Mafalda Leite e Sara Jona; as brasileiras, Ana Elisa Ribeiro, Regina Dalcastagnè, responsável pela habitual conferência inaugural; os guineenses Tony Tcheka e Kátia Casimiro. Num total de trinta, como forma de alargar horizontes, cruzar as geografias literárias, unindo a pluralidade de duas expressões ibéricas e apostar na internacionalização das literaturas dos países de língua portuguesa, em particular a moçambicana. O certame deu conta ainda de quatro lançamentos de novos livros (os angolanos Adriano Mixinge, Luís Kandjimbo, a brasileira Magda Pinto e o moçambicano Minyetani Khosa, que se estreia no campo da literatura), os concursos literários de conto e de poesia nas escolas e as inúmeras iniciativas paralelas, coordenadas pelas diferentes instituições parceiras, tais como: PARTICIDADE, Escola Portuguesa de Moçambique, Centro Cultural Franco‐ Moçambique, Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, entre outras. A coordenação da Feira considera que mesmo sendo uma organização diferente, num ano atípico, que condicionou o uso das plataformas virtuais, a realização do evento esteve na linha do que tem defendido a política cultural da edilidade. A coordenadora da Feira do Livro de Maputo realça, “Fomos apanhados desprevenidos com a presente crise da pandemia da Covid-19 e estávamos preocupados em produzir um evento de grande envergadura, cuja complexidade, chamou-nos atenção a solidariedade e a descoberta das potencialidades da comunicação on-line e quando a crise passar, estaremos a trilhar novos caminhos”. “A primeira edição on-line trouxe‐nos muitas dúvidas e receios, mas também muita vontade de expandir o espaço da criação, com recurso ao digital no lugar do presencial e foi uma grande festa”,

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FEIRA DO LIVRO

Eunice Mandlate, Angelina Chavango, Grande Homem, Cristalino Manjate, Firmina da Neta e Lucrécia Paco

Vencedores do Concurso Literário de Conto e poesia

Edelvina Materula, Ministra da Cultura e Turismo.


Pano de Fundo Adérito Magaia e Cristina Manguele

Inscrever Maputo na agenda mundial como uma “Cidade literária” reconhecida internacionalmente, continua a ser um dos propósitos da organização. A par disso, a iniciativa pretendeu promover a reflexão e o debate sobre o tema: (re) pensar a criação literária em tempos da pandemia.

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sublinha Cristina Manguele, directora de Serviços Municipais de Arquivo, Documentação e Bibliotecas, que não esquece o espaço do leitor e do autor, estes que em muito sentiram‐se penalizados pela crise pandémica. Ainda assim, assegura que “O evento quis também identificar leituras e escritas em tempos de emergência, potencializar sonhos e utopias críticas ao novo normal, como forma de abrir portas para outros mundos. Nomeadamente entre os escritores e leitores, privilegiando nesta sexta edição a produção de consciências literárias da crise, suas metamorfoses, incertezas e ambiguidades discursivas ao novo normal”. Neima Madaugy, chefe das bibliotecas municipais garante que “Tratando‐se de um problema global, toda a cadeia cultural encontra-se afectada, a literatura representa actos e formas de resistência nos momentos mais duros e dramáticos para a humanidade”. E sublinha, “tentamos extrair conclusões desta última crise mundial, para depois projectar no futuro a dupla tarefa de descrever os efeitos da incerteza provocados pela pandemia, de narrar as mudanças ocorridas na sociedade e olhar a literatura como uma modalidade de consciência social em tempos de crise”. Inscrever Maputo na agenda mundial como uma “Cidade literária” reconhecida internacionalmente, continua a ser um dos propósitos da organização. A par disso, a iniciativa pretendeu promover a reflexão e o debate sobre o tema: (re)pensar a criação literária em tempos da pandemia. A coordenação da Feira apontou a mobilização de parceiros para a retransmissão das sessões, o que aumentou em muito o alcance desta edição. Chegou a novos e outros públicos. Por isso, entende que “A Feira do Livro de Maputo, nas edições futuras abraçará o formato virtual, mesmo com as sessões presenciais, não abandonará a transmissão on-line, é nosso desejo, atingir uma cifra de 10 mil visualizações por debate” assegura Crsitina Manguele. O evento, classificado pela organização como “resistência cultural” conduziu novas linguagens, desafios, soluções e formas de fazer a Feira e sobretudo como nos adaptar às novas circunstâncias, que englobam riscos e uma especificidade de promoção marcada pela universalidade, vitalidade, atemporalidade e reinvenção.

Nesse sentido, houve uma expectativa muito forte na Feira virtual, desde a eliminação das distâncias, a procura permanente de contactos nas redes sociais e o diálogo intercultural assente nas fronteiras invisíveis. De modo que a organização em quatro meses atingiu a cifra de 40 mil visualizações. O que aumentará a procura da cidade de Maputo como destino turístico, a procura da literatura e autores moçambicanos e dos países dos escritores convidados. Das mesas redondas, com a participação de escritores, professores, investigadores e editores, perfila(ra)m temas cujo fio condutor era (re)pensar a criação literária em tempos da pandemia, desdobraram‐se em três sessões: “Cartografias literárias, mobilidades virtuais e alteridades; “Dialécticas literárias em tempos de crise: que ideias para o futuro?”; e “Literatura e Resistência: Para uma história do possível”. Assim, se fez a história no meio das incertezas e resistências, a música e o teatro não ficaram a leste do certame, as actrizes Lucrécia Paco, Eunice Mandlate, Angelina Chavango e os músicos Grande Homem (voz), Firmina da Neta (voz), Cristalino Manjate (piano) e Celso Durão (timbila) recolocaram a actualidade das mulheres que emprestam as suas estórias às personagens criadas pela Paulina Chiziane, uma ode poética, dramática, extremamente concebida para representação eterna da maior festa do livro e da leitura de Moçambique. FEIRA DO LIVRO

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GRIOTS

Debate Alberto Mathe, Fatima Bezerra, Paulina Chiziane e Dionísio Bahule

A CAMINHO DA FEIRA

Paulina Chiziane: a voz para além do Índico SAINDO de África e navegando pelo Oceano Atlântico está o continente americano e os seus mistérios. Está também a escritora moçambicana Paulina Chiziane a sobrepor-se na terra que não é somente do samba, onde figuras como Machado de Assis, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros, entre outros, viram o seu amor pela literatura eternizá-los: Brasil. Texto: Lucas Muaga

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escritora do Índico aparece como uma “intrusa”. Intromete-se numa batalha das boas com a sua doce literatura. É uma autora que encanta e atrai leitores que acabam por encontrar na escrita de Moçambique a satisfação que procuram quando buscam por novos horizontes. A considerada primeira romancista da história do nosso país, com a publicação do romance “Baladas de Amor ao vento”, em 1990, tem estado sob a 14 12

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supervisão de muitos amantes da literatura naquela federação latino-americana. E não é apenas esta história que interessa ao atento leitor brasileiro. “Niketche”, um dos livros mais profundos no que se refere à poligamia neste lado Índico, ainda ocupa o seu espaço nas prateleiras brasileiras. Paulina não tem sido uma escritora lida simplesmente para preencher horas livres ou simples deleite, pois,

fora do lazer, há professores que usam as suas obras na sala de aula para desvendar os mistérios do Índico, de África e de Moçambique, em particular. Esta é também alvo de estudos académicos. É isto que fez e continua a fazer o professor de Literatura Portuguesa na Universidade Federal de Paraíba, no Brasil, Sávio Roberto de Freitas, que estudou “Baladas de Amor ao Vento” para duas teses importantes da sua carreira académica, concluindo assim o mestra-


Debate Luana Antunes Costa

Luana Antunes Costa

do e o doutoramento. Aliás, estamos a falar de alguém que sempre que pode elabora ensaios e pesquisas em volta da literatura dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Sávio Roberto de Freitas, que integrou o evento inicial do rol de programas que antecedem a “verdadeira” Feira do Livro de Maputo, destaca que um dos aspectos mais interessantes da obra de Paulina Chiziane reside no facto de narrar as suas histórias usando a escrita, mas levando o leitor a sentar-se à volta fogueira para escutar um “karingana wa karingana”. “Ela convida-te a ‘ouvir a história’, numa narração perfeita”, disse o professor, que, embora assuma uma paixão especial pelo livro “Baladas de Amor ao Vento”, explica que a escritora chegou ao Brasil através do “Niketche”. Esta obra, lançada em 2002, daria, ano seguinte, à escritora o Prémio Literatura José Craveirinha, instituído pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) e a Hidroeléctrica de Cahora Bassa (HCB). Ainda assim, o pesquisador brasileiro considera “Baladas de Amor ao Vento” como uma verdadeira obra-prima da autora. Um dos poucos elementos existentes

na literatura de Paulina Chiziane, que lembra o passado colonial do país, é a língua portuguesa, visto que a mesma não tende a seguir o modelo ocidental. “A única coisa do colono nela é o idioma”, refere. Não haveria, deste modo, outra maneira de a autora homenagear o seu país nos quatro cantos do mundo senão esta de levá-lo entre as páginas dos seus livros. Anota ainda que, escrever, para Paulina, seria como pôr asas na bandeira de Moçambique e içá-la no estrangeiro. Sávio Roberto de Freitas diz ainda que a escritora aparece a reivindicar o esquecimento de alguns países dentro de África, como se estivesse a encarnar o poeta moçambicano Rui de Noronha, ao apelar que o continente deve despertar do sono e caminhar. “Ela representa muito bem o seu país por onde propaga a paz através da literatura”, considera. Este pensamento é ainda sustentado pelo académico quando diz: “O mundo deve parar para ouvir Paulina falar”. A grandeza dos escritores também se verifica com a durabilidade da sua obra e é este aspecto que, na sua opinião, acontece(rá) com a romancista moçambicana. Lembra-nos também que se está di-

ante de uma autora com mais de 30 anos de uma carreira. “Baladas de Amor ao Vento” é, aliás, um dos livros mais importantes da história do país, não somente por ser o primeiro romance escrito por uma mulher, mas por se mostrar intacta e recomendável até hoje. “Acredito que vão passar mais anos”, vaticina. Ao ser homenageada na presente edição da Feira do Livro de Maputo, Paulina Chiziane é lembrada, segundo o professor brasileiro de literatura, num país onde nunca deve ser esquecida. DAR VOZ A QUEM NÃO A TEM AINDA no território brasileiro, outras vozes se unem para dizer que a escritora não pára de fazer sucesso no país de Machado de Assis. Por exemplo, categórica, a professora e estudiosa brasileira Luana Antunes Costa, do Instituto de Linguagens e Literatura da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), afirma que cresceu a ler Paulina Chiziane e defende que a autora traz “personagens complexas que mostram sombrios abismos”, sendo uma escritora activista, ciente do papel da literatura como influenciadora de mentes. Divagando em assuntos como a poli-

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Debate

gamia e a situação da mulher em diversas vertentes, a autora é admirada por dar voz a quem não a tem. Fala em nome de todas as mulheres oprimidas e denuncia um mundo prenhe de injustiças, onde para “existir é preciso esquecer que é mulher”. É neste sentido que esta ainda foi atrás de outras pessoas interessadas na obra da moçambicana, como Luana Costa, também docente na UNILAB e com especial interesse na literatura dos PALOP. A mesma já esteve, em 2017, com a romancista-mor de Moçambique numa mesa de literatura. Refere que desde essa altura nunca mais se descolou dela, tendo passado a ser sua fiel companheira, uma espécie de segunda pele. Luana Antunes Costa foi ainda mais longe: nas suas aulas incluiu a autora moçambicana. Criou o seu próprio plano de ensino no qual Paulina Chiziane é uma das “princesas”. Esta é a forma que a docente encontrou para “evangelizar ”as letras deste lado do Índico naquele lado do Atlântico. Através das obras da romancista moçambicana, a brasileira disse que pôde saber que um dos desafios da emancipação do mundo é um “patriarcado reinando”. Outra voz é de Iris Amâncio, que coloca a romancista moçambicana no mesmo estandarte da escritora Carolina Maria de Jesus, uma precursora da literatura negra no Brasil que é, ainda assim, desconhecida na “Terra do Samba”. “INTRUSA” NUMA LITERATURA DOMINADA POR HOMENS PAULINA Chiziane não é só “Baladas de Amor ao Vento” e “Niketche”. Publicou mais de uma dezena de livros. Dentre os quais, “O Sétimo Juramento” e “O Alegre Canto da Perdiz”, que saiu pela editora portuguesa “Caminho”, em 2008. Tal como outros, este último livro também “atravessou” o Atlântico. De Moçambique, carrega em demasia a província da Zambézia, espaço geográfico que, na vida real, viu na16 14

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scer grandes nomes da literatura de Moçambique, como Hélder Muteia, Eduardo White e Armando Artur, só para citar alguns exemplos. Este é o quinto livro da escritora e narra a história de duas personagens, Delfina e Maria das Dores que ainda carregam as consequências negativas da colonização em Moçambique e noutros países africanos. A autora recupera o papel feminino na consolidação de uma sociedade mais justa e igualitária. Esta obra também encantou os brasileiros, como é o caso da professora de literatura no Instituto Federal do Piauí, Áurea Santos, que resume esta publicação na “Memória para uma resistência feminina”. Esta docente destaca o facto de Paulina não ignorar as sequelas da coloni-

zação na afirmação das mulheres em África. “A literatura de autoria feminina nas sociedades pós-coloniais apresenta-se como um processo representativo na história das mulheres”, disse. Neste sentido, há aqui uma denunciante que não se cala e busca por justiça, usando a escrita como “uma ferramenta de denúncia e de quebra de mitos e preconceitos reforçados pelos discursos patriarcais”, continuou. Os aspectos acima referidos podem ser reforçados, conforme diz Áurea Costa, ao perceber-se que “a presença de mulheres na literatura canónica oficial é muito reduzida”. Avança ainda que a luta pela independência e as guerras civis também escondem a luta pela afirmação das mulheres moçambicanas e africanas, que são elevadas através de produções literárias.


“Nas suas criações literárias, Paulina aborda a condição feminina. Há muitas mulheres escritoras que escrevem textos na tentativa de promover a discussão através da literatura, mas Paulina faz isso com muita perfeição”, considera. DESCONSTRUIU PRECONCEITOS NEM sempre é necessário atravessar o Atlântico para ouvir e perceber a grandeza de Chiziane. Há, cá em Moçambique, pessoas como Celso Muianga, que trabalhou com a escritora enquanto editor da Ndjira. Actualmente, faz o mesmo trabalho na Fundação Fernando Leite Couto, onde tem dedicado uma especial atenção para “as novas vozes da literatura moçambicana”. Ele acredita que a nova geração de autores tem muita coisa a aprender com a escritora. E diz concordar com os outros intervenientes sobre a leitura que fazem da nossa romancista. Até porque para ele, Paulina Chiziane é, mesmo, uma activista especial que cumpre a sua tarefa usando o papel e a caneta para promover direitos e

Celso Muianga

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deveres. “Ela abriu-se para a desconstrução de preconceitos”, disse. Para o editor, não se pode esquecer uma escritora do calibre da romancista, sendo que este pode ser um dos erros que poderá estar a ser cometido no país. Ainda assim, sendo esta a realidade, ou não, que se vive entre nós, Celso Muianga diz que se vai a tempo de inverter o cenário, tornando os textos desta autora mais acessíveis, sobretudo nas escolas. É aqui, afirma, que se vê “o défice”. Lembra ainda que livros como “Baladas de Amor ao Vento”, que integram a lista de “clássicos” da literatura moçambicana, foram escritos e publicados num dos períodos mais difíceis da nossa história. “Houve dificuldades para que o livro aparecesse. São elementos que fazem olhar para a sua obra com respeito”, explica. “A nossa academia diminuiu-se em relação ao número de obras publicadas nos últimos anos”, considera. As acções de activismo de Paulina não são, diz Muianga, apenas direccionadas às mulheres. “Liberta também os homens para assumirem personagens femininas”, o que já acontecia, embora não com a mesma intensidade”. Mesmo assim, as suas obras poderão “servir para a afirmação de várias mulheres”. (2015). e “O Canto dos Escravizados” (2017).


Zô Guimarães ̸ Folhapress

Ideias João Paulo Cuenca

Literatura e resistência, para uma história do possível João Nuno Azambuja nasceu em Braga, em 1974, e é licenciado em História e Ciências Sociais. Participou, por sua iniciativa, em diversas explorações arqueológicas pelo país ao longo de vários anos. Militou, mais tarde, nas tropas paraquedistas como comandante de pelotão, após um breve período como professor de História. Regressado à vida civil, dedicou-se à escrita e fundou, em Braga, um bar de inspiração celta, onde se realizaram concertos memoráveis das melhores bandas ibéricas desse género musical. O seu primeiro romance, Era Uma Vez Um Homem, ganhou o Prémio Literário UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) em 2016. Após o sucesso de Os Provocadores de Naufrágios, surge o seu terceiro romance, Autópsia. Texto: João Nuno Azambuja

O

caso do escritor brasileiro João Paulo Cuenca, perseguido pela teocracia brasileira por causa de uma frase considerada ofensiva, é paradigmático dos nossos tempos. Um relatório divulgado recentemente pela associação britânica Artigo 19 mostra que a liberdade de expressão a nível 18 16

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global está em declínio. Aquilo que todos pensávamos que era uma conquista progressiva revela agora um comportamento regressivo. É perante estas ameaças que todos nós — e a literatura em particular, como parte importante das manifestações do ser humano — temos de resistir. A pandemia do novo

coronavírus constitui mais um motivo de luta, porque o neoliberalismo se aproveita desta doença para mais uma ofensiva contra a liberdade, fomentando a doutrinação dos indivíduos pelo medo e pela intimação, no sentido de cada um se controlar a si mesmo, servindo o esforço catequista dos governos.


Ideias Beira.pt

João Nuno Azambuja

Nietzsche tem uma bela frase que diz: «O que é a felicidade? É o sentimento de que uma resistência foi vencida». O que se nos opõe, o que se apresenta contra nós, excita-nos a vontade de lutar, de nos sentirmos vivos, de combater a opressão. A vida, assim como o ato privado de escrever, como exteriorização da nossa força, é superação. Há quem diga que não estamos num momento de fazer arte pela arte, considerando a opção meramente estética do artista, porque para contrariarmos as tendências impositivas temos de as denunciar abertamente nas nossas manifestações; mas eu considero que a arte pela arte é uma das realizações supremas da liberdade, e ao exercê-la estamos a demonstrar a nossa vontade de ser livres, contra essas mesmas tendências niveladoras do pensamento que pretendem eliminar a espontaneidade. Por aqui vemos a importância resistente da literatura, que é caminho aberto, tendo o poder de falar de tudo, o que para muita gente é incómodo. Não há nada que esteja fora do seu âmbito, e a linguagem poética é a expressão mais pura desta liberdade. É emoção. Os escritores dizem verdades dolorosas, porque esmiúçam, aventuram-se em todos os domínios da vida. Sara Jona,

É perante estas ameaças que todos nós — e a literatura em particular, como parte importante das manifestações do ser humano — temos de resistir

na Feira do Livro de Maputo, disse algo contra a corrente: afirmou que o contacto físico é essencial, é inerente à nossa condição de seres humanos. Nós agora estamos perante uma pandemia que nos dificulta o contacto, até é proibido, e eu desejo que ninguém desaprenda o gesto de dar a mão, de estar presente, de vencer a ameaça de uma doença menos castradora do que a desinformação. Paulina Chiziane dá-nos um exemplo de resistência. Resiste a considerar-se romancista, por não querer obedecer às normas europeias do romance. É como se algo do colonialismo persistisse e ela sinta que deve ser afastado. Veja-se o exemplo da Bolívia, país mergulhado em desavenças políticas. A população indígena deste país ainda hoje é marginalizada pelos descendentes dos europeus que lá vivem. Poderá essa população dizer que o colonialismo acabou? É muitas vezes a literatura que nos lembra que eles existem e são discriminados. Paulina Chiziane disse certa vez que o mundo é uma morada de loucos. O escritor talvez seja verdadeiramente louco, por pretender encontrar, na sua ficção que espelha a realidade, o papel do ser humano neste mundo. Vivemos dentro de um livro de Kafka à procura da saída. FEIRA DO LIVRO

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Destaque Maria Teresa Salgado,Paulina Chiziane e Cíntia Kütter

“Os acasos determinam às vezes as nossas reações” Doutora em Letras Vernáculas subárea - Literaturas Portuguesa e Africanas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Cíntia Acosta Kütter, pesquisadora, e professora de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal Rural da Amazônia. Texto: Cíntia Acosta Kütter

S

eu interesse versa principalmente nos seguintes temas: gênero, bildungsroman feminino, memória, trauma e literatura produzida por escritoras africanas e afro-brasileiras. Actualmente integra o Grupo de Pesquisa “Escritas do corpo feminino” (UFRJ/UNILAB).

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Esta entrevista faz parte da tese de doutorado da pesquisadora e foi publicada primeiramente na Revista Diadorim (Revista 19, v.1, 2017). Em episódios curtos e interligados, a escritora moçambicana, a mais destacada e internacionalmente reconhecida,

fala do seu percurso literário, da sua formação humana, sobre mulheres e sua participação na FRELIMO. Paulina Chiziane, escritora homenageada na sexta edição da Feira do Livro de Maputo, autora de Balada de amor ao vento (1990), Ventos do apocalipse


Universidade Federal Fluminense

Durante o dia, às vezes participava nas brincadeiras dos outros, mas eu sempre fui da noite. Todos dormem, eu fico lendo um livro, fico ouvindo música e, sempre gostei de ser assim

(1993), O sétimo juramento (2000), Niketche (2002), O alegre canto da perdiz (2008), As andorinhas (2009), Nas mãos de Deus (2013), Por quem tocam os tambores do além (2013), Ngoma Yethu (2015) e O canto dos escravizados (2018), os publicados entre 2013-2015, em regime de co-autoria. A romancista conhecida por fazer de sua arte uma forma de resistência, concedeu esta entrevista à pesquisadora em 25 de março de 2017, no Rio de Janeiro. Primeiro, gostaria que você nos falasse um pouco como a literatura surgiu na sua vida. Você já mencionou em outras entrevistas “ter se inspirado em sua avó”; “nas histórias que ouviu a volta da fogueira”; “que iniciou o curso de linguística na universidade”, etc. Mas em que momento surge a escritora Paulina Chiziane? O que te impulsionou para esse movimento?

Não sei (risos). Sinceramente, não sei. Porque eu acho que sempre existiu a escritora, a minha natureza tem haver com isso. Eu gosto de viver em grupo, mas também gosto de viver sozinha, desde pequena. Durante o dia, às vezes participava nas brincadeiras dos outros, mas eu sempre fui da noite. Todos dormem, eu fico lendo um livro, fico ouvindo música e, sempre gostei de ser assim. Mesmo com o trabalho de casa: engomar a roupa, esfregar, eu sempre fazia o trabalho a noite. E gosto de estar com muita gente, mas estou sempre só. Isso me permite observar, e quando chega a noite pra lembrar tudo o que observei, comecei a fazer notas bem pequenina, e fui andando. E quando naquela fase da vida em que o livro começa a exercer uma certa magia! Eu pegava num livro e sentia o êxtase de estar a pegar num livro. Então a minha infância foi isso, não tinha muitos livros, mas a minha relação com

Você já afirmou que não é feminista, mas concede o protagonismo de suas obras as mulheres. Esse “lugar” de protagonismo e de resistência da personagem Sarnau em seu primeiro romance Balada de amor ao vento (1990) surgiu de forma proposital ou como você diz “a escrita veio e tomou o seu lugar”? Eu nem sabia, quer dizer, eu conhecia as teorias de emancipação da mulher, mas a palavra “feminismo” ainda não me tinha soado aos ouvidos. Eu contei uma história apenas, e a história de uma mul-

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Entrevista

o livro, quer dizer, era como se estivesse a mexer um objeto sagrado. Daí comecei a ler e a tendo que apanhar para frente, e já fiz de tudo, assim, de roubos de livros, para pode ler, e quantas vezes não fizemos isso, em feiras, em livrarias, em tabacarias, fizemos isso mas pela leitura. Eu não estava a perceber muito bem para onde me conduzia essa maneira de estar, e pronto, dei por mim registrava memórias. A primeira coisa que eu fiz foi o diário dos sonhos, que me custou muita sova em casa, porque eu sempre atrasava a escola. Acordava de manhã e a primeira coisa que fazia era sentar para registrar o sonho, em um diário, e quando chegava a hora de ir para escola não tinha ainda tomado banho, enfurecia meu pai que teve que ter uma mão dura para controlar, então, perdi esse diário, porque meu pai queimou. Mas hoje eu lhe dou razão (risos), então essa foi uma das minha primeiras manifestações de vontade de escrever. Mas eu pintava, gostava de pintar, assim nessa beira dos doze anos, eu gastava tudo que era papel pintando e me deu também muita sova porque estava a gastar o papel, que devia ser para estudar. Éramos oito filhos com um pai que era alfaiate de rua, então não havia muitos recursos. Então eu fui experimentando várias maneiras de estar, e acabou vingando a escrita, porque eu ficava a escrever e meu pai acreditava que eu estava a estudar (risos), então pronto. E foi assim que acabei ficando com a escrita, era mais barato, não gasta papel e o pai nem sempre desconfiava daquilo que eu fazia. Deixei de fazer o diário dos sonhos, que fazia de manhã, mas comecei a rabiscar durante a noite, e acordava tarde na mesma, mas essa era uma guerra que meu pai nunca venceu, eu nunca consegui acordar cedo. Porque as mulheres da noite era sempre , sei lá, dos meus delírios...


Entrevista

her que é aquilo que eu sei, mais nada. Depois de publicar o livro foi que comecei a compreender a dimensão do feminismo, daí comecei a perceber algumas leituras e fui consolidando algumas ideias sobre o feminismo. Mas foi assim, a vontade de contar uma história de uma mulher, e em todos os meus livros falo de mulheres, e a razão é tão simples, eu estou sempre rodeada das minhas amigas, da minha família, mesmo da minha família, minhas irmãs, minhas primas, então, o mundo que eu conheço, melhor, é o mundo das mulheres. Foi por isso que as coisas saíram desse jeito. Em seu romance O alegre canto da perdiz (2008), somos apresentados a três gerações de mulheres que buscam, a seu modo, resistir ao regime patriarcal, a violência e a elas mesmas. O que motiva uma mãe a prostituir sua filha, e esta, que por sua vez, vender a sua filha? Estas mulheres que repetem o colonialismo, além de estarem a vender a “própria carne” estariam a vender suas almas? Foi esse o seu objetivo ao apresentar essas mulheres, mostrar esse outro lugar ocupado por elas? O alegre canto é a verdadeira imagem do colonialismo. Tanta repressão ao ponto de criar-se este santo mundo de alta rendição porque, pronto aquelas mulheres achavam que não tinham valor nenhum, que só podiam dar algum valor se servissem ao opressor. Então o colonialismo é isso mesmo. E para dizer que o processo de libertação da mente vai levar muitas gerações. Nós já não temos a bandeira colonial, mas ficamos com graves sequelas em nossas mentes. Como que o livro surge? Eu vivia na Zambézia e conheci esta família, esta velhota que teve dois maridos: um branco e um negro, e teve filhos negros e mestiços. Conheci, mas conheci através do filhos mestiços, que são donos de restaurantes. E, de repente aparece a cozinheira e a faxineira, que são irmãs dela, e eu perguntei: que se passa? É tua irmã? E a faxineira de uma empresa? Sim. Então comecei a perseguir a história. A irmã é negra? Sim, sim. Comecei a perseguir a história, e fui dar a mãe, que ainda tinha orgulho em dizer que durante toda vida só bebia vinho do porto do marido branco. Ai que realidade! Naquele dia fiquei

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muito chocada. E então tranquilamente eu ia visitando a velhota, levava aquela garrafa de vinho que ela gostava (risos), e ela ia me contanto as histórias, incrível! A Zambézia tem muito disso.

muitas que estiveram na luta armada. E a situação não é muito diferente, então são essas heroínas, no verdadeiro sentido que não tiveram nome porque são mulheres.

Quando a personagem fala: Meu objetivo é branquear o negro da minha pele, em contrapartida nós temos o caso da neta, mulata, que não possui um “lugar”, porque para os negros ela é branca e para os brancos ela é negra. Qual é o espaço do mulato? Esse é o outro lado. Para mim foi interessante descobrir a imagem do mestiço, porque eu sempre via, eles não nos ligam muito, pelo menos em Moçambique. O mulato não liga muito ao negro, tá quase sempre em grupos de mulatos. Mas eu nunca tinha percebido o que ia dentro da alma. Foi esse trabalho me fez ver o quão sofredores são.

Pelo visto até hoje são heroínas sem nome. Sem nome e vão morrer com a sua história. Pouco escolarizadas a maior parte delas e mesmo que tenham a possibilidade, ou a capacidade de escrever, não sei esses livros serão alguma vez publicados. Há um fenômeno, em Moçambique agora, que aqueles que fizeram a guerra contra os portugueses, agora estão a escrever as suas memórias, mas aquelas memórias para mim tem um sabor assim, de um fardamento.Todos escrevem coisas iguais e não há nada que se escreva diferente, porque senão o chefe não gosta, perdem os seus privilégios. Então é daquelas literaturas que...é interessante ler, mas não me dizem muito. Porque todos repetem a versão oficial da história, e a mulher por muito que escreva tem medo de dizer: “Olha quem dirigia os combates era eu, o comandante que era homem fugia porque tinha medo.” Então, talvez, daqui a algum tempo, depois dessas pessoas morrerem, porque esses generais ainda estão vivos, se elas começam a denunciar...

Paulina, eu gostaria de perguntar sobre uma obra pouco referida até hoje, O livro da paz da mulher angolana (2008) que foi uma recolha feita por você e Dya Kassembe, com o subtítulo de “heroínas sem nome”. De lá pra cá, essas heroínas tem aparecido ou ainda continuam sem nome? É uma questão melindrosa. O livro é de Angola, eu não posso falar muito sobre a questão angolana, mas não é muito diferente da questão moçambicana. Uma das senhoras que eu entrevistei vendia amendoim na rua. Portanto, ela era uma vendedora ambulante de rua, que foi uma combatente da guerrilha pela independência. E, ela diz tranquilamente: “olha, o meu colega que era o comandante responsável por aquele campo, ele que devia guarnecer o campo, segurança, etc. Quando havia ataques dos portugueses, ele fugia, porque ele tinha medo”. Mas essa mulher, que porque tinha lá os filhos dela e os filhos das outras mulheres, ela virava uma leoa. Então, todos os combates naquela região foram dirigidos por ela. E quando chegou a altura de patentear alguém, as patentes não foram para ela, porque ela era mulher, foram patentear o homem que sempre fugia. E na altura em que fizemos as entrevistas, ele já era um general muito rico, mas a mulher que dirigiu a guerra, estava vendendo na esquina. Então, foi uma coisa que me chocou. E voltei a Moçambique, comecei a conversar com outras mulheres, que são

A participação da mulher na guerra ainda é pouco abordada? Muito pouca, quer dizer, há uma abordagem oficial muito romântica do tipo : “a mulher participou na guerra”, “a mulher é uma heroína”, “ porque nós temos que promover a mulher”. A mulher é uma heroína, mas quem é a heroína? Onde está o nome dela? E essas mulheres hoje, onde estão elas? Tá na cozinha, estão vendendo amendoim nas ruas, estão no campo, no trabalho tradicional das mulheres. Mas foram mulheres que fizeram a guerra. Como foi essa experiência de trabalhar em parceria e o que motivou você e Dya Kassembe a desenvolver esse projeto? Foi um trabalho encomendado, da Ajuda Popular da Noruega que trabalhava em Angola na desminagem. Então, havia uma parte social, que o


Entrevista Cíntia Kütter

Cíntia Kütter e Paulina Chiziane

chefe deles tinha que fazer recolher as histórias dessas pessoas que participaram dessa guerra, cuja a desminagem estava a ser feita por eles. Então, escolheram a mim e a Dya Kassembe, e fomos andando, fomos a trabalhar, foi muito bonito, mas o livro não teve muito impacto. Porque nós, nas nossas entrevistas, fomos imparciais entrevistamos mulheres da UNITA, mulheres do MPLA e isso não foi muito bom. Porque ou tínhamos que escolher mulheres da UNITA, com todas as consequências, ou tínhamos que trabalhar só com mulheres do MPLA, nós fizemos um trabalho onde colocamos todas as mulheres e no fim produzimos o livro. Não teve muita aceitação. Sei que logo a seguir, uma outra equipe, do partido do poder, que partiu para o campo de urgência para entrevistar as “heroínas verdadeiras”, e publicou-se com muita pompa, um livro, não sei como se chamava, mas acho que era uma coisa como “As heroínas verdadeiras de Angola”, mas enfim, isso é uma outra história. Não sou angolana, eu....(risos) Quanto tempo levaram essas en-

trevistas? Somando os dias todos, eu acho que as entrevistas levaram mais ou menos uns cinco meses e o processamento do texto, porque aquilo foi um trabalho mesmo coletivo, com as mulheres, eram grupos de mulheres angolanas. Então, o projeto durou um ano, então eu ia, vinha, ia, vinha. Conheci Angola quase de norte a sul nesse projeto, foi interessante, mas o livro não sei dele. Você afirmou em palestra conferida recentemente ter feito parte da FRELIMO e sobre seu papel dentro do partido. O que motivou uma moça tão jovem na época a participar de forma tão ativa desse movimento? Não sei, mas por outro lado, eu lia muito desde pequena, então tinha muitas referências na cabeça. E contrastava com muitas meninas num tempo que não tinham acesso a leitura, então eu conversava mais com rapazes do que com meninas, por conta do nível de estudos e intelectual que tinha. Então, de repente os rapazes fazem a oferta: que tal essa noite sairmos para fazer um determinado trabalho?

E seu pai nunca te surpreendeu? Pegou uma vez, levei uma sova! (risos). Mas o trabalho estava feito. Então, foi assim, tranquilamente eu sempre tive amizades masculinas, desde pequena. Eu acho que o problema é exatamente esse, eu lia mais do que as outras mulheres, isso ainda acontece até hoje. E pronto. Fugia de casa, fugia pela janela. Naquela época como era a participação feminina na FRELIMO? Tinham muitas mulheres no movimento? Uma coisa foi a luta armada nas matas, outra coisa foram os grupos clandestinos urbanos. No grupo era assim, mais ou menos vinte no grupo e mulheres eram quatro, só. Sim, dezesseis, eram rapazes. A que você atribui isso Paulina? A época, estávamos em plena época colonial, a tradição e a própria estrutura colonial, porque a mulher na estrutura colonial o lugar é de subordinação. Então, a minha tradição também, a região também, e eu era atrevida, chamavam-me «Maria-rapaz», porque nunca me consideravam mulher.

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Entrevista Paulina Chiziane

Você via esse apelido como um elogio ou não? Não. Não ligava. Eu desafiava, subia em árvores, fazia tudo o que as mulheres não faziam a essa altura. Paulina, o que você lia nessa época? “6 balas”. Espera, eram aquelas coisas de “6 balas”,...bang-bang....depois apareceu o “Coelhinho pelado”, acho era brasileiro, não? “Fotonovelas” e os Disney que já são mais antigos. Mas também havia muito Jorge Amado, nós lemos Jorge Amado em livros de bolso, em livros maiores, em tamanho assim, tamanho a quatro, mas livro de bolso era muito, muito forte. Então tava acessível, não sei porque, mas o sistema colonial liberava o Jorge Amado, para nós, Vinicius de Moraes também, eram dois autores que circulavam, os outros só depois da independência. Em seus últimos três projetos: Nas mãos de Deus (2013), Por quem tocam os tambores do além (2013) e Ngoma

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Yethu (2015), você opta pela estrutura de co autoria. O que te motivou a mudar sua estratégia de escrita? Isso repercutiu de que forma no mercado editorial? Fale-nos um pouco sobre esses projetos, ainda pouco conhecidos no Brasil, e como essas propostas surgiram. As editoras formais não aceitaram, os temas não iam muito com as suas políticas editoriais, então tive que procurar alternativas. Há uma editora que se criou só para publicar um livro e já morreu (risos). Na mão de Deus, criou-se uma editora só para publicar o livro, depois trabalhei com um outra, e depois vou trabalhar com uma outra, porque esses temas questionam muita coisa e com muita profundidade, então não queriam correr o risco. Agora, passado algum tempo, os livros viraram sucesso e algumas dessas editoras já estão interessadas em publicar, porque viram que afinal, esses assuntos são, como se diz, é produto para mercado, por exemplo, Ngoma Yethu, circula....aí meu Deus! Circula!

E o que te levou a escrever Nas mãos de Deus (2013) que foi o primeiro escrito a quatro mãos? São várias coisas. É muito interessante entrar na psiquiatria, foi uma grande escola de vida. Nós temos a ilusão de que somos humanos, ilusão daquelas coisas bonitas, românticas que nós temos. Quando se entra na psiquiatra que a gente entende a verdadeira essência do ser humano. É o filho que abandona a mãe, porque teve uma crise psicótica; é a mãe que espanca o próprio filho, porque o filho teve uma crise psicótica; é a família que se junta, que se separa, quer dizer, a doença mental é um dos maiores dramas. A medicina faz o melhor, mas há uma série de preconceitos a volta da pessoa que tem uma crise psicótica. Eu entrei em crise,mas depois a crise passou, levou muito mais tempo a recuperação. A recuperação da memória, a recuperação dos movimentos do corpo é que levou mais tempo, mas a crise em si durou pouco tempo. E voltei a mim, e naqueles momentos que estava sentada, aproveitei a ocasião para conversar com


lhe acontecer se fizer alguma coisa. Então eu acho que a Europa, as religiões que se chamam de universais é que trouxeram este modelo que colapsou. Mas continua a persistir.

Eu li O quarto de despejo, da Carolina, e há um texto dela que me comove muito, quando ela deseja feliz aniversário a velha Alice? Olha, não consegui ler mais para além desse texto, porque quando cheguei ali parei, porque minha dor foi muito forte, e tenho um grande respeito por essa mulher pelas suas origens e pela luta que ela travou para sobreviver e o registro que ela fez

Nesse contexto as mulheres são sempre culpabilizadas. Eu acho estranho. Para mim, isso é um colapso do pensamento ocidental, do pensamento judaico cristão, porque para o europeu a mulher é a face da eva, ela que é culpada, no nosso caso, em Moçambique, mesmo com as tradições do Moçambique mais interior, mais profundo, que é patriarcal é semelhante aos ritos judaico cristãos onde a mulher tem que ser culpabilizada. E eu conheço casos em que a mulher era espancada, simplesmente espancada. Pergunta-se ao marido: porque espancou a mulher? E ele diz: olha, não fiz nada, mas eu estou a espancá-la para ela saber o que pode

E até que ponto isso também não é reflexo dessa história da colonização. Olha, o que eu posso dizer é que as lutas de libertação africanas, dos países de língua portuguesa, trouxeram consigo o feminismo marxista que libertou as mulheres portuguesas. Então o movimento das mulheres em Angola, em Moçambique, etc, trouxe algo que despertou a consciência da própria mulher portuguesa que era tão reprimida como nós. Na cena brasileira, a escritora Carolina de Jesus, tem sido alvo de muitas críticas, no sentido de que sua obra “ não deve ser considerada literatura”. Sua obra O quarto de despejo (1960) fora traduzido para mais de 13 línguas e estudado no mundo inteiro, abordando a temática dos que vivem “a margem”. Em suas obras, suas personagens também são fruto dessa margem onde buscam resistir e sobreviver. Você se identifica com essa escritora? Eu não sei se tenho esse direito de me identificar com outras pessoas, porque eu acredito que cada pessoa é singular. Eu li O quarto de despejo, da Carolina, e há um texto dela que me comove muito, quando ela deseja feliz aniversário a velha Alice? Olha, não consegui ler mais para além desse texto, porque quando cheguei ali parei, porque minha dor foi muito forte, e tenho um grande respeito por essa mulher pelas suas origens e pela luta que ela travou para sobreviver e o registro que ela fez. E eu faço esse questionamento: O que é literatura? Quem criou? Quem inventou? Para que serve? Então, a Carolina Maria de Jesus construiu um espaço e produziu um movimento que vinha da sua própria alma, um movimento de muito valor. Agora, quem são os outros para questionar? E colocar etiquetas sobre o sentimento humano, é por isso que de vez em quando eu me zango com as academias, porque preocupados em colocar etiquetas e nomes, e arrumar em gavetas, às vezes perde-se o melhor a vida tem. Eu não estou a imaginar o que tenha sido a vida dura daquela mulher, e aqueles que sabem o que é literatura e que sabem escrever em todos os meios,

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Entrevista

muita gente, e tentar perceber o mundo que há por detrás de doença. São verdadeiros dramas. Lembro-me de uma moça que entrou,violada sexualmente, não se sabe por quem, e nas mãos ela tinha marcas de que tinha sido amarrada com arames, ferros, estava cheia de feridas e nas costas tinha levado chicote. Porque deu-lhe uma crise, ela cometeu qualquer coisa, mudança de comportamento, a pessoa não sabe o que faz. Então o pai amarrou, o irmão espancou e alguém sexualmente violou. Isso dentro da família! Então, quando aquela menina entra ela devia ter dezessete, dezesseis... dezessete anos, eu olhei para ela e deixei estar até ela ficar melhor. Eu tive alta, mas eu voltava para conversar com os amigos que eu tinha feito. Sentava perto dela, para ouvir a história dela, e depois vim a saber que ela estava grávida. Uma gravidez que ela não sabe de onde veio, se foi o irmão, se foi o pai, se foi um vizinho, se foi alguém que saltou a cerca, então são tantos os dramas, porque infelizmente temos uma tradição que diz que a doença mental, enfim, podem ser espíritos maus, maldições, espíritos, isso é o que a tradição diz. Depois aparecem as igrejas evangélicas: “É o diabo! É o diabo! Se apossou da pessoa!”, e depois temos a própria medicina. Bom, a pessoa chegou eles pegam dão o que tem a dar e depois a pesquisa do problema. Foi interessante porque no meu caso, eu saí sem diagnóstico, quando eu voltar ainda vou procurar um psiquiatra para saber o que era. Pronto, quando se chega é tal coisa é psicose, é crise psicótica, é tendência de esquizofrenia, é tendência de demência, vai se andando a procura. E então, é a religião, é a tradição, é a ciência tudo isso cria um conflito a volta do mesmo indivíduo. Essa menina foi espancada porque era preciso mandar embora o diabo, o irmão espancou selvaticamente, agora aquele que a violou não sei bem o que queria tirar. E quem a amarrou também acreditou que tinha um espírito maligno nela, enfim, a menina simplesmente teve um transtorno. Ela ficou bem, ficou grávida, depois da doença teve que suportar a gravidez anônima e ficou com marcas muito feias nos braços, teve que fazer fisioterapia. Isso é um exemplo dos milhares que existem. Então, eu comecei a perguntar: o que é uma mãe? o que é um pai? o que são relações familiares? É um livro muito deprimente exatamente por causa disso, este vai e vem, e a pessoa no lugar de melhorar até piora.


Luana Antunes Costa

Entrevista Conceição Evaristo, Paulina Chiziane e Luana Antunes Costa

não sei se teriam capacidade de interpretar a vida com a real dimensão da Carolina Maria de Jesus. Então de vez em quando eu digo: acadêmicos, vão a fava! Para mim, Carolina Maria de Jesus escreveu e quem escreve chama-se escritor, o resto é história. Agora, eu colocar-me no lugar dela, não sei, não seria capaz, eu acho a Carolina uma mulher suprema. O mundo que ela viveu, os preconceitos que ela rompeu, a guerra que ela travou eu não me sinto com estrutura, nem capacidade de chegar aos pés dela. Sempre tive casa, sempre tive pão e sempre tive amparo. E o pouco que eu faço, eu faço até muito pouco, deveria fazer mais, porque tive condições para existir. A Carolina estava só. E eu respeito essa força interior que ela tinha, educou-se a si mesma e tornou-se o que ela é....Jesus! Os acadêmicos, por favor, que parem de incomodar. Em sua última obra Ngoma Yethu (2015),em co autoria com a curandeira Mariana Martins, vocês elencam questões como: colonialismo, curandeirismo e cristianismo. Fale-nos um pouco mais sobre essa obra e como Mariana Martins entrou em sua vida. Os acasos (risos) os acasos determi26 24

FEIRA DO LIVRO FEIRA DO LIVRO

nam às vezes as nossas reações. Tive uma crise psicótica, fiz um tratamento médico, mas havia outra medicina alternativa, que ela domina que são as plantas que prepara. E pronto, depois do tratamento médico, que eu cumpri, comecei a fazer um tratamento com as ervas, e para mim foi mais saudável porque não me dava cabo do corpo. E surpreendeu-me o fato de que cada vez que vai colher a planta, não, que colhe a planta, não; cada vez que prepara, eu não sei que planta é, não mostrou-me, cada vez que prepara: reza. Chama Deus, chama Jesus, chama antepassados. Então eu dizia: olha, que eu saiba todo mundo diz que vocês são o diabo. Então, começou a desenrolar muita conversa. Por fim, quando eu já estava melhor, quando estava bem, eu disse: olha é preciso fazer justiça, porque são muito poucas as pessoas que compreendem o vosso trabalho. Vocês tem coisas más, isso é um problema vosso, mas o que eu percebi é que vosso trabalho é baseado na prece, sempre rezando. E aprendi coisas muito interessantes com ela. Porque ela diz: olha, tu é quem tem que dizer se o que te faço é diabólico ou não. O efeito que tu sentes é bom? Eu digo: olha é uma maravilha essa planta! E ela me pergunta: Curar-te é um tra-

balho do diabo ou não? E então, a nossa conversa começa assim. E ela diz: olha, chamam-me diabólica, os evangélicos, eu fui buscar a planta, quem criou essa planta, foi Deus ou foi o diabo? Foi Deus, então tu escolhes, faças juízo do que tu quiseres, mas se tu ficasse bem com uma planta, foi quando eu pedi: por favor, mostra-me a planta! Ela me disse: Jamais te darei! Eu protejo essa planta que vem sendo protegida desde os tempos mais antigos, porque a imposição colonial, portanto chamam-nos diabos, mas vem sempre a correr para vir buscar aqui o que é nosso conhecimento. Não dou! Já fiz isso, mostrei uma planta a alguém, que foi logo a correr aos brancos que levaram, processaram, patentearam. Tiraram de nós o conhecimento, que para além de nos humilhar, excluir, ganham dinheiro com o saber dos nossos antepassados. Não te dou a planta! E eu entendi. Em entrevista publicada em 11/7/16 no site “Geledés”, há uma fala sua afirmando que você está a “se despedir de seus leitores”. Com essa afirmação você se refere a projetos a “duas mãos”? Você pretende continuar engajada em projetos de co-autoria? Ou


Entrevista CMM

pretende parar de escrever? Eu não sei exatamente (risos) o que vai acontecer, mas a atividade de escrita tem as suas, como se diz, suas questões de saúde. Eu já não posso mais ficar tanto tempo no computador, eu trabalho trinta minutos, depois tenho que fazer um intervalo de dez minutos. Então, vou fazendo uma literatura aos bocadinhos, já não é com aquela dinâmica antiga. Mas isso não me impede de publicar trabalho, mas é uma outra questão também. De vez em quando é importante a gente dar um basta as pessoas que incomodam, porque assim de repente a sociedade moçambicana, não, uma boa parte dos moçambicanos achavam que eu era propriedade pública que podiam fazer e desfazer. Quem quer escrever, escreve; quem quer dizer, quem não quer não diz. Eu vivi em situações muito incomodas, assim, do tipo: a Paulina está sempre a viajar, ela está a tirar o lugar a nova geração. Eu disse: a, é? Só isso? Tchau! Vai tu escrever!A porque o trabalho dela, não é,o gosto de muita gente era dizer: a Paulina julga-se escritora, mas ela não escreve nada, o trabalho dela não tem qualidade. A é? Vai tu, escreve! A mais vai dar confusão, não, esse tipo de pronunciamentos cria um tipo de opinião pública muito incômoda. Eu vivi muito tempo incomodada com isso, chegou um dia que eu disse: meu amigo, tchau! Vou embora! A mas...Chega de guerras !Querem me dar, aqui papel caneta, comprem, façam, produzam, e então mandei assim, as favas! Mas foi interessante que a partir dali as pessoas murmuram, conversam, dizem o que lhes vai na alma, mas depois recuam, refletem sobre o que se passa. Chega de abusos. O trabalho é meu, o tempo é meu, o que vocês tem que saber da minha vida, então quem quiser que se ir ao facebook, encontraram um erro gráfico, um erro ortográfico no trabalho dela, assim as coisas mais incríveis. Eu disse não, boba de festa eu não fui, o que eu fiz foi por amor, chega! Vá vocês! Então vem esta agressão pública, mas eu acho que foi muito bom e eu acho que outros escritores vão se beneficiar disso. Eu até disse: olha, eu não disse que era escritora, eu nunca disse, eu disse que contava histórias e contei e encantei, por isso a guerra que vocês fazem não tem alma, o que vocês querem aqui? Saiam de mim e pronto. Então foi mais ou menos assim a sequência desse mal estar, mas sem dúvidas que eu já não vou fazer a corrida

Isabel Macie, Alice de Abreu e Paulina Chiziane

da grande publicação, vou trabalhando devagar (risos). E como tu falaste: Fazer aquilo que gosto, no tempo que posso. Sim, eles tem que respeitar o trabalho das pessoas, pelo menos em Moçambique. Eu venho de uma época em que a escrita era um lugar dos homens. É verdade que houveram mulheres que escreveram antes de mim a Glória de Sant’anna que era portuguesa, fez contos, a Lilia Momplé, fez contos, a Noémia de Sousa, fez poesia... disso nunca mudou. Existem muitas pessoas que começaram a perseguir a minha carreira só para destruir, chegou o um ponto de dizer chega não quero guerra com ninguém, vou escrever aquilo que me der na cabeça, como sempre. E por favor continue “incomodando” e inspirando outras escritoras. Mas a sociedade moçambicana preci-

sa parar e respeitar. O que aconteceu foi, bateram numa conversa do Whatsapp: quem vai ser o próximo prêmio Camões? Então uns diziam: a Paulina vai ser. Porque não sei o quê, não sei o quê. Outros diziam: não pode ser, porque não sei o quê, não sei o quê. Uma coisa muito suja, chega a ofender assim essa mulher passa a vida a circular pelo mundo o que é que ela vai mostrar? Eu olhei para aquilo assim, epa, isso é uma zona quente, é preciso cortar isso com um machado. Fiz a minha declaração e toda essa onda de Whatsapp, Facebook, não sei o quê, caiu. Então, todos me procuram: Paulina, e agora, e agora? Porque até jornais já estavam nisso, não, preferi cortar, e assim se seu publicar... É engraçado que nenhum jornalista voltou para me perguntar mais nada, porque eles sabem o que estavam a tramar, eles querem vender o jornal, vez em quando inventam um escândalo, então percebi logo e preferi cortar.

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Ideias Armando Artur e Jessemusse Cacinda

Dialécticas literárias em tempos de crise: que ideias para o futuro? Poeta e ensaísta moçambicano, publicou: Espelho dos Dias (1986), O Hábito das Manhãs (1990), Estrangeiros de Nós Próprios (1996), Os Dias em Riste (2002) e A Quintessência do Ser (2004) – Prémio Nacional de Literatura José Craveirinha. Texto: Armando Artur

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u tenho cá para mim que os booms literários acontecem sempre em tempos de crises. Estes ocorrem justamente quando a literatura, pela sua natureza, busca retratar, relacionar, estabelecer rupturas, ou mesmo consertar dialecticamente as fissuras do mundo.

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E tenho dito, inclusivamente, que, para a literatura, tal como a própria vida nos ensina, todos os tempos são tempos de conturbação, de contrariedades, tempos estonteantes. No entanto, não importa se tais crises são de cariz político, económico ou social, ou simplesmente

se são de índole emocional, existencial, identitário, climático ou epidemiológico, como a doença que a humanidade enfrenta neste momento, desde que esses tempos nos possam emprestar algumas reminiscências de esperança e felicidade, no plano individual ou colectivo.


Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério. Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo… O progresso caminha ao alto de um hemisfério E tu dormes no outro sono o sono do teu infindo…

A selva faz de ti sinistro eremitério, onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo… Lança-te o Tempo ao rosto estranho império E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo… Desperta. Já no alto adejam corvos Ansiosos de cair e de beber aos sorvos Teu sangue ainda quente, em carne sonâmbula… Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno… Ouve a Voz do teu Progresso, este outro Nazareno Que a mão te estende e diz-te: — África, surge et ambula! (in «Literatura moçambicana: as dobras da escrita», de Fátima Mendonça -2008). Ou este de José Craveirinha: Grito Negro Eu sou carvão! E tu arrancas-me brutalmente do chão e fazes-me tua mina, patrão. Eu sou carvão! E tu acendes-me, patrão, para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não, patrão. Eu sou carvão e tenho que arder sim; queimar tudo com a força da minha combustão. Eu sou carvão; tenho que arder na exploração arder até às cinzas da maldição arder vivo como alcatrão, meu irmão, até não ser mais a tua mina, patrão. Eu sou carvão. Tenho que arder Queimar tudo com o fogo da minha combustão. Sim! Eu sou o teu carvão, patrão. (In “Karingana Ua Karingana, 1982) Já no período pós-independência registamos o surgimento da geração “Charrua” da qual eu próprio faço parte, que se faz à luz na década 80 do século XX, emergindo de um contexto histórico particularmente conturbado para Moçambique. Este movimento literário não se circunscreve somente aos fundadores da Revista com o mesmo nome, como Hélder Muteia, Juvenal Bucuane, Ungulani Ba Ka Khosa, Tomas Vieira Mário, Eduardo White, Pedro Chissano, Idasse Tembe, pois alarga-se igualmente aos escritores como Paulina Chiziana, Al-

dino Muianga, Suleiman Cassamo, Filimone Meigos, Marcelo Panguana, Carlos Paradona, entre outros, cujo feito principal foi a ruptura estético-temática, com o que então estava em voga como, por exemplo, a chamada literatura laudatória e panfletária que, exaltando as conquistas revolucionárias, discurava, por assim dizer, o lado estético da criação literária. Eis aqui um excerto de “UALALAPI” de Ungulani Ba Ka Khosa: “(…) Mas ficai sabendo, seus cães, que o vento trará das profundezas dos séculos o odor dos vossos crimes e viverão a vossa curta vida tentando afastar as imagens infaustas dos males dos vossos pais, avós, pais dos vossos avós e outra gente da vossa estirpe. Começareis a odiar os vossos vizinhos, increpando-os pelos males que padecerão nas palhotas sem idade (…)” (In “UALALAPI”, 1987) Escutemos também este poema de Juvenal Bucuane: RECUSAM Recusam que esta flor desabroche, deflagre de esplendor e encha os olhos do mundo de espanto! Adiam apenas a explosão telúrica destas pétalas recalcadas... Abrir-se-ão cheias de cor num dia de sol! (In “REQUIEM com os olhos secos”, 1987) E este de Eduardo White: Da Ínfima gota A tarde se destende toda nua Unicamente no pó ou nas coisas que me bastem Então, eu me afasto despido e tão evidente Como a límpida clareza do grito E sou de repente A ave apedrejada A ave ferida Com as asas largas Largas e compridas Fugindo célere ao arremesso. (In “AS PALAVRAS AMADURECEM”, CADERNOS “DIÁLOGO”, 1988) Embora não fazendo parte do grupo “Charrua”, eu incluo também Mia Couto, Calane da Silva, entre outros, cujas obras traduzem, de certo modo, aquilo que sustento nesta alocução. A geração “Charrua” versus geração “80”, como um todo, reflectiu e muito bem, nas suas

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E se olharmos para a própria história da literatura, encontraremos exemplos que atestam, em certa medida, o meu raciocínio. Temos o caso da “Geração Perdida” que, face às crises geradas pela primeira guerra mundial e, logo a seguir, pela recessão, produziu alguns dos grandes nomes da literatura do século XX. Aqui podemos trazer, à guisa de exemplo, Ernest Hemingway, John dos Passos, William Faulkner, entre outros. Um pequeno extracto de “SARTORIS” de William Faulkner: “... e desde que a essência da Primavera é a solidão, uma vaga tristeza e um sentimento de frustração atenuado, suponho que se consegue uma purificação mais profunda quando se lhe acrescenta um pouco de nostalgia como preventivo. Em casa encontro-me sempre a recordar as macieiras ou azinhagas verdejantes ou a cor do mar noutros sítios e entristece-me não poder estar em toda a parte ao mesmo tempo e que a Primavera não seja toda a mesma Primavera, como a boca das senhoras, de Byron.” (In “SARTORIS”, 1958, EDITORA ULISSEIA, pg. 393). Outrossim, temos a geração do pós segunda guerra mundial (a que eu chamo de geração da Guerra Fria), onde encontramos escritores como Sartre, Pablo Neruda, Gabriel Garcia Marques, Júlio Cortázar, Wole Soyinka, entre tantos outros. No caso de Moçambique, podemos anotar os precursores da literatura moçambicana, como são os casos de Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luis Bernardo Honwana, entre outros, que são produto da resistência colonial, da contestação da dominação estrangeira em Moçambique. Alguns destes até são transversais aos períodos críticos subsequentes, como os da luta de libertação nacional e do pós-independência, períodos esses caracterizados por grandes transformações políticas, económicas e sociais. Vejamos este poema “África, surge et ambula” de Rui de Noronha:


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Ideias Nataniel Ngomane, Jorge Ferrão, Samuel Mudumela, Edelvina Materula e Eneas Comiche

obras, a crise desses anos, caracterizada também pela escassez no mercado de quase tudo, pela desestruturação social, consequentes dos 16 anos de guerra civil. Mais adiante encontramos ainda as gerações literárias pós “Charrua”, isto é, as da década 90 do século XX, e posteriores, que comportam movimentos literários como é o caso do “Xiphefo”, representado por Guita Júnior, e outros autores que, sendo regulares em termos de publicação, deixaram traços dessas crises nas suas obras, tais como Adelino Timóteo, Sangare Okapi, Aurélio Furdela, Lucílio Manjate, Rogério Manjate, Mbate Pedro, Japone Arijuane, Hirondina Joshua, Álvaro Taruma, entre outros. Estes são alguns desses escritores que nas suas obras estão patentes marcas da busca duma identidade nacional, das contrariedades da vida, dentre as quais, as das guerras sucessivas que o país tem vindo a experienciar na sua história recente. Aqui temos um poema de Adelino Timóteo: 1. Reparo no amor com virtude de um pássaro que quer voar em direcção à larga linha do horizonte, com tanta gente aqui neste país que o anuncia e o desperdiça a feri-lo em disputa, a magoá-lo, a alvejá-lo, quando o mesmo pode ser uma dilecta criação do peito.

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Um amor por si, vale tanto, vale mais que nada, vale tanto como a vida, exprime a cor da sua sede, ao alto dois pássaros a voar. O amor não merece as pedras que todos os dias lhe atiramos. Em vez de acusares a inconstância com que o invocas, se amas, e não te correspondem, desde já não lhe ponhas freios, não uses travões nem borracha. Pelo Contrário, desse pouco lucro que te dão as estrelas contenta-te até, que o amor é assim mesmo, sempre a transportar a dor ao âmago. (In “Os segredos da arte de amar”, 1998) E ainda do Japone Arijuane: 1. O machuabo em mim não é senão um matchangana disfarçado a sonhar-se makonde com engenho da sua arte se esculpir ndau n’siro na fé pintar a crença makwa adormecida nos chewas, nyungues e yaos da minha diáspora. (In: ‘’Dentro da pedra ou a metamorfose do Silêncio”, 2014) O substracto comum nas literaturas produzidas por estes e outros au-

tores de diferentes gerações e espaços geográficos, em tempos de crise, é o de estabelecer permanentemente rupturas com o seu tempo. Tal como afirma o brasileiro Leomir Cardoso Hilário: “... a negação do mundo vigente abre espaço para a possibilidade de outro mundo. Com esta noção, pretendo reafirmar, no quadro histórico actual marcado pela crise estrutural, a especificidade, potencialidade e relevância da literatura para a produção de uma crítica radical do presente”. O futuro da literatura estará sempre associado aos processos históricos dum país, em particular, ou do mundo, em geral. Eu penso que, sem turbulências sociais e existenciais, pode ser difícil produzir-se literatura, tal como a concebemos. Falo de turbulências visíveis e invisíveis, duas dimensões das crises, a partir das quais o escritor descreve ou reinventa o seu mundo. Vale então sublinhar e prognosticar que a literatura continuará associada ao compasso dos processos e realidades sociais. Assim foi, assim é, e assim será sempre, pois essa é a razão pela qual ela se realiza, consequência directa ou indirecta da perfeita imperfeição do mundo em que vivemos. Quero augurar então que a apartir de 2021, em Moçambique e noutros lugares do mundo, testemunharemos grandes booms literários, como corolário da grande crise epidemiológica que hoje assola a humanidade, causada pela Covid-19.


Ideias Câmara Municipal de Lisboa, Américo Simas

Alda Moreira

Brincar: ler e transformar o mundo Nasceu no Porto no século passado. Cria e desenvolve projectos de educação, participação social, património cultural e natural em cinco continentes, numa união que se chama UCCLA. Trabalhou anteriormente no Teatro, edições e cinema - Artistas Unidos. Texto: Alda Moreira

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s futuros ex-pequenos leitores são agora grandes em imaginação, curiosidade pelo mundo, vontade de brincar e aprender. Os adultos dizem demasiadas vezes às crianças: quietos, calados, cada um no seu lugar, sem brincar! - e assim tentam ensinar, com um enorme desperdício do potencial de aprendizagem das crianças, silenciando a capacidade natural que toda a criança do mundo possui para aprender: questionando, experimentando, imaginando, sendo curiosa pelo mundo, aprendendo com outras

pessoas e brincando. E nós adultos, distraídos que estamos, tentamos encaixar a criança numa qualquer ordem convencional - ver a criança como um erro a ser corrigido, como alguém incapaz. Os adultos de referência da criança na família, na escola, na biblioteca constroem ou destroem tantas capacidades. A sua ação é memorável e marcante em toda a nossa vida futura. No entanto a criança conserva conhecimentos que nós já perdemos: na sua relação com a natureza, descobrindo

profunda e conscientemente o mundo em redor, com permeáveis fronteiras entre imaginação e realidade. Esse conhecimento deve ser reconhecido e protegido. Cada criança, quando entra pela primeira vez na escola ou na biblioteca tem já um imenso conhecimento e cultura que deve ser escutado e respeitado para que possamos construir aprendizagens significativas, não violentas e próximas da cultura e da língua de cada um. Compreender o que nos é dito, conseguir expressar um pensamento – se isto nos é

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Ideias Aluno da Escola Sec. da Lhanguene

vedado na aprendizagem, como vamos aprender a escrever e a ler? DESENVOLVER A ORALIDADE Primeiro, e sempre, desenvolver a oralidade e o conto oral. A zebra nasce zebra, o leão nasce leão, o elefante nasce elefante. O ser humano é ser humano porque há outros seres humanos. Como na filosofia africana ubuntu: “eu sou porque nós somos” ou “ser-com-osoutros”, a construção do ser humano e da humanidade não existe sem a aprendizagem cultural, que na sua base e fundamento tem a LINGUAGEM. Ninguém aprende a falar sozinho. A linguagem é o que permite humanizarmo-nos. Escutar alguém, falar com alguém é tratar alguém como pessoa, como semelhante, sem o diminuir ou oprimir. A construção do ser humano começa quando nos sentamos em roda e ouvimos histórias. Essa narração constrói-nos e é um prazer. No mundo atual, repleto de voragens – de vidas humanas diminuídas e destituídas de direitos, da predação e da catástrofe ambiental e climática, sem tempo e cada vez mais sozinhos, onde 32 30

FEIRA DO LIVRO

Construir, escolher as nossas palavras e textos - a nossa própria narrativa, constrói a cidadania.

a imagem, o espetáculo, a desigualdade e o lucro dominam – persistir, contar histórias é um enorme desafio. Existir um tempo, um espaço de recolhimento e partilha, um espaço e um tempo emocional, inteligente em que nos sentamos com as crianças da nossa casa, da nossa rua, da nossa escola e não fazemos nada: apenas nos sentimos, ouvimos e vemos com atenção e… contamos histórias. Dizem que a roda já foi inventada, que

o fogo também. Mas temos de inventar de novo, todos os dias, estas rodas e estas centelhas de estímulos intelectuais, de carinho, de alegria e de aceitação - sim, porque faz falta ainda, em todos os lugares, aceitar verdadeiramente a criança. AS PALAVRAS SÃO O CORPO DO PENSAMENTO Valorizar as histórias que as crianças inventam e escrevem, para lá do crivo do erro, é abrir a porta ao gosto pela leitura, a um diálogo profundo com os livros. Também com os que podemos criar. Construir, escolher as nossas palavras e textos - a nossa própria narrativa, constrói a cidadania. Aprender e aperfeiçoar a escrita, fazêlo com gosto, motivando para uma ação que não seja penosa – expressar, superar, escrever, escrever: textos curtos, notas diárias, cartas, descrições de lugares e de horas do dia preferidas, notícias, o som da escola, o que fizemos de manhã, conversas que ouvimos no chapa, a capulana que mais gostamos e o que fazemos com ela, uma pergunta que nunca vimos respondida, autobiografias criativas, a árvore maior que conhecemos, a avó, uma recordação de quando éramos


Ideias CMM

Grupo Descendentes da Poesia, Shélsia Chiul e N’ wantshukunyani Khanyisani

LER NÃO SERVE PARA NADA, SÓ PARA SERMOS LIVRES Leitura lúdica, coletiva, descolarizada – mexer nos livros mesmo quando ainda não sei ler, familiarizar-me com os livros e a leitura, querer participar, apropriar-me desta alegria, explorar o funcionamento da língua. Ler desenvolve a linguagem, o pensamento crítico, a cognição, as relações afetivas, a cidadania… inventar livros de qualidade que possam celebrar, reconhecer e também representar e legitimar as histórias do povo, as diversas culturas e memórias, a diversidade, autoria e criação contemporânea. Os livros, a leitura estão ainda muito afastadas do quotidiano (em qualquer classe social, mesmo entre aqueles que podem comprar livros). Se o acesso ao livro não começa em casa pode começar na escola, na biblioteca, na rua.

Câmara Municipal de Lisboa, Américo Simas

mais pequenos, … Fica para a vida: compreender, escolher palavras, reescrever, treinar, voltar atrás e escrever melhor, vencendo o “não sou capaz” e o medo do castigo, da avaliação cega que só realça o erro e tenta uniformizar “estilos”.

Animação de leitura

Provocar o encontro entre pessoas e livros – levar crianças a livros, levar livros a crianças, construir essa relação de mediação, provocando esse maravilhamento, essa descoberta. Para isso: conhecer bem os livros e as suas múltiplas possibilidades criativas e críticas, preparar o ambiente: caloroso, seguro e amigo, em roda para nos sentirmos, vermos e ouvirmos melhor, descontraído e atento, o ritual do encontro (entre pessoas e livros), contar e con-

versar sempre no fim – fazer perguntas, estimular o diálogo, sem certo nem errado, sem ditar a “moral da história”, podendo expressar, analisar, relacionar, resumir e assim, pela nossa voz, aprender melhor acerca do que ouvimos. Também com os outros na pluralidade de ideias. Dar um sentido individual e coletivo ao que estamos a fazer. Persistir, pensar, refletir, construir coletivamente, apesar de todos os obstáculos, esta rotina feliz.

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Concurso

MAPUTO, CIDADE REINVENTADA

Os contos e poemas se escrevem no feminino Foi no âmbito da Feira do Livro de Maputo, que decorreu o Concurso Literário de Conto e Poesia, subordinado ao tema “Maputo, cidade reinventada”. Texto: Lizete António Nhantumbo

Com a participação de estudantes do segundo ciclo de escolas secundárias oriundas de diversos distritos municipais, nomeadamente: Escola Secundária da Catembe, Escola Secundária de Lhanguene, Escola Secundária de Malhazine, Escola Secundária Francisco Manyanga, Escola Secundária Inhaca Sede, Escola Secundária Noroeste 1, Escola Secundária Eduardo Mondlane e Escola Secundária Josina Machel. Este concurso literário, promovido pela edilidade da cidade capital, tem como objectivo desenvolver o gosto

pela escrita e pela leitura, a expressão e criação literária, o diálogo cultural e a cidadania com a participação das escolas e dos jovens estudantes de Maputo. O concurso envolveu a colaboração da Associação dos Escritores Moçambicanos, AEMO, Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, FBLP e Associação Moçambicana da Língua Portuguesa, AMOLP. Esménia Amélia Fabião Dzimba (poesia), Nilza Mapulango (poesia), Egineta João Tumbua (conto), Arminda Guilherme Cumbane (conto), Antonieta

Gaspar Mahululuane Muabsa (poesia) e Helder Samuel Ngulele (conto), sãos estudantes que se destacaram na elaboração de contos e poemas, ao vencerem os concursos dos prémios literários de “Conto” e “Poesia” produzidos no circuito da Feira Internacional do Livro de Maputo. O júri foi composto por três membros, Gilberto Milice, Sangare Okapi e Cremildo Bahule. NB: Reservada a originalidade dos textos escritos pelos estudantes.

Eneas Comiche, Lídia Daniel e vencedora

Vencedores do Concurso Literário

Matteo Angius e vencedora

Lúcia Comiche e vencedora

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FEIRA DO LIVRO


Poesia ESCOLA SECUNDÁRIA DO NOROESTE 1 Antonieta Gaspar Mahululuane Muabsa 12a classe

O NOVO CORONAVÍRUS A Pandemia do coronavírus Maputo cidade reinventada Tudo começou do nada Na China, ninguém achava que tinha Muita relevância Até que o vírus se espalhou pelo

Mundo todo Espalhou-se como poeira Dizimou vidas de qualquer maneira Mas a quem ainda acha que essa Doença não verdadeira Ah,3a Guerra Mundial Nunca antes houve igual Um inimigo invisível

ESCOLA SECUNDÁRIA DA CATEMBE Esménia Amélia Fabião Dzimba 11a classe

MAPUTO CIDADE REINVENTADA Ninguém sabe como começou ou como irá terminar mas a humanidade está em pânico, não sabemos onde vamos parar Veio como o vento, mudou o mundo, não se sabe ao certo se é para o certo ou incerto, só sabe-se que trouxe mudanças. Antes Mesmo da sua chegada ao país, Não podíamos fazer-nos chegar as instituições de ensino, aprender, ter, sentir o gosto do conhecimento Enfim chegou a nossa hora, não sabemos se é mesmo uma honra, ou

como seremos honrados, mas é momento de encarrar pois a hora é esta. Foste tu Covid, Corona vírus um nome que a minha avó nunca irá pronunciar correctamente, nem se sabe qual é o correcto Nem se o caminho que levamos é recto. Vieste até nós corona Invadiste nossa cidade Cidade de Maputo Maputo!! Maputo!! Maputo!! Três vezes Maputo

Que sendo se torna difícil de derrotá-lo Completamente insensível O nosso quotidiano verificou alterações O inimigo está por todo lado, em Várias situações Não posso mais sair Ficar em casa é também forma de se Prevenir Máscaras e levar as mãos a cada 5 minutos também Assim não transmitimos o vírus a ninguém Esse vírus deixou-nos descontentes Mas também ensinou-nos a ser Resistentes E agora que ser pacientes Porque ainda não existe cura Infelizmente O mundo hoje veste preto Eu ainda sinto medo Mas tenho a certeza absoluta De que venceremos essa luta

e o dobro ou triplo de infectados em menos de 24 horas. Dói!! Dói!! Dói!! Mas o que dói mais? O facto da minha mãe não poder vender a sua couve porque o conselho municipal destruiu sua banca no Mercado Xipamanine? Dói!! Dói!! Dói!! Mas o que dói mais? O facto de não poder sentar numa Carteira e beneficiar de conhecimento e não tenho televisão em casa para acompanhar telescola? Dói!! Dói!! Dói!! Mas o que dói mais? O facto de terem reduzido o número de trabalhadores na empresa e o meu pai estiver incluído? Dói!! Dói três vezes e mais O aumento do desemprego mas ainda existe uma esperança Muitos estão a se apoiar durante esta FEIRA DO LIVRO

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Concurso

pandemia. São os que abrem as mãos é o cansaço dos que cansaram de ver crianças que habitam nas ruas da cidade de Maputo as que se escondem da chuva debaixo da ponte Maputo-Katembe Dói!! Dói três vezes e mais Ver o sol nascer a partir da janela mas ainda existe uma esperança As pessoas se curaram, vivíamos de forma ignorante, sem consideração ou coração começamos a pensar de formas diferentes, lemos livros, fazemos artes, meditamos, oramos, passamos tempo juntos e até conhecemos nossas sombras Não estamos como devíamos estar, a destruição dos mercados estrela, Xi-

pamanine e Zimpeto, trouxe-nos algo de bom Há quem diria que “o ambiente agradece, Maputo cidade agradece” Reduziu a movimentação principalmente na grande cidade, “o ambiente agradece” Reduziu a produção de resíduos sólidos “ o ambiente agradece” O fechamento das fábricas resultado da redução dos gases poluentes na atmosfera “ o ambiente agradece” É evidente que toda cidade de Maputo concorda que por conta desta pandemia, apesar do isolamento social e falta de preparo Algo bom surgiu, a solidariedade, união familiar,

Mudanças positivas Há doenças que são mais que doenças, oferecem algumas recompensas, nenhuma doença é indispensável, nenhuma doença é confortável e nenhuma doença é definitiva. Por isso quando o perigo passar voltaremos a reunir-se, circular nas avenidas da cidade, é claro que faremos luto pelas perdas, faremos novas escolhas, sonharemos e criaremos novos modos para viver A pandemia da covid-19 não trouxe só problemas mas trouxe mudanças, está a reinventar Maputo, nem que um dia tudo isso passe, deixará marcas, uma história para contar as próximas gerações

ESCOLA SECUNDÁRIA DA CATEMBE Nilza Mapulango 11a classe

MAPUTO CIDADE REINVENTADA O covid -19 Por onde tu vieste Por onde tu vais Tu matas sem ter piedade Fechaste empresas , escolas , travaste construções Ò covid -19 Tu matas sem ter piedade Mataste médicos, enfermeiros, polícias, curandeiros sem ter piedade Òò covid-19

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Tu conseguiste abalar o mundo num piscar de olho Tu mataste brancos, negros, pobres, ricos , magros e gordos sem ter piedade Ò covid-19 Antes reclamava-mos Por falta de dinheiro Hoje temos e não temos como gastar Tu conseguiste manter cada caranguejo no seu buraco Ò covid -19

Antes inspirar era sinal de gozar de boa saúde Hoje é sinal da sua entrada Antes eram beijos, abraços, festas, xitiques , passeios Mas tu Mas tu Covid -19 Conseguiste nos manter em jaulas Um temendo o outro Òòòò covid-19


Concurso

Contos Um inimigo inofensivo

“ ESCOLA SECUNDÁRIA DA CATEMBE Helder Samuel Ngulele 12a classe

As ruas da cidade de Maputo estavam quase vazias,mercados encerrados e escolas fechadas,já não se viam aquelas bancas de tomate nem aqueles alunos de preto e branco indo a escola,as coisas haviam mudado,um ser vivo super pequeno havia mudado a história da humanidade” Esmenia e seu pai José caminhavam pela cidade das acácias, estavam parecendo um caos de tanto vazio! - Pai a cidade está tão vazia!(comentou Esmenia maravilhada) - as coisas mudaram minha filha (respondeu José) - este vírus mudou as nossas vidas!(comentou a menina) - bem,os nossos antepassados tem nos protegido!(respondeu José bem confiante) - sério, mas se eles morreram como conseguem nos proteger? (exclamou a menina) - minha filha, olha nós na Catembe estamos protegidos, essa doença é para ricos! - humhum(resmungou a menina rindo) - o que você está rindo menina? - pai o vírus não escolhe ninguém, ele afecta quem não se protege! - eu não acredito,os meus antepassados me protegem, não sei você! - está bem pai,vamos! Temos que fazer compras suficientes, temos mais 30 dias de quarentena! - sim filha! Passaram um tempo visitando os mercados,alguns já estavam vazios e noutros os preços subiram,a humanidade ganhou um novo inimigo que por mais pequeno que ele seja mudou tudo! - Os mercados estão vazios pai e os preços são altos!(comentou a menina) - e o que faremos filha,morreremos de fome! - os antepassados vão nos dar comida(disse a menina rindo) - você não esta bem! (respondeu José rindo) - melhor nos protegermos do que confiar nos mortos! - eu ainda confio (insistiu José) - está bem pai!

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Concurso Passaram um tempo visitando os mercados,alguns já estavam vazios e noutros os preços subiram,a humanidade ganhou um novo inimigo que por mais pequeno que ele seja mudou tudo!

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Chegados à aldeia, estavam com plásticos cheios de mantimento para mais uma jornada de quarentena quando viram um grupo de aldeões reunidos e o chefe de quarteirão estava discursando. - pai vamos ouvir? (perguntou curiosa a Esmenia) - sim vamos! Falando o chefe de quarteirão dizia”queridos compatriotas estamos sendo afetados por uma doença que esta matando no mundo todo, então temos que nos prevenir, como disse o presidente na TV, vamos ficar em casa” Sussuros,reclamações e protestos se ouvia do povo que reclamava o fato de ter que ficar em casa. “E como vamos sustentar nossas famílias?...Nós perdemos emprego...vamos morrer de fome....Ai meu pai!...Nós vivemos saindo,não tem como viver dentro de casa!.. Essas e outras eram as reclamações do povo e eram entendíveis. Continuaram reclamando até que ouviram lá do fundo uma voz pequenina dizendo” Oi,eh, me deixem falar!,era a Esmenia pedindo a palavra! Ela passou a multidão e ficou em frente dela,pegou o microfone e como um adulto começou a discursar” caros cidadãos, estamos sendo afetados por um vírus, um ser muito pequeno e quase inofensivo,este é o nosso inimigo e nós podemos vencê-lo! “Como?,inofensivo?.. Ele está matando o mundo todo!(continuou reclamando o povo). - caros cidadãos (continuou Esmenia), o nosso inimigo é um vírus pequeno que nós nem conseguimos vê lo,ele é tão pequeno que nós só precisamos lavar as mãos constantemente, usar máscaras quando estivermos em lugares aglomerados,marcar distância de pelo menos um metro e meio e seguir todas as medidas de prevenção e assim podemos vencê lo. O povo bateu as palmas para a pequena menina e parabenizou a pela sua contribuição! - qual é o primeiro passo? - eh, o que faremos primeiro? (Perguntava o povo agitado) Esmenia respondeu: - Vamos colocar água e sabão nas paragens, nas ruas,nos mercados e quem passar por lá vai lavar suas mãos. E vamos evitar nos saudar com as mãos! A vida mudou, mas se nós seguirmos a dinâmica dela,iremos vencer!! Fechou o discurso! José recebeu sua filha de forma carinhosa e quase esqueceu os antepassados! - estou orgulhoso filha! - obrigado pai! As coisas mudaram na bela cidade das acácias e em todo mundo mas a vida continua!


Concurso

Covid-19

H ESCOLA SECUNDÁRIA DO NOROESTE 1 Egineta João Tumbua 12a classe

Naquele tempo a humilde terra parou, para se proteger e proteger os seus tinham que abdicar da vida normal, era necessário a força e ajuda de todos mas na terra nem todo o povo tinha consciência da gravidade do assunto,

á muito, muito tempo numa terra distante surgiu uma doença chamada corona vírus era uma completa novidade para aquele povo, não havia nenhum conhecimento da causa da doença e muito menos da devida cura. Provocando muito medo no povo, a terra ainda em desenvolvimento procurando os melhores doutores, cientistas e estudantes para tentar solucionar o problema, assim depois de vários estudos só conseguiram descobrir a causa mas não a cura. A medida que o tempo passava a doença entre as pessoas ia se alastrando, fazendo com que as pessoas entrassem em pânico, provocando muita agitação. Os homens daquela terra estavam numa busca incansável por uma solução, pela melhora, então começaram a estudar meios de pelo menos acalmar, controlar, de se precaver, de diminuir o impacto, de proteger o seu povo. E sabendo as causas da doença foi fácil arranjar meios de se prevenir. Descobriram que podiam usar máscaras, lavar as mãos com água e sabão, que podiam desinfetar as mãos com álcool em gel e o pior evitar quaisquer que fosse o contacto físico com as pessoas mas como a doença só tinha a se alastrar descobriram que a melhor e a mais difícil forma de se prevenir e diminuir o aumento dos doentes era ficando em casa. Naquele tempo a humilde terra parou, para se proteger e proteger os seus tinham que abdicar da vida normal, era necessário a força e ajuda de todos mas na terra nem todo o povo tinha consciência da gravidade do assunto, e por conta do sustento das famílias não aceitavam o facto de ter que deixar tudo e ficar em casa para sobreviver, alguns ate tinham uma ignorância de questionar os porquês de lavar as mãos com sabão, e se o sabão ajuda porque não faziam uma vacina ou medicamento com ele, varias famílias então fingiram que nada estava acontecendo e mantiveram as suas vidas na normalidade. Foi então que tudo piorou o desconhecido se tornou terror, angustia a dita uma simples tosse se tornou um completo pesadelo naquela terra, as pessoas começaram a morrer. Os líderes, os governantes mal sabiam oque fazer mas tinham que arranjar qualquer que fosse uma solução, por mais que fosse temporária só para tentar diminuir o impacto que já estava cada vez mais incontrolável. O líder decidiu que ninguém mais podia sair de casa e decretou como uma lei oficial e quem ousa-se ir contra sua lei seria preso. A grande questão era como iam sobreviver sem trabalhar tendo em conta que a doença não avisou a sua chegada e com a partida indeterminada, ninguém tinha poupança ou mantimentos guardados era um pavor. Não podiam medir esforços para superar, o líder arranjou meios de ajudar o seu povo regulando o trabalho, no sentido de prevenir as pessoas já num estado bem avançado a doença. O povo tinha que se adaptar a essa nova vida que parecia que não ia voltar ao normal, tendo que abdicar de lazeres ou do bom, para o necessário. As crianças tinham muita dificuldade em compreender a situação mas por motivos de força maior as famílias que presavam muito a estabilidade, foram explicando, cantando, proibindo ate que as crianças começaram a entender a necessidade de ficar em casa, para ajudar a todos porque já não era um problema particular, todos eram suspeitos praticamente, não havia cara, estatura física ou psicológica ou mesmo condições económicas todos podiam apanhar. Naquela terra que sempre foi estável, alegre, prospera……passou a ser cinzenta, as ruas estavam vazias, não havia barulho, o medo assombrava os todos. As pesquisas continuavam todos não mediam esforços para superar, descobrir a solução, os estudantes, os profissionais, cientistas, criavam experimentos não paravam, os médicos continuavam a lutar, o líder e os governantes continuavam a tentar ver meios de manter a terra com incansáveis estratégias, orações tudo era bem-vindo.

FEIRA FEIRA DO DO LIVRO LIVRO

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Concurso

Naquele tempo só se fala da doença, era algo novo todos estavam muitos alarmados. A união daquele povo os ajudava eles permaneceu nas suas casas, ouviram as indicações dos doutores. Transmitiram alertas na televisão, jornais, revistas, tentaram explicar todas as formas de prevenção, espalharam muito a informação com a colaboração de todos, os casos começaram a diminuir mas não de uma forma considerável continuaram a estudar, a falar sobre a doença para o povo e da grande necessidade de se prevenir. Quando chegaram no fundo do poço onde o povo, os lideres, os médicos, profissionais, cientistas e estudantes já não viam saída mantiveram o esforço e a Fé sem esperanças continuaram o trabalho foi então que um dos laboratórios depois de um ano de pesquisa e experimentos falhados descobriram uma vacina o “curpoos “de acordo com eles poderia ser a solução, a vacina contra o corona vírus mas nada estava solucionado ainda tinham muito que se organizar, mais experimentos por fazer, quais seriam os primeiros pacientes a serem testados como de principio mesmo com a divulgação da cura ainda era necessária a ajuda de todos, a paciência e a permanência do povo nas suas casas, o uso dos métodos de prevenção, a luta e a busca incansável do melhor, com aqueles homens trabalhadores e com o povo que se manteve obediente os bons resultados começaram a surgir daquela vez a vacina era realmente a certa. Começaram a curar as pessoas, a adesão a vacina era muita então não mediam investimentos, recursos e estudos, os casos começaram a diminuir mas dessa vez de uma forma considerável, entre o povo ainda existia medo mas surgiu uma Fé maior, uma esperança, uma luz, continuaram dedicados a melhora, a medida que o tempo foi passando mais curados surgiam, finalmente havia boas notícias naquela terra. O líder acho melhor que continuassem nas suas casas mesmo com as melhoras, para que evitassem um novo surto da doença, assim foi dois anos inteiros se dedicando a melhora em busca da normalidade, ate que conseguiram, naquela terra já não havia nem se quer um caso activo do corona vírus. O terror virou história com a grande colaboração do povo superaram o maior problema que já existiu naquela terra. O primeiro testado com a cura o idoso de 91 anos contou na televisão, como mensagem de agradecimento disse; unidos vencemos, separados perdemos todos por um só amor, a vida. Moral; nada é tão certo, não sabemos oque pode acontecer amanhã mas escolha sempre ouvir.

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Concurso

A jovem ntombi

E ESCOLA SECUNDÁRIA DO NOROESTE 1 Arminda Guilherme Cumbane 12a classe

O jovem segurou a mão de Ntombi, declarou-se e pediu em namoro e como a Ntombi estava apaixonada por ele, ela aceitou o pedido de namoro.

ra uma vez, há muito tempo e longe daqui, uma jovem chamada Ntombi, ela vivia com os seus pais em Goba, que fica depois de Boane. Os meses foram se passando, e o país tive sérios problemas! E era o vírus de Covid-19 que assolou o Moçambique todo e o mundo. A jovem longe de pensar que o vírus atingiria o nosso país ficou preocupada pois a Ntombi tinha muito medo de morrer. As escolas, as barracas e igrejas foram encerradas. Um certo dia a Ntombi saia com as suas amigas até Changalane para dar um passeio e se divertir mas la ela se apaixonou por uma jovem chinês que nem ela conhecia o nome dele e muito menos a nacionalidade. A Ntombi vivia numa casa precária que se alimentavam da colheita da pequena machamba que la tinha ao redor de sua casa. Ela percorria 7 km para chegar a escola, e como em Goba não tinha energia, a Ntombi não sabia o que acontecia fora e dentro do país, há não for através da escola, porque os seus professores transmitiam todo á eles, mas com as escolas encerradas e sem televisão ela não tinha noção do que acontecia. Durante o passeio em Changalane, ela não tirava o olhar do jovem chinês que lá estava. Mas para a surpresa dela o jovem chinês aproximou-se a Ntombi e falou com ela. Mesmo o jovem chinês pediu o número da Ntombi e ela disse o que não podia lhe dar porque não tem telefone. O jovem chinês, achou a Ntombi bonita e alegre, encantando‐se naquele estante por ela. E ele perguntou para a Ntombi, onde tu vives e a Ntombi respondeu, eu vivo em Goba a 30 km de Changalane. Assim os dias foram se passando, um certo dia a Ntombi ia comprar pães para o matabicho e a caminho da padaria , ela viu o jovem chinês que por coincidência ele estava lá a procura dela. Perto da padaria, havia um banco e lá ficaram a conversar. Perguntou Ntombi, tu és moçambicano? E o jovem respondeu, eu sou chinês e vim para moçambique visitar o meu avô. O jovem segurou a mão de Ntombi, declarou‐se e pediu em namoro e como a Ntombi estava apaixonada por ele, ela aceitou o pedido de namoro. Passaram-se dias, eles se encontrando e passando…mas a Ntombi começa a ficar doente com febre dor de cabeça vómitos etc. Os pais davam a Ntombi remédio que preparavam com as ervas mas a Ntombi só piorava. Então os pais decidiram leva la ao posto de saúde mais próximo chegando la os médicos viram que o estado da Ntombi era muito crítico e foi de imediato transferida a Boane para receber cuidados intensivos dos médicos. A Ntombi cada dia que passava só piorava lhe fizeram os exames e para a surpresa dos pais o exame deu positivo a Covid-19. Os pais assustados com os resultados dos exames procuraram saber da Ntombi como é que ela contaminou-se mas mesmo ela não sabia como. A Ntombi só chorava de tanto medo que ela tinha de morrer. Um certo dia o jovem Chinês, foi até a padaria onde pediu em namoro a jovem Ntombi e lá encontrou as amigas da Ntombi que lhe disseram que ela estava doente e encontrava-se internada em Boane. O jovem chinês de imediato pediu ao seu pai que lhe acompanhasse até ao hospital para ver a jovem Ntombi. Chegado ao hospital o jovem chinês pediu aos médicos para ver a sua amada mas não foi possível. Então os médicos perguntaram ao jovem chinês se era algum parente da Ntombi e ele disse que é o namorado dela, os médicos disseram ao jovem chinês que deveria fazer o exame da Covid-19 porque a Ntombi esta contaminada pelo vírus. E ele aceitou…depois de algumas horas os resultados saíram e ela estava contaminado pelo vírus, na verdade ele e quem contaminou a Ntombi. o médico aconselhara-o a ficar em isolamento domiciliar até ele se recuperar porque o estado dele não era muito critico como o da Ntombi. Então a Ntombi ficou sabendo que o seu amado jovem chinês estava contaminado

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Concurso

e que ele é que transmitiu o vírus a ela então ela resolveu afastar se do jovem chinês, porque a Ntombi tinha muito medo de morrer.. E depois de um mês a Ntombi e o jovem chinês receberam a vacina que lhes curou da Covid-19, assim como os outros que estavam contaminados. E finalmente eles já não tinham mais o vírus e o mundo todo não tinha. E o jovem chinês decidiu pedir a mão da Ntombi em casamento. Ntombi e o jovem chinês casaram- se e tiveram uma grande festa de casamento, também viveram muitas aventuras juntas. Quanto mais amor eles se davam, felizes eles eram!

POESIA- 10 LUGAR- ESMENIA AMÉLIA FABIO DZIMBA 20 LUGAR- ANTONIETA GASPAR MUABSA 30 LUGAR- NILZA MAPULANGO.

Vencedores do Concurso, direcção do CMM e parceiros

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CMM

CONTO- 10 LUGAR- ARMINDA GUILHERME CUMBANE 20 LUGAR-EGINETA JOÃO TAMBUA 30 LUGAR-HELDER NGULELE


Debate

LITERATURA

O exercício para além do livro Ler um livro para as crianças é muito mais do que acompanhar um conjunto de frases. Há um exercício para além do texto, uma narrativa exterior que deve ser explorada.

Câmara Municipal de Lisboa, Américo Simas

Texto: Lucas Muaga

Animação de Leitura

E

xistem processos que, embora pareçam simples, devem ser seguidos por ajudarem os petizes a compreender a essência do que se procura transmitir de modo a, futuramente, construírem a sua própria estante literária. Sobre isso, já foram dados alguns passos, através da ilustração, uma das principais características da literatura infanto-juvenil, um género desafiado a criar um mundo “cor-de-rosa” para público-alvo. Em muitos casos, estes livros são escritos em duas - ou mais - mãos. A escrita, por causa do destinatário

das publicações, é acompanhada de imagens animadas. O acto de leitura acaba, assim sendo, por se igualar ao de apreciar desenhos animados. É como se a literatura não quisesse perder a batalha para a televisão ou qualquer outro dispositivo de ecrã, principalmente, neste período dominado pelas novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s). A estrada é, ainda assim, muito longa. Isto, porque embora nasçam todos os dias mais livros de índole infanto-juvenil, também continuam recorrentes as

reclamações em torno da crise de leitura nos mais novos. É algo que, para ser explicado, acaba por ser tema de debates nacionais e internacionais. Este aspecto não escapou à Feira do Livro de Maputo 2020, que decorreu no mês de Outubro. O evento que homenageou a primeira romancista moçambicana Paulina Chiziane decorreu, pela primeira vez, no formato virtual e numa das mesas temáticas centrou-se na iniciação à leitura para crianças. Não se contentando apenas com conversas, a Feira entrou no Centro Cultural

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Debate

Franco-Moçambicano (CCFM) e divertiu as crianças com histórias infanto-juvenis, viajando em autores como Orlando Mendes, cuja obra inclui textos especialmente escritos para “as flores que nunca murcham”, como diria Samora Machel, o fundador da nação. Era um aperitivo para o debate maior do dia, intitulado “Formação de Pequenos Leitores a Partir da Animação de Leitura”, que virtualmente trouxe a Maputo duas contadoras de estórias portuguesas, abalizadas na matéria. Trata-se de Cristina Taquelim, a convite do Camões - Centro Cultural Português em Maputo e Alda Moreira, técnica da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, um dos parceiros internacionais deste certame. Elas sentaram-se à mesma mesa com Gilberto Milice, que falou em nome do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa (FBLP), num debate moderado pelo escritor e jornalista Eduardo Quive. Milice mostrou-se defensor de um pensamento fora da caixa, porque, segundo disse, não basta escrever livros infanto-juvenis. “É necessário garantir que os mesmos cheguem às crianças. Sem isso, não se pode cultivar nelas o gosto pela literatura”, comentou Gilberto Milice, salientando ser este um dos objectivos da sua instituição. Na sua intervenção, defendeu ainda a necessidade de Moçambique investir numa literatura multilingue, argumentando que, para além do livro, existe o contexto social em que as crianças estão inseridas e que deve ser respeitado. A vantagem desse tipo de literatura, avança, deriva do facto de dar oportunidade para se explorar a riqueza étnica que caracteriza o continente africano, o que, por si só, desafia os autores a fazerem um estudo de campo e produzir uma literatura que não exclua as línguas nacionais. “É preciso criar condições para o alu-

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no que se encontra em contextos multilingues, que, na sua infância, tem uma língua materna diferente da que vai encontrar na sala de aulas. É preciso criar referências e vocabulários na interacção”, considera Milice. Os pais e encarregados de educação também são chamados a fazer parte da tão sonhada “cidade de livros”, assumindo o papel de “animador de leitura”, através de actividades lúdicas como a dramatização de textos. Este processo pode ser encarado como uma espécie de reencontro com as verdadeiras raízes africanas. Afinal, está-se diante de povos que “foram sempre agrafos e que tem a tradição oral como base de aprendizagem e as histórias são contadas de geração em geração a volta da fogueira”. A ORALIDADE É O GRANDE BERÇO DA LEITURA A questão da oralidade foi a abordada pela escritora e contadora de estórias, Cristina Taquelim, sublinhou, ser necessário ensinar às crianças que, tal como outros brinquedos, o livro é um grande elemento de diversão, ao mesmo tempo que defende que, para além do livro, está o ambiente social dos petizes. Regressa à questão ligada aos obstáculos linguísticos, por se estar, em muitos casos, a escrever livros infanto-juvenis numa língua que não é do domínio do destinatário. “Uma das coisas que se colocam na relação da criança com a leitura tem a ver com a língua e a primeira que a gente conhece é a do leite”, considera. Segundo Cristina, a não observância deste elemento pode ter consequências drásticas nas crianças e afastá-las dos livros, porque elas “se confrontam com uma forma de dizer (as coisas) completamente diferente”. É nesta perspectiva que o exercício da escrita não deve excluir a cultura oral. “A

oralidade é o grande berço da leitura”, considera. Para fazer com que a criança chegue ao livro, é necessário desenvolver “um conjunto de jogos de linguagem”. Essas brincadeiras, considera a autora, “começam muito antes da escola, sendo fundamental haver uma participação do entorno no desenvolvimento linguístico desta criança porque então não há pensamento”. COMPREENDER AS CRIANÇAS As crianças são um tipo especial de público e precisam de um tratamento diferenciado. Ao menos, este é o ponto de vista de Alda Moreira, que também pela UCCLA, tem ligações com Moçambique e em particular com o “pessoal” do Conselho Municipal de Maputo. Concorda que ignorar o meio social dos petizes tem sido um dos maiores erros cometidos por autores infanto-juvenis, afinal, ela defende que este grupo deve ser profundamente compreendido, caso seja sincera a pretensão de criar uma sociedade alicerçada pela leitura. “É preciso que se respeite a criança, porque todo o conhecimento que ela já traz para a escola, não pode ser ignorado”, avança quem explica que este processo, quando não bem observado, chega a ser mau e traumático. Não conformar-se, diz, é a saída, uma vez que, a novidade deve caracterizar os criadores, porque as crianças gostam de ser surpreendidas, o que não pode acontecer com desenvolvimento do espírito de comodismo. “Sei que a roda e o fogo já foram inventados há muito mais tempo por nós, os seres humanos. Então, temos que tentar inventar uma roda e um fogo novos”, sonhou. Sobre o conto oral, ela diz que o mesmo deve ser usado para desenvolver o gosto pela leitura, começando por aquilo que nós temos de mais rico e humano.


Ideias CMM

Eneas Comiche e Paulina Chiziane

CARTAS PARA PAULINA CHIZIANE

Vozes-mulheres pela manutenção da vida no mundo Doutora em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa), pela Universidade de São Paulo (2014), tendo concluído estágio doutoral na Universidade Paris Nord 13 (Villetaneuse/França) e estágio pós-doutoral na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). É professora adjunta do Instituto de Linguagens e Literaturas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB/CE). Texto: Luana Antunes Costa

“- Menina, tu és uma águia! Tu pertences ao céu e não à terra. Abre as tuas asas e voa!” (Paulina Chiziane)

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o ano em que a humanidade foi atacada pelas incertezas, lamentos e devastidão provocados pela pandemia da COVID-19, meninas-mulheres, vindas do Continente Africano, vindas das localidades

rurais e zonas periféricas do estado do Ceará, no Brasil, se reuniram, ainda que virtualmente, para resistir ao caos, para criar estratégias contra a precarização da vida que, no eixo Sul-Global, agudizou a situação de sobrevida de milhares de

pessoas pretas, pobres, indígenas, mulheres, crianças, enfim, heróis e heroínas sem nome. Eu falo, como professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, uma universidade que se localiza no interior do

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Ideias Giza Gertrudes

estado do Ceará, produto de um sonho de integração entre o Brasil e os países africanos de língua oficial portuguesa. Falo como mulher negra, mãe, como coordenadora do grupo de pesquisa e extensão universitária, “Sobre o Corpo Feminino “ Literaturas Africanas e Afro-brasileira”, que desde 2017 reúne meninas-mulheres, lideranças em formação e professoras. Falo como testemunha de uma mudança que vejo e pressinto a cada encontro com essas pesquisadoras, cujas trajetórias de vida e desejo por transformações sociais e políticas em seus países de origem e nas teias da África Global me fazem crer que o poder das mulheres, daquelas que nos precederam e daquelas que virão, é aquilo que sustenta a vida, em suas mais diversas expressões, na comunidade global. Foi então nesse ano de medo e de espanto, que esse pequeno grupo, ciente de seu compromisso com a sua realidade social e política, decidiu se reunir, virtualmente, no contra-fluxo das quedas de energia e da falta de acesso à internet, tão comuns às localidades rurais e periféricas do nosso estado, e escolher como mestra-guia a autora Paulina Chiziane e como alimento para a nossa fome de futuro, o conjunto de sua obra. 46 44

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Dessa experiência pedagógica, surgiu uma vivência em comunidade feminina, marcada por nossas diferenças, mas também marcada pelo que temos em comum, nossas histórias compartilhadas e nossos encontros, plurais, com a obra de Chiziane. De minha parte, posso dizer que o texto de Paulina me guia há muitos anos, antes mesmo de eu decidir o caminho da docência, antes de perceber qual era o meu lugar no mundo como uma mulher-negra de origem periférica, nascida em um país onde o racismo e as demais heranças do colonialismo impedem à população negra brasileira o gozo aos básicos direitos humanos. De mãos dadas com Paulina e suas histórias, que são minhas também, conheci Maputo, me reconheci nas ruas da Baixa, reencontrei o Índico, que me guia até hoje e me ajuda a atravessar outras águas pelos territórios da diáspora. Vejo, então, que a escrita literária de Paulina Chiziane, desde o seu primeiro romance, Balada de amor ao vento (1990), ao Canto dos escravizados (2017) inscreve, no tempo dos homens e das mulheres do mundo, uma pedagogia de futuro, para fazer nascer o futuro hoje, em suas pluralidades. Contra o assassinato dos tempos e da vida humana, contra as sombras sobre

as nossas histórias como indivíduos e povos, contra o acirramento das disputas no campo político, pelas assimetrias de poderes presentes em nossas comunidades, a sua rebelde pedagogia de e para o futuro nos alcança, assim como nos alcançam as palavras de Paulina, o tom manso e forte de sua voz, o azul profundo de seus olhos que nos fazem enxergar a nós mesmas como águias, como potências. Pelo tanto que o seu corpo literário nos proporciona como desafio e conhecimento, a Paulina Chiziane enviamos as nossas vozes-mulheres, aqui representadas pelas cartas escritas por Giza Gertrudes, feminista cabo-verdiana, aluna do mestrado em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, por Sley Silva, aluna do curso de especialização interdisciplinar em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da UNILAB e Cíntia Kütter, professora da Universidade Federal Rural da Amazônia. Essas cartas endereçadas a Paulina Chiziane presentificam o nosso encontro com a autora, uma forma de gravarmos na pedra o reconhecimento e a força geratriz que sua obra e sua presença nos proporcionam. Sim Paulina, somos águias e reinventaremos, contigo, os horizontes.


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São Carlos, 05 de outubro de 2020. Paulina, Não sei se saberia traduzir em palavras o que sua escrita representa para mim. Palavras que cortam como faca, Palavras que curam feito medicina. Uma vez eu li, que tu disseste que “Contar uma história significa levar as mentes no voo da imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão.” É assim que me sinto com relação a forma que tuas palavras me atravessam. Li “Niketche”recentemente. Foi um voo. Minha mente viajou pela vida de cada uma das personagens e desejei sentar próximo a ti, com uma fogueira por perto e te ouvir. Ouvir das suas viagens por Moçambique, das mulheres que cruzaram seu caminho e das histórias que elas te contaram. Sua escrevivência me inspira e quando tu falas que escreves para existir eu digo que tua escrita atribui significado para várias questões da minha vida. Eu leio mulheres negras para existir e re-existir nesse mundo que renova em misoginia e invisibiliza a vida das mulheres. Sua arte atribui dignidade à vida das mulheres, fazendo justiça a histórias que nunca nem foram ouvidas. Sua obra para mim é empatia, sororidade, arte, poder negro, força, cotidianos de esperança, amor e raiva também. Mas sobretudo esperança em uma vida que se reinventa em condições inimagináveis para meus olhos viciados. Gratidão por ser essa mulher que transcende fronteiras e abre caminhos. Giza Gertrudes

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Redenção, 07 de outubro de 2020 Paulina Chiziane, a ti eu peço licença e ofereço gratidão. Queria agradecer primeiro por seres uma das mulheres responsáveis a me ensinar a amar a mim mesma. Ao te ler, te sinto cura e renovação, pois a tua liberdade revolucionária me mostra que há outros caminhos que pavimentam a luta coletiva de nossas meninas e mulheres negras. Quando te escuto - voz calma e aveludada -, Chiziane, eu percebo em ti a sabedoria e a sagacidade de uma mulher que sabe onde quer chegar e, por isso, compreende todo o terreno antes de dar o seu passo longo e firme. E a tua firmeza constrói uma passagem de ensinamentos para que todas nós, Atlânticas Negras, possamos trilhar posteriormente. Te lendo, eu te percebo sacerdotisa que transforma luta-substantivo em lutar, verbo conjugado por nós mulheres além-mar de forma tão precisa, infelizmente. A sacerdotisa que habita em ti faz-me querer seguir o rasto das andorinhas que, sempre juntas, alcançam a liberdade. Você, assim como Dandara dos Palmares e Carolina Maria de Jesus - em um Brasil passado que é também presente - me ensina a importância de estar em movimento, de continuar um movimento. Você me ensina também a importância do falar... do falar com o olhar, com o corpo, com a alma. Eu te sei mulher negra africana em movimento, esse movimento que sabemos não ter começado em você e sabemos não parar em mim, porque ele veio de antes de nós, e vai além. Você me faz ter certeza que somos o agora por conta do passado que carregou no presente. Sinto na tua criação uma autorização energética de um renascimento: um passado que fala em nossos corpos sobre um futuro que será para nós mulheres negras um presente-temporal e um presente-dádiva. A tua insurgência me embala nos gritos de nossas liberdades. Sley Silva

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Belém, 03 de outubro de 2020 Querida Paulina, Espero que esta carta de encontre bem e com saúde no Índico. Aqui do outro lado do Atlântico as coisas andam complicadas: nossa natureza pegando fogo, o Covid ganhando status de gripe e nossa política cada dia mais imparcial a todos estes problemas...uma tristeza. Mas hoje te escrevo para te agradecer. Se hoje “cresci” e me tornei uma pesquisadora engajada, devo isso a senhora e ao seu “Balada de amor ao vento” que veio com o vento da ancestralidade até minhas mãos ao acaso, apesar de não acreditar em acasos, mas em propósito. O teu propósito ao escrever esse livro, o meu ao lê-lo e o da ancestralidade em nos unir para que de mãos dadas fossemos uma força maior capaz de chegar a outras mulheres. A tua literatura mudou minha vida lá em 2006! Lembro do meu filho ainda com seus 6 anos (hoje já com 17) dizendo: “minha mãe pesquisa a Paulina, sabia? Ela é lá de Moçambique!”, cuja noção geográfica de Moçambique passou a ter status de intimidade. Foi assim que iniciamos nossa ciranda: eu de mãos dadas com meus filhos, eles de mãos dadas com você nessa grande gira de amor e gratidão. O segundo filho, brincava com a capa do “Alegre canto da perdiz”, enquanto eu escrevia a tese ele balbuciava: “passarinho mamãe!” Te conto isso para reafirmar que eu, mesmo sendo uma mulher atlântica, brasileira, do sul do país, compartilho da aventura de ser pesquisadora num país que não valoriza nossas PESQUISADORAS, mães, companheiras, professoras que lutam por um mundo melhor onde mulheres como eu e você e todas as que nos cercam tenham oportunidade de saber que elas não estão sozinhas. Hoje vivo no norte do país, onde o nome de Paulina Chiziane, Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus ainda são pouco conhecidos para alguns e completamente desconhecidas para outros. Pensei: como assim? Não pode!!! Como resposta a minha inconformidade de educadora pensei uma disciplina, a qual ministro na universidade, e vejo o brilho nos olhos de jovens e adultos quando falo dessas mulheres potentes, quando falo de você! Por isso e por tantas outras coisas te agradeço por fazeres parte da minha caminhada acadêmica, de vida e de afeto. Obrigada querida Paulina. Cíntia Kütter

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Poeta, ensaísta e crítica literária, com Doutoramento em Literaturas Africanas, sua área principal de investigação. Nasceu em Portugal, mas cresceu e fez os primeiros estudos universitários na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, Moçambique. É Professora Associada com Agregação da Universidade de Lisboa, pesquisadora do ISEG do CEsA, com bolsa da FCT. Texto: Ana Mafalda Leite

Kapulana Editora

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A literatura é o palco de criação de mundos alternativos*

Ana Mafalda Leite

Gostaria de começar com um agradecimento muito especial ao Conselho Municipal de Maputo e aos Organizadores desta Feira do Livro pelo convite para participar neste evento, pela primeira vez, transmitido e partilhado digitalmente. Uma partilha em directo que nos deu a oportunidade também de assistir à festa em honra de Paulina Chiziane,

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escritora merecidamente homenageada por esta edição da Feira do Livro de Maputo. Repensar a criação literária em tempos de Pandemia é o tema geral que orientou esta reunião de artistas, livros, adultos e crianças, lançamentos, reflexões. Literatura e Resistência, Para uma História do possível é o tema da mesa em

que participei e saliento a outra presenta feminina na mesa, a da escritora Cri Essência. Gostaria de dizer que a minha intervenção se orientou entre a palavra de escritora e a de professora e crítica. A primeira parte do título temático da mesa Literatura e Resistência remete de imediato para as significações da palavra Resistência. Carregada de sentidos


bressair a sua materialidade de escrita, o desejo de partilhas e projectos culturais e literários conjugados. Hoje mais do que nunca, por via da internet e das plataformas digitais, as fronteiras são móveis. Mas basta olharmos para uma colecção de selos dos anos sessenta ou do início do século XXI; as quedas dos muros e sua construção, que alegoricamente uma série como a Guerra dos Tronos também evoca, os atlas e mapas mostram-nos a movências fronteiriças, as alterações dos espaços. As fronteiras são assim marcas e desenhos em mutação pela História e pela política, desfazendo impérios, reconstruindo identidades, repondo e pulverizando espaços terrestres. Enquanto linha divisória, o fronteiro é o que fica defronte, e assimila a divisão com a junção. Por isso podemos afirmar: a fronteira é muito poética. É um espaço eminentemente poético porque conjuga todas as oposições, revolucionando e conflituando. A movência é assim uma característica da própria linguagem poética. Os criadores e poetas, caminham avessos a qualquer fronteira muito definida: linguística, sintáctica, de significação, de género, de imposição, de poder. Oscilam entre uma palavra profética de aúgure e o dom da transformação do sonho em sonoridades extensas. Transformam a água em vinho, e saúdam a alegria como o Rubayat de Omar Khayyam. Não há fronteiras entre a água e o vinho, a terra e o mar, o tempo e o espaço. A página branca percorrida pela tinta da escrita desnivela e transforma qualquer fronteira em espaço de transmutação. Assim, vários tipos de especificidades fronteiriças - nacional, pessoal, racial, de género (nas duas acepções) - tendem a ser dissolvidos na literatura, como acontece nos textos migrantes, sem território fixo, que exibem uma intensa porosidade de fronteiras, em diálogo multidisciplinar com diversas artes e linguagens, problematizando, dessa forma, o próprio espaço de criação literária e colocando em questão a ideia de pertencimento, especificidade e autonomia artística. Parece-me ser esta também umas das formas de resistência do tempo presente da mais recente literatura moçambicana, que expande como diria o poeta sírio-libanês Adonis “O arco-íris do instante”. Diz o poeta: “Embora seja solicitado pela busca do sentido, ou de um sentido, adivinho que a minha identidade não se estabelece no que é

estável, mas no que se move. Sinto que estou do lado do vento e da vaga.” Nos dias que correm cada vez menor é a estabilidade entre os indivíduos que estão em constante deslocamento, sentindo-se “desalojados” em toda parte. O ponto de partida da reflexão é o movimento, como nova condição de nosso imaginário humano. Diríamos que, paradoxalmente, a pandemia acelerou esse movimento em termos digitais e imaginários. Os deslocamentos podem ser a chance inesperada de uma nova definição do homem, que não se reconhece apenas no território que ocupa, mas no espaço-tempo que ele liberta pela palavra, e pelas imagens, fora das fronteiras, em zonas francas da imaginação. Trata-se de um deslocamento de natureza ontológica e simbólica: deslocamento do sentido e do ser, na experiência da alteridade, que retrata fragmentariamente o mundo nómada e ambulante em que vivemos, de refugiados, de populações migrantes, que tenta escapar da morte, da miséria, da ausência de chão. E os mediterrâneos podem ser índicos, nas cidades e vilas violentadas do norte, cuja movência sobressaltada vem habitar o coração dos poetas. A Literatura moçambicana, em especial para as mais jovens gerações, parece-me também ser um campo literário de inovação, espaço de resistência, de recriação e de reescrita das formas mais antigas, necessariamente fundadoras da ideia de nação. Após o gesto inaugural no início do século XXI do escritor Rogério Manjate ao criar a primeira revista literária digital, MaderaZinco, no campo literário e cultural moçambicano assistimos hoje à proliferação de muitas novas pequenas editoras (algumas digitais), a blogs, sites, clubes de leitura em diferentes pontos do país (Clube de Leitura de Angoche, animado pelo poeta Lino Mukurruza é um exemplo entre vários), a diversas Associações Culturais, como exemplarmente o caso de Xitende, e a um número crescente de potenciais autores que ambicionam o conhecimento, a escrita, o projecto literário (cite-se neste quadro o Projecto em plataforma whatsapp Tindzila). Curiosamente também o cenário de multiplicação editorial parece ter crescido durante o tempo da Pandemia, e simultaneamente fomos assistindo à publicação virtual de diversas antologias

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predominantemente ideológicos esta palavra afirma-se como uma atitude perante a opressão, a ameaça social e individual, o status quo, o caos, o medo, a morte. Por outro lado, a palavra Literatura enquanto criação é uma das respostas à opressão, à violência, ao medo, isto porque a literatura é o palco de criação de mundos alternativos. Assim a Resistência é simultaneamente social e existencial e enquanto palavra associada ao termo Literatura pode ser também pensada como representando o acto de nascimento de todas as literaturas africanas, e refiro aqui em especial o nascimento e afirmação da literatura moçambicana. Expliquemos: a resistência a uma experiência colonial numa primeira fase, a resistência a uma guerra civil numa segunda fase, a resistência criativa das gerações mais jovens, em tempo de paz e de novos conflitos regionais e mundiais, aos desafios entre modernidade e tradição, integrando inovadoramente a construção de novas utopias e de criação de sinergias. A resistência na literatura moçambicana é também à opressão de género, de classe, de estatuto social, enquanto afirmação da palavra literária para todos e em todas as áreas temáticas, para as crianças, com a literatura infanto-juvenil, com a abertura à ficção científica e à policial para os que desejam aventurar-se em espaços da imaginação, à ficção histórica, reinventando criticamente passados culturais e históricos. Por outro lado com a expansão da ficção, que explora outros espaços geográficos, a norte, centro e litoral do país, e também às geografias das diásporas, verificamos uma resistência ao localismo e uma abertura à mobilidade dos imaginários regionais e transnacionais da literatura moçambicana. Com as diversas formas de fazer poesia, comprometida e amorosa, ou a que medita sobre as suas formas, bem como com o surgimento das vertentes do ensaio literário, filosófico, religioso, antropológico, a literatura, julgo poder afirmar, enquanto acto de resistência, é sem dúvida uma contínua meditação sobre os fenómenos culturais da contemporaneidade em Moçambique. Esta resistência como abertura mostra também que a poesia não tem fronteiras e o seu espaço, nem utópico, nem tópico, mas antes atópico, se coloca fora do espaço situável, e por isso faz so-


newsaiep

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e livros, à criação de espaços de reflexão sobre a Literatura e outras artes, na AEMO, na Revista Literatas, nos Centros Culturais do país, como por exemplo o Português, o Brasileiro, o Francês e o Alemão, na Fundação Fernando Leite Couto, alguns exemplos entre várias instituições culturais que têm quotidiana ou semanalmente animado a discussão e apresentação de espectáculos e lançamentos virtuais. Um outro exemplo desta animação reflexiva sobre a literatura, enquanto instituição, é a recentemente criada a Festa da Literatura de Língua Portuguesa, Templos de Escrita, em que um dos curadores, Amosse Mucavele, é moçambicano; o evento que vem religando escritores, editores, professores, no espaço dos diferentes países de língua portuguesa, num esforço conjugado de criação de pontes, revela-se um espaço de troca intelectual e criativa. De forma aparentemente contraditória a Pandemia, ao mesmo tempo que nos afastou temerosamente para as nossas casas, criando distanciamento social em todas as áreas criativas, afectou também muito particularmente todo o mercado criativo, que não cessa, contudo, de reagir alternativamente, criando mobilidades inesperadas pela internet, formas de aproximar e juntar artistas e 52 50

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escritores, local e globalmente, criando publicações conjuntas, obras e projectos variados numa permuta diversificada. Muito autores por seu turno aproveitaram essa vivência conventual para escreverem novas obras e refletirem no gesto criativo como desobediência ou insurgência vital perante a ameaça da morte. Resistência. E fizeram-no em obras colectivas, irmanando-se em resistência e criação de uma história do possível no presente histórico. Também o apelo à leitura cresceu, em parte pelo isolamento, em parte como forma criativa, mostrando paradoxalmente que ser leitor é gostar de partir, de viajar, conhecer mundos, mesmo que seja no mais recôndito lugar, aquele que nos habita e habitamos. A leitura exige migração com retorno rápido ou sem retorno, exige tempo para uma viagem sem bagagem, à boleia do livro. As práticas de leitura dramatizada e de apresentações de livros nas diferentes plataformas digitais (youtube, instagram, facebook) foram recursos encontrados como formas de resistência ao isolamento, para a partilha de leitura e de escrita. Nunca estivemos tão imóveis e tão acelerados, tão separados e tão próximos, pura ironia! E penso que esta é uma resultante da Literatura enquanto

Resistência. Hoje já não apanhamos um avião para estarmos presentes numa feira do livro, para irmos falar a uma universidade estrangeira, para partilhar conhecimento, para registar o lançamento de um novo livro. A experiência da Pandemia traz-nos uma outra história, a do Possível: estarmos presentes à velocidade da internet em qualquer espaço do planeta, deslocarmo-nos nos nossos imaginários, partilharmos escrita, anseios, alegrias, dúvidas, perplexidades. Partilharmos Literatura, mercado editorial, festa literária. A criação de estórias, poemas, filosofias, nasce neste nosso mundo actual - que dinamiza o local com o global – como um lugar de resistência e de mobilidades imprevistas, trocas e partilhas. O facto de esta Feira ser organizada digitalmente é um sinal dessa resistência como abertura e partilha. Com efeito, a organização virtual desta Feira de Maputo é mais um excelente exemplo da Resistência da Literatura e da constituição no presente histórico desta História do Possível. Felicito vivamente a coragem inovadora dos organizadores e agradeço a honra do convite em fazer parte do evento. *título da nossa responsabilidade


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“LUGAR BOM E LUGAR NENHUM”

Alguns compassos para uma “sinfonia” literária* “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.” José de Almada Negreiros (1921). In A Invenção do Dia Claro. Lisboa: Olisipo . “Antigamente / (antes de Jesus Cristo) / os homens erguiam estádios e templos / e morriam na arena como cães. // Agora… / também já constroem Cadillacs.” José Craveirinha (1974). “Civilização”. In Karingana ua Karingana, Lourenço Marques: Académica.

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Texto: Sara Jona

Sara Jona

INTRÓITO Começo o meu texto citando dois poemas que, em meu entender, respondem à grande incógnita que nos reúne em torno do assunto de um dos paineis da Feira do Livro de Maputo, edição 2020. O tema é “Dialécticas literárias em tempos

de crise: que ideias para o futuro?”. São as dúvidas e o medo sobre o tempo vindouro que inspiram o nosso diálogo. São estas questões nunca respondidas, desde que o mundo existe e que não terão uma solução com as intervenções nesse debate. Entretanto, cada um dos

participantes tecerá considerações éticas, com as quais, certamente, acredita que podem ajudar a enfrentar o que nos espera, mas nenhum dos painelistas trará uma fórmula acabada. Isso não tem sido possível, tal como ilustram os poemas e tal como temos vivenciado.

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Ideias Ambos os textos revelam que ainda há muito a se fazer pela humanidade e pelo futuro. Por outras palavras, temos que ir cuidando da humanidade para a salvar. Mas o trabalho será sempre inacabado. PRESSUPOSTOS Será, também, a partir do pensamento de Edgar Morin (2002), de Zygmunt Bauman (2007) e de Yuval Noah Harari (2020), que tentarei construir o meu pensamento. Morin, porque nos sugere como o futuro pode ser gerido em termos educativos; Bauman, por nos alertar para a gestão da incerteza e da utopia que é a vida ou o conhecimento sobre o mundo. Em síntese, ambos os autores se referem, nas suas obras, às questões do futuro. Encontrei, também, através de uma abordagem à obra de Yuval Harari, a ideia de que as escolhas que fizermos, actualmente, em relação à pandemia global do coronavírus, mudarão as nossas vidas futuras. E é em função das ideias destes autores que elaborarei a pretensão de uma “sinfonia” na criação literária para os dias que vêm pela frente. 54 52

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BCI

Sandra Tamele

Em Os Sete Saberes Necessários para a Educação do Futuro, Morin (2002), aponta os caminhos que deverão nortear o ensino no século XXI, a saber: as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; os princípios de um conhecimento pertinente; ensinar a condição humana; ensinar a identidade terrena; afrontar as incertezas; ensinar a compreensão e a ética ao género humano. No primeiro conceito, o autor alerta-nos para a importância de se ir construindo em permanência o conhecimento, para evitarmos ilusões. Quer dizer que o conhecimento nos transcende. E é, também, o que sugerem as epígrafes do presente texto. No segundo, há um convite para que o conhecimento seja apreendido em função de problemas globais, que depois possam ser particularizados localmente. Quer isto dizer que é importante estabelecer-se relações que permitam a leitura e a troca de informações de dados que sejam comuns, para depois os fragmentar em partes que possam responder a contextos específicos. O terceiro conceito confronta-nos

com a dimensão humana, isto é, sobre o facto de o homem ser feito de múltiplas identidades: física, biológica, psíquica, cultural, social e histórica, que devem ser levadas em consideração no ensino, por serem indissolúveis e por coexistirem em toda a raça humana, ou seja, os homens são iguais e é preciso que isso esteja claro na contextualização local ou específica de cada fenómeno. Assim, chegamos à quarta premissa, na qual o autor nos sugere que uma crise de um país arrasta consigo todos os países, ou seja, a terra, no seu todo, é a nossa casa comum, os problemas de uns são os problemas de todos. Estes dois últimos paradigmas complementam-se. E com o quinto, somos convidados a abandonar as concepções deterministas sobre o mundo, dado que não há como predizer o futuro. Seguindo para o sexto ponto, somos ensinados sobre a necessidade de aprender a compreendermo-nos como humanos, há que ultrapassar a barbárie, a xenofobia, os desprezos, os racismos, etc. De alguma forma esta noção surge como alicerce para a com-


Ideias Trinta Zero

Editora Trinta Zero

preensão do quarto paradigma. No sétimo somos chamados para a urgência de sermos democráticos. A nossa condição de indivíduos numa dimensão ternária: espécie-sociedade-indivíduo, que, para além de nos conceder uma autonomia individual, cobra-nos em obrigações pessoais, por um lado, e sociais, por outro, para com a espécie humana. Há em síntese, na concepção deste autor, a ideia subjacente de que o futuro é uma incógnita que deve ser abordado, considerando a ideia de unicidade da espécie humana que habita um lugar comum que é a terra e que, para além das preocupações individuais, há a necessidade de se estabelecerem trocas e conhecimento, uma vez que, por serem seres pluri-identitários, os Homens devem, cada vez mais, cultivar valores éticos, de compreensão, de cidadania, que sejam democráticos, visando proteger o planeta e a sua espécie. Os determinismos são um fenómeno falho na sua essência. O devir é árduo. A questão da incerteza é também estudada por Bauman (2007:100), na

sua obra Tempos Líquidos, no capítulo que aborda a utopia e a incerteza. Segundo o autor, foi no séc. XVI “que as rotinas antigas e aparentemente eternas começaram a se desintegrar”. E foi nessa mesma altura em que, a partir de Sir Thomas More, se começou a utilizar a palavra utopia, para designar novos sonhos. Segundo explica o autor que tenho vindo a citar, significa, grosso modo: lugar bom e lugar nenhum. Entretanto, os seguidores de Sir Thomas More, conforme afirma Bauman, foram propalando a ideia de impossibilidade de se viver um mundo sem utopia. E a utopia na sua óptica é: “uma imagem de um outro universo, diferente daquele que conhecemos ou de que estamos a par. Além disso, ela prevê um universo originado inteiramente da sabedoria e devoção humanas.” (Bauman: 2007:102103). E é um conceito encoberto de incertezas, com o qual se deve ligar cautelosamente. As vidas dos seres humanos encontram-se entrelaçadas, conforme nos sugere Yuval Harari (2020), ao afirmar

que, no contexto pós-pandemia, é importante que os planos económicos sejam feitos de modo global, uma vez que o problema é global. Segundo ele, deve existir solidariedade entre países pobres e países ricos. O seu ponto de partida é o de que as mudanças nos próximos tempos não terão apenas a ver com os sistemas de saúde mas, também, com a economia, com a cultura, com a política e com a ciência. A crise presente marca, certamente, uma nova era para as nossas vidas. No entender de Harari, será uma era marcada pelo controle total dos cidadãos, porque se passará a viver num mundo digitalizado. Além disso, deverá haver uma escolha entre o isolamento nacionalista ou a solidariedade global, sendo que essa solidariedade consiste no facto de que os países desenvolvidos construirão soluções cientificamente aceitáveis para debelar o vírus, para a sobrevivência do planeta, para si próprios e para os países pobres e estes últimos, em nome dessa sobrevivência, outra escolha não terão, senão a de colaborar

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com a recepção de tais soluções. É já sabido que a actuação do vírus pode ir mudando de foco, de países ricos para pobres e vice-versa. Entretanto, a ideia de se viver num mundo digital vigiado parte de ambas as partes: governo-indivíduos e vice-versa. Há nisso vantagens, segundo o autor. A par disso, o maior risco que se corre é ter de se confiar mais na ciência, do que em teorias da conspiração. E a troca de informação entre países será importante para o avanço desta. QUE FUTURO?: PRODUÇÃO E RECEPÇÃO LITERÁRIAS Colocados esses pressupostos teóricos, parece-me que as “sinfonias” no âmbito da produção e da recepção literárias passarão, certamente, por adoptarmos algo que temos vindo a repudiar há alguns anos: o contexto digital. Mas é necessário haver sistematização e massificão do conhecimento, e para que tal aconteça, num país como Moçambique, temos de nos preparar para um processo demorado, dado que o ingresso às tecnologias e aos dados digitais ainda é um problema por ser resolvido. No que à literatura e ao acesso ao livro diz respeito, basta pensamos que os nossos maiores arquivos literários, a Biblioteca Nacional de Moçambique (Cfr. O País, nr. 4112185, pg. 13, de 01 de out. 2020), em Maputo, e a Brazão Mazula, da Universidade Eduardo Mondlane, não têm todas as entradas bibliográficas digitalizadas em catálogos. Ora, se essas são as maiores, de referência não só pelos tamanhos, como pela dimensão dos seus acervos que contêm, o que será das restantes existentes no país? Além dessas instituições de alto gabarito, a Rádio Moçambique, ao comemorar os seus 45 anos de existência, este ano, segundo referiu um dos seus representantes (Cfr. jornal domingo, nr. 1990, pg. 15, 04 out. 2020), um dos grandes desafios que ainda enfrenta é a digitalização da sua informação e o uso de tecnologias de difusão actualizadas à presente era. Além disso, em Moçambique têm estado a operar, entre outras as seguintes editoras ou braços editoriais: Alcance, Brinduka, Trinta Zero Nove, Selo Jovem, Índico, Escola Portuguesa de Moçambique, Xidjumba, Oleba, Fundza, Fundação Fernando Leite Couto, Gala-Gala, TDM e FUNDAC (que não o sendo, publicaram obras resultantes dos seus concursos literários), Cavalo do Mar, Ethale Publishing, Ndjira (actualmente 56 54

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integrada no Grupo Leya), MOLIJU, Literatas, AEMO, JV, Plural, Chil, Kuvaninga – Cartão d’Arte e Imagem Real. Deste conjunto, apenas a Trinta Zero Nove e a Ethale Publishing é que se encontram representadas na Feira do Livro de Frankfurt, edição de 2020. É uma feira criada a 18 de Setembro de 1949 e tem sido amplamente publicitada. Este ano, foi eminentemente digital, dada a emergência sanitária que o mundo atravessa. Da entrevista que fiz a alguns representantes de editoras, contatei que a possibilidade de participar nessa feira, passava por ter uma Banda larga de internet suficientemente potente e capacidade para digitalizar materiais ou de os colocar em arquivos digitais. Por consciência de que muitos países não teriam essa possibilidade, a organização da feira abriu a possibilidade de algumas editoras serem formadas para o efeito, conforme o referiu, Sandra Tamele, editora na Trinta Nove Zero, em entrevista datada de 15 de Outubro, na qual referiu: “Eu e mais 19 jovens editores estamos a participar do programa de bolsas e a usufruir de formação sobre direitos, metadados e digitalização do negócio. Não porque não tenhamos capacidades, mas reconhecem que nadamos contra a corrente em mercados sem leitores estabelecidos ou onde são poucos. Tenho a mesma abordagem das grandes editoras, a escala é que é muito diferente”. Esta constitui a solidariedade necessária de que fala Yuval Noah. Portanto, embora a Trinta Nove Zero não seja tão carente, maior parte das editoras moçambicanas, apenas pôde assistir ao que os outros faziam na feira, sem poder participar, tendo se perdido uma possibilidade de publicitar a produção literária ou a possibilidade de tradução de mais autores. No contexto do que acabei de mencionar, não descuro, entretanto, a colocação de Rosário (2014), no seu texto O livro como fonte do saber na era digital, que é importante ter em consideração a ideia de que o acesso ao conhecimento pode-se processar de diversas maneiras, não apenas através do livro, como também através da palavra oral, derivada do conhecimento sistematizado de geração para geração e dos formatos digitais como vídeo-jogos, entre outros acervos digitais. O que, nos dias que correm, em que a informação se multiplica e se modifica a todo o momento, não é suficiente.

Em Moçambique, quanto a nós, e tanto quanto se pode constatar, ainda carecemos de acesso ou criação de acervos digitais. Da entrevista feita a Sandra Tamele, acima referida, a mesma afirmou: Gosto de pensar que a internet e todas as plataformas de comunicação digital são o nosso bilhete para viajar e chegar a outros mercados, oportunidades e talvez até leitores. Este ano tem sido difícil e exigiu muito dos organizadores das feiras. É uma lufada de ar fresco ver Frankfurt totalmente digital depois do cancelamento de Bologna, Londres e Liepzig. Tenho aprendido muito com colegas do México, Brasil, Espanha e África do Sul sobre formatos de livros inclusivos, soluções de logística e até refinamento da imagem e marketing da ETZN (3009), portanto faço um balanço muito positivo. A questão que se coloca e que me parece ficar por resolver, quanto a isso em Moçambique é que o domínio acabado de referir é de uma quantidade ínfima da população e, consequentemente de editoras. Aliado a esse facto, existe ainda a desvantagem confirmada de que o acesso ao livro, tanto digital, quanto físico, é ainda um grave problema e que, por essa e por outras razões, a literatura não é um fenómeno de massas. No entanto, é ponto assente que, se por um lado, já nos apropriamos da utilização do livro digital, por outro, ainda existe quem o negue, a pretexto da sedução pelo folhear do livro e do cheiro do papel. Acresce a tudo isto a dificuldade de ligação ao livro digital, pelos motivos já apontados. Uma grande discussão, no concernente à passagem para o ambiente virtual, coloca-se quanto à recepção de obras literárias. Haverá ou tem já estado a acontecer uma migração (necessária) para se criar hábitos de leitura de livros digitais? As feiras do livro já são realizadas em ambientes virtuais, referimo-lo anteriormente e está a acontecer na presente edição da Feira do Livro em Maputo (existem vendas de livros on line, bem como, estantes virtuais); o acto de contar histórias e os clubes de livro, já decorrem em ambientes virtuais, os concursos literários e as oficinas de literatura já têm lugar no ciber-espaço. Os lançamentos de livros ou webinares em torno do livro e da Literatura, também. Em meu entender, para que a assinatura de autógrafos passe a ser realizada virtualmente, basta que o autor do livro


literária, seremos convocados a aprender com Morin, quando nos alerta para a ideia de vivermos numa casa comum e de sermos da mesma espécie humana e que, por isso, precisamos de aprender a nos compreendermos e a nos protegermos, para além de ser importante expandir ideias de democraticidade, para uma melhor cidadania. Assim, a Literatura será chamada a re-educar o mundo. Será convocada a (re)escrever temáticas que sugiram ou que façam representações que estimulem uma maior solidariedade para a preservação da espécie humana, bem como a um maior intercâmbio na solução de problemas, visto serem os mesmos, ocorrendo algumas excepções derivadas de cada contexto político, económico, cultural e geográfico. Haverá que se estabelecer um equilíbrio entre uma Literatura universalizante, que aborda questões comuns, mas também a localista, que assinala determinadas particularidades contextuais. Quanto à representação de objectos simbólicos, a literatura sempre escreveu sobre o passado, o presente e o futuro, isso não me parece que mudará. Provavelmente, considerando as ideias de Morin, Bauman e Harari, mude a perspectiva, a partir da qual se analisa ou se representa a constância de fenómenos sociais no mundo. A certeza ou o determinismo relativo a alguns acontecimentos será ou já se encontra modificada, uma vez que as cartografias geográficas se encontram alteradas. O clima mudou, a vida passará a ser mais digital do que em presença, as relações humanas mudarão, a gregaridade do ser humano passará a ter novas abordagens; o mundo tornou-se uma aldeia global na qual

os problemas se encontram interligados. A sociedade precisará de ser (re)educada para essa nova abordagem e a literatura tem um grande papel a desempenhar nesse processo. Mas ficarão em desvantagens países como Moçambique, nos quais a tecnologia ainda é um entrave; o que não significa que se deixará de escrever. Mas a literatura continuará restringida a uma circulação muito circunscrita. Se já existiam excluídos, haverá ainda mais. A literatura poderá, ainda, trabalhar as representações simbólicas que ajudarão a humanidade no acolhimento das novas descobertas científicas. A par disso, coexistirão ainda no país, por muito tempo, a produção e a recepção de literatura em formato digital e físico. As escolhas que fizermos, a longo prazo, ditarão o lugar no qual o país se colocará. Entretanto, grande parte da mudança será ditada pelo poder económico e pela vontade política, sendo estes poderes a decidirem se o livro, e por consequência a literatura, sejam, ou não, objectos de primeira necessidade. A resposta a isso ainda se coloca no âmbito da incerteza. O suposto “lugar bom”, actualmente, é o ditado pelas novas tecnologias. É para lá que o mundo se encontra a migrar, com dificuldades e com exclusão ou não. É para Moçambique “lugar nenhum”, a julgar pela presente condição de info-excluidos, ressalvando o iniciado trabalho da Trinta Nove Zero, na produção de livros em brile; pelo que, uma “sinfonia” literária ainda carecerá de percorrer um longo caminho. A presente feira de livro digital, com todo o esforço que foi feito, incluindo os investimentos que foram necessários, não passa de um evento para burgueses.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Zygmunt (2007). Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar. HARARI, Yuval (2020). The word after coronavirus. Finantial Times. March. MORIN, Edgar (2002). Os Sete Saberes para a educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget. ROSARIO, Lourenço (2014). O Livro como fonte do saber na era digital. In Singularidades III. Maputo: Alcance. LAISSE, Sara. Entrevista a Sandra Tamele – sobre a participação de editoras moçambicanas na feira do livro de Frankfurt, edição de 2020. *Sara Jona Laisse, docente na Universidade Politécnica. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

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escreva o texto-autógrafo nesse ambiente e que digitalize a sua assinatura, para que esta possa ser colada no livro de quem pede o autógrafo. Encontramo-nos a um passo muito curto para lá chegar. Mas, é claro, que muitos ficarão de fora. Ainda no que respeita aos hábitos de leitura, há, em ambientes virtuais mais avançados, a possibilidade de, com recurso a uma caneta digital, podermos marcar ou sublinhar os livros digitais ao lê-los. A releitura necessária ao livro passará por esse processo. Marcadores de livros não faltarão, porque essas canetas têm a possibilidade de colorir as telas digitais. O grande problema que se colocará, e que já existe relativamente à recepção do livro, é o acesso ao mundo digital. Para além de a literatura já ser um fenómeno burguês, tendencialmente sê-lo-á ainda mais, pelo facto de que o acesso à internet ainda o ser. Então teremos que trabalhar a inclusividade, posto que a exclusão digital é um dado adquirido, quer para os países em vias de desenvolvimento, quer também para os países desenvolvidos, ainda que de uma forma mais branda. Há que estudar novas formas de acesso à Literatura. A harmonia digital já é uma realidade para a maior parte dos escritores no mundo. É ínfima a quantidade de escritores que ainda escrevem à mão. Os livros hoje são todos produzidos (escritos e impressos) em ambientes digitais. Existem ainda os áudio-livros. Portanto, do ponto de vista da produção literária, já podemos afirmar que grande parte dos países ou dos escritores se encontram a trabalhar em ambientes digitalizados. Ainda do ponto de vista da produção


PROPRIETÁRIA Conselho Municipal de Maputo PRESIDENTE Eneas Comiche DIRECTORA Isabel Macie (Vereadora do Pelouro de Cultura e Turismo) DIRECTORA DE INFORMAÇÃO Cristina Manguele (Directora Municipal dos Serviços de Arquivo, Documentação de Biblioteca) CHEFE DE REDACÇÃO Neima Madaugy (Chefe de Departamento de Bibliotecas) EDITOR Amosse Mucavele COLABORAM NESTA EDIÇÃO Lucas Muaga, Regina Dalcastagnè, Armando Artur, Luana Antunes Costa, João Nuno Azambuja, Cíntia Acosta Kütter, Alda Moreira, Sara Jona Laisse, Ana Mafalda Leite. COLABORADORES PERMANENTES Ângela Mário Neve Tui, Liberato Sabino Nhaquila, Albertina Lurdes Bata, Telma João Cossa, Afra Augusto Muchanga, Clara Milisse, Artino Amaral Cumbane, Lázaro João Lichucha, Vanuza Almeira Ricardo, Leocárdia Cheila Fernando Capelo Banze, Lídia Daniel Chilaúle, Lizete António Nhantumbo, Luís André Sumbane, Elisa Timóteo Cossa, Percina Salomão Cuco Nhampar, Isaura Paulo Cossa. ARTE E DESIGN ÓPTICA TEXTO, LDA. APOIO À PRODUÇÃO SUAIMAGEM CONTACTO feiradolivromaputo@gmail.com

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Em jeito de fecho

Cimentando os olhares do futuro

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Isabel Macie

Vereadora do Pelouro de Cultura e Turismo

Importará ainda reafirmar que, apesar das restrições impostas pela pandemia, a Feira do Livro de Maputo, construiu um espaço contínuo de reflexão mais ampla sobre a democratização e a acessibilidade ao livro e a leitura

oi com enorme alegria que Maputo viu a sua Feira do Livro adaptar‐se às restrições decretadas devido à pandemia da Covid‐19. A 6ª edição “ 100 % digital”, em homenagem a escritora moçambicana, Paulina Chiziane, contou com a participação de trinta autores de 8 países, que marcaram com as suas sólidas presenças no certame, onde conforme o próprio tema escolhido “(re) pensar a criação literária em tempos de pandemia”, ampliaram e acrescentaram ao programa uma dimensão transfronteiriça e intercultural. Por isso, na possibilidade de olharmos o livro como factor de resistência, num espaço impar, exigiu de nós, imaginação, destreza, criatividade, alteridade, afecto e acima de tudo, a redefinição das representações de várias ordens, tais como: fronteiras, cidadania, consciência literária e identidade(s) da cidade de Maputo . E, no entanto, a qualidade e a repercussão desta edição, notabilizou‐se pela permanente procura de estórias, experiências, resistências e culturas comuns, enriquecendo e completando olhares e intervenções cívicas “ Por isso, precisamos de aprender a nos compreendermos e a nos protegermos, para além de ser importante expandir ideias de democraticidade, para uma melhor cidadania. Assim, a Literatura será chamada a re‐educar o mundo”, sintetizou Sara Jona na sua comunicação. Importará ainda reafirmar que, apesar das restrições impostas pela pandemia, a Feira do Livro de Maputo, construiu um espaço contínuo de reflexão mais amplo sobre a democratização e a acessibilidade ao livro e a leitura,” esta edição almeja identificar leituras e escritas para alimentar sonhos e utopias como forma de nos aproximarmos continuamente, nós, escritores, editores, ensaístas ou simples leitores, pensando na crise como pretexto para autossuperação”, assim, classificou Eneas Comiche, Presidente do Conselho Municipal de Maputo, na cerimónia da abertura. Por outro lado, testemunhou‐se a plena conjugação do papel da Cultura, a promoção do Turismo, o desenvolvimento das artes e do pensamento na edificação de uma “Cidade Criativa”. Maputo propôs-se o enorme desafio de assumir a herança partilhada, procurando elevar a um novo figurino, onde a pluralidade, as experiências de vozes e geografias literárias se apresentam como síntese da consolidação do esboço das perspectivas e desafios futuros da preservação da memória literária. Assim se vai completando o desígnio do tributo a diversidade cultural e de assumir Maputo como destino cultural a partir deste infindável território de fronteiras invisíveis, que é a literatura. A realização anual da Feira do Livro, pelo Conselho Municipal de Maputo é também um símbolo de uma “Cidade Criativa” no geral e “Cidade Literária” em particular. Até ao próximo futuro estaremos aqui a cimentar livros e leituras.

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