OLD Nº 19

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Revista OLD Número 19 Março de 2013 Equipe Editorial Felipe Abreu e Paula Hayasaki Direção de Arte Felipe Abreu Texto e Entrevista Camila Martins, Felipe Abreu, Juliana Biscalquim, Luciana Dal Ri e Tito Ferradans Capa Fotografias

Alejandro Zambrana Alejandro Zambrana, Márcio Vasconcelos, Vinícius Carvalho e Vinícius Ferreira

Entrevista

João Castilho

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Parceiros


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João Castilho Entrevista

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Alejandro Zambrana Portfolio

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Vinícius Ferreira Portfolio

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Márcio Vasconcelos Portfolio

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Vinícius Carvalho Portfolio

Ultrapassagem Coluna

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Fissuras Coluna

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Março se tornou nos últimos anos um mês bastante animado para a fotografia brasileira. Digo isso porque é neste mês que acontece o fetival Foto em Pauta, em Tiradentes, que junto com o Paraty em Foco tem, na minha opinião, grande destaque dentro do cenário de festivais nacionais. Gui Mohallem, um dos nossos personagens de Fevereiro, esteve por lá ministrando um workshop. Nosso entrevistado do mês, João Castilho, também esteve por lá, na mesma função. Esse pequeno fato só reforça o compromisso da OLD de trazer sempre fotografia autoral de qualidade e de destaque, mesclando novos fotógrafos com nomes de destaque no cenário nacional. Essa foi uma dupla de entrevistas bem legais, que dão um sinal de como a fotografia brasileira deverá seguir daqui em diante. Não é só a entrevista que merece destaque nesse mês de Março da OLD. Nossos portfolios estão, como de costume,

caprichados! Temos neste mês o trabalho de maior fôlego já publicado na OLD. São vinte anos de registro do fotógrafo Márcio Vasconcelos para produzir o trabalho Nagon Abioton. Trouxemos também os trabalhos de Alejandro Zambrana, Vinícius Ferreira e Vinícius Carvalho, construindo mais um conjunto fotográfico que viaja pelo Brasil e pela América Latina nas páginas da OLD. Acho que a mensagem desse mês é que a fotografia e a sua discussão estão cada vez mais amplas e plurais no Brasil e a OLD se orgulha muito de fazer parte disso! Agora que já falei um bocado, corre ler essa edição!

Felipe Abreu


Van Vechten, Carl, 1880-1964, photographer.


Alejandro Zambrana Mercado 24h



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Alejandro Zambrana apresenta na OLD seu trabalho Mercado 24h, desenvolvido com o coletivo Trotamundos. São retratos que constroem o ambiente do mercado através de seus personagens, envolvendo o espectador nesta distinta atmosfera. Alejandro, conte um pouco sobre a história do ensaio. Nasce de uma vontade de conhecer um pouco mais sobre um dos mais ricos ambientes que uma cidade pode ter, que são os mercados públicos. Pois, é nesse lugar em que encontramos a síntese de uma cultura (costumes) e de seu povo. Lembro de

freqüentar o mercado desde pequeno, e sempre perceber que aquele local me deixara fascinado e intrigado. Inicialmente por ser um local a descobrir e pela grandisiodade, pois é sempre um amontoado de coisas a venda e de pessoas circulando. E com OLD passar dos anos, percebi que é um lugar rico 08 imageticamente, e que seria interessante entender melhor através das lentes. Então criei o hábito de sempre fotografar o mercado e o entorno. E depois de algum tempo fotografando houve um hiato. Até que o coletivo Trotamundos, o qual faço parte, decidiu fazer o projeto sobre o mercado, mas com a proposta de fazer uma documentação de um dia das atividades do local – desde a sua abertura até encerramento das atividades.






Esse ensaio foi desenvolvido dentro de um trabalho coletivo, certo? Como é a experiência de produzir desta maneira? Qual foi a participação do Trotamundos OLD neste trabalho? 13 Sim. Como citei antes, a documentação do Mercado é o resultado do projeto proposto pelo coletivo Trotamundos. E o exercício coletivo no primeiro momento foi de estranheza, pois o ato sempre solitário de fotografar nos deixa mal acostumados. Mas a experiência é enriquecedora, pois agrega pontos de vistas e formas de abordagem distintos que se somam ao processo com um grande exercício final, que foi a edição em

conjunto do material fotografado – onde deixamos a vaidade de lado em prol de uma narrativa coerente. E assim, fica arraigado nas fotos que apesar da captação ser minha, o processo de abordagem e edição das imagens é coletivo. Então, divido os créditos com Ana Lira, Marcelinho Hora, Julia da Escóssia e Zak Moreira.


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Como foi o processo de conhecer os personagens deste ensaio? Qual foi sua relação com eles? Vocês ainda mantém contato? OLD 17

Quando foi feita a proposta de documentar o mercado, um dos focos a ser abordado prioritariamente foram os personagens que previamente escolhemos, pois entendemos que a figura humana é a alma do mercado. Então tínhamos o tema e a abordagem que iríamos seguir, caímos em campo com os personagens que cada um deveria acompanhar, somando vinte pessoas. A receptividade dos fotografados foi a melhor possível, entenderam a proposta e que não iríamos interferir na dinâmica deles. Depois

Depois desse dia de acompanhamento, voltamos meses depois para mostrar o resultado final, realizamos projeções no mercado e distribuímos fotos aos retratados. Evidente que os laços, apesar do pouco tempo de convivência, são os melhores. Sempre que um de nós tem a oportunidade de ir ao mercado, troca idéias com alguns deles.


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Um Mercado é um local muito complexo, com elementos muito fortes em todos os cantos. Como foi a decisão de registrar essa estrutura? Você decidiu dar prioridade às pessoas ou ao espaço? Realmente, uma estrutura/dinâmica ímpar, com informações e pessoas para todos os lados pode acabar prejudicando o foco da abordagem. Mas, o fato do ambiente não ser OLD 19 “novo” pra mim, acaba conduzindo o olhar para integração do homem e o ambiente. São homens e mulheres que acabam passando praticamente grande parte do dia atrás do balcão, chegam cedo para renovar estoque e arrumar as bancas, antes que os clientes chegam e só saem no final do da tarde, quando o mercado é fechado. Portanto, transformam o espaço de trabalho em uma continuação de suas casas. Ali, os feirantes fazem o que normalmente fariam em seus lares, o batente e as prateleiras

são tomadas como cômodos, tanto para colocar seus acessórios e afins ou ainda com as mercadorias colocadas de lado, a bancada torna uma improvisada mesa de cartas, fazendo o tempo passar mais rápido. E, para as mulheres ainda há tempo de caprichar o visual antes de acabar o expediente. Ainda pensando na complexidade do Mercado. Como você organizou os elementos dentro das imagens e dentro da sua cabeça? Foi um desafio interessante organizar a composição dessas imagens? O que me salta os olhos é a relação do homem e o espaço. Não organizo nada, os elementos estão explícitos, é só observar e interagir. O desafio está no que fará ou não do registro, pois voltamos a magnitude de espaço tão imagético.


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VinĂ­cius Ferreira Havana entre Mar y Tierra



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conceito para o desenvolvimento deste trabalho?

As imagens em preto e branco de Havana entre Mar y Tierra dão conta de apresentar um recorte do cotidiano vivo de Havana, capital cubana. As imagens de Vinícius Ferreira buscam construir esse cotidiano, através da fotografia de rua, sem buscar por estereótipos visuais, tão comuns em Cuba. Entre Mar y Tierra apresenta um recorte da vida e da cultura de Havana. Como foi sua passagem por cuba? Como surgiu o

Fui para Cuba para estudar documentário na Escuela Internacional de Cine y Televisón de San Antonio de los Baños em janeiro OLD 24 de 2012. E após isso fiquei mais um mês, pude conhecer melhor a forma de vida dos Cubanos em Havana.Neste período fotografando pela cidade e realmente me expondo a eles para que eles se expusessem para mim.Então saí dos meios turístico, comprei uma bicicleta e percorria pontos diferentes da cidade todos os dias. Isso me levou a conhecer outro tipo de cubano, não via mais pessoas querendo tirar vantagem em cima de turistas, mas sim pessoas que


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estavam dispostas a falar sobre sua condição de vida e conjuntura política da Ilha. E diante disso, percebi pessoas que vivem de forma simples e feliz, e que não viam problema algum em serem fotografadas. E a câmera para mim é um objeto de reflexão do que vejo, principalmente quando edito o material. Isso me leva a fotografar o cotidiano dos lugares que visito. E neste caso vi uma dicotomia muito presente, que é tomar decisões como ficar ou sair do país.

Cuba, em especial Havana, é um dos lugares mais coloridos do mundo. Porque você decidiu produzir essas fotografias em PB? Primeiro de tudo, fotografo em preto e branco pelo contraste. E esta foi uma pergunta que me fiz quando cheguei, começo agora a fotografar em cor ou sigo minha linha do PB? “Sigo minha linha” foi minha resposta. Pois Cuba é um lugar de contrastes sociais e econômicos e senti que a escala de cinza seria sim a melhor opção para desenvolver o trabalho. E a luz de Cuba, mesmo no inverno, é fantástica para fotografar.


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Há um forte fator lúdico neste trabalho. Como foi o processo de aproximação desses espaços? Como foi o encontro desses locais e dessas brincadeiras? Parte desta resposta esta na primeira questão. O cubano utiliza e muito os espaços públicos. E a dificuldade é escolher o melhor ponto para fotografar. E acredito que a curiosidade por aparatos tecnológico, facilitou e bastante o ato de fotografar. Embora seja um país comunista, a futilidade capitalista é muito presente.

Ainda falando sobre sua relação com os cubanos, como foi a abordagem dos retratados? Você chegou a estabelecer uma relação mais profunda com algum deles? Em muitos casos sim. Nas fotografias a beira mar, fiquei um dia todo com os jovens saltando ao mar. Foram muito receptivos, gostavam de ver as fotos no visor após serem fotografados, adquiri uma confiança ótima deles. O mesmo se passou nas fotos da feira de rua. É incrível a abertura que eles te dão após comprar algo deles e conversar alguns minutos.


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Havana é um lugar muito fotografado e muito comum em nosso imaginário. Como foi buscar seu estilo fotográfico para esse registro? Recentemente comprei o livro Magnum Contatos, que para o editor Kristen Lubben, é o epitáfio da folha de contato da época OLD filmica. O momento de ver o que se fotografou, ver erros, imagens que o acaso te 32 proporciona, fotografias que você construiu. E por mais que eu utilize a fotografia digital. Possuo esta atitude de alguma forma, pois seleciono as melhores e imprimo. E assim começo a perceber o que realmente me chama a atenção no lugar. Pois no ato de fotografar estou tão dentro da situação que muitas vezes não filtro o que se deve ou não fotografar e é por isso que para mim a fotografia é reflexão da realidade e das pessoas.


OLD ENTREVISTA


JOテグ CASTILHO


Conte-nos um pouco sobre sua chegada na fotografia. Você tem formação em jornalismo e artes plásticas, como ocorreu a escolha por esse suporte? No mês em que acontece o 3º Foto em Pauta, em Tiradentes, Minas Gerais, o coletivo Ágata conversou com João Castilho, um dos nomes confirmados no festival e que vai ministrar o workshop OLD “A fotografia como prática artística 35 contemporânea”. Para ele, a fotografia já está totalmente incorporada e aceita pela arte contemporânea, o importante, no entanto, é entender como “as várias posições e contaminações da fotografia nos últimos 50 anos vieram dar no que estamos produzindo hoje”. Castilho ainda adianta o que será visto em sua exposição Caos-Mundo, que inaugura na Zipper Galeria, em São Paulo, no próximo dia 23 de março. Confira!

Minha primeira paixão foi o cinema. Passei minha adolescência vendo filmes de todos os gêneros: de arte, de autor, comerciais, documentários, cinema oriental, comédias, brasileiros, eróticos. Via de tudo. A sala escura do cinema era o lugar onde eu gostava de estar. Quando tive que escolher uma profissão até pensei em fazer Cinema, mas a coisa toda era muito complicada e logo caiu uma câmera na minha mão e comecei a fotografar. No início me interessava muito pelo ensaio, pela série, pelo documentarismo, pela coisa encontrada. Depois minhas questões foram se alargando, tanto os temas tratados quanto as abordagens. Hoje a noção de fabricação é importante, mesmo que seja um trabalho


com imagens apropriadas, tem sempre uma atuação em cima delas. Seus trabalhos se valem de diversas técnicas e abordagens visuais. Como é o processo de construção destas abordagens em seus trabalhos? Eles já nascem com uma técnica definida? A técnica nunca foi muito importante pra mim. Nunca esteve à frente das questões e das imagens com as quais trabalho. Ela vem sempre atrás. Na origem dos meus trabalhos está sempre uma experiência vivida, a realidade atual. Parte de algo que acontece, que me toca, que me envolve ou que me revolta, e daí surge o trabalho. Acho que meus trabalhos são sempre uma forma de devolução disso tudo, uma devolução em forma de ataque. Estou preparando uma exposição para a Zipper Galeria, em São Paulo, chamada Caos-mundo. São trabalhos

em vídeo e fotografia que operam como sintomas de determinadas tensões políticas contemporâneas. A explosão da violência nas periferias, a errância, o exílio a morte, são questões presentes nos trabalhos. Você pode contar um pouco mais sobre os trabalhos que serão apresentados? O título é uma referência a formulação de OLD 36 Edouard Glissant que fala do choque, das repulsões, das atrações, das conivências, das oposições e dos conflitos entre as culturas dos povos na contemporaneidade. Os trabalhos que apresento operam como sintomas de determinadas tensões políticas atuais. A série de fotografias Vade Retro rompe a hierarquia tradicional entre homem e natureza e entre homem e animal. O políptico Retirante mostra 32 fotografias, em preto e branco, de marcas deixadas no solo por pessoas repetindo o mesmo caminho


ao longo dos anos. O trabalho figura um emaranhado de formas-trajetos num jogo caótico de linhas. A videoinstalação Erupção mostra vários ônibus queimando na cidade de SP e outras grandes cidades brasileiras. A ato de queimar um ônibus é de certa forma ambíguo, já que tem quase sempre duas motivações: intimidação, por parte de organizações criminosas; e revolta, por parte de populações indignadas. O vídeo Abismo OLD mostra uma pequena embarcação tripulada 37 por homens negros. Ruma, lentamente, para o desconhecido. Pensamos nas embarcações que saem do norte da África para o sul da Europa, das embarcações que deixam Cuba em direção a Flórida e nas centenas de embarcações que deixaram a África rumo as Américas. O desconhecido, sempre aterrador. No díptico A errância, o exílio a relação entre as duas imagens vai criando um entrelaçamento complexo entre dentro e fora, claro e escuro, luz e sombra,

aberto e fechado, entrada e saída, começo e fim. Você irá participar do 3º Foto em Pauta, em Tiradentes, levando ao debate o tema “A fotografia como prática artística contemporânea”. Na sua opinião, isso ainda não é um assunto bem resolvido no cenário artístico brasileiro? João Castilho: O que tento mostrar nesse workshop é uma rápida trajetória da entrada da fotografia na arte a partir dos anos 1960. Claro, ela já estava na arte há muito tempo, mas à partir daquela década, quando a prática artística se amplia de forma irreversível e começa a ser feita na terra, no corpo, no espaço, com palavras, com câmeras, com objetos do cotidiano, a fotografia ganha novos contornos. Isso acabou por contaminar a prática, que vinha sendo feita paralelamente e que era de


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tradição estritamente documental. Quer dizer, o que tento abordar é como as várias posições e contaminações da fotografia nos últimos cinquenta anos vieram dar no que estamos produzindo hoje.

Eu não sou exatamente um entusiasta da fotografia. A quantidade de fotografias presentes numa bienal não me interessa especialmente.

Você pode dar alguns exemplos de trabalhos ou características que representem essa produção contemporânea da fotografia? Se há um traço que compõe hoje a fotografia contemporânea é a perda de um contorno nítido. A fotografia, para o seu próprio bem, tornou-se dilatada, movediça e nômade. Pensar a fotografia hoje é pensar em vídeo, em performance, em instalação, em intervenção, em repetição, em land art, em deslocamento, em esquecimento, em apropriação, em literatura… Vemos artistas visuais que se utilizam da


fotografia como suporte sem questionar seu valor artístico. Ela serve, para eles, como ferramenta para o tipo de trabalho que querem desenvolver. Em contrapartida, os fotógrafos nem sempre conseguem identificar a arte como o “território” de suas produções. A que você credita essa diferença? A fotografia é muito ampla e é praticada pela maioria da população. A maior parte dos que fotografam, mesmo os profissionais, não tem pretensões artísticas. É o fotografo de publicidade, o de eventos, o de celebridades, o de espetáculos, o de jornal, o de casamento, o de retrato, o de celular, o de fim de semana e por aí vai. Isso, a priori, não é arte. Agora, qualquer uma dessas imagens pode, potencialmente, ser arte. Acho que tudo passa pela intencionalidade, pela circulação, pelo destino que se dá a essas imagens. O artista pode pegar qualquer

uma das imagens produzidas pelos fotógrafos acima e transformar em arte. E o artista pode ser o próprio autor dessas fotos ou pode ser outra pessoa. É comum encontrar editais específicos para fotografia, enquanto existem editais para artes visuais. Essa separação é necessária ou delimita ainda mais as fronteiras entre arte e fotografia? Acho que é uma separação que faz sentido. As fronteiras existem, continuarão existindo, mas é preciso que se tornem mais fluidas, mais permeáveis. É um pouco o que eu dizia na questão anterior. Nem tudo o que se produz em fotografia no campo da cultura é arte. Apesar de continuar estando no campo da cultura. Por isso esses produtores também precisam ser contemplados. Gosto do formato atual do Prêmio Marc Ferrez, por exemplo, que contempla a artistas,

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documentaristas, pesquisadores, entre outros. Mas é preciso que tenha deslocamentos e trânsitos entre esses campos, já que as coisas são muito híbridas hoje e não são de forma alguma estáticas. A 30ª Bienal de São Paulo foi uma grande experiência para os entusiastas da fotografia. Foram apresentados trabalhos plurais, com produção em épocas bem diferentes. Houve uma dedicação do curador Luis Péres Oramas com o suporte e seus desdobramentos. Para você, o que uma Bienal como essa representa? É uma chancela histórica / institucional para esse debate entre arte e fotografia? Eu não sou exatamente um entusiasta da fotografia. A quantidade de fotografias presentes numa bienal não me interessa especialmente. Não será isso que vai me fazer gostar ou não gostar, o que gosto é de

ver bons trabalhos. Em geral, as bienais são impactantes pra mim. Sempre saio transformado delas. Não pela presença ou OLD ausência do fotográfico, mas pela massa 42 de trabalhos, atos e conceitos ali contidos. Eu gosto de arte, eu gosto de imagem, pouco importa se é uma performance, uma instalação, um penetrável, um filme, uma fotografia. A fotografia não precisa desse tipo de chancela porque já está totalmente incorporada e aceita na arte contemporânea. Todas as bienais de que me lembro tiveram fotografia de várias tendências e abordagens, umas mais outras menos, e assim vai continuar.


Mรกrcio Vasconcelos Nagon Abioton



este ensaio. Como é estar a tanto tempo envolvido com um tema? Isso facilita ou dificulta a produção de imagens? OLD 45

Márcio Vasconcelos apresenta um trecho do seu ensaio Nagon Abioton aqui na OLD. É um projeto documental de muito fôlego, que traz um recorte interessante do foco de trabalho do fotógrafo, que se concentra no registro de religiões, rituais e da cultura afrobrasileira. Nagon Abioton é provavelmente o trabalho de maior fôlego já publicado na OLD. Você fala de mais de vinte anos acompanhando os terreiros e produzindo

Realmente já faz um bom tempo que comecei a minha peregrinação pelos terreiros do Tambor de Mina do Maranhão, atraído pelos sons dos abatás ou de outros tambores que nos dias de festas dedicados aos santos (sincretizados com voduns e orixás), ecoam pelos vários cantos da Ilha de São Luís ou pelas comunidades quilombolas rurais embrenhadas no interior do Estado. É evidente que quanto mais tempo se frequenta um templo sagrado e vai conquistando os personagens que são responsáveis pela


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manutenção e sobrevivência de todo um patrimônio cultural secular, a produção de qualquer trabalho será facilitada. Qual a sua relação com a fé e com a religião apresentadas nas imagens? Não sou iniciado e não tenho uma ligação religiosa com estas manifestações. Sou apenas um profundo admirador que procuro dar uma contribuição para preservar e divulgar essa herança cultural de valor extremo.

Como você desenvolveu a relação com os personagens das imagens? Há uma relação forte entre vocês? Com a regularidade que frequento esses locais de cultos afro-religiosos, fui ficando amigo dos chefes dos terreiros e de seus filhos, até ao ponto de levar bronca de alguns deles quando faltava a uma data importante. Nomes como Pai Euclides, Mãe Lúcia, dona Elzita, dona Denil, Pai Jorge, Mestre Bita, dentre outros, passaram a fazer parte da minha agenda nos dias de festas significativas de seus terreiros.

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Como correu o processo de encontrar a melhor maneira de fotografar estes rituais OLD sem interferir em sua execução? Foi um 53 processo longo? Eu procuro sempre ficar quieto em um canto qualquer do terreiro, de vez em quando trocando de posição de maneira discreta e com a preocupação de não interferir no desenvolvimento do ritual. Pergunto pouco, mas deixo sempre os ouvidos aguçados para os sons dos tambores e das doutrinas, que quase em forma de mantras, vão envolvendo o corpo e a alma. Os olhos sempre atentos,

escondidos por trás da câmera, aos gestos, expressões de faces, ao bailado advindo do transe e à beleza dos rituais. O projeto “Nagon Abioton” tinha como objetivo editar um livro sobre um dos terreiros de Tambor de Mina mais antigos do Brasil, a Casa de Nagô, do século XIX. Queria registrar todas as manifestações e rituais desta Casa que obedecem a um calendário anual. Além dos cultos religiosos, também foram fotografadas e entrevistadas todas as pessoas que fazem este terreiro manter uma tradição secular. Frequentei diariamente a Casa de Nagô por mais de um ano, foi um trabalho longo, mas de uma satisfação muito grande de fazê-lo.


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Você tem uma relação forte com a cultura afro-brasileira e com a fotografia documental. Como você escolhe seus temas? Como começa sua pesquisa? Com relação ao processo documental, quando estamos invadindo espaços e momentos de muita particularidade, creio que o respeito, a discrição e a ética são os elementos de maior importância. Na maioria das vezes, somos intrusos e, assim sendo, precisamos demonstrar as reais intenções de nossa aproximação, o objetivo do projeto e a relevância daquele assunto para nós e para a

sociedade. O trabalho só deve ter continuidade quando percebemos que estamos sendo aceitos e que a permissão nos foi dada. Neste momento forma-se realmente um pacto, no qual a confiança, OLD 56 como fio condutor, jamais poderá ser quebrada. Temos que estar muito atentos ao espaço físico e espiritual que conquistamos e de forma alguma ultrapassá-lo. A confiança mútua é a joia maior que podemos adquirir. No início de um projeto, após a escolha ou opção por um determinado tema, gosto de ter uma gama de informação bem grande e, para isto, procuro pessoas que possam contribuir para o enriquecimento deste conteúdo. É muito comum, neste momento, eu sempre está esbarrando em antropólogos,


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pesquisadores, estudantes ou pessoas, que por coincidências, já pesquisaram coisas semelhantes. Gosto de agregar pessoas aos projetos e às vezes até as considero como coautoras. Passada esta fase, aí sim, gosto de me tornar solitário quando estou no processo criativo das imagens. Gosto de ter o meu tempo, tomar as minhas decisões e determinar um objetivo. No Maranhão existem 527 comunidades quilombolas,

distribuídas em 134 municípios, sendo o segundo estado brasileiro com maior número de terras de quilombo tituladas, atrás apenas do Pará. Junto com todo este universo de matriz africana chegou também uma riqueza cultural imensurável. A minha origem nordestina me deu este privilégio de nascer no Maranhão, terra de encantarias, dos tambores, sons e ritmos africanos. Isto para um fotógrafo é uma bênção dos Deuses. O Brasil é de uma riqueza cultural enorme e muito pouco para a preservação desse patrimônio imaterial tem sido feito. Somente no Maranhão, por exemplo, poderíamos trabalhar.


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Vinícius Carvalho Multiocupação



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Vinícius Carvalho traz para a OLD sua visão múltipla sobre um acampamento sem-terra. Suas imagens misturam quadros possíveis de uma mesma cena, trazendo múltiplas visões, dentro de uma mesma fotografia. Seu ensaio apresenta uma técnica diferente, como foi o desenvolvimento e os experimentos até chegar nesse resultado? Já há algum tempo estava insatisfeito com o

caminho trilhado na fotografia e sentia necessidade de mudar o foco do meu trabalho. Passei então a me interessar pela fotografia experimental e autoral e comecei a pesquisar várias técnicas diferentes, buscando uma linguagem própria, até chegar à múltipla exposição. Antes disso, achava a técnica esteticamente interessante, porém ainda não a dominava. A partir do momento que descobri que a minha câmera me dava essa possibilidade, comecei efetivamente meus experimentos. Foi assim que constatei que essa técnica não era tão simples quanto parecia ser, já que não se trata apenas de tirar mais de uma foto no mesmo quadro. Continuei insistindo e estudando, fiz várias tentativas, até chegar a um resultado que me agradasse com a série Multi ocupação


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Multi ocupação se relaciona com o movimento dos sem terra. Qual seu envolvimento com esse movimento? Como você se relaciona com os personagens que apresenta? Meu conhecimento sobre o movimento dos sem terra se restringia, de certa forma, ao que me era exposto pela mídia, já que, até conhecer esse assentamento, nunca tinha despertado o interesse pela causa. Fui construindo minha relação com eles com base na observação da ocupação que estava acontecendo ali naquele local. Então, resolvi documentar tudo aquilo sobrepondo a minha

visão à realidade daquelas pessoas que lutavam por seus direitos de ocuparem aquele espaço. No entanto, minha presença OLD 66 foi vista com muita desconfiança por eles, apesar do meu esforço em ser discreto. Por isso não foi possível fazer muitos registros, já que fui impedido pelos lideres do movimento de continuar meu trabalho. Eles argumentaram que esse tipo de fotografia poderia causar distorções de interpretação quanto á realidade do movimento. Mesmo contra argumentando e explicando minha proposta, me solicitaram que eu não continuasse, mas me permitiram ficar com as fotos que já tinha feito.


para aquele mesmo cenário, já que para compor uma única foto é preciso que eu produza vários registros. Isso aguçou ainda mais meu olhar sobre aquele lugar. Há um aspecto documental forte, mas também há uma experimentação estética em seu trabalho. Como você constrói OLD essa relação? 67

A sobreposição me ajudou a construir essa relação. Em função do meu pouco conhecimento sobre o movimento não me sentia seguro em documentar tudo aquilo com intimidade suficiente para parecer autêntico. Foi então que optei por assumir esse olhar de quem observa, contempla uma paisagem instigante, mas sem deixar de lado as minhas impressões. A sobreposição me foi útil, pois me obrigou a olhar várias vezes

Como você acredita que a técnica desenvolvida neste trabalho contribuiu para a apresentação do assunto em questão? Eu acredito que uma foto sobreposta cause certa inquietude no expectador. É preciso olhar para a foto mais de uma vez, às vezes sob diferentes ângulos, para que enfim se construa um significado sobre ela. À primeira vista esse tipo de registro fotográfico pode parecer confuso, em função das várias intercessões da imagem, mas creio que é exatamente por isso que consigo chamar a atenção das pessoas para o assunto em questão.


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Multi ocupação apresenta uma espécie de múltipla exposição, que não funciona exatamente da maneira que estamos acostumados, com a fotografia analógica. A fotografia em filme teve alguma influência em seu trabalho? Você tem alguma preferência, entre analógico e digital? Os primeiros contatos que tive com a múltipla exposição foram através de fotos analógicas. Cheguei a experimentar essa técnica com uma Lomo, mas de uma maneira bem descompromissada. Contudo, quando conheci o trabalho da fotógrafa Tierney Gearon fiquei entusiasmado, pois percebi

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que era possível chegar a um resultado tão bom quanto o da fotografia analógica com uma câmera digital. Apesar de gostar muito da fotografia analógica, nesse caso especifico, a digital traz mais vantagens sobre ela, pois é possível ver o resultado na hora e isso acaba por acelerar o processo de aprendizagem, além de tornar mais prático os experimentos fotográficos.


Ultrapassagem por Tito Ferradans

Uma das grandes vantagens da visão humana em relação ao filme ou ao sensor digital é nossa capacidade de percepção de luminosidade. É impossível superexpor ou subexpor sua visão – no máximo por alguns segundos, com uma mudança muito radical da luz ambiente, como sair de um túnel para o sol do meio dia. Nosso olho se ajusta rapidamente para sempre termos grande nível de detalhe e informação. O filme e o sensor, infelizmente, têm seus limites. É aqui que entra um pouco daquela rixa entre digital e analógico. Defensores do filme sempre dizem que sua latitude é maior – latitude, ou alcânce dinâmico, é a variação de luz entre o ponto mais claro e escuro da imagem – e


por isso, o filme retém mais informação. Os sensores sempre foram prejudicados nesse aspecto, porque suas áreas mais escuras mostram muita granulação elétrica, enquanto as altas luzes viram branco com grande facilidade.O contra ataque dos sensores chegou em 1997, quando um pesquisador da Universidade do Sul da Califórnia apresentou ao público uma forma de aumentar a latitude de uma imagem através da mescla de diferentes exposições da mesma cena. Unindo a informação contida numa imagem com mais detalhes nas sombras, à de outra com mais detalhes nas luzes, criou-se uma nova imagem, com o melhor das duas anteriores. Surgia assim o HDR (High Dynamic Range, ou amplo alcance dinâmico). Para não alterar as características básicas da imagem, não se pode alterar a abertura – pois ela altera a profundidade de campo – ou o ISO – que afeta a granulação. O único fator passível de alteração é a

velocidade do obturador, impossibilitando a captura de imagens com movimento, pois como as fotos são feitas em seqüência, uma não bate certinho em cima da outra. Atualmente você pode combinar não só duas imagens, mas sete, ou até mais! Para isso, é preciso que a cena permaneça imóvel, portanto, o uso do tripé é fundamental. Existem várias opções de programas para fazer a mescla das fotos e aproveitar a OLD informação armazenada. Você vai ter não 74 só mais informações de luz, como também de cor, detalhe e possibilidade de contraste. HDR é uma das formas mais interessantes de tornar as imagens mais próximas do que nossos olhos registram. Tito é fotógrafo de vídeo e vive a testar todas as (im)possibilidades que câmeras e lentes lhe oferecem. Você pode saber um pouco mais de suas peripécias em tferradans.com/blog


Fissuras por Ágata A multiplicidade do processo e a limitação do suporte em “Moscouzinho” - parte II Toda nação tem a sua bandeira e com Moscouzinho, obra que começamos a comentar na última coluna, não podia ser diferente. Para fortalecer a ideia de criação de um território, mesmo este sendo imaginário ou afetivo, Gilvan Barreto contou com a ajuda do artista plástico Lourival Cuquinha, idealizador do projeto Financial Art Project, em que o artista confecciona bandeiras com cédulas de dinheiro. A partir delas e do vermelho da União Soviética como referência, os amigos entenderam que a identidade nacional de Moscouzinho deveria ser construída com notas de 3 pesos cubanos. Gilvan foi a Cuba e trouxe na


bagagem mais de 400 cédulas com rosto de Che Guevara estampado. Este episódio é apenas um entre tantos que envolvem os bastidores de Moscouzinho e que revelam uma de suas principais características: o intercâmbio entre as artes. O flerte com as artes plásticas, com a poesia e, principalmente, com o cinema criam a narrativa fantástica presente na obra, que nos convida a embarcar nas lembranças de Gilvan. Diante dessa multiplicidade do trabalho, o formato de livro de fotografia, neste caso, pode aprisionar sua potência dentro de um único rótulo. O que queremos dizer é que Moscouzinho é tão plural que talvez não mereça ser reduzido a qualquer definição. São imagens férteis, que contém não apenas o universo fotográfico, senão o referencial artístico do fotógrafo, que o processo criativonos ajuda a evidenciar. O deslimite entre as linguagens e a dificuldade em categorizar é uma realidade da arte

contemporânea que não exclui a fotografia. Valendo-se desta chancela, Gilvan libertouse para ficcionar de diferentes maneiras, sacrificando até a perfeição técnica e recorrendo ao ruído para criar o ambiente nebuloso do imaginário. Durante o processo o artista pode experimentar representações variadas. No entanto, o trabalho tem que ganhar forma, sair da iminência da criação para se tornar material, ou seja, ter um suporte.Tudo o que acontece entre um estágio e outro são as fissuras formadas pelo processo de criação e que nos levam a descortinar o que as imagens podem conter, assim como aconteceu com a fotografia da bandeira de Mouscouzinho. Ágata é um coletivo multidisciplinar em construção. Um encontro de afinidades que tem na fotografia um campo fértil para o exercício crítico e da expressão artística.

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Luciana Urtiga


Portrait of an unidentified young man


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