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expediente
revista OLD #número 67
equipe editorial direção de arte texto e entrevista
Felipe Abreu e Paula Hayasaki Tábata Gerbasi Angelo José da Silva, Felipe Abreu, Laura Del Rey e Mariana David
capa fotografias
Tiago Coelho Ella A., Helena Giestas, Sebastian Rodriguez Vergara, Thays Bittar e Tiago Coelho
entrevista email facebook
Jonathas de Andrade revista.old@gmail.com www.facebook.com/revistaold
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índice
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livros miguel rio branco exposição
tiago coelho por tfólio
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helena giestas por tfólio
sebastian vergara por tfólio
jonathas de andrade entrevista
88 76 88 106
ella a. por tfólio
thays bittar por tfólio
reflexões coluna
carta ao leitor
Nesta edição nosso editor não assina a carta ao leitor. Convidamos a fotógrafa e editora da Umbu, Mariana David, para fazê-lo. O Prêmio Brasil Fotografia divulgou os escolhidos para serem premiados e elevados no maravilhoso panteão da fotografia brasileira. Adivinha quem não está lá? Mulheres. Mulheres nordestinas. Mulheres negras. Mulheres trans.Mulheres. Nair Benedicto foi premiada, mas isso não melhora a situação. Nair já deveria ter sido premiada há mil anos pelo seu trabalho corajoso. Por quê tanto tempo para premiar Nair? Estive no sertão há pouco tempo, fazendo o trabalho #aquelafotografia, que deve sair em breve. Trabalhei só com mulheres, porque assim disse o meu coração. Lá, convivi com Dona
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Ruta, uma mulher de quase 70 anos e uma vitalidade infinita. Dona Ruta, dentre outras coisas, foi violentada e agredida pelo seu ex-marido por mais de dez anos. Já foi arrastada na única rua de terra do povoado. Ninguém fez nada. Todos tinham medo. Dona Ruta teve seu primeiro filho morto pelo ex-marido. Ele o matou de fome. Depois de dez anos, Dona Ruta deixou a casa onde moravam com dois filhos pequenos. Saiu só com a roupa do corpo, porque foi a única coisa que o ex-marido violento não conseguiu queimar. Dona Ruta saiu e refez sua vida. Construiu ela mesma uma casinha, com a ajuda do filho. Ela vive nessa casa até hoje. Essa casa está na mesma rua de terra pela qual foi arrastada. Esta casa está a três casas de distância onde o ex-marido agressor vive. Ela, no entanto, não tem medo.
Ela é só coragem. Por quê eu trago essa história para falar de um prêmio de fotografia mais do mesmo? Porque é isso: toda mulher é um pouco Dona Ruta. Machucada, invisível, só com a roupa do corpo. Silenciada mil vezes. Sempre em segundo plano. Não é só um Prêmio de Fotografia. É o retrato fiel da forma como as mulheres vivem: cercadas de homens que possuem o poder de legitimar e que terminam legitimando os seus pares. Tenho achado que todos os júris de fotografia são um grande congresso nacional: homens brancos vivendo no século 19. Desculpem pelo desabafo. Mas toda vez que me silencio, uma mulher forte me bate nas costas e me faz falar. por Mariana David
livros
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MONSANTO de Mathieu Asselin
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onsanto: A Photographic Investigation é o primeiro fotolivro do fotógrafo francovenezuelano Mathieu Asselin. Exposto no ano passado no festival de Arles e escolhido como vencedor do dummy award de Kassel e recebeu uma menção especial do festival francês. Monsanto foi finalmente publicado no último mês, em francês pela Actes Sud e inglês pela Verlag Kettler. O projeto, realizado nos últimos cinco anos, explora as consequências da impunidade, para empresas e pessoas. A Monsanto, empresa química americana, é conhecida pela sua pouca consideração com o meio ambiente e por suas pesquisas com alimentos transgênicos e agrotóxicos. No livro, Asselin mostra as consequências das criações da empresa, além de uma série de documentos e publicidades.
Disponível no site da Verlag Kettler valor R$200 156 páginas 6
livros
SLEEPING BY THE MISSISSIPPI de Alec Soth
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MACK, uma das principais editoras de fotolivros do mundo, parece ter encontrado um bom caminho para manter as contas em ordem. Entre novos lançamentos e apostas, a editora está relançando alguns clássicos da fotografia, criando uma nova oportunidade de conhecimento para quem não pode ver estes livros em seu primeiro lançamento. Foi assim com Pictures From Home, Ravens e será assim com A Shimmer of Possibility e Sleeping by the Mississippi. O clássico de Alec Soth será relançado no segundo semestre, com duas novas imagens e uma capa levemente diferente da presente na edição da STEIDL. Está será a quarta edição do clássico fotolivro, a primeira pela MACK, e coincidirá com a primeira exposição do trabalho em Londres, na galeria Beetles+Huxley.
Disponível em pré-venda no site da MACK valor R$180 120 páginas 7
exposição
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NADA LEVAREI QUNDO MORRER AQUELES QUE MIM DEVE COBRAREI NO INFERNO É com esta frase que Miguel Rio Branco volta ao MASP, integrando o ciclo de exposições propostos pelo museu para lidar com os temas de sexualidade e gênero em 2017.
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m pouco tímida, acanhada, reservada a uma sala no primeiro subsolo do museu, fechada entra quatro paredes grafite. De fora, parece pouco, fica a impressão de que Nada Levarei Qundo [sic] Morrer é um dos satélites orbitando o grande astro que é a exposição Toulouse-Lautrec em Vermelho. De fato, esta é a função da nova mostra de Miguel Rio Branco no MASP, fazer parte de um poderosíssimo conjunto de mostras que se propõe a discutir gênero e sexualidade ao longo do ano de 2017. Dentro das quatro paredes que encerram a mostra, a história
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é outra. A curadoria, assinada por Adriano Pedrosa, Rodrigo Moura e Tomás Toledo, buscou nos arquivos de Rio Branco a série Maciel, produzida no bairro de mesmo nome em Salvador. Desta busca foram resgatadas imagens inéditas, além de alguns ícones da produção visual do fotógrafo. A mostra se divide em quatro núcleos – cenas de rua, sexo, espaço, fotógrafo/fotografado – cada um destes predominando em uma das paredes da sala. A potência das cores, do movimento e dos personagens de Miguel Rio Branco está lá, estampada em cada imagem, algumas com mais
força e em outras nem tanto, criando um diálogo em que as imagens crescem pelo contato com suas vizinhas, sem que cada uma brilhe por si só. Fica o desejo de ver mais, não só fotografias, mas também uma montagem mais arriscada, de escalas mais envolventes, com uma instalação que potencializasse a obra de Miguel Rio Branco, sem encerrá-la entre quatro paredes grafite. O MASP fica na Av. Paulista, 1578. Nada Levarei Qundo Morrer segue em exibição até o dia 1º de Outubro.
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TIAGO COELHO Balneário Alegria
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iago Coelho é um dos expoentes da nova fotografia documental brasileira. Seu trabalho vem sendo constantemente reconhecido, recebendo prêmios como o Conrado Wessel e, recentemente, menções honrosas no Prêmio Brasil Fotografia e no POY Latam. Balneário Alegria é uma imersão na cidade de Guaíba, no Rio Grande do Sul, e sua onipresente fábrica de celulose. Nas imagens, Tiago intercala os retratos dos moradores e as vistas de suas casas, explicitando a sempre presente fábrica e suas consequências na vida destas pessoas.
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tiago coelho
Meu objetivo é mostrar a Nos conte um pouco sobre a criação de Balneário Alegria. A série “Balneário Alegria” foi desenvolvida em Guaíba, no Rio Grande do Sul, única cidade no mundo com uma fábrica de celulose instalada no centro de um meio urbano. Uma grande amiga jornalista e fotógrafa, Denise Silveira, natural e residente na cidade, que faz parte da Associação de Moradores que lutam por melhor qualidade de vida da comunidade, convidou-me para visitar a cidade e, ao mesmo tempo, observar a grande expansão da fábrica que havia quadruplicado sua extensão territorial, aumentando a contaminação sonora, do ar e da água e prejudicando a vida de muitos moradores, pois, após a constru-
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ção das obras, algumas casas ficaram praticamente dentro do território da fábrica. Muitos na cidade defendem a importância econômica da fábrica, mas são os “verdadeiros vizinhos”, aqueles que moram nos bairros Balneário Alegria e Alvorada, que sofrem, diariamente, as consequências da expansão. Alguns chegam a estar com problemas de saúde por não conseguirem dormir à noite, por causa do ruído, por exemplo. Logo depois dessa primeira visita, recebi a notícia de que havia sido selecionado para a primeira World Press Photo Masterclass Latinamérica em colaboração com a Fundação Pedro Meyer que aconteceria no México, em dezembro de 2015. Para a Masterclass teria de produzir uma sé-
situação, dando voz para esses moradores. rie sobre o tema “Invisível”. A partir do contraste entre o invisível da poluição e o gigante de concreto onipresente que é visto, praticamente, de todos os pontos da cidade, decidi produzir a série Balneário Alegria. Há uma questão social forte no trabalho, apresentando uma profunda transformação de um determinado espaço geográfico. Esta questão política/ social é essencial para esta narrativa visual? Quais são os seus objetivos ao discutir esses tópicos? A narrativa visual mostra a relação da cidade com a fábrica, através da visão
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de seus moradores. Ao visitar uma das primeiras residências, o impacto que tive com a visão panorâmica, através da janela da sala , me norteou para construir um conjunto de imagens focado no cotidiano daquelas pessoas. A edição é, basicamente, as janelas das casas intercaladas com as personagens da cidade, provocando uma intensa aproximação e afastamento das chaminés. O objetivo dos moradores não é que a fábrica saia da cidade, mas que retorne, ao máximo possível, a qualidade de vida da região. Meu objetivo é mostrar a situação, dando voz para esses moradores. Já recebi relatos deles de que a visibilidade que o trabalho está tendo os ajuda a juntar forças e seguir na luta. Este projeto foi desenvolvido para a sua passagem pela World Press Photo
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Masterclass. Nos conte um pouco sobre esta experiência. Antes de começar, eu temia “ser um peixe fora d´água” na situação, pois minha visão sobre a fotografia documental não é clássica e 2015 foi justamente o ano que o World Press Photo publicou aquela lista gigante de regras super rígidas, que caíram depois. Para minha grata surpresa, as visões dos fotógrafos e fotógrafas selecionados foram as mais distintas possíveis, mostrando uma gama de possibilidades inspiradoras para produzir fotografia documental. Foi muito bom conhecer fotógrafos da América Latina com interesses em comum e ensaios que dialogam com nossas realidades. Editar o trabalho com Pablo Ortiz Monasterio, Silvia Omedes, Veronica Cordeiro, Alejandro Chaskielberg, Adriana Zehbrauskas e Rodrigo
Abd ajudou-me a refletir sobre meu processo de criação. A experiência em participar da World Press Photo Masterclass Latinamérica é daquelas que a gente fica anos assimilando. Balneário Alegria foi um dos premiados no Conrado Wessel de 2015. Como este prêmio influenciou sua produção? É um estímulo para continuar produzindo? No segundo semestre do ano passado, pude dedicar-me exclusivamente à execução de projetos pessoais. O prêmio foi um estímulo para continuar produzindo pois, além da visibilidade nacional que nossos trabalhos ganham ainda nos fazem crescer e aumentar as possibilidades de desenvolver nossa área de trabalho.
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HELENA GIESTAS
Respiro
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elena migrou da medicina para as artes visuais, mas não abandonou a mão firme e precisa de seus tempos de centro cirúrgico. Em Respiro, ela dá tridimensionalidade a cada imagem, criando delicadas esculturas dos personagens que encontra em suas viagens e caminhos. Ao abandonar o fundo, Helena suspende cada personagem em um universo próprio, dando uma vida única a cada um deles e nos permitindo imaginar novos e variados espaços para cada uma das pessoas apresentadas.
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Helena, como começou seu interesse pela fotografia? Comecei a fotografar na época de final do colégio, no final dos anos 80 quando acreditava que a escrita seria minha ferramenta de expressão e a fotografia era só coadjuvante. Fotografava retratos de crianças em busca de registrar emoção. Na época, fiz um trabalho de pesquisa sobre “expressão inconsciente” no qual fotografei crianças pequenas em p&b durante 1 ano e aprendi a revelar as imagens no laboratório caseiro de uma amiga. As imagens, que a princípio eram para ter sido um apoio à escrita, se tornaram a parte principal do projeto. Mais tarde trabalhei alguns anos com equipamentos de vídeo-cirurgia onde aprendi como as óticas
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permitem um avanço incrível para a medicina. Ao longo do meu aprendizado com a fotografia, percebo que a tecnologia é um forte atrativo, mas o que ainda me encanta mais é o fato de ser uma janela para acessar o infinito campo de expressão poética. Nos conte sobre a criação da série Respiro. Respiro surgiu da exploração de imagens que eu flagrava de pessoas que cruzava nas ruas e beiras de estradas. O tempo acelerado e deslocamento que essas pessoas se encontravam foram as motivações iniciais. As cenas em movimento me interessavam estarem editadas em livretos que eu criava com sequência cronológica. Iniciei a interferir nas imagens re-
O “respiro” do livro foi essencial para eu entender que o verso do papel me dava a pausa para realmente ver as imagens que estava produzindo. cortando as pessoas em cada página e,por conta disso, precisei deixar as páginas seguintes em branco, sem imagens impressas logo em seguida. O branco do verso da página passou a enaltecer o recorte das figuras. O “respiro” do livro foi essencial para eu entender que o verso do papel me dava a pausa para realmente ver as imagens que estava produzindo. A minha ação frenética do fotografar em movimento passou a ter um tempo outro que enaltece cada pessoa, cada movimento, cada detalhe que ali está. Foi preciso negar o cenário de fundo e permitir que o branco do
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papel tomasse conta. Respiro faz parte de um projeto maior que se chama “Quando Não Vejo Mais” onde há imagens ampliadas em formas bidimensionais e em formas tridimensionais. Há imagens impressas e outras recortadas em rolos pequenos e outros enormes que se instalam no ambiente expositivo. Livros e livretos com páginas impressas ou não e, recortes manuais e uma sucessão de transparências, todos a partir das imagens fotográficas iniciais como referência. Esta série tem um aspecto escultórico muito forte. Como outras áreas da arte influenciam sua produção? Tudo influencia meu modo de pensar, e, consequentemente minha produção. O papel que voa na estrada me mostra que existem planos, for-
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mas e principalmente sopro e poesia. Vejo isso em cenas do cotidiano ou em produções de muitas áreas distintas por exemplo, através de obras de Mira Schendel , de Ligia Clark, Helio Oiticica, Stephen Gill, John Baldessari, uma fotografia clássica em p&b, uma série de Sophie Calle, ou de tantos outros artistas maravilhosos até um tilintar de um copo caindo no chão. Qual a importância do aspecto manual, tátil, na sua produção? Tão importante quanto a mágica que sentia ao ampliar fotos no laboratório da fotografia analógica. O fazer criativo traz o respiro e a pausa que procuro, seja ao editar imagens no computador, fotografar, ou recriar contornos e novas sombras com um estilete a partir de uma imagem ini-
cial. A busca é contínua entre forma e conteúdo. Ambas me interessam ao estarem unidas. O deslocamento social que se encontram as pessoas que fotografo, passam a ter um deslocamento físico do papel neste trabalho de foto-recortes. Algo trivial aqui, mas que em outras séries se deram de maneira bem diferente, como a série de imagens de elementos orgânicos e de radiologias do corpo humano (“sobre|posições, sobre|vivências”) que utilizei mesas de luz como suportes. A escolha dos suportes que acredito terem de conversar com a obra em si. Daí o aspecto tridimensional ou de instalações serem minha escolha em algumas obras, sejam elas fotográficas ou não, penso que conteúdo e forma devem estar em sintonia.
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SEBASTIAN RODRIGUEZ VERGARA Circus
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ircus é uma viagem para uma outra realidade, um outro tempo, perdido entre as transformações contemporâneas de entretenimento e estilo de vida. Um retrato de uma comunidade, de uma profissão que mingua a cada dia, mas não perde seu encanto. Sebastian Vergara registrou este circo itinerante e se envolveu com cada personagem, deixando sua vida se transformar pela comunidade que retratava. O resultado são imagens potentes, que fazem justiça a este belo modo de se viver.
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Era como estar imerso no realismo Sebastian, como você começou a se interessar pela fotografia? Meu interesse pela fotografia começa por volta dos meus 23 anos, através de uma amiga apaixonada pela área, em sua casa, descobrindo livros de autor. Neste momento me interessava mais o preto e branco do que as fotos em si. Não sei se meu interesse começa exatamente ali, com estes livros em preto e branco, mas gosto de pensar que sim. Talvez tenha despertado mais lucidamente depois, quando veio a instrução do estúdio, mas o que sei é que, desde então, ele não me abandonou. Nos conte sobre a criação do ensaio Circus. Tenho muito carinho por este pro-
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jeto por vários motivos, mas gostaria de destacar dois em especial. O primeiro, é que Circus foi meu trabalho de conclusão na Argra (Asociación de reporteros gráficos). Naquele momento não tinha muito claro que tipo de trabalho iria apresentar, nem como iria fazê-lo. Sabia que no bairro da Boca estava funcionando um circo itinerante, fui conhecê-lo para ver a possibilidade de começar a trabalhar com eles. Ao entrar naquele universo visual comecei a pensar no projeto imediatamente. Não foi fácil entrar neste mundo. Me lembro de quando me apresentei ao dono do circo para conversarmos sobre a ideia e percebi certa reticência. Sem dúvida era sua maneira de preservar seu mundo de possíveis ameaças,
fantástico de García Márquez, em um estado de alucinação permanente. estas micro-realidades são de uma fragilidade extrema e era necessário fazer um certo inquérito. O outro motivo é, sem dúvida, pela gente que conheci realizando o projeto. A gente com que convivi me abriu seu espaço, me fez conhecer uma outra forma de vida e, sem saber, me ensinaram muitos valores. Ali conheci Juan e sua família de equilibristas, acrobatas, dançarinos e palhaços. Eles não tinham a menor dúvida, estavam seguros do seu amor por aquele ofício, de que este, e não outro, era sua profissão na vida. Ali também observei o valor da genero-
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sidade e do trabalho em equipe. No final das contas, o maior motivo de carinho pelo projeto é pela gente que conheci. Como a fotografia documental influencia sua produção? Minha formação fotográfica é especializada neste campo, o documental. Eu o entendo como o coração da fotografia. Gosto da área porque ela me permite pensar integralmente em como fazer de uma fotografia uma história, ter em mente que as imagens serão editadas para dar forma a uma estrutura narrativa. Inclusive na maneira de editar um projeto documental se deve manter este rigor. Cada fotografia que componha o trabalho, examinada individualmente não pode ser mais do que uma engrenagem para a seguinte. A visão
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total é o importante, alcançar um funcionamento lógico é o objetivo final. Considero que se esta sinergia é alcançada será um bom trabalho, se não, teremos uma série de fotografias que evocam algo em comum, mas que não se relacionam, não se interpelam nem se explicam entre si.
cada. Eu via desta maneira, só tinha que estar preparado para quando estes eventos apareciam para mim. Era como estar imerso no realismo fantástico de García Márquez, em um estado de alucinação permanente.
Qual o papel da fantasia na produção deste ensaio? Ela é especialmente importante na produção deste ensaio. Qualquer circo que se preze deve contar com algum número fantástico, ali se trabalha com e para a fantasia. Já no primeiro dia encontrei um menino que com um rápido movimento se dobrava na metade, como um U. O ambiente tinha algo de realismo fantástico, a realidade parecia conviver com a alucinação, como uma realidade modifi-
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pág. esq: 40 nego bom é um real, 2013. Vista da 12a Bienal de Arte Contemporânea de Lyon - França, 2013. pág. dir: Ressaca Tropical, Ubu Editora, 2016. Jonathas de Andrade.
JONAT H AS D E A N DR ADE OLD entrevista
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Encontramos uma brecha, entre os diversos projetos em que está envolvido, para conversar com o artista Jonathas de Andrade. Em um papo sobre metodologia e pesquisa, ética, política e os próximos planos da carreira, pudemos mergulhar um pouco no universo complexo e múltiplo de inspirações e escolhas do alagoano. Pensando no conjunto dos seus projetos, e com a memória fresca de ter visto “O Peixe” na Bienal, uma das coisas que mais chama a atenção, além da força interna de cada trabalho, é a variedade de suportes, linguagens e soluções de que você se vale. E, percebendo também uma... não diria rigidez, mas certa metodologia, fico com a impressão de que há bastante espaço neles para a pesquisa e o “antes”. Como, a partir do tema ou da motivação de base, você vai ao encontro do
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formato de cada projeto? Poderia nos contar sobre algum processo em especial? Cada projeto começa com um gancho, uma espécie de pretexto para o início da ideia. Uma observação, um lugar, uma revista, um documento, um livro… Acabo colecionando esses gatilhos e convivo com eles por um bom tempo. Muitas vezes, eles se juntam a outros e completam o plano do trabalho. Esses entendimentos vão acontecendo num trabalho de ateliê, que em boa parte vai se dando por conversas e trocas com amigos. Às vezes também acontece de ser uma metodologia ou um ponto de partida estético, e a partir daí já tenho um pouco da sensação que me leva a decidir qual formato adotar. No “Peixe” eu estava interessado em fazer uma espécie de filme documental de um ritual (inventado, porém muito veros-
símil), ainda no lastro dos meus interesses da série do “Museu do Homem do Nordeste”. Então, quando imaginei essa situação com os pescadores, já veio o interesse em um formato da etnografia fílmica, dos filmes do Jean Rouch. Aí o mergulho foi nessa direção. A repetição e a apresentação em loop também interessam, por oferecer uma clareza de estrutura narrativa e conforto, na medida em que também pregam peças ao convidar para um transe, uma hipnose na qual vão se desvelando outros dribles e questões do trabalho. Eu já tinha experimentado isso no vídeo “4000 disparos”, em que os frames de um super 8 vão exibindo retratos de homens nas ruas de Buenos Aires, jogados na tela numa velocidade de taquicardia. O formato do livro é também algo que sempre me interessou bastante, e parece ser muito natural para
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O Peixe, filme 16mm transferido para 2k, 37 minutos, 2016
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vários projetos pensar a existência deles em publicação. O “2 em 1” tem uma sequência de fotografias e desenhos que mostram o passo a passo para fazer duas camas de solteiro se transformarem numa cama de casal. Embora exista como instalação, sempre imaginei ele como um livro, o que aconteceu alguns anos depois, com as mesmas imagens impressas em serigrafia sobre papelão. O “Ressaca Tropical” também é um projeto que sempre imaginei como livro, e foi muito incrível desenvolver o projeto gráfico com a designer Elaine Ramos, da Ubu Editora.
Manual para 2 em 1, 2015.
Pode nos contar um pouco sobre essa transposição do “Ressaca” da instalação para o formato livro? Dividi com a Elaine várias das sensações que tenho em relação a este projeto. Então, ela trabalhou nessa pro-
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posta da estrutura de várias folhas de diferentes tamanhos, onde reconheci muito o espírito do projeto inicial. Enquanto a instalação traz fotografias de vários tamanhos e as páginas do diário dispostas em uma linha no espaço, o livro funciona como uma pasta, que sobrepõe as imagens em preto e branco às imagens coloridas. E o texto do diário amoroso (encontrado no lixo) vai acontecendo ao longo das páginas, na intimidade da mão do leitor. O filme “Levante” começa com uma frase em voz off forte, que, além de ter a ver com nosso momento atual, estaria bem aplicada a diversos dos seus trabalhos: “Não é surpresa que a cidade não é de quem a vive”. Você participou de residências e projetos com bolsa no exterior, mas concentra sua produção na América Latina, tra-
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zendo coisas cotidianas das ruas para um contexto de arte. É comum se referirem ao seu trabalho pelo viés antropológico, inclusive. Como alguém que está sempre andando, o que mais te marca nesse sujeito contemporâneo do nosso continente? Consegue perceber diferenças, ao longo dos anos, em sua abordagem como retratista e nos sujeitos como retratados? Consegue enxergar reflexos visuais das nossas crises políticas? Um sentimento muito forte que eu tinha, mesmo antes de começar os meus projetos, era o de ser mais brasileiro que latino-americano; de sentir um certo adormecimento político em relação a um estado das coisas. Como se a minha geração pudesse ser sensível politicamente mas, de alguma maneira, a reação… o ir para as ruas… fosse algo ainda não completado. Mas isso foi antes de 2013. To-
das as coisas… o passado histórico, o passado de torturas da ditadura, e até mesmo a sensação de tudo ser organizado socialmente com naturalidade na divisão entre privilegiados e desprivilegiados… tudo isso já me motivava e ainda me motiva a pensar e a me aproximar de entender um pouco a noção de justiça e uma espécie de hipocrisia do sistema do Estado. De como o Estado é completamente estruturado à serviço de uma classe dominante. Mas, ao mesmo tempo em que eu tinha uma sensibilidade que me levava a reagir a tudo isso, me parecia uma reação mais intelectual do que exatamente corporal. Eu pensava que ir pra rua em 2005, 2007… era uma sensação diferente do que era ir pra rua em um momento como a ditadura ou no momento da abertura política. Isso foi um assunto pra mim. Quando comecei em
pág. esq: Educação para Adultos, 2010. Vista da instalação na exposição Avante Brasil - KIT [Kunst im Tunnel] – Dusseldorf – Alemanha, 2013. pág. dir: ABC da Cana, 2014. Vista da exposição Museu do Homem do Nordeste – Museu de Arte do Rio (MAR) – Rio de Janeiro – Brasil, 2014.
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2007, era uma questão forte pra mim. Eu fiz um projeto, que envolvia viajar para alguns países da América do Sul, inclusive para pensar o meu lugar como latino-americano, me sentindo tão mais brasileiro. Era quase como fazer uma viagem de reconhecimento, como se vivêssemos numa sensação de amnésia política e histórica. Era uma coisa que fazia sentido pensar, sendo da minha geração, uma geração posterior ao golpe, à tortura, e uma geração que ainda fazia parte de um adormecimento político. Com os protestos de 2013 isso mudou, realmente, alguma coisa acordou. Uma geração mais jovem se jogou na rua, preparada pra levar cacete da polícia, botando a cara mesmo pra bater, e brigando pra valer contra uma situação cada vez mais insustentável, que permanece. A sensação de verdade e tensão política tomou os corpos e
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voltou ao ar, cotidianamente, e segue assim. De tal forma que falar desse adormecimento político já não é mais algo possível da forma que eu pensava. Isso foi bem interessante de observar como mudança do tempo. Toda uma força política veio a partir desse momento, e também se acenderam diversos discursos e práticas de empoderamento de grupos minoritários, do ponto de vista de representação política. Eu penso que foi interessante fazer os trabalhos atravessando esses momentos, e observar que agora o contexto já é completamente diferente. É algo que foi global, e que também foi notável aqui na América Latina. O mundo está muito tenso politicamente e não é diferente aqui no Brasil. Essa sensação de estar à flor da pele politicamente é uma coisa que eu vejo como sendo muito do agora.
Seu trabalho aborda temas claros, relacionados ao homem contemporâneo, o trabalhador, relações históricas e políticas na ocupação dos espaços. Em relação a você, se for possível responder: quais aspectos pessoais, ou inquietações, você vem cutucando? Te parece que as obras são “respostas” a estas buscas ou a transformação do artista se dá mais pelo processo? Você parece gostar de projetos grandes (como o “Museu”), de trabalhos colaborativos e do limite ficção/real. Há alguma chave de entendimento nessas escolhas? Eu acho que o grande fio de interesse, de mudança própria, é uma equação entre aquilo que é urgente, aquilo que é instigante e onde o desejo se apresenta como o próximo passo a ser dado. Talvez essa seja uma resposta super vaga para dizer o que eu estou pensando ou sentindo, mas na
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verdade é algo muito da ordem do sentimento. Sinto que a experiência do “Peixe”, por exemplo, foi uma coisa que mexeu muito comigo, porque é um projeto que acontece num gesto que se repete, e fiquei surpreso como as respostas do público traziam complexidade em várias direções. Eu, que gosto tanto do uso de textos, fiquei surpreso com a capacidade de comunicar de um projeto mais textualmente silencioso. Acho que esses processos de feitura dos projetos são absolutamente transformadores no âmbito pessoal: as pessoas que convido para participar, ou que respondem a uma convocação; o plano inicial e todas as adaptações necessárias, que vão se dando durante a feitura; o pós, quando tenho que lidar com o material coletado, filmado, gerado… e a articulação dele em objetos que vão ser mostrados e par-
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Zumbi encarnado, 2014. Vista da exposição na Galeria Alexander & Bonin - Nova York - EUA, 2015.
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tilhados em espaços expositivos, em livros etc. Todas essas etapas envolvem muita escuta e questionamentos, e não deixam de ser frequentes os embates éticos quando estão envolvidas outras pessoas e questões mais relacionadas à dor do outro do que à minha. É algo bem delicado, mas também bastante radical e transformador. Lembro o quanto foi forte me aproximar do universo dos carroceiros, negociar com eles e com as várias instâncias públicas para a corrida de carroças acontecer. Ao mesmo tempo que o processo atestava o quanto eu vivo uma cidade paralela, aquele mergulho me atualizava e me sensibilizava fortemente. No “40 nego bom é um real”, lembro do momento em que entendi que falar sobre a exploração no trabalho, a ideia de servidão e a naturalidade com a mão de obra barata nesse Brasil e nesse Nordeste
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de pós escravidão…, lembro quando entendi que isso era uma questão que me sensibilizava, mas que não era minha. Entendi que fotografar as pessoas para a ficção da fábrica de doces de banana era algo que iria requerer mais cuidado, pois o limite do documental podia tocar na dor íntima daquelas pessoas. E foi assim que entendi que era fundamental aproximar a estética do projeto da ilustração, e as fotografias viraram colagem combinando as fotografias, ganhando mais ficção e se tornando impressões de serigrafia sobre madeira. Enfim, não à toa a série do “Museu do Homem do Nordeste” teve a companhia do que eu chamei de Departamento de Ética e Culpabilidade, onde eu reunia e tratava desses limbos e questionamentos. Costumo conviver com ideias e prepará-las por um bom tempo, às vezes anos, e quando vou
executar, porque parecem mais maduras, mesmo assim elas mesmo trazem xeque mates gigantes. Pode nos contar um pouco sobre algum projeto em andamento? Estou desenvolvendo um projeto que vou mostrar no Instituto Moreira Salles, numa exposição com seis artistas que vai inaugurar o museu em agosto, com curadoria do Thyago Nogueira. O projeto gira em torno de um estudo que aconteceu no Brasil nos anos 50, chamado “Raça e Classe no Brasil Rural”, desenvolvido pela Columbia University em parceria com a Unesco. É um estudo baseado em fotografias e pesquisas presenciais em algumas cidades brasileiras, mas o artigo final apresenta e analisa os resultados, sem publicar as imagens. A metodologia envolve convidar participantes a olhar imagens de pesso-
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jonathas de andrade
as com diferenças raciais e discorrer sobre quem eles acreditam ser o mais inteligente, honesto, bonito, religioso etc. Com esse convite, a pesquisa induz a respostas preconceituosas dos participantes, e analisa as respostas para entender possíveis critérios de como o racismo se manifesta socialmente. Isso faz do texto um grande retrato, ou compêndio, do pensamento preconceituoso nos anos 50. O absolutamente perturbador é perceber que esse pensamento é muito atual e próximo às manifestações agressivas de racismo e de ódio que tem vindo à tona nas mídias sociais e no dia a dia. Quando conheci este artigo e comecei a planejar o projeto, há alguns anos, imaginei com certa ingenuidade que o contexto atual era diferente. Imaginei que a aproximação do texto com imagens que eu produzisse hoje traria uma fricção própria, de
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Era quase como fazer uma viagem de reconhecimento, como se vivêssemos numa sensação de amnésia política e histórica. Era uma coisa que fazia sentido pensar, sendo da minha geração, uma geração posterior ao golpe, à tortura, e uma geração que ainda fazia parte de um adormecimento político.
um certo distanciamento histórico. que levantasse de forma crítica a problemática do racismo histórico e tão assentado na cultura brasileira. Ver o texto se reafirmando como violento, junto a imagens de hoje, foi algo absolutamente desconcertante, que me fez reformular os caminhos do projeto. Durante a primeira metade de 2017, fui convidando pessoas a serem fotografadas no estúdio, em algumas cidades do Brasil (São Luis, Imperatriz, Ilhéus e São Paulo). Agora estou
finalizando a edição e a montagem de vários conjuntos, que vão ser apresentados nessa exposição inaugural do IMS em São Paulo.
texto de abertura e entrevista por Laura Del Rey
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ELLA A.
Não Tinha Nada Nem Ninguém Ali
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lla A. cria dípticos de texto e imagem, construindo contos que se relacionam temática e visualmente. Seu processo de criação está fortemente ligado à sua história pessoal, em uma busca constante por recuperar memórias perdidas. Deste processo, surgem narrativas ligadas ao cotidiano, à construção e perda de pessoas e ao passado. Com seu trabalho, Ella busca entender aquilo que ainda não é claro para ela, em um processo constante de exploração poética.
A menina do espelho Chorara muito, chorou tanto que lhe surgiu a necessidade de ver o estrago que a tristeza estampou em seu rosto. Ao olhar o espelho, ela se deparou com olhos vermelhos, nariz inchado e boca tremula, e o importante foi que pela primeira vez percebeu aquela do reflexo como ela mesma, o que a tornava a pessoa que melhor poderia entender o que ela sentia. Desabafou. Contou tudo e mais. Mais e tudo. Para sua surpresa, ela do espelho respondeu. E respondeu de um jeito tão sincero e despretensioso que acabaram conversando por horas. Conversa que não resultou em solução, uma vez que o problema do princípio não aspirava por tal, mas fez a menina se sentir mais tranquila e aliviada. Depois daquela vez as conversas entre o mundo real e o mundo refletido viraram uma boa rotina. Uma terapia gratuita e eficiente. Tudo ficou ainda melhor quando descobriram que podiam trocar de lugar uma com a outra. No mundo refletido era tudo mais simples, o que muitas vezes causava certa dificuldade para a menina do mundo real querer voltar. Ela sempre voltava. Entendia que o tempo dentro do espelho não era solução, apenas uma folga onde podia aproveitar uma satisfação utópica. A menina do espelho a substituía com prazer, a mudança de ares também não lhe era mal. Estava cansada já daquela vida inversa, onde só podia agir de acordo com o mundo de fora, sem autonomia ou opinião. Foi assim – troca de lugar, volta pro lugar - até que chegou o dia que a menina do espelho resolveu com a menina do real que melhor seria se elas passassem o tempo todo juntas. E a partir daí que a menina do real passou a não ter reflexo, apenas mais uma dela dentro dela.
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Insônia Já era tarde da noite quando ela decidiu que não adiantava mais tentar. Virou-se por mais alguns momentos, se levantou da cama e foi pegar um copo de leite na cozinha. Ouviu o silêncio da noite misturado ao som da cidade que não parava por trás de sua janela, fazendo com que o silêncio da noite não pudesse mais ser chamado de silêncio. Cidade que nunca parava... Lembrou do seu próprio pensamento, imparável também. Tanto não parava que passou a ser difícil dormir. Impossível, na realidade. Não dormia há onze dias. Não conseguia lembrar como antes podia lhe ser tão fácil, simplesmente fechar os olhos e desligar. Pensava tanto na dificuldade de dormir, que não dormia. Repousou o copo vazio na pia e andou de volta para o quarto. Exausta com a movimentação, ela se jogou na cama. Pouco antes de aterrissar ouviu um tiro. Ouviu também o vidro da janela sobre a sua cama se estraçalhar. Sentiu uma perfuração rápida no peito. Conseguiu dormir. 78
ella a.
Tudo que eu conto, sendo através Ella, como começou seu interesse pela fotografia? Eu já escrevia há um tempo. Na escrita vi uma forma de busca da minha identidade. Chegou a hora que percebi que já não era o suficiente, então, procurando outras formas de suprir essa necessidade, a fotografia entrou na minha vida. Nos conte sobre o desenvolvimento das imagens apresentadas na OLD. Eu trabalho muito com o presente. Digo isso porque o conjunto das imagens apresentadas não é um ensaio, e sim uma compilação de momentos diferentes. O texto junto da imagem forma um momento,
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que não necessariamente se relaciona com o próximo ou o anterior. É difícil pensar nelas como um coletivo. O seu trabalho tem uma relação constante entre fotografia e texto. Como se deu esse processo criativo? Como estas duas linguagens se unem e se transformam no seu trabalho? A fotografia veio para complementar uma falta que senti só com o texto, mas agora sinto mais como se as duas coisas fossem cada uma separada, ao mesmo tempo que fazem parte de uma só. São duas formas diferentes de contar a mesma história, sendo que se você vê-las
do texto ou da imagem, é a minha versão de algo. separadas a história individual é diferente do que quando se vê no conjunto. Toda história tem pelo menos dois lados. Tem uma fábula indu que conta sobre vários cegos apalpando um elefante em partes diferentes, em que cada um descreve o animal a partir deste ponto que tem contato, logo, cada um tem uma versão diferente, e só a partir do “juntar os pontos” é possível entender o todo. Juntando o conto com a fotografia, acho que chego mais perto de explicar o elefante.
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Como as suas experiências pessoais influenciam a sua produção fotográfica? Eu fotografo aquilo que eu tento entender. Logo, toda a minha produção imagética está diretamente ligada às minhas experiências pessoais, os questionamentos. As pessoas que conheço e as dúvidas que elas criam em mim.
dor. Assim como a interpretação da minha versão é a sua fantasia sobre a realidade que eu criei. Ella A. é um heterônimo de Andressa Ce., integrante do projeto Histórias Nem Tão Reais.
Quais os papeis da ficção e da fantasia na sua produção visual? Tudo que eu conto, sendo através do texto ou da imagem, é a minha versão de algo. Acredito que toda versão individual parta do que é a realidade, mas é sempre permeada de uma ficção, da fantasia do narra-
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ella a.
Astronauta O Astronauta, quando voltou de sua viagem, correu para a praia, na sua obsessão em acreditar que a Terra ainda era azul. Ninguém nunca conseguiu tirá-lo de lá. 81
Gosto
Uma tarde
Tinha gosto de roxo.
Quando viu seu reflexo na รกgua, decidiu que nรฃo precisava mais entrar na piscina. Afinal, jรก estava lรก dentro.
Milo
Ali
Eu tinha um amigo chamado Milo. Milo é uma dessas pessoas que não conseguem ficar muito tempo em um lugar só, por isso que digo que eu tinha um amigo chamado Milo. Não tenho mais. Milo foi embora faz um tempo e acho que ele não vai mais voltar. Lembro dele como um cara legal, mas também um cara de filosofias infundadas e epifanias baratas. Uma vez, por exemplo, lhe contei um problema e ele, inalando fumaça e com expressão de muita sabedoria, me aconselhou: “Feche os olhos e dance”. Achei aquela uma frase esquisita, manjada. Uma frase esquisita e manjada do tipo que você encontra entre aspas como epígrafe em um livro de auto ajuda. Esquisita e manjada do tipo que você ri quando escuta de alguém que fala sério. Mas ao invés de achar graça, eu sorri e perguntei “Você gostaria de dançar comigo?” E como eu disse, Milo foi embora faz um tempo e acho que ele não vai mais voltar.
De repente o tempo parou e parece que só Laura percebeu. As ondas não quebravam, as sombras não se moviam, o vento não passava. Não se ouvia sequer um gralhar, um cricrilar, o barulho do mar, de pisadas… Mal se ouvia o silêncio. Os cheiros também pararam. Nada da maresia, do protetor solar. Não se viam barcos, nem peixes, nem furinhos na areia. Não tinha nada nem ninguém ali, nem Laura.
Esmerilda Assim como Ismália, enlouqueceu. Mas não precisou do céu, apenas do mar. Era ateia.
Chuva Dizem para mim que choveu, eu vejo chão molhado, mas não vejo chover. É meio estranho.
Socorro De longe dava a impressão que não, mas ele precisava realmente de ajuda.
Fugitiva Quando fugiu, ela achava que sabia para onde estava indo. Só se percebeu sem rumo quando não podia mais voltar. Assim que o conceito de lar não lhe pareceu mais concreto, notou que estava perdida. Às vezes corria, com pressa, querendo chegar mais rápido, mesmo sem saber para onde estava indo. Às vezes andava bem devagar, relutante, com medo de não conseguir lidar com o que viria. Outras vezes cambaleava, já exausta de andar, sabendo (achando) que tinha que continuar.
Manhã
Fuga
Aquela era uma manhã que parecia final de tarde. Parecia que já tinha sido, que já bastava. Acabada. Final. Ontem já não estava mais lá, e o amanhã nunca chegava. Aquela manhã sofria por antecipação e por retardo, com medo do futuro e angustia do passado. Aquela manhã, quando acabou, já não existia mais fazia um tempo. A tranquilidade ás vezes é tão aflitiva.
Aquela pessoa saiu do meio do mato. Dei-lhe água e ela bebeu tão rápido que baba escorria nas laterais da sua boca. Não me disse nada, apenas voltou mato adentro e nunca mais a vi outra vez. Muitas vezes a fuga não sai como o planejado.
Tentativa de conto perpétuo Ele não conseguia se adaptar à efemeridade do mundo, e na luta em busca do pérpetuo, acabou morrendo cedo e ele mesmo foi considerado efêmero.
Suicídio Ele sempre achou que suicídio surgia do desespero, do desgosto. Sempre entendeu que o suicídio era a última saída, última solução, um ponto que alguém só chegaria quando já bastava. Uma maneira enlouquecedora de acabar com o sofrimento. Uma loucura. Só quando leu aquela carta de adeus que entendeu. O suicídio às vezes pode ser tão lúcido.
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THAYS BITTAR Meninas
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hays Bittar traz para a OLD o ensaio Meninas, um registro próximo, íntimo e delicado de uma série de suas amigas. As imagens buscam desconstruir uma visão sexualizada do corpo feminino, dando espaço para uma troca mais honesta entre quem fotografa e quem é fotografado. Assim, em Meninas vemos a proximidade entre os envolvidos na produção da cada imagem, sua confiança e respeito transformados em belas fotografias.
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Thays, como você se interessou pela fotografia? Me interesso pela fotografia desde pequena, meu pai foi um grande fotojornalista e professor na área, e eu fazia questão de acompanhar ele em suas caminhadas fotográficas e escutar as historias sobre as matérias que ele fazia. Minha mãe também foi fotógrafa, mas largou a profissão logo que eu nasci, meu entorno sempre foi alimentado sobre a fotografia. Nos conte sobre a produção do ensaio Meninas. Foi um processo natural, eu sempre fotografei minhas amigas desde o começo da minha profissão. Além de fotografá-las no dia a dia, comecei a produzir ensaios. O primeiro
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que eu fiz foi da Loo Nascimento há dois anos atrás, depois disso várias amigas começaram a me pedir para fazer também e o projeto começou a criar um corpo. Pensamos juntas onde gostaríamos de fazer as fotos, e é sempre um ambiente que alguma das duas, ou as duas, já tenha alguma relação, e passamos um dia entre fotos, conversas, comidas boas e muita risada, tudo é decidido junto. Sou sempre eu e a minha amiga, sem grandes produções, então o clima é descontraído e bem descompromissado. Você é bastante próxima das mulheres que fotografa. Essa proximidade foi essencial para a produção do ensaio? Todas as meninas que eu fotografo
Meu objetivo principal é que as mulheres possam se olhar entre si de forma muito mais leve e sem a preocupação de serem julgadas. fazem parte da minha historia de alguma forma, e fotografá-las é a maneira que eu encontrei de mostrar minha admiração por elas. Nenhuma delas é modelo profissional e criar esse ambiente de confiança e intimidade na fotografia é uma experiência muito valiosa em vários sentidos. Nossa relação faz com que elas se sintam muito mais confortáveis para dizer como querem que aquilo aconteça, o que faz com que o ensaio seja produzido por nós duas juntas, em todos os momentos. O quanto de você está presente em
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cada uma destas imagens? A construção das cenas partia mais de você ou das mulheres que você fotografou? Decidimos juntas onde vamos fazer o ensaio, mas procuro manter o controle da situação, mais por uma questão de experiência profissional. Eu sempre uso luz natural então preciso decidir em qual ambiente ela funciona melhor, a construção da cena parte de mim, mas procuro deixar minha amiga a vontade para sugerir e propor novos ambientes. Ninguém nos conhece mais que nós mesmos, e entender qual é o ângulo e movimento que elas se sentem mais confortáveis só favorece mais as fotos. A representação do corpo feminino na fotografia tem sido bastante discutida recentemente. Como você encarou esta questão na produção do seu ensaio?
Procuro desmistificar essa questão da vulgaridade no corpo feminino, acredito que a natureza da mulher é sensual por si só, e temos todo o direito de mostrar isso da maneira que quisermos. Outra questão que me parece muito curiosa é que a maioria das pessoas que produzem ensaios femininos são homens, e uma mulher fotografar a outra mulher traz um olhar muito mais honesto e de respeito. No ambiente em que vivemos, é incomum querer expor que mulheres admiram as outras na beleza e sensualidade delas sem que isso signifique que há algum interesse afetivo-sexual nessa relação. Meu objetivo principal é que as mulheres possam se olhar entre si de forma muito mais leve e sem a preocupação de serem julgadas.
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m amigo me mostrou outro dia desses o dicionário analógico da língua portuguesa. Abri o volume e tive uma surpresa agradável. Pareceu-me um livro de poesias e talvez seja. Li o prefácio feito pelo Chico Buarque e percebi que o tal dicionário era inspirador, talvez por isso meus olhos acharam que aquelas palavras todas eram versos. Dicionário analógico, de palavras análogas. Daí para eu passar para a fotografia analógica foi um instante,
Angelo José da Silva é professor de sociologia na Universidade Federal do Paraná e fotógrafo. Suas pesquisas mais recentes focam o espaço urbano e o grafite.
talvez 1/250 de segundo. Fotografia semelhante a realidade. Semelhança que dá a força da fotografia e que também revela magicamente sua fragilidade. Espelho que reflete e que se deixa perceber entre o real e sua imagem pelo toque sensível e não pelo olhar. A poesia da imagem, a poética da fotografia começam a surgir aqui no pensamento, na sensibilidade, sensualidade, na descoberta dos distintos planos do real. Alguns integrantes da Escola de Frankfurt apresentaram a ideia, lá por meados do século passado, de que a saída para a alienação imposta pela técnica seria a arte. Soou estranho porque o caminho reconhecido para libertar as consciências era construído pela política. A arte, muitas vezes, era toma-
da como alienadora. Nestes últimos tempos é possível observar uma produção de fotos/livros que apresentam muita sensibilidade ou como as palavras do tal dicionário para “exatidão”: luz, evidência, verdade, sensibilidade, minudência... Os caminhos da prática política continuam a ser trilhados. Mas, talvez, de uma outra forma ou por um outro meio. A arte parece iluminar cada vez mais essa tal realidade refletida em imagens. A crítica social começa a falar por meio da poética e temas essenciais da convivência humana desabrocham. Mais uma vez cabe à nossa imaginação, isto é, nossa capacidade para compor e decifrar imagens, como escreveu Flusser, o trabalho de fortalecer essa crítica.
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Os caminhos da prĂĄtica polĂtica continuam a ser trilhados. Mas, talvez, de uma outra forma ou por um outro meio. A arte parece iluminar cada vez mais essa tal realidade refletida em imagens.
MANDE SEU PORTFÓLIO revista.old@gmail.com Fotografia da série Analogicus, de Steph Lotus. Ensaio completo na OLD Nº 68.
i mp r e ssã o fine ar t i mp res s ão fine a r t timpressão r at a m ent ofine d e iar mag t ens t rat amento d e ima gens a d e s i v a gem d e imagens tratamento a d esi vagem e s tesivagem ú di o c e r t ificado Hahn emülle ad est údi o c er tifica do Ha hnemülle di g i t a l iz d e i mag ens estúdi o acçã erotificado Hahnemülle dig italiza ção d e ima gens digitaliza ção d e imagens
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S A LV E A D ATA 4-8 OUTUBRO PROGRAMAÇÃO EM BREVE