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Por Felipe César
Campanha mundial incentiva sociedades de especialidades e médicos a se questionarem sobre o que traz real valor para a saúde do paciente
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stima-se que 30% de todos os pedidos de exames laboratoriais são desnecessários e que outros 30% são subutilizados. Os dados são resultado de um estudo publicado1 por pesquisadores da Harvard Medical School – Beth Israel Deaconess Medical Center a partir da análise de 1,6 milhão de resultados dos 46 testes de laboratórios mais solicitados por médicos e instituições de saúde. Na mesma linha, um artigo publicado2 no jornal The New York Times em 2010 critica a solicitação de PSA (Antígeno Prostático Específico) para o rastreamento de câncer de próstata. Segundo o autor, ao receber um diagnóstico positivo para a doença, os homens norte-americanos têm uma chance de sobrevida de 16%, enquanto o risco de morte é de apenas 3%. “Isso ocorre porque a maioria dos cânceres de próstata cresce lentamente. Em outras palavras, homens com a sorte de chegar à idade avançada são muito mais propensos a morrer com o câncer do que devido a ele”. Enquanto isso, 30 milhões de norte-americanos são submetidos ao teste por ano ao custo de US$3 bilhões. Exames e tratamentos dispensáveis trazem desperdício para o sistema de saúde e são a contramão do cuidado
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seguro e eficaz. A fim de mudar essa rota, a American Board of Internal Medicine Foundation (ABIM Foundation) lançou em 2012 a campanha Choosing Wisely, que em português significa “escolhendo sabiamente”. A proposta é estimular a discussão sobre a eficiência clínica e combater o que não tem evidência científica comprovada. Nos EUA, as especialidades médicas de todo o país foram convidadas a elaborarem uma lista com três recomendações do tipo "Choosing Wisely” e a assumirem o compromisso de reduzir em 20% a indicação de antibióticos para infecções virais em três anos nos hospitais3. Até agora, mais de 70 sociedades médicas já publicaram 400 recomendações. Diversos outros países já aderiram à campanha: Alemanha, Austrália, Canadá, Inglaterra, Itália, Nova Zelândia, Japão, Holanda, Suíça e, desde 2015, o Brasil. Por aqui, as primeiras sociedades a se envolver diretamente foram a Brasileira de Cardiologia (SBC) e a Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). Ambas já formularam suas recomendações e publicaram em seus respectivos portais da internet 4. Recentemente, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica também anunciou a sua participação.
Aspecto relevante Não é preciso começar do zero. A Academy of Medical Royal Colleges, que reúne 21 escolas de medicina do Reino Unido, publicou em outubro um relatório com 40 procedimentos médicos que trazem pouco ou nenhum benefício aos pacientes. Já a página da ABIM Foundation traz a lista de todas as especialidades e, também, recomendações para os pacientes. “O que dá aderência ao Choosing Wisely é o processo de fazer uma lista de recomendações, e não a lista em si. A elaboração induz à reflexão, e esse é o objetivo do conceito. O importante é que isso se torne um movimento transformador”, explica Luiz Cláudio Correia, professor-adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e membro da SBC. Para ele, só o fato de haver o diálogo sobre excesso de exames já é uma enorme quebra de paradigma. “O processo de
Passo a passo para sociedades de especialidades no Choosing Wisely10 Cada sociedade é livre para determinar o processo de criação de sua lista Todo item da lista deve estar de acordo com o escopo de atuação da especialidade Deve-se priorizar testes, procedimentos ou tratamentos utilizados com bastante frequência e que podem prejudicar pacientes mais do que ajudar, ou que representem abordagens diagnósticas ou terapêuticas de baixo valor agregado Deve existir um bom corpo de evidências científicas que suporte a recomendação O processo de desenvolvimento da lista deve ser rigorosamente documentado e transparente
mudança é lento e progressivo. Não se deve condenar o médico que solicita exames, o importante nesse momento é conversar com todos os envolvidos no processo assistencial para que, no longo prazo, aconteçam mudanças. Podem levar anos, mas o importante é que agora se iniciou uma discussão sobre o assunto, o que não acontecia anos atrás”, defende. No futuro, a visão de toda a sociedade se tornaria mais ampla sobre o tema. Para exemplificar a distância até essa maturidade, Lucas Zambon, diretor-científico do Instituto Brasileiro de Segurança do Paciente (IBSP), cita o mal uso comemorativo de datas como “outubro rosa” e “novembro azul”. “Estimula-se, através dessas campanhas, muito mais a realização de exames que estão associados à detecção daquela doença, e fala-se pouco da prevenção. São campanhas focadas no diagnóstico de quem já está doente, e muito menos em formas de evitar que essas doenças se desenvolvam. ”
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toda recomendação com as expres6 Iniciar sões "Não" ou "Reflita muito antes de" lista deve ter pelo menos cinco 7 Arecomendações a formulação da lista, a sociedade 8 Após deve avisar imediatamente a coordenação
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Importante: Toda sociedade de especialidade deve ter um membro ou staff designado para comunicação com a Choosing Wisely Brasil. As listas devem ser revisadas, no mínimo, anualmente. Mais informações na página oficial da campanha.
da Choosing Wisely Brasil para divulgação no portal oficial da campanha, que tem o apoio de mídia da Proqualis
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Bahia sai na frente Localizado em Salvador, o Hospital São Rafael é a primeira unidade hospitalar do Brasil que montou uma força-tarefa para implementação do conceito Choosing Wisely em todas as especialidades médicas da instituição. Em meados de março desse ano, Luiz Cláudio Correia, que também é o coordenador científico do hospital, apresentou a ideia para o Núcleo de Qualidade e Segurança. “A partir dali, levamos o conceito para discussão com os líderes das especialidades, para que eles reunissem as suas equipes e trouxessem dois pontos nos quais seria possível aplicar o Choosing Wisely. Eles poderiam envolver tanto o aspecto do diagnóstico como o aspecto de tratamento”, conta. Meses depois, cada especialidade apresentou suas sugestões. Após algumas modificações, a última versão do projeto deu origem a uma lista com 42 recomendações, incluindo os cuidados de enfermagem. O corpo clínico do hospital tem acesso a todas as recomendações pelo prontuário eletrônico, além de por outras formas de divulgação interna. “Para que o projeto dê certo, o processo tem que ser simples, sem que tome muito tempo do profissional ou da equipe, ou a dificuldade da participação será maior”, ensina o coordenador. Na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, o conceito Choosing Wisely também começa a ser implementado. Cada coordenador de curso tem a missão de reunir a sua equipe de docentes e discentes com o objetivo de criar um núcleo Choosing Wisely dentro do curso. Esse núcleo é responsável por criar uma lista com 15 recomendações. Essa relação será avaliada por todos os professores, que darão uma nota, e as 5 recomendações com a melhor avaliação resultarão na lista Choosing Wisely do curso. No dia 14 de outubro, a universidade promoveu também um simpósio internacional sobre a racionalização das decisões médicas em prol do paciente.
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Overdiagnosis e overtreatment O Choosing Wisely está relacionado ao exagero no número de procedimentos para fim de diagnóstico (overdiagnosis) e à adoção de tratamentos desnecessários para fins terapêuticos (overtreatment). Na medicina, há situações em que fazer o "muito" é o correto. Entretanto, o Choosing Wisely prega que se identifique as situações em que esse “muito” já é uma dissociação entre a conduta ordinariamente aceita e a conduta baseada em evidências. Lucas Zambon, diretor-científico do Instituto Brasileiro de Segurança do Paciente (IBSP), cita a prática de check-ups. “Até pouco tempo, acreditávamos que essas iniciativas ajudariam a detectar precocemente as doenças. Porém, nos últimos anos, esses paradigmas caíram por terra porque, com o avanço dos tratamentos, ficou provado que o check-up tem pouco ou nenhum benefício para o paciente”. Outra consequência do overdiagnosis é o falso positivo. “Tratase de uma alteração no exame, mas não necessariamente significando doença. Um exame alterado normalmente motiva outras etapas diagnósticas e, eventualmente, até invasivas, como biópsias. No fi nal, estamos trazendo ansiedade ao paciente e custo desnecessário ao sistema”, completa.
O médico tem que tomar decisões baseado em razão e evidência científica, saber identificar quando fazer muito e quando fazer menos. Luiz Cláudio Correia
Evidências “Na literatura médica, há um grande número de artigos que trata dos excessos de procedimentos na medicina. Esse problema, além de desviar recursos de pacientes graves para pessoas saudáveis, causa danos e gera eventos adversos”, disse Rodrigo Olmos, professor-assistente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, durante o Simpósio Internacional de Qualidade e Segurança do Paciente, promovido pelo IBSP em abril de 2016. Conheça alguns desses estudos:
CASO 1
CASO 2
Rastreamento de câncer de próstata O c e nt r o a l e m ã o Harding Center for R i s k L it er a c y, de Berlim, comprovou que o diagnóstico precoce em alguns casos não passa de uma crença. Estudo7 com homens de 50 anos ou mais, acompanhados por 11 anos para câncer de próstata, mostrou que o rastreamento para a doença é inef icaz e ainda causa danos aos pacientes.
COM RASTREAMENTO homens morreram de câncer de próstata morreram de outras causas fizeram biópsia após resultado do PSA. Exame comprovou que não havia doença; PSA deu falso positivo foram diagnosticados e tratados para câncer de próstata desnecessariamente
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SEM RASTREAMENTO homens morreram de câncer de próstata morreram de outras causas
007 203
Real efeito da mamografia Relatório publicado pela Comissão Médica da Suíça em fevereiro de 2014 reconheceu que a mamografia pode evitar cerca de apenas 1 morte atribuída ao câncer de mama por cada 1000 mulheres examinadas. Estudo8 foi publicado pela The New England Journal of Medicine em maio de 2014. Uma revisão da Cochrane 9 com 10 ensaios envolvendo mais de 600 mil mulheres mostrou que não havia evidência dos resultados da mamograf ia no índice de mortalidade. Ou seja, o exame para rastrear o câncer de mama não teve inf luência no resultado f inal. Esse estudo leva a uma perg unta: qual o real benef ício para as mulheres da realização da mamografia sem qualquer sintoma?
Referências 1) ZHI, Ming et al. The Landscape of Inappropriate Laboratory Testing: A 15Year Meta-Analysis. 2013. Disponível em: <https://goo.gl/FOLtM4>. Acesso em: 15 nov. 2016 2) ABLIN, Richard J. The Great Prostate Mistake. 2010. Disponível em: <https://goo.gl/tdqKy5>. Acesso em: 18 nov. 2016 3) ABIM FOUNDATION (EUA).
Choosing Wisely. Disponível em: <https://goo.gl/PpMjjE>. Acesso em: 31 out. 2016.
Acesso em: 28 out. 2016.
4) SOCIEDADE BRASILEIRA DE CARDIOLOGIA (Brasil). Choosing Wisely SBC Brasil. Disponível em: <https://goo.gl/xtLVIU>. Acesso em: 28 out. 2016.
5) ACADEMY OF MEDICAL ROYAL COLLEGES (UK). Forty treatments that bring little or no benefit to patients. Disponível em: <https://goo.gl/0YSOfG>. Acesso em: 24 out. 2016.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE (Brasil). Choosing Wisely Brasil. Disponível em: <https://goo.gl/DNHNmp>.
6) ABIM FOUNDATION (EUA). The Choosing Wisely lists. Disponível em: <https://goo.gl/OKCv8P>. Acesso em: 28 out. 2016.
7) HARDING CENTER FOR RISK LITERACY. Charted: The Tricky Trade-Offs of Cancer Screenings and Treatments. Disponível em: <https://goo.gl/OCBFW3>. Acesso em: 18 nov. 2016. 8) BILLER-ANDORNO, Nikola; JÜNI, Peter. Abolishing Mammography Screening Programs? A View from the Swiss Medical Board. 2014. Disponível em:
<https://goo.gl/6HjGpd>. Acesso em: 18 nov. 2016. 9) GØTZSCHE PC, JØRGENSEN KJ. Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database Syst Rev 2013;6:CD001877. 10) CHOOSING WISELY BRASIL (Brasil). Princípios básicos para elaboração da Lista. Disponível em:<https://goo.gl/6coLGs>. Acesso em: 28 out. 2016.
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