Projeto Contos Cariocas

Page 1

Artur Azevedo Contos Cariocas Coleção Aletrar Com-Arte Arthur Azevedo Coleção Aletrar

Contos Cariocas





ITC Mendoza romana

foi a fonte que

escolhi para esse projeto

1234567890

Cor da bexiga faz que jovem plante whisky A fonte é humanista, leiturável, de itálico forte e tem tradição em usos textuais Equat. Ud tin vel ut alit lorerilit wis alit illa facil diamcon ex ex ecte ming ero dolorem venisisim do consequi euisit luptat ectet, se dolummo luptation henismolorem iriliscidunt ercil inisit ex euisl doluptat.

Equat. Ud tin vel ut alit lorerilit wis alit illa facil diamcon ex ex ecte ming ero dolorem venisisim do consequi euisit luptat ectet, se dolummo luptation henismolorem iriliscidunt ercil inisit ex euisl doluptat. Equat. Ud tin vel ut alit lorerilit wis alit illa facil diamcon ex ex ecte ming ero dolorem venisisim do consequi euisit luptat ectet, se dolummo luptation henismolorem iriliscidunt ercil inisit ex euisl doluptat. Velit landiat irit exercin ciliquatem am ad min vel illum

Equat. Ud tin vel ut alit lorerilit wis alit illa facil diamcon ex ex ecte ming ero dolorem venisisim do consequi euisit luptat ectet, se dolummo luptation henismolorem iriliscidunt ercil inisit ex euisl doluptat. Velit landiat irit exercin ciliquatem am ad min vel illum in esendionsed magniat. Ut eraessit do diat, quat, quisim qui

Adorno Minion


6|


Xerit lutpat ut niscip Odo er autpat. Dui tat. Uscidunt veriliq uiscilit nulputat, quamcon ut alis exero eugait acin henim zzriure vulput dipit luptat, sequate tinibh exeril ex estrud et aliquisl do odolorper sendio odoluptat ad dolor sisit, conulla facidui eumsandre commy nummolobore cor aut utpatue tio exeriure minim accum nim dolore tin ectet, conulla con utat, quissit luptat, quam quismod dolorem ero del ut nons num dolenibh ea amconse dolorperil exero con veliqua tueros am quisl deliquatue dolore erat accum ipsumsa ndrero ero cor. Idui eugait at aliquis alisci eummodiatum dolenisl ilismodionse magna feugait incilla ndreetum et nim enisit enibh ea consequ amcommo dionsequat. Am, velessed tat. Duisim ing et aliquis alit aut wissit do od ea conulla feugue coreet iliquismod tissequamet incin ullandignim quismolesto od diat. It vercin vullutem nulla commoErcil in eu facilis modigna facipsu msandre consed min veliquat, qui blan hendrem dolum zzrilit, sim vulput iuscincip eu feu feu facinim vel elis nosto odolupt atueril utate facil iurer adit, velenim erilis nonsectem do odolobore molenim zzrit aute velesecte conulputat venibh el duismol orperosto commod elit ullum dolore feuis niat ipsuscin ut prat. Ut wis deliquat. Wis non hendre

|7


diat, velit lore min velesequi ex et, quipit, quismolummy nos nonsequisse delisi blam dolorperit lor sed tem dunt vulla feuisim quis nim illam doloborem ad del in ulluptat doloborper si bla commolent vendre eumsan verostrud eugait pratue velis delit ut ectet augue min ulput nummolor sis dolor iusci et wismod ex ercidunt alisim adignisci blam iliquatio er summod mincilit at nos ero odolore miniat. Ut alit, ver si. Gueraes equat. Tie delenim velenit vel ing ea conum velis nostrud tionullan utet ipit nulla faccum quis adiamet, qui euis nit veliquatum quipsum vent am ero odit prat nullutem vendrem dolore facilit lan ero do dit utpat wisim nullutet eliquisl ing erostrud ero ex er in hendreet at, suscin essenis eugait aliquam. Tionse faccum inim incilluptat lum velit nisim atue min estrud ea commy nim zzrit, sed modolore euisi. Ure do odio commodio odolore et, quamconullum verat aliquat wisim niat, si tis erit landiat at. Isit lum num zzriliquatue diam zzrit adiat nonsecte dolore core enisi. Ilit etum qui ea cor sustrud dolor sequisse ea feugait irit nullan ulputpat, quisi ex eu feugue dolum eugait irit, quat. Adio dolum dolortie feuisi tie voloreet luptati ncillaor iliquat. Ut wismod tat. 8|

Bor sequisi. Ommy nonsectet wis aliquis acil et ing ea alis aliqui bla conse modo con hendrer aut iustin utatuer iustie modipit nulla feugiate molenim dion henim Ercil in eu facilis modigna facipsu msandre consed min veliquat, qui blan hendrem dolum zzrilit, sim vulput iuscincip eu feu feu facinim vel elis nosto odolupt atueril utate facil iurer adit, velenim erilis nonsectem do odolobore molenim zzrit aute velesecte conulputat venibh el duismol orperosto commod elit ullum dolore feuis niat ipsuscin ut prat. Ut wis deliquat. Wis non hendre


Contos Cariocas — Prefåcio

do delenim euipsum vel dolore magna faccummodo conumsa ndigna feugue te te duiscin euguer adignisit ing esed dolortie tet, summy nissi tetue vent nos endre eraesse ex er ing enim num vel dolore minibh et irit wisissi smodit la faccum erat iustio et incilis cillam doloreet wis ero commy nibh eugait, quismol estrud digniat. Irit, qui tet, vel ulputpat. Sandre feu feummolobore ex esed et lutem et alis dolorer aestis dolore facilit nulputate dio esecte modolobore et prat nibh eliquat in veliquat. Ut adipsum zzrit la facidui scilit utem autatio odo dui essismod tating eratisl dolor iriuscilit wis el in vercip enim accummolore feugiam, consed magnibh estrud doleniat, quatis aliquat velenim do dignim dolorper iril et ute venibh el dit augait in hendion senibh erit augiatue velisl ip esto endre et, sum dolor sequis ercilla consequat del iure consectet nit am quam alis numsan ulputat aciliscin euip et, susciliqui exer il ullaore moluptat atuerosto od dit ad dionsequat. Utpat. Equamet delessi tionsecte magna consenim er sum deliquamet lorerosto doluptatem dunt acidunt iriurem alit loborpe rostie dionsenit la feum dolor sim ilis nulla feum euipit ing ea con exer aliquam exeril ea faci eniat nullut luptat. Im quip eum zzriurer ad magna con hent wisi. |9

Ercil in eu facilis modigna facipsu msandre consed min veliquat, qui blan hendrem dolum zzrilit, sim vulput iuscincip eu feu feu facinim vel elis nosto odolupt atueril utate facil iurer adit, velenim erilis nonsectem do odolobore molenim zzrit aute velesecte conulputat venibh el duismol orperosto commod elit ullum dolore feuis niat ipsuscin ut prat. Ut wis deliquat. Wis non hendre


10 |


O espírito possui a sua sociedade, como os homens. E as relações, nesse ambiente, são feitas pela admiração. Glórias há, solenes, graves, soturnas, que se nos impõem como essas figuras circunspectas, carrancudas, cerimoniosas, cuja presença em nossa casa nos dá orgulho, mas também nos causa constrangimento. Admiramo-las, mas não nos sentimos à vontade com elas. É honra nossa conhecê-las, mas não é alegria. Quando nos lembramos delas, ficamos sérios, concertando a fisionomia1 , como se nos tivesse parado à porta um automóvel de luxo com um comendador 2 ou um ministro de Estado. É a glória de Rui.3 É a glória de Euclides.4 É a glória de Nabuco 5 ou de Evaristo da Veiga. 6 A lembrança de Gonçalves Dias7 é uma visita para gabinete fechado: visita de confidência, visita de amigo íntimo, visita de irmão em tristezas, que quer chorar secretamente em nosso peito. 1

Concertando a fisionomia expressão que compara a fisionomia a um con-

certo musical. Significa dizer que a expressão do rosto torna-se imponente, formal. 2

Comendador aquele que recebia a comenda, antiga medalha dada pelo Esta-

do por reconhecimento aos serviços prestados. 3

Rui Barbosa (1849-1923) foi jurista, político, diplomata, escritor, filólogo,

tradutor e orador. Assumiu os cargos de ministro da Fazenda e da Justiça, além de ter sido membro-fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras. 4

Euclides da Cunha (1866-1909) foi escritor, sociólogo, repórter jornalístico,

historiador e engenheiro. Escreveu o livro Os sertões. 5

Joaquim Nabuco (1849-1910) foi político, diplomata, historiador, jurista e

jornalista. Nabuco foi, também, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Era conhecido por sua postura contra a escravidão. 6

Evaristo da Veiga (1799-1873) foi poeta, jornalista, político e livreiro. Escre-

veu a letra do Hino à Independência. 7

Gonçalves Dias (1823-1864) foi poeta e teatrólogo. Escreveu o poema Can-

ção do exílio, entre outras obras.

| 11


A glória de Artur Azevedo é diferente de todas estas. Lembrarmo-nos dele é sentir entrar pela porta, como dono da casa, o velho amigo alegre, jovial, folgazão 8 , que não quer ver aborrecimentos nos lares conhecidos, e invade o corredor falando alto, pisando alto, rindo alto, para prevenir a família da sua presença. Entra-nos pela casa como o sol, ou como um galho de roseira, coberto de rosas. Para visitar-nos, não faz toilette de estilo 9, não passa o pente nos cabelos revoltos, não corrige a gravata na esquina próxima, não se preocupa, finalmente, com a etiqueta. Aparece-nos sem aviso, como saiu do escritório ou da repartição. A sua glória é a glória singela e doméstica; é a glória simples, risonha, natural; é a glória despreocupada; é a glória feliz e ingênua; é, em suma, pode-se dizer, a glória à brasileira. Toda a obra de Artur Azevedo se caracteriza, efetivamente, pela naturalidade: naturalidade do assunto, naturalidade do enredo, naturalidade da narração. Qualquer dos gêneros literários por ele praticado patenteia o seu horror ao artifício, à fantasia, ao absurdo, e o seu propósito de não fazer literatura que não seja uma imagem da vida cotidiana. O seu teatro é espirituoso, leve, alegre, como a própria vida do Rio de Janeiro do seu tempo. O seu verso é límpido, claro, f luente, e leva à tona o assunto, a ideia, o motivo, como um riacho de sertão carrega uma f lor ou uma folha. E os seus 12 |

contos são como o seu teatro e o seu verso. Por isso mesmo foi Artur Azevedo o contista mais popular da sua época, e é, da sua geração, aquele que, ainda 8

Folgazão indivíduo divertido, brincalhão.

9

Fazer toilette de estilo expressão que se refere a uma maneira cerimoniosa e

formal de vestir-se: vestir-se a rigor.


Contos Cariocas — Prefácio

hoje, é recordado com simpatia mais funda e admiração mais espontânea. Espalhados pelo Brasil inteiro, na colaboração semanal dos jornais, os seus contos eram lidos em todos os lares burgueses, e repetidos, e comentados por mulheres e homens. Pondo em ação, sem maldade, sem perfídia, sem preocupações psicológicas, as figuras da sociedade em que vivia — o comendador, o funcionário, o pelintra10 —, agradava a todos, tornando-se como que o seu cronista oficial. Essa missão, desempenhava-a, todavia, Artur Azevedo sem a ideia preconcebida de a desempenhar. França Júnior 11, Urbano Duarte12 , Valentim Magalhães13 procuraram fixar o Rio de Janeiro dos últimos anos do Império, ou dos primeiros da República, em contos humorísticos, recorrendo, para isso, à descrição literária do ambiente e das figuras. Artur, sem essa ideia predominante, suplantou-os a todos. Os seus personagens, por si mesmos, explicam o cenário, e não o cenário aos personagens. E essa despreocupação valeu-lhe a glória, que ninguém lhe contestou ou contestará, de ter sido o fixador amável do Rio de Janeiro, no seu período de transição, isto é, no período que registou a grandeza e a queda da rua do Ouvidor. 10

Pelintra aquele que não é, mas age como pessoa de poder.

11

França Júnior (1838-1890) foi advogado, dramaturgo, jornalista e pintor.

Autor da peça Como se fazia um deputado. 12

Urbano Duarte (1855-1902) foi militar, jornalista, cronista, humorista

e dramaturgo. Escreveu O escravocrata e foi membro-fundador da Academia Brasileira de Letras. 13

Valentim Magalhães (1859-1903) foi jornalista e escritor. Autor de uma

literatura agradável e amena, escreveu Flor de sangue. Foi membro-fundador da Academia Brasileira de Letras.

| 13


Ao escrever os seus contos, as suas comédias, os seus versos líricos, Artur Azevedo parece não ter pensado, jamais, na glória, na fama, na celebridade. Produzindo muito, fornecendo à imprensa, semanalmente, uma centena de tiras , só lhe vinha a ideia de reunir em livro os contos, ou os versos, ou as comédias, quando os editores o obrigavam a esse trabalho de coordenação. Daí os Contos efêmeros, os Contos possíveis, os Contos fora da moda, cujos títulos constituem, já, o índice da nenhuma consideração em que os tinha a sua modéstia. Desaparecendo em plena atividade, quando ainda trabalhava com ânimo juvenil, deixou Artur Azevedo centenas de contos e milhares de crônicas, em dezenas de jornais. Folhas e f lores de uma árvore maravilhosa, frutos de duas estações da vida, é possível que o escritor maranhense viesse a fazer, na quietude da velhice, uma escolha, para mais um ou dois volumes excelentes. Tornada impossível essa seleção, resolveram os seus herdeiros — sua viúva e seus filhos — reunir o maior número dessas composições, e imprimi-las em três ou quatro tomos, de que este, de contos, é o primeiro. Deramlhe o título de Contos cariocas. Se o autor fosse consultado, tê-lo-ia, decerto, achado feliz, pois é tão despretensioso, tão singelo, tão à Artur Azevedo como aqueles que ele próprio deu aos volumes anteriores. No trabalho de escoima14 a que os autores submetem a 14 |

sua própria obra, sucede, muitas vezes, suprimirem eles produções do agrado público, mantendo outras, do agrado deles. O autor é, em geral, mau crítico de si mesmo. Encarregado 14

Escoima limpeza, retirada de impurezas. Aqui, o termo foi utilizado com o

significado de revisão, de seleção e exclusão dos contos.


Contos Cariocas — Prefácio

de selecionar os seus contos em prosa, Artur Azevedo teria, provavelmente, sacrificado alguns dos que se encontram neste volume. Entre esses iriam, porém, dois ou três que agradaram aos seus leitores quando publicados em jornais, e agradarão ainda agora aos que os encontrarem reunidos. Aos seus herdeiros, e aos seus editores, não cabia, outrossim, o direito de condenar aquilo que o grande escritor produziu. O público é o único e supremo juiz dos mortos como este. Estou certo, no entanto, de que hoje, como ontem, e amanhã, como hoje, os contos deste volume farão sorrir quantos os lerem, tornando mais profunda no grande público a simpatia e a admiração pelo glorioso espírito que os espalhou pelo mundo — preenchendo eles, assim, mais do que o fim singelo, modesto e amável a que Artur Azevedo os destinou. HUMBERTO DE CAMPOS 15 Da Academia Brasileira de Letras. 15

Humberto de Campos (1886-1934) foi jornalista, político e escritor. Co-

nhecido por críticas literárias de natureza impressionista.

| 15


16 |


A polêmica O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária. Estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera1 da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo. Felizmente era solteiro, e o dono da pensão onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários. Cansado de oferecer em pura perda 2 os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome. 1

Quimera monstro mitológico grego com cabeça de leão, corpo de cabra e

cauda de serpente. Denota fantasia, ilusão, utopia. 2

Em pura perda ato cujo resultado é o pior possível, realizado em vão, inutil-

mente.

| 17


Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no Colégio Vitório, a quem jamais ocupara 3 , embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse , quando raras vezes se encontravam na rua. • O negociante ouviu-o, e disse-lhe: — Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva. Por enquanto, preciso da tua pena. — Da minha pena? — Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar5! Foste a sopa que me caiu no mel!6 Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti, perdoa... — Estou às tuas ordens. — Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no Jornal do comércio , um artigo contra o Saraiva. — Que Saraiva? — O da rua Direita. — O João Fernandes Saraiva? — Esse mesmo. 18 |

— E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo? — Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum. A essa palavra “cobres”, o Romualdo teve um estremeção 1 Ocupara 2 Tutear

verbo utilizado com o sentido de recorrer, utilizar os préstimos.

tratar por tu. À época, esta forma de tratamento era considerada mais

informal, íntima. 3 Apareceste 4 Sopa

ao pintar aparecer na melhor ocasião, em momento propício.

que me caiu no mel algo que chega ou acontece muito a propósito.


Contos Cariocas — A polêmica

de alegria; mas caiu em si: — Desculpa, Caldas. Bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo; como tu, foi meu companheiro de colégio... — Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo? — Mas... — Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti. — Tenho escrúpulos... — Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atenção. E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar um contra o outro, dois amigos que não conhecem o que a vida tem de áspero e difícil. O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave. O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil-réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura da lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras

| 19


instâncias do amigo, e no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente. — Muito bem! — exclamou o Caldas depois de três leituras consecutivas. — Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questão! E, depois de um passeio à burra 5, meteu um envelope na mão do Romualdo, dizendo-lhe: — Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. A época é difícil, mas há de se arranjar. O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil-réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande! • Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da pensão que lhe emprestasse o Jornal do comércio , e viu a sua prosa “Eu e o senhor João Fernandes Saraiva” assinada pelo Caldas. Sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto, almoçou com apetite. À sobremesa, entrou na sala de jantar um menino, 20 |

que lhe trazia uma carta em cujo subscrito se lia a palavra “urgente”. Ele abriu-a e leu: 5

Passear à burra andar a esmo.


Contos Cariocas — A polêmica

“Romualdo, preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do João Fernandes Saraiva ”. Este bilhete inquietou o ex-jornalista. — Com certeza, — pensou ele — o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente, alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório, desconfiou da coisa e foi dizer-lhe... Mas para que me chamará ele? O seu desejo era não acudir ao chamado, alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir! — Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei. O menino foi-se. O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão. • Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe: — Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá! E o levou para um compartimento reservado. — Leste o Jornal do comércio de hoje?

| 21


— Não, — mentiu prontamente o Romualdo — raramente leio o Jornal do comércio . — Aqui o tens: vê que descompostura me passou o Caldas! O Romualdo fingiu que leu. — Isso que aí está é uma borracheira 6 , mas não é escrito por ele! — bradou o Saraiva. — Aquilo é uma besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome! — O artigo não está mau... tem até estilo... — Preciso responder! — Eu, no teu caso, não respondia... — Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo, no próprio Jornal do comércio , e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta. — Eu? — Tu, sim! Eu podia escrever, mas... Que queres? Estou fora de mim! — Bem sabes — gaguejou o Romualdo — que sou amigo do Caldas. Não me fica bem... — Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriálo; quero apenas dar-lhe o troco! No íntimo, o Romualdo estava satisfeito por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quise22 |

rem, de equilibrar o seu remorso. Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu: — Por amor de Deus, não te recuses a este obséquio tão 6

Borracheira indelicadeza, grosseria.


Contos Cariocas — A polêmica

natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas ganhar alguma coisa... O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo. Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: — Bravo! Não poderia sair melhor! — e, tirando da algibeira 7 um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-réis e entregou-a ao prosador. — Oh! Isto é muito, Saraiva! — Qual muito? Estás a tocar leques por bandurra: 8 é justo que te pague bem! — Obrigado. Mas, olha, recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no Jornal pode haver alguém que conheça a minha letra. — Copiá-lo-ei eu mesmo. — Adeus. — Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me! — Está dito. No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o Jornal do comércio na mão. — O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica! E batendo com as costas da mão no jornal: — Isto não é dele! Aquilo é incapaz de traçar duas linhas 7

Algibeira bolso que faz parte integrante da roupa.

8

Tocar leques por bandurra abanar um leque pensando ser uma guitarra ou

bandurra, enganar-se, equivocar-se.

| 23


sem quatro asneiras! Mas, ainda assim, quem escreveu por ele está longe de ter o teu estilo, a tua graça... Anda, escreve! E o Romualdo escreveu... • Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso, fazia insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um, ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço. Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: — Escreve! Escreve! Eu quero ser o último! • Por fim, vendo que a questão se eternizava e de um momento para outro a sua duplicidade poderia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos 24 |

artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores 9 se reconciliaram, 9

Contendores aqueles que têm uma contenda, que tomam parte em uma

controvérsia ou disputa.


Contos Cariocas — A polêmica

acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de fôrma. E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes, que o próprio estilo pareceu harmonizá-los. • O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.

| 25


O plano do Galvão Naquela noite, quando o Braguinha se retirou e Maricota foi para a sua alcova depois de tomar a bênção à mãe e ao pai, este, conforme um velho costume, verificou pessoalmente que todas as portas e todos os bicos de gás estavam bem fechados, e em seguida entrou no seu quarto, onde dona Mariana, sua esposa, o esperava com impaciência, pois tinha muito que lhe dizer. — Então, Galvão, — começou ela — que me dizes do tal Braguinha? — Digo-te que ele está se metendo de gorra1 conosco. — E quem é o culpado? Tu, que lhe ofereceste a casa! — Eu podia lá imaginar que ele tomasse tão ao pé da letra o oferecimento? Deus nos livre que viessem à nossa casa todos os amigos e conhecidos a quem digo diariamente: “Moro na rua tal, número tantos. Apareça, que me dará muito prazer.” 1

Metendo de gorra expressão que significa insinuar-se, tentar conquistar a

atenção. Refere-se à tentativa de captar a amizade e os bons sentimentos dos personagens.

| 26


Contos Cariocas — O plano do Galvão

— Este não tem feito outra coisa senão aparecer. — E nenhum prazer nos tem dado... — Antes pelo contrário. É uma lição. Não deves usar de tanta fraqueza com todo bicho-careta 2! — Fiz o que outro qualquer faria no meu lugar. O Braguinha, já tu sabes, é filho de um velho camarada meu, falecido há muitos anos. O outro dia encontrei-o por acaso. Ele deu-se a conhecer, tratou-me com amizade e respeito, falou-me do pai, e eu, ao despedir-me, convidei-o muito naturalmente a vir à nossa casa. — Com esta, é a quarta vez que vem, e hoje, então, demorou-se três horas! Entrou às 20h00 e saiu às 23h00! — Culpada foi a Maricota, que entendeu dever exibir-se ao piano em todo o repertório, desde a Marcha fúnebre 3 , de Chopin 4 , até o cakewalk!5 — Pudera! Pois se estão de namoro ferrado! — Já o percebi. — Não parece. — Por quê? — Tratá-lo com tanta amabilidade! Dar-se-á caso que queiras semelhante marido para tua filha? 2 Bicho-careta sinônimo da expressão “joão-ninguém”, ainda usada atualmente

para designar um sujeito sem importância, insignificante, “qualquer um”. 3

Marcha fúnebre música cujo ritmo se baseia no andamento de procissões de

funerais. A mais conhecida delas é a escrita por Frédéric François Chopin. 4

Chopin Frédéric François Chopin (1810-1849) foi um pianista e compositor

polaco. Considerado um gênio da música, influencia ainda hoje a música. 5

Cakewalk tradicional estilo musical afro-americano criado pelos escravos

do sul dos Estados Unidos. Recebeu esse nome pois a dança surgiu em competições nas quais prêmios (muitas vezes, bolos) eram dados aos melhores dançarinos.

| 27


— Eu?! Está visto que não! Todo o meu desejo é que a pequena se case com um negociante, isto é, com um homem da minha profissão; mas, se não for assim, não será com um simples amanuense de secretaria 6 , que não está em condições de formar família! Nada, que não estou disposto a sustentar o meu genro! — Como se explica, então, que sejas todo melúrias7, “seu” Braguinha pra cá, “seu” Braguinha pra lá? Como se explica, então, que ainda agora o convidasse para um piquenique na Tijuca? — Tenho cá o meu plano... — O teu plano, Galvão, devia ser escrever-lhe amanhã, o mais tardar, uma carta em que lhe dissesses que, tendo nós uma filha solteira, não nos convém que ele nos visite a miúdo. Depois de receber essa carta, o Braguinha nunca mais aqui poria os pés! — Pois sim, mas começaria a rondar-nos a porta a toda hora , e então é que eram elas! Não, minha velha, esses meios tornaram-se negativos. Já lá vai o tempo em que os namorados eram corridos assim. Admiras-te de que eu o convidasse para um piquenique, mas lembra-te de que o citei para fornecer os vinhos... — Que tem isso? Ele os fornecerá com muito gosto! — Olha, sabes que mais? Tenho sono, deixa-me dormir... 28 |

Depois verás que o meu plano é infalível. E o Galvão terminou a frase num enorme bocejo. Dona Mariana sabia que quando o marido bocejava 6

Amanuense de secretaria funcionário público de condição modesta que fa-

zia a correspondência e copiava ou registrava documentos. 7

Melúrias palavra formada pela junção de mel com lamúrias, com significado

de doçura, amabilidade.


Contos Cariocas — O plano do Galvão

àquela hora, e daquela forma, não havia meio de lhe arrancar palavra. Cessou, portanto, o diálogo. Os dois esposos despiram-se, deitaram-se e dormiram até pela manhã como uns bem-aventurados. • No domingo seguinte, houve o piquenique. O Braguinha estava contentíssimo por imaginar — pobre rapaz! — que caíra definitivamente nas boas graças do negociante. Até já o considerava seu quase futuro sogro! Mas o diabo é que, para comprar os vinhos, o mísero amanuense tinha sido obrigado a pôr no prego o magnífico Patek Philippe 8 que herdara do pai... • À volta da Tijuca, vieram à baila, em conversa, os arrabaldes 9 do Rio de Janeiro. O Galvão afirmava que não havia nenhum como aquele. O Braguinha sustentava que, no futuro, a Copacabana destronaria a Tijuca. — No futuro, talvez, — obtemperou o negociante — mas trata-se do presente. Por enquanto não há lá nem mesmo um bom restaurante onde se coma bem! O Braguinha protestou: — Está enganado! Come-se muito bem na vila Ipanema! 8

Patek Philippe metonímia utilizada pelo autor para falar sobre um reló-

gio herdado pelo personagem. Patek Philippe é uma célebre marca de relógios suíça, criada em 1851 e conhecida pela produção de artigos de luxo. 9

Arrabaldes subúrbios, povoados, cercanias da cidade.

| 29


— Deveras? — É o que lhe digo! — Então, vamos fazer uma coisa: você está comprometido para domingo? — Não, senhor — respondeu prontamente o namorado, trocando um olhar com Maricota. — Pois vamos todos jantar domingo à vila Ipanema! Será também uma espécie de piquenique. Eu entro com os comes e bebes; você entra com o carro. — O bonde vai até lá... — Bem sei, mas não gosto de andar de bonde senão nos dias úteis. O Braguinha empalideceu. — Você, — continuou friamente o Galvão — vem buscarnos com o carro das 15h00 para as 16h00 da tarde... Leve um carro grande, de cocheira... um landau10 onde caibamos os quatro à vontade. • Ninguém calcula as torturas por que passou o Braguinha a fim de arranjar o dinheiro necessário para o landau. Tentou levantar um empréstimo no Banco dos Funcionários Públicos, mas como lá lhe impusessem o 30 |

prazo de um mês para receber o dinheiro, pediu a um usurário 11 que lho adiantasse a um juro fabuloso.

10

Landau do francês landau, antigo automóvel de luxo ou carruagem de qua-

tro rodas com dupla capota que levanta e abaixa. 11

Usurário sinônimo de agiota, aquele que empresta dinheiro a juros altos.


Contos Cariocas — O plano do Galvão

O caso é que, à hora fixada, lá estava o landau à porta do Galvão, e o jantar da Copacabana correu tão alegremente como o piquenique da Tijuca. • Dali a dias, o moço tendo gabado, em conversa, o Mártir do calvário 11, era habilmente intimado pelo quase futuro sogro a arranjar um camarote de onde pudessem todos apreciar o drama. Depois do espetáculo, o Galvão achou meio de se fazer convidar para um chazinho no café Paris. • Cansado de fazer prodígios para ocorrer a essas despesas extraordinárias, e já convencido de que o Galvão o supunha rico, ou, pelo menos, remediado, o Braguinha começou a esperar as suas visitas, porque lá não ia sem que o velho achasse meios e modos de o fintar. A última foi terrível. Estava aberta a assinatura para o Lírico.12 — Ora, que diabo! — exclamou o Galvão — Mais vale um gosto que quatro vinténs! Vamos assinar um camarote do Lírico! O Braguinha estremeceu da cabeça aos pés. 11

Mártir do calvário peça escrita por Eduardo Garrido em 1902, sobre a

paixão de Cristo. Foi encenada por todo o Brasil por mais de duas décadas. 12

Lírico teatro localizado na região central da cidade do Rio de Janeiro, rein-

augurado com este nome em 1890. Antes, foi chamado de Teatro Dom Pedro II e Teatro Imperial Dom Pedro II. Foi demolido em 1934, após ter sido palco de apresentações de peças e atores notáveis.

| 31


— Façamos isto às meias, “seu” Braguinha. Toma-se um camarote de segunda ordem; você paga um terço, e eu, dois. É justo: nós somos três, e você é um só. — Mas... — Não há mas nem meio mas! Ora, adeus! Divirtamonos! É o que se leva deste mundo. Dizem que a companhia13 não é má. — Mas é que... — Fica você encarregado de tomar a assinatura amanhã. Dir-me-á depois quanto é, para eu lhe pagar a minha parte. • Daí por diante o Braguinha nunca mais apareceu à namorada. • — Então? Que tal o meu plano? — perguntou o Galvão a dona Mariana. — Esplêndido! E a graça é que a Maricota não o quer ver nem pintado! — Ele, naturalmente, há de dizer lá com os seus botões 32 |

que eu sou um gaudério,14 mas antes isso, minha velha, antes isso!

13

Companhia refere-se à companhia de teatro, denominação dada a grupos

de atores. 14

Gaudério indivíduo que não tem o que fazer, vadio.


Contos Cariocas — O plano do Galvão

| 33


Magna consequate te tat, sit aut lutat, quamcon utat. Uscip enit augiamcon henisis aute modigna consendigna facip exeros nonsendre exercil ulluptat ut amet ipsusci nciliqui tie feuis alis dolute euisis dolorper irit adiam vulla adiam at acinis endreet lorperos ad dolestrud dit nummy nim nulpute digna feugue molumsan ulla facil dolorpe rciduis ea facilit lutem nostismolor adit wis enissim nim in henim amcoreet in henim iusciliquat, quam, sit, quis duisi tie magna

Coleção

Aletrar


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.