ONDE FOI MORAR BARTร ?
diรกlogos entre arquitetura e literatura
Onde foi morar Bartô?
diálogos entre arquitetura e literatura
volume I
f a u u s p tfg jun/2016 fernanda schelp lopes orientação: luís antônio jorge
SUMÁRIO
1. o início onde foi morar Bartô?
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tema motivações
2. o percurso
o estudo
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| vermelho amargo
| por parte de pai
|o olho de vidro do meu avô
|contos e poemas ensaios |personagens |cidade |casa |ações
3. o projeto
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4. considerações finais
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5. referências
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6. bibliografia
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1. O INÍCIO onde foi morar Bartô tema motivações
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casa do avĂ´ escreve nas paredes
casa dos pais
casa do avĂ´ olho de vidro
casa do pai e da madrasta
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Bartolomeu viveu de mudança. Filho de pai caminhoneiro passou a infância pingando de cidade em cidade, de cuidados em cuidados. Os pais do pai, os pais da mãe, a mãe, a madrasta, os irmãos, durante anos se revezaram no seu dia-a-dia. Mas chegou a hora de partir, e agora, onde foi morar Bartô?
<diagrama das casas de Bartolomeu. Mapa-múndi Catalão (1450) | Mapa de Gervais de Tilbury (1236) Mapa Orbis Terrarum | Mapa de Olaus Magnus (1490-1557)
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TEMA
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Uma boa literatura descreve o espaço sem usar medidas e sem nos apresentar uma planta ou corte de suas construções. É através da descrição das sensações, das cores, da luz e de suas texturas que criamos em nossa imaginação os espaços das personagens. Pensando nisso, a literatura será a base para criar neste trabalho final, o espaço que será representado. Para isso, foi escolhido o livro “Vermelho amargo” do escritor Bartolomeu Campos de Queirós, uma obra que retrata momentos da infância de um pequeno garoto e de sua família após a perda de sua mãe. Bartolomeu cria histórias com lindas imagens, com cheiros intensos, com luz, com textura e doçura. É considerado um escritor infanto-juvenil, mas como sempre fez questão de ressaltar, ele não escreve para crianças ou para adultos. Ele simplesmente escreve. Talvez por escrever tanto sobre a fase da infância é que seus livros tenham encantado as crianças em especial. “Vermelho amargo” é um dos livros autobiográficos do autor e nos apresenta fragmentos de outras personagens presentes na vida do pequeno Bartolomeu. O fascíno aumenta quando vemos que a obra do escritor começa a se entrelaçar, e seus livros se complementam, contando cada vez um pouco mais sobre estas personagens. Com isso, além de “Vermelho amar-
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go”, outros livros do autor foram usados como base para este trabalho, como: “Por parte de pai”, que narra a relação de cumplicidade de Bartolomeu com seu avô que escrevia nas paredes; “O olho de vidro do meu avô” que nos conta um pouco da relação silenciosa do pequeno garoto com o pai de sua mãe, que só via metade do mundo; e “Contos e poemas para ler na escola” uma compilação de textos de Bartolomeu, selecionados por Ninfa Parreiras, que nos traz um pouco mais sobre a história e a memória do escritor. Em “Vermelho amargo”, um menino nos conta sobre a sua infância em uma pequena cidade de Minas Gerais. Ao iniciar a leitura, entramos no universo do pequeno garoto, um universo de saudade pela mãe que se foi, da busca pelo afeto do pai embebido em álcool, de carinho com os cinco irmãos que dividem a mesa e da amarga relação com a fatia do tomate que toda a refeição é servida por sua madrasta. Com o passar do tempo e com a partida dos irmãos, a fatia vai ficando mais espessa e cada vez mais intragável. Bartolomeu é o último dos irmãos a partir e sem se despedir, segue seu caminho. E então fica a pergunta: ONDE FOI MORAR BARTÔ? É esta pergunta que este trabalho tentará responder.
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NOTA: O título dos livros de Bartolomeu Campos de Queirós serão abreviados nas citações. “Vermelho Amargo” - V.A. “Por parte de pai” - P.P.P “O olho de vidro do meu avô” - O.V.M.A “Bartolomeu Campos de Queirós. Contos e Poemas para ler na escola” - C.P
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MOTIVAÇÕES
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A arquitetura do morar sempre me intrigou. A força e o afeto das pessoas com o seu abrigo criam espaços singulares e permitem inúmeras maneiras de morar. Buscando entender esta relação, como ela é criada e seus desdobramentos em eventos do passado (memória) e da construção de um novo espaço, optei por trabalhar no meu último trabalho da faculdade de arquitetura com um projeto de habitação. Além disso, algo que sempre me interessou durante a faculdade, foi a representação dos projetos apresentados. Os primeiros foram feitos à mão em grandes pranchetas, e depois, os softwares mais variados entraram em cena para reproduzir os desenhos com mais rapidez e possibilidades. Porém, ao final desses anos, em um questionamento sobre a minha produção, me perguntei: como é o meu traço?. Os desenhos se homogeneizaram em uma linguagem universal produzidas pelos softwares e com pouco da minha identidade. Neste trabalho pretendo reencontrar o meu desenho e me observar projetando. Para isso, foquei a produção em desenhos feitos à mão e na construção de maquetes de estudo para me auxiliar no processo de concepção dos espaços, observando o jogo de luz e sombra, cheios e vazios que muitas vezes passam desapercebidos quando estamos projetando apenas com desenhos em duas dimensões ou até mesmo nos softwares mais avançados. Quis estar aberta para as surpresas e experiências
<Trabalho desenvolvido na FAUUSP no ano primeiro ano da faculdade, em 2010. Projeto para a disciplina de Ergonomia. Desenhos feitos à mão de uma casa cubo, com dimensões de 4mx4mx4m.
VIVENDAS DUPLEX
VIVENDAS DUPLEX
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PLANTA TIPO 1_ primero piso
PLANTA TIPO 2_ primero piso
PLANTA TIPO 1_ primero piso
PLANTA TIPO 2_ primero piso
PLANTA TIPO 1_ segundo piso
PLANTA TIPO 2_ segundo piso
PLANTA TIPO 1_ segundo piso
PLANTA TIPO 2_ segundo piso
MADRID ENTRETRAMAS
| VIVIENDAS EN BATAN
alzado
UND:FRECHILLA PROF: FRECHILLA
FERNANDA SCHELP LOPES
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que só são possíveis quando temos o objeto construído. Desde o princípio, sabia que não queria chegar ao final deste trabalho com plantas, cortes e elevações dos espaços projetados. Obviamente que depois de tantos anos projetando com o auxílio desses desenhos seria impossível descarta-los completamente, e nem seria inteligente fazer isso. Mas os uso como uma ferramenta para chegar no espaço que imagino, para elucidar questões que só enxergamos quando desenhamos e para facilitar a comunicação com quem está se deparando com aqueles espaços pela primeira vez. Mas eles não serão a “finalidade” deste trabalho, ou seja, o produto. O desafio deste trabalho é buscar a melhor representação para os espaços propostos, que consiga transmitir os elementos que os ligam com o texto base usado e com as determinantes deste projeto. Queria algo que me inspirasse a ir além da concepção dos espaços, e que me ajudasse a imaginá-los com força e expressão. Para isso, nada melhor do que a literatura. Na literatura, assim como no sonho, não há limites do real ou do possível, criamos rapidamente espaços incríveis, diferentes, e que muitas vezes não seguem uma certa lógica, tudo pode. E na arquitetura, será que tudo pode? Quando temos o compromisso com a construção de um projeto, temos que nos atentar para inúmeros fatores que viabilizam, ou não, a nos-
<Trabalho desenvolvido durante o intercâambio na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid no ano de 2013. Projeto de habitações duplex e em torres. Desenhos feitos no AutoCad e no Illustrator.
20 PLANTA SALA DE ESTAR COCINA \ COMEDOR 1:100
PLANTA HABITACIONES 1:100
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sa obra. Porém, quando estamos exercitando o nosso projetar, será que não podemos questionar um pouco mais os nossos limites?
<Trabalho desenvolvido durante o intercâambio na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid no ano de 2013. Projeto de uma casas escalonadas. Desenhos feitos no AutoCad e no Illustrator.
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2. O PERCURSO estudo ensaios
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ESTUDO
VERMELHO AMARGO
A primeira aproximação com a obra de Bartolomeu Campos de Queirós foi através do livro “Vermelho Amargo”. Publicado em 2011 pela Editora Cosac Naify. É um dos últimos trabalhos do escritor, falecido em 2012. A escolha deste livro se deu pelo encantamento imediato causado pela escrita de Bartolomeu. Primeiramente, o foco da busca pelo livro era encontrar uma personagem que tivesse uma forte relação com o espaço do morar e que descrevesse o espaço de tal maneira que possibilitasse o estudo para a sua representação. Porém, a escolha por “Vermelho Amargo” se deu mais pela maneira como ele é escrito, do que pelo assunto tratado no livro. A maneira como o autor nos leva a criar imagens com cheiros e textura, inspirou o aprofundamento da vida das personagens do livro e de seus espaços. O autor inicia o livro com o seguinte escrito: “Foi preciso deitar o vermelho sobre o papel branco para bem aliviar seu amargor”. Assim, ele nos dá uma prévia do que será o livro, carregado de dor, saudade e amargor. O livro nos mostra um narrador em primeira pessoa que vive com seu pai, seus cinco irmãos e sua madrasta, em Minas Gerais. Não há uma seqüência linear nesta narrativa, o garoto nos conta pequenos trechos de suas memórias sem ordem e a única presença do tempo nos é dada pela partida dos irmãos, um a um.
<Vermelho amargo Bartolomeu Campos de Queirós | 1944-2012 São Paulo: COSAC NAIFY | 2011 - 72p.
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Sua mãe partiu em uma manhã de maio, e o menino sente, durante todo o livro, um misto de amor, dor e saudade. Narra-nos com intensidade cada um desses sentimentos ao discorrer sobre suas memórias. A escrita de Bartolomeu explode, é certeira, cheia e forte. Põe-nos a imaginar esse mundo de espaços, (de)sabores e texturas com as imagens ricas descritas. “Queria, sempre, desaparecer com um circo, mas circo não havia. Veio um dia. Armaram na praça central da cidade, com aroma de pipoca e cor de amora. Minha mãe me levou. De mãos dadas penetramos sob a lona quente, numa tarde quente. Naquela noite me deitei, dobrei os joelhos e armei meu circo com o lençol alvejado da cama. Debaixo da lona me dividi em três: me sonhei equilibrando no arame, me imaginei girando no globo da morte e me incendiando ao cuspir fogo. Meu irmão não se interessava pelo circo, mas achava o vidro macio” (V.A p. 17). Neste trecho citado, sentimos um espaço de aconchego com a presença de sua mãe e de fantasia quando embaixo dos lençóis. O menino vai e volta em seus pensamentos e nos relata diferentes memórias em um único trecho. O que nos permite caminhar com ele em seus desvaneios, construindo com ele o seu imaginar.
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Além de nos narrar uma de suas memórias ao lado de sua mãe, Barlotomeu nos introduz um novo fato: a maneira como a perda de sua mãe foi sentida por seu irmão, que desenvolveu uma adoração por comer vidro. “Depois, ele cuspia o vidro moído e o chão parecia ladrilhado com pedrinhas de brilhante. Era bonito, mas meu amor não passava por ali” (V.A p. 41). E durante o livro, ao descrever seus irmãos ele relata como cada um lidou com a dor: um comia vidro; outra irmã passava o dia costurando ponto cruz; outra deixou de falar e passou a miar como seu gato; outra cresceu sem raízes; e ele, assim como seus irmãos, lidou com a dor guardando as palavras, passou a escrever.
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O pequeno narrador descrevia os espaços de sua casa carregados pela ausência da mãe, que podia ser sentida em todos os cômodos: “Em tudo sua ausência estava presente. Sobre a fruteira da mesa da sala de jantar, na janela em que se debruçava nas tardes, na gota de água que pingava da torneira, no anil que clareava os lençóis, ela se anunciava” V.A (p. 20). “Os cômodos sombrios da casa -antes bem-aventurança primavera- abrigavam passageiros sem linhas do horizonte. Se fora o lugar da mãe, hoje ventilava obstinado exílio” (V.A p. 9).
Nos intervalos entre os relatos das memórias carregadas de saudade do pequeno garoto, as refeições aparecem como momentos de puro sofrimento. A madrasta servia todo o dia a mesma comida: arroz, feijão, carne, uma verdura e coroando todo o prato, uma fina fatia de tomate. Quando ainda eram em
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oito (pai, madrasta e seis filhos), um tomate dava para uma refeição. A fatia, fina, transparente, gelada, descia de maneira áspera pela garganta do menino. O tomate, segundo ele, era adubado pelo ciúmes da madrasta. “O pai, amparado pela prateleira da cozinha, com suor desinfetando o ar, tamanho o cheiro do álcool, reparava na fome dos filhos. Enxergava o manejo da faca desafiando o tomate e, por certo, nos pensava devorados pelo vento ou tempestade, segundo decretava a nova mulher. Todos os dias - cotidianamente - havia tomate para o almoço [...]. Eu desconhecia se era mais importante o tomate ou o ritual de cortá-lo. As fatias delgadas escreviam um ódio e só aqueles que se sentem intrusos ao amor podem tragar” (V.A p. 10). Mas o momento das refeições é narrado de maneira completamente oposta quando eram feitas por sua mãe. “Antes, minha mãe, com muito afago, fatiava o tomate em cruz, adivinhando os gomos que os olhos não desvendavam, mas a imaginação alcançava. Isso, depois de banhá-los em água pura e enxugá-los em pano de prato alvejado, puxando seu brilho para o lado do sol. Cortados em cruzes eles se transfiguravam em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa. E barqueiros
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eram as sementes, vestidas em resina de limo e brilho. Pousado sobre a língua, o pequeno barco suscitava um gosto de palavra por dizer-se. Há, sim, outras palavras mais doces que o açúcar” (V.A p. 14). O tomate, que cortado por sua mãe, o fazia imaginar, agora, cortado por sua madrasta era sem graça, fino e amargo. Para o menino, sua mãe “fazia a fantasia virar verdade” e sua madrasta, era fria, assim como a faca que usava para degolar os tomates.
Com a partida dos irmãos as fatias passam a ficar cada vez mais grossas. Quando sobram apenas o menino, seu pai e sua madrasta, um tomate serve para duas refeições. A cada despedida me perguntei: como esta família se senta a mesa?
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O menino -em um misto de tristeza e alegria-, nos descreve sua partida: “Dobrei - entre contentamento e tristeza - as poucas e mudas roupas. Nunca soube por que as lágrimas se negam a serem doces quando convocadas pela alegria. Sempre chorei salgado, talvez pelo peso da carne morta” (V.A p. 64). O menino não soube o que se passou com seu pai e sua madrasta após sua partida, arrumou suas coisas e partiu sem nos dizer para onde e sem se despedir de ninguém.
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ESTUDO
POR PARTE DE PAI
O livro nos apresenta com doçura a relação de cumplicidade de um neto com seu avô, em uma casa carregada de memórias e afetos. Bartolomeu é um menino que vive com seus avôs paternos na rua da Paciência, em uma pequena cidade de Minas Gerais. Seu avô tirou a sorte grande na loteria e nunca mais trabalhou, tendo como passatempo escrever nas paredes da casa. Em todas as paredes, sobre tudo. “Todo acontecimento da cidade, da casa, da casa do vizinho, meu avô escrevia nas paredes. Quem casou, morreu, fugiu, caiu, matou, traiu, comprou, juntou, chegou, partiu. Coisas simples como a agulha perdida no buraco do assoalho, ele escrevia(...) As paredes eram o caderno do meu avô” (P.P.P p. 10). “A Alice nos visitou às 14 horas do dia 3 de outubro de 1949 e trouxe recomendações da irmã Júlia e do filho Zé Maria, lá de Brumado” (P.P.P p. 11). A relação de Bartolomeu com seu avô, Joaquim, é narrada com muito encanto. Os dois se entendem no silêncio, que é quebrado apenas por Maria, a avó do menino que adorava conversar e resmungar.
<Por parte de pai Bartolomeu Campos de Queirós | 1944-2012 Belo Horizonte: RHJ | 1995 - 76p.
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“Meu avô apreciava o meu jeito de dizer tudo a ele, no pé do ouvido, escondido. Pelas suas respostas, meu avô não entendia muito bem o meu cochicho e me pedia para contar de novo. Ele devia confundir segredo com beijo, eu suspeitava. Minha alegria era quando Maria dizia estar eu grudado no Joaquim, como unha e carne” (P.P.P p. 33).
O espaço da casa é de grande significado nesta obra, pois grande parte das lembranças narradas ocorrem na casa. O menino nos descreve com detalhes. “Adquiriu esta casa com tantas janelas e porta abrindo direto pra rua, com três degraus. Por causa do catecismo apelidei os degraus de Pai, Filho e Espírito Santo. Cada vez, ao sair ou entrar, eu pensava na Santíssima Trindade” (P.P.P p. 8). “Joaquim quase não saía. Usava todas as janelas da casa, apreciando os quatro cantos do mundo, sempre surpreso, descobrindo uma nova cor, um novo vento, uma nova lembrança” (P.P.P p. 25).
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As janelas aparecem com bastante frequência nas obras de Bartolomeu. Ora para descrever as casas que o menino vive, ora para descrever o outro lado, a rua e o contato com os vizinhos. Os livros de Bartolomeu, são imensamente ricos. Em sua linguagem, imagens criadas e sensações descritas. São obras concluidas e não é preciso ler mais do autor para se encantar com um de seus livros. Porém, meu encantamento aumentou ainda mais quando pude conhecer mais dos personagens “de um livro” em “outro livro”. Em “Vermelho Amargo”, por exemplo, o menino não dá nome para sua madrasta, não nos narra muito sua relação com ela, e sim, com o tomate cortado por ela. Mas em “Por parte de Pai”, Bartolomeu nos conta um pouco mais dessa relação, e nos apresenta Conceição. “Quando mais tarde Conceição me chateava, eu gritava: tem vergonha de galinha, e ela virava mais madrasta ainda” (P.P.P p. 33). “Lembro-me de quando vi o meu pai dar um beijo na Conceição, perto do guarda-comida, na cozinha. Era um armário com tela igual prisão. As comidas ficavam presas e os mosquitos livres do lado de fora. Foi um beijo depressa e assustado” (P.P.P p. 32).
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O mesmo acontece quando Bartolomeu conta mais sobre seu avô materno, inclusive a maneira como ele morreu, informação essa que ele deixa no ar no seu livro “O olho de vidro do meu avô”, e quando nos conta mais sobre a relação de carinho que tinha com seu irmão mais velho, que é bastante citado em “Vermelho Amargo”. “Minha mãe deixou o olho de vidro de seu pai. Ela guardava o olhar fixo com tanto zelo e agora estava sem dono. Minha mãe ia gostar de Jeremias quase tanto quanto gostava de seu pai. Meu avô morreu por amor e seu corpo foi encontrado dias depois, na hora do crepúsculo. O olho de vidro indicou a origem dos restos” (P.P.P p. 32). “O medo me apanhava. Carregava comigo um sentimento de ser órfão. Meu irmão mais velho desconfiava, e me levava para ficar com ele durante o banho e afirmava ser ele o meu segundo pai. Mas meu irmão só aparecia de vez em quando, entre uma viagem e outra, já ajudando a família” (P.P.P p. 37). Em “Vermelho Amargo”, o menino nos conta pouco sobre seu pai que sofre com o alcoolismo. Mas em “Por parte de pai”, Bartolomeu nos ajuda a entender um pouco mais deste pai, que não era apenas distante e indiferente. Demonstrava, da sua maneira, o afeto por seus filhos.
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“Em casa de meu pai, todas as noites, eu resmungava pedindo água. Era uma sede com hora marcada [...]. Meu pai se levantava a ia até a minha cama. Fechava a mão em forma de copo, levantava a minha cabeça com a outra, e fazia gute-gute. Eu bebia a sua mentira e dormia feliz. Não, meu pai não economizava água. Ele era mão-aberta e nunca chegava, agora em raras viagens, sem pequenos presentes. Ele os esquecia sobre a mesa e ficava distraído, esperando elogios” (P.P.P p. 53). Esse cruzamento de informações nos meios das memórias de Bartolomeu enriquece as personagens, já tão ricas, desta história e nos permite conhecê-los em diferentes contextos. E como em “Vermelho Amargo”, “Por parte de pai” termina com o menino partindo para um nova casa, sem se despedir. “Meu pai chegou no meio da tarde, vestido de desânimo. Encostou o caminhão em frente da casa. Enrolei minhas poucas coisas sem deixar os cadernos e as cartilhas já decoradas. Esqueci de mim mesmo, debaixo do travesseiro, a caixa de lápis de cor. Passei os olhos pelas paredes conferindo as páginas e minha memória. Eu sabia cada pedaço, cada margem, cada entrelinha desse livro. Esperei um pouco pelo meu avô, perdido entre as sombras do cafezal e ele não veio. Não liguei importância. Ele havia me desejado boa viagem ontem, me contando
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sobre o tempo. Vi minha avó pela fresta da porta de seu quarto. Alheia a tudo, há muito ela já havia despedido de todos. Prendi as lágrimas na porta dos olhos para meu pai não ler o meu medo. Assentei-me na boleia, do lado do meu pai, em silêncio” (P.P.P p. 73).
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ESTUDO
O OLHO DE VIDRO DO MEU AVÔ
O livro narra as memórias da infância de Bartolomeu na casa de seus avós maternos, na pequena cidade de Bom Destino. Seu avô, que tem um olho de vidro vê o mundo com o olho direito, e com o esquerdo, o vê ainda melhor através da imaginação. A relação do neto com seu avô é carregada de afeto, mas de maneira silenciosa, quase que emudecida. “Era de vidro o seu olho esquerdo. De vidro azul-claro e parecia envernizado por uma eterna noite. Meu avô via a vida pela metade, eu cismava, sem fazer meias perguntas. Tudo para ele se resumia em um meio-mundo. Mas via a vida por inteiro, eu sabia” (O.V.M.A p. 5). O menino, tentava adivinhar o que e como o avô via com o olho de vidro. Ele, através da sua imaginação, nos leva também a indagar os mistérios deste olhar. E por não dar voz a este avô, que seria o único a nos responder o que vê, o texto de Bartolomeu fica em aberto para inúmeras interpretações, sofrendo uma nova leitura a cada leitor. Uma característica recorrente na obra de Bartolomeu, que podemos observar também em “Vermelho amargo” e “Por parte de pai” é a não presença de ordem cronológica na narração das memórias do pequeno garoto, uma construção própria da nossa memória que vai e vem em fatos aparentemente desconexos.
<O olho de vidro do meu avô Bartolomeu Campos de Queirós | 1944-2012 São Paulo: Moderna | 2004 - 48p.
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Bartolomeu durante o livro destaca sempre a imensidão do olhar de seu avô. Primeiro, porque seu olho não podia ver, mas podia imaginar, o que aumentavam suas possibilidades. E além disso, o garoto via o mar nos olhos de vidro. E por ser mar, este olho era muita coisa. Era vasto, era brilhante, era grande, era cheio. “Meu avô imaginava sempre, eu acreditava. Vencia as horas lerdas deixando o mundo invadi-lo por inteiro. Ele hospedava essa visita sem espanto. Saboreava o mundo com a antiga fome. O que o seu olho de vidro não via, ele fantasiava. E inventava bonito, pois eram da cor do mar os seus olhos. E todo mar é belo por ser grande demais. Tudo cabe dentro da sua imensidão: viagens, sonhos, partidas, chegadas, mergulhos e afogamentos” (O.V.M.A p.6). O neto e o avô não dialogavam muito. Durante suas memórias, o silêncio é um elemento marcante desta relação. Mas com ele, também estava o afeto. O pequeno Bartolomeu, não chegou a morar com seus avôs maternos. Ele passava pequenos períodos com os dois, que segundo ele, o cuidavam com contidos carinhos. “Guardava uma secreta ternura pelo silêncio. Com ele aprendi que no silêncio cabe tudo. O silêncio decifra to-
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dos os labirintos. Não existe um só ruído que o silêncio não escute” (O.V.M.A p. 10) “Esse sossego se prolongava por grandes horas. Eu buscava adivinhar as terras que meu avô desvendava, as mãos que ele apertava, os oceanos que atravessava, o coração em que se deitava. Mas todo o meu esforço se tornava pequeno diante de tanto segredo e suspiro. Então meu carinho abraçava meu avô sem necessitar de mãos. Estávamos envolvidos de emudecimento” (O.V.M.A p.11). A maneira extremamente poética como o menino imagina o olhar deste avô nos faz viajar em imaginação. O tempo todo nos coloca para ver através deste vidro, e fechar os nossos olhos que veem para vermos de olhos fechados até onde conseguimos enxergar. “Não ter um olho é ver duas vezes. Com um olho você vê o raso e com o outro mergulha o fundo” (O.V.M.A p.12) Neste livro, conhecemos mais de algumas personagens que aparecem nos outros livros do autor. Ficamos sabendo o nome da mãe de Bartolomeu, Maria. “Maria era minha mãe. Mesmo vigiada se casou com meu pai, contrariando meu avô [...]. Viveram felizes um
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curto tempo. Minha mãe nos deixou cedo. Partiu contrariada numa segunda-feira [...]. Ela estava com 33 anos, idade de Cristo quando crucificado. Lembro-me de que quando sua dor era maior que a cruz, ela se assentava na cama, entre lençóis e brancura, e se punha a cantar” (O.V.M.A p.19). Sua avó, Lavínia, que segundo seu neto era “alva como as nuvens, macia como as nuvens”, também tem um espaço afetuoso na memória de Bartolomeu. É lindo quando descreve o momento delicado de cumplicidade que vivia com a mãe de sua mãe. “Quando a imensa solidão pesava sobre minha avó, eu me assentava ao seu lado, segurando sua mão, sem dizer nada. Toda palavra seria inútil. Ela correspondia meu carinho com mais carinho” (O.V.M.A p.31). Lavínia durante todas as tardes se assentava à porta da casa, esperando seu marido que como todos sabiam, se encontrava com outra paixão. Esperava por ele todos os dias enquanto bordava. Até que um dia, bordou, bordou, bordou e seu marido não mais voltou. Durante muitos meses a família ficou sem resposta de onde estaria Sebastião, até que chegaram informações de pequenos vestígios encontrados, entre eles, seu olho de vidro. Sebastião morreu em uma de suas saídas, não
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deixando “herança a não ser sua história”. Para Bartolomeu, restou o seu olho de vidro e todas as perguntas de tudo o que aquele olho viu, e tudo o que ele não viu.
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ESTUDO
CONTOS E POEMAS. PARA LER NA ESCOLA
O livro traz contos e poemas escritos por Bartolomeu. Muitos dos escritos são inéditos e ajudam a entender um pouco mais sobre o escritor e suas memórias. A seleção de textos foi feita por Ninfa Parreiras e em sua apresentação sobre o livro ela elucida um pouco de onde vem todo esse encantamento gerado pela escrita de Bartolomeu. “Por que será que seu texto, narrado em primeira pessoa, desperta o interesse daqueles que lidam com o diálogo, o palco e as pessoas? Bartolomeu dava voz e vida aos seres inanimados: uma parede, um tomate, um caderno de escrever. Além disso, criou histórias tão ricas em imagens que vemos as cenas, sentimos os cheiros, ouvimos os ruídos e apalpamos as texturas daquilo que é descrito. Sua prosa é feita de uma profusão de fotos em diferentes dimensões e sentidos. Ele conjuga a polissemia em sua produção literária” (Ninfa Parreira .2014. p11). Em muitos de seus textos presentes neste livro, Bartolomeu nos conta sobre sua infância e sua família. A escrita é um pouco diferente da encontrada nos outros livros do autor, já que aqui ele aparece menos disfarçado atrás de uma personagem. Aqui não temos um menino contando sobre as memórias de sua infância, e sim, um homem revivendo alguns momentos do passado, sobre sua vida e ofício. Assim, o escritor nessa narrativa não usa tantas metáforas. É algo mais informal,
< Bartolomeu Campos de Queirós. Contos e poemas para ler na escola Bartolomeu Campos de Queirós | 1944-2012 (Seleção de Ninfa Parreiras) Rio de Janeiro: Objetiva | 2014 - 135p.
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como uma conversa. É inevitável, então, encontrar nesses relatos, um pouco sobre as personagens da vida de Bartolomeu já descritas em outros livros do autor. “Eu tinha um avô por parte de pai chamado Joaquim Queiróz. Fui criado por ele durante certo tempo. Era seu neto preferido [...]. Era pensador, vivia na janela olhando o povo passar e observando a cidade, e escrevia nas paredes da casa tudo o que acontecia [...]. E foi nessas paredes que aprendi a ler. O meu primeiro livro foi a parede da casa do meu avô” (C.P p.17). “Meu avô por parte de mãe chamava-se Sebastião Brasileiro Fidélis Campos. Era homeopata e tinha um olho de vidro. Aquilo me intrigava muito: como ele tinha um olho de vidro? Para que servia? Ele era um cara mais sério, mais reflexivo. Andava só de terno branco de linho” (C.P p.18).
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Quando Bartolomeu descreve seus parentes nos diferentes livros, passamos a conhece-los em diferentes perspectivas. Seu pai, que em “Vermelho amargo” nos parece um homem distante e indiferente, ganha certa graça quando Bartolomeu descreve a admiração que sentia por ele. “No entando, na infância, escola me dava um medo danado. Porque minha mãe dizia que eu tinha que estudar muito, muito tempo, assistir às aulas, ser bom aluno, para nunca ser igual ao meu pai. E o que eu mais queria era ser igual a ele. Então, tinha um medo danado de a escola roubar de mim a vontade de ser meu pai” (C.P p.20). E sua mãe, sempre presente em suas memórias, aqui é descrita com o mesmo carinho de antes, mas Bartolomeu não usa tantas metáforas para descrevê-la. São memórias mais diretas. “Minha mãe - eu disse que falaria dela, isso talvez por um livro que ando terminando - possuía uma certa irreverência. Em dias difíceis, quando a carne já era cara, ela fritava ovo e colocava sobre o arroz branco cercado de chuchu verdinho e couve. Ela dizia: se você misturar a gema no arroz ele vira ouro e você poderá construir a bandeira do Brasil” (C.P p. 38). A escolha pela leitura de “Contos e Poemas” se deu para co-
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nhecer mais o autor, do que sobre as personagens da sua vida. Nestes escritos, Bartolomeu nos conta sobre sua relação com a literatura, sobre seu amor à escrita e seu encantamento com a fantasia. É uma maneira de entender melhor um escritor que me fascinou com a sua maneira de escrever, capaz de produzir em mim tantas imagens e sensações. E é por falar sobre a fantasia e a força da nossa inventividade na infância, que os livros de Bartolomeu foram escolhidos como base deste trabalho final. O escritor me inspirou a imaginar e a criar, além de me convidar para reviver a minha memória, as minhas casas da infância, o meu olhar da infância e o meu criar da infância. E com nessa busca que seguirei este trabalho. “Ao fantasiar, experimento a liberdade [...]. Fantasiar é o exercício de indagar sobre o meu tamanho para concluir, sempre, que minha inquietação diante da finitude não reside horizontes [...]. E só no trabalho criador encontro lugar para fazer da fantasia matéria primordial de meu ofício” (C.P p.69). “Acredito que na infância somos mais densos, mais inteiros, mais completos. Convivemos com a fantasia, a liberdade, a espontaneidade, a inventividade, sem saber os seus nomes” (C.P p 70).
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“Como me é impossível ser novamente criança, construo um texto com minhas lembranças de quando estive lá. Preservo na memória meus espantos, meus sustos, minhas tristezas, meus encantamentos diante de um mundo inteiro ainda por conhecer” (C.P p71). “Não quero nunca fazer literatura para criança. Quero uma literatura pela minha criança, pela infância que resiste em mim” (C.P p.40)
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< Pai
Madrasta >
< Sebastião | Mãe >
< irmão +velho
|
< irmã +nova
|
irmã > +velha
irmã > gato
ENSAIOS
PERSONAGENS
Os primeiros ensaios sobre as personagens foi feito com um estudo inicial sobre uma possĂvel paleta de cores para cada uma, se baseando no que cada uma representava na vida do pequeno garoto.
<para cada personagem foi feito um pequeno folheto, com a paleta de cada um e na parte interna, a justificativa de cada cor escolhida e trechos dos escritos de Bartolomeu que foram usados de base para estas escolhas.
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Avó
Avô
(Lavínia)
olho de vidro (Sebastião)
Mãe (Maria)
Irmã mais velha
Irmão mais velho
Menino
borda ponto cruz
come vidro
(Bartolomeu)
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Avó
Avô que escreve
(Maria)
nas paredes (Joaquim)
Pai
Madrasta Conceição
Irmã proprietária do gato
Irmão
Irmã mais nova sem raízes
< ^ não são todas as personagens que foram nomeadas por Bartolomeu. Os nomes foram aparecendo com a leitura dos vários livros.
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ENSAIOS
AS AÇÕES
As ações mais citadas nas memórias de Bartolomeu foram relacionadas às personagens, para conseguir entender melhor o que cada uma representava na rotina do pequeno garoto. Os espaços propostos nos primeiros ensaios tomaram como base a influência de cada personagem. O espaço de ler e escrever, por exemplo, tem grande influência das memórias que Bartolomeu tem de sua mãe e ,principalmente, de seu avô paterno. Assim como o espaço de estar interno traria as lembraças das personagens mais retraídas, como sua irmã mais velha que passava o dia dentro de casa bordando ponto cruz.
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ENSAIOS
A CASA
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A princípio, os quatro livros de Bartolomeu estavam sendo usados para a concepção do projeto. Assim, foram sendo somados os textos para criar doze espaços que eram divididos com as seguintes funções: ·quarto de dormir ·quarto de estar externo ·quarto de estar interno ·quarto de brincar ·quarto de música ·quarto de ler e escrever ·quarto de comer ·quarto de cozinhar ·quarto de lavar ·quarto de amar ·quarto de costurar ·quarto de olhar e imaginar
<desenho de como seria a volumetria do espaço de ler e escrever, ligado por um fio ao espaço do olhar. ˆdesenho de como seria a parte interna dessa volumetria.
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ENSAIOS
A CIDADE
Como seria a cidade de Bartô? Em um primeiro esboço, seria uma cidade marcada mais pelos seus vazios do que pelo cheio. A presença dos vizinhos é um elemento importante, e por isso, não há muitas limitações do externo com o interno. O seguinte trecho serviu como base para criar essa cidade: “O mundo é muito vasto e havia uma terra tão longe, mas tão longe desse mundo, que só o pensamento alcançava. Mesmo o tempo, que está presente em tudo, fazia um esforço imenso para chegar até lá. Mas o lugar era de uma beleza surpreendente. De um lado, cercado de praias com areias mais brancas que o susto. No céu conviviam o sol de ouro com uma lua de prata. E as estrelas pontuavam o escuro com vírgulas de diamantes. Do outro lado, em seus longos rios de águas profundas, parecendo vidro derretido, nadavam peixes que ninguém jamais seria capaz de decorar todos os seus nomes. E tantos eram os rios que até os mares agradeciam a essa terra por enchê-los e torná-los transbordantes” (C.P. p. 47)
<modelo de como poderia ser a cidade de Bartô. De um lado o mar e as areias (“mais brancas que o susto”) e do outro o rio como vidro derretido. Um caminho com pedaços de vidro (inspirado no irmão mais velho que comia vidro) e a forte relação entre os espaços internos e externos das casas.
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3. O PROJETO
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O PROJETO
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O encantamento pelas obras de Bartolomeu estudadas neste trabalho, criaram inúmeras possibilidades para o partido de um projeto. Estava na tentativa de reencontrar o meu traço e trabalhar com o desenho a mão livre, mas claro que sempre acabava recorrendo para onde encontrava uma certa segurança: plantas, cortes e elevações. A consequência disso, é que senti uma certa limitação nas formas, e não estava sendo capaz de ir além da concepção convencional dos espaços. Estava sentindo que todo o estudo que me serviu de inspiração para fantasiar e imaginar, estavam se reduzindo em um desenho burocrático. Estava na busca por criar espaços singulares a partir das imagens descritas por Bartolomeu em suas obras, porém, o excesso de textos estavam por reduzir a beleza da escrita de Bartolomeu, que tem como suas maiores virtudes a clareza e a força. Afim de retomar o partido do projeto, optei por concentrar meus esforços no estudo da obra de “vermelho amargo”, e me atentar mais em seu texto durante a concepção dos espaços. Além disso, a determinação previa que eu estava dando para os espaços a partir de funções pré-determinadas, também estava limitando a forma da arquitetura. Por isso, busquei a criação de espaços a partir de trechos do livro sem nenhum função pré-estabelecida, mas com inúmeras possibilidades de uso por conta de sua relação com o cheio, o vazio e a luz.
<estudo inicial da disposição dos espaços da casa de Bartô. Os cômodos, desenhados em corte, estão empilhados, com diferentes tamanhos e cores para demostrar a importância de uma singularidade para cada um desses espaços. A “ligação” entre esses espaços é abstrata, se é que existem.
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Os espaços se deram a partir da escolha de doze trechos do livro “Vermelho amargo”, que foram estudados e trabalhados a fim de criar espaços que pudessem transmitir as imagens descritas por Bartolomeu. TRECHO 1 “Atravessar do infinito ao infinito e alcançar o pleno azul sobre a bicicleta do padre, negociada em pecado e segredo, tornava o céu mais viável” (página 11).
TRECHO 2 “Do tomate exalava um gosto de cera, flor, reza e terra. Sempre engoli minha fatia por inteiro. Descia garganta abaixo arranhando as cordas, desafiando as palavras, esfolando o percurso. Libertava-me dela na primeira colherada” (página 13).
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TRECHO 3 “A cidade sustentava-se por seus ares de domingo. Aparentemente lerda, se alicerçava sobre secretos sussurros. As casas dormiam no colo de um mentiroso silêncio. Havia, contudo, as frestas das janelas por onde se perscrutava o vizinho. As intimidades eram sopradas de ouvido em ouvido e alteradas de boca em boca [...]. Uma cidade afetuosamente cruel” (página 15).
TRECHO 4 “É preciso muito bem esquecer para experimentar a alegria de novamente lembrar-se. Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles. E a palavra - basta uma só palavra - é flecha para sangrar o abstrato morto. Há, contudo, dores que a palavra não esgota ao dizê-las” (página 16).
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TRECHO 5 “Um raso rio cortava ao meio minha cidade. As águas opacas corriam sorrindo pelas cócegas dos pequenos peixes, marinheiros à mercê da correnteza. A cidade partidade me fazia, sempre, um morador do outro lado. Não havia opção: em qualquer lugar eu estaria em outra margem. Sem escolha, eu vivia o avesso por habitar a outra orla. Havia uma pequena ponte de madeira amarrando os dois pedaços, não como a exata costura dos alfaiates. Eu caminhava de cá para lá, sem me esbarrar em outra pátria” (página 18).
TRECHO 6 “Não sei o intinerário do sonho naquela noite. Nada mais me incomodava: o tomate, o bife, o álcool. Só embalava-me o porão do sobrado da casa, onde nos amavamos, sobre chão de terra e sob céu de tábuas corridas. Talvez tenha sonhado com girassóis, sem conhecê-los. Sabia apenas que eram flores exageradas, cresciam sem medo” (página 25).
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TRECHO 7 “No amor, meu corpo delatou a presença da alma, que veio morar na superfície da minha pele” (página 27).
TRECHO 8 “Se a chuva chovia mansa o dia inteiro, o amor da mãe se revelava com mais delicadeza. O tempo definia as receitas [...]. A comida descia leve como o andar do gato da minha irmã” (página 35).
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TRECHO 9 “Um sonho fora do sono persistia em mim. Nasci afogado por ele: o de desvendar o mar. Afundar-me em sua grandeza, salgar-me em sua salmoura, esconder-me em suas ondas, surgir desafogado onde nem eu me sabia. Eu só desconfiava o mar por ouvir dizer. Numa infância sem surpresas, cercado pelas montanhas, o mar escondia-se depois de muito pensamento” (página 40)
TRECHO 10 “Depois, ele cuspia o vidro moído e o chão parecia ladrilhado com pedrinhas de brilhante. Era bonito, mas meu amor não passava por ali” (página 41).
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TRECHO 11 “Crescia sem raízes. Desprendia-se fácil do chão. Ao ignorar a origem descosturou o futuro. Seus olhos atra- vessavam as coisas e vazavam no depois [...]. Desenraizada, jamais perdeu a direção, sem, contudo, encontrar um destino seguro” (página 55).
TRECHO 12 “Na margem -entre rendas de areias- as palavras eram meu barco. Com elas atravessaria as ondas, venceria as calmarias, aportaria em outras terras. Se era meu barco, eram também meus remos. Com elas cortava as águas, flutuava sobre marés e me via em poesia” (página 61)
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O estudo dos trechos se iniciaram com os desenhos apresentados, e os ajustes finais foram feitos com a construção de pequenos modelos que permitiram explorar as surpresas que a luz gerava no objeto. Para a representação final dos espaços, optou-se pelo uso de fotografias que junto com os trechos, vão compor um segundo caderno deste trabalho. O projeto apresentado no caderno II implica duas operações tradutórias do livro “Vermelho amargo” de Bartolomeu Campos de Queirós. A primeira tradução busca espacializar o texto na página, ocupando o espaço afim de sugerir uma arquitetura do texto, com seu movimentos e formas. A segunda, a criação de modelos físicos a partir do texto literário, sobretudo, da dimensão poética dos trechos selecionados.
<modelos de estudo dos espaços propostos, feitos em madeira balsa 2mm
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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“Escrever é um encantamento que se deve ter com a palavra. Eu considero que alfabetizar é fazer a criança se encantar com a palavra. Mas a palavra não é só escrita, é sonora também. A criança se prende muito na sonoridade, nas rimas e nas brincadeiras. Então, quando escrevo, quero sempre mostrar para a criança que a palavra é um jogo, é lúdica” (Bartolomeu Campos de Queirós) E para sermos arquitetos, para nos formarmos arquitetos, devemos antes de tudo nos encantar com a arquitetura. E o que é arquitetura? Arquitetura é sensação, é espaço, é luz, é aconchego, é desconforto. Arquitetura é CONSTRUÇÃO, é criação, é projeto, é desenho. Precisamos nos encantar para projetar, para escrever, paracriar, para prosseguir. Acredito que seja normal, em alguns momentos nos perder. Não criar, entrar em crise, não produzir.
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Para sair desse estado, precisamos voltar a nos encantar. A imersão na obra de Bartolomeu começou assim: com um grande encantamento. Estava na busca por uma personagem que tivesse uma forte relação com seu espaço de morar. Encontrei isso na obra de Bartolomeu, mas encontrei principalmente uma escrita certeira, cheia, forte, que me encheu. Que me fez querer ler devagar pra durar mais aquele encontro. E quando terminei o primeiro livro, já fui para o segundo, o terceiro... Não queria recriar o espaço físico que aquele garoto passou a sua infancia. Queria buscar o espaço criado por aquela criança. Não queria recriar seu quarto, queria recriar os seus sonhos. Não foi um processo linear, e muito menos, certeiro. Foi com erro e acertos, idas e vindas, que me perdi muitas vezes para no fim, conseguir encontrar o caminho que queria seguir com este trabalho. Ao estudar mais as obras autobiográficas de Bartolomeu, passei a entrar na vida pessoal do menino, e comecei por criar imagens mais literais com as palavras do autor. Mas não era esse o caminho que queria seguir. Deveria me manter mais ligada a obra e ao ofício de Bartolomeu. Não tanto no que des-
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creve suas palavras, mas sim, como são escritas. E essa relação que tentei fazer com a arquitetura. O que me encantou nas obras de Bartolomeu foi a maneira como ele articula suas ideias, como divaga. Entramos no seu fluxo de pensamento que não segue um caminho esperado ou linear. Sua escrita é cheia de surpresas. E era isso que queria trazer para a arquitetura e articular os espaços com a mesma beleza que Bartolomeu articula suas ideias, e que o próximo espaço fosse capaz de surpreender. Ao final, encontro a resposta para a pergunta que dá titulo a esse trabalho. Onde foi morar Bartô? Bartô foi morar no espaço desenhado por sua poesia.
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5. REFERENCIAS
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REFERÊNCIAS
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As imagens selecionadas para este capítulo serviaram de referência em diferentes etapas do processo deste trabalho. A princípio, estudei sobre a história do desenho arquitetônico, me baseando principalmente no livro de Jorge Sainz, El dibujo de Arquitectura: Teoria e historia de un lenguaje gráfico. Isto me levou a olhar a produção de alguns arquitetos, principalmente de seus croquis. E os que mais me encantaram foram os desenhos de Aldo Rossi; pela força e beleza de suas cores, e de Lina Bo Bardi; por desenhar a vida de seus espaço e o seu uso, e não apenas suas formas. No meio desta pesquisa me deparei com muitas ilustrações e fotografias belissimas, que chamaram a minha atenção por muitos motivos. Algumas me atrairam pelas suas cores, outras pela fantasia representada e outras pela simples beleza de seus traços e formas. Aqui, selecionei algumas dessas imagens que me serviram de referência.
<Aldo Rossi <Lina Bo Bardi
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<John Walsom < Yakov Chernikhov ^Marta Vilarinho ^Federico Babina <Lebbeus Woods Ë&#x2020;Superestudio Ë&#x2020;Diego Fagundes
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<Joel Lopes
^Joel Tjintjelaar Ë&#x2020;Cristiano Mascaro
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6. BIBLIOGRAFIA
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BIBLIOGRAFIA
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textos ÁBALOS, Iñaki. La buena vida. Barcelona. Editora Gustavo Gili, 2000 BACHELARD, Gaston. A miniatura. In:____A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Cap. VII p.294-315 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. LE CORBUSIER. O espaço indizível. Tradução de Artur Simões Rozestraten. Paris, 1945 QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Vermelho Amargo. São Paulo. Cosac Naify, 2011. QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Por parte de pai: Belo Horizonte: RHJ Editora, 1995. QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. O olho de vidro do meu avô. São Paulo. Editora Moderna, 2004. QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Bartolomeu Campos de Queirós. Contos e Poemas para ler na escola. Rio de janeiro. Editora Objetiva, 2014. SAINZ, Jorge. El dibujo de Arquitectura: Teoria e historia de un lenguaje gráfico. Editora Nerea, Madrid, 1990
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MONTAIGNE, M. E. de. A força da imaginação. In: _______ Ensaios. Tradução de Sergio Milliet, 2.ed. Brasília: Ed. da UnB: Hucitec, 1987. COUTO, Mia. O cego estrelinho. In:_______Estórias abensonhadas. Rio de Janeiro: Nova Frontei- ra, 1996. online Bartolomeu Campos de Queirós - Imagem da Palavra. Parte I: https://www.youtube.com/watch?v=L4wiBRu-mGU Parte II: https://www.youtube.com/watch?v=fbRrCTudoA0 Parte III: https://www.youtube.com/watch?v=9at0MkYeZCw Conversa durante o projeto Paiol Literário, Julho 2011. http://rascunho.com.br/bartolomeu-campos-de-queiros/ O mundo é do tamanho do que sei dizer. http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/7052/Ed%20-%2017%20-%20Entrevista%20Bartolomeu%20Queiroz%20-%20(Site).pdf?sequence=1
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