Projeto São Paulo: Imagens da cidade A capa deste catálogo estampa de forma imponente uma prosaica palmeira que ao meio de uma praça ganha importância na construção da imagem e se constitui como seu principal elemento. A composição razoavelmente simétrica destaca estranhamente esta árvore de forma hierática ao centro da paisagem contra a luz do fim de tarde que cai na cidade. Ela figura de forma solitária apenas como uma silhueta e exatamente por não possuir volumes ou particularidades apresenta-se como um ícone. Esta representação de palmeira se contrapõe a um obelisco que se sobre sai ao fundo no horizonte urbano. Se por um lado estes dois principais elementos se alinham formalmente ao constituírem um eixo vertical que estrutura a composição, por outro no que se refere àquilo que representam eles parecem estar trocados de seus lugares. A simplicidade e rigor da composição forjam uma cena trivial da cidade, tal qual é a visão que temos em nosso cotidiano, e deste modo exercem um efeito de naturalização de um desarranjo desta mesma cena que é da ordem do simbólico. O obelisco é uma forma recorrente de monumento, sua ponta ao alto afinada acentua a perspectiva e simula através deste efeito ótico uma verticalidade eloqüente maior do que a real. Deste modo, presta-se a marcar oficialmente como uma torre um espaço real e simbólico. Ao fundo de um ícone de palmeira a partir de uma palmeira real qualquer, um obelisco também qualquer, uma vez que não possui nenhuma singularidade, se esvai no horizonte nublado de fim de tarde. Contraditoriamente, mesmo anunciando um grande monumento a imagem não consegue conferir identidade à cidade fotografada. O que poderia ser a vista de qualquer cidade com um obelisco, como Buenos Aires ou Washington, é reconhecida pelo olhar do paulistano como a região do Parque do Ibirapuera. Não são os monumentos que identificam a cidade, ao contrário, é quem observa que projeta identidade naquilo observado. Essa identificação não se deve exclusivamente ao obelisco e ao que esse monumento representa, mas ao mero reconhecimento de uma paisagem aos olhos de seus cidadãos acostumados a vê-la. Este obelisco na paisagem representa por metonímia tão e somente o Ibirapuera e por conseguinte São Paulo. O obelisco da imagem marca para a cidade de São Paulo o Mausoléu do Soldado Revolucionário de 1932 que jaz em seu subsolo. Projetado por Galileo Emendabili, em 1947 na ocasião dos festejos do quarto centenário da cidade, é para São Paulo o seu mais alto monumento e marco oficial da Revolução Constitucionalista de 1932. Esta revolução exigia uma constituição para o governo golpista de Getulio Vargas após a Revolução de 1930 que marcava o fim da Política Café com Leite. A Revolução Constitucionalista de 1932 muito além de ser estritamente um levante legalista pode ser entendida também como uma manifestação movida pelo brio e poder paulistas abalados pelo golpe proferido por Getúlio que derrocou a hegemonia paulista na política nacional. Mais concretamente este monumento homenageia os soldados elevando-os ali à categoria de heróis. Ainda, o obelisco soleniza uma das avenidas que formam o eixo da cidade e leva em seu nome, 23 de maio, a data do conflito em que foram assassinados quatro estudantes envolvidos com o movimento revolucionário. De forma alegórica, o obelisco funciona como um monumento do orgulho paulista ao exaltar seus heróis e anunciar o futuro representado no complexo modernista do Ibirapuera projetado por Oscar Niemeyer e também inaugurado nas comemorações do quarto centenário da cidade. Contudo, este importante monumento aparece menor e pálido, desvanecido ao fundo, en-
quanto que a palmeira ocupa suntuosamente o primeiro plano impondo-se como tema da imagem. Embora aquela palmeira seja irrelevante para a cidade se comparada com o obelisco, ela é o destaque da cena, o que por sua vez nos provoca e assim se configura um problema para a leitura da imagem. O paralelismo das duas figuras nos induz a associá-las quanto aos seus significados. Neste sentido, em destaque na paisagem, a palmeira icônica ganha outra proporção podendo ser entendida na dimensão da imagem também como um monumento. Se a presença de uma palmeira solitária destoa daquilo que entendemos como algo significativo para ser tema de uma imagem, seu alinhamento com o obelisco e sua possível elevação à condição simbólica de monumento nos convoca na mesma medida a elaborar relações entre as duas figuras. Por se relacionar com o obelisco e estampar a capa de um catálogo de arte, esta figura em primeiro plano pode nos remeter à imagem da palmeira como um ícone modernista da brasilidade e assim a imagem aparentemente banal ganha outra dimensão. A palmeira alude à exuberância daquilo que é próprio do Brasil, a dizer, sua natureza exótica que lhe conferiria identidade principalmente aos olhos estrangeiros incapazes de reconhecer cultura em seu território. A palmeira involuntariamente se apresenta como um monumento fundado pela natureza que persiste embora sem intenção alguma de carregar consigo simbolismos. Desta forma, projetando à imagem o entendimento de que se tratam de dois monumentos, um real e intencional ao fundo e outro ocasional mais a frente, a imagem da capa passa a ser uma potente alegoria do Projeto São Paulo e anuncia aquilo que pretende-se discutir nesta pesquisa. Uma leitura possível seria entender que a iconografia do modernismo e de um projeto triunfante de modernidade sobrevivem ainda que enfraquecidos, desbotados como a imagem. Apresentam-se hierarquicamente no plano dois ícones modernos do Brasil e de São Paulo, respectivamente a identidade pela natureza e pela cultura. Nesta cena evanescente da cidade, como uma metáfora de nosso imaginário, persistem monumentos como imagens reminiscentes da cidade e do país que se misturam configurando uma visão confusa da cidade e em última instância de sua identidade. Enfim, esta miscelânea de imagens que parece se fundir revela a datação de projetos anacrônicos em nossos monumentos e cultura. Esta fotografia cria um ambiente soturno por retratar São Paulo desabitado e sob a luz de um céu acinzentado. A imagem destoa da metrópole agitada que conhecemos ao mesmo tempo em que remonta à idéia de terra da garoa com seu tempo chuvoso e acolhedor. O cair da tarde torna a palmeira ocultada pela sombra e o obelisco iluminado mas pálido, configurando assim uma visão insólita da cidade. A indeterminação da luz natural própria da passagem para a noite não mais revela enquanto que a luz artificial dos postes dramatizam o que deveriam esclarecer. O caráter de indefinição conferido por este tempo de transição com imagens imprecisas se acentua com o desbotamento da imagem o que de certo modo também a confere certa transcendência. Este período de transição do dia anuncia outra luz à cidade assim como à interpretação desta imagem. A palmeira e o obelisco destoantes e de algum modo autônomos, marcados pela luz ou sombra exacerbadas compõem uma imagem que se assemelha a uma colagem. Do mesmo modo, em suspenso à fotografia, outra imagem se configura composta pela trama de digressões na leitura aqui proposta. Esta nova leitura requalifica este cartão postal transformando-o em uma outra imagem, se entendermos como imagem não apenas por aquilo que plasticamente se configura estritamente como forma mas também e principalmente por aquilo que essas formas podem representar.
A imagem, porém não se encerra na capa, ela continua na contra capa e assim se revela na sua integridade. Ela estampa a majestosa imagem do Monumento às Bandeiras e finalmente percebemos qual é a o objeto principal da composição bem como sua natureza de cartão postal. O Monumento às Bandeiras projetado por Vitor Brecheret exalta a figura dos bandeirantes como uma metáfora heróica e folclórica do paulista. Curiosamente e por um feliz acaso na composição da imagem, mas não casualmente aproveitada nesta capa, a imagem tema do cartão aparece inversamente como contra capa do catálogo. Estas duas imagens, uma triunfante e heróica no verso, e outra confusa e soturna na frente envolvem esta pesquisa que pretende analisar uma tônica ficcional e frustrada para a constituição da identidade paulista.
Cartões Postais destinam-se a divulgar um local de forma geralmente espetacular e midiática prestando-se também como uma memória àquele que por ali passou. Escancaram portanto aquilo que por natureza identificam determinados locais, ou seja, seus monumentos. Geralmente tratam-se de vistas panorâmicas, visões estas dissimuladamente imparciais e abarcadoras que são supostamente próprias da História e não dos seus habitantes. No entanto este cartão postal não segue estes esquemas de representação. O cartão não seduz pela estandardização da cidade e pela exploração daquilo que é exuberante. Mostra uma cidade vazia, pouco atraente e observada sem grandes aspirações do ponto de vista real dos seus habitantes. Justamente por não cumprir sua atribuição de ser uma imagem como monumento este cartão é a imagem adequada para representar a pesquisa Projeto São Paulo. Assim como o modo que esse cartão postal trata a cidade, Projeto São Paulo pretende explorar a natureza contestatória e subjetiva própria dessa imagem em outras visões da cidade. No desenvolvimento do Projeto São Paulo debrucei-me sobre aquilo que representa a cidade, seja de ordem institucional, através de seus monumentos, seja de ordem estandardizada pelos seus cartões postais e guias de ruas. Em linhas gerais, Projeto São Paulo explora diferentes nuances da idéia de projeto. Em uma primeira leitura, este título pode identificar uma pesquisa cujo objeto é a cidade de São Paulo. Contudo, este primeiro entendimento mais evidente pode se desdobrar em outras interpretações. O termo projeto refere-se ao futuro, o que é coerente com interesse em investigar os monumentos de São Paulo que almejam forjar ao futuro determinada identidade e história à cidade. O monumento guarda em sua gênese um paradoxo, deliberadamente é erguido à posteridade com a missão de reportar-se ao passado. Dissimula-se na cidade como um documento não fictício para o futuro e conseqüentemente para a construção de sua história. Neste sentido este título explora outra acepção do termo projeto que pode ser entendido como
a arquitetura ficcional da identidade paulista e, por conseguinte a fatura de uma imagem para São Paulo. A esse monumento, a palmeira, somam-se diversos outros que incompletos, na instância do projeto ou ainda que realizados não são capazes hoje de representar a cidade. Antes de monumentos, são fantasmas, sombras de intenções remotas das mais diversas naturezas que hoje fracassam seu papel de ícones no sentido de não se comunicarem com quem originalmente pretendiam representar e dignificar. Essa imagem urbana e desabitada constituída essencialmente por três elementos inertes e arranjados de forma triangular sobre a superfície da cidade é mais coerente com a proposta de uma natureza morta que de uma paisagem propriamente. Mesmo tratando-se de uma fotografia, o espaço ali constituído é mais pictórico do que real. Deslocados e esparsos no espaço paulistano estes monumentos compõem um cenário no qual são incapazes de estabelecer lastros de identidade com o paulista que o percorre alienado de seus significados. Perpetuam-se fisicamente como edificações e não como marcos uma vez que pouco comunicam. Sucumbidos à frustração, os monumentos se confundem ao mobiliário urbano. Entre postes de iluminação, uma palmeira, um obelisco ou qualquer conjunto escultórico apresentam-se de forma equivalente na cidade e acabam por assumir quase que o mesmo valor que qualquer mobiliário urbano. O tempo complexo que rege a metrópole é ao mesmo responsável pela sedimentação de sua iconografia como também pelo desbotamento de sua imagem. Assim como é inexorável o esmaecimento da imagem, que sugere dizer respeito à ineficiência dos símbolos nela representados, também é a permanência concreta de seus significantes na forma de monumentos. Neste sentido, os versos de Guilherme de Almeida “Viveram pouco para morrer bem; morreram jovens para viver sempre” inscritos em alto relevo acima da entrada principal do Mausoléu do Soldado Revolucionário de 1932 parece se referir a sua própria condição de monumento. Ainda, as cores dominantes na imagem são o verde do canteiro da praça e da palmeira, o cinza do céu nublado e o amarelo da iluminação do Monumento às Bandeiras. Emblemas nacionais aparecem esmaecidos enquanto que o amarelo está representado pela luz que ilumina artificialmente um monumento que passou por tantos percalços para ser executado quanto outros que heroicamente sobrevivem em destaque na cidade mas à margem dos paulistanos. O repouso da cidade se alinha com o amortecimento das cores e, por conseguinte de sua comunicabilidade. A qualidade desta imagem antiga e assim desbotada potencializa o desvanecimento da cidade sugerido também pela névoa do horizonte. O desaparecimento daquilo que representa a cidade - seus monumentos, seu caos e horizonte repleto de edifícios - é tão reiterado que parece ser irremediável. Em decorrência, entende-se que determinados projetos para a constituição de sua identidade sejam naturalmente fadados ao mesmo apagamento. Essa profecia se cumpriu concretamente com palmeira não mais existe naquele canteiro, foi extirpada pela cidade. Resta apenas sua memória neste cartão postal e em alguns poucos que a notaram. Contudo, se entendermos a complexidade destes monumentos e os apreciadores da imagem se identificarem com os mesmos não por saudosismo, mas de forma crítica a partir do conhecimento do que eles representam, perceberemos que a cena da cidade não está desabitada mas repleta de significados que por ela pairam bem como neles estamos todos de algum modo presentes. Neste sentido, todos os esforços firmados tanto para consolidação como questinamento de seus símbolos compõe o escopo destes monumentos que são potentes problemas para o debate acerca da cidade onde vivemos.