Miguel Cravinho | Vila Franca do Campo | Maio de 2014
A ILHA DE SÃO MIGUEL NA BALEAÇÃO AÇORIANA História da Caça à Baleia nos Açores: dogmas, mitos e factos históricos… Deve falar-se de diversidade e complementaridade ou de exclusividade? É factor de união ou desagregação? Que papel deverá ter o Património Baleeiro no desenvolvimento da Região dos Açores?
Sendo os Açores um arquipélago de características geográficas e de povoamento diferenciado de ilha para ilha, é natural que a sua história comum tenha que ser obrigatoriamente contada à luz da diversidade e da complementaridade. No caso específico da Baleação Açoriana, sabendo que foi uma actividade económica marcada por influências interinsulares, será de admitir que será pertinente identificar aspectos que acrescentem dimensão arquipelágica a este notável património regional, valorizando-o, enquanto contributo para construção de uma Identidade comum. Seja pela evidência dos factos e da história, ou apenas pela necessidade de afirmativa de um Povo e de uma Cultura distintas, a caça à baleia nos Açores constitui um traço identitário demasiado valioso para ser considerado de forma afunilada e exclusiva. Assim sendo, e no caso particular da situação de São Miguel, será pertinente propormos um debate esclarecedor com as seguintes questões: O que fará sentido: “classificar” ou “monumentalizar” o que resta da Fábrica das Capelas? Pelo contrário, devemos reivindicar a reconstrução completa da fábrica, tal como foi outrora? Será um simples “marcador da paisagem” a melhor forma de preservar a Memória desta ilha? Que elementos essenciais poderão diferenciar São Miguel e acrescentar valor ao todo da regional? Nesta reflexão, pensamos que uma das formas mais interessante de São Miguel dar um contributo positivo seria através do estudo, preservação, recuperação, divulgação (e utilização!) do modelo de bote baleeiro micaelense. Este modelo constitui uma variedade no género, uma especificidade local com interesse regional, enquadrado numa dinâmica empresarial expansionista que se estendeu a Santa Maria e à Madeira e que caracteriza a baleação micaelense. Até há bem pouco tempo, pensava-se que existia apenas um modelo de bote, desenvolvido pelos mestres construtores navais Açorianos na construção destas embarcações tendo forte predominância o “modelo do Pico”, ilha reconhecida pela forte pujança na construção naval e na tradição baleeira.
Hoje, é aceitável afirmar-se que o bote baleeiro micaelense constitui uma variante do design tradicional, resultado de técnicas inovadoras, materiais e saber-fazer, que materializam especializações associadas a uma fase vigorosa da industrialização da caça à baleia nesta ilha. Por isso, importa preservar e recuperar para explicar “toda a verdade” sobre a história da baleação Açoriana. Neste contexto, impõe-se no plano da estratégia patrimonial, museológica e cultural, proceder ao estudo exaustivo do modelo de bote baleeiro micaelense, estabelecendo como prioridade a recuperação de botes construídos nesta técnica, assim como a construção de réplicas dos registos de botes micaelenses, preservando competências, técnicas tradicionais e saber-fazer local. Propomos assim um breve e descomprometido estudo comparativo utilizando como referências os botes baleeiros “SENHORA DE FÁTIMA” e “SANTA JOANA”. Pretendemos demonstrar a existência de um modelo de bote baleeiro diferente e apontar a sua importância no contexto do património baleeiro dos Açores, do Atlântico e do Mundo.
Reconstrução do bote baleeiro “SENHORA DE FÁTIMA” na oficina do mestre João Tavares, Ribeiras do Pico. Detalhe da montagem do tabuado em sentido horizontal, com recorte do «mata-juntas» nas cavernas.
Casco do “SENHORA DE FÁTIMA”, construído em 1945, nas Capelas, por conta da Armação Baleeira de Cristóvão da Mota Soares. Foi reconstruído em 2010, no âmbito do Programa de Apoio à Recuperação do Património Baleeiro Açoriano.
Montagem e afinação do leme. Ao longo do casco de tabuado horizontal, da roda de proa ao cadaste. São visíveis os orifícios dos rebites de cobre de fixação das peças.
em exposição no Parque Atlântico.
Bote baleeiro “SANTA JOANA”
Detalhe do casco em tabuado cruzado. O logaiéte está presente como elemento comum e identificador do bote baleeiro Açoriano.
O casco é construído num molde, no qual são colocadas as tábuas de madeira que vão da borda à quilha. Este trabalho exige enorme perícia e técnica, considerando que cada tábua é moldada para ter, não apenas o tamanho, mas também a forma adequada ao ângulo pretendido e às curvas do design.
No interior podem ver-se as tábuas colocadas no sentido contrário às do exterior do casco, o que lhe confere
flexibilidade estrutural. As duas “peles” são intermediadas por uma lona embebida em betume conferindo estanquicidade ao casco. NOTA: Segundo os antigos baleeiros, o design do bote micaelense seria mais performante à vela e a remos. Neste método de construção também são utilizados rebites de cobre.
O método implica «trabalhar as tábuas a quente» para ganhem flexibilidade e conseguir uma forma específica com contornos supostamente mais arrojados e benefícios hidrodinâmicos. Também se nota a ausência do alcatrate de reforço do talabardão, onde era aplicado um «filete» simples com a função de verdugo e elemento decorativo. Na pintura, era usado apenas o branco e o azul-marinho, no casco, e o cinzento no interior. O aparelho de vela seria semelhante ao modelo de bote baleeiro do grupo central, embora não tenha sido possível comprovar o facto, uma vez que as velas do bote baleeiro “SANTA JOANA” em exposição no Parque Atlântico não são originais, tendo sido fabricadas no Pico (informação retirada do painel informativo). Seria fundamental recuperar umas velas antigas/originais para estudar possíveis diferenças.
Entre muitos outros detalhes, o bote baleeiro micaelense caracteriza-se por elementos decorativos distintos: circulo de madeira em baixo relevo com desenho do olho do cachalote. A sua função é o escoamento da loca de proa (BB), e à ré, para passagem do cabo de recolha do leme (EB).
Detalhe das peças do tabuado cruzado do bote baleeiro micaelense. Este método supostamente permite aumentar a segurança em caso de abalroamento, uma vez que esta construção seria mais resistente aos embates dos cetáceos.
“SANTA JOANA”
“SENHORA DE FÁTIMA”
Outra característica distinta nos botes baleeiros micaelenses é a eliminação do pau da jiba na vela de estai [à frente]. Segundo antigos baleeiros das Capelas, isso permitia ganhar eficácia à Vela nas manobras de viragem e ganhar andamento mais junto à linha do vento. Por outro lado, permitia ao arpoador (que dirigia a jiba) folgar o punho da amura e arpoar a baleia mesmo à vela.
CONCLUSÕES: Tal como o cachalote, o bote baleeiro é um símbolo Açoriano. Constitui vestígio material no Património e Cultura, resultado de uma dimensão arquipelágica. Do design inicial, inspirado nos Beetle whaleboats americanos o bote baleeiro nos Açores ganhou novas formas, mais alongado, melhor adaptado às circunstâncias da navegação nos nossos mares e ao género de baleação costeira, artesanal. Ao longo dos tempos, revela um carácter evolutivo e adapta-se às circunstâncias inerentes às embarcações de trabalho. Transforma-se graças ao engenho dos construtores navais locais e dos seus utilizadores: os baleeiros. Neste processo evolutivo, incorpora um intrincado conjunto de conhecimentos, de artes e saberes, efeito da disponibilidade dos materiais, do acesso a técnicas e métodos construtivos, a tecnologias de fabrico, adequando-se a diferentes contextos da actividade nas ilhas. Esta variedade constitui partes de um todo mais vasto que é a Baleação no Atlântico. Resultado do ecossistema facilitador da preservação do património baleeiro regional, foram recuperados [na sua maioria construídos de novo] mais de 40 botes nos Açores.
Todos reconstruídos segundo as técnicas da construção naval, tendo como referencial exclusivo o bote do Pico. Mas observando minuciosamente o bote baleeiro “SANTA JOANA” abre-se uma nova possibilidade. Na ilha de São Miguel, o fabrico destas embarcações seguiu métodos construtivos diferentes, particularmente início da II Guerra Mundial, no arranque da fase mais pujante da industrialização da caça à baleia nos Açores. O tabuado «horizontal com mata-juntas» foi substituído pelo «tabuado cruzado», tornando a construção mais barata, mais rápida e o bote, supostamente, mais eficiente. Segundo relatos de antigos baleeiros das Capelas, este método permitiria melhorar a segurança “no trabalho com a baleia” em caso de abalroamento do cetáceo, uma vez que a embarcação seria mais resistente aos embates. Há quem realce ainda excecionais performances à Vela que este design permitiria (sobretudo em mar agreste); para além da possibilidade de “trancar a baleia à vela” apenas folgando o punho da amura porque tinha sido eliminado o «pau da jiba» ficando espaço livre para o trancador lançar eficazmente o arpão. Prova-se que o bote Açoriano, pela sua especificidade, deve constituir uma peça indispensável para a explicação da dinâmica evolutiva dos embarcações baleeiras Açorianas e para a história da baleação nos Açores, em geral. Neste contexto, a embarcação propriedade do Museu Carlos Machado desde 1998 que está em exposição no Parque Atlântico poderá ser fundamental neste processo, uma vez que o seu verdadeiro interesse não reside no simples facto de ser um bote baleeiro, nem tão pouco de ser um bote baleeiro da ilha de São Miguel. Aquilo que justifica a sua classificação como «Património Regional» é o facto de testemunhar o carácter evolutivo do design de construção dos botes; de confirmar uma especificidade no Arquipélago, facto que acrescenta interesse à baleação Açoriana no contexto mundial. Por outras palavras, pensamos que será errado falar-se apenas de um modelo de bote baleeiro açoriano, considerando que há pelo menos dois… ou mais se incluirmos outras «inovações» como o bote baleeiro a motor (Exp: “CINTRÃO”, propriedade do Clube Naval de Santa Maria) Esta situação justifica atenção especial para o estudo sistematizado do “SANTA JOANA”, permitindo o aprofundamento do conhecimento sobre o bote baleeiro de São Miguel, visando a salvaguarda deste modelo diferenciado, preservando as técnicas e métodos construtivos tradicionais de mestres carpinteiros navais, também na ilha de São Miguel. Seria uma oportunidade fantástica aproveitar uma intervenção de reparação [há muito necessária] no bote “SANTA JOANA”, que lhe permitisse recuperar capacidades de navegabilidade, mesmo que a opção da entidade proprietária passe por não voltar ao Mar. Esta seria a forma correcta de o preservar para o futuro. No plano da política cultural da responsabilidade da Administração Regional, com competência específica no domínio da preservação do Património Baleeiro dos Açores, devia ser prioridade absoluta a construção de uma réplica do bote “SANTA JOANA” que pudesse navegar e explicar ao público a variedade e complexidade da baleação nestas ilhas.
Em última análise, nem que seja pelo facto de não haver nenhum bote baleeiro (re)construído segundo o “método do tabuado cruzado” a navegar nos Açores, seria certamente um projecto do maior interesse, relevância pública e prestígio para todos os parceiros envolvidos, incluindo a Direcção Regional da Cultura, o Museu Carlos Machado, o Parque Atlântico e outras entidades privadas e públicas. Certo é que a diversidade e a complementaridade promovem o verdadeiro potencial da História da Baleação nos Açores porque o todo é incomensuravelmente maior do que a simples soma das partes! Vila Franca do Campo, Maio de 2014 Miguel Cravinho
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“O HOMEM E O MAR - A Participação Portuguesa na Baleação Americana”, João Gomes Vieira, Edição de Autor, 2003.
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“QUANDO E ONDE COMEÇOU A PESCA COSTEIRA À BALEIA NOS AÇORES?”, Arsénio Puim, artigo publicado no Jornal “A CRENÇA”, 8 de Março de 2013.
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“HÁ BALEIAS NO RIO ATLÂNTICO” Pedro Bicudo, artigo publicado no Jornal “A CRENÇA”, 01 de Novembro de 2013.
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QUANDO A ILHA PASSOU A NAVIO” Pedro Bicudo, artigo publicado no Jornal “A CRENÇA”, 13 de Dezembro de 2013.