Educação Física, educação e escolarização

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Omar Schneider Andrea Brandão Locatelli

Universidade Aberta do Brasil Universidade Federal do Espírito Santo

Educação Física

Licenciatura


Omar Schneider Possui Licenciatura Plena em Educação Física (2000) pela Universidade Federal do Espírito Santo, realizou o Mestrado (2003) e o Doutorado (2007) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História Política Sociedade. Foi professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe (UFS) entre os anos de 2006 e 2008. Atualmente é professor do Centro de Educação Física e Desportos, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), ministrando aulas na graduação e na pós-graduação (Mestrado em Educação Física). É membro pesquisador do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física (PROTEORIA), sediado no CEFD/UFES. Tem experiência na área da Educação e da Educação Física, pesquisando a História da Educação e da Educação Física no Brasil, a constituição da forma escolar, a circulação e a apropriação de modelos pedagógicos, as relações com os saberes e as teorias da Educação Física.


UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO Núcleo de Educação Aberta e a Distância

Omar Schneider Andrea Brandão Locatelli

Vitória 2013


UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO Presidente da República Dilma Rousseff

Reitor Reinaldo Centoducatte

Ministro da Educação Aloizio Mercadante

Diretora-Geral do Núcleo de Educação Aberta e a Distância (ne@ad) Maria Aparecida Santos Corrêa Barreto

Diretoria de Educação a Distância DED/CAPES/MEC João Carlos Teatini de Souza Climaco

Coordenadora UAB da UFES Teresa Cristina Janes Carneiro Coordenadora Adjunta UAB da UFES Maria José Campos Rodrigues Diretora Administrativa do ne@ad Maria José Campos Rodrigues Diretor Pedagógico do ne@ad Júlio Francelino Ferreira Filho

Diretora do Centro de Educação Física e Desportos Zenólia Christina Campos Figueiredo Coordenadora do Curso de Graduação Licenciatura em Educação Física – EAD/UFES Fernanda Simone Lopes de Paiva Revisor de Conteúdo Bernardo Sant’Anna Médice Firme Revisor de Linguagem Alina Bonella Design Gráfico LDI – Laboratório de Design Instrucional ne@ad Av. Fernando Ferrari, nº 514 CEP 29075-910, Goiabeiras Vitória – ES (27) 4009-2208

Laboratório de Design Instrucional LDI coordenação Heliana Pacheco José Otávio Lobo Name Letícia Pedruzzi Fonseca Priscilla Garone Ricardo Esteves Gerência Daniel Dutra

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) Schneider, Omar. S359e Educação física, educação e escolarização / Omar Schneider, Andrea Brandão Locatelli. - Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2013. 116 f. : il.

Editoração Filipe Motta

Capa Paulo Caldas Filipe Motta

1. Educação física. 2. Educação. 3. Escolarização. I. Locatelli, Andrea Brandão, 1969-. II. Título. CDU: 796

Impressão Gráfica e Editora GSA

Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-8173-070-7

Copyright © 2013. Todos os direitos desta edição estão reservados ao ne@ad. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Direção Administrativa do ne@ad – UFES. A reprodução de imagens nesta obra tem caráter pedagógico e científico, amparada pelos limites do direito de autor, de acordo com a lei nº 9.610/1998, art. 46, III (citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra). Toda reprodução foi realizada com amparo legal do regime geral de direito de autor no Brasil.




apresentação

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trajetórias dos autores

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introdução

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capítulo i

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histórias da escolarização capítulo ii

para a modernidade uma forma escolar moderna

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capítulo iii

a escolarização da infância

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capítulo iv

a educação e a (re)invenção da ginástica na modernidade

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capítulo v

escolarizaçao da educação física no brasil

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finalizando para reiniciar 105 o debate referências 108


apresentação


Prezados alunos, este fascículo busca compreender o

processo de escolarização da Educação Física como disciplina escolar…

– Pera aí, professor, isso já não foi discutido em outras disciplinas? Essa pode ser uma das questões a serem feitas, mas será que já foi respondida suficientemente? Estão claros para você os processos históricos que permitiram a Educação Física se tornar uma disciplina escolar? Calma, não precisa responder agora. Durante o curso essa questão será recolocada, mas por hora fica apenas como uma pergunta em aberto. A disciplina pretende ajudar a fazer a síntese dos processos históricos que procuraram incluir a Educação Física na forma escolar, conceito recente que busca distinguir a escola na Modernidade de outras instituições que, anteriormente a ela, também tinham como objetivo a educação da sociedade. Por falar em forma escolar, você acha que o processo de inclusão da Educação Física nesse espaço já está encerrado? Outra questão em aberto para discutirmos durante o curso. Nas disciplinas que vocês já realizaram, já devem ter lido ou ouvido falar sobre a escolarização, mas o que realmente é isso? O que é a escolarização? Essa palavra é muito utilizada para referenciar o processo de constituição da Educação Física como disciplina escolar. O que você acha disso? – Pera aí, professor, por que tantas perguntas? É necessário saber desses detalhes para que eu me forme? Em que esse conhecimento me ajuda no trabalho na escola ou em outros espaços sociais de atuação docente? Fará diferença na minha vida profissional saber ou não dos processos históricos de implantação da Educação Física como disciplina escolar? Ela já está implantada, existem leis que asseguram a sua permanência no Sistema Nacional de Educação. Pode ser, mas, como veremos no decorrer do curso, cada período histórico e cada sociedade possuem demandas bem específicas e, no caso da Educação Física, qual a sua demanda na contemporaneidade? – Pera aí, professor, mas o curso não está voltado para o debate histórico? O que tem a ver a contemporaneidade nesta discussão? Minha cabeça já está começando a doer.

Apresentação

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Calma, não tem como estudar a História e os acontecimentos como dados isolados; eles possuem repercussões que nos chegam até a atualidade. Não é possível estudar o presente sem conhecer a História e também não é possível conhecer a contemporaneidade e seus debates do porquê da Educação Física ser necessária na escola, se não for possível olhar para os homens no tempo, suas idiossincrasias, seus interesses, suas discussões, seus projetos e as soluções encontradas. Perceberam que temos muitas questões para responder, e este material que nos propomos a trabalhar com vocês nos ajudará a seguir um roteiro de interrogações, um questionário que buscará discutir e mapear os porquês da Educação Física no processo de escolarização da sociedade.

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Educação Física, educação e escolarização


trajet贸rias dos autores


Olá para todos. Meu nome é Omar Schneider e sou um dos autores deste material didático para a disciplina Educação Física, Educação e Escolarização e, assim como você, também já fui aluno do Curso de Educação Física da Ufes. Sou formado em Educação Física, no momento em que ainda tínhamos a licenciatura plena. Recordo que, no terceiro período, comecei a escrever um artigo que buscava ser historiográfico, sem saber muito bem ainda o que isso significava. Decidi sistematizar as discussões que eu vinha realizando em várias disciplinas no Centro de Educação Física e Desportos. O fruto desse esforço foi publicado em um livrinho com o título Sobre Educação e Educação Física, no ano de 1999. Na escrita desse texto, gastei uns dois anos e, quando consegui concluir, sentia-me muito bem, como se tivesse feito a síntese de todas as experiências de leituras que tive nas aulas desde que iniciei o curso, em 1996. O titulo que dei ao artigo foi O corpo: uma abordagem histórica1, em que tentava, com os recursos teóricos que possuía naquele momento, escrever sobre os processos de domesticação do corpo que se deram desde a Idade Média até o período contemporâneo. Uma longa duração de sujeição do corpo aos poderes da classe dominante, aos controles do Estado e às leis econômicas. Escrevi o texto sem muita orientação, sem que alguém apontasse os problemas do meu discurso e das minhas conclusões. Foi a produção de um texto sem empiria, sem trabalho de pesquisa, mas um esforço pessoal para dar sentido ao que eu vinha estudando na licenciatura. Nesse momento, apaixonei-me pela História e decidi que esse seria o caminho para criar as condições da minha formação. Ingressei, no ano de 1999, já no finalzinho do curso, na iniciação científica, participando de um grupo de pesquisa – Proteoria – voltado para a História da Educação Física, mas também com interesses em estudos sobre o cotidiano2. Nesse grupo, fui orientado a estudar as ideias de três personalidades que, entre o final do século XIX e o início do século XX, pensaram sobre a necessidade de se incluir a Educação Física nas escolas como matéria de ensino. O estudo foi denominado Intelectuais, Pedagogia e Educação Física: contribuições de Rui Barbosa, Manoel

1 SCHNEIDER, Omar. O corpo: uma abordagem histórica. In: FERREIRA NETO, Amarílio (Org.). Grupo PET: sobre educação e educação física. Vitória: CEFD/Ufes, 1999. p. 21-40. 2 Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física. Disponível em: <http://www.proteoria.org>.

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Educação Física, educação e escolarização


Bomfim e Fernando de Azevedo3 e se tornou minha monografia de final de curso. Nesse estudo, foi possível, de forma sistemática, ter o primeiro contato com as teorias da História, o que me permitiu vislumbrar outros horizontes e me preparar para realizar a pós-graduação. Na pós-graduação, cursada no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação, História, Política e Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, voltei meu olhar para a imprensa periódica da Educação Física, porque, na iniciação científica, auxiliei na catalogação das revistas que haviam circulado no Brasil do ano de 1931 até o ano de 20004, um amplo repertório do qual eu poderia me servir para desenvolver a minha dissertação de Mestrado. Em meio a tantas possibilidades, acabei optando por estudar o primeiro periódico comercial da Educação Física, lançado no ano de 1931, com o nome de Educação Physica. Busquei compreendê-lo como uma tática de luta pelo poder e que revelava as disputas sobre o que deveria ser a Educação Física escolar, em meio às estratégias dos militares que, naqueles anos, detinham os meios e a autoridade para definir o sentido da Educação Física5. Findo o estudo sobre a revista Educação Physica, decidi dar continuidade à minha formação, agora não mais estudando Educação Física, mas os debates que, entre os anos de 1880 e 1882, anunciavam no Brasil uma mudança social que já estava sendo refletida nas propostas de reformas da instrução pública que as províncias estavam realizando naqueles anos que antecediam o fim do Segundo Império e o início da circulação das ideias republicanas6. Ideias estas que já propunham a organização da 3  SCHNEIDER, Omar; FERREIRA NETO, Amarílio. Intelectuais, pedagogia e educação física: contribuições de Rui Barbosa, Manoel Bomfim e Fernando de Azevedo. In: FERREIRA NETO, Amarílio (Org.). Pesquisa histórica na educação física. Vitória: Proteoria, 2001. v. 6, p. 131-156. 4  FERREIRA NETO, Amarílio et al. Catálogo de periódicos de educação física (19302000). Vitória: Proteoria, 2002. 5 SCHNEIDER, Omar. A revista Educação Physica (1930-1940): estratégias editoriais e prescrições educacionais. 2003. 342 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. 6  SCHNEIDER, Omar. A circulação de modelos pedagógicos e as reformas da instrução pública: atuação de Herculano Marcos Inglês de Sousa no final do Segundo Império. 2007. 306 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.

Apresentação

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Educação no Brasil com base em uma Pedagogia Moderna espelhada na construção dos Estados nacionais europeus. Desde o ano de 2009, venho oferecendo a disciplina Educação Física, Educação e Escolarização no Curso de Licenciatura em Educação Física da Ufes e, nesse breve período, aproveito a oportunidade para contribuir com a formação dos estudantes e, ao mesmo tempo, procuro sistematizar as minhas experiências de ensino e pesquisa. São essas vivências que busco organizar neste material didático, que espero possa contribuir com a formação dos alunos do Curso de Educação Física. Bom estudo para todos.

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Educação Física, educação e escolarização


Oi, pessoal. Meu nome é Andrea Brandão Locatelli e também sou professora de Educação Física. Fiz formação inicial na Universidade Federal do Espírito Santo e terminei a Graduação em Licenciatura Plena no ano de 1993. Esse período no curso de formação profissional de professores do Centro de Educação Física e Desportos/CEFD/Ufes foi, para mim, marcado por experiências importantes. Naquela época, as aulas eram conduzidas, principalmente, por professores com significativa vivência da prática em uma modalidade do esporte, o que lhes garantia extrema admiração pela maioria dos alunos. De fato, os saberes daqueles professores constituíam-se em grande parte por suas incursões nas modalidades esportivas e suas perspectivas de trabalho estavam relacionadas com a lógica dos lugares onde esses saberes foram produzidos, em treinos e em clubes etc. As reflexões necessárias à compreensão de uma constituição profissional – especialmente na área escolar, à qual me dediquei mais nos anos seguintes ao término do curso – alcançaram pouco aquilo que ocorria de fato nas escolas naquele período. Mas, ainda assim, foi também por meio das relações com aqueles saberes que pude desenvolver minha profissionalidade e profissionalismo na área. Desse modo, posso perceber melhor agora, e não tanto naquele momento, que os saberes da área se movimentavam seguindo um conjunto de representações sobre o próprio sentido da Educação Física dentro ou fora da escola. O nosso campo de trabalho compõe-se de diversos saberes e fazeres que precisam ser enfrentados e considerados na organização das práticas pedagógicas. Fui aluna do curso de especialização – também no CEFD/Ufes – em 1994 e percebi que mudanças curriculares e outras perspectivas de trabalho na Educação Física vinham orientando aquela formação. Dediquei-me a escrever sobre os conhecimentos sistematizados socialmente na área, tema sobre o qual, de algum modo, já vinha refletindo e que contribuiu para meu desenvolvimento profissional como professora na Prefeitura Municipal de Vitória, desde o ano de 1995. No ano de 2004, ingressei no Mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGE/Ufes, orientada pelos estudos que desenvolvia no Instituto de Pesquisas em Educação e em Educação Física Proteoria/CEFD/ Ufes, desde 2001, e por minhas experiências como professora. Naquele momento minha relação com a prática escolar, com o grupo de pesquisa e com a pós-graduação me permitiu tematizar, na escrita da dissertação,

Apresentação

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os saberes da Educação Física escolar produzidos no contexto do Estágio Supervisionado, que são desacomodados e ressignificados pelos diferentes sujeitos nele envolvidos, bem como pelas possíveis relações interinstitucionais entre universidade e escola básica. A prática colaborativa foi uma metodologia utilizada naquela pesquisa e me fez perceber e tratar das dificuldades e soluções para se estabelecer um trabalho entre instituições, principalmente no que se refere ao processo de formação dos envolvidos, que precisa permanentemente estar atenta às dinâmicas de significação dos conteúdos da área da Educação Física. Também tive a oportunidade de ser professora no ensino superior e, nessa experiência, melhor relacionei os diferentes saberes da área que circulam em variados espaços de formação. Tratar na escola básica daquilo que se lê, escreve e discursa, assim como refletir, como professora do processo de formação inicial, sobre a organização do trabalho pedagógico na escola, não é uma tarefa fácil, pois é possível perceber o quanto nossa área ainda precisa avançar para que consigamos mobilizar e dar sentidos aos seus saberes. Em 2012 concluí o Doutorado em Educação, tendo feito novas opções de estudos em relação ao que já havia pesquisado. Estudei a constituição histórica dos grupos escolares capixabas, em seu aspecto arquitetônico, procurando compreender como a experiência local (Estado do Espírito Santo) foi possível de ser produzida em suas singularidades, considerando que esse modelo de escola primária vinha sendo implantado no Brasil (1893) como um dos elementos centrais que dariam visibilidade à República. O estudo realizado no Doutorado se insere na linha de Formação de Professores do PPGE/Ufes. Em sua elaboração, pude ampliar compreensões sobre a formação profissional por meio do exercício de outras metodologias e áreas de conhecimento, na problematização das questões que historicamente vêm impactando na constituição do campo da educação capixaba. A produção deste material didático, em conjunto com o professor Omar Schneider, constitui parte das relações que pudemos experienciar, principalmente por sua trajetória de orientador dos estudos no grupo de pesquisa Proteoria. Esperamos poder colaborar com problematizações sobre o tema tratado em suas formações. Para todos bom trabalho!

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Educação Física, educação e escolarização


introdução


Prezados alunos,

perceberam que não possuímos problemas em chamá-los dessa forma? Mesmo podendo usar a palavra estudantes para nos referirmos a vocês, preferimos usar aluno. Uma atitude prepotente? Não, mas uma tentativa de preservar o sentido de uma expressão muito interessante e que revela a condição daqueles que buscam o conhecimento estudando, aprendendo ou sendo instruído. Existe uma tendência de afirmar que o termo aluno é pejorativo, mas pejorativo em qual sentido? Dizem que ele significa sem luz ou a falta dela. Você já deve ter lido ou ouvido essa explicação em muitos lugares e momentos, então vamos aproveitar essa questão para iniciar o nosso projeto de estudos. O conhecimento histórico possui essa função, ele busca tratar das especificidades das práticas, observando como elas se desenvolveram nas suas continuidades e descontinuidades, o que permanece e o que muda na História, sem perder de vista o lugar das práticas em um contexto mais global. O micro e o macro devem estar em constante diálogo para que o conhecimento estudado ou produzido faça sentido. Essa será a forma como pretendemos desenvolver este projeto de estudos, com muitas perguntas para que possamos desnaturalizar algumas afirmações, recuperar noções originais e mesmo propor novas interpretações.

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Educação Física, educação e escolarização

Para você, caro leitor, o que significa a palavra aluno? Como primeira tarefa, procure em dicionários etimológicos, enciclopédias e mesmo na internet o significado da palavra aluno. Ela significa mesmo falta de luz? Sobre qual metáfora a palavra aluno faz alusão? Escreva sobre o que você encontrou e esclareça se esses achados estão de acordo com o que você sabe.


Sem problematizar a História, ela vira ficção ou boato, por isso é preciso fazer pesquisa, olhar sempre com desconfiança as verdades para que seja possível questionar o que se sabe, uma vez que as conclusões nesse campo nunca são definitivas. Por isso é preciso utilizar fontes escritas, documentos iconográficos, utensílios culturais/utilitários, ou mesmo reminiscências da memória, distinguindo os limites e as possibilidades do que podem transmitir em relação ao saber histórico. Tudo que o homem produziu/produz deve informar sobre o próprio homem. Essa produção se constitui em provas do que já foi feito e sem elas não existe história da arte, da filosofia, da economia, da política, da ciência, da educação, da escolarização ou da Educação Física etc.

Então, por que estudar a história da escolarização da Educação Física? Essa é uma das primeiras perguntas que temos que fazer. Para tematizar essa questão, vamos pensar seguindo as intuições sobre passado, presente e futuro descritas na letra da música Sêmen7, do grupo Mestre Ambrósio. O que esse verso lhe diz? Pense na problematização apresentada pelos autores que, de forma poética, sublinham o conhecimento histórico como condição para fugir do presentismo e relate, seguindo o ritmo dessas ideias, por que temos que saber o lugar da Educação Física no processo de escolarização da sociedade.

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Como posso saber a minha idade Se meu tempo passado eu não conheço Como posso me ver desde o começo Se a lembrança não tem capacidade Se não olho pra trás com claridade Um futuro obscuro aguardarei Mas aquela semente que sonhei É a chave do tesouro que eu tenho Como posso saber de onde venho Se a semente profunda eu não toquei? (SÊMEN, Mestre Ambrósio)

7 Composição de Sérgio Veloso (Siba) e Bráulio Tavares, registrada no Compact disc Fuá na Casa de Cabral (1998) pela banda pernambucana Mestre Ambrósio.

Introdução

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capítulo iii

a escolarização da infância


A invenção

da escolarização como uma necessidade social para a consolidação do mundo moderno convive com outras invenções. Uma delas é o sentimento de infância. Conforme Áries (1981), a criança começa a ter a sua imagem representada separadamente do adulto somente a partir do final do século XVI e início do XVII: “A criança agora é representada sozinha e por ela mesma: esta foi a grande novidade do século XVII” (ÁRIES, 1981, p. 25). Essa nova expressão da criança, traduzida como infância, está vinculada às mudanças sociais e econômicas, com o desenvolvimento das relações de produção, comercialização, crescimento urbano, formação dos Estados nacionais e o avanço do conhecimento da Medicina e da Pedagogia. A baixa expectativa de vida das crianças era uma característica da Idade Média, portanto não valia a pena investir na instrução desses seres frágeis em um período assolado pelas pestes, em que a Medicina ainda não tinha se desenvolvido, acreditando que as doenças possuíam origem sobrenatural ou eram adquiridas por meio dos miasmas, odores fétidos provenientes das decomposições de materiais orgânicos. Antes de ser solidificado um sentimento de infância, segundo Áries (1981), não se dispensava um tratamento especial para as crianças, o que tornava sua sobrevivência difícil. Áries (1981), citando Moliére, grande gênio do teatro, contemporâneo daquela época, afirma que a criança muito pequena, demasiado frágil ainda para se misturar à vida dos adultos, “não contava”, porque podia desaparecer. A morte de crianças era encarada com naturalidade: “[…] perdi dois filhos pequenos, não sem tristeza, mais sem desespero”, afirmava Montaigne. No século XVI, as crianças começam a vestir-se como tais. Ariès (1981) sugere duas leituras em perspectivas para a explicação desse fenômeno: a criança estava misturada com os adultos e, portanto, era necessário diferenciá-la do adulto; e os pintores gostavam de representar as crianças de modo mais pitoresco. A partir desse ponto é que o sentimento de infância é demonstrado. A criança está inserida na sociedade não pelo que ela é, mas pelo que representa para o futuro. A afetividade, a especialização de um traje para os meninos e a incorporação de castigos corporais entre as crianças formaram os primeiros sentimentos de infância e introduziram os primeiros mecanismos de distinção entre a criança e o adulto, levando ao início do reconhecimento da infância como um estágio de desenvolvimento merecedor de tratamento especial. A criança, então, precisava ser protegida, guardada e vigiada, moralizada, higienizada e educada fisicamente, tanto para ficar quieta, quanto para se movimentar de forma ordeira sob a

Capítulo III – A escolarização da infância

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Esses são números bem expressivos que buscam apresentar o investimento feito em seu governo sobre a educação popular que, nos ideais republicanos, seria a forma para retirar o Brasil do atraso econômico e inseri-lo na sociedade moderna e industrializada. Para tanto, há o investimento na construção ou na adaptação de casas à forma escolar, com sua arquitetura própria de grupo escolar e utensílios para o ensino. Em função das “[…] adaptações de prédios e acquisição de livros, objectos de estudos e mobiliário” (MONTEIRO, 1908, p. 21). A reforma realizada teve custos altos. As escolas capixabas “[…] estavam, em geral, desprovidas de tudo: não obedeciam a programma ou ao methodo, não tinham livros, moveis, objectos escolares, de accôrdo com as exigencias do ensino moderno” (MONTEIRO, 1908, p. 21). Entre essas exigências, como já foi discutido, estava a construção de prédios adequados, para receber o ensino seriado, com boa iluminação, circulação de ar e condições higiênicas. Após a reforma arquitetônica, o Espírito Santo passou a ter o seu primeiro grupo escolar37, chamado de Gomes Cardim, em homenagem ao inspetor-geral de Instrução Pública, professor Carlos Alberto Gomes Cardim, responsável pela reorganização da Instrução Pública.3839

Imagem 24 – Reforma do Grupo Escolar Gomes Cardim38

Imagem 25 – Resultado da reforma Grupo Escolar Gomes Cardim39

Como símbolo da República, ele não ocupou a região central, possibilitando visibilidade às ações de intervenção do novo governo, pois o espaço já se encontrava ocupado pela Escola Modelo Jerônimo Monteiro 37  Sobre a criação dos grupos escolares no Espírito Santo, ver a tese de Locatelli (2012), que trata dos espaços e tempos dessa instituição em terras capixabas. 38  Fonte: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. 39  Fonte: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

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Educação Física, educação e escolarização


e a Escola Normal Pedro II, instaladas ao lado do Palácio do Governo, em local de ampla visibilidade, que faziam parte da reforma arquitetônica e urbanística da cidade, chamada de Plano de Melhoramentos e de Embelezamento de Vitória, ou Obra Capixaba Maior, que se desenvolveu entre os anos de 1908 e 1912. Essa reforma urbanística, que envolveu o alargamento da Av. Jerônimo Monteiro, a implantação de bondes elétricos e a construção do cais do porto, tinha como objetivo materializar os anseios dos governos anteriores de limpar, sanear, construir belos prédios, abrir praças, ajardinar e embelezar a cidade, enfim de tornar a cidade moderna.4041 Nesse processo, o Palácio do Governo tem suas linhas coloniais alteradas, seguindo um padrão estético mais de acordo “com as linhas de arquitetura moderna”, inspirado nas reformas que outros Estados estavam realizando para eliminar os resquícios do Império e demonstrar para todos que o Brasil vivia um novo momento.

Imagem 26 – Av. Jerônimo Monteiro antes do alargamento40

Imagem 27 – Av. Jerônimo Monteiro depois do alargamento41

A reforma da Instrução Pública também fazia parte dessas preocupações, pois, para habitar uma cidade embelezada, saneada, higienizada e civilizada, exigia-se um cidadão que conseguisse se comportar, controlar os impulsos e, de forma civilizada, utilizar o espaço urbano moderno que foi construído, ou seja, um homem física e moralmente disciplinado para viver em uma cidade moderna. Acreditava-se que, com o acesso à escolarização, o homem novo republicano iria se formar em solo capixaba. Para tanto, assim como 40  Fonte: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. 41  Fonte: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

Capítulo V – Escolarização da Educação Física no Brasil

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Andrea Brandão Locatelli Possui Licenciatura Plena em Educação Física (1993), Mestrado (2007) e Doutorado (2012) em Educação, na linha de pesquisa Cultura, Currículo e Formação de Educadores, do Programa de PósGraduação em Educação na Universidade Federal do Espírito Santo. Atuou como professora de educação física do ensino fundamental na rede municipal de ensino de Vitória, ES (1995 a 2010); e do ensino superior nas instituições Escola São Francisco (ESFA) Santa Teresa, ES (2007 a 2009) e Universidade de Vila Velha (UVV), Vila Velha, ES (2009-2013). Atualmente coordena a área de Educação Física na Secretaria Municipal de Educação/ SEME, Vitória, ES; e os projetos da educação de tempo integral neste município. É pesquisadora do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física (PROTEORIA), sediado no Centro de Educação Física/ UFES, com experiência em pesquisas voltadas para a formação de professores, relações interinstitucionais entre universidade e escola básica e história da educação no Espírito Santo, com foco na constituição histórica da arquitetura dos grupos escolares.


9 788581 730707

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