RITOS REVISTA DA AMARN * ANO VI * Nº 6 * DEZEMBRO 2010
SEDE DA AMARN Conquista de 2010
ARTIGO Juiz Cícero Macedo escreve sobre um gênio da raça PROJETOS ESPECIAIS O lado social da justiça
// EDITORIAL CONSELHO EXECUTIVO Presidente Juiz Azevêdo Hamilton Cartaxo Vice-Presidente Institucional Juiz Mádson Ottoni de A. Rodrigues Vice-Presidente Administrativo Juiz Luciano dos Santos Mendes Vice-Presidente Financeiro Juiz Marcelo Pinto Varella Vice-Presidente de Comunicação Juiz Cleofas Coelho de A. Júnior Vice-Presidente Cultural Juiz Odinei Wilson Draeger Vice-Presidente Social Juiz Jorge Carlos Meira Silva Vice-Presidente dos Esportes Juiz Cleanto Fortunato da Silva Vice-Presidente dos Aposentados Juiz Francisco Dantas Pinto Coordenador da Região Oeste Juiz Breno Valério F. de Medeiros Coordenadoria da Região Seridó Juiz André Melo Gomes Pereira CONSELHO FISCAL Juíza Denise Léa Sacramento Juiz Fábio Antônio C. Filfueira Juiz Fábio Wellington Ataíde Alves Juiz João Eduardo R. de Oliveira Juíza Leila N. de Sá Pereira Nacre Juiz Luiz Alberto Dantas Filho Juiz Marcus Vinicius P. Júnior Juíza Rossana Alzir D. Macêdo Juíza Sulamita Bezerra Pacheco de Carvalho
EDITORA EXECUTIVA Adalgisa Emídia DRT/RN 784 PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Firenzze Comunicação Estratégica (84) 3344-5240 FOTOS Elpidio Júnior FOTO CAPA Ricardo Junqueira
Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte Condomínio Empresarial Torre Miguel Seabra Fagundes R. Paulo B. de Góes, 1840 Salas 1002, 1003 e 1004. Candelária - Natal-RN. CEP: 59064.460 Telefones: (84) 3206.0942 3206.9132 | 3234.7770 CNPJ: 08.533.481/0001-02
Caros Colegas, Como fruto dos excelentes trabalhos de nossa nova assessora de imprensa, Adalgisa Emídia e do Vice-Presidente Cultural Odinei Draeger, apresentamos a vocês uma RITOS com nova cara. A revista, neste ano, veio mais jovial, informativa e também mais “relax”. Neste número, temos artigos jurídicos de Flávio Amorim e de Peterson Fernandes. São dois trabalhos de excelente nível, que são uma amostra da qualidade de nossos magistrados. Depois disso, trazemos a vocês um pouco mais de informações sobre nossa próxima Presidente do Tribunal de Justiça, Desa. Judite Nunes, que nos falou um pouco de si e de seus projetos para a gestão do Tribunal. Nas artes, temos o nosso fiel contista Assis Brasil. Paulo Maia nos brinda com a sensibilidade de seus poemas e Rosivaldo, sempre ele, nos fala da trajetória de Davi Lorso. Fora disso, conheça nosso músico e especialista em Noel Rosa, Cícero Macedo. Odinei Draeger, ou melhor, o incansável Odinei Draeger, reincide na prática de nos trazer temas interessantes e faz brilhante ensaio sobre Sir Thomas More, estadista, advogado, escritor e filósofo inglês. Guilherme Pinto, em trabalho do mesmo naipe, nos fala da jurisdição na Grécia de Homero. E mais, celebramos nesta RITOS a realização do “sonho da casa própria” com a aquisição de nossa Sede Administrativa, confortável, funcional, digna, que representou a coroação da ótima gestão de Mádson Ottoni como Presidente da AMARN. Por fim, a RITOS traz colunas sobre prazeres, do intelecto e da boa mesa. Não deixe de ler nossa dica de filme para ver no recesso. Dividi com vocês, também nesta edição, dicas gastronômicas sobre dois excelentes restaurantes, o Cruzeiro do Pescador na Praia da Pipa e o Rock Dog Café, em Natal. Não sou bom jornalista, mas afianço os restaurantes. Assim amigos, entregamos esta nova RITOS, uma revista mais “light” e dinâmica, que ambiciona ser lida por você nos seus momentos de merecido descanso. Deguste-a. Em 2011 saiba que nós da AMARN estaremos ao seu lado, para tudo que precisar. Juiz Azevêdo Hamilton Presidente da AMARN
// SUMÁRIO
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HISTÓRIA
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Desembargadora é a primeira mulher a assumir a presidência do TJRN
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CAPA Nova sede da AMARN Moderna e funcional
CONTOS
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GASTRONOMIA Recantos de charme e boa comida
As histórias da Rua Américo Barbalho, no Alecrim, por Assis Brasil
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HOMENAGEM Odinei Draeger faz um relato do juiz e humanista Thomas More
// ARTIGO
A tutela de urgência na nova lei de mandado de segurança Flávio Ricardo Pires de Amorim Juiz de Direito da comarca de Tangará/ RN (2ª Entrância)
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Discricionariedade da decisão judicial. 3. A natureza da Liminar em mandado de segurança. 4. Pressupostos para o deferimento da medida liminar. 5. A contracautela. 6. A concessão de ofício pelo juiz. 7. As restrições legais à concessão da liminar e sua constitucionalidade. 8. Natureza jurídica da decisão liminar e o recurso cabível. 9. A perda da eficácia da medida pela denegação do mandamus e a caducidade da liminar. 1. INTRODUÇÃO O mandado de segurança é ação constitucional com previsão nos incisos LXIX (individual) e LXX (coletivo) do artigo 5º. É instrumento que visa proteger direito líquido e certo do impetrante contra violação ou ameaça de lesão1 praticada por ato comissivo ou omissivo de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. O direito líquido e certo é aquele comprovado de plano, através de prova documental denominada prova pré-constituída, não autorizando qualquer dilação probatória na comprovação da violação ou ameaça ao direito do impetrante2. 1 Art. 5º, XXXV, CF/88: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 2 Sobre o conceito de “direito líquido e certo”, o Ministro Costa Manso, citado por Celso Agrícola Barbi, prelecionou: “Entendo que o art. 113, nº 33, da Constituição empregou o vocábulo ‘direito’ como sinônimo de ‘poder ou faculdade’, decorrente da ‘lei’ ou ‘norma jurídica’(direito subjetivo). Não aludiu à própria ‘lei ou norma’ (direito
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A Lei nº 12.016 de 07 de agosto de 2009, apesar de anunciada como a nova lei de mandado de segurança, ainda que tenha trazido inovações ao tema mandado de segurança coletivo, reuniu num único texto diversas leis que tratavam do assunto (Lei nº 1.533/51, 4.348/64, 5.021/66 e 8.437/92), aglutinando, ainda, os vários posicionamentos já sumulados do STF e STJ. O texto legal unificado prevê a possibilidade de contracautela, facultando ao julgador exigi-la no momento de deferir a medida, além de trazer expressamente as restrições à concessão da tutela de urgência já enunciadas por outras leis, cuja constitucionalidade tem-se debatido. 2. DISCRICIONARIEDADE DA DECISÃO JUDICIAL O artigo 7º, III, da Lei n° 12.016/09, estabelece que “ao despachar a inicial o juiz ordenará que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica”. Surge num primeiro momento, ao analisar o pedido liminar, se o ato do Juiz é discricionário ou não. Para alguns3, ineobjetivo). O remédio judiciário não foi criado para a defesa da lei em tese. Quem requer o mandado defende o ‘seu direito’, isto é, o direito subjetivo reconhecido ou protegido pela lei. O direito subjetivo, o direito da parte, é constituído por uma relação entre a lei e o fato. A lei, porém, é sempre certa e incontestável. A ninguém é lícito ignorála, e com o silêncio, a obscuridade, a indecisão dela não se exime o juiz de sentenciar ou despachar (Código Civil, art. 5o, da Introdução). Só se exige prova do direito estrangeiro ou de outra localidade, e isso mesmo se não for notoriamente conhecido. O fato é que o peticionário deve tornar certo e incontestável, para obter mandado de segurança. O direito será declarado e aplicado pelo juiz, que lançará mão dos processos de interpretação estabelecidos pela ciência para esclarecer os textos obscuros ou harmonizar os contraditórios. Seria absurdo admitir se declare o juiz incapaz de resolver ‘de plano’ um litígio, sob o pretexto de haver preceitos legais esparsos, complexos ou de inteligência difícil ou duvidosa. Desde, pois, que o fato seja certo e incontestável, resolverá o juiz a questão de direito, por mais intrincada e difícil que se apresente, para conceder ou denegar o mandado de segurança”. (Barbi, Celso Agrícola. Do Mandado de Segurança. Página 50. Forense. 2000. Rio de Janeiro) 3 “Nas palavras de Eros Grau: ‘O que se tem erroneamente denominado de discricionariedade judicial é poder de criação de norma jurídica que o intérprete autêntico exercita formulando juízos de legalidade (não de oportunidade)’. Celso Antônio Bandeira de Mello sintetiza: “Quando avalia o pedido para outorgar ou denegar uma liminar, o órgão jurisdicional não se pergunta se convém ou não outorgá-la, mas se, de direito, o requerente faz a ela jus, isto é, se estão ou não preenchidos os pressupostos de deferimento. Se estiverem, não há senão concedê-la. Se não estiverem, não pode deferi-la”. José Roberto Santos Bedaque afirma: “Se não é pacífica a análise da questão em matéria probatória, é absolutamente certo que quanto às liminares (mandados de segurança, cautelares, antecipatórias de tutela) não há discricionariedade alguma. A dificuldade do juiz, por certo, é fática, ou seja, restringe-se a averiguar se existe ou não o fumus boni iuris e
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xiste discricionariedade na atividade jurisdicional, já que falece ao juiz capacidade de escolha4. Assim, a liminar não é uma liberalidade da Justiça; é medida acauteladora do direito do impetrante, que não pode ser negada quando ocorrem pressupostos como, também, não deve ser concedida quando ausentes os requisitos de sua admissibilidade5. Enfim, nada há de discricionário na atividade que o juiz exerce quando decide acerca da concessão ou não de uma liminar6. Sérgio Nojiri, a contrario sensu, ensina que os pedidos de medida liminar, nos casos de difícil solução (além de complexos, sem orientação jurisprudencial), comportam mais de uma solução. Somente em casos de fácil resposta (evidentes ou com fortes precedentes de Cortes Superiores) restringem a margem de liberdade do juiz7. E prosseguindo diz que ao apreciar o pedido liminar o juiz terá opções de escolha, mormente nos casos difíceis, para aferir se relevante o fundamento e se o ato impugnado pode resultar a ineficácia da medida. E essa aferição comporta um juízo discricionário na avaliação dos pressupostos necessários para a concessão da medida8. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, citando o voto do Ministro Marco Aurélio, aponta para discricionariedade judicial quando ressalta que “a atuação do magistrado ocorre no campo da livre discrição e independentemente do pedido. Aprecia as circunstâncias reveladas pela inicial e, verificando o cono periculum in mora. Mas definido o fato (e a tarefa é interpretativa), estará o juiz obrigado a conceder a liminar (em caso positivo) ou a negá-la (caso não estejam presentes os requisitos para sua concessão). Cognição sumária, portanto, não leva à discricionariedade, não sendo viável imaginar que o juiz possa escolher, a seu critério, quando convém deferir liminarmente alguma tutela (cautelar ou antecipatória). Os critérios, portanto, são legais e podem ser aferidos em instância superior.” (Nojiri, Sérgio. Aspectos Polêmicos e Atuais do Mandado de Segurança. XXXI – Discricionariedade Judicial na Apreciação de Pedido de Medida Liminar em Mandado de Segurança. Página 776/779. RT. 2002. São Paulo) 4 Figueiredo, Lúcia Valle. Mandado de Segurança. Página 130. Malheiros Editores. 2002. São Paulo. 5 Meirelles, Hely Lopes. Mandado de Segurança. Página 78. Malheiros Editores. 2004. São Paulo. 6 Wambier, Tereza Arruda Alvim. Aspectos Polêmicos e Atuais do Mandado de Segurança. XXXII – Ainda Sobre a Recorribilidade da Liminar em Mandado de Segurança. Página 799. RT. 2002. São Paulo. 7 Aspectos Polêmicos e Atuais do Mandado de Segurança. XXI – Discricionariedade Judicial na Apreciação de Pedido de Medida Liminar em Mandado de Segurança. Página 785. RT. 2002. São Paulo. 8
Nojiri, Sérgio. Op. cit., p. 786.
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curso das condições legais – relevância do pedido e possibilidade de a concessão da segurança vir a cair no vazio -, determina a suspensão do ato. A doutrina é uníssona no sentido de a concessão, ou não, da liminar ser faculdade do juiz. Examinando a peça apresentada pelo impetrante, atua em campo onde domina o subjetivismo, sobressaindo a formação humanística e profissional que possua.”9 3. A NATUREZA DA LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. Abordando o tema sobre a natureza do provimento liminar em mandado de segurança, percebe-se a divergência formada entre os autores, quanto ao aspecto cautelar, provisório, preventivo ou de antecipação dos efeitos da tutela. Adhemar Ferreira Maciel, citado por Francisco Antonio de Oliveira, ressalta que para maioria a medida teria natureza cautelar10 e adverte que o juiz concede a liminar tão-só para garantir o possível (não provável) direito11. Realça, ainda, que Celso Agrícola Barbi, fiel a seu ponto de vista, ou seja, de que a liminar no mandado de segurança tem natureza cautelar, advoga a possibilidade de o juiz aplicar os arts. 804 e 811 do Código de Processo Civil, exigindo do impetrante uma contracautela12. Sobre o assunto, Carmem Lúcia Antunes Rocha ensina que a natureza da medida liminar é acautelatória da eficácia plena da decisão proferida no mandado de segurança e não a antecipação precária do pedido formulado na ação13. Galeno Lacerda, citado por Lúcia Valle de Figueiredo, diz que a liminar em mandado de segurança assume nítida feição de cautela, ou seja, de resguardo do imediato e provisório mediante suspensão do ato, porém, mesmo entre a cautelar e a liminar em mandado de segurança ocorrem diferenças, já que nesse o provimento se reveste de caráter imperativo. Por outro lado, na cautelar não se exige a liquidez e certeza, bastando a
4. PRESSUPOSTOS PARA O DEFERIMENTO DA MEDIDA LIMINAR. Antes da análise dos pressupostos para concessão da liminar insertos no art. 7º, III, da Lei nº 12.016/09, deverá o juiz verificar a existência dos pressupostos normais de toda e qualquer ação, analisando ainda os pressupostos específicos de admissibilidade do writ: a) não ocorrência do prazo decadencial de 120 dias da edição do ato que pretende neutralizar; b) a existência de ato (omissivo ou comissivo) de autoridade; c) inexistência de restrições (art. 7º, 2º, da Lei nº 12.016/09).18 Em mandado de segurança coletivo deverá ser observada a qualidade do impetrante como pressuposto processual para o desenvolvimento válido da ação constitucional (art. 21, caput,
9 Direito, Carlos Alberto Menezes. Manual do Mandado de Segurança. Renovar. 2003. Rio de Janeiro/São Paulo.
14
Figueiredo, Lúcia Valle. Op. cit., p. 141.
15
Op. cit., p. 77.
16
Op. cit., p. 125.
10 Oliveira, Francisco Antônio. Mandado de Segurança e Controle Jurisdicional. Página 290. RT. 2001. São Paulo.
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mera aparência do direito, não se vinculando o juiz a concessão obrigatória14. Em contrapartida, Helly Lopes Meirelles, examinando a natureza da liminar face a reforma do Código de Processo Civil que passou a admitir a tutela antecipada no procedimento ordinário, recomendava a atualização da legislação do mandamus para que passasse a contemplar expressamente uma medida liminar não apenas cautelar, mas em determinadas situações também antecipatória do provimento final15. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito pondera que a liminar em mandado de segurança, na prática, tem a mesma consequência da tutela antecipada deferida liminarmente, sem a audiência da parte contrária16 Penso que a melhor orientação adotada é que estabelece no provimento de urgência do mandado de segurança a tripla configuração: 1) liminar cautelar; 2) liminar antecipatória; ou 3) liminar satisfativa. Tudo dependerá, como advertem José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo, das eficácias que forem agregadas ao comando mandamental (declaratória, constitutiva, condenatória)17.
11
Op. cit., p. 291.
12
Op. cit., p. 291.
17 Medina, José Miguel Garcia e Araújo, Fábio Caldas. Mandado de Segurança Individual e Coletivo. Página 119. RT. 2009. São Paulo.
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Oliveira, Francisco Antônio. Op. cit., p. 292.
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Oliveira, Francisco Antônio. Op. cit., p. 301.
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da Lei nº 12.016/09). Realizada esta análise preliminar, para concessão da medida de urgência, devem estar presentes os seguintes pressupostos: a) fundamento relevante do pedido; b) possibilidade de ineficácia (lesão irreparável a direito) da medida deferida ao final do julgamento do mandado de segurança. Relevante, singelamente, na acepção três encontrada no Novo Dicionário Aurélio, é o que é importante, de grande valor, grande conveniência ou interessante. No Dicionário de Língua Portuguesa de Antonio Moraes, relevante é importante19. A relevância, como ensina José da Silva Pacheco, há de resultar da perfeita adequação do fato e do direito, da clareza e precisão das razões e argumentos, expostos na inicial, de modo a sobressair, ressaltar, saliente, proeminente, protuberante, como importante e valioso, o fundamento, a base, o alicerce do pedido do impetrante20. Avaliando, por outro lado, o outro pressuposto o Autor diz que se trata da possibilidade de ineficácia do mandado de segurança, se vier ele a ser deferido, isto é, em caso de periculum in mora21. Ineficácia da medida, como lembra Lúcia Valle de Figueiredo, singelamente só pode significar a possibilidade de a decisão de mérito do mandado de segurança quedar-se inócua22. E continua dizendo que o fim do mandado de segurança não é a reparabilidade da lesão; sua finalidade é a de obstaculização que a lesão persista ou se verifique23. A ineficácia, consiste, então em não mais ser possível afastar a lesão que se pretendia ver afastada, a não ser pela repetição.24 Em sede de mandado de segurança coletivo, a Lei nº 12.016/09 estabelece, em seu art. 22, §2º, como requisito para concessão da liminar, a audiência prévia da pessoa jurídica, que deverá ser intimada para se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas horas) sobre a medida de urgência. Tal previsão, como lembra José Miguel Garcia Medina e
Fábio Caldas de Araújo, é oriunda da Lei nº 8.437/1992. Para os Autores, todavia, a presunção periculum in mora in verso pode ser afastada se o órgão jurisdicional perceber que a não concessão da liminar pode acarretar, de modo irreversível, o perecimento do direito demonstrado pelo autor da ação25. 5. A CONTRA-CAUTELA. Aliado aos pressupostos para suspensão do ato impugnado através do deferimento da medida, o legislador estabeleceu no inciso III a faculdade do juiz exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica. Trata-se, portanto, de uma faculdade, mera liberalidade do julgador que a despachar a inicial poderá fazer tal exigência. Na verdade, a Lei nº 12.016/09 somente estabeleceu uma praxe26 judicial que existia ante a omissão do antigo texto legal, porém alvo de profundos debates na doutrina e jurisprudência27. Para o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito não há nenhuma circunstância que possa justificar a imposição de caução, até porque tal exigência significa retirar do impetrante o direito reconhecido pelo magistrado28. A exigência da caução seria, no entender de Francisco Antônio de Oliveira, contrária a princípio constitucional da igualdade de tratamento das partes (art. 5º, CF/88), uma vez que o mandamus passaria a ser um remédio elitista29, já que somente 25 224.
Medina, José Miguel Garcia e Araújo, Fábio Caldas. Op. cit., p.
26 José da Silva Pacheco diz: “tem inteira razão o ministro Carlos Velloso quando não concorda com a praxe, que vem sendo instaurada, de se exigir depósito ou caução para conceder-se medida liminar em mandado de segurança, uma vez que, ocorrendo os pressupostos objetivos da medida liminar, deve o juiz concedê-la, não podendo desfigurar ou desvirtuar a ação constitucional de mandado de segurança, com exigência descabida de depósito, não previsto em lei”. (Op. cit., p. 273).
21
Pacheco, José da Silva. Op. cit., p. 258.
27 Abordando o assunto o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito relata: “A segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o Ministro Peçanha Martins, decidiu que, ‘ satisfeitos os pressupostos essenciais, a parte tem direito subjetivo à concessão da liminar pleiteada. Revestida de caráter imperativo, o juiz deve conceder a medida sem sujeitá-la a qualquer exigência, sob pena de torná-la ineficaz’”. Adiante em seu texto reproduz outro acórdão, em sentido contrário, admitindo a possibilidade da contracautela, cujo relator, Ministro Pádua Ribeiro, pondera ser “lícito ao Juiz condicionar a eficácia da medida liminar à prestação de garantia por parte do impetrante, a título de contracautela.” (Op. cit., p. 128/129)
22
Figueiredo, Lúcia Valle. Op. cit., p. 136.
28
23
Figueiredo, Lúcia Valle. Op. cit., p. 136.
24
Figueiredo, Lúcia Valle. Op. cit., p. 137.
29 José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas Araújo lembram: “na jurisprudência já se admitiu a dispensa da caução, em razão da natureza da prestação e da insuficiência financeira do autor da ação”.
19
Figueiredo, Lúcia Valle. Op. cit., p. 135.
20 Pacheco, José da Silva. O Mandado de Segurança e Outras Ações Constitucionais Típicas. Página 257. RT. 2002. São Paulo.
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Op. cit., p. 130/131.
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aqueles com possibilidades financeiras e econômicas poderiam obstar ato de autoridade ilegal ou abusivo30. Lúcia Valle de Figueiredo, embora entenda ser um despautério obrigar o impetrante a caucionar para obtenção da medida liminar, admite tal providência em “condições excepcionalíssimas”.31 O condicionamento da concessão da liminar à prestação de garantia, em abordagem feita por Hely Lopes Meirelles em sua obra clássica, não parece inconstitucional, sendo preciso apenas que o magistrado em seu poder discricionário fixe o montante a forma da garantia, a fim de inviabilizar a ação constitucional32. Tereza Arruda Alvim Wambier, aliás, reconhece que é melhor a exigência do que se deixar de conceder a medida33. Assim, é bom ressaltar que a despeito da necessidade ou não da contracautela, o texto legal somente reservou ao julgador uma faculdade que teve origem na praxe judicial, estabelecendo apenas como medida a ser avaliada dentro de um juízo discricionário. 6. A CONCESSÃO DE OFÍCIO PELO JUIZ. Muito tem se debatido se a liminar, pela redação dada pelo artigo 7º, III, da Lei nº 12.016/09 é medida que deve ser determinada de ofício pelo magistrado, uma vez que enuncia que o juiz ao despachar a inicial ordenará a suspensão do ato que deu motivo ao pedido do impetrante. A resposta, como adverte José da Silva Pacheco, depende da concepção que se tenha não só da própria liminar, com do poder jurisdicional, que ínsito tem, também, o poder geral de cautela34. Para Othon Sidou a medida liminar não se condiciona a requerimento da parte, motivo por que, inclua ou não o queixoso, na inicial, o pedido de suspensão do ato lesivo, o juiz proverá nesse sentido, sob pena de, em não o fazendo, deparar situações em face das quais sua sentença seria um julgar vazio35. 30
Op. cit., p. 317.
31
Op. cit., p. 139.
32
Op. cit., p. 79.
33
Op. cit., p. 805.
34
Pacheco, José da Silva. Op. cit., p. 259.
35
10
Pacheco, José da Silva. Op. cit., p. 260.
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Nessa esteira de raciocínio, Carmem Lúcia Antunes Rocha alerta para a desnecessidade do pedido liminar pelo impetrante para a ordem determinada pelo julgador, cabendo-lhe a prestação eficiente da garantia constitucional do mandado de segurança, compete-lhe tomar todas as providências cabíveis para a realização da finalidade posta a norma fundamental e que é de estrita função ver aperfeiçoada, o que inclui, evidentemente, a medida acautelatória liminar asseguradora da plena eficácia do mandado que poderá vir, ao final, a ser concedido36. Para Adhemar Ferreira Maciel o juiz deve ter em mente o resultado sempre útil do processo. Assim, caso perceba que da não concessão liminar, a qual não foi pedida expressamente, pelo impetrante, possa redundar ineficácia do writ, deverá concedê-la assim mesmo37. Em sentido oposto, Celso Agrícola Barbi pondera que, embora concebendo a liminar como de natureza cautelar, conecta-a com o disposto no art. 811, do CPC, que prevê a responsabilidade do requerente pelos danos decorrentes e sustenta que conseqüência da afirmação da responsabilidade do autor é também negativa de poder o juiz conceder ex officio a medida cautelar, motivo pelo qual conclui que, apesar do silencia da lei atual, deve-se entender que o juiz pode conceder a suspensão liminar se houver requerimento do impetrante38. 7. AS RESTRIÇÕES LEGAIS À CONCESSÃO DA LIMINAR E SUA CONSTITUCIONALIDADE. O § 2º do artigo 7º, da Lei nº 12.016/09, expressa que não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza. Já o § 5º estabelece que as vedações relacionadas com a concessão de liminares previstas neste artigo se estendem à tutela antecipada a que se referem os arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil.
36
Oliveira, Francisco Antônio. Op. cit., p. 309.
37
Pacheco, José da Silva. Op. cit., p. 260.
38
Pacheco, José da Silva. Op. cit., p. 259/260.
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Ora, o novel texto legal nada mais é que a reprodução de diversas leis restritivas da concessão de liminares contra o Poder Público (Leis n°s 2.770, 4.348/16439, 5021/6640, 8.437/92 e 9.494/9741), além de matérias já decididas e sumuladas pelo STF42 e STJ (212 e 213). Sobre a constitucionalidade das restrições legais, José da Silva Pacheco, citando Galeno Lacerda, salienta que a lei ordinária pode, perfeitamente, proibir ou restringir a liminar no mandado de segurança porque a Constituição não se refere à medida prévia43. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito ensina que o Poder Executivo tem tentado reprimir a indiscriminada concessão de medidas liminares, sendo compreensível para o Autor tal atitude como reação diante do grande número de medidas liminares deferidas sem o menor critério técnico, com caráter satisfativo, gerando, com frequência, conflitos entre os Poderes. E conclui, de todos os modos, impõe-se estabelecer uma disciplina legal que, por seu turno, não prejudique o direito da parte, 39 EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. LEI ESTADUAL 10640. SERVIDOR INATIVO. ISONOMIA REMUNERATÓRIA. Lei 4348/1964. CONCESSÃO DE LIMINAR. IMPOSSIBILIDADE. Tesoureiros aposentados do DER/PE. Equiparação. Impossibilidade. Extensão de parcela isonômica remuneratória a servidores inativos por medida liminar em mandado de segurança. Inobservância ao disposto no artigo 5º da Lei 4348/64, que impede a concessão de cautelar que determine a reclassificação ou equiparação de servidores públicos, a concessão de aumento ou extensão de vantagens. Agravo regimental desprovido. (STF. SS 2280 AgR/PE. Rel. Min. Maurício Corrêa. J. 22/04/2004). 40 Ementa. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. SUPRESSÃO DE PARCELA REMUNERATÓRIA. RESTABELECIMENTO. LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. POSSIBILIDADE. 1. A vedação à concessão de medida liminar em sede de mandado de segurança, nos moldes do disposto no artigo 1º, parágrafo 4º, da Lei nº 5.021/66, não se aplica à hipótese de restabelecimento de parcela remuneratória ilegalmente suprimida. Precedentes. 2. Agravo regimental improvido. (STJ. AgRg no REsp. 808008/ES. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. J. 22/08/2006) 41 EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. GRATIFICAÇÃO DE INCENTIVO. LEI COMPLEMENTAR 27/99. EXTENSÃO ÀS PENSIONISTAS VIÚVAS DOS SERVIDORES. CONCESSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 1º DA LEI 9494/97. ADC-4/DF. PRECEDENTES. Gratificação de Incentivo ao Policial Militar, instituída pela LC 27/99. Extensão às pensionistas viúvas dos servidores por medida liminar em mandado de segurança. Inobservância ao disposto no artigo 1º da Lei 9494/97, que impede a concessão de cautelar que determine a incorporação e o imediato pagamento de vantagem a servidor público. Descumprimento à decisão desta Corte proferida na ADC-4. Precedentes. Agravo regimental desprovido. (STF. SS 2321 AgR/PE. Rel. Min. Maurício Corrêa. J. 28/04/2004). 42 EMENTA: Agravo Regimental em Suspensão de Segurança. 2. Equiparação salarial. 3. Aumento de vencimentos, mediante concessão de medida liminar, de delegados de polícia. Afronta ao art. 7º, § 2º, da Lei n.º 12.016/2009. 4. Agravo regimental desprovido. (STF. SS 3330 AgR/AM. Rel. Min. Gilmar Mendes. J. 17/02/2010). 43
Pacheco, José da Silva. Op. cit., p. 267.
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atingindo por ato de autoridade praticado com ilegalidade ou abuso de poder44. Em contrapartida, Tereza Arruda Alvim Wambier não aceita as vedações impostas pelas leis e medidas provisórias a concessão de liminares que para ela são inconstitucionais45. Para Hely Lopes Meirelles a proibição de entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, em análise a Lei nº 2.270/56, reproduzido também na nova lei do mandado de segurança, entende que vedação só se refere a produtos contrabandeados. O autor ressalta ainda que a proibição de liminares nos casos de reclassificação ou equiparação de servidores públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens afiguram-se inconstitucionais, por desigualarem os impetrantes em detrimento do servidor público, já que a constituição não faz nenhuma distinção ao instituir o mandamus46. José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo informam que a jurisprudência tem concedido liminares contra o Poder Público, sempre que não se tratar de um das exceções previstas na Lei. Decidiu-se, continuam os Autores, citando acórdão do STJ da relatoria do Ministro Luiz Fux, com absoluto acerto, que “as exceções à concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública reclamam exegese estrita, por isso que onde não há limitação não é lícito ao magistrado entrevê-la”.47 8. NATUREZA JURÍDICA DA DECISÃO LIMINAR E O RECURSO CABÍVEL. As discussões acerca da natureza da decisão que conceda ou nega o pedido liminar no mandado de segurança restaramse superadas com a previsão expressa do cabimento do agravo de instrumento48 (§ 1º, art. 7º), não podendo ser entendido 44
Direito, Carlos Alberto Menezes. Op. cit., p. 127/128.
45
Wambier, Tereza Arruda Alvim. Op. cit., p. 805.
46
Meirelles, Hely Lopes. Op. cit., p. 81.
47 124.
Medina, José Miguel Garcia e Araújo, Fábio Caldas. Op. cit., p.
48 Ementa: PROCESSUAL CIVIL – LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA – NATUREZA INTERLOCUTÓRIA – AGRAVO DE INSTRUMENTO – CABIMENTO – APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DA SISTEMÁTICA RECURSAL PREVISTA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 1. A sistemática recursal prevista no Código de Processo Civil é aplicável subsidiariamente a todo o ordenamento jurídico, inclusive aos processos regidos por leis especiais, sempre que não houver disposição especial em contrário. 2. A liminar, negando ou concedendo a antecipação, é decisão interlocutória que desafia agravo de instrumento. 3. Em linha com a já placitada jurisprudência desta Corte, a Nova Lei do Mandado
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com era para alguns doutrinadores como despacho e portanto irrecorrível49. Aliás, a jurisprudência50 e autores de escol, antes do advento da Lei nº 12.016/09, entendiam que a liminar no writ tinha natureza de decisão interlocutória, pois consiste num pronunciamento judicial marcadamente decisório, que não tem como efeito o de pôr fim ao processo ou a procedimento, em primeiro grau de jurisdição51, por isso agravável52. Também, não deve ser mais aplicada a Súmula 622 do Supremo Tribunal Federal que vedada a possibilidade de recurso regimental da decisão do relator que concede ou indefere liminar em mandado de segurança, em face da redação do art. 16, § único, da Lei nº 12.016/09, que prevê expressamente o cabimento de recurso de agravo ao órgão competente do tribunal que integre53. 9. A PERDA DA EFICÁCIA DA MEDIDA PELA DENEGAÇÃO DO MANDAMUS E A CADUCIDADE DA LIMINAR. Uma questão bastante controvertida na jurisprudência54 e doutrina era o desaparecimento automático dos efeitos da mede Segurança, em interpretação autêntica, meramente elucidativa, prevê explicitamente o agravo de instrumento contra decisão liminar no mandamus (art. 7º, § 1º, da Lei n. 12.016, de 07/08/2009). 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (STJ. REsp 1124918/SP. Rel. Min. Eliana Calmon. J. em 17/11/2009) 49
Meirelles, Hely Lopes. Op. cit., p. 83.
50 Ementa. MANDADO DE SEGURANÇA - LIMINAR - NATUREZA RECURSO - ADEQUAÇÃO. O ato mediante o qual é deferida, ou não, liminar em mandado de segurança enquadra-se na espécie “decisão interlocutória”, sendo atacável no campo recursal. O conhecimento e provimento de agravo longe fica de usurpar a competência do Supremo Tribunal Federal, considerada a suspensão de segurança. (STF. Rcl 1616/PE. Rel. Min. Marco Aurélio. J. em 28/04/2003)
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dida liminar com a denegação do mandado de segurança, tanto que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 40555. Hely Lopes Meirelles admite a persistência da liminar se o juiz expressamente ressalva a sua subsistência até o trânsito em julgado e, embora o mesmo silencie a respeito da revogação, entende que a sua eficácia permanece até o julgamento da instância superior. Assim, prossegue o Autor, é preciso que o julgador a revogue explicitamente para que cessem seus efeitos, não sendo suficiente apenas que se manifeste sobre o mérito, denegando ou não a segurança, para que fique automaticamente invalidada a medida56. Porém, a doutrina majoritária, seguindo a tendência jurisprudencial sumulada pelo Pretório Excelso, reconhece que a existência de sentença denegatória determina a volta ao status quo ante57, reputando-se, nas palavras de Alfredo Buzaid, citado pelo Ministro Menezes Direito, automaticamente revogada pela sentença que, no mérito, negou a existência de direito líquido e certo do impetrante58. O juiz, ao prolatar a sentença denegando a ordem, não pode manter a suspensão liminar do ato sob pena de contrariar a própria sentença de mérito59, passando a liminar ter maior força que a decisão final60. Adotando esta orientação, a Lei nº 12.016/09, em seu o art. 7º, § 3º, estabelece que “os efeitos de medida liminar, salvo se revogada ou cassada, persistirão até a prolação da sentença”, sendo automaticamente revogada com a denegação, portanto, do writ61.
51
Wambier, Tereza Arruda Alvim. Op. cit., p. 794.
55 Súmula nº 405: “Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão”.
52
Figueiredo, Lúcia Valle. Op. cit., p. 150.
56
Op. cit., p. 85.
53 EMENTA: RECURSO. Agravo regimental. Concessão de liminar em processo de mandado de segurança. Inadmissibilidade. Aplicação da súmula n° 622. Superveniência do art. 10, § 1°, da Lei n° 12.016./2009. Inaplicabilidade a decisão de data anterior ao início de sua vigência. Recurso não conhecido. Embora a lei processual incida de imediato, o regime de recorribilidade é o da lei vigente à data da prolação do ato decisório. (STF. MS 27656 MC-AgR/DF. Rel. Min. Cezar Peluso. J. em 09/12/2009)
57
Figueiredo, Lúcia Valle. Op. cit., p. 159.
58
Direito, Carlos Alberto Menezes. Op. cit., p. 135.
59
Direito, Carlos Alberto Menezes. Op. cit., p. 135.
60 129.
Medina, José Miguel Garcia e Araújo, Fábio Caldas. Op. cit., p.
54 EMENTA: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EFEITO SUSPENSIVO. I. - Inocorrência de fumus boni juris: a segurança foi impetrada contra ato do Ministro de Estado consubstanciado na Portaria 789, de 24.08.2001, apresentado o pedido em janeiro de 2003, julgado extinto o processo pela ocorrência da decadência. II. - Denegado o mandado de segurança, fica sem efeito a liminar concedida: Súmula 405-STF. III. - Agravo não provido. (STF. AC 280 AgR/DF. Rel. Min. Carlos Velloso. J. em 03/08/2004)
61 Ementa. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. LIMINAR. SENTENÇA QUE EXTINGUE O MANDAMUS SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO (ILEGITIMIDADE PASSIVA). RECEBIMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO NO DUPLO EFEITO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 405 DO STF. ART. 7º, § 3º, DA LEI N. 12.016/2009 – NOVA LEI DO MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTATAÇÃO DOS REQUISITOS CAUTELARES NECESSÁRIOS À ATRIBUIÇÃO DO EFEITO SUSPENSIVO. SÚMULA N. 7
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Noutro aspecto da nova lei do Mandado de Segurança, o artigo 8º, reproduzindo a redação prevista no artigo 2º, da Lei nº 4.348/64, e minimamente alterada, enuncia que “será decretada a perempção ou caducidade da medida liminar ex officio ou a requerimento do Ministério Público quando, concedida a medida, o impetrante criar obstáculo ao normal andamento do processo ou deixar de promover, por mais de 3 (três) dias úteis, os atos e as diligências que lhe cumprirem”. A redação dada pela Lei nº 12.016/09 retira do artigo 2º, da Lei nº 4.348/64 apenas a parte final quanto ao abandono da causa pelo impetrante por mais de 20 (vinte) dias. Para José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo o legislador deveria ter corrigido essa anomalia e extirpado do sistema a possibilidade uma vez que a sanção imposta afigura-se desproporcional ao fim visado, ainda mais com a previsão da hipótese litigância de má-fé inserta no art. 17, IV, CPC62. Alertam os Autores ainda que a sanção pelo abandono da causa é desnecessária na medida em que a contumácia do impetrante não é causa de extinção do processo, mas de resolução do processo, sem análise do mérito, na forma do artigo 267, III, do CPC. Todavia, não obstante ser necessária a aplicação de sanção pelo abandono, imprescindível a intimação prévia e pessoal do impetrante para promover as diligências determinadas para o prosseguimento da ação no prazo de 48h63.
BIBLIOGRAFIA BARBI, Celso Agrícola. Do Mandado de Segurança. Rio de DO STJ. 1. Caso em que se discute a atribuição de efeito suspensivo a recurso de apelação interposto contra sentença que extinguiu, sem análise do mérito, o mandado de segurança. Pretensão de revigorar a liminar outrora concedida. 2. Agravo regimental em que se sustenta: (i) a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso de apelação, caso constatados o fumus boni iuris e o periculum in mora; e (ii) a não aplicação, ao caso, do entendimento da Súmula n. 405 do STF. 3. A superveniência da sentença que extingue o mandado de segurança, sem resolução do mérito, torna sem efeito a liminar a concedida. Inteligência da Súmula n. 405 do STF. 4. Entendimento que é reforçado pelo art. 7º, § 3º, da Lei n. 12.016/2009 – nova lei do mandado de segurança, que dispõe: “os efeitos da medida liminar, salvo se revogada ou cassada, persistirão até a prolação da sentença”. 5. No caso específico, o acórdão recorrido não se manifestou expressamente a respeito dos requisitos cautelares. Nesse contexto, o recurso especial não é o meio adequado à discussão sobre a presença dos referidos requisitos, ante o óbice da Súmula n. 7 do STJ. 6. Agravo regimental não provido. (STJ. AgRg no Ag 1184864/MG. Rel. Min. Benedito Gonçalves. J. em 01/12/2009) 62
Op. cit., p. 131/132.
63
Op. cit., p. 134.
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Janeiro. Forense. 2000. DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Manual do Mandado de Segurança. Rio de Janeiro/São Paulo. Renovar. 2003. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de Segurança. São Paulo. Malheiros. 2002. MEDINA, José Miguel Garcia e ARAÚJO, Fábio Caldas. Mandado de Segurança Individual e Coletivo. São Paulo. RT. 2009. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. São Paulo. Malheiros. 2004. NOJIRI, Sérgio. Discricionariedade Judicial na Apreciação de Pedido de Medida Liminar em Mandado de Segurança – Aspectos Polêmicos e Atuais do Mandado de Segurança. São Paulo. RT. 2002. OLIVEIRA, Francisco Antônio. Mandado de Segurança e Controle Jurisdicional. São Paulo. RT. 2001. PACHECO, José da Silva. O Mandado de Segurança e Outras Ações Constitucionais. São Paulo. RT. 2002. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Ainda Sobre a Recorribilidade da Liminar em Mandado de Segurança – Aspectos Polêmicos e Atuais do Mandado de Segurança. São Paulo. RT. 2002. Sites consultados na internet: BRASIL. Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível em: www.presidencia.gov.br. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: www.stf. jus.br. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: www.stj. jus.br.
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// Poema
tempo
Tempo, quanto
Há pouco tempo, Éramos nós correndo ao redor da mesa; Há pouco tempo, Só nós sentávamos à mesa. Hoje, Correm nossos filhos Ao lado da mesa. Em pouco tempo, Os filhos dos nossos filhos estarão Junto à mesa. E depois, Será nova a mesa E nós, Apenas um retrato na estante Ou um nome na memória, E a lembrança De quão felizes fomos.
A liberdade Hoje eu vi a liberdade Nos olhos de um homem. Hoje eu vi a liberdade, Escorrendo, deslizando Pela face de um homem [chorava. Não sei se aquelas lágrimas Eram doídas lembranças do cárcere Ou se eram a alegria extravasada Tal qual a do pássaro que deixa livre a gaiola. Hoje eu vi o homem (ser humano) Que nem era criminoso, nem inocente, Era gente. E gente sofre, chora e erra, Ah, como erra! E assim, entre erros e acertos, Sofrimento e alegria, Perde e reconquista A liberdade.1
1 Escrito após a concessão de liberdade provisória a um réu na Vara Criminal da Comarca de São Gonçalo do Amarante/RN, na audiência do seu interrogatório. O réu era acusado de ter acendido o fogo para o derretimento de fios de cobre (de telefone) furtados. Estava preso há cerca de trinta dias.
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Lápide Descanse em paz. Na morte, talvez. Em vida, Jamais!
A noiva do sol desfeita em chuva
Paulo Luciano Maia Marques Juiz do Juizado Especial Criminal da Comarca de Mossoró e Coordenador Administrativo da Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte (ESMARN).
E Natal, a noiva do Sol, Vestiu-se de cinza E em chuva de lágrimas se desfez, Deixada no altar à espera do Sol. Era inverno outra vez, Chove e nubla como nunca O sol se esconde, A vida fica turva. Em Natal, Tempo de chuva é tempo de tristeza, Pois o que é da Cidade do Sol, sem Sol? Navegamos no rio de águas empoçadas [empoçadas de céu liquefeito No Potengi, à espera, do espelho de azul que se abra no espaço.
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// Hist贸ria
Judite Nunes Primeira mulher na presid锚ncia do TJRN
Creio que não deva existir distanciamento entre juízes de Direito e os desembargadores. Todos somos, independentes da instância à qual pertencemos, magistrados”.
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2011 ficará marcado na história como o ano da mulher em postos de comando no Brasil e principalmente no Rio Grande do Norte. A primeira mulher presidente do Brasil – Dilma Roussef; a primeira mulher reitora da UFRN – professora Ângela Paiva; a segunda mulher governadora do Estado – Rosalba Ciarlini e a primeira mulher a assumir a presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte – Desembargadora Judite Nunes. São noticias animadoras que provam à consolidação da democracia. Cada uma dessas mulheres tem a sua própria história e trajetória de vida e na carreira que escolheram. No caso da desembargadora Judite de Miranda Monte Nunes, nascida em Natal no 31 de dezembro de 1946, a nomeação para o Tribunal de Justiça foi em 1997 pelo dispositivo do quinto constitucional. Como desembargadora, ela presidiu o Tribunal Regional Eleitoral, foi vice-presidente do TJ, presidiu a segunda câmara criminal e exerceu o cargo de ouvidora. Mulher – “Quando cheguei ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, já havia a desembargadora Eliane Oliveira, primeira mulher a integrá-lo, e posso dizer, com convicção, que sempre tive a aceitação dos pares, mantendo um trato cordial de amizade com todos os colegas. Na sociedade atual, a mulher ocupa cada vez mais espaço, mas, no entanto, muito ainda pode ser melhorado a fim de se evitar o preconceito. Apesar de nunca tê-lo sentido, isso não significa
que ele não existe. Mas já temos muito a comemorar”, afirmou a futura presidente do TJRN. Tribunal de Justiça – a nova administração do judiciário potiguar foi eleita para o biênio 2011/2012, por unanimidade de votos, com a seguinte composição: Presidente – Judite Nunes; Vice-presidente – Expedito Ferreira; Corregedorgeral – Cláudio Santos; Ouvidor-geral – Aderson Silvino; Diretor da Revista de Jurisprudência – Amílcar Maia; Diretor da Esmarn – Rafael Godeiro; Membros do Conselho da Magistratura – Virgílio Fernandes e Maria Zeneide Bezerra; Suplentes do Conselho da Magistratura – Dilermando Mota e Osvaldo Cruz. A nova presidente do TJ, após a eleição ocorrida em outubro passado, declarou total empenho para fazer do judiciário potiguar um poder cada vez mais forte e se disse realizada no trabalho. “Acho que o ser humano sempre está em busca de algo mais, seja diante de prévio planejamento, seja diante das oportunidades que surgem ao longo da vida. Posso dizer que sou muito realizada no que faço. E a realização profissional é muito gratificante. Porém, tenho como certo que sempre se pode fazer mais. Esforçando-se, ousando e tendo coragem, com responsabilidade e equilíbrio, procurando sempre acertar, ainda que precise aprender com os erros e, com humildade, corrigir as falhas detectadas”, finalizou a desembargadora Judite Nunes.
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// ARTIGO
Cícero M. de Macedo Filho Juiz de Direito. Mestre em Direito Constitucional/UFRN. Doutorando em Sociedade Democrática, Estado e Direito/Universidade do País Basco/ Espanha. Estudante de História/UFRN. Músico amador.
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100 ANOS DE UM GÊNIO DA RAÇA
Noel Rosa
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No dia 11 de dezembro de 1910, passados, portanto, 100 anos, nascia Noel de Medeiros Rosa, um genial brasileiro que passou para a história da nossa música popular como Noel Rosa, o “Poeta da Vila”, numa referência ao bairro onde nasceu, viveu e morreu, a Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Viveu somente vinte e seis anos e meio, porém deixou mais de duzentas músicas feitas só ou em parcerias, verdadeiras obras primas que se tornaram clássicos da música popular brasileira. Morreu como nasceu e como viveu: pobre e doente. Já ao nascer, teve que enfrentar os problemas decorrentes do parto fórceps que lhe afundou o maxilar, levandoo, para o resto da vida, a conviver com a dificuldade de se alimentar, o que lhe deu uma magreza que chamava a atenção, e contribuiu para que se acelerasse a doença que viria a adquirir depois, a tuberculose, que não conseguiu curar em razão da boemia, e que acabaria tirando-lhe a vida. Alimentava-se basicamente de líquidos, e quando começou a compor e conviver com os compositores e artistas da época, entregou-se definitivamente a boemia, preferindo a cerveja ao leite. Trocava o dia pela noite, para desespero da mãe, com quem aprendera a tocar bando-
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lim. Só depois, por influência do pai, é que adotou o violão, do qual tornou-se exímio executor. Em razão da influência familiar – avós e tios médicos – foi estudar Medicina, chegando a cursar até o segundo ano. Nessa época, já compondo e tocando, teve que escolher entre o samba e a medicina, e escolheu o primeiro. O país perdeu um médico, mas ganhou o mais genial compositor de todos os tempos. Data dessa época o samba “Coração”, que ficou famoso não só pela sua beleza harmônica, mas pelos erros anatômicos, que alguns afirmam terem sido propositais, uma vez que Noel definitivamente não queria ser médico. A partir de 1930, quando obteve o seu primeiro grande sucesso – o samba “Com que roupa?” - passou a viver exclusivamente com o pouco que recebia de suas composições e apresentações e o auxílio da mãe, professora. Gastava tudo o que ganhava com a boemia, com mulheres e bebidas. São famosas suas paixões por mulheres que foram musas de sambas antológicos, como “Último Desejo” e “Dama do Cabaré”, feitos para Ceci, um dos seus grandes amores e que era dançarina em um cabaré da Lapa. Aos vinte e três anos, foi obrigado a casar-se
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com Lindaura, que tinha apenas treze anos, e ficara grávida. Para os padrões morais da época, tal fato era motivo de um casamento “obrigado”. Chegou a fazer samba falando da vida íntima do casal. Mesmo casado e já doente, Noel não desistiu da boemia, das mulheres e da bebida, comprometendo de forma irremediável a saúde com o agravamento da tuberculose que causaria a sua morte. Deixou uma obra magnífica, feita em apenas sete anos de carreira. Uma obra de gênio, incomparável no cancioneiro nacional. Sua obra tinha brilho autônomo, tanto na música como na letra, e ele aceitava e dava parcerias. Muitos afirmam que sambas famosos de outros autores são, na verdade, letras de Noel, que graciosamente fazia as letras e dava a outros compositores, que divulgavam como se fosse suas as composições. A obra de Noel Rosa é marcada pela vivência no seu bairro, Vila Isabel, pelos seus amores, pelas suas piadas, e até mesmo pelas rivalidades de outros compositores, comuns na época. Era um cronista do seu tempo, da sua cidade, o Rio de Janeiro, e do país. Fez sambas com temas como filosofia, política, moral, carnaval, cinema, mulheres, vadios, honestidade, pobreza, progresso, amores, dores e tristezas. Letras de rico vocabulário, de rimas preciosas, que se harmonizavam com perfeição às melodias Isso garantiu à música popular brasileira obras primorosas como Pierrô Apaixonado, Filosofia, Pastorinhas, O orvalho vem caindo, Feitio de Oração, Não tem tradução, Prá que mentir, Conversa de botequim,
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Gago Apaixonado, Você vai se quiser, Coisas nossas, Mentiras de mulher, Feitiço da Vila, Palpite infeliz, Fita amarela, Dama de Cabaré, Mulher indigesta, Adeus, Cansei de pedir, Capricho de rapaz solteiro, Cor de cinza, Cordiais saudações, Falam de mim, Positivismo, Por causa da hora, Rapaz folgado, Silêncio de um minuto, Três apitos, Triste cuíca, Tipo zero, Quando o samba acabou, Onde está a honestidade, Cansei de pedir, Meu barracão, Último desejo, Com que roupa e tantas outras obras que marcaram definitivamente a música popular brasileira. Quando morreu, em um quarto de sua casa, sua música estava sendo tocada em uma festa na casa em frente. A obra de Noel não tem tempo nem dimensão. É eterna e atual. Passados mais de setenta anos de sua morte (04 de maio de 1937), sua música e poesia continuam modernas, mais vivas do que nunca. Sua obra não precisa ser revisitada, revista, atualizada. Ela é atual por si mesma, é moderna pelo que ela foi, pelo que é e representa no cotidiano da vida do país. Foi gravada por praticamente todos os grandes artistas dos país, desde aqueles que com ele conviveram, passando pelos grandes dos anos seguintes até alcançar os grandes dos dias atuais. Não é a toa que gente como Chico Buarque, Ivan Lins, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Gal Costa, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, estão sempre regravando Noel, assim como inúmeros outros artistas e grupos, já que não se pode aqui citar
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Juiz Cícero Macedo em momento musical.
todos. Dizem ainda alguns autores ter sido Noel o precursor da bossa nova, o que parece ser mesmo verdade, bastando ver as construções harmônicas de suas músicas. E também da música de protesto, de motivos políticos, em razão das suas letras marcadamente críticas. Não há dúvida de que ele foi um dos maiores compositores de todos os tempos. Encantou o povão nos anos 30 do século passado, e as gentes cultas dos anos seguintes, até os dias atuais. Disse recentemente o grande poeta e compositor Aldir Blanc que “Noel é o mais moderno dos compositores brasileiros”. Não há dúvida que
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Noel tornou-se um clássico, e hoje faz parte do nosso patrimônio cultural, e certamente é o marco fundamental da música popular brasileira. Disse certa vez um filósofo ateu que se Deus não existisse seria necessário inventá-lo. Se Noel não tivesse existido na história da música popular brasileira, seria necessário inventá-lo, pois só a sua genialidade seria capaz de nos legar obras primas como as que ele nos deixou, insuperáveis até hoje. E por isso Noel jamais será esquecido, pois os gênios não morrem. E ele foi um deles: um gênio da raça.
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Fotos: arquivo pessoal
// Projetos Especiais
Estudantes em Nísia Floresta formando a Bandeira do Brasil
O lado social da justiça Juiz Marcus Vinícius e a experiência com projetos sociais Nísia Floresta, cidade localizada a 42 quilômetros de Natal, é cercada por lagoas e um belo litoral. Com um cenário desses, é natural que haja especulação imobiliária acarretando o problema da devastação ambiental no município e a necessidade de uma intervenção maior do Poder Judiciário. Assim, com o projeto “Plantar uma Floresta em Nísia Floresta” o município foi contemplado com a plantação de 8 mil mudas de árvores nativas, várias palestras e eventos de conscientização ambiental em um período de 4 anos. A iniciativa foi do juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior, através do programa do Tribunal de Justiça do RN “Novos Rumos na Execução Penal”, presidido pelo Desembargador Saraiva Sobrinho, que tem como objetivo transformar as ilegalidades cometidas pelos
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cidadãos em benefícios para toda a sociedade. Dentro do programa, a população do município ganhou ainda um terreno doado pela iniciativa privada, onde está sendo construído Eco Posto Nísia Floresta, local para o desenvolvimento da educação ambiental e desenvolvimento de um viveiro de mudas, com a participação de estudantes e da comunidade em geral. As mudas são produzidas, plantadas e cuidadas por pessoas acusadas de terem praticado algum crime ambiental, sendo o objetivo maior atrair as pessoas que um dia cometeram um ilícito ambiental para a luta em favor de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. O projeto deu tão certo que acabou envolvendo pessoas da comunidade e em vários eventos foram mobilizadas milhares de pessoas, principalmente estudantes do município de Nísia Floresta que formaram a bandeira Nacional e um coração, numa homenagem à natureza.
Juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior
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Nos crimes cuja pena não ultrapassa dois anos, é possível, ao invés de ser processada, a pessoa fazer um acordo com o Ministério Público para contribuir para a preservação ambiental, ou seja, cumpre a pena plantando, cuidando e preservando as plantas do seu bairro, escola ou terreno. “O custo de uma pessoa presa hoje para o Estado é de aproximadamente dois mil reais por mês. Com o cumprimento de pena restritiva de direito, como a prestação de serviços à comunidade (plantio de mudas), o Estado não gasta nada e a pessoa anda tem uma maior conscientização ambiental, ao devolver para a sociedade com serviços o ilícito cometido” afirma o juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior. Essa experiência em Nísia Floresta foi destaque nacional por diversas vezes, com reportagens especiais da TV Senado, TV Justiça, Rádio do STF, dentre várias outras, ressaltando, inclusive, que em uma seleção promovida pelo Ministério da Justiça, em 2010, o projeto “Plantar uma Floresta em Nísia Floresta” foi considerado um dos 15 melhores desenvolvidos em execução penal em todo o Brasil. Trânsito – Antes dessa experiência em Nísia Floresta, o juiz Marcus Vinícius passou pela comarca de Macau, onde realizou um projeto diferente. Segundo o Magistrado, não existem projetos padrões para o desenvolvimento em todas as comunidades, pois a ação do Judiciário depende das condições vividas em cada município. No caso de Macau, na época, era muito comum pessoas pilotarem motocicletas e veículos sem carteira de habilitação, gerando para a população diversos prejuízos, como o elevado número de acidentes de trânsito. Um outro exemplo foi a Comarca de Caicó, onde vários motoristas são constantemente flagrados conduzindo veículos automotores sob o efeito de álcool. Em pouco tempo, 40 pessoas foram flagradas dirigindo embriagadas, tendo sido realizada uma audiência coletiva e, através do projeto “Sinal Verde”, foi aplicada a pena alternativa em todos os casos,
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Projeto “Plantar uma floresta em Nísia Floresta”
que consiste na prestação de serviços à comunidade de Caicó, ressaltando que em vários casos além da prestação de serviços as pessoas também contribuem financeiramente, de acordo com suas necessidades. No caso, foi feito um acordo para que as pessoas encontradas dirigindo embriagadas ficassem 02 (dois) anos levando os idosos para o médico, para passear, visitar familiares, isso usando os mesmos veículos do cometimento do crime de embriaguez ao volante. No final, depois de cumprirem o acordo judicial, essas mesmas pessoas saem do processo com a ficha limpa e os idosos, tão carentes de atenção e recursos, passaram a não mais ter problemas de deslocamento em razão da grande quantidade de veículos disponíveis para levarem os mesmos para qualquer lugar. Parelhas - No município de Parelhas, na região do Seridó, somente em 2009 foram registrados 385 acidentes de trânsito, a maioria envolvendo motocicletas. Com o início da fiscalização, em junho de 2010 e até novembro do mesmo ano, foram apreendidas mais de 500 motos no município e a quantidade de acidentes registrada foi de aproximadamente 10. Um outro problema resolvido com a ação foi o tráfico de drogas, segundo o juiz, pois muitas motos eram
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usadas para o transporte de drogas entre os jovens, pois com a presença da polícia fiscalizado nas ruas, apoiada pelo Judiciário, foi inibida a ação criminosa, contribuindo para que Parelhas notasse sensivelmente a diminuição da quantidade de pessoas vendendo e consumindo drogas. Com recursos do projeto “Sinal Verde”, focado no combate às ilegalidades cometidas no trânsito, foram adquiridos equipamentos de informática para o Conselho Tutelar, que conveniado com o projeto “Sinal Verde” executa mais uma ação do projeto, proporcionando que crianças da cidade tenham acesso ao cinema. Uma vez por semana elas vão até o Conselho e assistem a filmes com direito a pipoca e refrigerante, tudo com recursos arrecadados pelo projeto que busca a melhoria no trânsito das cidades. Como as ações sociais são direcionadas de acordo com as necessidades do município, em Parelhas um dos destinos dos recursos arrecadados foi o Hospital Estadual Doutor José Augusto Dantas, onde faltavam cadeiras para os acompanhantes, ar-condicionado e medicamentos. Com o dinheiro do projeto os problemas de desabastecimento foram amenizados e houve ainda uma economia para o Poder Público. Antes do
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projeto as despesas médicas com as vítimas de acidentes de motos caíram de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por mês para aproximadamente R$ 200,00 (duzentos reais). Centro de Detenção – Um dos piores dramas do sistema prisional é a falta de ocupação de presos. Em Parelhas, no Centro de Detenção Provisória, a situação dos apenados era à da maioria do Brasil, ou seja, plena ociosidade. Hoje, graças a iniciativa do Poder Judiciário, alguns presos fazem parte do projeto de fabricação de vassouras com garrafas peti. Os apenados produzem o material, através da arrecadação de garrafas pela comunidade e ainda conseguem benefícios na redução da pena, com a redução de um dia de pena para cada três dias trabalhados. São produzidas em média de 35 vassouras pequenas por dia e cada uma é vendida ao preço de R$ 3,50 (três reais e cinqüenta centavos) no comércio local. O rateio é
feito da seguinte forma: R$ 1,00 (um real) de acessórios, R$ 1,00 (um real) R$ 0,50 (cinqüenta centavos) para manutenção do projeto e R$ 1,00 (um real) para os detentos. O trabalho da justiça funciona, muitas vezes, a partir da integração entre todos os atores sociais. Histórias como essas são exemplos de que projetos sociais são importantes para a democratização da justiça e o juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior vem provando que o resultado pode ser positivo. “É importante a realização de palestras nas escolas, visitas às comunidades e conversas informais como na feira livre para aproximar o Judiciário da comunidade e assim poder sentir suas reais necessidades. Com essa presença o povo passa participar ativamente do cotidiano do Judiciário, podendo assim ser cada dia mais consciente dos problemas e comprometido com a busca de soluções”, finalizou o magistrado.
Atividades de preservação ambiental nas dunas
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// ARTIGO
Direitos fundamentais e políticas públicas: ativismo judicial nas ações afirmativas
Peterson Fernandes Braga Juiz de Direito da Comarca de São Paulo do Potengi-RN
1. INTRODUÇÃO: O Direito, enquanto fenômeno social, encontra-se sujeito a um conjunto de transformações que, rotineiramente, ocorrem no seio da sociedade que visa regular. A respeito, o Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues, assinalou, em trecho digno de transcrição, que “De tempos em tempos, os ‘organismos’ – tanto os biológicos quanto os jurídicos e sociais –, dão uma espécie de ‘salto’ para um patamar, geralmente superior. Reagem, em suma, às dificuldades do meio ambiente. Assumem novas formas. Do contrário, sucumbiriam”1. É o que vem ocorrendo com o sistema capitalista, que busca reinventar-se após a recente crise mundial2. Nessa esteira, percebe-se a constante mudança de paradigmas em todos os aspectos da ciência jurídica, incluindo a forma de atuação de cada um dos seus operadores, sejam magistrados, membros do Ministério Público, advogados ou ocupantes de outras carreiras jurídicas. Apenas a título exemplificativo, pode ser citada a reformulação da noção dos efeitos da revelia, antes tida como regra absoluta quanto à aplicação nos conflitos de interesses meramente privados. Atualmente, em sentido diametralmente oposto, tem a doutrina considerado que “a presunção fixada pelo art. 319 somente pode constituir presunção iuris tantum (relativa) e, por isso, pode ser afastada pelo magistrado, à vista de outras circunstâncias que lhe impulsionem o convencimento em sentido contrário. Assim, a presença no processo de qualquer elemento que conflite com a aplicação tout court da presunção material da
1 in Ativismo Judicial. O Jornal da Anamages, n. 02, outubro de 2008, pp. 11/12. 2 vide, a respeito, artigo do ex-ministro Maílson da Nóbrega, escrito na Revista Veja, edição de 25.03.2009, p. 101, intitulado “Um novo capitalismo (ou mais do mesmo)”.
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revelia pode, a critério do magistrado, afastar sua incidência, fazendo preponderar a realidade sobre a ficção”3. Contudo, no rol dessas mudanças verificadas no direito, destaca-se o chamado “ativismo judicial”, fenômeno não muito recente entre nós, mas que, atualmente, vem ganhando cada vez mais destaque em todos os fóruns de debates jurídicos. É justamente sobre este tema e suas repercussões nas políticas públicas que o presente trabalho busca discorrer, com enfoque nas chamadas “ações afirmativas” que, de igual forma, vêm ganhando a cada dia mais destaque no cenário jurídico nacional. 2. ASPECTOS PONTUAIS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: Questão que ainda hoje gera debates na comunidade jurídica é a referente aos limites do conceito de “direitos fundamentais”. Nesse ponto, a maioria das Constituições, com algumas adaptações, tem utilizado a conceituação de Robert Alexy, que parte, basicamente, de dois requisitos principais para firmar a sua teoria: fundamentalidade formal e fundamentalidade material4. Pela fundamentalidade formal, para que determinado direito seja considerado fundamental, deve estar previsto no texto da Constituição, ou seja, deve ser objeto de previsão constitucional. De outra parte, pela fundamentalidade material, a norma definidora do direito deveria vir inserida como “cláusula pétrea”, possuir aplicabilidade imediata e definir um conjunto de posições jurídicas que o constituinte originário optou por considerar como fundamentais. Em termos mais simples, na visão de Alexy, determinado direito, para ser considerado fundamental, deve possuir fundamentalidade na forma e no conteúdo. Porém, tal conceito sofre oposições. Dentre elas, pode ser destacada a de Ricardo Lobo Torres, para quem fundamentais são apenas os direitos relacionados às liberdades individuais e os direitos subjetivos referentes à possibilidade de exigir o respeito a essas mesmas liberdades. Assim, 3 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 3 ed., RT, 2004, p. 148. 4 2008.
in Teoria dos Direitos Fundamentais, São Paulo: Malheiros,
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de acordo com o citado autor, mesmo que previstos pela Constituição, alguns direitos não seriam fundamentais, como é o caso dos direitos sociais5. Por sua vez, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em conceituação ainda mais restrita, considera fundamentais apenas os direitos relacionados à dignidade da pessoa humana6. Contudo, malgrado as controvérsias que pairam sobre o tema, com os diversos entendimentos a respeito, o que realmente parece ser relevante, sobretudo para evitar a insegurança decorrente das infindáveis possibilidades de conceituação dos direitos fundamentais, é a opção do legislador constituinte originário em definir ou não determinado direito como fundamental. Com isso, tem-se um norte mais seguro na solução da problemática em tela. Por essa razão, o Professor Ingo Sarlet, na obra “A Eficácia dos Direitos Fundamentais” (8ª edição, Livraria do Advogado, pág. 42), chegou a assinalar que “Os direitos fundamentais, convém repetir, nascem e se desenvolvem com as Constituições nas quais foram reconhecidos e assegurados, e é sobre este ângulo (não excludente de outras dimensões) que deverão ser prioritariamente analisados ao longo deste estudo”. Além disso, importa assinalar que os direitos fundamentais trazem consigo uma série de outros direitos e deveres correlatos. Por isso, quase sempre envolvem prestações ou posições positivas e negativas, sendo que, estas últimas, não se resumem apenas aos chamados “direitos de 1ª geração” ou de liberdade, criados para impedir a ingerência do Estado nas liberdades individuais. Já a dimensão positiva dos direitos fundamentais engloba as prestações em sentido amplo, contemplando outros direitos além dos sociais, como o direito à jurisdição; as prestações em sentido estrito, que se referem apenas aos direitos sociais, ligando-se à noção de Estado Social; as prestações fáticas, relacionadas à alocação de bens ou serviços; e, por último, as prestações jurídicas, que exigem do Estado uma autuação normativa, como ocorre na ADin por omissão. Outrossim, é justamente o direito originário à prestação que assegura a aplicabilidade imediata aos direitos fundamentais.
5 2008.
in O Direito ao Mínimo Existencial, Rio de Janeiro: Renovar,
6
in Estado de Direito e Constituição, São Paulo: Saraiva, 1988.
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Porém, aplicabilidade imediata não significa dizer que a norma definidora de direitos fundamentais não necessita de regulamentação prévia. Nesse particular, o que não se admite é a exigência de regulação prévia para a eficácia dessa mesma norma. É o caso, por exemplo, da regra prevista no art. 121 do Código Penal que, no escopo de proteger o direito fundamental à vida, criminaliza a prática do homicídio. Feitas estas breves considerações sobre direitos fundamentais, passa-se ao exame do “ativismo judicial”. 3. O “ATIVISMO JUDICIAL”: O “ativismo judicial”, de acordo com o entendimento corrente, é decorrência do surgimento e fortalecimento de um outro fenômeno: o controle de constitucionalidade. Diz-se, a respeito, que a partir do famoso caso “Madison versus Marbury”, analisado pela Suprema Corte Americana em 1803, é que o ativismo passou a despertar a atenção dos estudiosos, enquanto forma de atuação proativa do Poder Judiciário em relação ao controle dos demais Poderes, rompendo com a tripartição clássica e estanque proposta por Montesquieu no clássico “O espírito das leis”. Desse modo, o ativismo judicial pode ser compreendido como o fenômeno caracterizado pela crescente interferência do Judiciário na esfera de atuação dos demais Poderes, notadamente o Executivo, seja suprindo omissões do administrador ou do legislador, seja declarando a invalidade de atos por estes emanados. Trata-se de caso típico de ampliação dos próprios poderes, sendo o controle de constitucionalidade seu exemplo emblemático, eis que o Judiciário, em certa medida, assume o papel de ator político e intérprete moral da sociedade. Embora o ativismo esteja associado, na maioria dos casos, a movimentos progressistas, como no combate à corrupção promovido pela famosa “Operação Mãos Limpas”, na Itália, existe também exemplos de sua vertente conservadora, em especial a série de decisões proferidas pela Suprema Corte Americana, entre 1935 e 1937, que invalidaram diversas normas que compunham o chamado “Neal Deal”, política de recuperação econômica dos Estados Unidos da América, proposta pelo Presidente Flanklin Delano Roosevelt. Entre nós, o ativismo judicial passou a existir, de forma mais efetiva, com a promulgação da Constituição Federal em 1988,
que marcou o fim da ditadura militar, presente desde 1964. Na atual Lei Maior, tem-se a notável ampliação das funções atribuídas ao Ministério Público, passando este órgão a ser o grande provocador de decisões judiciais com características “ativistas”, além da consagração do pluripartidarismo e valorização dos movimentos sociais, que, de igual forma, aumentaram o número de demandas nas quais se exige uma postura mais intervencionista do Judiciário. Com isso, houve clara modificação no perfil dos integrantes do Poder Judiciário, criando-se uma magistratura mais progressista, preocupada em distribuir direitos enquanto participante da “engrenagem” republicana e não como mero “guardião das promessas” insertas na Constituição, na lição de Antoine Garapon7. Prova disso foi a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no caso em que se discutia a questão da fidelidade partidária, onde o Pretório Excelso, à falta de previsão legal, prolatou decisão de índole normativa, disciplinando a questão. Em outros termos, definiu a Corte Suprema quais as hipóteses de infidelidade partidária, bem como os casos que excluem a sanção de perda do mandato para o parlamentar infiel. Um outro exemplo, de acordo com o Desembargador Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues, seriam as súmulas vinculantes, por meio das quais o STF “define prontamente o que considera certo ou errado”, esclarecendo princípios e suprindo omissões legislativas, posto que “as leis demoram imensamente na sua elaboração e, por vezes, já nascem sutilmente defeituosas, escondendo as famosas ‘brechas’ legislativas, fruto de lobbies poderosos”8. Com base em tais situações, os defensores do ativismo argumentam ser o mesmo relevante, em face da necessidade de preenchimento das lacunas existentes no ordenamento jurídico, o que resulta na maximização dos direitos, com uma leitura perfeita da Constituição, no dizer dos “perfeccionistas”, que defendem a postura ativista. Argumenta-se, também, segundo os “particularistas”, integrantes de outra corrente favorável, que o ativismo judicial implica na compreensão do caso concreto,
7 O Juiz e a Democracia: o guardião das promessas, Rio de Janeiro: Revan, 2001. 8
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in ob. cit., p. 12.
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considerando-se as exigências do contexto e analisando-se as consequências da decisão proferida, em vista de sua projeção para o futuro. No rol dos maiores defensores desse movimento se acha Richard Posner, autor da obra “Overcoming Law”, de 1995, na qual se consagra a corrente de pensamento conhecida por “pragmatismo jurídico”. De outra parte, os seus críticos assinalam que a aceitação do ativismo judicial implica na usurpação inaceitável das funções legislativas e executivas pelo Judiciário, daí decorrendo o grave risco de equívocos, eis que os juízes, na maior parte dos casos, não se acham devidamente habilitados, nem dispõem de aparato técnico, para a tomada de decisões que, ordinariamente, cumpririam ao legislador ou administrador público. Além disso, afirma-se – e esta parece ser a maior crítica – que o Poder Judiciário não dispõe de legitimação para substituir os outros Poderes no desempenho de funções que a estes são próprias, conforme estabelecem as normas constitucionais9. Por isso, dizem os chamados “minimalistas” que os juízes, no exercício de sua função judicante, devem fixar-se apenas na norma e não no contexto, proferindo decisões sem projeção para o futuro, pois projetar o futuro seria função da sociedade e de seus organismos. Nessa mesma esteira, os “formalistas”, igualmente contrários ao ativismo, defendem que os membros do Poder Judiciário devem fazer uma consideração técnica da ordem jurídica, fixando-se apenas no texto da norma e projetando a sua decisão apenas para o passado. Dentre os seus críticos, destaque especial é dado a Jeremy Waldron, autor do livro “Law and disagreement”, de 1999, onde o citado doutrinador externa, em sua crítica, preocupação com a liberdade, autonomia e soberania popular, além da valorização do parlamento. Tecidas estas considerações, importa, neste momento, adentrar na análise das chamadas “ações afirmativas”.
AFIRMATIVAS A consagração do ativismo judicial, além dos riscos já apontados por seus críticos, pode resultar em desmobilização popular, em vista do exclusivismo do Judiciário na definição de soluções para as demandas sociais, criando um verdadeiro “clientelismo” para o exercício da cidadania, desta feita transferido para as portas dos fóruns e tribunais. Porém, as vantagens oferecidas por essa nova forma de compreender a função judicante são bem superiores aos riscos apontados. Isto porque a aplicação do ativismo assegura, sem qualquer dúvida, um maior acesso à justiça, com a consequente efetivação dos direitos e maior eficácia do texto constitucional, algo ainda por fazer em países periféricos, como o nosso, onde grande parte das demandas sociais básicas ainda se acham pendentes de efetivação. Além disso, tem-se, com o ativismo, ao contrário do que defendem os seus críticos, uma maior aplicação dos necessários “freios e contrapesos” entre os Poderes, vez que o Judiciário passa, a partir de então, a controlar, também, a omissão do Executivo e do Legislativo em concretizar e disciplinar as várias demandas ainda insatisfeitas da sociedade.
4. O “ATIVISMO JUDICIAL” NAS AÇÕES
Pondere-se, ademais, que o ativismo também possibilita a efetivação, pelo Judiciário, do chamado “mínimo existencial”, como contraponto à reserva do possível, vez que o Estado deve fornecer ao cidadão um mínimo de condições para garantia dos direitos fundamentais, como a vida e a saúde. É justamente por isso que vem se tornando tema recorrente entre nós a consagração das chamadas “ações afirmativas”10 pelo Judiciário, tidas pelo Ministro Joaquim Barbosa como “um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir e mitigar efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo
9 Nesse ponto, surge a “reserva do possível”, no escopo de corrigir os excessos decorrentes do ativismo, em especial as invasões indevidas nas competências de outro Poder. Na Alemanha, a “reserva do possível” teve a sua aplicação associada ao princípio da razoabilidade, de modo que o cidadão somente poderia exigir do Estado aquilo que, num determinado contexto histórico, fosse razoável exigir.
10 Expressão cunhada no direito norte-americano, onde foram inicialmente concebidas como mecanismos tendentes a solucionar o problema da marginalização social e econômica do negro na sociedade americana, sendo, posteriormente, estendidas às mulheres e outras minorias étnicas e nacionais, como os índios, e aos deficientes físicos. No direito europeu, são conhecidas como “discriminação positiva” e “ação positiva”.
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a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego”11. Nesse ponto, o Frei David Santos OFM, em artigo publicado na Revista da Escola Nacional da Magistratura, afirma que a consagração das ações afirmativas, considerada forma de ativismo judicial, se presta a reforçar o controle mútuo e a consequente harmonia entre os Poderes12. Todavia, é no campo da igualdade que as ações afirmativas buscam desempenhar o seu mais importante papel. Com efeito, tal instituto surgiu com o objetivo de conferir efetividade e substância à concepção oitocentista-burguesa de igualdade, que se contentava unicamente com seu aspecto formal. Desse modo, passou-se a exigir dos três Poderes ações concretas de inclusão dos diversos seguimentos que, por variadas razões históricas, se mantinham à margem da sociedade, privados de acesso aos bens e serviços básicos oferecidos aos demais grupos sociais. Entre nós, é conferido especial destaque à situação dos afro-descendentes, que, ainda hoje, como fruto de um regime escragista que perdurou por séculos, continuam a sofrer com a discriminação e a consequente dificuldade de acesso aos bens, serviços, cargos e profissões de maior destaque social. Nesse ponto, digno de transcrição é o trecho em que o Min. Joaquim Barbosa, ao falar da discriminação racial no Brasil, assinala que tal questão envolve “o mais grave de todos os nossos problemas sociais (e que estranhamente todos fingimos ignorar), o que está na raiz das nossas mazelas, do nosso gritante e envergonhador quadro social – ou seja, os diversos mecanismos pelos quais, ao longo da nossa história, a sociedade brasileira logrou proceder, por meio das mais variadas formas de discriminação, à exclusão e ao alijamento, do processo produtivo conseqüente e da vida social digna, de um expressivo percentual de sua população (cerca de 45% do total): os brasileiros portadores de ascendência africana”13. 11 Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade: o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2001. 12 Ações afirmativas e o Judiciário: o papel da magistratura nas demandas sociais. Revista da Escola Nacional da Magistratura. Ano II, n. 3, abril/2007, p. 116. 13 A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito Constitucional brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 151, jul/set 2001, pág. 129.
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Portanto, na solução do problema enfrentado, deve o julgador, antes de tudo, socorrer-se de Aristóteles, para quem “a justiça é uma virtude que se encontra no meio termo”, de modo a não aplicar, de forma inconsequente, a tese do ativismo, nem se olvidar de colocá-la em prática quando do exercício de sua função, pois, deixando de agir desta última forma, continuaremos a protelar o atendimento das infindáveis demandas sociais ainda não satisfeitas14, permanecendo como o eterno “país do futuro”. BIBLIOGRAFIA ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, São Paulo: Malheiros, 2008. BARBOSA, Joaquim. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade: o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2001. BARBOSA, Joaquim. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito Constitucional brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 151, jul/set 2001, pp. 129/152. FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Estado de Direito e Constituição, São Paulo: Saraiva, 1988. MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 3 ed., São Paulo: RT, 2004. NÓBREGA, Maílson da. Um novo capitalismo (ou mais do mesmo). Revista Veja, ed. 25.03.2009, p. 101. RODRIGUES, Francisco Cesar Pinheiro. Ativismo Judicial. O Jornal da Anamages, n. 02, out/2008, pp. 11/12. SANTOS, Frei David. Ações afirmativas e o Judiciário: o papel da magistratura nas demandas sociais. Revista da Escola Nacional da Magistratura. Ano II, n. 3, abr/2007. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 8ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial, Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 14 É o que ocorre nas decisões que condenam o Estado ao fornecimento de medicamentos, nas quais o Judiciário, na verdade, está dando efetividade ao princípio da igualdade.
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// VÍDEOS Por Ricardo Antônio Menezes Cabral Fagundes Juiz de Direito de Afonso Bezerra e Macau
Título Original: To kill a mokingbird Ano: 1962 Direção: Robert Mulligan
O sol é
para todos Baseado no romance “To Kill a Mockingbird”, da ganhadora do prêmio Pullitzer Harper Lee, trata-se simplesmente de um dos maiores clássicos da história do cinema. O ano é 1932, apenas três anos depois da Grande Depressão. Gregory Peck interpreta um advogado chamado Atticus Finch, que vive em Maycomb, uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos, e assume a defesa de um caso bastante rumoroso: um crime de estupro supostamente praticado por um negro contra uma jovem branca. O filme foi realizado quando o Movimento dos Direitos Civis para os Negros Norte-Americanos (1955 - 1968) estava no auge. A população negra lutava por reformas na América, com o intuito de acabar com a discriminação e a segregação racial que tanto manchou o país. Na bem estruturada sequência de julgamento, destaca-se o discurso de Atticus Finch quanto às motivações que levaram aquele negro a júri popular em uma comunidade tão frágil e tão permeada pelo preconceito racial. Muitos podem achar o filme chato pela falta de “ação”. Destaco que o diretor foi honesto neste ponto, desde o início, deixando claro que pretendia retratar a
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vida comum, geralmente pacata, de uma cidade interiorana norte-americana, o que não condizeria com um clima de “tensão”, que soaria artificial. Gregory Peck, que levou o Oscar de Melhor Ator, faz de Atticus Finch um homem contido e conciso. Acrescente-se que o personagem Atticus Finch foi eleito em enquete realizada pelo A.F.I. (American Film Institute) como o maior herói da história do cinema. Isso sem ter disparado nenhum tiro ou sem participar de nenhuma cena de ação típica dos “blockbusters” atuais. O Sol é Para Todos é, com certeza, um filme que merece ser visto, não só pela bela narrativa que apresenta, mas por contar ainda com a mais perfeita fotografia em preto-e-branco já concebida e uma excepcional trilha sonora, que remete a uma tímida tristeza. A película de Mulligan é uma obra completa, que evoca a sensibilidade, a emoção e valores morais. O filme representa uma lição de moral e de vida que se mostra atual mesmo nos dias de hoje, quando muitas vezes, ao fechar os olhos, se deixa a injustiça prevalecer em nossa sociedade.
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// causos jurídicos
Davi Lorso
A história de Rosivaldo Toscano
Rosivaldo Toscano Júnior Juiz da vara criminal do Fórum Varela Barca
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Davi Lorso era um colega de colégio e de basquete, em Natal. Estudamos juntos durante alguns anos. Alto, magro e um tanto quanto desajeitado e disperso, sempre foi um aluno mediano. Acontece que ele era o mais alto da sala e o colégio adotou uma diretriz de que tais alunos tinham que sentar atrás para não atrapalhar a visão dos mais baixos. Era a sétima série. Aquele rapaz, que já era disperso sentando no meio da sala, sofreu um verdadeiro baque nas notas. Elas se tornaram tão ruins que precisaria tirar mais de dez na recuperação. Resultado: Davi foi reprovado por média em matemática. No ano seguinte ele sentiu o desgosto de ver os colegas numa série mais adiantada. E continuou tendo que sentar na última carteira da fila. Desestimulou-se ainda mais. Ao final do ano, nova reprovação com um plus: expulsão do colégio. Era o fundo do poço. Abatido, foi falar com seus pais e comunicar que iria parar de estudar. Sua mãe, preocupada com a firmeza com que a declaração tinha sido dada pelo adolescente, resolveu procurar ajuda médica. Buscou um neurologista. No dia da consulta o médico perguntou então ao rapaz o que o incomodava. - Doutor, é que eu não nasci para estudar. Acho que tenho um problema de QI. - Como chegou a essa conclusão? - É que fui reprovado duas vezes na escola. E por média. Mi-
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nhas notas foram tão ruins que nem sequer pude fazer recuperação. O médico franziu a testa, pensou um pouco e perguntou: - Você prestava atenção na aula? - Não. O colégio me obrigou a sentar lá atrás, na última carteira da fila. - Você fazia os deveres de casa? - Não. Como não aprendia, não conseguia resolvê-los. - Você estudava antes das provas. - Não. Como iria estudar o que não aprendi? - Você pelo menos ia a todas as aulas. - Faltava às vezes. - Então você diz que tem problema de QI? - Acho que sim. - Poderia sair um pouco? Quero conversar com sua mãe. - Sim. Claro. Ao sair, o médico dirigiu-se à mãe de Davi Lorso e disse que iria tentar uma mexida nos brios do rapaz, pois ele precisava era despertar para a realidade. Pediu que nunca mais o pressionasse a estudar, pois estava na adolescência, uma fase de contestação. Eis que Davi foi convidado a entrar novamente na sala. Dessa vez sua mãe ficou fora. Mal sentou, o médico foi logo lhe dando um cartão de visitas. Davi o leu: - Açougue... Cartão de um açougue? - É que meu irmão tem um. Como você está parando de estudar na sétima série e se para pessoas formadas como eu a vida é difícil, imagine para você. Então é bom começar logo cedo pra ver se pelo menos consegue futuramente comprar uma casinha num conjunto. Vou arranjar um emprego pra você lá. Todo trabalho é digno e você terá folga aos domingos – disse, secamente. No mesmo instante Davi Lorso se imaginou calçando aquelas botas brancas de borracha e carregando com muita dificuldade um pernil de boi dentro de uma câmara fria. Foi um choque. Saiu revoltado do consultório e reclamando com a mãe por tê-lo levado a um médico que ao
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invés de ajudá-lo, queria arranjar um emprego insalubre. À noite, porém, ao colocar a cabecinha no travesseiro, milhões de elucubrações lhe vieram à cabeça. O que seria dele se parasse de estudar? Qual o futuro que o aguardaria? Certamente aquela vida anunciada pelo médico não lhe era desejada. Logo que acordou, dirigiu-se à sua mãe. - Mamãe, quero voltar a estudar. Vamos procurar um colégio. A mãe lhe falou, muitos anos depois, que seu coração quase saltou de alegria naquele instante. Mas seguindo a recomendação médica, reagiu com normalidade, para evitar que Davi se sentisse, de alguma maneira, acuado. Foi difícil encontrar uma escola para o rapaz. Era fora de faixa, pois “reincidente” (reprovado duas vezes!) e tinha “maus antecedentes” (várias suspensões e advertências da escola). Depois de dias de luta, conseguiu uma chance: uma entrevista com a diretora de um colégio de freiras. Dia marcado, lá estava Davi Lorso de frente para a irmã, uma ainda jovem senhora pequena e franzina. Ela foi logo dizendo as regras do colégio, com firmeza, e que só estava dando aquela chance em respeito à mãe do rapaz, que disse ser sua única esperança, e somente se Davi concordasse com todas as regras do estabelecimento. Teria que assistir a todas as aulas, não se atrasar, não conversar em sala de aula e fazer todas as atividades. O jovem, sem alternativas, concordou com todas. Ao final, ela fez uma perguntinha mágica: - Teria alguma coisa que nós pudéssemos fazer por você que a outra escola falhou? - Teria sim. Gostaria de sentar na frente e no meio. Nunca sentei. - Mas você é muito alto. - Era exatamente esse meu problema. Por isso acho que tive notas tão ruins. Não conseguia nem ouvir os professores e nem ver o que estavam escrevendo no quadro. – Ela pensou um pouco, balançando uma caneta BIC entre os dedos, e vaticinou: - Está bem. No início do ano chegue cedo para “marcar o lugar”. Prevejo que irão reclamar um pouco no início, mas
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depois se acostumarão. – E chamou então uma das futuras professoras dele e pediu que comunicasse aos demais essa decisão. Pela primeira vez cara a cara com os professores, Davi Lorso se deu conta de como eram interessantes as conclusões a que ele chagava junto com os mestres. Nem ligou muito para a reclamação dos colegas de trás para que “tirasse” a cabeça do meio. Matemática não era assim tão ruim, e geografia e história, suas matérias preferidas, estavam fascinantes. Ao entregar a caderneta bimestral de avaliação para sua mãe dar o visto, ela nem acreditou: só tinham notas acima de 8. Logo pensou, sem poder externar: “tá colando muito!”. Mas ela percebera o rapaz estudando em casa espontaneamente, pela primeira vez na vida. Para Davi foi uma redenção. Entusiasmou-se com as primeiras notas e passou a se dedicar e prestar mais atenção ainda às aulas. Lembrou de um colega nosso, na época em que estudamos juntos, que fazia perguntas que considerávamos imbecis, mas na hora das provas só tirava dez. Refletiu que o papel do aluno em sala é tirar as dúvidas com os professores. Passou a não levar mais dúvidas para casa. Resultado: no final do ano tinha sido aprovado no terceiro bimestre. Isso mesmo. Suas notas eram tão altas que nem precisou do quarto bimestre. E assim foi a carreira de Davi Lorso no colégio. Passou no terceiro bimestre em todos os anos que se sucederam, até chegar ao pré-vestibular. Nesse ano não foi muito diferente: somente em matemática precisou das notas do quarto bimestre para passar por média. Vieram os vestibulares. Fez três. Passou em todos. O curso que escolheu foi direito. Porém, uma coisa ainda lhe afligia. Tinha vergonha de falar em público. Refletiu que precisaria melhorar sua oratória. Qual o melhor local: o Centro Acadêmico. Resolveu ir à primeira reunião, após convite feito na recepção aos formandos. Durante a reunião, ficou acertado que alguém passaria nas salas pra dar um aviso. Davi se ofereceu para isso. As
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primeiras salas foram as mais difíceis, pois estava nervoso, já que não era costume falar em público. Mas depois foi se soltando... Resultado: no ano seguinte foi eleito presidente do diretório acadêmico do curso de direito da UFRN e orador da turma na solenidade de formatura. Na sala em que ele estudava, todo mundo sabia onde ele sentava: na frente e no meio. Prestava atenção às aulas do mesmo modo, e estudava em casa. Nos dias das provas era Davi Lorso na frente, cara a cara com o professor, mais um ou outro “herói”, um vazio de carteiras e um monte de gente atrás. Todos sabiam por que estavam tão recuados... Era tentador ir lá para trás, mas Davi sabia que isso o desestimularia a estudar. Logo depois de formados houve o exame de ordem. Para surpresa dos colegas de sala da faculdade, entre as centenas de candidatos, Davi Lorso ficou em segundo lugar logo no provão. Uma das colegas veio cumprimentá-lo e dizer-lhe que ele tinha sorte. - Não tenho sorte não. Nunca tive as melhores notas porque tirava oito e meio lá na frente do professor, sem cola, e muita gente (incluindo a colega) ia lá para trás e abria um livro de doutrina ou o código. Assim era fácil tirar dez. Aqui nesse provão da OAB não tem como haver escaramuças... por isso o resultado. Após a faculdade Davi continuou estudando. Seu sonho, a magistratura. Após três anos de estudo conseguiu passar em um concurso e hoje é Juiz de Direito em Natal, no Rio Grande do Norte, e você está lendo nesse exato instante o que ele escreveu. Davi Lorso... DaviloRso... Davilso Ro... Davlo Rosi... Do Rosival... Rosivaldo! Provavelmente você nem tenha percebido, mas está é a minha história de vida e gostei muito de compartilhá-la com você. Quando for enfrentar algum desafio em sua vida, lembre de “Davi Lorso” e saiba que nem eu e nem ninguém é melhor do que você. Trata-se apenas de ter disciplina e dedicação. Vá em frente. Deixe o seu sonho tomar conta de você e despertá-lo para a vida! Busque concretizá-lo. Se eu consegui, após tudo que passei, você também pode!
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ZéBolacha Rosivaldo Toscano
O ano, 2001. Estava eu abastecendo o carro no posto do trevo das estradas que ligam as cidades de Rafael Godeiro e Patu. Era noite. - Moço, pode encher. - Pode deixar, doutor – Disse o frentista. Ei que ao desligar a caminhoneta e, consequentemente, o som do veículo, comecei a ouvir lamúrias e choros. - O que é isso? – ao que o frentista apontou para um sujeito literalmente acocorado no meio-fio do acostamento da estrada. Tocado com o choro sincero do rapaz, resolvi descer e saber o que o estava causando tamanha dor. - Amigo, boa noite, o que está acontecendo? O jovem, aparentando uns vinte e cinco anos, continuou acocorado, mas levantou a cabeça, que estava entra as mãos, olhou-me surpreso ao me reconhecer, e completou: – Doutor... – falou em tom de lamúria o choroso sujeito. Parou por uns segundos e prosseguiu – o problema tá aqui! – apontando com as mãos espalmadas para o próprio rosto. Busquei alguma ferida, corte, sei lá. Mas estava tudo em ordem: tinha olhos, boca, nariz.
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– Tá onde, meu caro? – Aqui ó! É que eu sou feio demais! – Para completar o quadro, entre as pernas do rapaz estava uma garrafa da boa e velha 51. Pelo bafo de álcool dele, já devia estar no fim... E após puxar o fôlego, ele prosseguiu: – Eu tinha uma namorada, Doutor. Chamei pra morar comigo, pra gente casar. Ela disse que não. Que eu era feio demais e que os bichinhos num iam nascer humanos não! Buá! – Pôs-se a chorar de novo. Fiquei com dó. Olha, o camarada era feio mesmo. Boca torta e uma banguela daquela tradicional, tipo vampiro, cara cheia de espinhas. Um quadro esteticamente triste. Mas decido a levantar a alto-estima do jovem, aconselhei-o. O diálogo se deu comigo de pé e ele acocorado, como estava. – Não vou dizer que o senhor é nenhuma maravilha. Mas também não estou dizendo que é feio. Contudo, saiba que sendo feio ou não, sempre há alguém mais feio que a gente em todo canto. – E prossegui: – Vou lhe mostrar que estou certo. Veja bem, tem um camarada ali em Rafael Godeiro que não conheço, mas que dizem ser o sujeito mais feio do Alto Oeste. Zé Bolacha. Já ouviu falar dele? – Zé Bolacha sou eu, doutor! Buá!
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Fotos: Ricardo Junqueira e Elpídio Júnior
Ricardo Junqueira
// CAPA
Moderna e funcional,
sede da AMARN foi uma conquista de 2010
A primeira impressão é a melhor possível. Bom gosto, elegância e modernidade dão o tom à nova sede da AMARN – Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte. Após cinco meses de planejamento, projeto e execução, 2010 pode ser considerado o ano da nova imagem da associação, inaugurada em março deste ano, pelo presidente Madson Ottoni, marcando também a posse da nova diretoria tendo como presidente Azevêdo Hamilton Cartaxo, para o biênio 2010/2012.
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Juiz Mádson Ottoni de Almeida Rodrigues
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Ricardo Junqueira Ricardo Junqueira
Lavabos ganharam decoração inusitada
Recepção integrada ao auditório
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O projeto foi desenvolvido pela arquiteta Nadiedja Melo e ocupa uma área de 120 metros quadrados no décimo andar do centro empresarial Miguel Seabra Fagundes, em Lagoa Nova. “O estilo da ambientação foi o contemporâneo, procurando uma conotação mais tradicional inerente à carreira jurídica”, afirmou a arquiteta. Os materiais utilizados como o mármore, aço, vidro, madeira e espelhos tornaram a sede imponente e os lavabos ganharam um estilo propositadamente diferente aos outros ambientes. Há ainda a iluminação técnica voltada para o uso específico de cada espaço, como no auditório com capacidade para 30 lugares para reuniões, encontros e palestras. Planejada e realizada na gestão do então presidente da AMARN Mádson Ottoni, a nova sede atendeu aos objetivos dos associados de terem um ambiente funcional e moderno. “Dr. Mádson pediu um ambiente que retratasse a imagem da associação dos magistrados de forma atual e elegante, mas sem rebuscamentos”, concluiu Nadiedja Melo. Ao longo desses mais de 9 meses de inauguração, já aconteceram reuniões, encontros e palestras. Todos os meses, a diretoria se reúne na última segunda-feira para discutir questões administrativas na sala da presidência equipada com sistema de televisão integrado ao auditório.
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Ricardo Junqueira
Sala da presidência: cantinho charmoso para receber
Juiz Azevêdo Hamilton Cartaxo Pres. da AMARN
A associação recebeu, neste ano, a visita dos dois candidatos à presidência da AMB – desembargador Henrique Nelson Calandra e o juiz Gervásio Protásio dos santos Júnior e a visita de representantes da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais. “É fundamental uma sede bem estruturada, porque permite que todas as atividades sejam desempenhadas adequadamente” afirmou o presidente da AMARN Azevêdo Hamilton Cartaxo.
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// Contos
A rua Américo Barbalho e alguns dos seus exóticos e inesquecíveis residentes Francisco de Assis Brasil Queiróz e Silva
Juiz titular da 3ª Vara Criminal do Fórum Varela Barca e professor de Direito penal da UNP e FANEC.
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A Rua Américo Barbalho, situada no Bairro do Alecrim nesta cidade do Natal, tendo sido a rua onde passei a minha infância e vários anos de juventude, ficou em minha memória porque lá residiram pessoas humanas singulares e típicas a quem eu conheci com a minha curiosidade natural de uma criança silenciosa e misantropa que fui. Era uma das principais ruas do Bairro do Alecrim, caracterizando-se por ser, ao contrário dos dias de hoje, essencialmente residencial, com quase todas as residências modestas, destacando-se um ou outro imóvel por ser sobrado pertencente a algum morador que fora bafejado pela fortuna. Os vendedores ambulantes denominados de camelôs, que no dia de hoje já conquistaram muitos territórios do Bairro do Alecrim, naquela época ainda não haviam invadido as calçadas da Rua Américo Barbalho e os não muitos veículos que transitavam pelo seu leito eram de comerciantes do Bairro da Ribeira, de funcionários públicos federais e de profissionais liberais residentes geralmente nos Bairros da Cidade-Alta e do Tirol, ou as lotações que depois que os bondes foram aposentados pelo poder público passavam por obrigação pela rua fazendo a tradicional linha Rocas-Quintas. Começando no sentido norte-sul, havia um sobrado de estilo colonial, de fachada bem retangular pintada de cor amarela, onde residia uma senhora baixinha e raquítica, ironicamente chamada de “Dona Altiva”. Era viúva de um funcionário da alfândega e mãe de um único filho chamado Maquiavel que tendo ganhado um valioso prêmio na loteria federal, desapareceu de Natal. Depois que dona Altiva faleceu, o sobrado ficou desabitado por todo o tempo, atravessando os anos da década de 1960, servindo
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de moradia para bêbados, mendigos e escorpiões, até que um dia foi adquirido já em ruínas durante os primeiros anos da década de 1970, por um libanês radicado desde criança aqui em Natal que enriquecera como empresário do comércio e de hotelaria estabelecido no antigo bairro da Ribeira. Tendo derrubado as últimas paredes que restaram do antigo sobrado, o empresário edificou um imóvel de três andares onde na parte térrea abriu uma filial de suas lojas e nos pavimentos superiores inaugurou o seu hotel que hospedava principalmente homens de negócios em trânsito por Natal, até que a inauguração das primeiras unidades hoteleiras de cinco estrelas da Via Costeira obrigou o estrangeiro a abdicar de sua atividade de hoteleiro. Logo a seguir, havia a pensão de Dona Emengarda que, durante o dia, era estritamente familiar, mas à noite, transformava-se em um autêntico lupanar que recebia a visita de prostitutas para fornicar, dentre outros, com os grumetes que fugiam da Base Naval, com os notívagos do bar quitandinha e principalmente com os varões casados que violavam o sacrossanto juramento de fidelidade conjugal que um dia haviam feito ás suas esposas perante um sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana. A propósito, a mesma era avó do deputado Nicanor Lima que sempre acompanhou politicamente uma soberana família que reinou durante algum tempo nesta província potiguar, mas pelo fato de não fluir em suas artérias este sangue dinástico, nunca conseguiu ser candidato a governador do Estado. A Sra. Emengarda tratava-se de uma mulher bem madura e
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corpulenta que, além de dona de pensão simultaneamente familiar e alegre, exercia a macumba no quintal de sua hospedaria, através da qual, invocando entidades demoníacas dos abismos cósmicos, conseguiu destruir a felicidade de muitas famílias natalenses daquela época. Conta-se à boca pequena que o deputado Nicanor Lima, depois de várias tentativas desejando ser candidato ao governo do Rio Grande do Norte, e sabendo que o seu partido político, inobstante sua brilhante atuação como parlamentar, jamais o indicaria pelo fato de não possuir um sobrenome aristocrático, teria invocado, como último recurso, em um terreiro de macumba, o espírito de dona Emengarda, sua avó, que há bastante tempo já houvera falecido, mas esta não conseguira baixar porque estaria aprisionada nas fétidas masmorras dos infernos, expiando todo o mal que fizera à humanidade em sua última encarnação aqui na terra. Por causa disto, o excelente legislador resignou-se, nunca mais aspirou alcançar as estrêlas do firmamento, inclusive abandonando em definitivo a vida pública, dedicando-se exclusivamente à sua banca de advocacia. No imóvel de número 1290 residiam o Dr. Geraldo Magela, sua mulher dona Mercedes, e seus oito filhos. O Dr. Geraldo Magela, malgrado nunca tivesse frequentado nenhuma faculdade de direito, ostentava um anel de rubi em seu dedo anelar da mão esquerda, era um rábula conceituado na cidade pelas suas atuações forenses principalmente no Tribunal do Júri. Na verdade, mais do um simples provisionado, ele era um verda-
deiro autodidata, pois, além de ter estudado e aprendido sozinho as chicanas da prática forense, aprendera a falar o idioma inglês, instalara em sua própria residência um curso supletivo que, naquela época, chamava-se de madureza e possuía uma vasta biblioteca onde se destacavam as obras marxistas. Assim, depois que as leu uma por uma, tornou-se comunista, ateu e subversivo, para desgosto de Dona Mercedes que recebera as ordens menores da igreja católica e as exercia prestando serviços na matriz de São Pedro, no Bairro do Alecrim. Aliás, a dona Mercedes, que era uma mulher plenamente amorosa, passiva e serviçal em relação ao seu marido, tal qual aquela denominada de Amélia imortalizada na canção popular de Ataulfo Alves e Mario Lago, casara-se muito nova com o Dr. Geraldo, mas era bastante humilhada por este que depois que se tornou um famoso rábula atuante nas lides do foro, envergonharase da mesma humilhando-a constantemente, dizendo ela não passava de uma verdadeira chofer de fogão, sempre uniformizada em seu avental de cozinha e exalando do seu corpo um odor nauseabundo semelhante a alho. Quando estourou o golpe de estado de 1964, o Dr. Geraldo Magela foi preso, torturado e dado como morto, pois teria se enforcado na cela do quartel da Policia Militar onde estava recolhido, nesta capital, quando soubera que a quartelada daquele ano financiada pelos Estados Unidos da América do Norte e apoiada pelas elites conservadoras ligadas á UDN do Brasil, saíra vitoriosa. A bem da verdade, o Dr. Geraldo Magela jamais se suicidou em sua cela, como não
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se suicidaram os vários outros presos políticos que estavam recolhidos naquela unidade militar, porquanto todos foram jogados dentro de um avião da Aeronáutica e lançados no alto mar, para o repasto de vorazes tubarões, motivo pelo qual os seus corpos nunca foram encontrados, tanto assim que ainda hoje os descendentes do Dr. Geraldo não sabem onde e como ele foi morto. Também havia o “castelo dos anjos”, denominação dada pelo povo ao luxuoso edifício de dois andares da Sra. Adelaide Carvalho, uma cearense da cidade do Crato, que aportara em Natal na década de 1950, fugindo do seu marido, Belarmino Ramalho, que tentara matá-la quando descobriu que ela o traía copulando com o seu próprio cunhado, irmão de Belarmino. Nesta capital, sozinha e com um filho de cinco anos para criar, foi residir inicialmente em uma casa alugada, simples e bem pequena, na Rua Américo Barbalho. Conheceu inicialmente o Dr. Padilha, um gerente do Banco do Brasil muito prestigiado na capital, quando o emprego no Banco do Brasil ainda rendia opulentos salários e elevado status social para quem o conseguia. Através do Dr. Padilha que lhe comprara o imóvel modesto onde ela morava de aluguel, o derrubara e edificara um sobrado de dois andares para ela residir, Dona Adelaide iniciou o seu alpinismo social, exercendo também a ocupação de parteira que aprendera em sua cidade de origem, praticando-a aqui em Natal em um consultório em seu edifício de dois pavimentos onde escondia a sua clínica de abortos clandestinos. Ali, a dita cuja professava com exímio a arte da obstetrícia, não somente dando à luz a muitos recém-nascidos de mães anônimas que lhes procuravam sem lhes cobrar nenhum honorário pelo parto que operava na parturiente, mas principalmente assassinando fetos que tinham sido gerados de relações espúrias, inclusive de esposas ou concubinas de cidadãos acima de qualquer suspeita que freqüentavam as
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reuniões sociais do América, o clube aristocrático por excelência de Natal daquela época. Além do Dr. Padilha, a dona Adelaide foi cortesã de vários outros importantes homens da sociedade potiguar daquele tempo, quase todos casados, dentre eles um com quem ela mais tempo conviveu, que foi exatamente o deputado Temístocles Silveira, um sertanejo de elevada estatura física, mas de mesquinha compleição moral. Era um próspero agropecuarista que além de exercer o mandato de legislador na Câmara Federal, freqüentava o Natal Clube que ficava em pleno Grande Ponto desta capital, onde torrava em jogatinas o dinheiro público do Estado, acolhia em sua propriedade os pistoleiros mais perigosos do sertão para se livrarem da ação da Justiça, mantinha em sua fazenda um jardim de infância onde os filhos dos seus trabalhadores eram alfabetizados e molestados sexualmente pelo despudorado deputado pedófilo. A propósito, tal qual o pervertido imperador Tibério de Roma antiga se deliciava em sua velhice a quem ele admirava como um notável estadista da antiguidade, o deputado Temístocles Silveira, em sua lubricidade senil, costumava tomar banho todos os dias na banheira térmica de sua fazenda acompanhado de criancinhas, filhas dos seus colonos, que lhes afagavam a genitália, a quem ele também as chamava de “meus peixinhos”; igualmente, colecionava vários pôsteres pornográficos que ornamentavam as paredes de privativos aposentos da sua extensa vivenda rural onde ele se recolhia com freqüência para escrever as suas memórias de um parlamentar que honrara a bancada do Rio Grande do Norte no Congresso Nacional. A Sra. Adelaide monopolizou o poder durante vários anos sobre quase todos os moradores da Rua Américo Barbalho. Muitos tinham conhecimento que ela também praticava uma obstetrícia criminosa em sua suntuosa habitação, mas ninguém se atrevia a denunciá-la às autoridades constituídas,
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Vista da rua ao lado da igreja São Pedro, um símbolo do Alecrim
até porque muitas destas já tinham se beneficiado dos seus serviços de parteira, como por exemplo, a suplente de uma primeira-dama do Estado que não desejando nenhuma gravidez inoportuna e inconveniente, recorrera algumas vezes à mesma para expelir prematuramente do seu útero seres nascituros que não queria dar à luz. Aliás, o marido desta dondoca-primaz do Estado, o qual fora canonizado pelo povo que o elegera Governador, imortalizou-se perante a História do Rio Grande do Norte, principalmente por distribuir pão e circo para a pobreza, chorar nos comícios que realizava para comover a multidão que delirava e fanatizar a plebe que entrava em transe quando ele discursava, até que um dia, por conta de uma intriga feita pelo seu arquiinimigo figadal que fuxicando nos ouvidos do general todopoderoso que presidia naquela época a República dos Estados Unidos do Brasil, foi sumariamente expulso da fauna política do Estado.
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Existia a Casa Taveira que era uma bodega que pertencia ao Sr. Taveira, onde eram vendidos gêneros alimentícios, mas se distinguia pelo sorvete caseiro solidificado em forma retangular, preso na extremidade de um palito, que vendia, o qual era conhecido, naquela época e naquele local, pela denominação de polí. O Sr. Taveira, que puxava por uma perna talvez seqüela de alguma trombose, era um ancião de cor alvacenta, cabelos encanecidos e gênio manso. A sua família era constituída por dona Lara, que era uma mulher encorpada e loquaz, exímia culinarista de saborosas iguarias, os seus vários filhos e filhas dentre os quais se destacavam os três seguintes: Samuel, o mais bem afortunado por conta de sua atividade de bicheiro; Débora que se formou em odontologia e para não ficar no caritó terminou fugindo com um magarefe do mercado público do Alecrim; e a caçula Judite que foi raptada, quando tinha 16 anos de
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idade, pelo seu namorado, um marinheiro do sul do país que houvera aportado na base naval de Natal, o qual foi obrigado a reparar o seu crime casando com a raptada, moçoila honesta e de família, graças à intervenção do Chefe de Polícia do Estado, o austero Cel. Urquiza, parente bem próximo do Sr. Taveira. O boticário Rubens Piranha, cujo singular sobrenome servia de telefonemas maldosos para sua pessoa, perguntando-lhe se sua esposa, dona Olga, também era piranha, residia no imóvel de numero 1350 da Rua Américo Barbalho, onde, na parte da frente mantinha a sua Farmácia Carlos Chagas, em homenagem ao célebre cientista brasileiro e, na parte dos fundos, residia com sua família constituída pela Sra. Olga e os três filhos menores do casal. O Sr. Rubens, que era um farmacêutico medíocre, aprendera sofrivelmente a arte de manipular medicamentos com o seu patrão o Sr. Queiroga na cidade de Macau, no interior do Estado, onde nascera. Chegara em Natal no início da década de 1960, alugara este imóvel à Rua Américo Barbalho e se tornara um dos poucos farmacêuticos do Bairro do Alecrim. Foi órfão e fora criado pelo Sr. Queiroga e pela sua mulher dona Vitalina, o qual o empregara em sua farmácia, razão pela qual o Sr. Rubens, que era um homem introvertido e avarento, o considerava como seu verdadeiro pai. Aqui em Natal, quando o Sr. Queiroga adoeceu gravemente, o Sr. Rubens ia visitá-lo diariamente, sempre ao entardecer, chegando em sua Rural Williams à residência do mesmo à Rua Machado de Assis, no bairro alecrinense, onde o doente agonizava em seu leito de morte. Ali, ele se confundia com os vários filhos e netos que velavam o ancião, inclusive chorava sentidas lágrimas silenciosas quando, ajoelhado à beira do leito do doente moribundo, chamava repetidas vezes pelo seu nome, “Seu Queiroga”, “Seu Queiroga”, mas este, já totalmente inconsciente, não lhe atendia ao seu chamamento.
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Havia as duas irmãs Sampaio que residiam no imóvel de número 1436 da Rua Américo Barbalho com o pai, o velho Sr. Sampaio, um ancião magro e um pouco curvado, que, praticamente, passava o dia inteiro em pé, atrás do portão de ferro da entrada de sua residência que dava para a via pública, fumando continuadamente os seus cigarros Hollywood, olhando, com semblante de visível curiosidade, cada um dos pedestres que passavam na rua. Das suas duas filhas, a mais velha chamava-se Geralda, merendeira do Grupo Escolar Frei Miguelinho situado no mesmo bairro e a outra, que se chamava Regina, era comborça do Seu Fontana, um conquistador compulsivo e próspero comerciante do bairro da Ribeira. Ambas mantinham um armarinho na frente do imóvel onde moravam, bancado pelo Sr. Fontana, que vinha, invariavelmente, visitar a sua concubina todo final de semana, trazendo cigarros para o velho Sampaio que, por causa deste agrado, não somente permitia, mas também até alcovitava as relações clandestinas entre ele e a sua filha. Um dia, tendo sido levado ao médico pelas suas duas filhas porque estava passando mal, foi diagnosticado que o Sr. Sampaio estava com um câncer na garganta em estado avançado, em razão dos cigarros que fumara durante toda sua vida. Dentro do seu quarto de dormir, no interior de sua modesta casa, lá na Américo Barbalho, sofria intensamente, gemendo, com dores insuportáveis, defecando e urinando na própria cama, exalando um odor fétido e insuportável proveniente tanto da ausência de assepsia em seu próprio corpo quanto do tumor maligno que já lhe devorara as cordas vocais. Em seus poucos momentos de lucidez, totalmente afônico, implorava, por escrito, às suas filhas, que o deixassem morrer ali mesmo em sua residência, até porque era bem próximo ao cemitério, mas tornou-se impossível atender ao seu pedido porque não havia quem lhe fizesse as vezes de enfermeiro de doente terminal. Enfim, o Sr. Fontana conseguiu convencê-
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lo a se internar no hospital Dr. Luiz Antonio que ficava no Bairro das Quintas, nesta capital, aonde, com poucos dias depois de sua chegada àquele nosocômio, veio a falecer. Depois do falecimento do velho Sampaio, as duas irmãs Geralda e Regina ainda continuaram, por algum tempo, morando na residência da Rua Américo Barbalho com o ponto comercial na frente da mesma, mas o armarinho faliu, foram despejadas pelo senhorio do imóvel que lhes era alugado e, ainda mais, Regina foi processada criminalmente pela dona Letícia, esposa do Seu Fontana, como co-ré por crime de adultério, pois, naquela época, por incrível que pareça, adultério ainda era crime, porém não foi condenada porque conseguiu convencer o juiz que, de há bastante tempo, havia cessada a vida íntima entre ela, a Sra. Letícia, e o seu marido, o Sr. Fontana. Algum tempo depois, também cessou a vida íntima entre ela própria, Regina, e o Seu Fontana, que resolveu se aposentar, tanto de sua profissão mercantil quanto de suas aventuras genésicas, pois já estava em uma idade bastante provecta que lhe depauperara por completo a sua pessoa. As duas irmãs Sampaio foram embora da Rua Américo Barbalho, acabando como duas miseráveis mendigas em alguma outra rua incerta e não sabida desta cidade do Natal. Hoje a Rua Américo Barbalho já não mais existe, pois ela desapareceu do mapa de Natal da mesma foram que todas estas pessoas e muitas outras, várias triviais, algumas exóticas, que lá residam, foram despejadas de suas calçadas. O Bairro do Alecrim completará cem anos no próximo mês de outubro de 2011, quando os seus cidadãos deverão organizar um banquete com cem velinhas para parabenizá-lo. Todavia, para mim o Alecrim não envelheceu como não envelhecem as evocações do passado, os desafios do presente e nem as esperanças do futuro de quem passa pelas estações da vida regando camélias em sua juventude primaveril, sentindo a energia criadora da
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inteligência em sua maturidade estival, recolhendo os frutos amadurecidos que caem das árvores ao chão na idade outonal da existência. Os antigos residentes da Américo Barbalho foram embora para sempre e em seus lugares chegaram os mascates que tinham prosperado nos negócios, quase todos já estabelecidos no Bairro da Ribeira, alguns que vieram do interior do Estado, poucos que emigraram de outras capitais do Nordeste. O primeiro deles que aportou no território foi um mercador que vendia mesas de jacarandá em sua loja na Cidade-Alta, enriqueceu no comércio varejista de movelaria de luxo e serviu docilmente à antiga Arena, partido político da ditadura militar que asfixiou o Brasil durante muitos anos depois do golpe de estado de 1964, subserviência esta que se assemelhava a de um cão fidelíssimo que sempre lambe os coturnos do seu amo; o segundo, foi um papeleiro, maneiroso e cardiopata, que patrocinava os poetas mentecaptos ou sãos e conseguiu casar a sua única filha, donzela simpática e bem discreta, com um príncipe-herdeiro de uma monarquia banhada pelos mares do Atlântico de cujas janelas se avistava a África; e o terceiro, foi um empresário endinheirado e imponente, que dormiu governador do Estado mas acordou deposto pelos mesmos caudilhos militares que governavam a nação naquela época, porque a sua esposa simplesmente denunciou ao estratocrata que estava de plantão naquela madrugada no palácio do planalto em Brasília, que o seu marido era um adúltero criminoso e contumaz, mantendo uma comborça teúda e manteúda em uma cobertura de luxo em plena Avenida Atlântica da cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. E assim a rua residencial Américo Barbalho foi demolida para a edificação de uma avenida conquistada por devotos de um deus chamado mercúrio, que desde os longínquos tempos de Roma antiga, quando se tornou o mensageiro de júpiter pela rapidez dos seus vôos de um lugar para outro, também abençoava empresários, mercadores e até mascates.
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// ARTIGO
S. Thomas More Um exemplo de fidelidade à consciência individual
Odinei W. Draeger Juiz da comarca de Arez
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Thomas More nasceu em Londres no dia 7 de fevereiro de 1478 e é particularmente conhecido por ter escrito Utopia (1516). Neste livro ele descreve a narrativa que Raphael Hythlodeaus faz de uma ilha peculiar onde não havia propriedade privada nem dinheiro e todas as atividades eram feitas de forma coletiva. O escrito valeu a More a admiração de tantos quantos socialistas possíveis. Até dizem ser ele o único santo da Igreja a ter uma estátua no Kremlin, o que arrisco dizer, aconteceu antes por uma incapacidade de compreensão do gênero literário usado por ele do que por uma verdadeira profissão primitiva no comunismo. Com efeito, duas são as leituras possíveis mais sensatas de Utopia. A primeira e a que acredito ser mais correta, diz que More quis, antes de mais nada, exaltar as virtudes humanas, particularmente as cristãs, do que propriamente aplicar sua alegoria à realidade. Semelhante erro é cometido na interpretação do que Platão havia feito séculos antes com sua República. Tanto que entre as características singulares dos “utopianos” estavam o desapego aos bens materiais, o apreço pela vida em comum, a laboriosidade e a noção de uma moral universal dada por Deus que impele à prática do bem e das boas obras. A segunda possibilidade defende que More está simplesmente sendo irônico na descrição da sociedade de Utopia, buscando com isso chamar a atenção para alguns absurdos da sociedade inglesa do séc. XVI. De um modo ou de outro, a flagrante opção de More por uma “ilha imaginária” como palco de sua descrição já deveria ser suficiente para desconfiar que sua intenção não era a de construir nenhuma sociedade planejada. Se ele quisesse de fato reformar toda a sociedade, certamente seria previsível que sua biografia espelhasse alguma tentativa neste sentido, dado que ele ocupou inúmeros cargos públicos importante na época. Isso não aconteceu.
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Uma gravura com o mapa da Ilha Imaginária de Utopia
Por fim, a constatação de que More era uma pessoa bem humorada deveria ser suficiente para encerrar a questão, pois, como é sabido, os planejadores e adeptos de reformas sociais universais são tipos geralmente carrancudos e infelizes. Mas este é apenas um detalhe que revela pouco sobre Thomas More. Poucos sabem que ele foi contemporâneo e ator de destaque nos eventos relacionados à Reforma ocorrida na Inglaterra e que teve como pivô a vida sexual de Henrique VIII. Menos pessoas ainda sabem que por causa da defesa da Igreja ele foi considerado um traidor e condenado à morte pelo rei. Thomas More era filho do juiz Sir John More e desde cedo recebeu educação clássica. Formou-se em Direito na New Inn e na Lincoln’s Inn, espécies de casas dependentes da Chancelaria do Reino e que eram ao mesmo tempo residências estudantis, faculdades de direito e tribunais. Depois desse período ficou quatro anos enclausurado na Cartuxa de Londres, conhecida pela seriedade de seus monges. Tinha grande preocupação pelo aprimoramento de suas virtudes e pretendia confirmar sua vocação para a vida religiosa. Concluiu, apesar da grande admi-
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ração pelas práticas dos monges, que não tinha vocação para a vida monástica. Foi no mosteiro, por exemplo, que aprendeu a usar por baixo das roupas, por penitência, uma camisa de pelo áspero. Mais adiante, já casado, More deu grande demonstração de seu espírito ao ter dado, na escola que instalou na própria casa, a mesma educação para seus filhos, inclusive as mulheres, e para os filhos dos criados. Todos receberam a mesma formação, que incluía também o ensino religioso. Numa época em que os estudos eram uma prerrogativa masculina essa iniciativa foi notável. Aproximadamente por volta dos trinta anos de idade, já era um advogado renomado e passou a ser convidado para missões oficiais, tendo desempenhado com grande excelência todas as tarefas que lhe eram propostas. Em 1522 foi nomeado para ser o secretário do Lorde Chanceler Thomas Wolsey, cardeal e arcebispo de York. Foi nessa época que conheceu pessoalmente o rei Henrique VIII. Henrique VIII era impulsivo e impaciente e já havia, nesta época, se decidido a pedir a anulação de seu casamento com
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Catarina de Aragão, que havia ficado estéril depois de dar à luz a uma filha, Maria Tudor, após sucessivos abortos. Obcecado pela necessidade de um herdeiro, o rei afirmou que havia ficado com escrúpulos em ter desposado Catarina, que era viúva de seu irmão Arthur. Essa busca incessante pela anulação tinha a finalidade de permitir que o rei casasse com sua amante, Ana Bolena, ficou conhecida como “The King’s Matter”, a questão do rei, e gerou uma quantidade considerável de tensão na corte. O Papa Clemente VII nomeara Wolsey e o núncio Campeggio legados para examinar a questão e, depois de várias tentativas de arrastar a decisão com a finalidade de ganhar tempo, o rei determinou que a questão fosse decidida imediatamente. O núncio teria dito “Não pretendo condenar a minha alma por causa de nenhum príncipe ou potentado. Assim, não levarei adiante este caso”. A ira e a insatisfação crescentes do rei com o desempenho de Wolsey lhe valeram o cargo. Preso, ele morreu quando era escoltado no caminho para Londres. Nos momentos finais teria confessado: “Se tivesse servido a Deus com a diligência que servi ao Rei, Deus não me teria desamparado”. O rei nomeou Thomas More para o cargo de Lorde Chanceler, dada sua grande fama de honestidade e, além disso, por pressupor que More seria mais flexível na questão da anulação do casamento, já que não fazia parte da hierarquia católica. O cargo de Lorde Chanceler equivalia ao de juiz supremo do reino e proporcionou a More consideráveis benefícios, que foram recompensados por grande laboriosidade, tanto que todos os processos que haviam sido deixados parados pelo seu antecessor foram prontamente julgados. Conta-se que More recebia em sua própria casa quem quer que tivesse uma queixa e se preocupava grandemente com os mais pobres. São dessa época vários versos populares que lhe elogiavam a eqüidade e o trabalho: When More sometime had Chancellor been / no more suits did remain The like will never more be seen / til More be there again Thomas More, retratado por Hans Holbein, O Jovem (1527)
Algum tempo depois de More ser Chanceler / não sobrou nenhum processo Algo assim nunca mais se verá / enquanto More não retornar Apesar de todo o sucesso na administração da Justiça, o rei instou More a se pronunciar sobre a questão do casamento, tendo este respondido que a anulação era questão do direito canônico e que, portanto, não teria legitimidade para se pronunciar. Tal resposta desagradou ao rei, pois sabia que a Santa Sé jamais anularia o casamento, mas como ele tinha apreço por More, prometeu que lhe deixaria em paz com sua consciência.
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Henrique VIII não descansou, contudo. Com a ajuda de seu secretário Thomas Cromwell, reuniu os bispos ingleses em convocação e lhes dirigiu um ultimato para que fosse reconhecido como supremo líder da Igreja da Inglaterra. A maioria dos bispos deixou a reunião e três deles, mas três deles não suportaram a pressão e assinaram o documento de submissão. Foi o sinal para More de que o caminho traçado pelo rei não teria volta, razão pela qual, na manhã seguinte, renunciou ao cargo de Lorde Chanceler. Em 1532, Ana Bolena engravidou da futura rainha Elizabeth I, o que motivou o apressamento da questão da nulidade por meio da nomeação de Thomas Cranmer como arcebispo de Canterbury, que intitulou-se legado papal e declarou nulo o casamento do rei com Catarina, permitindo que Henrique VIII se casasse com Ana Bolena. O Papa, logo em seguida, declarou este segundo casamento nulo. A partir de então, começa a perseguição aos dissidentes. Foi aprovada, no incipiente Parlamento, uma série de Leis que previam a punição por crime de alta traição aos que não reconhecessem o rei como chefe da Igreja inglesa e Ana Bolena como legítima rainha. Foi criada uma comissão para julgar Thomas More, presidida por Cromwell, dado que o Parlamento já havia se recusado por três vezes a fazê-lo. Na primeira sessão desta comissão foi solicitado que More jurasse tanto que os filhos de Ana Bolena eram legítimos sucessores do trono quanto que o rei era a cabeça da Igreja inglesa. Ele se recusou a fazê-lo, dizendo que não poderia jurar tal coisa sem grave prejuízo para sua consciência, pois nenhum governante poderia se sobrepor ao Papa nas questões religiosas, porquanto tivesse ele recebido este mandato do próprio Cristo por meio da sucessão apostólica. Essa eloqüente declaração de More em fidelidade à sua própria consciência, mesmo que tenha ressalvado que jamais incentivou outras pessoas a proceder de semelhante forma e nunca censurou quem tivesse dito que faria o juramento, fez com que a comissão responsável pelo julgamento determinasse a prisão de More na Torre de Londres, onde ficaria encarcerado entre abril de 1534 até julho de 1535. Várias foram as reuniões da comissão, primeiro para tentar dissuadir More a jurar a supremacia do rei, depois para julgá-lo pelo crime de traição. Em nenhum momento More deu demonstração de que
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pretendia voltar atrás em suas palavras, nem aceitou os vários conselhos maldosos que lhe diziam poder jurar a supremacia do rei em público, mas manter intimamente sua própria convicção. Num período de medo e intolerância crescentes, o apego sincero de More à verdade e à consciência dão testemunho exato de sua grande força moral. Não tendo sido demovido por quaisquer dos meios usados, permaneceu firme em sua convicção, razão pela qual foi levado para ser decapitado no dia 6 de julho de 1534. A pena de esquartejamento havia sido dispensada pelo rei por clemência. Até na hora final demonstrou bom humor, pois diante desta notícia teria dito: “Deus permita que o rei não tenha semelhante clemência com meus amigos”. Num gesto ainda de suprema caridade, pediu a todos os presentes que orassem pelo rei, tendo dito pouco antes de ser executado a seguinte frase: “Morro como fiel servidor do rei, mas de Deus primeiro”. Junto com o cardeal John Fisher, figura entre os bravos mártires da perseguição religiosa inglesa, que matou em poucos anos milhares de pessoas. Pela defesa de sua consciência e pela resistência à opressão violenta, Thomas More foi canonizado pela Igreja em 1935. O Papa João Paulo II, nesta ocasião, ao declará-lo Santo Patrono dos Governantes disse: “O seu profundo desdém pelas honras e riquezas, a humildade serena e jovial, o sensato conhecimento da natureza humana e da futilidade do sucesso, a segurança de juízo radicada na fé conferiram-lhe aquela confiança e fortaleza interior que o sustentou nas adversidades e frente à morte. A sua santidade refulgiu no martírio, mas foi preparada por uma vida inteira de trabalho, ao serviço de Deus e do próximo.” Várias são as lições deixadas por Thomas More. Foi um juiz honesto e laborioso, preocupado com as pessoas que lhe pediam Justiça e foi um exemplar pai de família que amou e educou seus filhos com igualdade. Contudo, o ensinamento mais valioso que da vida dele podemos tomar é que existe, antes das aparências e compromissos de ocasião, uma verdade inexorável, que se impõe e que deixa seu registro indelével na eternidade. O que fazemos em vida não pode ser apagado jamais, nem relativizado posteriormente e por isso devemos nos manter fiéis à nossa consciência, e ter a coragem de afirmá-la quando necessário: S. Thomas More é um homem para todos os tempos.
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// Gastronomia
Presentes para o paladar Por Azevêdo Hamilton Cartaxo
Vista interna do restaurante Rock Dog
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Desde crianças nos encantam os sabores. Todo mundo tem alguma boa lembrança, quase sempre de um doce. O chocolate favorito, o doce predileto preparado pela mãe, tia, ou avó. O alimento, quase sempre, é pano de fundo para nossas relações emocionais mais importantes. Os almoços na casa da mãe, o churrasquinho em casa com os filhos, os jantares românticos e, porque não lembrar, dos tira-gostos que acompanham as cervejinhas com os amigos? Já que é assim, porque não buscar os cenários mais prazerosos possíveis? Refeições memoráveis são feitas de várias matérias-primas cuja proporção na receita pode variar bastante. Um ambiente agradável, ingredientes frescos, tempero simples e tradicional, ou criativo e inovador e um bom atendimento são os principais deles. A boa companhia não pode faltar, porque sem ela, nada tem a mesma graça. Você, leitor da RITOS, é nossa melhor companhia nessa viagem pelos sabores e por isso não poderíamos deixar de dividir algumas dicas sobre onde comer bem, com as pessoas de quem você gosta. Aqui vão duas delas. O litoral sul tornou-se um achado para quem quer comer bem e as opções são bem variadas. As praias de Pipa e Tibau do Sul têm muitas escolhas que atraem em iguais proporções uma clientela de turistas e, para nossa sorte, nós potiguares. Pouca gente sabe, mas ali há uma jóia escondida: o Restaurante Cruzeiro do Pescador. Sua existência era, até agora, assunto de propaganda “boca a boca”. Já que é tão bom, queremos dividir com você. O Cruzeiro do Pescador fica longe do burburinho do centro. Está loca-
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FilĂŠ alto ao molho de vinho do porto, com arroz cremoso e batatas caramelizadas
lizado na estrada para o “Chapadão” de falésias, num “quase-sítio” na margem direita da estrada. Só uma placa bem discreta identifica o local, de uma simplicidade quase enganadora e que fica fora da vista de quem chega. Lá, quase sempre se é recebido pelo simpático dono Daniel Filipe Rios, filho de portugueses que costuma puxar conversa e perguntar como se soube da existência da casa, dada sua discrição. O ambiente do restaurante é simples e agradável, bem definido por ele próprio como de “rusticidade requintada” com mesas no alpendre forradas com toalhas feitas à mão pelas artesãs da região. À noite, as mesas são iluminadas por velas e lampiões. O cardápio agrada a um só tempo os amantes da inovação e da simplicidade. A casa é especializada em pescados (apesar de ter outras opções) e se orgulha de incorporar nossos ingredientes regionais às influências de Portugal e de suas outras colônias vindas da família do proprietário. Pode-se comer desde um tradicional casquinho de caranguejo, até um suru-
ru ensopado no coco. É possível pedir um bem preparado filé ao molho de queijo ou ervas, ou um peixe fresco grelhado, ou ainda ser recompensado pela ousadia num delicioso e exótico Camarão à Goesa, cozinhado com um discreto curry, gengibre e outras especiarias. Para acompanhar, peça um suco de frutas frescas ou invista sem medo nas sugestões de vinhos feitas pelo proprietário, como um branco alentejano Terras de Xisto 2008 (R$ 49,00). Para quem quer ficar por Natal mesmo, há também outra ótima opção, que ainda não é conhecida de todos. O Rock Dog Café foi inaugurado há 8 meses e pertence ao advogado Gerson de Souza Barbosa, esposo da colega juíza Tatiana Socoloski, amante da boa música e da gastronomia responsável e barista diplomado em São Paulo. O nome do local engana. Não tem cachorro nem nas redondezas, nem é templo do rock. O bom café é coadjuvante do forte da casa, que é a ótima comida feita pelos dois chefs do restaurante. Com certeza o proprietário que está
Equipe Rock Dog Café: Gerson Barbosa e os chefs Rufno Júnior e Tiago Silva
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sempre lá pode explicar melhor o nome do bistrô aos que forem lá experimentar os sabores. O Rock Dog Café é um ambiente tranqüilo, casual com toque de sofisticação. Percebe-se logo de saída a atenção aos detalhes, que vão da iluminação, à música e até as mesas com detalhes em marchetaria. O cardápio é bem variado, com muitas opções de entradas, risotos, massas e carnes. O Rock Dog Café, bistrô assumido, não descuida de suas entradas. A picanha fatiada (500g) acebolada que é acompanhada de tomates recheados é ótima. Como prato principal, dentre as muitas opções de risotos, massas, carnes e frutos do mar, a coluna recomenda o excelente risoto de filé com funghi, à altura dos servidos nos restaurantes mais famosos do país. Dica: peça só um pouco de manteiga à cozinha e acrescente extravagância ao ótimo prato original. O risoto vai muito bem acompanhado do tinto português Fuscaz, um dos mais vendidos da carta de vinhos do restaurante que a está expandindo para em breve também incluir vinhos da Itália e Espanha. Várias opções de sobremesa (cartolas, tortilha de morango, creme de papaia, mousse de chocolate, pudim de leite e frutas flambadas com sorvete) fecham o ritual da refeição, acompanhados dos cafés especiais ali preparados em máquina pelo restaurante. O Rock Dog, inaugurado em abril deste ano, é ainda pouco conhecido, mas com sua boa cozinha e excelente atendimento, vai se firmar na cena gastronômica de capital. Fica a dica para você ir lá e aproveitar antes de todo mundo.
Restaurante Recanto do Pescador e o clima de litoral
RESTAURANTE CRUZEIRO DO PESCADOR (84) 3246-2026 | 9121-6485 cruzeiropescador@uol.com.br Chapadão - Praia da Pipa - Tibau do Sul/RN - Brasil ROCK DOG CAFÉ Av. Amintas Barros, 2194 - Lagoa Nova Natal/RN (84) 8897-1301 | 9461-8069
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Conciliação: uma opção moderna para solução de conflitos.
Roberto Medeiros dos Santos Advogado, pós-graduado em administração de empresas e gerente jurídico da COSERN.
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A capacidade de resolver seus conflitos de forma célere e justa é indicador do grau de evolução de uma sociedade. Ainda que inerente às relações humanas, o conflito não deve se perpetuar por prazo indeterminado, pois gera insegurança, instabilidade e deterioração nas relações entre as pessoas e organizações. Sob a ótica da economia, a postergação da solução de um conflito cria impasses, adia investimentos e eleva os custos de transação para as empresas e para a sociedade. A complexidade das relações sociais, incluindo os mecanismos de regulação dessas relações provoca, cada vez mais, o surgimento de interesses antagônicos entre os atores sociais, desencadeando a formação de novos conflitos. Por conta disso um desafio se apresenta: a sociedade moderna precisa desenvolver mecanismos para absorver uma demanda crescente de conflitos e solucionados adequadamente em prazos cada vez mais curtos, ao menor custo possível. Não é algo simples de se alcançar. A prática cotidiana tem mostrado uma realidade desanimadora. Crescimento desmesurado de demandas perante o Poder Judiciário, impedindo a solução das lides em prazo razoável, estrutura do Estado insuficiente e custos crescentes para a sociedade. De nada adianta a Constituição Federal estabelecer a regra da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII) se no mundo real há uma assimetria entre o volume crescente de demandas e a estrutura posta à disposição para solucioná-las de forma célere. Essa assimetria, causada pelo descompasso entre necessidade e recurso disponível, tem uma componente cultural muito forte. No Brasil são poucas as iniciativas no sentido de se evitar o conflito ou de se adotar a conciliação para a solução de litígios. Como método de solução de conflitos mais eficiente (tanto do ponto de vista econômico como também do ponto de vista da celeridade) a conciliação, seja a judicial, quando já em curso um processo, seja a extrajudicial, emerge como alternativa viável para a redução da sobrecarga do Poder Judiciário. Entretanto, no que pese ser uma alternativa mais racional na composição
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das lides, observa-se que conciliar não é uma prática comum nas lides diárias. Apesar de a sociedade brasileira apresentar uma tendência natural à conciliação, na maioria das vezes tal comportamento não se verifica uma vez instaurado um processo judicial. Isso pode ser constatado pelo tempo de tramitação de alguns processos e da tendência de se recorrer de toda e qualquer decisão desfavorável a uma das partes. No processo cível, por exemplo, muitas vezes as partes sequer comparecem à audiência de conciliação, como se sinalizassem que esta é desnecessária. Os motivos para comportamentos dessa natureza são vários. Pode-se pensar que para uma das partes a demora do processo é útil. Ou a expectativa (às vezes incorreta) de que o ganho futuro será muito melhor, e até mesmo a própria formação intelectual é dada aos profissionais do direito, sempre treinados para o conflito, contribui para o problema. Tanto é que são raros os cursos de Direito que tem em sua grade curricular disciplina específica métodos alternativos de solução de conflitos como a negociação e conciliação. Apesar dessa realidade, e por conta dela, a situação de desconforto atual aponta para a necessidade de urgente mudança de paradigma. Uma mudança que deve atingir a própria cultura jurídica no Brasil, no sentido de se valorizar e incentivar posturas conciliatórias e de negociação. A prática de concessões mútuas, com vantagens para ambas as partes, tem que ganhar espaço sobre o princípio do “ganha/perde” predominante no processo judicial brasileiro. Por conta disso, dignas de aplauso são todas as iniciativas que buscam implantar uma cultura de conciliação na sociedade, inclusive através de alteração na legislação processual. O anteprojeto do novo Código de Processo Civil, por exemplo, já contempla essa visão, alterando a dinâmica do processo ao permitir que as partes conciliem antes mesmo da contestação do réu (artigos 333 e 334, do anteprojeto). A postura adotada pelo Poder Judiciário também é digna de nota. Os movimentos de conciliação mostram, a cada edição, uma maior participação das partes, e com resultados positivos crescentes. Este ano, por exemplo, a Semana de Conciliação realizada no Rio Grande do Norte, promovida pelo Tribunal de Justiça, pode ser considerada um sucesso, não só pela quantidade de litígios solucionados, mas, e principalmente, pelo envolvi-
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mento maior das partes. Esses eventos contribuem para que as partes em um processo se conscientizem da importância e das vantagens dos procedimentos de solução de conflitos baseados na conciliação. Em especial, para as empresas, geralmente demandadas e demandantes em grande número de processos, tal perspectiva exige a quebra de alguns paradigmas e a adoção de um planejamento detalhado, além de um trabalho de longo prazo no sentido de incutir uma cultura que busque evitar o conflito e, mesmo quando isso não é possível, que o mesmo seja solucionado de forma conciliatória. A COSERN tem, nos últimos anos, buscado solucionar os conflitos através de conciliações, não apenas na esfera judicial, mas principalmente na esfera administrativa. Entende a empresa que agindo preventivamente evitará que parcela significativa de problemas seja submetida ao Judiciário. Essa atuação preventiva é fundamental para desonerar o aparelho estatal de demandas repetitivas e em grande volume, a maioria das vezes sem qualquer complexidade e de valores muito pequenos, mas que exigem do magistrado e dos serventuários da justiça a mesma atenção e dispêndio de tempo que demandas de maior complexidade. O efeito de uma atuação preventiva na COSERN pode ser evidenciado pela comparação entre o número total de seus consumidores e a quantidade de demandas que lhe são direcionadas, além da correlação entre as demandas de cunho administrativo e as de cunho judicial. Observe-se no gráfico adiante que a empresa tem conseguido solucionar praticamente todas as demandas administrativas que lhes são submetidas por seus consumidores. Caso não houvesse tal postura, era de se esperar que a maioria dessas demandas administrativas se transformasse em processos judiciais. A COSERN possuía, em outubro deste ano, 1.124.430 contratos ativos de consumidores, sendo que cada contrato gera 12 faturas por ano, totalizando 13.493.160 faturas. A atuação preventiva na solução de conflitos tem surtido efeitos muito positivos quando se compara a quantidade de faturas e o número de reclamações referentes a essas faturas (que na imensa maioria são solucionadas). A adoção de uma cultura preventiva e conciliatória é, de
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Nota: algumas reclamações só foram solucionadas no ano seguinte em relação ao de recebimento, fazendo com que o volume de reclamações solucionadas seja superior ao de recebidas em um ano específico.
longe, a melhor opção, tanto sob o aspecto econômico, como de relacionamento com os clientes e também em relação à otimização dos recursos do Estado, já que uma quantidade muito menor de demandas necessitará movimentar o aparelho judicial através de um processo judicial. Prevenção e conciliação podem e devem fazer parte de um
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processo empresarial estratégico, que define premissas e condições para a solução de conflitos. No caso da COSERN há constante avaliação dos procedimentos adotados pela empresa no sentido de se evitar potenciais litígios. E quando isso não é possível, busca-se encontrar a melhor forma de solucioná-los, sem a necessidade de um processo judicial. Os números acima
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demonstram bem essa prática. Mesmo no universo das demandas judiciais em curso sempre se vislumbra a possibilidade de conciliar. Isso é feito através da análise do problema discutido nos autos (cada processo deve ser analisado) e do conjunto probatório existente, estimativa de custos processuais, de tempo de duração e valor final envolvido, geração de alternativas para a solução do conflito e escolha da melhor alternativa. Além disso, há toda uma análise de flexibilidade orçamentária e de critérios comerciais e contábeis que serão aplicados após a concretização do acordo.
No movimento de conciliação ocorrido entre 29 de novembro e 03 de dezembro deste ano, a aplicação de uma análise estratégica para conciliação permitiu que a COSERN obtivesse um percentual de sucesso (acordos efetivamente realizados) de 49% nas audiências realizadas no Fórum Miguel Seabra Fagundes, formalizando acordos que ultrapassaram R$ 1.300.000,00 e puseram fim a processos com mais de 10 anos de tramitação. Para a COSERN os resultados obtidos com a conciliação em relação às demandas de seus clientes tem sido animadores e isso contribui para que se mantenha uma postura de negociação.
Por outro lado, as iniciativas do Poder Judiciário em incentivar mecanismos conciliatórios são extremamente necessárias e devem ser valorizadas. Os movimentos de conciliação, por exemplo, poderiam ocorrer durante todo o ano como forma de incentivar a mudança de paradigma. Além disso, as experiências conciliatórias deveriam ser alvo de estudo nos cursos de Direito e no treinamento dos profissionais que lidam com o processo. Uma mudança cultura exige esforço intelectual e tempo de maturação. Importante também é a sensibilidade do Judiciário em entender os processos e estratégias empresariais, mormente
em se tratando de processos comerciais, regras de governança corporativa, limitações orçamentárias e contábeis, o que pode dar maior efetividade na realização de acordos e a conseqüente redução de litígios. Enfim, são de se esperar ganhos significativos para a sociedade com essa mudança de paradigma, em virtude da redução do grau de litigiosidade entre os atores sociais, custos de transação e insegurança jurídica pela perpetuação de conflitos. De outra parte, a desoneração do Poder Judiciário com a redução de processos e procedimentos propicia maior agilidade e melhor qualidade no cumprimento de sua missão.
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Direito, justiça e jurisdição na Grécia Homérica Guilherme Newton do Monte Pinto Juiz de Direito em Natal-RN; Professor de Instituição do Poder Judiciário da ESMARN; Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade MACKENZIE–SP; Especialista em Direito e Cidadania pela UFRN; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela PUC-SP; foi Presidente da AMARN e Vice-Presidente Institucional da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB.
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INTRODUÇÃO A poesia, quase sempre, reflete o seu tempo e o contexto social em que se insere o poeta, sendo este o verdadeiro pano de fundo da arte literária. Algumas vezes, entretanto, tal se dá de forma tão acentuada, tão viva, que faz transbordar, da manifestação poética, a essência das instituições do povo em que se inspirou. É o que ocorre na poesia grega e, em especial, na obra que se atribui a Homero, considerando como tal a Ilíada e a Odisséia, sem adentrar no tema, desnecessário aos objetivos aqui pretendidos, da correção da atribuição das obras ao autor, Partindo desta percepção, objetiva-se aqui, a partir das epopéias homéricas e fundando-se na compreensão de alguns aspectos peculiares da vida do povo grego daqueles tempos ditos heróicos, insuperavelmente retratados pelas obras mencionadas, extrair algumas noções que se possam relacionar à moderna Teoria do Direito, contrariando aqueles que apregoam o surgimento de tais noções em épocas bem mais recentes, de forma a procurar entendêlas no contexto de seu tempo e explicá-las, porém, à luz da compreensão que temos hoje dos respectivos institutos.
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A POESIA, O HOMEM E O ESTADO A poesia grega tem por tema inesgotável o Homem e o aborda de forma tão abrangente, em seus múltiplos desdobramentos, inclusive pessoal, religioso, social, que a essência das instituições gregas pode ser facilmente percebida e compreendida a partir da observação deste particular aspecto. Afirma Jaeger, que o Estado grego “só pode ser compreendido sob o ponto de vista da formação do homem e da sua vida inteira” e que “já não é possível uma história da literatura grega separada da comunidade social de que surgiu e à qual se dirigia”. É que, como bem observa o autor, “o Homem que se revela nas obras dos grandes gregos é o homem político”1. De fato, no mundo de Homero, a poesia retrata o Homem e o Homem reflete o Estado. Assim, ao examinar-se a poesia de Homero, se vislumbra a essência do Homem da Grécia antiga, delineia-se o Estado dos tempos de Aquiles e, desta forma, se pode extrair alguns conceitos e noções relacionadas ao Direito, à Justiça e, até mesmo, à Jurisdição daqueles tempos ditos heróicos. VISÃO ARISTOCRÁTICA EM HOMERO Necessário acentuar, de início, que toda a obra atribuída a Homero retrata inafastavelmente uma visão aristocrática, uma visão de nobreza e que impregna toda a concepção e noções que dela se possa extrair. Um conceito essencial para que melhor se compreenda este aspecto é o de Arete. Ainda que não exista termo equivalente na língua portuguesa, pode ser traduzido como “virtude” e, de uma forma geral, Homero designa por Arete a força ou destreza dos guerreiros, o heroísmo, tão bem representativo de seu tempo, não apenas no nosso sentido exclusivamente moral, mas, sobretudo, o heroísmo intrinsecamente ligado à força. Na concepção dos tempos homéricos, entretanto, é este um atributo próprio da nobreza, de forma que o homem comum e, muito menos o escravo, detém a Arete. Se a virtude, em seu sentido mais amplo, só pode ser reconhecida a um nobre, e tal reconhecimento tem decisiva repercussão social, não se poderia deixar de enxergar, neste aspecto, uma visão aristocrática na obra de Homero, com inegáveis re1
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flexos nas noções que se pudesse dela extrair, ou seja, a delimitação à nobreza do campo de reconhecimento público da virtude indica com clareza igual delimitação da noção que se possa ter de diversos outros aspectos das relações sociais e dos institutos a elas inerentes. É visível como a Odisséia, ao oferecer uma descrição da vida na paz, quando “pinta a existência do herói depois da guerra, as suas viagens aventurosas e a sua vida caseira com a família e os amigos, inspira-se na vida real dos nobres do seu tempo”. O texto da Odisséia representa “uma classe, a dos nobres senhores, com os seus palácios e casario” que é “uma classe fechada, com intensa consciência dos seus privilégios, do seu domínio e dos seus costumes e modos de vida refinados” e “apesar de na Odisséia existir um sentimento de humanidade para com as pessoas comuns, não se pode imaginar uma educação e formação conscientes fora da classe privilegiada. Só esta classe pode aspirar à formação da personalidade humana na sua totalidade”2. Inegável, pois, a visão aristocrática na obra de Homero, reflexo do contexto social em que se insere, e que se irradia por todos os institutos - inclusive os relacionados ao Direito -, que possam ser extraídos de sua narração. NOÇÃO DE JUSTIÇA Do exame da narrativa homérica percebe-se uma interessante ligação entre a Arete e a Honra. Há, em todos os heróis das Epopéias, assim como nos próprios deuses, uma ânsia pelo reconhecimento publico de sua Arete, de sua honra, pelo elogio, pela glória alcançada, pelo prestígio que se obtém no seio da sociedade em decorrência deste reconhecimento e, em contrapartida, o medo, a revolta, a ira, pelo não reconhecimento, pela reprovação pública, pela negação da honra. Daí dizer Jaeger, que “o homem homérico só adquire consciência do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence. Ele é um produto da sua classe e mede a Arete própria pelo prestígio que disputa entre os seus semelhantes” e “para Homero, e para a nobreza de seu tempo, a negação da honra era a maior tragédia humana. O elogio e a reprovação são a fonte da honra e da desonra”3. 2
JAEGER, 2001. p. 41, 43 e 44.
3
JAEGER, 2001. p. 31.
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Dessa correlação estreita entre Arete e Honra, desta ânsia pelo reconhecimento da Honra e pela ira e revolta que provoca a sua negação, se pode extrair uma noção de Justiça vinculada ao reconhecimento da honra, da Arete. É justo reconhecer a honra e injusto negá-la. Dentro deste prisma é que melhor se pode compreender o trágico conflito de Aquiles na Ilíada, a sua ira - que se constitui no tema central da epopéia desde o seu nascedouro -, a negativa do herói em combater ao lado dos gregos na guerra contra Tróia. Visto sob o olhar dos tempos modernos, já impregnado pela noção cristã da consciência pessoal, poderia parecer, a atitude do herói, ambição pessoal, vaidade superficial, mas, aos olhos do homem grego, afigura-se como justa reação à recusa de sua honra, do reconhecimento de sua Arete proeminente. Nas palavras do próprio Aquiles, dirigidas à Agamêmnon, “viemos, cão protervo, para em Tróia, a Menelau e a ti lavar a nódoa. Alardeias, ingrato, e nos desprezas; (...) Já que aviltas a mão que de tesouros a fome te fartava: eu te abandono. (...) Honram-me outros, e em Júpiter confio”4. Seria, pois, no sentimento do herói e do poeta, uma resposta ao injusto. Recorrendo novamente a Jaeger, é possível extrair-se, no mesmo sentido, o exemplo “das trágicas conseqüências da honra ofendida de Ajax, o maior herói aqueu depois de Aquiles. As armas de Aquiles, caído em combate, são concedidas à Ulisses, não obstante os superiores merecimentos de Ajax, e a tragédia deste acaba na loucura e no suicídio”5. Com efeito, no Livro XI da Odisséias – Evocação aos mortos – quando Ulisses chega à terra dos Cimérios e se depara com a alma de Ajax que ainda “irosa estava pelas armas de Aquiles” e se dirige ao “mais formoso e bravo exceto Aquiles” que “nem morto esquece a fatal porfia” e pede que “teu ódio aplaca, no ânimo generoso me perdoa”, recebe deste, como resposta, o silêncio ressentido (“não deu palavra e tácito ia andando”)6. São muitos, assim, os episódios em que transparece um profundo sentimento de injustiça que corresponde com exatidão à negativa do reconhecimento da Honra. Extrai-se, pois, uma noção de Justiça que, entendida esta, tal
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qual Ferraz Jr., “como um valor ético-social de proporcionalidade em conformidade com o qual exige-se a atribuição a alguém daquilo que lhe é devido”7 se poderia dizer que, nos exemplos extraídos de Homero, seria o reconhecimento público da honra, da Arete. A imprescindibilidade, para o herói homérico, deste reconhecimento público da honra, que identificamos como sentimento de Justiça, nos remete à observação de Kelsen, para quem “o anseio por justiça é o eterno anseio do homem pela felicidade. É a felicidade que o homem não pode encontrar como indivíduo isolado e que, portanto, procura em sociedade” para concluir que “A Justiça é a felicidade social”8. Não se pode deixar de observar, por outro lado, que o conceito de Justiça está absolutamente vinculado a um pensamento aristocrático, de preponderância da nobreza que, por sua vez, traz em seu bojo a cultura do forte, do vencedor, do domínio de uns sobre outros. Daí que, no exemplo prático da ira de Aquiles, a “injustiça” de lhe ser negada a honra devida tinha a ver com a tomada, por parte de Agamêmnon, da escrava Briseida, obtida por Aquiles como despojo de guerra, de tal forma que a “Justiça” invocada envolvia contenda apenas entre nobres, porém com absoluto desprezo a pessoa de outra classe - no caso a escrava - ou seja, a noção de Justiça desconsiderava e desprezava os “desiguais”, limitando-se, a sua noção, ao âmbito possível de uma visão essencialmente aristocrática. Há, pois, uma noção de Justiça não somente vinculado a uma conduta social como também impregnada de um profundo traço aristocrático, a Themis como código de conduta cavaleiresca, como norma social da aristocracia. NOÇÃO DE DIREITO Além da noção de Justiça que se pode extrair da obra de Homero, é possível, ainda, identificar outros conceitos ligados à Teoria do Direito, em especial uma noção de direito em seu aspecto ainda arcaico. É fácil perceber, por toda a obra de Homero, um caráter mandamental na formação e educação que implica em regras
4
HOMERO. 2007, Ilíada, Livro I, versos 140 e segs.
5
JAEGER, 2001 p. 32.
7
FERRAZ JR. 2003, p. 352/353.
6
HOMERO. 2007, Odisséia, Livro XI, versos 422 e segs.
8
KELSEN, 1998, p. 9.
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claras, mandamentos por assim dizer, referentes ao trato dos deuses, dos pais, dos estrangeiros. Assim é que, da narrativa se extrai a necessidade do respeito e temor aos deuses, tanto que, ou Agamêmnon observa o desejo divino de devolver Criseida a seu pai Crises ou permaneceria o flagelo imposto por Apolo sobre os exércitos gregos (Ilíada, Livro I) e, ainda, que é preciso honrar a memória dos antepassados, tanto que Aquiles somente consente em devolver o cadáver de Heitor a Príamo após ser invocada a memória de seu pai (Ilíada, Livro XXIV). Diversos outros exemplos poderiam ilustrar este caráter mandamental que emana das regras tácita ou intuitivamente estabelecidas ao convívio social. Tais preceitos elementares do procedimento correto para com os deuses, os pais e os estranhos, que somente mais tarde foram incorporados à lei escrita, já no tempo heróico, tal como retratado por Homero, aparecem como normas que já se podem traduzir como manifestação do direito arcaico. Mesmo as regras de conduta, de respeito à Honra alheia, de reconhecimento da Arete, impostas pelo senso comum, podem ser traduzidas como tal. Vale aqui novamente invocar a lição de Ferraz Jr. para quem, no horizonte do direito arcaico, “o direito confunde-se com as maneiras características de agir do povo tomadas como particularmente importantes para a vida do grupo e manifestadas na forma de regras gerais”9, o que não se afasta por completo de uma noção mais moderna de direito em sentido geral, como “la técnica de la coexistência humana, o sea la técnica dirigida a hacer posible la coexistência de los hombres”10. E acrescenta Ferraz Jr.: “ele é percebido, primariamente, quando o comportamento de alguém ou de um grupo desilude a expectativa consagrada pelas regras, reagindo o desiludido na forma, por exemplo, de uma explosão de ira, vingança, maldições etc.”11. Neste particular, é de se observar que a Ilíada é muito mais a história da ira de Aquiles contra o que ele considerou transgressão de regras, o que se pode ver desde o primeiro verso, do que propriamente da guerra de Tróia, tanto que não narra nem
9
FERRAZ JR. 2003, p.53.
10
ABBAGNANO, 1996, p.292.
11
FERRAR JR., 2003. p.53.
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o começo e nem precisamente o fim da guerra. A Iliada seria, pois, sob este ângulo, apenas a história da reação de um herói contra a transgressão do “Direito” de seu tempo. Portanto, não se pode negar que, mesmo que intrincados e misturados os conceitos de direito com o de moral, de religião, de costumes até, é possível extrair da obra de Homero manifestações bem nítidas do que se pode conceituar como Direito, ainda que em seu formado arcaico. JURISDIÇÃO EM HOMERO É possível, também, da obra de Homero, extrair noção relacionada à função jurisdicional. Com efeito, no segundo livro da Odisséia, Telêmaco, filho de Ulisses, vai à Assembléia dos Itacenses no intuito de que os pretendentes de sua mãe Penélope, esposa de Ulisses, deixem o palácio de seu pai ou que aquela Assembléia forneça-lhe um navio para que vá a sua procura. É visível a função jurisdicional que dispõe tal Assembléia, máxime quando se observa que está ali para decidir questão privada e não propriamente pública, segundo se pode extrair dos versos em que Telêmaco expõe a sua pretensão: “Nem há novas de exército inimigo, Nem trato hoje de público interesse, Mas do meu próprio. Eis duas graves penas: Falta-me o pai, que o era do seu povo; O pior é que amantes importunos, Filhos dos principais aqui presentes, Minha mãe vexam, minha casa estragam. ... Em diários festins, meus bois tragando, Cabras e ovelhas, minha adega exaurem ... Da ruína e infâmia, cidadãos, salvai-me”12. De fato, a Assembleia, reunida na Ágora de Ítaca, destinase, naquele momento, a decidir uma questão de natureza privada, uma “demanda” por assim dizer, entre Telêmaco e os
12
HOMERO. 2007, Odisséia, Livro II, versos 30 e segs.
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pretendentes de sua mãe Penélope. Telêmaco quer afastar tais pretendentes do palácio de seu pai, evitar que os mesmos estraguem a sua casa, promovam festas diárias, usem seus bois, cabras e ovelhas, usufruam de sua adega, enfim, pretende que lhe seja dada proteção, através da Assembléia, contra o que considera uma afronta a seu direito privado, numa nítida função que hoje denominamos de jurisdicional. Não se poderia enxergar, na proteção que Telêmaco pretende, um ato de governo em seu sentido estrito, de tal forma a se supor que a Assembléia estivesse desempenhando uma função de cunho estritamente político, de interesse apenas da comunidade, desprovida de traço “jurisdicional”. Não, a questão não era de Estado, mas privada e, se interessava à comunidade, assim se dava apenas na medida em que a solução de qualquer demanda entre particulares é sempre de interesse de toda a comunidade. Mesmo o pleito por um navio que fosse à procura de Ulisses, onde inegavelmente existe uma faceta pública, uma vez que se tratava do Rei de Ítaca, Telêmaco o apresentou revestido de caráter privado, visto que o seu objetivo não era, por exemplo, defender a comunidade “contra exército inimigo”, ou proteger Ítaca contra efeitos danosos que a ausência do soberano pudesse causar, o que seria questão de Estado, mas tão somente atender o interesse próprio de ter de volta o seu pai e afastar os que importunavam sua mãe. Inegável, pois, que a Assembléia, reunida para decidir o pleito de Telêmaco, se constituiu, pelo menos naquele momento, em nítido órgão de natureza jurisdicional, não obstante ordinariamente exercer funções de governo, o que também se deduz da narrativa. Inegável, também, que ao decidir o caso, proferiu uma decisão de mesma natureza, ou seja, também jurisdicional, já que decidiu a “demanda” que lhe havia sido posta à apreciação. Interessante observar que o desfecho da questão se deu de forma desfavorável a Telêmaco, com negativa tanto da proteção contra os pretendentes de Penélope quanto da embarcação que pretendia obter, em flagrante confronto com o senso de Justiça que transparece do pensamento do poeta, tanto que recebeu o socorro divino de Atenas para ir a procura de seu pai. Talvez aí estejamos diante de um exemplo antiqüíssimo em
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que a decisão de um “Tribunal” – no caso a Assembléia – divorcia-se da verdadeira Justiça, ou seja, um distanciamento entre a aplicação do Direito e a idéia de Justiça. CONCLUSÃO Em rápidas linhas e deste breve relato, se pode resumir as seguintes conclusões: Já ao tempo homérico, e a partir da narrativa da Ilíada e da Odisséia, havia uma clara noção de Justiça, vinculada ao reconhecimento público da honra, da Arete, ainda que com caráter essencialmente aristocrático; Se pode igualmente identificar, nas Epopéias citadas, e mesmo que intrincados e misturados os conceitos de direito com o de moral, de religião, de costumes até, manifestações bem nítidas do que se pode conceituar como Direito, ainda que em seu formado arcaico Também se pode extrair, da obra atribuída a Homero, a presença do que hoje denominamos “Jurisdição”, e que se exemplifica com a passagem do Livro II da Odisséia, em que a Assembléia reunida na Ágora de Ítaca, ao decidir o pleito de Telêmaco, se constituiu, não obstante as demais atribuições que detinha, em órgão nitidamente jurisdicional e exerceu, pelo menos no caso apontado, função de igual natureza. REFERÊNCIAS JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéias: a formação do homem grego. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. HOMERO. Ilíada. São Paulo: Martin Claret, 2007. HOMERO. Odisséia. São PAULO: Marrtin Claret, 2007. FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, 4ª ed.. São Paulo: Atlas. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofia, 2ª ed. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996.
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