Revista Ritos - Edição 08

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Ritos REVISTA DA AMARN * ANO VIII * Nº 8 * AGOSTO 2012

Primeira sede

do Poder Judiciário funcionou no Palácio do Governo

Artigo Juiz Cícero de Macedo Filho e a cançao popular. FÉ religiosidade e o ato de julgar.




// editorial CONSELHO EXECUTIVO

Caros Colegas, A AMARN tem o prazer de encaminhar a todos os associados a 8ª edição da revista Ritos, que doravante passará a ser lançada semestralmente. Para os mais modernos, estamos também estreando o formato digital em versão para o Ipad, tornando a publicação mais ecologicamente correta e com maior capacidade de circulação. A revista é fruto da visão acurada do colega Jessé de Andrade Alexandria, que contou com o auxilio inestimável dos juízes Paulo Sérgio e Assis Brasil e teve como principal enfoque, ser uma edição voltada para assuntos culturais. Podemos encontrar aqui as belas fotos e poesias do colega Paulo Sérgio, brilhante artigo do juiz Cícero Macedo sobre Canção Brasileira e ainda uma amostra da arte alegre e despretensiosa do artista plástico Pedro Pereira, autor da gravura da nossa capa. A edição enfoca ainda a relação entre a religião e o ato de julgar através dos colegas Odinei Draeger, Reynaldo Odilo e Múcio Nobre, que nos falam um pouco sobre as religiões que professam. Em comemoração aos seus 120 anos, a revista faz um resgate da história do Tribunal de Justiça, desde os idos de 1892, quando foi criado até uma entrevista franca e esclarecedora da atual Presidente, Desembargadora Judite Nunes, feita pela jornalista Adalgisa Emídia. O sempre presente amigo Assis Brasil nos brinda ainda com um enfoque sobre a importância do discursso e o colega Odinei Draeger por sua vez faz um instigante ensaio sobre o conservadorismo, enquanto o juiz Geomar Brito nos brinda com a poética crônica Leocádia de Marabá. O amigo Otto Bismark escreve artigo inédito sobre a inconstitucionalidade do art. 27 do Código de Mineração. Por fim, o colega Eduardo Feld nos recomenda a leitura de O inquilino de Roland Topor, trazendo uma rica análise da obra. A todos os colegas que se empenharam nessa edição o nosso mais penhorado agradecimento. Como vocês podem ver buscamos fazer desta uma publicação leve, divertida e culturalmente rica, sem esquecer o bom gosto que sempre marcou a nossa Ritos. Busquem, então, um cantinho aconchegante e tenham uma boa leitura.

Presidente Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar Vice-Presidente Institucional Juiz Marcelo Pinto Varella Vice-Presidente Administrativo Juiz Cleofas Coelho de Araújo Junior Vice-Presidente Financeiro Juiz Odinei Wilson Draeger Vice-Presidente de Comunicação Juiz Paulo Giovani Militão de Alencar Vice-Presidente Cultural Juiz Jessé Andrade de Alexandria Vice-Presidente Social Juiz Jorge Carlos Meira e Silva Vice-Presidente dos Esportes Juiz Felipe Luiz Machado Barros Vice-Presidente dos Aposentados Juiz Francisco Dantas Pinto Coordenador da Região Oeste Juiz Breno Valério Fausto de Medeiros Coordenadoria da Região Seridó Juíza Marina Melo Martins CONSELHO FISCAL Juiz Azevêdo Hamilton Cartaxo Juiz Fábio Antônio Correia Filgueira Juiz Fábio Wellington Ataíde Alves Juíza Flávia Souza Dantas Pinto Juiz Gustavo Henrique Silveira Silva Juiz Luiz Alberto Dantas Filho Juiz Mádson Ottoni de Almeida Rodrigues Juíza Manuela de Alexandria Fernandes Juíza Rossana Alzir Diógenes Macêdo Editora executiva Adalgisa Emídia DRT/RN 784 Projeto Gráfico e Diagramação Firenzze Comunicação Estratégica (84) 2010.6303 | (84) 2010.6307 atendimento@firenzze.com Fotos Elpidio Júnior CAPA Trabalho do artista plástico Pedro Pereira Gráfica Unigráfica Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte Condomínio Empresarial Torre Miguel Seabra Fagundes R. Paulo B. de Góes, 1840 Salas 1002, 1003 e 1004. Candelária - Natal-RN. CEP: 59064.460 Telefones: (84) 3206.0942 3206.9132 | 3234.7770 CNPJ: 08.533.481/0001-02

Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar Presidente da AMARN

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// Sumário

22 Poder judiciário Poder Judiciário no RN e os 120 anos de história.

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livro Dica de livro com o juiz Eduardo Feld

40 artes O artista plástico Pedro Pereira supera desafios e mostra sua arte

32 religiosidade Três juízes falam de suas religiões e a importância da fé no ato de julgar

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20 Ensaio Paisagens em fotografias nas lentes do juiz Paulo Sérgio de Lima

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// ARTIGO

Quem são os conservadores? Odinei W. Draeger Juiz da 1ª Vara Cível de São Gonçalo do Amarante

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Russel Kirk, um dos campeões do conservadorismo no séc. XX, autor do monumental “The Conservative Mind – From Burke to Eliot”, contou certa vez a seguinte história: uma de suas vizinhas, Sra. Worth, conversava com a Sra. Williams, vizinha dela. Ela estava com alguns arrependimentos por ter vendido um prédio antigo, propriedade de sua família há muito tempo. A Sra. Williams teria dito, ao final e com grande dose de resignação que “não se pode impedir o progresso”. A surpresa maior ela teve com a resposta da Sra. Worth: “Não, na maioria das vezes não; mas você pode tentar”. Assim como a Sra. Worth, uma parcela considerável de pessoas desconfia do progresso como um valor em si. Uma coisa não é boa só porque é mais “avançada”. A noção de progresso é, talvez, uma das maiores e mais acreditadas empulhações que a modernidade conseguiu criar. Já a compreensão de que há algumas coisas que valem a pena conservar é a atitude essencial de um grupo de pessoas normalmente chamadas de “conservadores”. Curioso, aliás, é que essa palavra, conservador, goze de enorme desprestígio. Chamar alguém de conservador, especialmente nos ambientes acadêmicos, é algo tão terrível e associado a tantas práticas reprováveis que dificilmente alguém que seja de fato um conservador vá se declarar assim na frente dos outros. As elites bem pensantes do nosso país, por exemplo, negam aos conservadores qualquer possibilidade de boas intenções. O monopólio da bondade social na esquerda light é diretamente proporcional ao rótulo odioso que a palavra conservador se tornou, como sinônimo de tudo aquilo que é ruim, mal e feio.

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Resgatar a dignidade do conservadorismo parece ser não só uma missão nobre como também necessária, de modo que proponho primeiro sintetizar o que pensam os conservadores, no intuito de afastar algumas das associações maliciosas mais comuns. Não é possível estabelecer exatamente o que pensam os conservadores. Não há nenhuma espécie de manual, de catecismo conservador. Nenhum conservador se preocuparia em fazê-lo, em escrever uma espécie de manifesto conservador, mesmo que, agora mais do que nunca, um espectro esteja pairando sobre o mundo, pois os conservadores tendem a se preocupar primeiro com seus próprios problemas e não tem entre seus objetivos o romântico sonho de “mudar o mundo”. Desta forma, é possível apenas colher as impressões mais constantes na prática e nos discursos dos grandes representantes do conservadorismo e, para tanto, valho-me mais uma vez da preciosa ajuda de Russel Kirk, que num artigo chamado Ten Conservative Principles, adaptado de seu livro The Politics of Prudence, estabelece de forma mais ou menos eficiente os traços mais comuns entre os conservadores. Abaixo transcrevo partes do artigo, que pode ser encontrado no site do “The Russel Kirk Center” (http://www.kirkcenter.org/ index.php/detail/ten-conservative-principles/) com meus comentários em seguida. “Primeiramente, o conservador acredita que existe uma ordem moral duradoura. Que a ordem está feita para o homem, e o homem é feito para ela: a natureza humana é uma constante, e as verdades morais são permanentes”. O conservador rejeita as teses multiculturalistas e modernas que relativizam a moral e negam a existência de uma ordem superior. Para ele o certo e o errado não mudam, assim como não muda a sucessão dos dias e das noites, não importando a urgência das razões de estado. O esquerdista geralmente critica o conservador dizendo que todos os problemas sociais são para ele questões de moral privada. Se essa afirmação for compreendida da forma adequada, ela está até certa. Para um conservador, uma sociedade composta por pessoas guiadas por uma moral perene será sempre uma boa sociedade, não importa qual o tipo

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Russel Kirk

de engenho social usado para governá-la. “Segundo, o conservador adere ao costume, à convenção, e à continuidade. São os princípios antigos que permitem que as pessoas vivam juntas pacificamente. Os demolidores dos costumes destroem mais do que sabem ou desejam”. O conservador sabe que as práticas de uma sociedade são fruto de um longo processo de tentativa e erro e que as regras de costume que vigoram hoje são as que permitiram o desenvolvimento de uma ordem social na qual a vida comunitária é possível. As técnicas mais arrojadas de reformismo social somente conseguem destruir aquilo que já foi testado por algo novo, projetado, mas que no final das contas será utilizado socialmente pela primeira vez. Como a sociedade humana não é uma máquina, e as variáveis com que o planejador social teria

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que lidar para mudá-la completamente são impossíveis de ser dominadas por qualquer mente individual, o conservador sabe que a melhor chance para manter as coisas bem é aderir aos costumes passados, sem perder de vista o fato de que, conforme ensinou Edmund Burke, mudanças podem ser necessárias, mas devem ser prudentes. “Terceiro, os conservadores acreditam no que pode ser chamado o princípio da prescrição. Conservadores percebem que as pessoas modernas são anãs sobre os ombros de gigantes, capazes de ver mais longe que seus ancestrais apenas por conta da grande estatura daqueles que os precederam no tempo”. Grande parte dos problemas de hoje em dia já foi estudado e resolvido com certo grau de eficiência por alguém do passado. Pessoas mais capazes que nós podem ter estudado e meditado sobre as questões que nos preocupam, e não é necessário que por achismo ou carência de vontade precisemos construir tudo novamente do zero, pois ao atermo-nos às prescrições passadas estaremos, de certo modo, evitando que ao invés de construir mais um andar no edifício da civilização tenhamos que derrubar tudo para refazer as fundações. “Quarto, os conservadores são guiados por seu princípio da prudência”. Uma medida nova deve ser avaliada não só pelos benefícios imediatos, mas principalmente por seus reflexos em longo prazo. A imprudência é que leva um governante tomar ações que buscam sanar um problema pequeno no presente, mas causam problemas bem maiores no futuro. Segundo Kirk, John Randolph de Roanoke bem colocou: “a providência move-se lentamente, mas o diabo sempre se apressa”. “Quinto, os conservadores prestam atenção ao princípio da diversidade”. Eles sabem que a diversidade de classes, instituições sociais e modos de vida são próprios da humanidade e que qualquer tentativa de nivelamento, como o proposto pelo comunismo, gerará estagnação social, no melhor dos casos, e, na maioria, morticínio e opressão.

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“Sexto, os conservadores se purificam por seu princípio da imperfeição (“imperfectability”). A natureza humana sofre de determinadas falhas graves, o sabem os conservadores. Em sendo o homem imperfeito, nenhuma ordem social perfeita pode ser criada”. Uma utopia não merece ser perseguida porque não é da natureza do homem a perfeição. Nenhuma sociedade planejada para ser perfeita é possível na prática. O máxima que podemos esperar é que os arranjos sociais sejam feitos da forma mais ordenada, justa e livre possível, mas sempre tendo em mente que desajustes e problemas surgirão e que as ideologias que prometem extirpar a sociedade de seus problemas tendem a transformá-la no oposto do que perseguem, num verdadeiro inferno terrestre. “Sétimo, conservadores estão convencidos de que a liberdade e a propriedade são intimamente relacionadas”. A propriedade privada é uma constante da própria natureza humana. O fenômeno da apropriação é observado em todas as sociedades desde a aurora do homem. A extinção da propriedade não é possível, como querem os comunistas, pois se ela for confiscada pelo estado, também isto seria uma forma de desapropriação. Além disso, para fazê-lo o estado sempre necessita da força, para submeter os que não derem sua propriedade livremente. Esta força, de tão tremenda, cria outro problema, pois além da propriedade, o indivíduo perde toda sua liberdade. Assim, a posse da propriedade pelo indivíduo é aceito pelo conservador tanto como um direito quanto como um conjunto de responsabilidades sociais. “Oitavo, conservadores suportam ações comunitárias voluntárias, tanto quanto se opõem ao coletivismo involuntário”. Em seu livro Makers and Takers, Peter Schweizer mostra, por meio de estatísticas, que os conservadores americanos tendem a ser mais generosos em sua filantropia do que os liberais (esquerdistas), muito embora sejam estes últimos que advoguem o aumento do estado justamente para ajudar os mais pobres. O conservador tende a ajudar mais ao próximo, em razão das

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prescrições morais que obedece, do que o esquerdista, que tende a achar que isso é um problema de “políticas públicas”. “Nono, o conservador percebe a necessidade de prudentes restrições ao poder e às paixões humanas”. O conservador sabe que a natureza humana é facilmente corrompida pelo poder e que as paixões tendem a se sobrepor sobre o juízo, de modo que quando o poder é entregue a uma pessoa apenas ou a um pequeno grupo há a inevitável queda da sociedade em um governo despótico e tirano. O conservador sabe que a melhor forma de impedir o jugo despótico é distribuir e restringir o poder, por meio da sua dispersão e da adoção de freios institucionais que permitam uma tensão saudável entre a autoridade do governo e a preservação da liberdade individual. “Décimo, o pensador conservador compreende que essas permanências e mudanças devam ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade vigorosa. O conservador não é oposto à melhoria social, embora duvide que haja algo como uma força geradora de algum Progresso místico, com “P” maiúsculo, operando no mundo”. A idéia de que as coisas necessariamente caminham, na medida da passagem do tempo, de uma situação pior para uma melhor, de que o passado é ruim e o futuro será melhor do que hoje, enfim, a noção de progresso, é completamente divorciada da lógica. Não há nenhuma razão para que nosso futuro não seja muito pior do que a Grande Depressão, basta que as forças indutoras da ordem como a conhecemos degenerem e criem um distúrbio capaz de destruir a coesão do tecido social. Assim, “o conservador, resumidamente, favorece o progresso racionalizado e moderado; é oposto ao culto do progresso, cujos adeptos acreditam que tudo que é novo é necessariamente superior a tudo que é velho”. Por isso, da próxima vez em que, numa discussão, alguém tentar colocar a perder seus argumentos chamando-lhe de conservador, talvez seja o caso de responder-lhe que sim, conservador com bastante orgulho.

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// ARTIGO

A canção popular brasileira: algumas notas Cícero Martins de Macedo Filho Juiz de Direito da 4ª Vara da Fazenda de Natal/RN. Mestre em Direito Constitucional (UFRN). Mestre em Direito Constitucional (Universidade do País Basco-Espanha). Doutorando em Direito Constitucional (Universidade do País Basco-Espanha). Músico amador. Estudante do Curso de História (UFRN). Presidente da Academia Macaibense de Letras.

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Milhares de livros e artigos já foram publicados sobre a Música Popular Brasileira, enfocando, principalmente, a sua formação, a partir da marcha, passando pelo choro e pelo samba, gêneros autenticamente brasileiros, até a chegada da Bossa Nova, movimento musical surgido no final dos anos 50 e que revolucionou a arte de cantar e tocar. Na historiografia da MPB é comum encontrar divergências sobre a motivação desse movimento, mas, na verdade, ele surgiu em razão da busca de aperfeiçoamento do samba. Na opinião dos seus idealizadores, o que se buscava com a Bossa Nova era introduzir recursos que iriam, segundo eles, valorizar o samba. Parece não haver dúvida sobre o inegável desejo de transformar o que se tinha feito até então, pois o anterior era quadrado, na opinião daqueles músicos que passaram a construir sofisticadas harmonias para os novos sambas cheios de novas bossas. Com raras exceções, entendia-se que era preciso mudar a maneira quadrada de cantar e tocar. E assim surgiu a nova música, a nova bossa, que passou a ser tão cantada em sambas inesquecíveis tanto aqui como no exterior. Há que se observar, contudo, que o próprio termo bossa já não era novidade, pois o genial Noel Rosa, inegavelmente o precursor do movimento, em 1932 já cantava, melhor que ninguém, as nossas bossas, quando dizia: “O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas, são coisas nossas” (São coisas nossas, gravação do próprio Noel Rosa). Apesar de iniciar o presente artigo destacando o samba e a Bossa Nova na formação da MPB, não são estes os temas a serem enfocados. Como foi dito, são

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milhares os textos sobre esses ritmos, são centenas os discos gravados, assim como os concertos realizados, com conotação especial para a Bossa Nova, mesmo que o samba tenha ressurgido, recentemente, com muita força. É muito bom que isso ocorra. Porém, não se tem observado o mesmo entusiasmo, ao menos no campo da pesquisa histórica, em relação à canção popular brasileira, ou, como preferem dizer alguns, a poesia musicada, que marcou época na história da nossa música popular. A época das serenatas não é tão antiga, mas, relegada ao esquecimento pelos críticos e historiadores e pelos próprios artistas, parece que esse tempo pode ser contado em séculos. Quem já teve algum interesse em conhecer melhor o nosso cancioneiro popular sabe como era bonito e diferente o Brasil daqueles tempos, ao menos na poesia popular musicada. O que dizer, por exemplo, de versos como “Tu és divina e graciosa / Estátua majestosa do amor / Por Deus esculturada / E formada

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com o ardor / Da alma da mais linda flor / Do mais ativo olor / Que na vida é preferida pelo beija-flor”? E a letra prossegue falando em “estátua magistral, alma perenal, soberana flor, sândalos olentes, láctea estrela”. É o mais puro barroco, como se percebe. Porém, tais temas já não despertam interesse, nem mesmo dos pesquisadores. Quase nada se tem dito sobre esse traço da nossa cultura musical. Os que têm interesse em pesquisar podem constatar como o artista, o poeta, o cantor, expunham todo o sentimento na construção das letras e nas interpretações, no tempo em que sequer se sonhava com a tecnologia das músicas feitas hoje. Naquele tempo, se perguntava quem era Pixinguinha (autor da melodia dos versos acima) e todo mundo sabia. Perguntava-se quem era Cândido das Neves, autor de versos como “As estrelas tão serenas / Qual dilúvio de falenas / Andam tontas ao luar” e todos sabiam. Infelizmente, nos dias atuais

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quase ninguém sabe quem foram e que contribuição deram à nossa cultura e à nossa música esse magníficos poetas e músicos. Já ouvi alguém dizer que naquela época o amor era diferente, o amor inspirava e expirava. Se olharmos as letras atuais, vemos coisas simples como “suingar, pagodar, ralar”, e até um “tchá, tchá, tchá” ou “eu quero tchu, eu quero tchá” , e não se encontra mais beleza no amor cantado. Naquela época, a jovem (a teen, na atualidade), era a “flor mimosa da campina”. Hoje é a “piriguete”. O amor hoje é o “rala

O mundo mudou nesses dois últimos séculos, e com ele, os costumes. Já não se ouve mais falar em serenata. Se perguntar ao teen de hoje o que é serenata ele vai responder que é marca de chocolate. Se há alguns anos ainda se podia ver os velhos seresteiros tirando dolentes acordes do pinho à luz dos postes de iluminação elétrica, hoje o que se vê são os paredões, com músicas baixadas na internet. Se naquele tempo ainda se ouvia um autêntico baião de Luiz Gonzaga, hoje o que se vê são bandas com nomes exóticos, com instrumentos computadorizados e to-

e rola”. Naquele tempo o poeta clamava “Acorda patativa, e vem cantar / Faz de tua janela o meu altar / Escuta minha eterna oração” (Vicente Celestino), invocando ao pé da janela e à luz dos lampiões de gás, o amor de sua amada. Hoje o cara diz: “ai se eu te pego, ai, ai, se eu te pego”. Hoje, a poesia da canção popular não tem mais sentido. O que se busca é parodiar o simplório, o que revela uma pobreza de criação sem tamanho.

cando “forró” com arranjos tão simples quanto banais, e letras que desafiam a existência da própria linguagem, de tão pobres. Naquele tempo era o plenilúnio. Hoje é o lual. Naquele tempo dizia-se que “quem mora lá no morro / Vive pertinho do céu”. A favela, o morro, eram motivos de inspiração aos poetas para versos como “Por ser do morro e moreno / É que eu soluço, é que eu peno / Bebendo do teu amargor /

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Porque me negas, querida / Essa alegria da vida / De possuir teu amor” (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa). Hoje, inspiram letras falando do tráfico de drogas, através do rap, funk, e exaltam a violência. Consegue-se hoje em dia o milagre de rimar fedor com perfume francês. É certo que antigamente também existiam as músicas satíricas, as pitorescas, que fixavam episódios da cidade, da sua gente, suas gírias, expressões ou modismos, exclamações curiosas relacionadas com as queixas e alegrias das pessoas, e Noel Rosa foi um craque nesses temas. Hoje, porém, a linguagem é chula, dúbia e até mesmo vulgar, mas mesmo assim é massificada pelos meios de comunicação e pela rede mundial de computadores. Obviamente, não estamos aqui a fazer nenhuma pregação por uma revisão de valores na canção popular brasileira, até porque num País com tamanha miscigenação cultural jamais se poderia conseguir uma identidade musical única. Mas os exemplos de outrora não devem ser esquecidos. Sentimentalismos à parte, observa-se que as dificuldades que tínhamos antigamente serviam para exacerbar o amor, elevando-o, muitas vezes, a um plano de puro delírio. E nisso residia toda a beleza da poesia do nosso cancioneiro popular. A amada era colocada num plano superior ao real. Veja-se, por exemplo, quando o poeta, pondo um chão de estrelas para o caminhar de sua amada, dizia: “Tu pisavas nos astros, distraída” (Orestes Barbosa e Sílvio Caldas). Hoje, a canção popular brasileira se ressenta da construção poética. O amor parece não inspirar mais a poesia romântica. Antes, exaltava-se esse sentimento com uma certa e ingênua “chantagem sentimental”. Hoje, o amor continua a ser cantado na canção popular, mas sem o mesmo encantamento, a mesma veemência e paixão de antes, e em linguagem simplória e despojada de beleza poética, ressalvadas as raras exceções. Já que não se pode refazer aqueles momentos gloriosos e antológicos, porque os tempos são outros, não custa nada tentar preservá-los na memória dos que se interessam pela história da nossa canção popular, na esperança que os mais jovens, que desconhecem as nossas tradições musicais por falta de divulgação, possam, também, conhecer um pouco desse universo. Obviamente que seria necessário, para tanto, um trabalho de divulgação bem amplo de nossa autêntica canção popular, na mídia e nas escolas, com a inserção nos currículos do ensino de música popular brasileira, através dos órgãos públicos, e também dos

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órgãos privados de promoções culturais. Não se pode obrigar ninguém a ouvir e muito menos gostar de “música antiga”, mas seria gratificante se fosse possível, ao menos, tornar mais conhecida a história do nosso cancioneiro popular, a sua evolução cultural, temática, política, social, ideológica, romântica, melódica, principalmente aos mais jovens, que poderiam compreender mais facilmente a música que hoje se ouve. Os que nasceram junto com a Bossa Nova, como eu, hoje podem parecer velhos e chatos aos olhos das novas gerações, em termos musicais. Mas tivemos a felicidade de acompanhar a evolução da MPB nessas décadas passadas, e a alegria de ainda ter podido ouvir no bom e velho rádio letras e melodias de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Catulo da Paixão Cearense, Noel Rosa, Ari Barroso, Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, que muito contribuíram para a formação da canção popular mais bela e rica do mundo. Seria o momento de se pensar em resgatar do esquecimento a canção popular, ao menos nos textos escritos, não só para desmistificar o mito da “velhice”, mas para que as novas gerações possam examinar escrupulosamente a beleza da poesia e cultura que ela nos transmite, permitindo que se possa, também, separar o que há de bom nesse amontoado de luxo e lixo culturais. O presente texto, tal qual um acorde menor, é uma singela contribuição nesse sentido. Afinal, não são só as biografias romanceadas, os catálogos de obras, as análises harmônicas, nem algumas migalhas de esoterismos que podem garantir à canção popular, como cultura, o seu lugar na nossa história.

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// discurso

sentimento

Falar com

A importância do discurso em solenidades

A palavra tem o poder de transmitir, além de uma informação, muitas vezes sentimentos do orador. Saber escrever e falar bem são características importantes de um bom orador capaz de conquistar a plateia. Muitos discursos são memoráveis como o do líder Martin Luther King, que entrou para a história com as palavras proferidas nos Estados Unidos. “Eu tenho um sonho ...”. Líderes, políticos, autoridades e juristas brasileiros também marcaram a história com discursos feitos e proferidos de forma que encantaram multidões. Os discursos são importantes para se fazer homenagens, despedidas, saudações, sejam em solenidades formais ou não. Escrever textos para serem proferidos em solenidades, por exemplo, é uma arte que exige sentimento

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e conhecimento do assunto. “O texto é como nossa esfera individual. Se não for assim, que se coloque um robô para falar e ponto, está resolvido. O que deve ser evitado no discurso são os elogios em causa própria, a demagogia, a tergiversação, atitudes mais comuns do que se pensa. Discurso tem sua digital específica, muitas vezes ficam perenizados em registros, abertos e à consulta pública, transformando-se em documentos vivos da história. Pode ser tecnicamente perfeito sem precisar ser frio”, afirma o jornalista, escritor e especialista em discursos Juliano Freire. A preservação de alguns discursos de políticos brasileiros está reunida na série brasileiro lançada pela Câmara dos Deputados com o título de “Escrevendo a História”, destacando discursos históricos feitos por parlamentares

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Pres. da AMARN, desembargador Caio Alencar e o juiz Assis Brasil

no período de 1946 a 1990. Com o nome “Constituição Cidadã” o discurso do então deputado Ulysses Guimarães, pronunciado em 27 de julho de 1988, sobre o caráter social do texto constitucional, está preservado nos documentos históricos da Câmara dos Deputados em Brasília. Não existem fórmulas e nem regras para se escrever um discurso, mas a missão principal é conquistar a plateia que está ouvindo a fala do orador. “Se você conseguir conversar com a plateia, onde estão aqueles que foram ouvir suas palavras ou fazem parte da cerimônia, é um feito e tanto. Assemelha-se a um texto de uma boa reportagem de jornal ou revista, quando o resultado alcançado é conseguir que quem está do outro lado preste atenção ao conteúdo oferecido. Não use frases longas demais. Tam-

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pouco subestime a inteligência alheia nem a paciência das pessoas. E isso serve tanto para quem lê ou opta pelo improviso. Ouvi muitos discursos em vida profissional e aprendi a separar o joio do trigo. E pode acreditar que os mais brilhantes e cativantes foram os alicerçados em um ingrediente indispensável: a verdade” revela o jornalista e escritor Juliano Freire. No mês de junho, a AMARN realizou uma solenidade de despedida do desembargador Caio Alencar. O evento foi o primeiro a fazer uma homenagem a um desembargador ao ser aposentado das suas funções. Na oportunidade, o juiz convocado do Tribunal de Justiça do RN Assis Brasil fez e leu um discurso em homenagem ao desembargador Caio Alencar. Num tom informal e mais

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emotivo, o magistrado discorreu sobre lembranças do convívio com o homenageado. Fez o texto em três horas. “Eu quis passar a importância e a oportunidade que tive em substituir o desembargador Caio, quando fui juiz convocado, pela primeira, em maio do ano passado. Um discurso expressa os sentimentos e emoções do orador para convencer a plateia de que a homenagem é justa” afirma o juiz Assis Brasil.

Juiz convocado do TJRN Assis Brasil

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Trechos do discurso proferido pelo juiz Assis Brasil em homenagem ao desembargador Caio Alencar: No ano passado, depois de nos inscrevermos na lista para substituição de desembargador, pela nossa antiguidade, fomos convocados para substituí-lo, incialmente durante suas férias e, depois, durante trinta dias de sua licença médica. Pela primeira vez em nossa vida, nós iríamos, substituindo um desembargador, tomar assento tanto na Câmara Criminal, quanto no Plenário do Tribunal de Justiça de Seabra Fagundes. Quanta honra e, ao mesmo tempo, quanta responsabilidade ! Um colega magistrado nos indagou: você vai substituir o desembargador Caio Alencar, o decano do nosso Tribunal ? Respondemô-lo: sim. O colega, então, concluiu: sua responsabilidade se agiganta! Todavia, no nosso convívio com a sua pessoa foi que ficamos sabendo que se ele, conforme afirmou, sempre foi um magistrado rigoroso na aplicação da lei, mas que nunca deixou de reconhecer o direito do cidadão que se lhe postulava a prestação jurisdicional, também era capaz de se emocionar ao escutar um noturno de Chopin, ao contemplar um quadro de Reimbrant, quando, pela última vez perante o Tribunal de Seabra Fagundes, vestiu a sua toga que vestira durante vinte e oito anos ininterruptos. Em razão disso, durante a última

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homenagem, nós, falando de improviso que não é nosso costume, lhe dissemos conclusivamente que o senhor Caio Alencar possui o semblante de um general que comanda legiões de milicianos em um campo de batalha, o coração de um sacerdote que consagra a hóstia eucarística em um altar de um templo católico, a sensibilidade de um poeta que verseja os encantos da natureza que anoitece entre as montanhas do horizonte. Ilustre desembargador, não podemos olvidar nesta noite de tantas paixões, que o senhor foi, de verdade, um magistrado vocacionado para o exercício do seu sacerdócio, porquanto sempre cultivou, em suas entranhas, uma profunda emoção de respeito à dignidade de qualquer pessoa humana, fosse esta importante e feliz pelo fascinante cargo público que a sublimava, fosse poderosa e rica pelos haveres materiais com que a fortuna houvesse lhe abençoado, mas, principalmente, fosse esta pessoa humilde e paciente pelo sofrimento existencial que a perseguia. Isso, porque o senhor acreditava, como nós cremos que todos os seres humanos, sejamos juízes ou jurisdicionados, independentemente de nossa jornada mundana, possuímos uma destinação mortal que nos igualará, cosmicamente, perante de Deus. Neste momento, desembargador Caio Alencar, não desejaríamos falar da saudade do convívio com a sua pessoa que a sua aposentadoria nos legará no exercício de nossa atividade judicante, até porque, com as bênçãos de Deus, sempre poderemos nos reencontrar pelas veredas desta nossa vida terrena. Aliás, nenhuma despedida justifica a saudade, mesmo aquela fatalmente irreversível da última viagem com destino ao infinito, precisamente porque a saudade somente entristece o nosso coração quando a fé se despede de nossa inteligência, posto que os seres humanos que se amam como irmãos, tal qual nos amou um homem chamado Jesus de Nazaré, que morreu na cruz há mais de dois mil anos para nos salvar, sempre se reencontrarão em alguma dimensão do universo, tal como as estrelas da noite deixam de se encontrar com a aurora que anuncia o amanhecer. As pessoas não se encontram nas estações desta nossa

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peregrinação terrena por uma mera coincidência. Os pais que tivemos, os irmãos com quem crescemos, os filhos que geramos, as amizades sinceras que construímos durante o exercício da profissão que escolhemos, obedecem as leis cósmicas previamente determinadas por legislador universal e onipotente. Isso, porque cremos que o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é a única criatura da criação que se caracteriza pela sua transexistencialidade, capaz de um dia, sobreviver a sua própria morte física, conquistando uma natureza de ser cósmico, em sua evolução cármica e reencarnacionista para sua bem aventurança espiritual. Há uma lei suprema do Universo que, concisamente, é esta: nascer, renascer ainda e progredir sempre. Quase terminando esta nossa homenagem à sua pessoa, desembargador Caio Alencar, fazendo uma referência às suas últimas palavras proferidas na sessão do pleno do Tribunal de Justiça em 30 de maio, as quais foram o seu canto do cisne naquele templo a justiça, o senhor arrematou: “Clamando aos céus, que fazendo sol, quer fazendo chuva, eu posso proclamar orgulhosamente aos quatro cantos do universo o seguinte: um dia eu pertenci ao Tribunal de Seabra Fagundes”. Parodiando esta sua derradeira oração proferida no templo sagrada da justiça, podemos afirmar também que nós tivemos a felicidade de substituir um magistrado que pertenceu ao areópago de Seabra Fagundes, um juiz de notável saber jurídico e reputação ilibada, mas também um cidadão com o porte de um fidalgo que, sempre, elegantemente, como forma de cumprimento, costumava beijar as mãos das damas e abraçava com respeito os cavalheiros. Diz o Eclesiastes: Todas as coisas têm seu tempo, e para cada ocupação chega a sua hora debaixo do céu. Hora para nascer e hora para morrer; hora para plantar e hora para arrancar o que se plantou; hora para chorar e hora para rir; hora para calar e hora para falar; hora para amar e hora para desamar; tempo para a guerra e tempo para a paz. Mas a hora para lembrá-lo, desembargador, serão todas as horas de um tempo que não se extinguirá.

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Ode a São Gonçalo do Amarante

// Poemas

Mulher Felina Hoje estou ferido n´alma Uma tigresa me arranhou Penso que há de se ter calma Com essas coisinhas de amor Tal qual um menino Me recolho pelos cantos Que investida de ferino! O que só me causa espanto

Vida O amor é sublime Também é superdimensão A vida assim se exprime Expandindo o coração

Toca uma música penosa Tiro então o meu chapéu Abaixo a cabeça pesarosa Escutando Carlos Gardel

A nós mesmos buscamos Na imensidão do universo Mas só nos encontramos Quando em Deus estivermos imersos

Fêmea bela e agridoce Essa mulher me entretém Apesar de sua foice É ela a quem quero bem

A imersão requer quietude Afastamento da ilusão Onde se encontra a virtude E completa paz de coração

Taça de vinho Numa noite cor de vinho Uma folha que cai Trazendo um sopro de amor Duas almas se atraem Duas taças que brindam O amor e a vida Um beijo mágico e supremo Volúpia que nunca esquecemos

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Bebi em seus lábios Como o primeiro gole de vinho Após ter atravessado Um árido caminho Vinho que fermenta o amor Videira levemente orvalhada Numa lareira, o calor Suor, Bouquet, madrugada

São Gonçalo do Amarante Quem te conhece De ti se torna amante És como uma ninfa Em busca de um himeneu Fujo de ti como Das sereias Odisseu Para outras plagas Sou obrigado a partir confiante São Gonçalo do Amarante Quem te conhece De ti se torna amante Sulcos vão restar na minha mente Reminiscências vão perdurar A emoção será recorrente Minh’alma irá regressar Como um aventureiro viajante Solitário vou me quedar Em verdes prados verdejantes Mas de ti não hei de olvidar São Gonçalo do Amarante Quem te conhece De ti se torna amante (Declamado no discurso de despedida da Comarca, em 12 de novembro de 2010).

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Por Paulo Sérgio da Silva Lima

Deusa Grega Obra acabada da natureza Afrodite, sílfide, exuberante Simetria da beleza Cinzelada em forma estonteante És minha Galateia Sou teu Pigmaleão Alentai nosso amor-ideia Estátua viva da paixão Mármore de Carrara Ouro a fogo provado Leveza, formosura sem jaça Enlevado reprimo um brado

Ninfa, Europa, Perséfone, Dríada Sonho, delírio, arrebatamento Mais desejada do que Anfitrite Cáris dos meus pensamentos Dione, sacra, sensual profana Misto de deusa e mortal Soprar o excesso de pó é demanda Para a ilusão tornar-se real

Força Universal Complexo de átomos Ínfimos, máximos Universo orquestrado De fluido organizado

Astros que vêm e que vão No universo em expansão Viver e morrer Sorte de todo ser

Luz irradiante Sombra errante Tênue vibração Que sustenta a criação

Luz, vida, bemaventurança, eternidade Sombra, dubiedade, relatividade Numa, abundância, completude, galardão Noutra, carência, ilusão e confusão

Onipotência cósmica Força subatômica Energia sutil vida pulsante que se abriu

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juiz titular da 2ª Vara Cível não especializada da Comarca de Natal.

Senda da vida O encarnado do crepúsculo Derramando lágrimas pesarosas Exalando frutados aromas Sobre o teu par de gêmeos escorrendo Desenhando rios de prazer enquanto No silêncio se incedeia um ósculo Murmúrios delirantes Curvas que se perdem No percurso da jornada Firmeza, fortaleza, languidez Sentidos confluentes Submersos num mar revolto Calmaria, sossego, exaustão Saindo da floresta Se recosta a meditar Olha a paisagem dourada Com seus trigos em agito Adormece enlanguescido sobre o prado Vida que da vida vem Energia que se compartilha Desdobramento, sucessão Caminha-se numa jornada Que cíclica se faz Perene, constante, mutante

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// Ensaio

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O juiz Paulo SĂŠrgio e a arte da

fotografia 02 03


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01. Por-do-sol em Fernando de Noronha 02. Ninho de pássaro 03. Juiz Paulo Sérgio da Silva Lima 04. Rio São Francisco 05. Lisboa vista do Castelo de São Jorge 06. Fernando de Noronha (Praia do Sancho) 07. Por-do-sol na Toscana 08. Cascata em Foz de Iguaçu

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// Poder Judiciário

120

anos do TJRN

O Palácio do Governo é um dos prédios mais antigos e imponentes do Estado e nos traz a lembrança do local onde funcionou a primeira sede do Poder Judiciário no Rio Grande do Norte. Em primeiro de julho de 1892, o então governador Pedro Velho de Albuquerque Maranhão sancionou a Lei nº 12 criando o Superior Tribunal de Justiça do RN, tendo como presidente Olympio Manoel dos Santos Vital, da Bahia, nomeado primeiro desembargador da província e presidente interino do recém-criado tribunal. Poucos dias depois, ele deu posse ao desembargador Jerônymo

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Américo Raposo Câmara. A sede do Poder Judiciário passou a funcionar, então, em duas salas cedidas pelo governo, até 1907. Nessa época, Natal não passava de uma pequena cidade com pouco mais de 16 mil habitantes e o Rio Grande do Norte se firmava com a divisão dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. A partir de 1908, o Tribunal de Justiça foi transferido para onde hoje funciona o prédio do Instituto Histórico e Geográfico do RN, até 1933. Em 1927, foi aberto na Comarca de Pau dos Ferros um processo contra Lam-

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pião e seu bando acusado de destruição do patrimônio público, roubos e furtos. Após longos 72 anos, o processo foi arquivado pelo juiz de Pau dos Ferros João Afonso Morais Pordeus. Fatos registrados e guardados, graças à criação do Memorial Desembargador Vicente de Lemos fundado em 2009 com o objetivo de preservar a memória do Poder Judiciário no RN. O memorial surgiu através da determinação do historiador e servidor do TJRN Eduardo Gosson, que fez o projeto e apresentou ao então presidente do tribunal o desembargador Ítalo Pinheiro em 1999. Após 10 anos, entre licitações

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e obras, o memorial (prédio) foi inaugurado pelo então presidente desembargador Osvaldo Cruz e entregue ao público (com acervo organizado) em 2009, pelo desembargador Rafael Godeiro e hoje abriga as histórias e fatos marcantes envolvendo a justiça estadual nesses 120 anos de existência comemorados em julho passado. “Sinto-me realizado, porque foi um projeto de vida. Quando iniciei, muita gente dizia: - desista”, afirma Eduardo Gosson. Um fato importante é que a sede onde hoje funciona o Memorial da Justiça do RN foi a casa do médico e político Cipriano Barata. O antigo casarão,

construído em 1911 por seu neto Afonso Barata, ao estilo da arte noveau, teve que ser tombado como Zona de Preservação Histórica no Bairro da Cidade Alta em Natal. Na sede estão preservados, documentos, fotos e objetos de destaque para o judiciário potiguar, como o processo arquivado contra Lampião. Além disso, algumas peças foram doadas por familiares do desembargador Vicente de Lemos, patrono da instituição, como um relógio e uma lamparina doados recentemente pelo seu tataraneto. O memorial tem como coordenador o desembargador aposentado Ivan Meira Lima, guia Thiago Gosson e coorde-

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Relógio doado por familiares e o Memorial da Justiça

nador técnico o historiador Eduardo Gosson. “A importância é a preservação de um patrimônio, que poderia se acabar com o tempo. Aqui, tem uma função paradidática, porque recebemos alunos de Direito e de outros cursos e turistas. Precisamos divulgar mais esse espaço”, revela Eduardo Gosson. O antigo casarão, com 101 anos completados em julho, guarda ainda móveis doados pelo então governador Sylvio Pedroza em 1951. Lembranças da importância de uma época para a história do Rio Grande do Norte se misturam a documentos e fotos contando um pouco do Poder Judiciário potiguar. Ao longo desses 120 anos, passaram 108 desembargadores, sendo a última empossada a desembargadora Maria Zeneide Bezerra em 2010.O Na presidência passaram 60 magistrados, sendo a atual desembargadora Judite Nunes a primeira mulher a comandar o Tribunal de Justiça do RN. Nas comemorações pelos 120 anos, duas homenagens: desembargadores Zacarias Gurgel Cunha (presidente do TJ de 1960 a 1965) e José Teotônio Freire, que foi o desembargador

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a passar mais tempo na presidência, exatos 13 anos consecutivos. Teotônio Freire foi sogro de Câmara Cascudo e a sua história está contada em livro que foi lançado em 25.07.2012 com título “Teotônio Freire: Fragmentos de um legado” escrito pela neta Anna Maria Cascudo Barreto e com a colaboração de Francisco Anderson Tavares (genealogista) e coordenação de Eduardo Gosson. O prefácio foi escrito pela presidente Judite Nunes e a orelha pelo escritor Valério Mesquita. Histórias, fatos, lembranças e homenagens. O Poder Judiciário do RN abriga ainda nomes ressaltados até hoje como referência no Direito, como o Ministro da Justiça Seabra Fagundes, que foi o desembargador mais novo do Rio Grande do Norte com apenas 25 anos. Foi ainda advogado e delegado de polícia, presidente do TJRN e TRE/RN. Nos registros do memorial, há uma galeria de fotos de potiguares que chegaram a ministros do STJ como Francisco Fausto, Emanoel Pereira e José Delgado e outros. O trabalho de pesquisa e principalmente busca por docu-

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mentos, fotos e objetos registrando a história do Poder Judiciário levou de dez anos, graças a dedicação do desembargador Ivan Meira Lima, Eduardo Gosson e também presidentes e servidores do tribunal. Desde a instalação do Poder Judiciário, depois do Palácio do Governo e Instituto Histórico e Geográfico, passou a funcionar no imponente Solar Bela Vista, num dos pontos mais tradicionais de Natal de 1934 até 1937. Depois, no prédio da OAB, de 1938 até 1946, até chegar a sede atual em frente à Praça Sete de Setembro em 1976. Na época Dom Nivaldo Monte, tio da atual presidente Judite Nunes, abençoou as novas instalações do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, no governo de Tarcísio Maia.

Solar Bela Vista: Terceira sede do Poder Judiciário no RN

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// Entrevista

Tasso Pinheiro

A presidente do TJRN faz um balanço desses quase dois anos de administração e fala dos 120 anos da história do Poder Judiciário no Rio Grande do Norte. Desembargadora Judite Nunes

Nesses 120 anos de história, o Poder Judiciário do RN tem o que comemorar?

Temos muito a comemorar. A evolução do Judiciário Potiguar em todos esses anos acompanhou, como não poderia deixar de ser, as mudanças institucionais e sociais pelas quais passou nosso país. Nosso Tribunal foi criado em 1892, e nesses 120 anos mudou o nome, mas não o ideal de Justiça que sempre permeou nossa Corte. E dessa história temos muito orgulho. Por aqui passaram grandes nomes e consolidaram-se muitas conquistas. Quais foram as principais conquistas do TJ ao longo desses anos ?

Acho que as principais conquistas são sempre as institucionais e ao longo desta história aqui se consolidou a marca da independência, que permite aos seus membros atuar na defesa da liberdade e dos valores democráticos, dos direitos

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individuais e coletivos e das prerrogativas da cidadania. E, mais recentemente, outros tantos avanços institucionais podem ser vistos e sentidos, como a abertura ao público e à sociedade, seja através da transparência, com coragem para enfrentamento dos seus verdadeiros problemas, seja com a adoção de uma postura absolutamente voltada para a sociedade, através de constante ampliação de acesso da população e até mesmo de realização de um grande número de programas sócio-ambientais, que aproximam o magistrado da população e o deixa apto a proferir julgamentos mais afinados com os anseios sociais. Quais os momentos mais marcantes da história do TJ?

Foram muitos, mas gostaria de citar dois. Foi neste Plenário que o eminente jurista Miguel Seabra Fagundes construiu os alicerces do novo Direito Administrativo em nosso país, com a

delimitação precisa e até então obscura das relações entre os Poderes do Estado. Foi aqui no TJRN, nos anos 40 do século passado, que se aclararam os limites entre a legalidade e a discricionariedade dos atos administrativos, traçando a verdadeira função do Poder Judiciário perante os atos dos demais Poderes. Este Tribunal viu surgir, e ajudou a construir, com a preponderância do pensamento de Seabra Fagundes a obra que norteou todo o pensamento administrativista em nosso país: Do Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. Também foi no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte que, em 1949, pela primeira vez no Brasil, surgiu uma Emenda Regimental que permitia ao advogado participar da fase de discussão dos julgamentos, fazendo nascer a hoje conhecida sustentação oral nos tribunais. Essa, na minha visão, foi uma das mais democráticas e úteis inovações do Processo do país.

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O Tribunal de Justiça enfrentou uma exposição na mídia envolvendo as questões sobre o pagamento dos precatórios. Como o TJ deve sair desse episódio? Haverá um fortalecimento da instituição? Todas as providências necessárias foram tomadas para se esclarecer os fatos?

Tenho absoluta convicção de que o Judiciário estadual saiu fortalecido desse episódio. Apesar das adversidades, das incompreensões e da desconfiança pública, tenho a certeza de que os anos vindouros apresentarão uma instituição que soube reconhecer, enfrentar e corrigir seus erros. O Judiciário tomou todas as medidas necessárias para que fosse realizada uma ampla investigação dos fatos pelos órgãos de controle externo, agindo com a máxima transparência e pautado apenas pela busca da legalidade. Ao mesmo tempo já reformulando o setor de precatórios, implantando-se novos procedimentos e rotinas para assegurar maior fiscalização interna e transparência no pagamento dos precatórios, o que pode ser acompanhado diretamente pelos interessados na página do Tribunal na internet. Acha correta a medida da divulgação dos salários dos servidores e magistrados?

Independente do meu pensamento pessoal e da possibilidade de ter havido forma diversa de dar transparência aos gastos do Judiciário, a divulgação é uma obrigação por lei e por Resolução do Conselho Nacional de Justiça, que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte cumpriu no prazo e no modelo determinado. Aproveito para reafirmar o que já venho dizendo através da imprensa: não há na folha do Judiciário potiguar pagamentos acima do teto constitucional, nem qualquer irregularidade nos valores pagos. Inclusive fizemos uma auditoria na folha de pessoal e não foi encontrado qualquer erro por parte do CNJ. Qual o legado que fica desta gestão?

Não quero olhar para o passado e muito menos atribuir culpa a quem quer que seja, mas acredito que alguns episódios ocorridos anteriormente colocaram o Judiciário potiguar em uma situação de grande dificuldade orçamentária e financeira. Receber um orçamento que termina no meio do ano, como ocorreu em 2011, não é fácil. Ter um quadro funcional desfalcado em quase 40% e não ter folga no orçamento para

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contratar sequer um servidor, igualmente não é fácil. Ter o número de magistrados reduzido em 1/3 (um terço) e, mesmo tendo aumentado substancialmente o orçamento que nos foi deixado, não haver nenhuma possibilidade de nomear um único Juiz Substituto durante toda a gestão por absoluta falta de condições financeiras, também não é fácil. Por isso acho que o grande legado que deixo ao próximo Presidente é o de ter permitido que o Tribunal, em continuando com algumas medidas de austeridade por mim iniciadas, possa ao menos ser administrável. Sob outro ângulo, acredito que o grande legado de minha administração tenha sido a transparência e a firmeza para enfrentar os problemas que efetivamente surgiram em nosso Tribunal de Justiça. Apesar das dificuldades, houve alguma conquista específica dos magistrados em sua gestão?

Várias, inclusive o atendimento de alguns pleitos históricos. Na minha gestão foi fixada a ajuda de custo para mudança de comarca e a implantação do auxílio alimentação para magistrados. No início da gestão retomamos o pagamento da PAE, que estava suspensa, e continuamos o seu pagamento até o presente momento. Eliminamos a limitação de pagamento de diárias, que existia anteriormente. Encaminhamos e aprovamos a redução da diferença de entrância para 5%. E aprovamos no Plenário, para encaminhamento à Assembleia Legislativa, o projeto de Lei de criação dos cargos de Assistentes para todos os Juízes do Estado. Acredito que, dentro das dificuldades financeiras, representou um grande esforço para atendimento de antigos e merecidos pleitos dos magistrados. A senhora irá se despedir da presidência do TJ no final do ano. Apesar das dificuldades, a sua gestão foi muito elogiada por todos do meio jurídico e de outras áreas. Como a senhora gostaria de ser lembrada na sua carreira e presidência no TJ?

Apenas como uma pessoa que não abriu mão de cumprir com suas obrigações funcionais. Que não pecou pela omissão. É assim que estamos pautando nossa administração a frente do Tribunal de Justiça. Da mesma forma que sempre atuei como magistrada.

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// ARTIGO

“O pequeno Édipo:dos seus personagens de infância que entoavam o “cisne branco” ao médio-volante do futebol que não lhe cumpriu a promessa”

Desembargador Assis Brasil Juiz convocado

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O menor impúbere Édipo, que naquele tempo contava 13 anos de idade, nunca pensou em sua infância em seguir a carreira militar por alguns motivos bem evidentes. Em primeiro lugar, não possuía uma estrutura física para ingressar em uma escola militar porque, além de ser franzino e um menino hipocondríaco, herdara uma acentuada miopia de sua mãe que o faria com 18 anos a usar óculos de grau. Depois, não havia no álbum de retratos de sua família a figura do seu pai, de um tio, ou de um antepassado seu que, abraçando a carreira das armas, tivesse defendido a Pátria, a Constituição e a Democracia, conforme discursa a Constituição Federal quando se refere às Forças Armadas. Por fim, sua mãe, Dona Jandirinha, possuía o ideal de fazê-lo médico e ela jamais enalteceu a imagem do militar, quer fosse do Exército, quer fosse da Marinha, abrindo exceção para a Aeronáutica, cujo uniforme azul ela o considerava o mais fascinante de todos, mas assim mesmo se trajado por um oficial de coronel para cima com todas as comendas estampadas garbosamente no peito varonil. Na verdade, o menino Édipo, que um dia pensou em entrar para o seminário, conclusivamente, jamais possuía nenhuma aptidão para a caserna, tanto assim que quando completou 18 anos foi dispensado do serviço militar por insuficiência física temporária, podendo exercer atividade civis, conforme constava em seu certificado de dispensa de incorporação. Mais ou menos durante aquela época, um colega seu de colégio, para quem Édipo perdera o primeiro lugar da classe, fora aprovado no vestibular da Escola Preparatória de Cadetes do Ar - EPCAR - e migrou para Barbacena, em Minas Gerais, onde foi cursar aquela escola militar durante quatro anos, de tal maneira que hoje ele comanda uma unidade militar do COMAR, trajando o uniforme azul de major-brigadeiro do ar com todas as comendas no peito e três estrelas nos ombros a que tem direito, conforme Dona Jandirinha tanto admirava. Mas como Édipo poderia ir embora do seu lar e ficar todo este tempo separado de sua mãe a quem ele tanto adorava? Então, estudando ele no Salesiano onde cursava o antigo 1º ano ginasial, o colégio

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promoveu uma pequena viagem de navio que ocorreu no inicio de outubro. Os estudantes tomaram um navio na Base Naval de Natal e fizeram uma rápida viagem pelo litoral daa cidade quando a certa altura puderam perceber do navio as gigantescas palmeiras imperiais do Salesiano. Esta fora a primeira vez que Édipo entrara na Base Naval de Natal, que fora construída em 1941 durante a Segunda Guerra Mundial, e que ficava bem perto da sua residência, no Bairro do Alecrim. Havia os marinheiros vivos de sua infância, os marinheiros das ruas do Bairro do Alecrim onde ele residia e os marinheiros heróis da pátria. Aqueles foram: o sargento José Paulo e o grumete Arnô. Os marinheiros das ruas do Alecrim foram Alexandrino de Alencar e Ary Parreiras. Os marujos heróis do Brasil eram Pedro Álvares Cabral, o descobridor de nossa terra, o Marquês de Tamandaré considerado o patrono da Marinha, e o Almirante Barroso herói da Batalha do Riachuelo. O primeiro marinheiro que o pequeno Édipo conheceu ainda em sua primeira infância fora o sargento José Paulo, um homem branco, jovem, simpático, a quem a Sra. Jandirinha houvera sublocado o primeiro cômodo que ficava no final do alpendre do casarão de número 1229 da Rua Amâncio Barbalho onde mãe e filho residiam. Em razão da base naval se localizar em uma outra rua bem perto da Amâncio Barbalho, é muito provável que, por este motivo, o referido militar tivesse alugado o citado aposento. -- “Olhe aqui o que trouxe para você” - Disse o aludido militar ao menino Édipo, no dia em que foi embora, dando-lhe de presente um boneco, simulacro de um malandro dos morros cariocas, de cor negra, que, dando-lhe corda, sambava. Como Édipo ficou feliz com aquele brinquedo que aquele homem que não sendo seu pai, seu tio, ou padrinho, lhe presenteara! Depois apareceu o fuzileiro naval Arnô, namorado de Karina, que era uma jovem de 16 anos, prima de Édipo, sobrinha de dona Jandirinha, que viera de João Pessoa passar umas férias aqui em Natal. Em uma bela noite da primeira infância de Édipo, no jardim da casa deste, Karina disse-lhe o seguinte: -- “Quando você olhar á noite para o céu, lembre-se de mim porque, quando eu voltar para casa lá em João Pessoa, estarei no jardim de minha casa olhando para a lua lembrando-me de você”. -- Isto parece ser troca de juras de amor

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entre dois namorados, mas fora o que Karina falara a Édipo, conquistando-lhe o coração. Porém, no dia seguinte, apareceu o grumete Arnô que lhe furtou Karina, levando-a para assistir a um filme, juntamente com ele, o infante Édipo, mas este, com muito ciúme, ficou bem longe do casal de pombinhos dentro do cinema, passando vários dias sem falar com ela. O Almirante graduado Alexandrino Faria de Alencar que vivera de 1848 a 1926, tendo nascido na cidade de Rio Pardo, RS, fora um político brasileiro, senador durante a República Velha e quando faleceu foi sepultado com honras de chefe de Estado. Pelo que consta, não possuía nenhum vínculo quer seja com o Rio Grande do Norte, quer seja com a cidade do Natal, ou mesmo com a construção da Base Naval nesta capital, mas deu nome a uma comprida Avenida do Alecrim, talvez a maior de todas em extensão deste bairro. A mesma se iniciava na antiga studebaker onde era proibido ao menino Édipo trafegar com o seu velocípede, sendo que esta avenida se estendia até o hospital dos alienados quando este foi transferido com os seus hóspedes insanos, atrozes enfermeiros e instrumentos de uma psiquiatria bem própria da Idade Média da Rua Fonseca e Silva onde funcionou até o término da década de 1950 para o final da aludida avenida. A Alexandrino de Alencar era a avenida que assistia todas as manhãs de um determinado tempo à dona Jandirinha e ao pequeno Édipo caminharem pelo seu chão ainda quase totalmente arenoso para tomarem o leite tirado do peito da vaca no curral do Seu Pedro, que ficava bem perto do abrigo Juvino Barreto; era a avenida onde residia a professorinha Elêucia, uma jovem acadêmica da escola de engenharia que ensinou durante algum tempo e dentre outras lições de natureza matemática, o sistema métrico decimal ao infante Édipo que desde aquela época já padecia de uma alergia intelectual congênita para com a ciência de Pitágoras; fora a avenida onde o vestibulando Édipo, na noite em que soube de sua aprovação no vestibular de direito na UFRN, ensaiou uma pequena maratona, quando correu estimulado de alegria de sua casa à Rua Amâncio Barbalho até a residência dos seus primos na Avenida Oito cerca de uns dez quilômetros em muitos poucos minutos, logo depois que saiu o resultado pela TV Universitária. Já o Almirante Ary Parreiras, fluminense de nascimento da

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Base Naval de Natal

cidade de Niterói, tendo vivido de 1893 a 1945, além de militar também foi político, exercendo grande influencia na Revolução de 1930, tendo sido nomeado pelo presidente Getulio Vargas interventor do Estado do Rio de Janeiro de 1931 a 1935. Durante a Segunda Guerra Mundial, veio residir com a esposa e os filhos em Natal, onde mandou construir e comandou a Base Naval desta capital que foi batizada com seu nome. Faleceu na mesma cidade onde nascera, ou seja, em Niterói, RJ, no ano de 1945. A Ary Parreiras se iniciava a alguns passos do cemitério do Alecrim, encontrava-se com a base naval e depois seguia transformando-se em uma ladeira muito pouco íngreme descendo até a Guarita que não abrigava nenhuma sentinela, mas uma encruzilhada conhecida como quatro bocas’. -- Ó de casa, quem quer comprar galinha? -- Foi assim que se fez anunciar da porta de entrada da casa à Rua Ary Parreiras a pessoa galhofeira e um pouco esguia do octogenário avô materno do pequeno Édipo que chegou para visitá-lo no dia da mudança. Esse fora o primeiro imóvel daquela rua que abrigou o lar de dona Jandirinha e Édipo, o qual ficava à Rua Ari Parreiras, entre a Borborema e a base naval, onde eles dois, mãe e ofilho, residiram somente por uns três meses. Foi também neste imóvel que o infante Édipo acompanhou pelo radio com uma sintonia bastante deficiente que tornava a transmissão quase inaudível, alguns momentos da inauguração de Brasília presidida pelo então presidente da Republica que era Juscelino Kubitschek, no dia 21 de abril de 1960; era neste imóvel que Édipo costumava ficar à janela olhando para o Joãozinho, um menino do seu tamanho que morava em frente, com a vã esperança de que, a qualquer momento, aquele garoto atravessasse a rua para vir brincar com ele que vivia uma infância órfã também da compa-

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nhia de crianças de sua idade. Algum tempo depois, Dona Jandirinha se mudou deste imóvel para outra casa na mesma Rua Ari Parreiras, lá na Guarita. Esta casa tinha um oitão onde o infante Édipo se encantava vendo as lagartas se transformando em borboletas em um impressionante processo biológico de metamorfose e possuía por vizinha da frente do outro lado da rua a família de um professor da Escola Agrícola de Jundiaí de Macaíba, cujo terceiro filho da mesma idade da do pequeno Édipo, encontrar-se-ia com o mesmo, em uma imediata quadra da sua vida, uns oito anos mais tarde, quando Édipo adolescera. O primeiro marinheiro herói da pátria que não somente o pequeno Édipo conheceu através dos livros escolares, mas todos os brasileirinhos em idade escolar chegam a conhecê-lo, tratou-se da figura ímpar do navegador português chamado de Pedro Álvares Cabral, creditado como o descobridor do Brasil. Logo que foi alfabetizado aos cinco anos de idade, o pequeno Édipo foi apresentado ao mesmo: um homem de cor branca, de meia idade e de rosto oval, com hirsuta barba, estampada nos livros de historia, mas também na cédula brasileira de mil cruzeiros que vigorou entre 1942 a 1967. -- Mas se Cabral não tivesse descoberto o Brasil, outro o teria descoberto. Foi assim que um motorista de táxi falou para Édipo em Lisboa, Portugal, quando este estava visitando pela primeira vez em sua vida a vetusta capital lisboeta no ano de 2000, antes de deixá-lo no hotel que ficava, por coincidência, na Avenida Pedro Álvares Cabral. Édipo ficou surpreso com esta afirmação do taxista português minimizando a importância histórica do navegante descobridor do Brasil. O almirante ou marquês de Tamandaré, cujo nome de batismo era Joaquim Marques Lisboa, nascera na cidade do Rio Grande, RS, em 13 de dezembro de 1807 e falecera na cidade do Rio de Janeiro, RJ, em 20 de março de 1897. Este macróbio herói da pátria pois veio a falecer com a incomum idade de 89 anos no final do século XIX, quando a media de vida dos brasileiros não chegava aos 50 anos de idade, despontou aos olhos do escolar Édipo como um idoso de olhos expressivos, apresentando uma calvície parcial, cujo rosto era circundado por uma barba totalmente alvacenta que se interligava com uma escassa cabeleira também encanecida, conforme era estampado nas cé-

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dulas de um cruzeiro daquela época onde se lia em cima a frase com todas as letras maiúsculas REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL e no verso da cédula se via a estampa da Escola Naval. Com esta cédula de Tamandaré que sua mãe costumava lhe dar, Édipo muitas vezes comprava um polí na bodega do Seu Taveira à Rua Amâncio Barbalho, ou então pagava a passagem de ônibus de sua residência até o Salesiano na Ribeira onde estudava, pois para ir sentado e bem mais rápido na lotação albatroz que nunca parava na parada da porta de sua casa já que sempre vinha lotado das Quintas, ele teria de pagar três cruzeiros pela passagem. Para não dizer que o velho marinheiro não batizou nenhum bem público da cidade do Natal na época da infância de Édipo, existia e ainda existe a Praça Marquês de Tamandaré, conforme se encontra indicado na placa localizada na referida praça, já na fronteira do Alecrim com o Bairro da Cidade Alta, onde foi erguido um busto do provecto almirante. Esta praça onde sempre no dia 13 de dezembro a Marinha de Guerra comemorava festivamente o dia do marinheiro, durante a gestão do prefeito Djalma Maranhão era embelezada por uma fonte luminosa que encantava os olhos do então infante Édipo. Em 1964, com o advento da ditadura militar que depôs o então prefeito Djalma Maranhão, a praça foi esquecida e abandonada pelos sucessivos governos municipais, servindo apenas de repouso para algum andarilho da cidade, tal qual como fazia o Édipo, já rapaz, uma vez se encontrando na Cidade alta, se dispunha a retornar para casa a pé, descia a Rio Branco, repousava um pouco em algum banco da aludida praça, para depois continuar a sua caminhada em busca da Rua Amâncio Barbalho onde residia. “O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever” Esta foi a célebre frase que o infante Édipo ficou conhecendo quando cursava o antigo primário no Ginásio Salesiano São Jose, a qual teria sido proferida pelo almirante Barroso durante a Batalha do Riachuelo, na Guerra do Paraguai, e que o imortalizara bem mais do que pela própria vitória nesta batalha. Tirante estes patriotas tanto os desconhecidos quantos os ilustres que pertenceram à gloriosa Marinha de Guerra do Brasil, havia o Riachuelo Atlético Clube, time de futebol que disputava o campeonato estadual de futebol formado praticamente por militares da Base Naval de Natal, clube onde jogava

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um médio-volante chamado de Clodoaldo, que, para que fique bem esclarecido, não seria o mesmo da seleção brasileira de futebol, também médio-volante, que conquistou o tricampeonato no México, em 1970. O Clodoaldo do Riachuelo, que se tratava de um irmão mais velho do futuro craque Marinho Chagas que atuou na seleção brasileira na Copa do Mundo de 1974, Édipo o conheceu nos seus 10 anos de idade, tornando-se por conveniência torcedor daquele time naval porque o mesmo lhe prometera levá-lo para assistir a um jogo do riachuelo no Juvenal Lamartine. A bem da verdade, o seu coração infantil nunca deixou de pertencer ao clube atlético potiguar que tinha a mesma cor rubro-negra igual á sua outra paixão futebolística que era o clube de regatas do flamengo da cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. Um dia, chegou à residência do pequeno Édipo esta referida pessoa de Clodoaldo que deveria ter uns 18 anos de idade para tratar de algum assunto com dona Jandirinha na qualidade de emissário de sua mãe Dona Maria de Deus, certamente algum empréstimo em dinheiro já que esta costumava tomar dinheiro emprestado à mãe do Édipo. A partir deste dia, nasceu uma amizade entre o infante Édipo e Clodoaldo precisamente porque, por uma coincidência, há poucos dias atrás, aquele, ligando o rádio casualmente em uma tarde de domingo daquele ano, acompanhara pela primeira vez em sua vida uma partida de futebol, quando o riachuelo jogando contra o globo pelo campeonato estadual de futebol daquela temporada, ganhara deste, segundo o narrador da rádio Poti que transmitira o jogo naquela ocasião, “com um gol de cabeça feito pelo médio-volante Clodoaldo, ao apagar das luzes do espetáculo”. Depois daquela derrota sofrida pelo riachuelo na pelada de meio de semana no CIAT, em razão de, “infelizmente Édipo não ter sido um bom mascote”, conforme ele afirmara na viagem de volta, o médio-volante Clodoaldo nunca mais apareceu na residência do infante Édipo. Será que qualquer dia destes, Édipo, já no outono da vida, não recebe a visita do referido médio volante convidando-o para assistirem a uma partida de futebol no estádio Arena das Dunas, não algum jogo do riachuelo que não mais existe há bastante tempo, mas de alguma obscura seleção africana que tenha se classificado para Copa do Mundo de 2014?

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// religiosidade

Fé no ato de julgar

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Amor, paz, verdade, caminho. Toda pessoa, de certa forma quando procura uma religião a seguir busca o alimento espiritual necessário para a sua evolução. A religião é uma das alavancas da inteligência humana e deve buscar uma harmonia entre as leis divinas e materiais. A discussão entre os tipos de religiões já é algo há muito infundado, sendo o mais importante a se destacar é a religiosidade entre as pessoas. No exercício de uma profissão como juiz, onde julgar um ser humano não é tarefa fácil, a proximidade de uma religião pode ter um valor significativo, na visão do juiz do Juizado Especial Múcio Nobre espírita há mais de 30 anos. “Tem um olhar mais humano na hora do julgamento. Uma postura mais cristã em relação às pessoas e uma responsabilidade maior, por causa da lei de causa e efeito, que o espiritismo nos fala”, revela o magistrado. Apesar de ter nascido em berço católico, chegou até a pensar em ser padre, o juiz Múcio Nobre se tornou espírita a partir de questionamentos como a existência da reencarnação, um dos princípios básicos da Doutrina Espírita codificada pelo francês Allan Kardec. Independente da religião a ser seguida, para quem acredita na existência de Deus, sempre há uma busca pelo reconforto espiritual na vida pessoal e também profissional. Busca essa ainda maior quando se traz questionamentos sobre a justiça divina e dos homens. “Não tenho como fixar, concretamente a importância da religião na carreira dos juízes, mas posso afirmar que a religião imprime no juiz a necessidade de estabelecer a responsabilidade como norte de seus julgamentos. A

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Juiz de São Gonçalo do Amarante Odinei Draeger

noção de certo e errado e de responsabilidade pelos erros cometidos é um conceito cristão por excelência. Ao lado disso, o juiz católico sabe quais as graves consequências que podem advir da parcialidade dele, ou de seu descompromisso com a justiça, pois Pilatos foi o juiz de Jesus Cristo e teve medo de contrariar a opinião pública, condenando o Filho de Deus à morte. O maior erro judiciário da história, como se costuma dizer. Assim, as noções de fidelidade à consciência individual, à verdade e à justiça tendem a ser reforçadas pela religião, o que certamente contribuiu para formação de bons juízes”, afirma o juiz da comarca de São Gonçalo do Amarante Odinei Draeger. Ele veio de uma família com mais de quatro séculos de tradição luterana e se converteu ao catolicismo apenas em 2007. Para o juiz Reynaldo Odilo Martins Soares, evangélico da Assembleia de Deus, ser cristão é ser diferente em qualquer área da vida. “Analisando as diversas religiões, observei que somente o Cristianismo possuía uma base doutrinária sólida e convincente: a Bíblia Sagrada. Creio na Bíblia por ser a infalível e inerente Palavra de Deus. Ao entender que Jesus Cristo é o Senhor dos

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Bendito o homem que confia no Senhor, e cuja esperança é o Senhor”. Jeremias 17.7

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senhores, o Rei dos reis, o Deus do Universo, resolvi entregar minha vida a Ele, passando pelo processo do Novo Nascimento, conforme Jesus declarou ao rabino Nicodemos “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus.” Ser evangélico é esta experiência que vivo, pois o evangelho no pensamento paulino é “o poder de Deus para salvação de todo aquele que nele crer”, revela o juiz Reynaldo Odilo Martins Soares. A religião é uma essência da vida e reflete em atitudes diárias, seja no trabalho ou na vida pessoal. Não há como distanciar uma da outra. Existem várias associações ligadas a determinadas profissões, que atuam como facilitadoras no melhor desempenho das atividades. Um exemplo é a Abrame – Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas com 8 membros no Rio Grande do Norte. Segundo o juiz associado Múcio Nobre, a associação existe para debater assuntos ligados a defesa da

vida, suicídio, violência contra a mulher, aborto, anencéfalos, questões essas, muitas vezes enfrentadas em processos judiciais. “Na minha visão como espírita, nós devemos programar nossas ações dentro dos princípios evangélicos de simplicidade, misericórdia, humildade e seguir o exemplo de Jesus. Nós somos depositários dos valores de nossa função e devemos nos pautar pelo evangelho” afirma o juiz Múcio Nobre. O ser humano vive em constante busca pela evolução, seja espiritual ou profissional, e a religiosidade é fundamental para ajudar nesse processo, como afirma o juiz evangélico Reynaldo Odilo Martins Soares “O Cristianismo é um sistema de vida compreensível, que responde às perguntas mais antigas da humanidade: De onde eu vim? Por que estou aqui? Para onde estou indo? A vida tem algum significado e propósito? Com essas respostas fica mais fácil definir a nós mesmos, - isso se chama autoimagem, bem como elas nos fornecem subsídios

Juiz Múcio Nobre - 6º Juizado Especial Cível da Comarca de Natal

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Juiz da 3ª Vara de Família Reynaldo Odilo Martins Soares

para compreendermos nossa importância no mundo, isso se chama autoestima, e leva-nos a entender que a pessoa que mais nos causa problemas somos nós mesmos, - isso se chama autocrítica. Tais julgamentos pessoais prévios outorgam elementos indispensáveis na árdua tarefa de compreender a realidade do outro, a quem julgamos. Por outro lado, os valores morais decorrentes do Cristianismo estão impregnados fortemente de conceitos importantes como justiça, direito, amor, compaixão, graça. Sem esses postulados inculcados no magistrado, o direito dificilmente será dado na prestação jurisdicional, como prelecionou o

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insigne professor Miguel Reale, em sua teoria tridimensional, ao colocar o aspecto axiológico, ou seja, os valores morais insertos no seio social, em paridade com o fato e a norma jurídica, para, a partir dessa análise tripartite, emanar o direito em sua essência, como produto da justiça, dentro daquilo que se chama de “dialética de complementaridade”. Independente da religião, a mensagem que fica é a de uma consciência de uma missão a ser cumprida por cada ser humano e na vida de um magistrado que crer em Deus uma responsabilidade para com os outros. “Uma reflexão que costumo fazer e sempre me aproxima mais

da religião: eu sou fraco, cheio de falhas, vivo cometendo os mesmos erros. Por que Deus então me concedeu o dom da vida? Não haveria muitos motivos para que Deus tivesse me criado e, no entanto, aqui estou. Esse sentimento de gratidão e amor impele-me para que, por meio da religião, eu possa agradecer e ter uma vida com o máximo de sentido possível. No trabalho, por exemplo, por meio do cuidado com que cada caso recebe e pelo julgamento imparcial e justo que tento dar a todos, em cada oportunidade faço dele uma pequena oração, dando mais sentido à minha vida e exaltando a Deus”, conclui o juiz Odinei Draeger.

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// ARTIGO

Leocádia de Marabá

Geomar Brito Medeiros Juiz Titular da 11ª Cível de Natal

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Os bêbados se foram no rumo de casa, mas o Bar das Goteiras não dorme - confessam as brechas de luz que riscam a porta fechada. Na solidão, Leocádia de Marabá cuida de seu recolhimento noturno: toma o banho morno, massageia os esporões doídos e besunta os eczemas com óleo de copaíba. Daí abre a gaveta da cômoda e cambaleia abraçada ao bauzinho. Sentada na borda da cama, acomoda o tesouro sobre os joelhos. Enquanto os cabelos enxugam na toalha sobre os ombros, ela escuta pelo tato as cenas que cada jóia lhe segreda. Há noites vem se pegando com um pressentimento ruim: a derradeira viagem. E como uma coisa puxa outra, pensa nas escaramuças entre herdeiros depois que ela se defuntar. Precavida, antecipa a partilha e nela trabalha. Trabalha até a hora em que os galos amiúdam o canto. Quer que as prendas se transmitam na mesma brandura com que lhe chegaram, e seus herdeiros, ao saberem por quem os sinos dobram, mais saibam dos legados nos saquinhos de organza, onde se contém a herança de que cada um se fez merecedor. Mais uma vez ela visita o bauzinho de imbuia com cantoneiras de latão. Passa em revista as relíquias. São jóias, pepitas, pedrarias, algumas de inconfundível valor, vindas a ela na conta de mimos dos homens que a habitaram, e que agora, reunidas sobre seu colo, a empurram para um turbilhão de lembranças. Leocádia de Marabá fora mulher de cama povoada e coceira sem fim nas entranhas. Pássaro de arribada, farejava outonos de colher e invernos de avoar, e ninguém mais que ela soube das rotas das verduras e dos cifrões, o momento dos pousos e das partidas.

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Se lhe vinha o boato “Mulher deu dinheiro pras bandas do Pernambuco!”, ou “Um novo eldorado das quengas”, dali a nada ela tirava a conversa a limpo, ponderava tudo e, não raro, apurava os haveres, arrumava as malas e partia. Dentre as muitas jóias das muitas colheitas dadas por encerradas, apenas uma era guardada, e o propósito era tê-la para sempre no baú. - Pense numa dona rodada no mundo! - diziam. E diziam com fundamento, pois as paredes do Goteiras estão decoradas com as fotografias de incontáveis paisagens e enleios amorosos, uma biografia que a velha nunca renegou: - Todas são eu: tanto a de peitinhos de pitomba quanto a de mamões a caírem. No apogeu das carnes firmes, macias e roliças, cavalgou-as homens de requinte, grisalhos e com ares de barão, e ninguém mais. No álbum das paredes ela é vista com alambiqueiros num festival de cachaça em Salinas; de chapéu, entre criadores de nelore, nas exposições de gado do Tocantins; a fazer pose, ao lado de pessoas bem-vestidas, no convés de um navio sobre as águas do Solimões. - Olhem a língua no céu da boca! - disparava o fotógrafo. - Vamos evitar o queixo duplo! - mas o truque nada tinha a ver com Leocádia, boneca enxuta e sem papadas. O barco deslizando por águas mansas. Com a chegada dos anos 80, a meio caminho da jornada, sentiu rarearem os convites. A geração das garotas mais enxutas tinha a preferência dos barões e ela se viu na conta de descarte. Cessaram as viagens e banquetes; entraram as espeluncas e bordéis. Foi a primeira crise dos seus anos. A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos.

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Elegeu Marabá como palco para a nova cruzada. E tão logo chegou, e por tudo que viu, praguejou contra a própria sorte: - São uns brutos, esses homens! - e não estaria de toda enganada. Mas o destino despejaria a seus pés, pelos seguintes sete anos, os mais polpudos ganhos que jamais imaginara. Errara, pela primeira vez, ao avaliar as potências de um mercado, pelo que estendeu a mão à palmatória. Não levara em conta os pontos que costuram a alma dos garimpeiros, feita de retalhos de amor, e para quem a ternura vale tanto quanto o ouro pesa. Pois Leocádia encantou os brutos exatamente pelo que guarda de doce e maternal, traços seus desde a nascença e que lhe dariam tanta fama. Não que ainda fosse uma ninfeta, mas continuava tão irresistível quanto uma dama de cinema. E tão logo se ouviram das suas ternuras e das suas delícias, num riscar de fósforo Marabá e cercanias arderam de desejos. Serra Pelada, por essa época, era um formigueiro de almas penadas. Muitos garimpeiros, sem que se pudessem contar, não mais sonhavam com os veios de ouro sob a sola das botas, mas sim a 85 quilômetros, na mina cabeluda de Leocádia de Marabá. A notícia se espalhou como rastilho de pólvora, e os agendamentos, para sessões de minutos por sete gramas, tiveram de ser suspensos. - Entenda, minha mocinha! - choramingava o negro Muralha. - Entenda que é pra remédio! - e a secretária de Leocádia não tinha agenda para a pepita refulgindo na mão do ofertante. Foi em Marabá que Leocádia viveu a sua hora de estrela, tanto que a cidade se acresceu a seu nome. Se os homens não tinham os ares de barão, tinham as pepitas para dar. Muralha é prova disso: desfez-se de tudo que ganhou para investir na jazida dos ouros róseos. Mas chegou um tempo em que o garimpo de Serra Pelada, e as suas cercanias, deu sinais de esgotamento. Com Leocádia

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não foi diferente. Há sete anos ela vinha sendo solapada noite e dia, as bananas dinamitando suas chãs. Os desmontes das formas mais e mais se aligeiraram. De resto, a ternura somente, sem um quê de belezura, a ninguém seduz. O momento da despedida chegou. Apenas Muralha, agora banguelo, urrava inconformado. Com o adeus a Marabá, as fotografias nas paredes decrescem em quantidade, às avessas dos anos, e decrescem na opulência também, beirando a miséria. São imagens pobres e sem fidalguia: trocando dengos com um carvoeiro, em meio a braseiros, do Canto do Buriti; dormindo ao relento no acampamento de pescadores de Sobradinho; ou se banhando num lameiro, em Pedra de Amolar, no Bico do Papagaio. Como jamais soubera o que fosse o verdadeiro amor, pensou encontrá-lo na gratuidade dos simples. Foi em Pedra de Amolar que se enrabichou por um caçador: - De quê? Eu não ouvi direito - ela pergunta. - Das armadilhas, é disso que vivo. - Como assim? - De caçar os bichos da selva para vender. É disso que vivo. - A troco de quê? Dessas ninharias?! Quando os dois tresvariavam no fogo de um conhaque a mais, Leocádia chegou a prometer, avolumada em aspirações e juras de amor, que um dia ainda tirava o amante daquele mundo. Mas ele, para além de rude caçador, era dono de um humor tão cortante quanto aço de navalha. - Eu é que ainda lhe tiro os couros, minha velha, e depois vendo a preço de lobisomem! - troçava, e os amigos gargalhavam. Leocádia de Marabá vivia na rudeza também, e por muito pouco não perdera a noção do que era grotesco. Mas no dia em que se pegou aprisionando e despenando beija-flores dourados, por encomenda de contrabandistas, foi ela quem se sentiu presa numa armadilha. Os monstros do remorso se desacoitaram e ela experimentou o inferno. Calculou ser preciso se livrar dos

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lixos e tentar de novo a vida dos luxos. Na busca de novo abrigo, mariposeou nos rumos que iam dar nos puteiros, em saia curta e decote raso. Mas as suas solicitações não passavam da soleira das janelas. Em Paraíso do Tocantins, alguém, por uma nesga entreaberta, despachou: - Não temos vaga. - Mas... - As meninas daqui arrumam o salão e os quartos, lavam as próprias roupas. Já disse, senhora: não há vaga para faxineira. Mesmo diante do veredicto das janelas, Leocádia de Marabá resistia em enxergar a mulher sem iscas que nela se entranhara, aquela que só se revela pelo olhar do outro e que até então era estranha a ela. Uma sensação de caos se instalou. A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos. Em casa, o amor-próprio não aceitava que ela fosse um corpo sem cotação nenhuma. Com rigor de olhar, espionava cada pedaço onde os encantos da mulher tomam forma. As mudanças nunca enxergadas foram se mostrando. Ao aplicar o batom, a boca de piano, com seus gomos e sulcos, se revelou; em suas coxas, os vasos avermelhados lembravam uma malha de rios e seus afluentes; cada seio, assim como cada nádega, já segurava um cigarro na prega da base. Desesperada, emperiquitou-se, pegou a bolsinha e foi à desforra. Não sabia que estava ensaiando o seu canto de cisne, pois naquela noite - a noite da sua derradeira e lúbrica erupção - só pôde encontrar os braços de um gigolô, e o resto de suas certezas e de seus dinheiros sangraram como lavas. Pobre de estima e de recursos, a situação lhe cobrava a venda das prendas. A duras penas, desfez-se de algumas e se entendeu em estado de miséria. - Ratos! Cumpria agora regressar para a cidade que a viu nascer. - Levo as prendas que sobraram, as fotografias e nada mais. A vida é uma pedra de amolar...

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// Artes

Pedro Pereira O artista plástico

e a beleza das suas cores

O artista plástico Pedro Pereira, nasceu em Passa e Fica, interior do Rio Grande do Norte, e sempre foi um apaixonado pelas artes. Poeta, performer e ativista cultural, um dos seus traços mais marcantes na pintura é a expressão da natureza. Já fez exposições em cidades brasileiras e países como Espanha e Portugal. Pedro Pereira, conhecido como “Pedro Peralta”, sempre foi um irrequieto e amante da vida. Mesmo depois do AVC, em 2000 após a morte da mãe, ele não perdeu o brilho de viver. Após a doença, ele ficou em uma cadeira de rodas e com os movimentos das mãos comprometidos, mas superou as limitações faz da arte seu alimento da alma.

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// ARTIGO

Otto Bismarck Nobre Brenkenfeld Juiz de Direito da 4ª Vara Cível da Comarca de Natal/RN Especialista em Processo Civil e Processo Penal - ESMARN/UNP MBA em Gestão do Judiciário – FGV/ DIREITO-RIO

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Inconstitucionalidade do procedimento previsto pelo Art. 27 do Decreto Nº 227/67 (Código de mineração) O presente artigo se propõe a lançar um breve olhar crítico sobre um tema cuja jurisprudência consolidada de nosso Tribunal de Justiça considera pacificado, mas que, no entanto, chama a atenção por suas características inusitadas em face da realidade moderna do Processo Civil. Tratam-se dos expedientes do Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, encaminhando alvarás de pesquisa e determinando a instauração ex officio de procedimento judicial para cumprimento do disposto nos arts. 37 e 38 do Decreto nº 62.934, de 02/07/1968, que regulamentou o Decreto nº 227, de 28/02/1967, alterado pelo de nº 318, de 14/03/1967 (Código de Mineração). Não fosse a freqüência com que referidas ordens de instauração de demandas judiciais chegam às Comarcas de nosso Estado, tão rico em recursos minerais, talvez o expediente chamasse mais atenção diante de seu caráter Kafkiano: instaura uma lide de rito milimetricamente definido, dispensando a atuação de Advogado, sem que haja de fato conflito a ser dirimido e sem

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que se saiba, ao menos, a identidade das partes envolvidas, fixando prazo de 30 dias para julgamento. Referidos expedientes se fazem instruir por estudos e laudos preliminares de viabilidade de exploração mineral, produzidos pelos titulares dos direitos de lavra, abrangendo áreas de centenas de hectares, sem especificar ao menos quantos proprietários ou posseiros ocupam tal espaço, qual a atividade explorada pelos mesmos, se estes concordam ou discordam com exploração mineral a ser ali desenvolvida, e, principal questão, se estes pretendem litigar judicialmente pela indenização por rendas de exploração e reparação dos danos decorrentes da atividade mineradora, que sequer se iniciou. Para contextualizarmos a questão, talvez fosse interessante a transcrição na íntegra do art. 27, do Decreto nº 227/67 - Código de Mineração, que traça o rito de tais demandas. No entanto, sua extensão e o nível de detalhamento a que descem seus 16 incisos (cujo estrito cumprimento dos prazos é materialmente impossível no mundo real) certamente extrapolariam os limites definidos pela Revista, sendo suficientes breves referências ao conteúdo do procedimento instituído. Em síntese, sua finalidade primordial é definir o valor da renda pela ocupação e da indenização pelos danos decorrentes da exploração de atividade mineral pelo titular de autorização de pesquisa, sendo definidos os parâmetros para a fixação de ambas, cujos limites máximos são o rendimento líquido da propriedade e seu valor venal máximo, dispensado o pagamento de renda em terrenos públicos. Não havendo prova de acordo entre o titular e proprietários/posseiros até a transcrição do título de autorização, o DNPM enviará ao Juiz de Direito da Comarca onde estiver situada a jazida, cópia do título, determinando ao mesmo que em 15 dias proceda à avaliação da renda e dos danos, atuando, o Promotor de Justiça, como representante da União. No exíguo prazo de 30 dias a contar da instauração do procedimento, o mesmo deverá ter sido julgado, estabelecendo-se o

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valor da renda e indenização que serão depositadas em 8 dias pelo titular (renda de 2 anos e a caução para pagamento da indenização), intimando-se os proprietários/posseiros a permitirem o início dos trabalhos de pesquisa, obviamente de tudo comunicando ao Diretor-Geral do DNPM, além das autoridades policiais locais, para garantirem a execução dos trabalhos, repetindo-se toda a operação em caso de prorrogação do prazo da pesquisa. Por fim, comunicada a conclusão dos trabalhos pelo titular da lavra e pelo DNPM, encerra-se a ação judicial, ressalvando-se a possibilidade das partes que se julgarem lesadas requererem ao Juiz “que se lhes faça justiça” (art. 28). Ou seja, o que deveria instaurar o processo (pretensão resistida), é reservado à condição de mero adendo ao final do procedimento, posterior a uma série de medidas adotadas ex officio, que destoam de toda a sistemática processual vigente relativa às regras de produção da prova pericial, notadamente no que respeita à garantia do contraditório e ampla defesa. Além da flagrante afronta aos princípios constitucionais da INDEPENDÊNCIA DOS PODERES e da divisão de suas Funções (“São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Art. 2º CF), ao se impor a um Magistrado um comando dado por chefe de autarquia federal, o procedimento a ser instaurado a partir de referido diploma legal viola igualmente o princípio processual da INÉRCIA DA JURISDIÇÃO (“Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais.” Art. 2º CPC), na medida em que atribui poderes inquisitoriais ao Julgador, que passa a agir por iniciativa própria em defesa dos supostos interesses de proprietários/posseiros cujas identidades sequer conhece ao certo. Abstraída a questão de ordem constitucional e apreciando a matéria unicamente sob o enfoque processual, impõe-se questionar se é cabível ao Poder Judiciário substituir-se à parte tida por prejudicada e iniciar um procedimento ex officio, sem que se

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verifiquem presentes as condições da ação pertinentes, notadamente no que respeita ao interesse processual e à legitimidade das partes. Nesse particular, entendo que não há como se reconhecer no Superintendente do DNPM legitimidade ou interesse na indenização ou renda a ser recebida pelo posseiro/proprietário das terras onde virá a ser desenvolvida a atividade de lavra de minerais, carecendo-lhe, portanto, a prerrogativa de provocar a tutela jurisdicional para este fim. Para que haja uma demanda juridicamente viável, faz-se imprescindível a demonstração da pretensão resistida, ou seja, não há como se pressupor que o proprietário/posseiro está sendo ou será prejudicado pela lavra de minerais em suas terras, e instaurar em seu favor, porém à sua revelia, processo judicial. Nesse diapasão, se não houve provocação ao Poder Judiciário por parte do titular do domínio ou posse da área de lavra, pressupõe-se a ocorrência de três possíveis situações, a saber: a) o plano de exploração não chegou a se concretizar, não havendo dano; b) o titular da lavra entrou em entendimento com o posseiro/proprietário extrajudicialmente, reparando o dano causado; ou c) o proprietário/posseiro sequer tem conhecimento da atividade explorada em suas terras. Em todos os casos, não caberia ao Poder Judiciário atuar como CATALISADOR na deflagração do conflito social, mas sim, esperar que referida lide venha a ser submetida à sua Jurisdição, e só então passar a atuar no intuito de dirimir o conflito instaurado. O Princípio da Inércia da Jurisdição, que pode ser sintetizado pelos brocardos nemo judex sine actore (não há juiz sem autor) e ne procedat judex ex officio (o juiz não pode proceder - dar início ao processo - sem a provocação da parte), vem a ser doutrinariamente desen-

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volvido por Cintra, Grinover e Dinamarco,1 com a clareza dos mestres de nossas primeiras lições, e se amoldando como luva ao caso concreto: “O exercício espontâneo da atividade jurisdicional acabaria sendo contraproducente, pois a finalidade que informa toda a atividade jurídica do Estado é a pacificação social e isso viria em muitos a casos a fomentar conflitos e discórdias, lançando desavenças onde elas não existiam antes.” Conforme destacado no início deste texto, não se desconhece a jurisprudência consolidada do egrégio Tribunal de Justiça do Estado (35 acórdãos proferidos desde 2008) no sentido da recepção dos dispositivos do Código de Mineração de 1967 pela Constituição Federal de 1988, e na imposição de que se instaure efetivamente o procedimento ali previsto, com destaque para recentes Acórdãos das três Câmaras Cíveis do TJRN2 anulando Sentenças que declararam a inconstitucionalidade do rito, qualificadas como tendo sido proferidas em error in procedendo. Acerca da matéria o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 238, em 10/04/2000, estabelecendo que “a avaliação da indenização devida ao proprietário do solo, em razão de alvará de pesquisa mineral, é processada no Juízo Estadual da situação do imóvel.” O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, pronunciou-se sobre o tema há mais de trinta anos, em sede de Conflitos de Jurisdição julgados da década de 1970, oportunidade em que igualmente fixou a competência da Justiça Estadual3 para seu processamento. Não obstante tais pronunciamentos das Cortes de Justiça pela vigência da norma, não se deve conceber como natural, à luz dos preceitos mais comezinhos do Direito Processual Civil, a instauração ex officio de demanda por um Magistrado, atendendo a comando de superintendente de autarquia federal, sem a intervenção de Advogado, na defesa do interesse de terceiros, sequer identificados no processo, e em relação aos quais não se sabe ao certo nem mesmo se efetivamente há interesse em liti-

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gar, e com o Ministério Público estadual representando a União. A se admitir a validade dos dispositivos legais sob exame, aplicando mecanicamente a orientação jurisprudencial dominante, o Poder Judiciário estará verdadeiramente subvertendo sua função social, deixando de dar solução aos graves, numerosos e reais conflitos intersubjetivos submetidos à sua apreciação, para agir no fomento de lides que sequer existem de fato. Por fim, não há que se cogitar de hipossuficiência presumida do proprietário/posseiro das áreas exploradas pela lavra mineral, e mesmo se assim o fosse, a tutela de seus interesses deveria ficar a cargo da Defensoria Pública ou do Ministério Público, órgãos de Estado vocacionados à sua representação em juízo e substituição processual dos menos favorecidos. Em conclusão, e sem a pretensão de esgotar o tema, propõe-se uma releitura crítica dos dispositivos do Código de Mineração (Decreto nº 227/67), mais precisamente no que tange ao procedimento instaurado por seu art. 27 e incisos, sob a ótica de sua possível não recepção pela ordem constitucional vigente, notadamente à luz do art. 2º da Constituição Federal, sugerindo-se, de lege ferenda, que as atribuições ali delineadas venham a ser assumidas pelo próprio DNPM, como processo administrativo prévio à autorização para lavra mineral.

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// livro Por Juiz Eduardo Feld Juiz da Comarca de Macau

O inquilino Para os amantes da língua francesa, vale a pena conferir “Le Locataire Chimérique”. No melhor estilo Kafka/Nabokov, uma reflexão sobre a insanidade mental que aflige todo ser vivente. O vocabulário é um desafio a ser vencido, mas nada que um “Petit Robert” não resolva. O inquilino (Le Locataire Chimerique) é um romance de Roland Topor, que inspirou Roman Polanski para o seu filme O inquilino (Le Locataire - 1976). Publicado, em primeira edição, em 1964, pela editora Buchet/Chastel. Foi traduzido para o português e lançado pela Editora Record. Diz a contracapa da edição francesa de 1996: “Um jovem instalado dentro de um apartamento cuja antiga locatária acabara de se suicidar. Ele é calmo, tímido, educado. Entretanto, seus estranhos vizinhos desencadeiam logo contra si uma guerra dissimulada. Para que objetivo? Os assustadores mistérios aos quais ele podia assistir de sua janela existiam em algum lugar além de sua imaginação mórbida? O proprietário é sincero ao dizer este é um imóvel calmo? Nesse romance, no qual o mais quotidiano realismo alimenta o pesadelo, o autor descreve um mundo asfixiante e sórdido, no qual o grotesco ladeia o drama o tempo todo. Ao descrever o funcionamento de uma armadilha destinada a conduzir um homem à sua morte, à sua perda, há uma visão de “pânico” , à qual o romance nos convida. Traduzido no mundo inteiro, O inquilino foi celebrizado por sua adaptação ao cinema por Polanski.

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Segundo Lemenager Gregoire, o autor do livro teve forte influência de Kafka. • Psychologies.com: “Que romance estranho e fascinante! (...) Dividido entre o horror e a curiosidade, um jovem meio perdido, discreto e letrado se instala num apartamento cuja anterior inquilina acabara de se suicidar. No início, os vizinhos travam contra si uma guerra psicológica. Ambiente misterioso e mórbido que aterroriza. Um romance angustiante, emocionante, no qual o realismo mais banal nutre o pesadelo mais assustador. O Dramático e o cômico se irmanam com talento. O final é inesperado.” • L’Express: “Este relato fascinante põe em cena um jovem na casa dos trinta, bastante convencional, pouco seguro de si, que se instala num pequeno apartamento parisiense e logo suscita a hostilidade dos vizinhos. Cada pequeno ruído lhe faz merecer repreensões, além de estranhos comportamentos: batidas anônimas à sua porta, olhares inquisidores, injúrias, etc.. Como se refugiar da paranóia? Aguda e grave, a arte de Topor é, nessa obra, sobretudo de uma esplêndida escuridão”.

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