Paralelo #07

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ESPECIAL

Primavera

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O Novo Mandato de Barack Obama Study in Portugal: Portugal como destino universitário III Fórum Roosevelt no Faial: O mar que nos protege Livro Dabney: as relações transatlânticas divulgadas por histórias de uma família


Fundação Luso­‑Americana CONSELHO DIRECTIVO:

Teodora Cardoso (Presidente) Embaixador dos EUA Jorge Figueiredo Dias Jorge Torgal Luís Braga da Cruz Luís Valente de Oliveira Michael de Mello Vasco Pereira da Costa Vasco Graça Moura

“Belo céu azul [aqui em Nova Iorque] que me leva a pensar que nós estamos na mesma latitude de Lisboa, o que tenho dificuldade em imaginar.” Albert Camus, Cahier V (1946)

CONSELHO EXECUTIVO:

Maria de Lurdes Rodrigues (Presidente) Charles Allen Buchanan, Jr Mário Mesquita SECRETÁRIO­‑GERAL: José Sá Carneiro DIRECTORES: Fátima Fonseca, Miguel Vaz SUBDIRECTOR: Rui Vallêra ASSESSORES: João Silvério, Paula Vicente

Rua do Sacramento à Lapa, 21 1249­‑090 Lisboa | Portugal Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358 Email: fladport@flad.pt • www.flad.pt

Paralelo DIRECTORA: Maria de Lurdes Rodrigues EDITORA: Sara Pina COORDENADORA: Paula Vicente COLABORAM NESTE NÚMERO: Alberto Pena,

Alexandre Soares, Ana Maria Silva, André Sebastião, Bernardo Nunes, Bernardo Pires de Lima, Carla Baptista, Bárbara Matias, Charles Allen Buchanan Jr, Carla Martins, Carla Pinto Caldeira, Cláudio Nóbrega, Filipe Caetano, Germano Almeida, Gustavo Brito, Hannah Kliot, Helena Barranha, João Silvério, Luís Pais Bernardo, Maria de Lurdes Rodrigues, Maria João Avillez, Marina Almeida, Mónica Velosa, Nuno Costa Santos, Paulo Pena, Pedro Seabra, Ricardo Alexandre, Rui Ochoa, Sara Pina, Sérgio Fazenda, Sofia Branco, Sofia Lorena, Sónia Andrade, Tiago Coelho, Viriato Queiroga

DESIGN: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2] REVISÃO: António Martins TRADUÇÃO: AmeriConsulta IMPRESSÃO: Gráfica Maiadouro TIRAGEM: 3000 exemplares NIF: 501 526 307 Nº DE REGISTO NA ERC: 125 PERIODICIDADE: semestral

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paralelo@flad.pt Depósito legal: 269 114/07 ISSN 1646­‑883X © Copyright: Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento Todos os direitos reservados

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Caro leitor

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início do ano foi marcado pela tomada de posse de Barack Obama para um novo e último mandato enquanto Presidente norte-americano. A campanha foi renhida mas a vitória foi, apesar de tudo, confortável. A FLAD não podia deixar de acompanhar as presidenciais americanas e as suas consequências para Portugal e a Europa e, por isso, preparou debates abertos a toda a sociedade que resultaram num trabalho especial de relato e antevisão do que será o novo ciclo político. Vários projectos importantes desenvolvidos ou apoiados pela Fundação são divulgados neste número: O Fórum Franklin D. Roosevelt; a iniciativa “Study in Portugal”; o programa “José Rodrigues Miguéis”; o projecto “Dabney”; o empreendedorismo social e vários outros, cujo cunho passa sempre pelo reforço dos laços transatlânticos e o papel de Portugal, especificamente dos Açores, nesta relação especial. Esta edição é um relato de todos esses elos que no último ano contribuíram para manter a ponte robusta entre os Estados Unidos e Portugal e o quanto a distância encurta quando trabalhamos em paralelo. SARA PINA Paralelo n.o 7

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Editorial de Maria de Lurdes Rodrigues

DO EDITOR

Valorizar a língua portuguesa nos EUA

[POLÍTICA]

CAPA

Tomada de Posse de Barack Obama (White House Photo by Lawrence Jackson)

COMPLIMENTARY

COPY ESPECIAL

OFERTA

O Novo Mandato de Barack Obama

Study in Portugal: Portugal como destino universitário III Fórum Roosevelt no Faial: O mar que nos protege

Livro Dabney: as relações transatlânticas divulgadas por histórias de uma família

especial

BAMA ’12

06 | Portuguese Caucus: Grupo de Congressistas amigo de Portugal

12 | As eleições vistas de Washington por Bernardo Pires de Lima

por Alexandre Soares

16 | Frustração e esperança: avaliações dos partidos Republicano e Democrata por Ricardo Alexandre

18 | Dois olhares de políticos luso-descendentes sobre as eleições nos EUA por Ricardo Alexandre

[PORTUGAL/EUA] 28 | “Study in Portugal” Portugal como destino universitário de referência por André Sebastião

35 | O arquipélago de ponto de encontro global Entrevista a Cynthia Koch (Ex-directora da Biblioteca Roosevelt)

36 | O mar que nos protege Entrevista a Michael Orbach (Duke University)

40 | “Franklin Roosevelt reconhecia algo familiar nos Açores” Entrevista a Delano Grant Jr.

[PORTUGAL/EUA] Livro Dabney 47 | Uma família que se (re)descobre por Marina Almeida

50 | Cartas dos Dabney fazem a ponte Portugal/EUA por Marina Almeida

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EDITORIAL

Valorizar a língua portuguesa nos EUA MARIA DE LURDES RODRIGUES

O português é a terceira língua europeia mais falada no mundo. São cerca de 250 milhões de falantes de português e este número aumenta quando se consideram as diásporas portuguesa, brasileira e cabo-verdiana espalhadas pelo mundo. Só nos EUA, estima-se que o número de falantes de português seja superior a dois milhões. O principal e mais valioso activo da língua portuguesa é justamente a sua presença numa enorme região linguística, integrando vários povos do mundo. Os EUA devem ser um dos alvos prioritário da política de valorização da língua Nos EUA existem cerca de cem liceus portuguesa. Ampliar e que oferecem no currículo o português renovar o interesse pela aprendizagem da como língua estrangeira. língua portuguesa nos EUA é essencial no quadro de uma estratégia de promoção externa de uma imagem moderna do País, passível de atrair investimento ou de gerar procura para os produtos e os serviços portugueses, designadamente os serviços de ensino superior. A existência de milhares de falantes de português, portugueses, luso-americanos, brasileiros e cabo-verdianos, mas também de milhares de falantes de castelhano, justifica por si só essa prioridade e permite antecipar com segurança o retorno do investimento que vier a ser feito. A FLAD tem apoiado de forma sistemática e bastante inovadora o desenvolvimento do departamento de estudos de língua e cultura portuguesa nalgumas das melhores universidades norte-americanas. Os protocolos existentes entre a FLAD e a Universidade de Brown, a Universidade de Massachusetts, a Universidade de Chicago, a Universidade de Berkeley, a Universidade de San Jose, são apenas alguns exemplos. Porém este esforço necessita agora de ser alargado em três sentidos: Em primeiro lugar, reforçar a dimensão cos-

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mopolita da língua portuguesas, afirmado o seu valor associado à região linguística da lusofonia e ao potencial de riqueza e de desenvolvimento dos países onde o português é a língua oficial. Neste sentido, exigem-se políticas de língua portuguesa afirmando-a como um meio de acesso à Europa, ao Brasil, a Moçambique, a Angola, a Cabo Verde, a Timor e a Macau, como um instrumento de acesso ao conhecimento de diferentes culturas e povos em todo o mundo, e associada a oportunidades de desenvolvimento profissional e ao futuro. As medidas e iniciativas de promoção da língua portuguesa devem por isso procurar envolver os países da CPLP. Em segundo lugar, dar atenção ao ensino do português nos sistemas de ensino dos outros países. Nos EUA existem cerca de cem liceus que oferecem no currículo o português como língua estrangeira, existindo milhares de alunos que aprendem português. São necessárias iniciativas de cooperação com os professores destas escolas, através de programas de mobilidade, estágios de aperfeiçoamento e cursos intensivos de ensino de português como segunda língua, como os que a FLAD tem promovido em colaboração com a Universidade de Lisboa e a Universidade dos Açores. Em terceiro lugar, renovar a presença e a imagem do Instituto Camões no estrangeiro, em particular nos EUA. O trabalho realizado pelos leitores nas universidades norte-americanas é insubstituível e necessário à formação de especialistas, professores e investigadores. Falta, porém, na sociedade norte-americana, um espaço de ensino da língua aberto e orientado para conquistar e responder às necessidades de outro tipo de público, designadamente ligado à vida económica e empresarial. A colaboração que tem vindo a desenvolver-se entre o Instituto Camões, a AICEP e a FLAD, visando este objectivo, pode vir a ser decisivo para afirmar uma imagem moderna e cosmopolita da língua portuguesa. Paralelo n.o 7

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REVISTA DE IMPRENSA

por Ana Maria Silva*

Estrategas da campanha eleitoral em debate

Asas sobre a América “Escritores que leem escritores, portugueses que olham para a América. Esta era a filosofia do ciclo de conferências ‘Asas sobre a América’ que, em 2008, encheu o auditório da FLAD, em Lisboa. É de saudar, por isso, a passagem a livro dessas inesquecíveis intervenções, já que não só dão a conhecer alguns dos principais vultos das letras norte-americanas, como revelam os modos de ler de alguns dos nossos principais autores nacionais.”

“Tom McMahon e Christian Ferry cultivam uma rivalidade saudável, falando juntos a semana passada sobre as campanhas de Barack Obama e Mitt Romney a mês e meio da ida às urnas. A convite da FLAD em Lisboa, os estrategas – o primeiro democrata, o segundo republicano – sentaram-se com o i para duas conversas curtas mas ricas. Os grandes temas: os Super PAC, o comentário criticado de Romney sobre 47% dos eleitores serem “penetras que não pagam impostos”, o futuro do partido republicano e o legado da primeira administração Obama.”

[ Jornal Letras, Artes & Ideias, 4 de Abril de 2012 ]

[ Jornal i, 1 de Outubro de 2012, Joana Azevedo Viana ]

Portugal e o Holocausto

Admiração e amor pelos Açores “Maria Filomena Mónica […] confessa a sua admiração e amor pelos Açores sem essa admiração não teríamos estes Dabney. E sem Mário Mesquita, açoriano, que em 1981 publicou uma série de artigos sobre a família no ‘Diário de Notícias’ (de que foi director) não teríamos a história de uma obstinação que representa esta edição, tanto a portuguesa como a americana.” [ Expresso, 16 de Março de 2013, Clara Ferreira Alves ]

“A ‘imagem idílica’ do papel de Portugal no Holocausto, cultivada pela historiografia salazarista e que se inscreveu na nossa memória coletiva, corresponde apenas parcialmente à verdade histórica. Avraham Milgram, académico do Yad Vashem (memorial de Israel para evocar as vítimas da Shoah), numa sessão da conferência ‘Portugal e o Holocausto’, […] embora reconhecendo não existir um sentimento antissemita no nosso País, lembrou decisões que Salazar não tomou – e poderiam ter salvo muitos milhares de judeus dos campos de extermínio.” [ Diário de Notícias, 30 de Outubro de 2012, Fernando Madaíl ]

Ensino do português nos EUA “Um curso de verão ministrado em Lisboa para professores que ensinam português nos Estados Unidos está a proporcionar uma experiência extremamente rica e fundamental para a profissão. […] O curso de verão para professores de português nos Estados Unidos é organizado pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e tem como objetivo aprofundar os conhecimentos da língua e da cultura portuguesa dos professores de português do ensino básico, secundário e universitário nos Estados Unidos.” [ Lusa, 13 de Julho 2012 ]

Uma família americana no Faial “A fonte deste volume intitulado ‘The Dabneys – A Bostonian Family in the Azores (1806-1871)’ são as milhares de cartas originais da família, que se distribuem ao longo de três volumes – demasiado longos à luz da nossa era apressada. Já houve uma primeira versão curta em português, «Os Dabney, Uma Família Americana no Faial»(2009, Tinta da China). Com este livro em inglês, que tal como o anterior é editado pela FLAD – Fundação Luso-Americana, vai ser possível chegar aos Dabney contemporâneos. […] Nos potenciais leitores, Mário Mesquita, administrador da FLAD e promotor destas edições, gosta de incluir ‘a população portuguesa e lusodescendente’.” [ Diário de Notícias, 14 de Fevereiro de 2013, Marina Almeida ]

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POLÍTICA

Portuguese Caucus: a voz de Portugal em Washington No Congresso americano há um grupo de congressistas que se assume como amigo de Portugal e luta por melhores relações entre os dois países. POR ALEXANDRE SOARES*

No dia 18 de Abril do ano passado, o congressista Jim Costa entrou no seu gabinete, o número 1314 do edifício Longworth, em Washington, sentou­‑se, pediu uma garrafa de vinho tinto da Califórnia, três copos, e descansou de um dia preenchido com votações no Capitólio. Passados alguns minutos, o congressista

Dennis Cardoza chegou. Exactamente às 17h30, o embaixador de Portugal em Washington, Nuno Brito, juntou­‑se aos dois políticos. Os três começaram a discutir a redução da presença militar na Base das Lajes, nos Açores. A reunião entre os congressistas democratas e o diplomata português é uma das

actividades desenvolvidas pelo Portuguese Caucus, o grupo de membros da Câmara dos Representantes com ligação a Portugal. Apesar de existir há vários anos, só em Fevereiro de 2011 foi formalmente instituído. Muito por influência do Portuguese­ ‑American Leadership Council of The United States (PALCUS) e da National

Nuno Brito, embaixador de Portugal em Washington DC, entre Jim Costa e Dennis Cardoza, dois políticos luso-americanos.

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POLÍTICA

Organization of Portuguese­‑Americans (NOPA), os dois lóbis portugueses mais activos na sociedade americana. Os Caucus – que também assumem a forma de grupos de trabalho ou coligações – são grupos de congressistas unidos por um interesse comum, que pode ser ideológico (como os New Democrats), étnico (como o português ou o hispano) ou geográfico (a maioria dos estados têm um). Os membros reúnem­‑se regularmente, em privado, para definir prioridades, fazer nomeações para certos cargos ou delinear estratégias para uma mudança legislativa. Naquele fim de tarde luminoso, em que os dois congressistas democratas trocavam argumentos com o embaixador português, o tema era a redução da presença militar americana na Base das Lajes. “É um exemplo perfeito dos assuntos em que costumamos trabalhar”, diz Dennis Cardoza. O ex-representante do 18.º distrito da Califórnia, que se retirou da vida política em Agosto do ano passado, participou em várias reuniões sobre o tema desde que o secretário da Defesa norte-americano, Leon Panetta, informou o ministro da Defesa português, José Pedro Aguiar-Branco, da intenção norte-americana. “Devido a problemas orçamentais, a presença militar americana terá cortes em todo o mundo”, explica. “O que estamos a fazer é tentar minimizar os efeitos desse corte nos Açores.” Jim Costa confirma os esforços: “Tivemos uma série de reuniões com o ministro português, o secretário de Estado da Defesa americano e outras autoridades. Há várias possibilidades na mesa. Estamos a tentar chegar a um compromisso.” No final de Março, o antigo presidente do Governo dos Açores, Carlos César, enviou cartas aos congressistas com maior ligação ao arquipélago solicitando a sua intervenção no caso. Costa e Cardoza – bem como Barney Frank, Stephen Lynch, David Cicilline e Jim Langevin – foram alguns dos que receberam essa correspondência. “Essa é uma das vantagens dos Caucus”, explica o representante do 20.º distrito da Califórnia, Jim Costa. “Sinaliza claramente quem tem interesses e em que temas.” Outro assunto em que estão envolvidos é a passagem do processamento de vistos de imigrante e da lotaria para a Embaixada em Paris. Para Dennis Cardoza, a decisão é “altamente ofensiva” – “Portugal foi o segundo Estado a reconhecer os EUA quando nos tornámos um país”, conclui. “Não sei se foi uma questão de orçamento, segurança ou logística. O que eles não perceParalelo n.o 7

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bem é que é muito caro para alguém dos Açores, por exemplo, ir até França. É isso que tentamos explicar.” Estes dois temas são a primeira prova de fogo do recém­‑formado Caucus. Mas, antes da sua formalização em 2011, os seus membros envolveram­‑se “em várias questões relacionadas com as pescas, a lavoura, a imigração ou os acordos bilaterais entre os dois países”, explica Costa. A reforma da imigração já não é a maior preocupação da comunidade portuguesa – numa sondagem promovida no ano passado pelo PALCUS, surge em terceiro lugar, depois do estado da economia e das oportunidades de trabalho –, mas foi o tema que mais esforço exigiu aos congressistas. A maior vitória foi a inclusão de Portugal no Visa Waiver Program, que dispensa visto de entrada no país aos cidadãos dos países membros. Durante vários anos, Portugal e a Grécia foram os únicos países da Europa Ocidental excluídos do programa. Uma campanha – que incluiu sessões de esclarecimento, reuniões entre congressistas e intervenções no debate de Richard Pombo, Barney Frank e Patrick J. Kennedy – que acabou por conseguir que uma mudança da lei fosse aprovada.

que “devia ter sido mais agressivo”. No entanto, admite, “o momento é mau devido ao estado da economia” e tem “esperança de que Obama vá lidar com estas questões, de forma efectiva, num segundo mandato”.

MOTIVAÇÕES Dois co-presidentes do Caucus, Jim Costa e David Valadão, têm origens portuguesas. Os pais de Valadão são da ilha Terceira, bem como três avós de Costa. “Como muitos antes e muitos depois, vieram com a roupa que tinham no corpo à procura de uma vida melhor para si e para os seus filhos”, explica Costa. Ambos falam português e foram criados num ambiente português. No escritório de Costa, há uma fotografia com o antigo presidente do Governo Regional dos Açores, Mota Amaral. Antes de sair do cargo, Dennis Cardoza exibia numa parede do seu gabinete os documentos de quando os seus avós ficaram legais no país. Richard Pombo, o grande promotor do Portuguese Caucus, antes de ser derrotado nas urnas em 2006, também era descendente de portugueses. Mas, com apenas três luso­‑americanos no Congresso, é evidente que a maioria dos membros do Caucus não tem sangue A vantagem do Caucus é sinalizar português. claramente quem tem interesses Cada congressista é eleito por uma zona e em que temas. geográfica e é obrigado pela Constituição a defender os interesses Outro problema permanece com res- dos residentes dessa zona. Muitas vezes, a posta adiada: a deportação. “A comuni- sua eleição depende desse compromisso. dade portuguesa sente que não está a ser É por isso que Barney Frank e Patrick J. tratada de forma justa”, admite Cardoza. Kennedy, ambos eleitos pelo estado de Barney Frank chegou a ler a carta de um Massachusetts, sempre defenderam os inteportuguês de Massachusetts durante uma resses da comunidade. O mesmo acontece sessão no Congresso, pedindo que o com David Cicilline, de origem italiana, poder de decidir a deportação fosse que representa o 1.º distrito de Rhode devolvido aos juízes, mas não teve qual- Island que é o terceiro co-presidente do quer resultado. Caucus. Jim Costa diz que “o problema tem sido Colleen Hanabusa, do 21.º distrito do discutido inúmeras vezes” e que “é um Havai, foi convidada para se juntar­ao assunto difícil, mas legítimo”. “Somos um Caucus quando descobriram o nome país muito grande que desenha as suas leis do seu marido: John Souza. “És casada com base na pior das situações. Tudo fica com um português?”, perguntaram­‑lhe. comprometido devido ao México. “Então tens de te juntar ao Portuguese É difícil dizer: não vamos deportar os Caucus”. portugueses, mas vamos deportar Hanabusa aceitou o desafio, mas tem os mexicanos e colombianos”, explica outras motivações. “Uma grande percenCardoza. tagem de havaianos tem origem portuO ex-congressista acha que o “Presidente guesa, como o meu marido. Muitos Obama não cumpriu o seu compromisso” vieram no começo das plantações. Depois com uma reforma das leis de imigração e montaram padarias, tornaram­‑se empre-

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POLÍTICA

O que importa, como explica Jim Costa, “é que os americanos de descendência portuguesa percebam que há representantes que estão atentos aos seus problemas e lutam por melhores relações entre Portugal e os Estados Unidos.”

Mesmo que, durante algum tempo, as intrigas dos corredores do poder se tenham infiltrado no Portuguese Caucus, o que importa, como explica Jim Costa, “é que os americanos de descendência portuguesa percebam que há representantes que estão atentos aos seus problemas e lutam por melhores relações entre Portugal e os Estados Unidos. * Jornalista freelancer

sários. Muitas pessoas não conhecem a influência portuguesa na nossa história”, explica. Um tio do marido de Colleen foi director de impostos do Estado; outro, ainda durante a monarquia, teve a sua cara numa moeda. As mal­‑assadas de São Miguel, o bacalhau e o tempero de vinha­ ­‑d’alhos tornaram­‑se parte da gastronomia do arquipélago. A congressista pertence a vários Caucus, como o Asian Pacific ou os New Democrats. Nestas associações, reconhece a vantagem de “permitirem um contacto mais directo” com as populações. “Com 435 pessoas no Congresso, podes não encontrar quem te represente. Mas, se eles pertencerem a estas organizações, é fácil contactá­‑los.” DIVISÃO O Portuguese Caucus está aberto a Democratas e Republicanos, mas durante algum tempo só teve um republicano: o representante do 13.º distrito de Nova Iorque, Michael Grimm. A ausência mais notada era a de Devin Nunes, congressista eleito pela Califórnia com origens na ilha de São Jorge. “Trabalhávamos juntos. Fomos a Portugal, aos Açores. Tivemos uma relação muito próxima durante quatro anos e meio. A cada dois meses, tínhamos reuniões na embaixada”, diz Costa. Encontravam-se tão frequentemente na embaixada que, em brincadeira, diziam que era o “club house” do Portuguese Caucus. Depois, com a formalização do Caucus, em 2011, surgiu a divisão. Nunes garante que o Caucus “tornou-se partidário” e preferiu defender os interesses de Portugal fora do grupo. Agora, com a entrada do republicano David Valadão como um dos co-presidentes, a divisão está ultrapassada. No dia 31 de Janeiro, foi anunciada a adesão de Devin Nunes ao Caucus.

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O Portuguese Caucus está aberto a democratas e republicanos, mas durante algum tempo só teve um republicano.

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POLÍTICA

O caminho de Hillary Clinton em prol da igualdade Secretária de Estado aproveitou maior responsabilidade política para colocar paridade entre mulheres e homens no centro da política externa dos Estados Unidos. POR SOFIA BRANCO*

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tada por vários estudos credíveis – de que a igualdade entre mulheres e homens tem vantagens para a economia e pode até dar lucros. A dificuldade em incluir a igualdade de género na agenda internacional persiste, mas a presença de Hillary Clinton acabou por garantir que o tema não fosse apenas discutido numa sala pequena e entre meia dúzia de peritos.

Com a colaboração da directora executiva da agência UN Women ( ONU Mulheres) e antiga Presidente do Chile, Michelle Bachelet, e da ministra para a Igualdade de Género e a Família da Coreia do Sul, Kum­‑lae Kim, a antiga secretária de Estado dos EUA garantiu um tratamento ao mais alto nível – o tema entrou na assembleia geral do fórum da OCDE e chegou ao discurso oficial de abertura do DR

Quando tomou posse, em 2008, Hillary Clinton prometeu colocar a igualdade de género no centro da política externa dos Estados Unidos e, independentemente dos resultados, insistiu nesse ponto, a cada passo que deu e a cada viagem que fez, até ao final do seu mandato. A defesa fervorosa da igualdade entre mulheres e homens já era um dos traços de Hillary Clinton antes de chegar à liderança da diplomacia dos Estados Unidos, palanque que tem usado para dar maior projecção a um assunto que lhe é caro – e cuja ausência sai cara também. Clinton apostou tudo em apontar algo que muitos ainda parecem não querer ver: a desigualdade entre mulheres e homens tem custos económicos. E avultados. Foi isso que foi dizer a Busan, a cidade da Coreia do Sul que acolheu o quarto fórum de alto nível sobre a eficácia da ajuda ao desenvolvimento. Clinton foi a primeira secretária de Estado americana a participar naquele fórum organizado pela Organização para a Cooperação Económica e o Desenvolvimento (OCDE) e dedicou grande parte do tempo passado em Busan a falar das vantagens de existirem mulheres mais participativas e com maior poder de decisão. “A transformação do papel das mulheres é o último e maior impedimento para o progresso universal”, disse Clinton numa entrevista a Mark Landler, do jornal The New York Times, publicada a 18 de Agosto de 2009. Partilhou com os milhares de delegados que, em nome de organizações multilaterais, Estados, doadores, bancos internacionais, organizações da sociedade civil e empresas do sector privado, se deslocaram a Busan, sendo a sua convicção – susten-

Hillary Clinton (à esquerda) prestou muita atenção à igualdade de género. Nesta foto num encontro, enquanto secretária de Estado de Obama, com Aung Suu Kyi, líder da oposição birmanesa (à direita).

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POLÍTICA

evento, que contou com dezenas de líderes mundiais. Porém, nem a presença nem a convicção da antiga secretária de Estado dos Estados Unidos foram suficientes para que a comunicação social se interessasse grandemente pelo assunto – das centenas de jornalistas de todo o mundo que cobriam o evento apenas duas dezenas assistiram à conferência de imprensa da embaixadora americana que acompanhava Clinton, Melanne Verveer. As perguntas colocadas foram ainda menos e poucos órgãos de comunicação de âmbito geral destacaram o discurso de Clinton em prol da igualdade. “Há a percepção de que os assuntos de género são marginais”, reconheceu, em conversa com a Paralelo, a embaixadora itinerante (ambassador­‑at­‑large) Melanne Verveer, que chefia o Office of Global Women’s Issues do Departamento de Estado dos EUA. O cargo e o gabinete foram criados por Clinton em 2009 com o objectivo de garantir que a igualdade de género será sempre tida em conta na formulação e na condução da política externa norte­ ‑americana, na convicção de que os objectivos desta só serão plenamente atingidos se a primeira existir. “A democracia nada significa se metade das pessoas não puderem votar, ou se o seu voto não contar, ou se o seu nível de literacia for tão baixo que ponha em causa o exercício do seu voto. É por isso que, quando viajo, organizo sempre iniciativas com mulheres, falo dos direitos das mulheres, encontro­‑me com mulheres activistas, transmito as preocupações das mulheres aos líderes com quem me encontro”, disse Clinton na entrevista a Mark Landler. As questões de género têm tardado a ser incluídas como assunto autónomo nas conferências internacionais, mas Clinton conseguiu que a sua proposta de plano de acção comum para a igualdade e o desenvolvimento fosse assinada por todos os actores reunidos em Busan, que, na nova parceria global para um desenvolvimento eficaz, reconhecem que a igualdade de género é cada vez mais um ingrediente necessário para a eficácia das políticas de cooperação. O plano de acção comum proposto por Clinton uniformiza objectivos a atingir por todos e estabelece a monitorização dos progressos. Todos os que firmaram o documento reconhecem que acabar com as desigualdades entre mulheres e homens é, para além de um fim geral, um pré­

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‑requisito para um crescimento sustentável e inclusivo. Antiga chefe de gabinete de Hillary Clinton, quando esta era ‘apenas’ a mulher do Presidente Bill Clinton, Melanne Verveer sublinha que se tem verificado “um reconhecimento crescente, ao mais alto nível”, de que “falar de eficácia da ajuda ao desenvolvimento implica falar de investimento no desenvolvimento das mulheres”.

Sobre a eficácia das estratégias de desenvolvimento que têm sido seguidas até aqui, a embaixadora refere a importância de envolver, no esforço de cooperação, mais e mais actores. “Ainda estamos presos a velhas formas de fazer as coisas, que não são eficazes”, reconhece. O falhanço em atingir a igualdade é comum a todos os países, mas “é fácil ver aqueles que conseguem melhores resultados” – os mais desenvolvidos. “Mas quantas vezes esses programas são direccionados a mulheres, ou as incluem como indicador? As mulheres não As mulheres não são só vítimas, são só vítimas, são actores de mudança. são actores de mudança. Elas são cruciais para Elas são cruciais para a construção a construção da paz e para a estabilidade”, da paz e para a estabilidade [...] destaca. Sabemos que as mulheres que lideram Hillar y Clinton “tem prestado muita pequenos e médios negócios são atenção à igualdade grandes aceleradores de crescimento. de género” não porque fazê­‑lo seja “um favor às mulheres”, mas porque é melhor para todos que elas Os estudos têm tardado, mas “aumentou “possam fazer o que o seu potencial lhes em muito” o número de fontes imparciais permite”, diz a embaixadora, recordando que já reuniu estatísticas que relacionam o que, na conferência internacional de desempenho da igualdade com o desem- Pequim, em 1995, Clinton iniciou o movipenho da economia – por exemplo, o mento “Os direitos das mulheres são direiFórum Económico Mundial, que, no seu tos humanos”. relatório anual sobre desigualdade de géne“Para ela, não podemos ter os progresro, realça que os países onde homens e sos que queremos e o mundo que desemulheres têm um menor hiato entre eles jamos se mantivermos as mulheres à no acesso à saúde, à educação e à partici- margem. Ela acredita nisso profundamenpação económica e política são mais pro- te”, relata. dutivos e mais competitivos. Isso foi visível no discurso que Clinton “Os dados já o mostram, nós é que ignoleu na cerimónia oficial de abertura do ramos os números”, diz a embaixadora. fórum de Busan, partilhando com os Ora, contrapõe, “a não ser que haja um restantes líderes mundiais o papel ceninvestimento na igualdade de género e no tral que os Estados Unidos atribuem ao empoderamento das mulheres, não have- papel das mulheres e reconhecendo que, rá desenvolvimento eficaz, são duas faces no seu país, também existem “limitada mesma moeda”. ções” à igualdade: “Temos de poder “Sabemos que as mulheres que lideram dizer que Busan fez a diferença, que pequenos e médios negócios são grandes aprendemos com os nossos erros, que aceleradores de crescimento”, refere discutimos os problemas mais difíceis, Verveer, questionando de seguida: “Então, que nos comprometemos, todos sem dada a preponderância de dados, o que excepção, com os mais elevados padrões falta para fazermos os progressos que devía- e que cumprimos com os nossos commos? Ainda temos de lutar contra a forma promissos”, entre os quais, “a ideia de como sempre se fizeram as coisas, menta- que cada pessoa, menino ou menina, lidades que ainda são mais fechadas do que tem o direito a realizar o seu potencial”, abertas. Mas estamos a progredir, e se não vincou. aproveitarmos estas oportunidades ficare* Jornalista da Lusa mos mais e mais para trás.”

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especial

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Presidenciais americanas em análise em Lisboa Um conjunto de especialistas americanos e portugueses reuniu-se na FLAD para discutir as presidenciais nos EUA. Da campanha nas primárias à tomada de posse.

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“A Influência dos Debates Presidenciais” foi, também, discutida nas vésperas do último debate televisivo entre Mitt Romney e Barack Obama. Mitchell Cohen, politólogo, professor da City University of New York (CUNY) e antigo co-editor da Dissent, esteve ao lado de Pedro Magalhães, especialista em sondagens e professor do Instituto de Ciências Sociais (ICS), para falar sobre a importância e o impacto que os debates presidenciais têm nos eleitores e na decisão final de voto.

O último debate analisou os “Desafios do Novo Mandato de Barack Obama” e trouxe à FLAD Michael Werz, membro do Center for American Progress (CAP) e especialista em política externa e Nuno Rogeiro, analista político. Patrícia Fonseca, da Visão, Pedro Bicudo, da RTP, Óscar Mascarenhas, provedor do leitor do Diário de Notícias, e Sara Pina, da FLAD, e coordenadora deste ciclo, moderaram as conferências que estiveram na origem dos artigos que se seguem. RUI OCHOA

A Fundação Luso-Americana (FLAD) promoveu o ciclo de conferências, por iniciativa de Mário Mesquita (administrador), dedicado às eleições presidenciais nos Estados Unidos, em parceria com a Embaixada dos EUA em Lisboa e o American Club. Aberto ao público, o ciclo decorreu entre Maio de 2012 a Janeiro de 2013, e trouxe a Lisboa um conjunto de especialistas e profissionais ligados ao mundo político internacional. Ao ciclo “As Presidenciais Americanas na Perspectiva Europeia” assistiram alunos de várias universidades portuguesas que fizeram artigos sobre o tema (dos quais publicamos dois textos nas páginas que se seguem). A primeira conferência do ciclo, intitulada “As Escolhas das Primárias e a Campanha nos Media”, teve como convidados Pedro Adão e Silva, professor no ISCTE e doutorado em Ciência Política e comentador frequente em vários media nacionais; e Pamela Rolfe, jornalista norte-americana freelancer, correspondente de vários media britânicos e norte-americanos em Madrid, nomeadamente o Washington Post. Com o tema “Análise da Campanha Eleitoral”, a segunda conferência trouxe a Portugal Christian Ferry, representante do Partido Republicano e campaign manager da candidatura McCain-Palin em 2008, e Tom McMahon, representante do Partido Democrata, estratega político, e antigo director do Comité Nacional Democrático. António ‘Tony’ Cabral, deputado estadual em Bristol, 13.º distrito do Massachusetts, pelo Partido Democrata, esteve frente-a­ ‑frente com Devin Nunes, membro do Congresso nor te-amer icano em Washington D.C. pelo Partido Republicano, e representante dos EUA no 21.º distrito da Califórnia no encontro sobre “Políticos Luso-Americanos”.

Tony Cabral, deputado estadual do Partido Democrata (direita), e Devin Nunes, membro do Congresso pelo Partido Republicano (esquerda), com Sara Pina (coordenadora do ciclo) na conferência sobre “Políticos Luso-Americanos”.

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As eleições vistas de Washington POR BERNARDO PIRES DE LIMA*

Esta indústria [think thanks] é tão competitiva como profissionalmente exigente. Mas o facto de este mercado ser tão competitivo nem sempre traz qualidade associada. Muitas conferências e debates são marcados por ideias e slogans sem a profundidade necessária. Por vezes parecem apenas testar as reacções da audiência ou da imensa massa crítica que os alimentam.

Washington DC é a melhor torre de controlo sobre eleições americanas. Enquanto a campanha percorre o país, universidades e think tanks debatem e divergem, mostrando a qualidade dos seus recursos e o manancial de ideias. Esta policy community, em particular a da política externa, é uma influente indústria de argumentação, egos, networking e alguns sound bytes. Mas vamos primeiro à campanha eleitoral, dividida em três fases. A primeira, entre as duas convenções partidárias e o início dos debates televisivos. A concentração do GOP na Florida, mesmo lançando o bem preparado Paul Ryan para vice, deu­‑se mais por quererem derrotar Obama do que por acreditarem em Romney, não produzindo um efeito extra de empolgamento. A convenção democrata de Charlotte passava por desmontar a agenda adversária e criar uma narrativa semelhante à de 2008, definindo novas metas para fazer coincidir o primeiro mandato com metade do plano de recuperação da economia. Só assim poderiam pedir um novo. O segundo momento diz respeito aos dezoito dias entre o primeiro e o último debate televisivo. Barack Obama tinha que gerir a sensação de vitó-

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ria antecipada, uma garantia que podia desmobilizar a coligação de 2008: mulheres, jovens e minorias étnicas. Se no primeiro debate Romney superou as expectativas, os restantes encontros revelaram prestações equilibradas. Romney fez de moderado, desmentindo algumas propostas das primárias, e Obama centrou­‑se na justiça fiscal, cortes na defesa e “saúde” da economia: o desemprego baixava dos oito por cento pela primeira vez no seu mandato e o PIB crescia há treze trimestres consecutivos. Os motivos do desequilíbrio final constituem o terceiro momento. Começou pela gestão política do furacão Sandy, muito mais certeira em Obama; passou pela entrada em cena de Bill Clinton, a maior estrela do firmamento democrata, e que trouxe horizonte temporal a Obama, lembrando a prescrição de sucesso contra a maleita da economia e os anos do triunfalismo liberal da década de 1990; e a errónea recta final de Romney, com o “binders full of women”, o furacão Sandy e algumas apostas geográficas de campanha. A 6 de Novembro, com o Congresso repartido nas maiorias de 2010, Obama vencia com mais de três milhões de votos populares e 126 votos no colégio eleitoral. Os EUA vivem um momento de polarização ideológica, intransigência com a diferença e desconfiança com a política feita em Washington. Esta campanha, ao invés de acalmar o debate, promoveu o ódio político, a intolerância e gastou seis mil milhões de dólares com um traço de ataques negativos entre adversários que importa questionar. Além disso, os resultados mostraram que Obama perdeu seis por cento dos eleitores entre os 18 e os 30 anos, quatro por cento entre as mulheres brancas e três por cento entre os negros, mas conquistou quatro por cento do voto hispânico, o eleitorado que demograficamente mais cresceu desde 2008, decisivo tanto no Midwest como na Paralelo n.o 7

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Florida. Neste segmento, Obama bateu Romney por 71/27, muito fraco quando comparado com Bush em 2004 (40 por cento) e McCain em 2008 (31 por cento). Ficou ainda demonstrado que não é possível apagar as feridas de primárias tão intensas, nem confiar só no eleitorado branco (72 por cento do total). A impressão de preponderância de Obama na foreign policy community pode ser explicada pelo facto de as suas principais instituições estarem mais próximas dos democratas, o que amplifica a sua presença nesta minha avaliação. Além disso, Obama não tem sido um corpo estranho a muitos sectores republicanos. Está confortável com o uso da força (Bin Laden, drones, Líbia, Afeganistão), é prudente nos impulsos messiânicos, o que o aproxima dos kissingerianos, e tem uma visão para o Pacífico para condicionar a China, o que também promove a convergência. É empolgante, motivador e desafiante trabalhar nestes think tanks. A sua importância mede­‑se não só pelos robustos orçamentos anuais – Brookings (90 milhões de dólares), Center for Strategic and International Studies (30), Council on Foreign Relations (68), Carnegie Endowment for International Peace (30), American Enterprise Institute (25), German Marshall Fund (30), Center for American Progress (35) – mas sobretudo pela capacidade de gerar ideias, opções e soluções para os decisores nas mais diversas políticas públicas. No que toca à política externa, o resultado é cativante. Há um circuito oleado de recursos humanos e ideias que parte dos institutos universitários, (Georgetown, SAIS, George Washington), progride pelos think tanks (Brookings, o CSIS, o Council on Foreign Relations, o German Marshall Fund, o Cato Institute, o Atlantic Council, o American Enterprise Institute, a Foreign Policy Initiative ou o Center for Transatlantic Relations) e conduz à entrada na Paralelo n.o 7

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política com importantes cargos na Administração, no Congresso, ou em departamentos de formulação de decisões, como os policy plannings do Departamento de Estado e do Pentágono ou no National Security Council. Esta indústria é tão competitiva como profissionalmente exigente. Mas o facto de este mercado ser tão competitivo nem sempre traz qualidade associada. Muitas conferências e debates são marcados por ideias e slogans sem a profundidade necessária. Por vezes parecem apenas testar as reacções da audiência ou da imensa massa crítica que os alimentam. A partir daí, sim, o sound byte pode fazer o seu percurso: aprofundar argumentos, desmontar uns quantos outros, entrar no debate público através da imprensa, gerar o interesse de algum produtor de política externa, até chegar ao topo da cadeia de decisão. Ou, simplesmente, não ter nenhum impacto, servir apenas de linha de discussão e morrer uns tempos depois. O que quer que o destino lhe reserve, de uma coisa pode esta foreign policy community estar certa e orgulhar­‑se: as ideias contam, as empatias também, a network pesa. Debater, argumentar, publicar, influenciar, decidir. É isto que no final conta. Há massa crítica, há jornalismo que fiscaliza, ouve e critica, há democracia e, felizmente, há dinheiro. Pode sofrer muitas vezes de etnocentrismo, autoconsumir­‑se e transformar­‑se mesmo numa bolha esgotante, mas ninguém fica indiferente à efervescência política de Washington. Ainda por cima olhando do alto da torre para uma campanha presidencial. Assim, longa vida para a democracia na América. * Investigador do IPRI–UNL, Visiting Fellow no Center for Transatlantic Relations, SAIS, Johns Hopkins University, com apoio da FLAD, e colunista do Diário de Notícias. A versão original deste artigo foi publicada na revista Relações Internacionais (n.º 36, Dezembro de 2012).

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A corrida solitária de Romney Quatro anos depois de o mundo ter acompanhado de perto a luta entre Hillary Clinton e Barack Obama por um lugar na corrida à Casa Branca, assistimos a uma disputa menos empolgante no Partido Republicano, com reflexos na atenção dada pelos media americanos. POR CLÁUDIO NÓBREGA, FILIPE CAETANO E VIRIATO QUEIROGA*

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A INFLUÊNCIA NA OPINIÃO PÚBLICA As eleições americanas são intensamente cobertas pelos media, dos mais tradicionais, como as televisões nacionais (ABC, NBC, CNN, FOX News), às redes sociais e novos meios, que recorrem a dispositivos tecnológicos que garantem o acesso ilimitado à informação através da internet. “Os media têm grande capacidade de influenciar a população na escolha dos candidatos”, referiu Pamela Rolfe. Existe a sensação de que os media têm, efectivamente, capacidade de influenciar os cidadãos na escolha dos candidados no momento do acto eleitoral, mas torna­‑se difícil prová­‑lo.

Para Pedro Adão e Silva, as primárias contribuem para o acentuar das clivagens político­‑ideológicas nos EUA e como este processo é mediatizado pelos principais canais de cabo que evoluíram para um sistema de cobertura noticiosa monotemática, centrada nos temas dominantes. Assim, têm tendência para penalizar os candidatos que vão à frente e para favorecer os candidatos que vão atrás, uma vez que fazem aumentar as expectativas noticiosas. * Alunos do Mestrado em Ciência Política do ISCTE – IUL

HUGO MANUEL CORREIA

A corrida à Casa Branca captou as atenções do mundo durante o ano passado. Os americanos, e o mundo, não se mostraram tão empolgados. “As escolhas das primárias e a campanha nos media”, foi o tema da primeira conferência do ciclo sobre as eleições norte­‑americanas. Como oradores convidados Pedro Adão e Silva (professor do ISCTE – IUL e doutorado em Ciência Política) e Pamela Rolfe (jornalista freelancer, correspondente de media britânicos e americanos em Madrid). Depois de ter perdido a corrida para John McCain em 2008, Mitt Romney foi o candidato presidencial escolhido pelos republicanos, derrotando por larga margem os opositores do seu partido. Nunca deixou de ser o nome mais forte, apesar de Rick Santorum e Newt Gingrich terem surgido como temíveis rivais numa corrida solitária. Pelo caminho foram caindo outras personalidades (quase todas apoiadas pelo “Tea Party”). Pressionado pelo eleitorado mais conservador e procurando diferenciar­‑se de Obama, Romney virou decisivamente à direita, assumindo o consenso republicano contra os impostos, renegando o apoio de décadas ao direito ao aborto e erguendo como uma das suas bandeiras o ataque ao aumento da despesa pública. O foco da campanha republicana, e nomeadamente de Romney, esteve sempre centrado em Obama. Servindo­‑se do “braço armado” na Câmara dos Representantes, com ataque constante do seu partido à agenda doméstica do Presidente, o ex­‑governador do Massachusetts chegou a descrever o opositor democrata de “assassino de empregos” e culpado de “envenenar o verdadeiro espírito da América”.

As eleições americanas são intensamente cobertas pelos media, dos mais tradicionais às redes sociais.

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Perspectivas de campanha Com recurso a uma campanha fundada na esperança, Barack Obama materializou o desejo colectivo americano de garantir a continuidade dos EUA, não só enquanto potência incontornável nas relações internacionais, mas simultaneamente como um modelo capaz de exportar a ideia do American dream e do self-made man.

Na corrida para as eleições presidenciais em 2008, Barack Obama construiu a sua campanha em torno do slogan de que “Washington tinha de mudar”. Na verdade, ele próprio representava o verdadeiro rosto da mudança, um modelo, uma inspiração para grande parte do eleitorado, sobretudo para os mais jovens por intermédio da ideia inspiradora do “Yes we can”. Com recurso a uma campanha fundada na esperança, Barack Obama materializou o desejo colectivo americano de garantir a continuidade dos EUA, não só enquanto potência incontornável nas relações internacionais, mas simultaneamente como um modelo capaz de exportar a ideia do American dream e do self­‑made man. Nesse mesmo ano, Obama prometeu a criação de um sistema universal de saúde, de condições para a existência de pleno emprego, de uma América mais sustentável do ponto de vista energético e, acima de tudo, prometeu retirar a América da grave crise económica e financeira em que havia mergulhado. Hoje em dia, porém, muitas das promessas ficaram por cumprir e os efeitos duradouros da crise colocaram em causa o desejo e a mensagem de mudança que o actual Presidente trouxe consigo para a Casa Branca. O confronto entre Mitt Romney e Barack Obama girou em redor de uma questão essencial: a dimensão, custo e papel do governo federal em diversas áreas, como a educação, a saúde e, fundamentalmente, a economia. De cada lado da barricada, o eleitor foi confrontado com uma visão distinta para o futuro dos Estados Unidos, com ferramentas e soluções diferentes para enfrentar os efeitos da crise, sobretudo o elevado número de desempregados. Do lado democrata, o actual Presidente procurou convencer o eleitorado de que Paralelo n.o 7

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SUSANA ANDRÉ

POR BÁRBARA MATIAS E TIAGO COELHO*

Obama defende um alargamento do volume do Estado com a intenção de proteger os cidadãos.

herdou um fardo extremamente pesado da Administração Bush. Para além da recessão económica, Obama teve de lidar com duas longas guerras que fizeram disparar o orçamento do Pentágono. Nesse sentido, Obama pediu aos americanos mais tempo para concluir o seu projecto, traduzido no lema “Move forward’’, por forma a deixar um legado para as gerações futuras. Para isso, os democratas propuseram soluções de cariz keynesiano, defendendo que Washington deveria ter um papel mais activo, nomeadamente através do aumento da carga fiscal, regulação dos mercados e da despesa governamental, crucial para estimular o crescimento económico. Por outras palavras, Obama defende um alargamento do volume do Estado com a intenção de proteger os cidadãos mais vulneráveis dos choques e da volatilidade dos mercados financeiros. Por outro lado, Mitt Romney propôs como solução medidas de carácter neoliberal, à semelhança daquilo que o Presidente Ronald Reagan fez durante a década de 1980 para responder ao elevado desemprego e favorecer o crescimento da economia. Isto quer

dizer que o principal objectivo republicano é a redução do volume e peso do estado federal na economia, sobretudo através da redução do investimento público. Contudo, estas medidas acarretariam restrições a programas e serviços nacionais, como a Planned Parenthoood, o Medicare e a segurança social, de que muitos americanos beneficiam. Para além do travão ao investimento público, a redução da carga fiscal desejada por Romney não só acentuaria as assimetrias internas provenientes de uma redistribuição precária da riqueza, como ainda colocaria em causa uma das principais conquistas da actual presidência, o Affordable Care Act, com o qual Romney pretendia romper, embora tenha criado um programa semelhante enquanto governador do Massachusetts. Relativamente a Mitt Romney e de acordo com o que Christian Ferry – vice­‑director nacional da campanha de John McCain em 2008 – disse, a sua maior desvantagem prendeu­‑se com o distanciamento do eleitorado, ao contrário do seu adversário. Todavia, Ferry salientou que Romney tinha a possibilidade de inverter esta situação até dia 6 de Novembro, caso conseguisse contornar algumas perturbações de que a sua campanha foi alvo, tal como o vídeo dos 47 por Cento de Americanos Que Vivem à Custa do Estado, e apresentar de forma clara os seus projectos para o futuro da América. Aliás, em tom de brincadeira, o especialista republicano convidado pela Fundação Luso­‑Americana, mostrou­‑se surpreendido pelo facto de os europeus considerarem os republicanos pouco simpáticos, dizendo que ele próprio é republicano e se achava simpático, acessível e até mesmo brincalhão. * Alunos do Instituto de Estudos Políticos – UCP

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Frustração e esperança O republicano Christian Ferry e o democrata Tom MacMahon estiveram na FLAD a debater política americana num momento crucial da vida dos EUA. A Paralelo conversou com eles. POR RICARDO ALEXANDRE*

sobre as eleições nos EUA, ao lado do democrata Tom MacMahon. Ferry admitia que a derrota dos republicanos para Obama em 2008 tinha acontecido “num contexto economicamente

muito difícil”, mas sentia que era tempo de nova viragem política na liderança do país: “Quando a economia está mal, frequentemente os americanos começam a procurar alternativas.”Os republicanos RUI OCHOA

Christian Ferry, dirigente do Partido Republicano, vice­‑director na campanha de John McCain em 2008, era um homem confiante na vitória de Mitt Romney quando veio à FLAD, para uma conferência

Christian Ferry (à esquerda), dirigente do Partido Republicano, vice-director na campanha de John McCain em 2008, era um homem confiante na vitória de Mitt Romney quando veio à FLAD com o democrata Tom Macmahon (à direita).

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argumentam com os “mais 5,3 milhões de milhões [triliões] de dólares de dívida acumulada durante os últimos quatro anos, fazendo a dívida chegar aos 16 milhões de milhões [triliões] de dólares”. Perante o argumento avançado pela Paralelo de que a Administração Obama tinha herdado um fardo muito pesado, arguiu: “É verdade, mas as políticas dele melhoraram as coisas? São capazes de nos tirar do ponto em que estamos, com 23 milhões de americanos desempregados?” Ferry admite que, quando Obama concorreu em 2008, o slogan “Esperança e Mudança” inspirou muitos americanos, mas agora esse slogan transformou­‑se em “Divisão e Conquista” e esse “não é o caminho para libertar a América da economia doente que está a ameaçar a prosperidade”. Em matéria de política económica, apesar de os republicanos serem frequentemente conotados com o mercado livre e a ausência de regulação e intervenção do Estado para o crescimento económico, Ferry admite que “é consensual que deve haver um papel do Governo, a questão é saber qual o peso desse papel”. “Acho que o Governo deve sair da frente e deixar os empreendedores assumirem riscos, investirem capital, construírem um novo país, darem trabalho às pessoas, criarem emprego”, sustenta. Defende a reforma fiscal como forma de atrair investimento: “Se tem a oportunidade de começar um negócio nos EUA ou na Irlanda, onde o peso fiscal é menor e a taxa de juro é mais baixa, onde o faria? É preciso uma reforma fiscal para encorajar as pessoas a investir e a fazer os seus negócios na América.” A Paralelo provocou o dirigente do Partido Democrata, Tom MacMahon, perguntando­‑lhe se o slogan “Yes, we can” não se tinha transformado em “Yes, if the Republicans let us”. O apoiante de Barack Obama diz que o Presidente tentou uma “cultura legislativa mais inclusiva” e, após as eleições intercalares de 2010, “os republicanos entenderam que, se deixassem passar a legislação do Presidente, ficariam mais fracos a médio prazo, e, por isso, tornaram­‑se num obstáculo”. Os números conhecidos a um mês das eleições de Novembro justificavam a pergunta: 8,1 por cento de taxa de desemprego é algo de que um democrata americano se possa orgulhar? MacMahon foi peremptório: “Não! Mas quando se herda uma economia em que se perdiam 800 mil empregos por mês e agora se cria emprego, as coisas ficam em perspectiva e já parecem diferentes.” Paralelo n.o 7

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“O maior mérito” de Obama “foi a reforma da saúde, é inquestionável”, disse MacMahon (à direita na foto) na discussão com o republicano Ferry.

importava com isso e fazia as coisas de uma forma mais solitária. As pessoas podem ter opiniões diferentes sobre qual a opção a tomar, mas respeitarão mais as decisões se tiverem sido chamadas a discutir o assunto e acho que provavelmente essa é a grande diferença entre Obama e Bush.” Já a nível interno, “o maior mérito” de Obama “foi a reforma da saúde, é inquestionável”. Nem tudo foram rosas no primeiro mandato de Obama, mas MacMahon afirma que “as pessoas entendem que ele colocou em ordem muita coisa fundamental para endireitar a economia nos próximos anos” e que “pedir a alguém para mudar tudo em quatro anos, era demasiado e, por isso, vão dar­‑lhe o benefício da dúvida”. E assim foi. E agora? Quais os maiores desafios em material de política externa? “Um dos maiores será o Irão. Conseguir um consenso com a comunidade internacional em termos de sanções económicas. Haverá também uma série de assuntos relacionados com a China, sejam direitos humanos ou comércio. A Coreia do Norte também vai continuar nas nossas cabeças, já que é uma situação imprevisível.” E a Europa? Acordo de comércio livre à vista? Obama dará a resposta.

Claro que vamos continuar a fazer aquilo que entendemos que está certo, mas há prioridades e a economia é a prioridade. MacMahon

Não tendo o Presidente conseguido fazer aprovar legislação para legalizar milhares de imigrantes nos EUA, essa será uma prioridade para o segundo mandato. “O importante é conseguir um consenso para impedir que haja retrocessos, o Presidente até emitiu um decreto, mas não é o mesmo que se pode conseguir com uma lei”, distingue. Sobre outra promessa não cumprida, o encerramento de Guantánamo, MacMahon lembra que é um processo que “depende do Congresso”, onde “não há consenso”. E sublinhou: “Claro que vamos continuar a fazer aquilo que entendemos que está certo, mas há prioridades e a economia é a prioridade.” Para este alto quadro do Partido Democrata, que trabalhou no gabinete do vice Al Gore durante a Administração Clinton, Obama trouxe uma mudança fundamental para a política externa: “Interage muito mais com os outros líderes mundiais em termos de explicações sobre o que vai ser feito e porque vai ser feito. Acho que o Presidente Bush não se

* Jornalista da Antena1

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Dois olhares portugueses sobre as eleições nos EUA

Obama. Garantia que as sondagens não reflectiam o que estava a acontecer on the ground, no terreno. Mitt Romney tinha vencido claramente o primeiro debate? Cabral discordava: “O Presidente Obama não teve que atacar nem criticar”, dizendo que Romney se derrotava com as suas próprias palavras. A Paralelo procurou saber junto de Tony Cabral como foi trabalhar com Mitt Romney, no governo do Massachusetts: “Trabalha­‑se bem... desde que se concorde com ele.”

O Presidente “tem pouco a corrigir, tem que insistir mais naquelas medidas que enunciou nos dois primeiros anos”.

Tony Cabral

RUI OCHOA

Tony Cabral é um nome há muito associado ao prestígio alcançado por emigrantes portugueses nos EUA. Devin Nunes é um nome em ascensão na política norte­ ‑americana. O primeiro é democrata, o segundo é republicano. Quando veio a Portugal, poucas semanas antes das eleições presidenciais americanas de 6 de Novembro, a convite da FLAD, Tony Cabral não se mostrava nada preocupado com as sondagens que apontavam para um empate técnico ou, no mínimo, uma clara aproximação entre Mitt Romney e Barack

Devin Nunes (à esquerda) é um nome em ascensão na política norte‑americana e Tony Cabral (à direita) o democrata que acreditou sempre na vitória de Obama. Dois políticos luso-americanos em conferência na FLAD.

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Para o segundo mandato de Obama, sente que o Presidente “tem pouco a corrigir, tem que insistir mais naquelas medidas que enunciou nos dois primeiros anos” do anterior mandato, “quando os democratas estavam em maioria nas duas câmaras do Congresso” (Câmara dos Representantes e Senado). Cabral lembra que foram “4,6 milhões de empregos criados em três anos, mais do que George W. Bush em oito anos”. Consciente de que “leva tempo para mudar uma economia e um país e criar um futuro”, diz que não era possível “fazer em apenas quatro anos o que Bush desfez em oito”, atribuindo ao Presidente Obama o mérito de ter salvado a indústria automóvel dos EUA. Sendo um dos únicos políticos nascidos em Portugal a fazer política nos Estados Unidos, Cabral admite que “talvez tenha uma maneira mais global de ver as coisas”, valorizando a importância das “relações transatlânticas, a necessidade de manter as boas relações com Portugal, importantes para ambos os países”. Destaca a questão da Base das Lajes, nos Açores (na altura da entrevista à Paralelo, ainda não se tinha consumado a decisão da Administração americana de reduzir os efectivos), garantindo que a redefinição do papel da base militar na ilha Terceira não poria em causa as relações transatlânticas. “Sempre soubemos que ia ser uma corrida apertada”, afirmava, na altura da entrevista, o muito otimista republicano Devin Nunes, impressionado com “o péssimo desempenho” de Barack Obama (no primeiro debate): “Nunca na minha vida vi algo assim e provavelmente também não verei outra vez.” Romney perdeu a eleição mas não perde pertinência o pensamento político deste jovem congressista pelo estado da Paralelo n.o 7

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Califórnia, considerado um dos mais pro- curar uma win­‑ win solution, isto é, uma missores políticos norte­‑americanos e uma solução em que ambas as partes saiam voz respeitada pela ala do Partido a ganhar. “Como americanos, não podeRepublicano identificada como “Tea Party”. mos encarar este assunto de forma levia“Este movimento não é um partido na”, conclui. Ao presidente que viesse a ser eleito, político, é um movimento orgânico, que Devin Nunes deixou uma mensagem: se rebelou contra a forma de governação em Washington, onde as leis não seguem “A principal prioridade deve ser a reforum processo e canais democráticos”, ma de programas sociais como explica. Radica aí, na opinião do luso­ Medicare, Medicaid e segurança social, ‑descendente, a força de um movimento bem como a reforma da estrutura fiscal. que conseguiu mobilizar “dezenas de Sem isso será difícil conseguir crescimilhares de jovens em todo o país”, não mento económico, bem como a estruporque todos convergissem em todos os tura dos nossos sistemas de defesa. temas mas porque todos discordavam da O Presidente deve tomar medidas duras, forma de governar os EUA. Perguntámos tais como as medidas difíceis que o a Nunes sé é duro fazer política, enquanGoverno português está a tentar impleto republicano, num estado muito azul: mentar aqui.” “Não é duro pelo partido, mas é duro porque a economia da Califórnia secou completamente. E é triste de ver, porque, durante muito tempo, a Califórnia foi a oitava economia do Precisamos de uma conversa mundo e agora vemos as de adultos neste país, algo pessoas sucumbirem às mãos das falhadas polítique não temos tido por parte cas governamentais.” da Administração Obama. “Precisamos de uma conversa de adultos neste país, Devin Nunes algo que não temos tido por parte da Administração Obama”. reclama. Cresceu, muito orgulhoso, com “a cultura açoriaTony Cabral e Devin Nunes identificam­‑se na e portuguesa na Califórnia” e manifestou sinais de preocupação com o com duas visões distintas de América, de que poderia ser o futuro da Base das Lajes país, de mundo. Talvez as diferenças estejam mais esbatidas num ponto: a necessidade de e das “relações transatlânticas”. Ciente das reduções de efectivos que preservar e, se possível, reforçar a excelência os EUA se preparavam para levar a cabo, das relações entre Portugal e os Estados não só nos Açores como em todas as Unidos da América. bases espalhadas pelo mundo, Nunes entende que o mais importante é pro- Ricardo Alexandre/Jornalista da RTP/Antena1

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Mitchell Cohen: à Esquerda de Obama

Especialistas que estudaram os debates presidenciais, afirmam que eles não são decisivos para o resultado das eleições, embora acentuem tendências.

“Especialistas que estudaram os debates presidenciais (ao longo da História dos EUA), afirmam que eles não são

decisivos para o resultado das eleições”, embora “acentuem tendências que já se verifiquem; são a confirmação ou reconRUI OCHOA

Mitchell Cohen, ensaísta político e antigo co-editor da Dissent, uma das principais publicações intelectuais dos EUA, professor da City University of New York (CUNY), esteve na FLAD antes das eleições presidenciais nos Estados Unidos. À Paralelo falou sobre sondagens, debates televisivos, desafios e prioridades da Casa Branca para os próximos quatro anos:

Pedro Magalhães (à esquerda) e Mitchell Cohen (à direita), ambos professores de Ciência Política, discutiram os debates presidenciais televisivos.

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firmação de certas atitudes”. Claro que a História também é feita de nuances e houve, de facto, debates televisivos que acabaram por ser fundamentais para o resultado eleitoral, “como a vitória de John Fitzgerald Kennedy em 1960. Com Reagan talvez possa ter sido assim, mas Carter perdeu por muitas outras razões. A eleição de 2012 destaca o carácter fundamental das “questões económicas e sobre a imigração”. Os Estados Unidos estão a passar por “uma significativa mudança demográfica”, com a crescente importância do “voto hispânico”, que terá sido importante para a eleição de Barack Obama. Mas chama a atenção para o facto de ser um eleitorado com características muito próprias, uma vez que “é bastante diferente a forma como cubano-americanos e mexicano-americanos se relacionam com o sistema político”. Se no Ohio terá pesado mais a questão económica (“Obama literalmente salvou a indústria automóvel”), já na Florida a questão da imigração é um factor preponderante na eleição. Considera, por outro lado, que “a religião ainda desempenha um papel muito importante na política americana”. Por hipótese, “se um candidato à presidência dos EUA dissesse que era ateu, não teria hipóteses de vencer”, mas também admite que o papel da religião tem mudado de uma forma muito interessante: “a primeira vez que um católico foi nomeado para a liderança de um partido político e para candidato à presidência, foi Al Smith, governador de Nova Iorque, em 1928; fizeram-lhe a vida negra, foi uma campanha muito suja. Em 1960 Kennedy vence, mas o facto de ser católico foi importante e ele teve de superar isso durante a campanha. O católico seguinte foi Kerry em 2004 e aí já não foi uma questão cenParalelo n.o 7

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tral.” Muitos bispos católicos apoiaram Bush, o que dá uma certa ideia das mudanças verificados no país, na opinião de Mitchell Cohen. Para este especialista da Europa e do Médio Oriente, apesar da política externa não ter sido uma prioridade na última campanha presidencial americana, há vários assuntos que vão marcar a agenda internacional: “um será o Médio Oriente, como é óbvio, outro será a China, mas também a Europa, não só por causa dos laços entre a América e a Europa, mas pelos profundos problemas económicos que vocês enfrentam aqui, o que terá certamente impacto na nossa própria recuperação económica.” Por isso, conclui

entre a Administração Obama e o actual Governo de Israel, uma coisa são governos, outra, bem diferente, é o país; e no terreno tem havido muita cooperação”, apesar das divergências com o governo de Netanyahu. Cohen, que se considera um “socialista liberal”, diz que ainda é um homem de esquerda: “Nos Estados Unidos, ser de esquerda é sempre uma situação muito peculiar, já que as pessoas com a minha visão política raramente chegam ao poder”. Acredita na combinação entre democracia e protecção social, em vez de “tudo, como que por magia, funcionar através dos mercados, simplesmente ignorando o sofrimento de uma significativa parte da população”. Ser de esquerda não significa partilhar de uma certa desilusão em relação à forma Qualquer política externa inteligente como decorreu o deve manter os laços com a Europa primeiro mandato de Barack Obama? como alta prioridade. “Em alguns aspectos, sim”, admite. “A reforma da saúde foi aprovada e ainda que “qualquer política externa inteligen- bem, mas claro que eu teria preferido te deve manter os laços com a Europa que fosse diferente, mais próxima do como alta prioridade”, tendo como preo- modelo canadiano; gostava que Obama cupação a evolução da situação económi- tivesse contribuído para fortalecer as ca da Europa e o próprio “destino da organizações sindicais que estão em União Europeia”. Os laços entre ambos claro declínio nas últimas décadas, que os blocos existem, mas “é importante tivesse havido mais apoio a forças que reforçá-los em nome dos valores demo- pudessem ser um contrapeso aos bancos cráticos no mundo”. Não acha que isso e forças sociais que nos trouxeram para signifique negligenciar áreas como a esta trapalhada económica.” Mas Cohen América Latina ou África, até pelas também é um “reformista” e por isso “mudanças de regime, desde a Tunísia ao não deixa margem para dúvidas: “deve Egipto, passando pela Líbia”. Em relação calcular em quem voto.” ao diferendo israelo-palestiniano, reconhece que “na tensão que se tem verificado Ricardo Alexandre/Jornalista da RTP/Antena1.

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O optimismo moderado de Michael Werz

O ciclo de conferências que assinalou as 57.as eleições presidenciais americanas, encerrou três dias antes da posse. “Desafios do novo mandato de Barack Obama” foi o tema da conferência que contou com a participação de Michael Werz, do Center for American Progress, para além do autor e jornalista Nuno Rogeiro. Werz conversou com a Paralelo. Barack Obama iniciou o seu segundo mandato como Presidente dos EUA numa altura de profunda divisão política no país. Mas Werz está confiante quanto ao sucesso do próximo governo americano: “Estou moderadamente optimista. O Presidente conseguiu feitos legislativos e políticos substanciais nos primeiros dois anos do mandato, pelo que penso que se nos próximos quatro, cinco ou seis meses conseguir resolver a questão fiscal, aumentar o tecto da dívida e chegar a um entendimento sobre como estruturamos o nosso sistema de impostos, se houver um entendimento de que precisamos de investimento em infra­ ‑estruturas no país, se tudo isso for alcançado, creio que haverá espaço para a acção política. Estou bastante confiante de que vai haver acordo em relação ao controlo de armas, estou mais optimista do que nunca de que uma significativa reforma da lei da imigração será aprovada; e depois, e essa é a minha esperança pessoal, o Presidente preocupa­ ‑se bastante com as alterações climáticas, pelo que creio que, ainda que não esteja no horizonte próximo, em 2014 ou 2015 teremos uma discussão sobre a forma como os EUA participam no já avançado debate global sobre as alterações climáticas.” Werz, também professor adjunto na Georgetown University, diz que Obama não pode deixar cair em saco roto a promessa de encerramento da base

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resse americano que a Europa se mantenha unida”. Acredita que a Europa deve assumir um papel mais proactivo em termos de defesa europeia integrada, nomeadamente em relação à vizinhança no Mediterrâneo, “porque essa é sua responsabilidade”, sendo que do ponto de vista americano, “isso automaticamente revigorará a relação transatlântica”. “O futuro não incidirá tanto no Atlântico mas sim no Mediterrâneo, como no Índico, no Pacífico e, possivelmente, no mar do Sul da China”, conclui. A Síria é uma das preocupações no momento, para os Estados Unidos como para a comunidade internacional. O Ocidente quer ver Bashar Al­‑Assad fora do poder, mas parece também recear o que possa acontecer no dia seguinte. Michael Werz concorda com esta análise e afirma que “quem diga que sabe como vai ser o desfecho, não está a dizer a verdade”. Para o conObama não pode deixar ferencista convidado pela FLAD, “a situação é cair em saco roto a promessa muito complexa, com de encerramento da base diferentes facções religiosas e grupos polítide Guantánamo. cos”; ao mesmo tempo, “a Sír ia tem como vizinhos o Líbano e a É certamente mais estimulante hoje em Jordânia, para além do Iraque e do Irão: dia olhar para alguns países asiáticos e há toda uma complexidade regional que da América Latina, mas Michael Werz faz com que seja difícil encontrar uma entende que o relacionamento com a solução. Não penso que seja ignorância Europa não está em causa: “A Europa ou falta de sentimentos para com as conta muito, a NATO é a mais importante terríveis atrocidades que têm sido parceria militar e estratégica de que os cometidas num conflito que já custou eua são membros.” Mas não deixa de a vida a 60 mil pessoas”. Tudo isso, aos dizer que “o futuro das relações transa- olhos ocidentais, “é inaceitável”. “Mas tlânticas está, essencialmente, na mão toda a gente sabe que a Síria não é a dos europeus”, apesar de ser do “inte- Líbia”, refere, acrescentando que o regi-

de Guantánamo – “é politicamente importante, para corrigir o papel dos EUA no mundo” – necessitando contudo de um acordo político no Congresso para o poder fazer. “Não é do interesse dos eua que Guantánamo seja uma instituição que faça parte da tradição do país”, afirma. Em relação à política externa, apesar da prioridade dada ao investimento na região da Ásia­‑Pacífico, uma estratégia já assumida no primeiro mandato de Obama, Werz concorda com a ideia de que o Médio Oriente não pode ser negligenciado: “Os EUA serão arrastados para os conflitos existentes, pelo que continuará a haver investimento americano nessa região, desde o Norte de África ao Paquistão, é uma região que requer elevados recursos económicos, diplomáticos e de segurança.”

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O futuro não incidirá tanto no Atlântico mas sim no Mediterrâneo, como no Índico, no Pacífico e, possivelmente, no mar do Sul da China.

te funcional e, como você disse, ninguém sabe como a situação no terreno

Ricardo Alexandre/Jornalista da RTP/Antena1. RUI OCHOA

me de Damasco ainda conta com “uma forte defesa aérea, um exército bastan-

vai ser assim que o Presidente Assad partir”. Dadas as experiências do Afeganistão e do Iraque, “não é do interesse dos Estados Unidos envolverem­ ‑se” em mais um conflito. Por muito insatisfatório que possa ser, o conflito na Síria “ainda vai levar algum tempo” até que tudo esteja resolvido.

Da esquerda para a direita: Mário Mesquita (administrador da FLAD), Michael Werz (Center for American Progress), Sara Pina (FLAD), Nuno Rogeiro (analista político) e Charles Buchanan (administrador da FLAD) debateram o futuro da nova Administração Obama. Paralelo n.o 7

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especial

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Obama, Parte II Continuidade, ou o resto? POR NUNO ROGEIRO*

O que será o segundo mandato de Barack Obama? Continuidade, recomeço, renovação ou prelúdio? A continuidade seria, no fundo, a manutenção de pessoas e políticas, ou o recrutamento de novo pessoal para executar a mesma política. O recomeço equivaleria a uma nova fundação, ao zero no conta-quilómetros doutrinário, à reinvenção de tudo, incluindo o optimismo voluntarista do “Yes we can”, espécie de anúncio de uma revolução de veludo. A renovação implica mudança de caras e/ou de políticas, mas não necessariamente alteração substancial das ideias-chave, das pulsões e dos projectos. Pode ser, como no famoso slogan do marcelismo (de gosto francês), “renovação na continuidade”. Por fim, prelúdio, no sentido em que a reeleição pode ser apenas a abertura de um capítulo que outros escreverão. Há, para já, três elementos que podem indiciar qual dos caminhos será trilhado pela presidência. O primeiro é a substância da campanha, acima das proclamações do momento, incluindo nos debates (que, como se reconhece, correram mal a Obama). O segundo é o conjunto de nomeações para a nova administração. O terceiro é feito das linhas e das entrelinhas do discurso de posse. Antes, porém, é preciso, quase em nota de rodapé, salientar a ainda relevância da ex dita “hiperpotência” nos assuntos internacionais, para provar que o novo mandato Obama será influente muito além das suas fronteiras. Desde logo porque é difícil definir estes limites: da Europa ao Pacífico, do antigo territorial backyard latino-americano aos vulcões da “revolta árabe”, há interesses americanos substanciais e permanentes. Hoje em dia os EUA reconhecem os limites do seu poder, e sabe-se que, de campanhas militares recentes a iniciativas políticas, não podem agir sozinhos.

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QUE PRESIDENTE? Seja como for, que chefe – ou condutor – terá esta pós-(hiper)potência? Que Barack Hussein Obama jurou perante o juiz John Roberts, presidente do Supremo e seu “adversário ideológico”? Um Presidente activista, ou um Presidente ausente? A esse propósito vem à memória Clint Eastwood e a cadeira vazia – simbolizando Obama – na convenção republicana que sagrou Mitt Romney. E chega à cabeça a história de diversas presidências, que mudaram de tom, de estilo, de acento tónico, da primeira para a segunda experiência. Às vezes confirmando indícios reveladores, outras vezes fazendo marcha atrás, incluindo confissões e remorsos. Outras ainda lançando novos, maiores e mais ambiciosos projectos. O estudo das presidências residiu em grande medida em monografias circunstanciais, semi-impressionistas, e não num grande mecanismo comparado, que pudesse colocá-las numa tipologia. Pelo menos até ao advento do cientista político e sociólogo James David Barber. Com os hoje clássicos The Presidential Character (1980) e The Pulse of Politics (1992), Barber, uma presença querida pelos media americanos, devido ao seu estilo directo e cortante, propunha-se criar essa árvore tipológica. Discerniu, ao longo da história constitucional americana, presidências arquetípicas, quanto ao conteúdo, e quanto ao perfil psicopolítico dos actores. Na primeira vertente, poderíamos falar de presidências de “conflito”, de “conciliação” e de “consciência”, conforme a ruptura, a negociação e os princípios guiam a carruagem executiva. Na segunda dimensão, Barber criou o famoso quadro de presidentes “activos” ou “passivos”, conforme a sua disposição a tomar iniciativas e a “transformar” a sociedade e a nação, que teria de se combinar com a qualidade “negativa” ou “positiva”. Este eixo traduz a forma como os locatários Paralelo n.o 7

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Obama II será mais flexível, na medida em que, como realista e bom entendedor das conjunturas, sabe de nada valerem princípios que são inaplicáveis.

da Casa Branca encaram as suas funções, gostando ou detestando o que fazem e o que têm de fazer, sendo cépticos ou optimistas em relação às suas capacidades, e aos efeitos das mesmas. Os quadros de Barber combinam velhas noções de filosofia política, por exemplo herdadas de Aristóteles ou São Tomás, e dados emprestados pela psicometria, pela sociologia e pelas doutrinas comportamentais. O modelo Barber procurava, num estado óptimo, prever ou antecipar o desempenho presidencial, e criar assim bases “científicas” de análise. E torna-se mais complexo, ao relacionar os problemas psicológicos inatos, ou socializados, com os da mundividência e dos “princípios” de cada presidente, o seu estilo e linguagem, as expectativas à sua volta, os elementos que dependem e não dependem de si, na acção executiva. Optimista e inovador, apaixonado pela política (mas desdenhoso face à politiquice), crente em que pode fazer algo, mais do que aguardar a salvação ou o dilúvio, Obama parece, em primeira linha, um pleno “activo-positivo” movido pela “ruptura” e pela “consciência”, no sentido barberiano. Isto foi, no entanto, a mensagem e o legado do primeiro mandato. Acusado de aristocratismo e recusa de compromissos, Obama é também apreciado por isso, nos dois partidos. Onde alguns olham arrogância, outros descobrem estadismo. Onde alguns zurzem a falta de consenso com o Congresso, há quem entenda que não pode abdicar-se, quando há uma violação de promessas e valores. Na campanha, Obama reafirmou muito deste espírito. Mas nalguns momentos finais, no discurso de vitória e no sermão inaugural, preferiu Paralelo n.o 7

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pegar no tema da “união”, em torno, por exemplo, não de noções diversas de legitimidade, mas da legalidade constitucional, o “mínimo ético” da América de hoje. Isto levaria à conclusão de que Obama II será mais flexível, na medida em que, como realista e bom entendedor das conjunturas, sabe de nada valerem princípios que são – no mundo dos homens – inaplicáveis. Por outro lado, um jurista com a tarimba de Harvard sabe a diferença entre o Ser e o Dever Ser. Só o primeiro, consubstanciado nas leis, nos regulamentos, nas práticas, entra na história como elemento de mudança. O segundo é luminoso e nobre, mas sem execução fica no reino do discurso e do sonho. Um Abraham Lincoln eloquente, mas sem poder nem ousar uma União livre da escravatura (mesmo à custa de uma guerra), seria um poeta na galeria dos presidentes. Ora Obama já mostrou que não quer ser lembrado como o presidente que queria, mas não podia. A sua maior flexibilidade, no segundo consulado, pode assim ser justificada pela necessidade de introduzir como lei ao menos parte da doutrina. Mas o activo-positivo continuará a reinar. E o facto de não ter de se candidatar outra vez retira-lhe a prudência dos moderados, que já olham além do horizonte. Será assim certamente activista porque quer, porque pode e porque sabe. Mas um activista lúcido, tão ciente dos limites do seu poder como os EUA se tornaram conscientes das fronteiras da sua vontade estratégica. * Analista político

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especial

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O tempo da concretização Há quatro anos, Barack Obama fez história e tornou-se no primeiro Presidente negro da América. O desafio, no segundo mandato, é ser um Presidente grande. POR GERMANO ALMEIDA*

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de reconciliação com a promessa americana, depois do declínio moral dos anos Bush (Guantánamo, Abu Ghraib, Iraque, colapso financeiro). Há uma tendência para sobrevalorizar os poderes do Presidente dos EUA, vulgarmente rotulado de “homem mais poderoso do Mundo”.

Muitos acreditaram que tinha chegado o Messias. E Barack Obama é apenas um político.

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Mais do que uma nação, a América é uma ideia. De Liberdade, em primeiro lugar, mas acima de tudo de excepcionalidade. O extraordinário momento histórico que o Mundo celebrou há quatro anos, com a eleição do primeiro Presidente negro dos EUA, ajudou­‑nos a sentir uma espécie

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BAMA ’12 A frase até tem o seu glamour. O problema é que muitos acreditaram que tinha chegado o Messias. E Barack Obama é apenas um político. Um político particularmente eloquente (talvez o melhor orador americano dos últimos cinquenta anos, desde os irmãos Jack e Bobby Kennedy e de Martin Luther King), que foi capaz de gerar a maior onda de excitação e expectativa das últimas décadas. Mas é, convém voltar a lembrar, apenas um político. Ele foi insistindo nessa lembrança, ainda em plena campanha de 2008, no auge do entusiasmo, avisando que iria ser “um presidente imperfeito”.

cessor de ter duas guerras para resolver, apesar de ter sido alvo de um clima de impasse no Congresso ainda pior do que se viveu na Administração Clinton nos anos 1990, Barack Obama foi capaz de convencer os americanos a darem­‑lhe uma segunda oportunidade. OS ARGUMENTOS DA REELEIÇÃO Como é que isto se explica? Por vários motivos, mas destacaria dois essenciais: pelo argumento da recuperação e pela vontade de cooperação. Se é verdade que, em política, a memória é muito curta, também é verdade que, nos momentos certos, os eleitores dão mostras de saberem o que será melhor para as suas vidas e para o seu futuro. E o facto é que Barack Obama foi capaz de estancar o pânico, travar o risco da derrocada e iniciar o caminho da “longa estrada da recuperação”. Nos tempos que correm, essa poderia ser uma estratégia suicida: podia ter­‑lhe custado a reeleição.

DO PÂNICO À LONGA ESTRADA DA RECUPERAÇÃO O balanço dos primeiros quatro anos da era Obama torna fácil a prova dessa tese de imperfeição: a recuperação económica foi demorada; a promessa de fechar Guantánamo ficou na gaveta; a oposição republicana levou a níveis quase insuportáveis no grau de crítica e mesmo aversão a este Presidente; a Reforma Financeira foi tímida e não garantiu a blindagem de O triunfo foi um pouco menos regulação capaz de evitar futuras crises, que Obama impressivo nos números, chegara a prometer. mas talvez ainda mais significativo, É certo que o primeiro mandato presidencial de na sua relevância política. Barack Obama foi, em muitos momentos, conturbado e contraditório. Mas se nos lembrarmos da quantidade Mas uma clara maioria dos americanos de certidões de óbito político que já foram percebeu que os EUA estão há três anos seguidos a criar emprego (de forma lenta, passadas ao 44.º Presidente dos Estados Unidos, então é forçoso concluirmos que mas sustentada), que os mercados estão a recuperar confiança e que até no sector imoBarack Obama voltou a fazer história. Há quatro anos, a sua eleição foi envol- biliário os preços das casas começam a subir. A juntar­‑se ao trunfo da recuperação vida em aspectos dificilmente repetíveis: o primeiro negro a chegar à Casa Branca económica, temos a questão do ambiente vencia com vantagem esmagadora, fruto político. Os republicanos foram demasiade uma improvável coligação de 96 por do longe no seu ódio a este Presidente. cento de negros, 67 por cento de latinos, O clima malsão que se viveu em 66 por cento de jovens e 56 por cento Washington nos últimos quatro anos, com uma oposição cega da maioria republicade mulheres. na na Câmara dos Representantes a qualEm 2012, o triunfo foi um pouco menos impressivo nos números (menos quatro quer iniciativa construtiva vinda dos milhões de votos expressos que em 2008), democratas e da Casa Branca, não respeimas talvez ainda mais significativo, na sua tou a tradição bipartidária. Essa tradição tem servido de base a conrelevância política. Apesar de ter tomado posse com uma sensos políticos fundamentais para a América América a dias de poder sofrer um colap- em temas como a segurança nacional, a so financeiro que a levaria a uma Grande política externa ou o tecto da dívida. Ao reelegerem Barack Obama, os ameDepressão equivalente à dos anos 1930, apesar da tremenda herança do seu ante- ricanos deram um claro sinal de que pre-

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ferem a via da cooperação ao mantra da paralisação. Ou os republicanos no Congresso compreendem esse sinal ou estão condenados a deixarem­‑se chantagear pelo ódio irracional do Tea Party ao Presidente Obama. QUATRO PRIORIDADES No discurso de tomada de posse para o segundo mandato, a 21 de Janeiro, Barack Obama foi mais longe do que é costume nas cerimónias de inauguração, que são, sobretudo, momentos de celebração simbólica. Sem tempo a perder, Obama enunciou a sua agenda política, dando mostras de que quer aproveitar o segundo mandato para concretizar aquilo que, nos primeiros anos, não teve condições para avançar. Destacaria quatro grandes prioridades na agenda de Obama até Janeiro de 2017: imigração; gun control; independência energética e alterações climáticas; redução da dívida e resolução da “Fiscal Cliff”. DO ENTUSIASMO AO LEGADO Passada a excitação do “Yes we can” em 2008, o forward de 2012 apontava para um sinal político mais durável, mas talvez mais poderoso: a palavra de ordem é avançar para uma América nova, diversa, que Barack Obama soube compreender nas suas contradições, abraçando a ideia unificadora de we are all in this together(estamos nisto juntos). Ultrapassado o fantasma da derrocada financeira, Obama pretende deixar um legado: quer garantir que a Reforma da Saúde não recuará e é mesmo para aplicar na sua plenitude a partir de 2014; quer reforçar garantias de igualdade de tratamento a quem é diferente (“na América cabem todos”). Houve quem visse na segunda tomada de posse um Obama mais liberal e mais à esquerda. Mas para lá de questões ideológicas, o 44.º Presidente dos EUA pretende ser recordado como aquele que evitou a depressão e compreendeu os sinais de uma “nova América”, pronta a continuar a liderar, mas aberta às mudanças de um Mundo multipolar e cada vez mais tecnológico. Volta a ser tarefa gigantesca. * Germano Almeida é jornalista e autor do blogue “Casa Branca”. Em 2010, publicou o livro Histórias da Casa Branca, título que dá nome à rubrica que assina no TVI24. pt. Integrou o grupo do programa “José Rodrigues Miguéis 2012” da FLAD.

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“Study in Portugal” – Divulgar Portugal como destino universitário de referência Colocar Portugal na rota dos estudantes universitários norte-americanos, difundir a qualidade das instituições académicas nacionais e dos seus cursos e centros de investigação, estimular a cooperação entre os dois países e estabelecer Portugal como uma porta de entrada para a Europa e para os países lusófonos. São estas as principais premissas do programa “Study in Portugal”, que pretende publicitar as qualidades do nosso país a vários níveis, para que cada vez mais estudantes norte-americanos olhem para Portugal como uma oportunidade viável para progredir nas suas vidas e carreiras. POR ANDRÉ SEBASTIÃO*

Lançado em 2011 pela Fundação Luso­ ‑Americana ( FLAD) em parceria com a Comissão Fulbright Portugal, o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), o Turismo de Portugal e a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), o programa “Study in Portugal” compreende uma divulgação dinâmica e apelativa dos principais factores de motivação que possam evidenciar Portugal como um destino europeu de referência. Na última edição da revista Paralelo, Maria de Lurdes Rodrigues escrevia sobre a importância que tem para a internacionalização das universidades portuguesas o “número de alunos e professores estrangeiros que integram as suas actividades”. O reconhecimento deste elemento foi um dos factores que fez com que tantas entidades de renome abraçassem este projecto, pois, através do crescente intercâmbio, o “Study in Portugal” configura­‑se não só como uma ferramenta de captação, mas também como um factor de promoção e prestígio para o País. Desde que o programa foi lançado, os esforços dos parceiros convergiram no sentido de criar condições para que se

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realizasse a primeira participação portuguesa na NAFSA 2012, que decorreu em Houston, Texas. A NAFSA – Association of International Educator­– realiza todos os anos nos Estados Unidos uma conferência sobre educação internacional que reúne mais de oito mil participantes de todo mundo. Apesar da longevidade do evento, que terá este ano o seu sexagésimo quarto encontro, Portugal nunca tinha, até à data, marcado presença no certame. O programa “Study in Portugal” veio inverter esta tendência, sendo que em 2012 a FLAD e os seus parceiros conseguiram que Portugal estivesse presente pela primeira vez. Fátima Fonseca, directora do programa “Study in Portugal” para a FLAD, sublinha o sucesso do cumprimento deste objectivo. “A participação correu muito bem, estiveram praticamente todas as universidades presentes, através de representantes ou do envio de materiais promocionais”, afirmou, salientando que o sentimento de positividade demonstrado por todos os intervenientes se consolidou no “desejo de repetição da iniciativa”, sendo que os parceiros já estão a trabalhar no sentido de levar as universidades portuguesas à NAFSA 2013 a ser realizada no mês de

Maio, desta feita, em St. Louis, Missouri. Teresa Botelheiro, representante do CRUP, reafirma a importância da participação portuguesa na NAFSA , recordando o “aumento de contactos por parte de universidades internacionais” que ocorreram após a participação no evento. “Fomos contactados por diversas universidades internacionais que queriam saber mais sobre as nossas ofertas”, recorda, assinalando o interesse dessas entidades em criar parcerias com algumas universidades nacionais. Os parceiros são unânimes em relação ao reconhecimento dos benefícios que a presença da delegação portuguesa na NAFSA trouxe para o programa. Fátima Fonseca afirma com satisfação que as iniciativas levadas a cabo no âmbito do “Study in Portugal” começaram desde cedo a promover uma maior procura por Portugal, enquanto destino universitário. No que respeita diretamente à FLAD, a directora realça a maior afluência de contactos de interessados em saber como podem vir estudar para Portugal. “Temos sido muito mais abordados por pessoas que têm conhecimento deste programa, e que querem saber como podem vir estudar para Portugal”, refere, apontando a participação na NAFSA 2012 como um Paralelo n.o 7

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PORTUGAL/EUA

EUA Mobilidade de estudantes Estudantes portugueses nos EUA

Estudantes dos EUA em Portugal

O número de estudantes americanos em Portugal cresceu de 198 para 291, aumentando 47 por cento no ano lectivo de 2010-2011.

ponto de viragem. “Desde a participação na NAFSA fomos contactados não só por empresas que se encarregam da mobilidade de estudantes universitários, mas também, directamente, por estudantes interessados em vir estudar para o País”, sublinha com satisfação. O relatório “Open Doors” sobre a mobilidade académica internacional, publicado em Novembro passado pelo Institute of International Education, com o apoio do Bureau of Educational and Cultural Affairs do Departamento de Paralelo n.o 7

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Estado americano, refere que o número de estudantes americanos em Portugal cresceu de 198 para 291, aumentando 47 por cento no ano lectivo de 2010 ‑2011 quando comparado com o anterior. Otília Reis, directora executiva da Fulbright Portugal, acredita que estes números podem ser fruto da repercussão que o programa já estava a ter, na altura, junto dos estudantes norte­ ‑americanos. Steven Snowden e Margarita Ramirez são dois norte­‑americanos a desenvolver

projectos em Portugal desde o fim do ano passado. Steven trabalha num projecto de investigação na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), na área da composição musical, que tem como tema a transformação do movimento em música. Margarita está na Universidade dos Açores a investigar o tema “Perspectivas dos Açorianos sobre a América”. Ambos os estudantes destacam que a sua opção por Portugal teve necessariamente a ver com as potencialidades que o País lhes pode oferecer para o desenvolvimento dos seus projectos. Steven encontrou na qualidade do trabalho de Carlos Guedes, professor de Composição Musical da FEUP, e nos seus estudantes de mestrado, uma motivação para vir desenvolver o seu projecto em solo português, enquanto Margarita escolheu os Açores exactamente pelo seu tema se centrar no arquipélago. Steven destaca como grande vantagem o custo do ensino universitário em Portugal. “Nos Estados Unidos o Estado não dá tanto apoio financeiro às universidades como aqui, e isso faz com que tenhamos propinas muito elevadas”, refere.

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PORTUGAL/EUA

“Study in Portugal”, quer mostrar à América e ao mundo que Portugal é uma opção apetecível a considerar.

europeias estão”, e por isso, segundo a estudante, os americanos podem não considerar a hipótese Portugal quando pensam em estudar no estrangeiro. Em comparação com outros países europeus, “Portugal oferece a mesma riqueza histórica, a mesma identidade, os locais, as

experiências e mais!”, exclama Margarita, dando voz às máximas do programa “Study in Portugal”, que quer mostrar à América e ao mundo que Portugal é uma opção apetecível a considerar. * Jornalista freelancer

Tanto no Porto como nos Açores, Steven e Margarita identificam características portuguesas que para eles se traduzem em mais qualidade de vida. “Os portugueses sabem apreciar os simples prazeres da vida”, afirma Steven, espantado com a diferenciação que aqui se faz entre trabalho e lazer. “É comum os americanos almoçarem nas suas secretárias, e levarem trabalho para casa, mas aqui as coisas são diferentes”, para Steven este estilo de vida mais saudável permite que o nível de produtividade seja semelhante sem que exista uma “abordagem tão workaholic”. Allan J. Katz, embaixador dos Estados Unidos em Portugal e presidente honorário da Comissão Fulbright sublinhava na edição transacta da Paralelo a importância da “pesquisa conjunta, da criação de laços pessoais e intercâmbios entre estudantes e professores” para fortalecer ainda mais a relação entre Portugal e os Estados Unidos. Posto isto, o “Study in Portugal” surge como bandeira promocional de um percurso de intercâmbio, que embora já estivesse a ser traçado pela FLAD , a Fulbright e os seus parceiros, sentiu necessidade de ganhar outra visibilidade para poder expandir a sua oferta. Para Steven, programas como o “Study in Portugal” são imprescindíveis. O investigador destaca a qualidade da FEUP, dizendo que “é considerada uma das melhores escolas de engenharia de toda a Europa”, embora esse estatuto não chegue para que “isso seja sabido nos Estados Unidos”. Margarita aponta esta iniciativa como essencial: “Portugal não está romanceado nos filmes e na cultura popular americana da mesma forma que outras nações

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O americano Steven Snowden e Margarita Ramirez são dois norte-americanos a desenvolver projectos em Portugal desde o fim do ano passado. Steven trabalha num projecto de investigação na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), na área da composição musical. Paralelo n.o 7

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Olhar o passado para viver o futuro Portugal e o Holocausto em colóquio inédito

BERNARDO NUNES

POR CLARA PINTO CALDEIRA*

Os auditórios da Gulbenkian foram palco de memórias, reflexão e debate, com historiadores, jornalistas, diplomatas, investigadores, professores, nacionais e internacionais, em torno do período do Holocausto.

Corria o ano de 1991 e acabara de deflagrar a primeira guerra do Iraque. Em Israel, tinham caído os primeiros Scuds. Pairava a suspeita de que estes pudessem ter gás, e o fantasma da guerra química acordava. Uma jornalista portuguesa precisava chegar ao local, mas o espaço aéreo israelita estava fechado. Consegue então apanhar o único voo autorizado naquelas circunstâncias, um avião fretado que partia de Zurique, com judeus europeus sobreviventes do Holocausto. Idosos, abastados, espalhados pelas nações europeias, não suportavam a ideia de escapar novamente ao martírio do seu povo. Deixaram a família para trás e embarcaram dispostos a morrer. “No voo para Telavive, ninguém pronunciou uma palavra. É talvez a minha primeira grande experiência do Holocausto, do peso da palavra e do peso da memória e do silêncio que ela impõe”, contou Clara Ferreira Alves, numa das mesas do colóquio “Portugal e o Holocausto - Aprender com o Passado, Ensinar para o Futuro”, uma organização inédita da FLAD, Embaixada Americana e Fundação Calouste Gulbenkian. Durante dois dias, 29 e 30 de Outubro, os auditórios da Gulbenkian foram palco de memórias, reflexão e debate, com historiadores, jornalistas, diplomatas, investigadores, professores, nacionais e internacionais, em Paralelo n.o 7

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torno do período do Holocausto em Portugal e do respectivo impacto na sociedade portuguesa, e no contexto europeu e mundial. Com coordenação científica de Isabel Capeloa Gil e Irene Pimentel, vários painéis discutiram as relações políticas e diplomáticas, o discurso cultural do Holocausto e as questões identitárias. Tendo em conta o contexto português da época, foi debatida a posição do Estado Novo face ao conflito mundial, a relação híbrida de Salazar com as potências em conflito e a inestimável contribuição do país na recepção de milhares de refugiados, sobretudo devido ao papel de diplomatas portugueses, hostilizados pelo regime ditatorial, reconhecidos pela democracia e distinguidos por Israel como homens justos entre as nações, com destaque para Aristides de Sousa Mendes, Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho. Neste colóquio, foi ainda exibido o filme de Ester Mucznick que reúne vários testemunhos de sobreviventes. Um olhar sobre o passado, fundamental para o futuro, como sublinhou Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da FLAD, que defendeu a actualidade do tema: “No nosso presente, nesta nossa época, o passado ainda está connosco. […] Os desafios de combater o medo do outro e o medo dos estran-

geiros e o medo das fronteiras abertas. Os desafios da comunicação e do debate livre das ideias, a necessidade de enfrentar os problemas e os conflitos políticos e religiosos dentro dos Estados e fora deles. O desafio de lutar pela liberdade e pela igualdade permanecem, neste nosso tempo, como foram desafios centrais no século passado.” Desafios assumidos pelas organizações internacionais, como a Yad Vashen e a Shoa Memorial Foundation, que marcaram presença neste colóquio num dia exclusivamente dedicado à educação, onde também houve lugar para um encontro entre os embaixadores de Israel, Áustria e Alemanha, moderado pelo embaixador americano, Allan Katz. E sobre o ensino do Holocausto em Portugal, vários professores portugueses partilharam o seu trabalho nas escolas, um papel fundamental e delicado, sublinhado por Maria de Lurdes Rodrigues: “Provavelmente não há uma boa maneira de falar sobre o indizível. Mas, ainda assim, todos temos consciência de que é preciso passar o testemunho às novas gerações. É preciso falar em cima do silêncio. E esse é o grande desafio dos professores, dos educadores, por peritos que se dedicam, que têm principal missão transmitir às novas gerações as mensagens, as lições que retiramos do passado.” Como sintetizou Eduardo Marçal Grilo, citando um título de Léon Wells: “Para que a Terra não esqueça.” * Jornalista freelancer

Prémio “Portugal e o Holocausto” Os prémios “Portugal e o Holocausto” para trabalhos de estudantes, do ensino secun‑ dário e universitário, foram atribuídos a: Sónia Sousa, da Escola Secundária 3 de Alpendurada, Marco de Canaveses – 1.º prémio; Teresa Biléu e Rita Guégues, da Escola Secundária Gabriel Pereira, em Évora – menção honrosa; e Sara Correia do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa – menção honrosa.

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SOCIEDADE

Europa, periferia e catolicismo: novos caminhos de investigação A relação entre religião e política é fértil e, ao longo da história, entre guerras e uniões estratégicas, marcou a evolução das nossas sociedades. POR LUÍS PAIS BERNARDO*

mento. Organizada em conjunto pelo

CESNOVA, da Faculdade de Ciências Sociais

e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, pelo Nanovic Institute for European Studies, da University of Notre Dame, e pelo Instituto Português de Relações Internacionais, a conferência, intitulada “Religion and Politics in

the European Catholic Periphery, 1789­‑2000s”, teve o apoio financeiro da Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento e da Fundação Oriente. Trata-se do culminar de uma série de debates sobre religião e política ocorridos entre Tiago Fernandes e Andrew Gould durante a estada do primeiro no Kellogg MÓNICA VELOSA

Daí o interesse de vários académicos, de ambas as costas do Atlântico, num encontro de dois dias no Convento da Arrábida para apresentar resultados de projectos em curso e, acima de tudo, desbravar um caminho da investigação em ciências sociais que, de acordo com todos os intervenientes, merece maior aprofunda-

A zona feminina do Muro das Lamentações. Do outro lado, a Mesquita Al-Aqsa e a Cúpula da Rocha. Judeus e árabes tão próximos neste lugar sagrado para ambos e tão distantes em quase tudo o resto…

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SOCIEDADE

Institute for International Studies da University of Notre Dame, no biénio 2009-2011. O título abrange uma multiplicidade de contextos geográficos, culturais e temporais – a diversidade de dimensões analíticas, interesses científicos, pontos de vista e comunicações apresentadas foi, talvez, o principal factor do sucesso da conferência, embora o dinamismo e a pluralidade de posições também tenham contribuído para um debate aceso e muitíssimo relevante, de acordo com todos os participantes.

Branco discutiu as capacidades do Estado e a sua relação com as instituições eclesiásticas – dos sistemas de intermediação de interesses; António Costa Pinto apresentou uma comunicação sobre o corporativismo em contextos autoritários no período 1919­‑1939, – e da sociedade civil; – Tiago Fernandes apresentou uma comunicação sobre as origens religiosas da sociedade civil, focando a importância das relações entre o Estado e a Igreja Católica. Neste contexto, emergiu um tema que interessou todos os participantes: a importância da comparação em ciências sociais e, particularmente, neste campo. As comunicações de Geneviève Zubrzycki, que apresentou uma comunicação em torno das mitografias políticas na Polónia contemporânea, e de Julián Casanova, cuja apresentação versou o papel da Igreja Católica espanhola na construção política do século XX, reforçaram a importância dos estudos de caso aprofundados, que alguns participantes apresentaram em ambos os dias. Depois de um aceso debate metodológico, o consenso em torno da importância dos estudos históricos e comparativos acabou por prevalecer.

UM CENÁRIO, OPINIÕES DIVERSAS O Convento da Arrábida foi um cenário escolhido com precisão. De facto, o convento de origem franciscana oferecia uma beleza cénica e uma riqueza simbólica que permitiu, em concomitância, um debate interdisciplinar e metodológico interessante e um conjunto de pausas que ajudou os participantes a reforçar, em diálogo franco, a ideia de que a religião, enquanto conceito e experiência, está longe de ter perdido toda a relevância no mundo contemporâneo e deve ser objecto de investigação mais aprofundada no domínio das ciências sociais e, A diversidade de dimensões analíticas, particularmente, no âmbito dos estudos interesses científicos, pontos de vista políticos. e comunicações apresentadas foi, A conferência abordou a temática do talvez, o principal factor do sucesso catolicismo e da Igreja da conferência. Católica Apostólica Romana dentro de um escopo temporal muito alargado. No No segundo dia, as comunicações primeiro dia, as comunicações centraram­ ‑se na importância das relações entre o abordaram questões contemporâneas, nomeadamente a importância do campo Estado e a Igreja para a explicação e análise da construção institucional da religioso para a explicação de padrões modernidade, em especial no que res- eleitorais. Jason Wittenberg apresentou peita ao Estado e à sociedade civil. Com uma comunicação em torno dos padrões um escopo temporal alargado, todas as de voto na Hungria contemporânea e a comunicações procuraram reposicionar importância do voto religioso, ao passo a importância da religião enquanto ins- que Michael Minkenberg efectuou uma tituição social e as relações Estado­ comparação entre países pertencentes à ‑religião para a construção dos Estados chamada “monocultura católica” da modernos – Madalena Resende apresen- periferia europeia, de modo a explicar tou uma interessante comparação entre padrões eleitorais –, a regulação do o papel da Igreja Católica Apostólica campo religioso; Andrew Gould apreRomana em dois processsos de transição sentou os resultados de uma comparação entre Portugal, Espanha e Irlanda no que democrática, o português e o polaco; Rui

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respeita à imposição de “sistemas de liberdade religiosa”; Paulo Fontes focou o papel e a configuração institucional da Igreja Católica portuguesa no período democrático – e a intersecção entre o campo religioso e a produção de políticas públicas –, tendo o autor desta peça efectuado uma apresentação sobre o papel das comunidades religiosas na assistência religiosa em três hospitais portugueses. As comunicações apresentadas tenderam a centrar­‑se em estudos de caso, ainda que a Irlanda, enquanto país periférico de maioria católica, tenha sido introduzida, pela primeira vez na conferência, por Andy Gould. Outra das diferenças (menores), relativamente ao primeiro dia, centrou­‑se no papel atribuído à Igreja Católica enquanto actor institucional. A concluir, uma prelecção sugestiva de Diogo Ramada Curto, director do CESNOVA, ofereceu uma abordagem historiográfica de grande erudição e elegância. NOVOS CAMINHOS PARA A INVESTIGAÇÃO COMPARADA EM RELIGIÃO E POLÍTICA Na globalidade, os dois dias da conferência acabaram por palmilhar caminhos convergentes, apesar de diversos. A importância de refinar aparatos conceptuais e, particularmente, de alargar o escopo geográfico e temporal em que, por norma, se inserem os estudos sobre a periferia europeia de maioria católica, enfatizando a complementaridade entre estudos de caso concentrados e estudos comparativos, foi uma das conclusões mais consensuais. Além disso, a necessidade de ligar a literatura académica em torno da religião a domínios temáticos com os quais tem tido menos contacto, como a literatura em torno da construção dos Estados modernos ou a literatura em torno das transições para a democracia ou da produção de políticas públicas, também foi sublinhada. Assim, num cenário natural e histórico belíssimo e com o excelente apoio da equipa do Convento da Arrábida, uma conferência fértil em convívio intelectual abriu novas perspectivas para o estudo da religião e da política em contextos que assumem cada vez maior relevância científica. * Doutorando em Sociologia pela Humboldt­‑Universität zu Berlin e mestre em Política Comparada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt nos Açores

Pontes transatlânticas O primeiro fórum teve lugar em Ponta Delgada, em Julho de 2008, comemorando os 90 anos da escala de Roosevelt nos Açores. A segunda edição decorreu na Terceira. O III Fórum Roosevelt chegou ao Faial em Abril de 2012. POR SARA PINA*

Para colocar os Açores no mapa dos debates sobre estratégia e política internacional foi fundado, em cooperação com o Governo Regional dos Açores, o Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt, com periodicidade bienal. Uma homenagem a Franklin D. Roosevelt e o seu papel decisivo nas relações euro-atlânticas. O primeiro fórum teve lugar em Ponta Delgada, em Julho de 2008, comemorando os 90 anos da escala de Roosevelt nos Açores (São Miguel e Faial), quando viajou rumo à Europa na qualidade de secretário da Marinha do Governo do Presidente Wilson, em 1918. O tema principal do I Fórum foi “As Relações Transatlânticas na Opinião Pública Europeia e Americana”.

A segunda edição decorreu na Terceira, nos dias 14, 15 e 16 de Abril de 2010. Tal como em 2008, o Fórum procurou acolher múltiplas perspectivas e disciplinas, e debater não só questões prementes na agenda transatlântica como também a evolução histórica da relação Europa-EUA e o papel geopolítico do Atlântico e dos Açores ao longo do último século. Num momento em que Estados Unidos e Europa se confrontam com um realinhamento político e económico global e a escassos meses da cimeira da NATO em Portugal, o II Fórum abordou alguns dos principais desafios da Aliança Atlântica e o papel das potências emergentes do Pacífico e do Atlântico Sul. Na altura, Curtis Roosevelt, neto do

A cidade da Horta encheu-se de especialistas nacionais e internacionais que falaram sobre um dos maiores e mais valiosos bens portugueses: o mar.

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Presidente FDR, interveio no fórum, que considerou “oportunidade de ouro para indicar caminhos alternativos em termos de condução da política externa” e, ainda, reuniu com entidades do Governo Regional e prestou esclarecimentos em vários órgãos de comunicação social, ao longo do fórum e durante a viagem que fez na Região Autónoma. O III Fórum Roosevelt chegou ao Faial de 27 a 30 de Abril de 2012. A cidade da Horta encheu-se de especialistas nacionais e internacionais que falaram sobre um dos maiores e mais valiosos bens portugueses: o mar. Carlos César, então presidente do Governo Regional dos Açores, interveio para salientar a forte convergência de valores e cooperação com a FLAD, louvando a iniciativa e o papel que as várias edições do fórum têm desempenhado nessa relação e parceria: “Através de realizações como a deste encontro, em que os Açores são referência incontornável, a FLAD dá conteúdo aos seus fundamentos constitutivos e dá a devida ênfase ao principal factor de cooperação concreta entre Portugal e os EUA.” Mário Mesquita, administrador da FLAD e impulsionador desta iniciativa desde o primeiro momento, fez a sua intervenção na sessão de encerramento do fórum, assinalando o impacto positivo desta iniciativa nos Açores, não só pelo carácter dinâmico, em particular desta edição, mas também pelo facto de o Fórum Roosevelt se assumir hoje como um espaço aberto ao debate político, em particular entre todos aqueles para quem a relação transatlântica é positiva e deve ser preservada. * FLAD com Hannah Kliot. Paralelo n.o 7

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O arquipélago de ponto de encontro global Cynthia Koch, historiadora e ex-directora da Biblioteca Presidencial Franklin D. Roosevelt, esteve presente em todos os fóruns Roosevelt e partilhou com os presentes muito do legado de Franklin D. Roosevelt que tinha uma ligação especial com os Açores e admirava o seu posicionamento estratégico.

Penso que os fóruns devem continuar e que seria bom se houvesse mais envolvimento americano.

[P] Que importância podem estes encontros nos Açores ter para as relações transatlânticas? [CK] Por todas as razões que apontei. Por ser um ponto de encontro, um local ligado pelo mar é um local global.

Cynthia Koch a historiadora que tão bem conhece Franklin D. Roosevelt, lado a lado os dois, nos Açores.

[Paralelo] Esteve presente nas três edições do fórum. Qual é a sua avaliação? [Cynthia Koch] Cada um tem sido muito diferente dos outros. Com grupo de participantes completamente diferente em cada fórum, o que é inteligente porque mostra que a Fundação procura atingir novas audiências. Gostei especialmente deste último pela muita informação histórica e cultural. [P] No que diz respeito a Roosevelt e à sua viagem aos Açores, diria que este arquipélago teve importância na vida dele? [CK] Sim. Acho que teve muita importância porque lhe lembrava uma especial ligação que ele tinha, que toda a família Paralelo n.o 7

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dele tinha, estavam muito ligados ao mar. Penso, também, que ele ficou tocado com a ideia de cruzamentos que estão posicionados aqui, no meio do Atlântico. Lembro-me de uma fotografia dele quando saiu da residência, onde ficou instalado quando veio aos Açores, e viu duas árvores lado a lado: um pinheiro e uma palmeira. Para ele simbolizavam que os Açores eram uma união entre diferentes sítios. Daí fizemos a analogia dos diferentes continentes que se reúnem aqui. Este é um lugar um pouco de cruzamento mas, também, um lugar que parece fazer parte de toda a parte. Penso que Roosevelt ficou impressionado com isso.

[P] Terá sido por isso que Roosevelt pensou instalar nos Açores a sede das Nações Unidas? [CK] Podem ter havido interesses pessoais em jogo. Roosevelt tinha o plano de ter os assuntos do dia-a-dia perto dele e depois viajar para a Europa. Ele velejaria para aqui – um dos seus lugares favoritos na terra. Foi incrível. Mostra o quanto ele gostava deste sítio, acho. [P] Como diria que estes fóruns poderiam evoluir no futuro? [CK] Penso que devem continuar e que seria bom se houvesse mais envolvimento americano. [P] Passariam a ser um importante ponto de encontro para discutir novas perspectivas e interesses transatlânticos comuns? [CK] Sim. Isso mesmo. Quando fala em transatlântico poderia ser mundial. Um próximo passo natural seria trazer o Brasil. Talvez para os luso-americanos uma conversa a três seja importante. SARA PINA com Hannah Kliot.

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O mar que nos protege Michael Orbach, director do Coastal Environmental Management Program da Duke University, há muito que trabalha com Portugal nos assuntos do mar, com o apoio da FLAD. Entre os dois países têm-se desenvolvido parcerias, cursos e projectos de investigação conjuntos. O papel das ciências sociais no estudo do mar e os perigos da sua exploração para as populações, com especial interesse nos Açores, são comentados por Orbach nesta entrevista, no intervalo dos trabalhos do fórum dedicado ao mar e com vista para o Pico.

qual o impacto que vai causar. A consequência disto é que precisamos de saber tanto sobre as pessoas como sobre os oceanos para tomar as medidas certas. No passado, a maior parte do trabalho com atenção ao ambiente foi feito pelas ciências da natureza que são apenas metade da história. A outra metade são as ciências sociais acerca das pessoas – a economia, as comunidades, as culturas… DR

[Paralelo] Qual a importância e relação das ciências sociais com o mar?

[Michael Orbach] Em termos da importância da política de oceanos e marítima todas as decisões tomadas por razões de desenvolvimento ou populacionais afectam as pessoas. Quando se fazem leis não estamos a causar impacto na água ou nos peixes mas nas pessoas. Portanto, é preciso saber o que as pessoas pensam e sentem; quando se desenvolve uma política e quando se consideram alternativas é preciso saber

Charles Buchanan (à esquerda), o administrador da FLAD responsável pela área do ambiente e do mar, e Michael Orbach no III Fórum Roosevelt.

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Estamos à beira de uma nova era de exploração do oceano. (...) Essencialmente, usámos toda a parte terrestre do planeta e agora viramo-nos para o mar.

[P] Com a crise e as preocupações com a economia desvalorizam-se as preocupações ambientais? [MO] Estamos à beira de uma nova era de exploração do oceano. No passado, durante muitos séculos, usámos os oceanos para fins militares e comerciais, para a navegação. Só de há 100 anos para cá começámos a extrair grandes quantidades de recursos naturais, principalmente peixe. Recentemente, começou-se a extrair minério do fundo do mar em grande escala. Todas estas actividades têm grandes consequências para os oceanos. Na pesca houve uma exploração exagerada até conseguirmos alguma gestão. Começamos a fixar regulamentos para a pesca e ter maior protecção embora haja ainda muito para resolver, especialmente a nível internacional. [P] Como se caracteriza a nova era de exploração dos oceanos? [MO] Pela extracção de minério e de produtos para fins farmacêuticos. Fala-se da utilização de algas como biomassa para combustível. As algas crescem e são colhidas nos oceanos. Fala-se de energia eólica e das ondas tiradas do oceano. Essencialmente, usámos toda a parte terrestre do planeta e agora viramo-nos para o mar. O problema é que se corre o grave risco de destruir o oceano. A boa notícia é que sabemos o suficiente para fazer um bom planeamento. Por isso é tão importante e Paralelo n.o 7

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DR

a Fundação Luso­ ‑Americana tem interesse em dar ênfase aos oceanos, especialmente em Portugal, que tem uma grande tradição marítima.

[P] Como podem contribuir os intercâmbios entre Portugal e os Estados Unidos nesta matéria? [MO] Estou satisfeito por termos podido apoiar estudantes portugueses que vieram estudar connosco. Diria que eles são muito bons. O grupo que veio no ano passado chegou ao meu laboratório, o laboratório marítimo da Duke, passou o Verão lá e em Charleston com os serviços costeiros e prepararam um artigo que foi publicado numa revista de topo: a Marine Policy. Os progressos têm sido grandes e produtivos. Também é importante para os nossos estudantes virem à Europa e a Portugal ver como se trabalha.

[P] Embora o mesmo tipo de desafios relativamente ao mar se coloque a Portugal e aos Estados Unidos há desenvolvimentos muito diferentes. Porquê? [MO] Nos Estados Unidos não tivemos nenhum sistema federal de gestão das pescas até 1976. Ajudei a montar esse sistema em que se investiu muito. Uma das coisas que se desenvolveu nos Estados Unidos foi a relação entre as ciências sociais e os oceanos. Isso não acontece na Europa em geral. [P] Os Açores têm condições especiais para o estudo dos oceanos? [MO] Por causa da jurisdição extraterritorial há uma grande área nos Açores que precisa de ser planificada. Parte do planeamento envolve situações que decorrem há muito, como as pescas ou

"Precisamos de saber tanto sobre as pessoas como sobre os oceanos para tomar as medidas certas", diz Orbach.

o turismo… mergulho, observação de baleias… Alguns assuntos são controversos. Como ouvimos na conferência há muito minério no fundo do mar dos Açores. A sua exploração é controversa por causa dos métodos utilizados que já foram usados noutros locais com consequências disruptivas. A questão é saber como os Açores vão gerir esta situação. Se têm boa informação para saberem o que devem permitir e como podem vigiar essas actividades e os seus efeitos. Será preciso muito trabalho e dinheiro e dependerá das relações entre os governos e a indústria. SARA PINA com Hannah Kliot.

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Gestão dos mares: muita teoria e pouca prática Com a crise as pessoas não se preocupam tanto com o ambiente. É o que tem acontecido em Portugal. Mas Tom Malone acredita que à medida que a situação melhore as preocupações com os recursos naturais voltarão.

Professor Emérito do Horn Point Laboratory University of Maryland, Center for Environmental Science, Malone tem trabalhado com a FLAD na gestão dos recursos marítimos em Portugal. No Fórum discutiu a implementação das políticas para o oceano na zona costeira europeia e americana. Em Portugal diz haver muitas políticas para o oceano mas má aplicação destas. [Paralelo] Pode explicar em que consistem os seus projectos com a FLAD? [Tom Malone] Temos trabalhado juntos há já alguns anos. Com base na perspectiva de que os oceanos vão ser objecto de usos múltiplos que aumentarão nas próximas décadas. Quanto maior a multiplicidade de usos e a necessidade de maior segurança, maiores serão os conflitos. Quer falemos de energia éolica, embarcações ou pescas… O objectivo premente é reduzir os conflitos e optimizar o uso dos recursos naturais sem os esgotar. Há várias carências que devem ser colmatadas. Em Portugal há várias leis de protecção do desenvolvimento sustentado, do ambiente e da manutenção dos ecossistemas saudáveis mas trabalhamos às cegas. Não temos a informação que nos capacite de detectar com rapidez mudanças, antecipá-las e perceber como podem afectar o bem-estar das populações. Por isso temos investido em melhores ligações das políticas para o mar, a sua implementação e a evolução das populações na costa e do oceano. O maior exemplo que posso dar é

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Em última análise o nosso bem-estar depende dos ecossistemas. Por isso, quando começar a haver melhoras começaremos a pensar mais no longo prazo em contribuir para a qualidade de vida das nossas crianças.

que temos muita legislação que não está a ser bem aplicada. Estamos a tentar identificar meios para avaliar o oceano de forma a implementar as medidas de forma efectiva. [P] Diria que os Estados Unidos estão mais avançados nestas medidas para o mar? [TM] Os Estados Unidos estão mais à frente, foram divididos em várias regiões em que cada uma desenvolve o seu próprio sistema de observação. Perceber a capacidade de um ecossistema para resistir, por exemplo, se o peixe começa a diminuir tem de se mudar os limites da apanha. Nesse sentido, os Estados Unidos estão mais avançados. Uma importante razão para isto tem a ver com a recessão que atingiu fortemente Portugal. Mas neste momento estamos a lançar as sementes para Portugal que a FLAD deve catalisar. [P] A recessão prejudicou a investigação e as medidas para proteger o mar? [TM] Quando o bem-estar das pessoas é muito mau é com isso que as pessoas

se preocupam. Isto não quer dizer que as pessoas não se estão a preocupar com o ambiente, mas quando têm de tomar medidas vão focar-se na própria família e no seu bem-estar, antes do resto. Em última análise o nosso bem-estar depende dos ecossistemas. Por isso, quando começar a haver melhoras começaremos a pensar mais no longo prazo em contribuir para a qualidade de vida das nossas crianças. [P] Como é que a FLAD pode ajudar a cultivar este pensamento de longo prazo no que diz respeito à gestão dos recursos marítimos? [TM] Temos tentado desenvolver um projecto importante: os quatro pilares do desenvolvimento sustentado. O sistema de observação; a monitorização dos indicadores que daí resultam; com isso conhecer a situação dos ecossistemas; e agir, por exemplo, informando a marinha. Estamos a trabalhar com o Governo português no planeamento de postos navais. SARA PINA com Hannah Kliot

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Elogio dos emigrantes portugueses na América Barney Frank, o frontal congressista norte-americano do Partido Democrata, viajou até aos Açores para o Fórum.

Com um grande eleitorado português do Massachusetts, Frank falou dos seus quase quarenta anos de carreira e da sua vida pessoal. Não perdendo oportunidade para elogiar os luso­‑americanos.

[BF] Em geral fui muito bem tratado. Eu não sou simplesmente homossexual sou, também, judeu. Portanto, faço parte de uma espécie de dupla minoria e sem menção a isso tenho sido uma das mais bem-suce-

didas figuras políticas no que diz respeito à conquista de votos por parte do eleitorado de descendência portuguesa. SARA PINA com Hannah Kliot

DR

[Paralelo] Se voltasse há quarenta anos o que teria feito diferente na sua carreira? [Barney Frank] Nada de muito especial. Nas votações no Congresso mudaria o sentido de voto no pedido de George Bush para ir para guerra com vista a retirar o Iraque do Kuwait. Votei contra porque estava com medo que ele exagerasse mas não o fez. Para além disso, na minha vida pessoal, em 1987 assumi que era homossexual, se fosse agora teria feito isso alguns anos mais cedo. [P] Como caracteriza a comunidade portuguesa do Massachusetts? [BF] São muito trabalhadores e, também, muito generosos. [P] Disse que os imigrantes eram empreendedores. Os portugueses são? [BF] Sim, absolutamente. O que a comunidade luso-americana fez é de grande valor. Estão completamente integrados na vida americana, são líderes, e, ao mesmo tempo, preservam a sua cultura portuguesa e a dos Açores. [P] Como é que o seu eleitorado português reagiu à assunção da sua homossexualidade? "O que a comunidade luso-americana fez é de grande valor. Estão completamente integrados na vida americana, são líderes, e, ao mesmo tempo, preservam a sua cultura" afirma Frank.

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“Franklin Roosevelt reconhecia algo familiar nos Açores” À semelhança dos fóruns anteriores, também a terceira edição contou com a presença e participação de um familiar do antigo Presidente norte-americano, como forma de manter vivo o seu legado, e de trazer ao encontro uma linha condutora sempre relacionada com a passagem de Roosevelt pelos Açores e pela relevância que o mar assumiu no seu mandato.

DR

No fórum dedicado ao mar, Frederic Delano Grant Jr. assumiu-se como um dos grandes protagonistas desta iniciativa, ao partilhar com os presentes um conjunto de curiosidades e perspectivas

“Os Delano [família da mãe de Roosevelt] estavam ligados ao mar há muitos, muitos anos”, contou Delano Grant Jr. um descendente desta família.

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A crise funciona como uma desculpa conhecidas no seio da família sobre os vários para deixar de fazer o que os destinos marítimos interesses financeiros não querem percorridos pelo antigo Presidente, em parfazer. ticular, a sua relação com os Açores e com a ilha do Faial. Neste contexto específico, [FDG] A relação com Macau e Hong Kong Grant Jr. recordou também algumas cita- é uma relação familiar. O avô de Franklin ções de Roosevelt sobre a ilha, retiradas Roosevelt e o irmão do avô (o avô de do seu diário de bordo: “Vista daqui (do Franklin Roosevelt é Warren II, o irmão navio) a ilha do Faial parece encantado- do avô é Edward), estavam ambos a tentar ra, inúmeras casinhas muito brancas estabelecer ligações comerciais com a espalham-se pelas encostas e pelos China. pequenos terrenos cultivados com esmero”. “Há uma opinião positiva consistente [P] No que diz respeito ao mar e ao ambiensobre os Açores”, afirmou, acrescentando: te, como avalia a posição dos Estados Unidos “Franklin Roosevelt reconhecia algo fami- neste momento de crise económica? liar nos Açores”. [FDG] Numa única palavra: inadequada. Há tanto para ser feito e a crise funciona como [Paralelo] Diria que o Presidente Roosevelt uma desculpa para deixar de fazer o que os tinha espírito de marinheiro? interesses financeiros não querem fazer. [Frank Delano Grant] Absolutamente. [P] Franklin Delano Roosevelt tinha preocu[P] Pode contar-nos alguns episódios sobre a sua pações ambientais? relação com o mar e as suas viagens? [FDG] Sim, absolutamente. Uma das coi[FDG] Cynthia Koch explicou na apresen- sas a lembrar acerca de Roosevelt é que tação que fez ao Fórum que havia pro- ele muito conscientemente constrói a sua fundas tradições familiares com o mar. Os carreira seguindo o exemplo da sua relaDelano [família da mãe de Roosevelt] ção próxima mas não chegada com estavam ligados ao mar há muitos, muitos Theodore Roosevelt. Teddy Roosevelt foi anos. A família tinha ligações próximas o grande campeão não só da legislação com a Europa, particularmente com a de protecção do consumidor, mas, tamFrança e a Inglaterra. Roosevelt, enquanto bém, da conservação ambiental. Portanto, criança, viajou para a Europa muito por Roosevelt segue estas tendências através mar. Ele adorava viajar de barco no ocea- da admiração a Teddy Roosevelt. Foram no Atlântico ou no Hudson. Era um mari- feitos importantes progressos durante o nheiro experiente e hábil para quem longo mandato de Roosevelt – apenas velejar era relaxante e de que ele gostava como um exemplo: o CCC, the Civilian muitíssimo. Queriam vê-lo sorrir? Era com Conservation Core, uma das iniciativas do New Deal. isso que sorria. [P] E a relação com Macau e Hong Kong?

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O quadro de Roosevelt oferecido à Região Autónoma dos Açores

Este quadro, pintado a óleo por Charles Ruttan, mostra em primeiro plano o destroyer USS Dyer, tendo como pano de fundo a cidade de Ponta Delgada, correspondendo a uma réplica do original, que Roosevelt mantinha “por detrás da secretária onde trabalhava” na sua casa de Verão em Hyde Park, e que pertence actualmente à Franklin D. Roosevelt Paralelo n.o 7

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Library (Cynthia Koch, antiga directora da biblioteca, à direita na foto). A pedido da FLAD (Mário Mesquita, administrador da Fundação à direita na foto) esta biblioteca preparou a oferta à Região Autónoma dos Açores, na pessoa do seu então presidente, Carlos César e sua mulher Luísa César (à esquerda na foto), um quadro repre-

sentativo da passagem de Franklin D. Roosevelt pelos Açores. Esta oferta assinala, de forma simbólica, as primeiras três edições do Fórum Roosevelt nos Açores: a primeira edição em 2008, em Ponta Delgada; a segunda edição em 2010, em Angra do Heroísmo; e a terceira em 2012, na Horta.

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Seis anos que estão a mudar o nosso jornalismo Desde 2008, 10 jornalistas com menos de 40 anos frequentam, com o apoio da FLAD, o curso do Committee of Concerned Journalists. Quinze dias para “parar e pensar”, em Washington DC. E que já influenciaram os media portugueses. POR PAULO PENA* E SOFIA LORENA**

formação do Committee of Concerned Journalists (CCJ), uma associação de repórteres, editores, académicos e proprietários de media, que esteve na origem de um dos mais interessantes debates sobre o jornalismo ocorridos nos EUA. Foi a partir do CCJ que nasceram as bases do Project for Excellence in Journalism, que integra actualmente o Pew Research Center, e todo o trabalho que resultou no livro

Os Elementos do Jornalismo, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel, uma obra que redefiniu as prioridades da profissão e lançou as bases para uma discussão pública do método jornalístico, envolvendo o público. Graças à FLAD e ao seu Programa José Rodrigues Miguéis, dirigido por Sara Pina, o CCJ recebe, anualmente, desde 2008, um grupo de dez jornalistas portugueses, a meio da carreira, que têm DR

Há experiências que passam de ano para ano. Aquele bar dos Thievery Corporation, na rua 18, é uma delas. Mas nem só as noites na capital federal dos Estados Unidos são memoráveis. Há também o dedo indicador, em riste, de Walter Dean. Wally, como gosta que o tratem, é um jornalista com 35 anos de currículo, 14 dos quais na delegação de Washington da estação televisiva CBS. É ele que dirige a

Em 2011, os jornalistas viajaram durante as celebrações dos 10 anos do 11 de Setembro. Entre as reuniões e visitas incluiu-se a CNN.

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acesso a uma formação intensiva sobre as melhores práticas norte­‑americanas. E o que se passa, entre as nove da manhã e as 17 horas da tarde, com uma curta pausa para almoço, não fica, exclusivamente, em Washington DC. A experiência tem enriquecido as redacções portuguesas, e o debate sobre o jornalismo em Portugal. Os bolseiros do Programa Rodrigues Miguéis encontram­‑se entre os fundadores do Fórum de Jornalistas, integram o Projecto Jornalismo e Sociedade, organizam debates e workshops em universidades, ensinam nas universidades e conquistam prémios de jornalismo. Talvez o caso mais notório seja o de Bárbara Reis, que assumiu a direcção do jornal Público meses depois de ter frequentado o curso de 2009. Das discussões na pequena sala do CCJ, no National Press Building na baixa de Washington, Bárbara guarda a memória de “um tempo para se pensar sobre a nossa profissão, sobre o ponto de chegada”. Com funções de editora há vários anos, a agora directora de um diário, “sentia falta de pensar o jornalismo”, de “fazer aquela reflexão permanente a que temos de nos obrigar”. À volta de uma mesa oval reúnem­‑se os dez jornalistas portugueses. Walter Dean está à cabeceira, junto ao painel de projecção por onde passam vídeos e powerpoints. Wally tem um portátil ligado. Mas quase todo o seu trabalho visível decorre à volta de grandes folhas de papel de cenário que vai cortando, colando nas paredes, e enchendo a traços de marcador com reflexões – sempre fruto das discussões entre os jornalistas. No final do curso, não há um centímetro vago nas paredes da sala de reuniões do CCJ. O método é o da autodescoberta. Os jornalistas são postos perante problemas, dilemas, opções. A maneira como reagem vai sendo anotada em público, nas folhas da parede. Ao fim de cada dia há uma discussão. A forma como se chegou à resposta “certa” é sempre colectiva. Wally nunca dirige as respostas. Apenas toma nota, salienta, sublinha. Bárbara Reis aponta nesse método uma virtude: “O que é mais importante aqui é termos alguém que teve exactamente a mesma profissão que nós e depois passou anos a pesquisar sobre questões aparentemente óbvias e que corremos o risco de termos deixado de questionar.” Um dos primeiros exercícios passa por fazer um alinhamento de telejornal, com base em várias opções de notícias (que vão das típicas breaking news ao mero fait­ Paralelo n.o 7

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DR

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O grupo de 2009, que incluiu Bárbara Reis nomeada poucos meses depois directora do Público, numa aula no National Press Building, sede do Committee of Concerned Journalists.

‑divers, passando por peças sobre questões foi através desse processo que aprendeu relevantes mas que não parecem possibi- a tornar mais real, e menos “abstracto”, litar um tratamento noticioso muito ape- o papel dos leitores. Para este jornalista lativo). O exercício passa de ano para ano, da revista Notícias Magazine, o curso do CCJ com os mesmos exemplos – e resultados foi fundamental para recentrar a ideia de muito parecidos. Quase toda a gente escolhe “público”: “Diferenciar aquilo que tem as notícias bombásticas. Não as mais relevantes. Aquelas que parecem ser as mais Os bolseiros do Programa Rodrigues impactantes. As que são mais fáceis de traMiguéis encontram-se entre os tar através de imagens. fundadores do Fórum de Jornalistas, As que não correm o risco de aborrecer, de integram o Projecto Jornalismo levar o telespectador a e Sociedade, organizam debates mudar de canal. No final, perante o ar e workshops em universidades, desanimado dos gruensinam nas universidades e pos, Wally repete que “é muito comum” e conquistam prémios de jornalismo. que “90 por cento das pessoas cometem o mesmo erro”. Lição do dia: “Tudo tem interesse público daquilo que é apenas a ver com as nossas escolhas e decisões.” interessante ou, como ouvíamos lá, tornar Se é verdade que a maioria dos bolseiros interessante aquilo que é relevante.” já concorreu por sentir necessidade de O sublinhar da responsabilidade dos jornaparar e poder dedicar uns dias a pensar, listas perante o esclarecimento da opinião esta é a demonstração evidente de que pública é, para este repórter, entretanto tamtodos precisamos de reflectir sobre o bém professor na Universidade Lusófona, a que fazemos diariamente, tantas vezes com grande mais­‑valia desta formação. Maria João Guimarães, 35 anos, partilha automatismos e vícios acumulados. Às vezes, parar pode significar deixarmo­ esta opinião. Esta repórter do Público, que ‑nos surpreender. Em muitas ocasiões é fez parte do primeiro grupo de jornalistas portugueses formados pelo CCJ, em 2008, redescobrir ou até confirmar intuições. Ricardo J. Rodrigues, que participou no ganhou recentemente o Prémio Europeu mesmo curso de Bárbara Reis, lembra que Together Against Discrimination, com a

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O grupo de 2012 (numa foto no Capitólio) viajou durante as eleições norte-americanas e até assistiu a um comício de Obama na Virginia. A viagem esteve na origem de muitos trabalhos jornalísticos, por exemplo, um programa televisivo dos Nativos Digitais que pode ser consultado neste link: http://www.youtube.com/watch?v=GLIPv-Di9Oc&feature=player_embedded

reportagem, “Vizinhos dos neonazis para lutar contra eles”, sobre o casal Lohmeyer e a sua vida na aldeia alemã de Jamel. Antes tinha visto a sua reportagem “Eurodeputados: As leis deles mudam a nossa vida” distinguida na III Edição do Prémio de Jornalismo do Parlamento Europeu. “Todos sabemos que a União Europeia é importante mas é muito difícil escrever de uma forma que reflicta essa importância. Talvez por causa do curso tenha decidido não só ir à procura dos efeitos das decisões dos deputados, mas também falar com as pessoas que tinham sido directamente afectadas nas suas vidas. Acrescenta assim tanto ir falar com uma pessoa que por causa das garantias terem passado a ser de dois anos tenha podido trocar um electrodoméstico? Em termos absolutos não, mas esse

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trabalho torna mais fácil a identificação do leitor.” Desde que voltou dos EUA, Maria João foi seleccionada para uma bolsa do American Club para fazer um trabalho sobre mentores de adolescentes em risco. Em Washington, diz ter aprendido a não valorizar tanto os extremos, as posições a preto­e­branco, e a procurar a informação que verdadeiramente interessa aos cidadãos. Nesse mesmo ano fez uma reportagem, na campanha para as eleições americanas de 2008, centrada nos indecisos… “Ficou­‑me a ideia que nem sempre é bom ouvir os extremos, que, às vezes, o mais importante é chegar ao meio-termo, que tem muitas nuances. Pode ser mais difícil mas é o melhor em muitos temas.” “Este é um momento muitíssimo interessante para o jornalismo”, resume

Bárbara Reis. A profissão está ameaçada de crises por todos os lados: há a crise de confiança do público, há a crise económica que retira poder de compra aos cidadãos, há a crise do modelo de negócio tradicional dos media e há redacções ainda a tentarem conjugar o trabalho nos suportes de sempre com a necessidade de responder ao ritmo e à multiplicidade de oferta da internet, com as suas notícias em tempo real, redes sociais, os seus “cidadãos jornalistas”… O momento só ganha importância com as dificuldades. “Temos esta corrida, com uma perna fazemos o sprint dos 100 metros, com outra corremos a maratona”, descreve Bárbara Reis. De tudo isto se fala na sala do CCJ. “A participação no CCJ foi muito importante pela ajuda na estruturação conceptual Paralelo n.o 7

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consultivo que integra quatro ex­‑bol- tos políticos, o curso fornece abordagens seiros do Programa Rodrigues Miguéis. para várias áreas. O conjunto, variável, de Na reunião fundadora esteve presente convidados também é muito amplo: Tom Rosenstiel, o fundador da associa- de Barry Sussman, o editor do Washington ção dos EUA. Post responsável pela cobertura do caso O PJS está a repetir os passos dados pelo “Watergate”, até à provedora dos ouvintes CCJ, em finais da década de 1990. Já reada NPR, ou a autores de blogues indivilizou uma dezena de fóruns, abertos à duais de sucesso e responsáveis de sítios população, em todos os pólos universitá- como o “Político”, o CCJ tenta proporciorios de jornalismo no Continente. Está a nar várias abordagens aos problemas actuais do jornalismo. realizar um inquérito a jornalistas, universitários e público. E conta ter uma carta de princípios, tal A participação no CCJ foi muito como aquela que inspira o CCJ. importante pela ajuda na estruturação Por essa altura estaconceptual do que é e para que serve rão escolhidos os novos bolseiros do o jornalismo numa sociedade onde programa de 2012 nunca existiu tanta informação (este ano excepcionalmente realizado no pronta a consumir. Outono, para coincidir com as eleições presiA experiência dos bolseiros deste prodenciais dos EUA). O número de candidatos tem vindo a duplicar, de ano para ano. grama acabou por chamar a atenção do As redacções mais assíduas nas candida- maior grupo de media português. turas são as da Visão e do Público. Mas já A Impresa (proprietária da SIC, do Expresso foram seleccionados jornalistas de todos e da Visão) convidou o CCJ a vir formar os media: RTP, SIC, RDP, TSF, Lusa, Jornal de um grupo de 140 jornalistas da casa. Negócios, Diário Económico, Expresso... Das novas narrativas para o jornalismo * Jornalista da Visão multiplataforma, à forma de cobrir assun- ** Jornalista do Público

DR

do que é e para que serve o jornalismo numa sociedade onde nunca existiu tanta informação pronta­a­consumir nem tantos consumidores ávidos por exercerem a sua livre escolha”, refere Rui Peres Jorge, do Jornal de Negócios. “Esta reflexão tem naturalmente uma dimensão muito pessoal para a qual os Elementos do Jornalismo, e de resto toda a formação, são instrumentos valiosos. Mas a experiência em Washington, ao ser partilhada com outros jornalistas, ofereceu­‑me ainda outra ajuda: mostrou que há mais ‘jornalistas preocupados’ do que muitas vezes imaginamos.” Em finais de 2011, Rui, que integrou o grupo de 2010, foi um dos fundadores do Fórum de Jornalistas, uma associação de profissionais (quase todos com menos de 40 anos), que quer promover uma reflexão permanente sobre a profissão e tem realizado estudos, organizado debates e alimenta um blogue (forumjornalistas. wordpress.com). Ao longo de vários sábados, a Casa da Imprensa encheu­‑se de jornalistas para debater assuntos tão variados como a protecção do emprego, as contas das empresas de media e a importância da ética profissional. O Fórum realizou ainda um inquérito às chefias sobre a sua percepção do momento actual da profissão. Na segunda conferência, em meados de Abril, António Granado, Joaquim Vieira e Paulo Querido foram convidados a debater “que desafios colocam os novos media ao jornalismo e aos jornalistas”. A discussão foi aberta com uma entrevista feita por Rui a Wally, via Skype. Na resposta à última pergunta – o que podem e devem os jornalistas guardar e trazer do “velho” jornalismo para os desafios colocados pelos “novos” media – Wally lembrou que há que trazer tudo e nunca esquecer questões simples como “tentar ter sempre noção de onde estamos”. Rui não tem dúvidas: “Numa boa parte, o meu empenho e confiança no sucesso do Fórum de Jornalistas nasce nessa experiência em Washington. E o facto de tantos jornalistas, muitos que não passaram pelo CCJ, terem acreditado no Fórum e continuarem a oferecer­‑lhe tempo e energia, é a prova de que há muito a fazer pelo jornalismo, e de que há pessoas disponíveis para ajudar.” Mais ou menos em simultâneo, nascia no ISCTE uma organização inspirada no CCJ: o Projecto Jornalismo e Sociedade (PJS), financiado, também, pela Fundação Luso­‑Americana, entre outras instituições. Liderado por uma equipa de investigadores universitários, tem um conselho

Nas visitas ao Pew Research Center há sempre uma sessão com Tom Rosenstiel, o responsável pelo “Project for Excellence in Journalism”.

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O jornalismo, os jornalistas e o professor deles em Washington Wally Dean, antigo jornalista da CBS e actual director do centro de formação do Committe of Concerned Journalists (CCJ), uma associação de jornalistas sediada em Washington que estuda e promove o jornalismo de qualidade nos Estados Unidos e no resto do mundo, conversou com cerca de 20 jornalistas portugueses, participantes em edições anteriores do Programa José Rodrigues Miguéis, financiado pela FLAD. POR CARLA BAPTISTA*

por cento. “É a adopção da tecnologia mais rápida de sempre e faz pensar que milhões de pessoas irão ‘saltar’ uma etapa, passando directamente para o digital”, disse Wally Dean. Será que o ambiente multimédia é promissor para as notícias? A internet é um ambiente “rico” em informação e aberto a novas possibilidades narrativas mas o jornalismo tornou­‑se um campo ultraperiférico dentro da panóplia de conteúdos oferecido e, até agora, ainda ninguém conseguiu fazer dinheiro com a venda de conteúdos jornalísticos. Mesmo os top ten sítios noticiosos (ainda) não são lucrativos para as empresas. São os agregadores, como o Google, o Facebook e a Apple, que dominam a dis-

VISÃO / GONÇALO ROSA DA SILVA

Foi um encontro entre amigos, para reavivar as memórias e as aprendizagens que ficaram (para sempre) do mergulho de três semanas no programa de formação do CCJ. O tema foi o estado actual e futuro da profissão, um tópico que se tornou uma “monomania”, nas palavras de Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, em 1864, referindo­‑se à sua obsessão na criação de um órgão noticioso barato, informativo e desligado da política. A internet e a passagem do jornalismo para as plataformas digitais lançaram o mote para a discussão. No continente africano, as estatísticas sobre o uso do telemóvel indicam um crescimento anual na utilização superior a 70

“A internet é um ambiente ‘rico’ em informação e aberto a novas possibilidades...” Os novos desafios do jornalismo são tema de uma conversa entre Wally Dean e antigos alunos.

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tribuição, concentram todos os proventos, desenvolvem projectos de marketing e publicidade extremamente personalizados e “preocupantes”, do ponto de vista das liberdades e do direito à privacidade, graças ao enorme volume de informações pessoais fornecidas voluntariamente pelos próprios utilizadores, e têm cada vez mais capacidade de influenciar os conteúdos. “A noção de que todo o capital intelectual deve ser grátis está a destruir a democracia participativa”, referiu Wally Dean. O enfraquecimento da base económica do jornalismo e a catadupa de consequências provocadas pela crise, nomeadamente a redução do número de profissionais nas redacções, a eliminação de inúmeros lugares de correspondentes e o fecho de jornais, empurrou os jornalistas para uma aldeia gaulesa que vai resistindo cada vez com mais dificuldade. E, no entanto, a sociedade parece mover­‑se melhor quando o jornalismo funciona bem. O desafio de ‘popularizar’ o jornalismo sem o ‘deteriorar’ permanece uma das funções que só pode ser activada pelos valores tradicionais da profissão. Wally Dean relativizou o papel dos blogues como substitutos do jornalismo: “A maioria está cheia de comentários, assentes em opiniões e não em informação verificada através de uma investigação credível.” O jornalismo de qualidade, assente numa investigação séria, centrado nas causas e nas consequências dos problemas e “energizando” as pessoas para a necessidade de encontrarem soluções, será sempre o core business da profissão. * Jornalista freelancer e membro do Programa José Rodrigues Miguéis Paralelo n.o 7

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Uma família que se (re)descobre A história dos Dabney nos Açores, ao longo de quase um século, foi contada numa versão em livro para o grande público, primeiro em português, depois em inglês, num projecto desenvolvido por Mário Mesquita (administrador da FLAD). POR MARINA ALMEIDA

Fred Dabney (de pé) conversando com a responsável pela antologia, Maria Filomena Mónica no lançamento da versão inglesa do livro nos EUA. Paralelo n.o 7

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Fred Dabney tem tido “vários Natais”. Tantos quantos os primos novos que foi descobrindo nos últimos tempos. Eles foram chegando por causa do interesse dos portugueses na sua própria família, ao mesmo tempo surpreendidos e curiosos. E eis como um livro facilita a leitura das cartas dos seus antepassados, enquadradas com espaço e tempo e numa língua que todos conseguem ler – os Dabney se descobrem, no passado e no presente. “Estou extasiado” com o lançamento do livro, dizia-nos Fred no Bristol Community College, em Fall River. Aqui encontrou John Howland, que se passeava com um dos três volumes originais dos Anais da Família Dabney, fazendo a sua própria ponte entre o passado e o presente. Médico, 59 anos, é bisneto de Rose Dabney Forbes, filha do último cônsul norte-americano no Faial. Faz questão de mostrar o livro da família aos investigadores Paulo Silveira e Sousa e Maria Filomena Mónica. É um dos objectos que guarda dos antepassados. Tem a Bíblia da família, publicada em 1860, “usada para registar os casamentos, nascimentos e mortes”, várias peças bordadas na técnica de crivo e o álbum de fotos de família de Rose Dabney. Não a conheceu, a bisavó – “morreu seis anos antes de eu nascer e a minha avó não falava muito da mãe”. Já as histórias da avó Alice sobre o Faial ficaram-lhe na memória. Não seria para menos, visitou a ilha, numa daquelas viagens que muitos Dabney fazem, em 1958 – o ano da erupção do vulcão dos Capelinhos. John ouviu falar muito do Faial mas con-

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John Bass. “É maravilhoso este lançamento. Claro que tenho uma cópia do original, os três volumes, mas tenho que admitir que não os li todos.” Está no McMullen Museum of Arts, no Boston College. Considera a edição “muito atraente” e espera “que seja bem recebida”. Não tem filhos mas tem “muitos primos” e já comprou vários exemplares para lhes oferecer. “Acho que é maravilhoso, estamos orgulhosos”, diz. Considera o novo livro, que torna mais acessíveis as cartas originais da família, pode juntar a família. “Os da Califórnia não sabem da nossa história”, refere.

Com Fay estava a irmã, Bettina – com quem visitou o Faial, em 1983 –, e o filho desta, Thomas. Tem 22 anos e é estudante universitário. O benjamim Dabney teve curiosidade de ouvir falar da família. É bisneto de Lewis Stackpole Dabney. Conviveu com o retrato do bisavô durante anos em casa dos pais, mas pouco sabe dele. Entusiasmado (mas também muito admirado com o interesse destes estrangeiros na sua própria família), espera agora encontrar pistas para o conhecer e perceber de que são feitas as suas raízes. Nunca leu os Annais mas leu o livro de Joe Abdo – On the Edge of History –,

No Verão uma comitiva de Dabney vai visitar o Faial. Nesta foto, Sydney Tynan.

Arthur Lothrop criou o arquivo Dabney do Luso-Center do Bristol Economy College.

fessa que nunca lá foi e apenas leu excertos dos Anais. Considera esta edição “muito mais acessível que os Anais”, importante para chegar a gerações mais novas. Casado, tem dois filhos, mas não acredita que eles estejam “muito interessados na história da família nesta fase das suas vidas”. Mesmo ele confessa alguma incredulidade com este interesse da comunidade luso-americana. Está contente, sim, mas cauteloso: “Não sei sinceramente se há muita gente interessada na história dos Dabney, uma história que aconteceu há muitos anos.” John e Fay Dabney não se cruzaram. Ela é uma das bisnetas do primeiro cônsul,

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Os descendentes da família, de cônsules americanos, Dabney marcaram presença no lançamento do livro. Nesta foto Fay e Fred Dabney. Paralelo n.o 7

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tes aborrecidas. Tenho o conjunto original de três A história dos Dabney parece ser volumes e li partes, quanmuito mais tentacular que a sua do pesquisava sobre um determinado evento ou própria árvore genealógica. pessoa”, diz. Tem 73 anos e há décadas que luta pela preservação da história da sobre a família. Está na universidade a família. Doou muita documentação a estudar Economia e Matemática e diz que bibliotecas, esteve no Faial em 1974 – por quer preservar o legado de “significativos razões diferentes das de Alice, lembra-se feitos e generosidade” da família Dabney. bem da visita e do ambiente da ilha na Quando acabarem as aulas vai ler a nova época... Acaba de escrever um livro sobre edição. o bisavô, Frank (Francis) Dabney (1853Arthur Lothrop levou a filha, Julia, até 1934), neto de Charles William, o segunao “seu” Bristol Community College (BCC). Tem 69 anos e dedicou grande parte da sua vida a juntar documentos sobre os Dabney. Foi quando leu o livro Saudades da sua prima Frances S. Dabney (que deixou o Faial em 1874 com 18 anos) que se entregou a esta tarefa. Dava­ ‑lhe prazer imaginar a vida destes antepassados no meio do oceano. E foi assim que criou o arquivo Dabney actualmente existente no Luso-Centro do BCC. Parte deste espólio esteve exposto durante a apresentação do novo livro. Outra parte permanece dentro das gavetas e está a ser cuidadosamente catalogada por Paulo Silveira e Sousa, com o apoio da Fundação Luso-Americana. Dois dos volumes originais dos Anais estão nesta colecção. Arthur sorri e não esconde a alegria de ter naquele dia de Fevereiro casa cheia para ouvir falar dos Dabney. Gostava agora de ver o Saudades republicado. A história dos Dabney parece ser muito mais tentacular que a sua própria árvoThomas Dabney Abe, o mais novo (22 anos). re genealógica. Das histórias vão nascendo histórias, por enquanto ainda apenas pela mão das gerações mais velhas. Sidney Tynan, 92 anos, esteve no Providence Atheneaum a contar-nos como passou o Inverno em que completou 90 anos a escrever um livro. “Juntei tudo o que pude para os meus filhos nunca dizerem: gostava de saber mais sobre a família.” Conta com uma energia contagiante como usou o Google, as bibliotecas e os documentos da família para contar a história aos seus quatro filhos e nove netos. A bisneta de Emmeline Dabney (filha do primeiro cônsul, John Bass, nascida no Faial em 1811) escreveu num Inverno Family Tales, Facts and Fallacies. Mas há mais. (Outros) compromissos familiares impediram Sally Dabney de estar nas apresentações do novo livro. Ficou “triste” mas rapidamente tratou de o comprar e ler. “Acho que os autores fizeram John Howland, médico. imensa pesquisa e eliminaram muitas par-

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do cônsul. “Chama-se Go West Young Man & Grow Up With Your Country [Vai para Oeste Jovem e Cresce com o teu País], título emprestado de uma citação famosa na época” escreve-nos na resposta do e-mail. No Verão uma comitiva de Dabney vai visitar o Faial, na peugada da história da família, numa viagem organizada em parceria entre o New Bedford Whaling Museum e a Câmara de Comércio daquela cidade. Entre eles vai estar Fred Dabney, a mulher e as três filhas. O casal já esteve nos Açores em 2007. Regressa agora para mostrar as ilhas e o legado familiar às gerações mais jovens. Fred, 67 anos – sobrinho em terceiro grau de Charles William, o segundo cônsul –, tem uma estufa e dedica-se à horticultura. Os seus antepassados introduziram novas espécies na ilha e eram apaixonados por plantar árvores. De tal maneira que têm uma semente com o seu nome no banco de sementes raras do Jardim Botânico do Faial. Fred confessa que já as tentou multiplicar nos Estados Unidos mas “não vingaram”. Regressa às ilhas a ver se aprende mais. O livro The Dabneys, a Bostonian Family in the Azores, obra trabalhada por uma dupla de investigadores portugueses a partir das cartas compiladas por Roxanna Dabney, parece ser o rastilho de um novo interesse nos antepassados, a chegar às gerações mais tenras e a preencher as mais maduras. * Jornalista do DN

The Dabneys, a Bostonian Family in the Azores Versão resumida dos Anais da Família Dabney (conjunto de cartas da família, originalmente compiladas por Roxanna Dabney, distribuído por três volumes, um total de 1500 páginas), em edição inglesa. Com prefácio de Maria Filomena Mónica, selecção e notas de Paulo Silveira e Sousa, o livro é fruto de uma parceria de edição da Fundação Luso-Americana (FLAD) e do Museu da Baleia de New Bedford. A FLAD apadrinhou, em 2009, uma primeira versão da antologia dos Anais em português, editada pela Tinta-da-China. Esta nova edição tem uma selecção mais adaptada ao público norte-americano e luso-descen‑ dente. Preço: 15 euros (à venda na loja online do Museu da Baleia de New Bedford).

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Cartas dos Dabney fazem a ponte Portugal/EUA A Bostonian Family in the Azores, fez renascer uma família no encontro com os antepassados e renovou laços entre os dois países. POR MARINA ALMEIDA*

A versão resumida das cartas da família Dabney do Faial está, desde Fevereiro, disponível em inglês. Nasceu, assim, um livro para o grande público, The Dabneys, A Bostonian Family in the Azores, fez renascer uma família no encontro com os antepassados e renovou laços entre os dois países. “Com esta nova antologia todos os leitores interessados têm acesso à fascinante história desta família. O nosso

objectivo era tornar esta colecção de cartas próxima do público falante de inglês. É difícil persuadir um leitor comum a percorrer as mais de duas mil páginas dos três volumes originais”, acentuou Mário Mesquita, administrador da Fundação Luso­‑Americana (FLAD). Esta família de cônsules americanos que viveu nos Açores no século xix, escreveu centenas de cartas que um dia uma descen-

dente – Roxana – tratou de transformar num conjunto de três livros de circulação restrita. Até que uma dupla de investigadores – Maria Filomena Mónica e Paulo Silveira e Sousa – instigados por Mário Mesquita, tiraram da surdina familiar estas missivas. Primeiro, em 2009, com uma versão resumida em português. E agora, nova selecção mais adequada ao público luso­‑descendente e norte­‑americano, em inglês.

“Com esta nova antologia todos os leitores interessados têm acesso à fascinante história desta família. O nosso objectivo era tornar esta colecção de cartas próxima do público falante de inglês. É difícil percorrer os três volumes originais”, acentuou Mário Mesquita, administrador da Fundação Luso-Americana (FLAD).

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As apresentações do livro The Dabneys, A Bostonian Family in the Azores, editado pela FLAD em parceria com o New Bedford Whaling Museum, realizaram­‑se em Fevereiro nos EUA. Os “Dabney Days” decorreram ao longo de uma semana e juntaram centenas de pessoas em sessões que tiveram lugar em New Bedford, Providence, Fall River e Boston. O novo volume tem 241 páginas, com cerca de 800 notas de rodapé que serviram para traduzir frases e palavras em português, francês e italiano, mas também para identificar muitos lugares, acontecimentos e pessoas. “Porque o público americano – e nisto não é uma excepção – conhece mal a História de Portugal. Foi necessário fornecer elementos susceptíveis de ajudar o leitor a entender não só o que se passava nos mares durante o conflito, que eclodiu em 1812, entre a Inglaterra, os EUA e a França, mas sobretudo a guerra civil que opôs os dois filhos do rei D. João VI, D. Pedro e D. Miguel, entre 1828 e 1834”, refere Maria Filomena Mónica. James Russell, director do Museu da Baleia de New Bedford, chama ao novo livro “um abraço de cultura portuguesa.”

também o Bristol Community College, em Fall River, o Museu da Baleia, em New Bedford, e o McMullen Museum of Art, do Boston College, receberam as apresentações da nova edição com um enorme entusiasmo. Acorreram luso­‑descendentes, estudantes de português nas universidades locais, mas também americanos curiosos e os descendentes da família.

OS DOIS “ALFAIATES” Maria Filomena Mónica e Paulo Silveira e Sousa deram forma a esta edição inglesa de uma selecção de cartas dos Anais da Família Dabney feita à medida do leitor americano. Tal como alfaiates, cortaram muito dos textos originais. “Nós sabíamos que um leitor contemporâneo dificilmente teria tempo para ler as 1485 páginas de um livro em três volumes, mas foi­‑nos muito difícil cortar passagens que sabíamos ser interessantes. Roxana Dabney, a autora de muitas páginas do diário aqui transcrito e a compiladora dos papéis da família, era uma mulher que escrevia bem e que sabia descrever o que a rodeava. Daí a pena que sentíamos quando, para cumprir a nossa missão, éramos forçados a cortar. Mas cortar foi o que fizemos, tentando conservar o tom da obra e o relato dos facMaria Filomena Mónica e Paulo tos mais significativos”, Silveira e Sousa deram forma a esta explica Maria Filomena Mónica, historiadora poredição inglesa de uma selecção de tuguesa e autora do prefácartas dos Anais da Família Dabney cio da obra. Das 1485 páginas elimifeita à medida do leitor americano. naram “umas 945”, nas contas do outro “alfaiate”. Paulo Silveira e Sousa leva­ O irlandês que dirige o Museu da Baleia ‑nos de volta ao tempo dos Dabney e à está perante uma plateia entusiasta no importância da sua correspondência. “As belíssimo Providence Atheneaum, numa cartas e diários não eram exactamente sessão promovida pela Brown University. documentos pessoais. Pelo contrário, eram Revela que esta odisseia de editar a anto- escritos para serem lidos por um grupo logia dos Dabney em inglês começou “há alargado de parentes e amigos e funcionadois anos”, em Boston depois do lançavam quase como um meio de comunicação. mento da antologia em português. “É A mesma carta podia assim ter uma circuimpressionante a grande preocupação, lação muito maior, não se restringindo ao amor e companheirismo e entusiasmo de destinatário do envelope”, aponta. “O seu contar a história dos Dabney”, disse, alu- conteúdo era, por isso, mais formal, desdindo ao empenho da FLAD. “Os EUA estão critivo e menos intimista. Para percebermos a olhar para Este, é uma relação estratégi- esta circulação, temos ainda que tentar ca de que não devemos esquecer­‑nos: o imaginar um mundo vitoriano à luz da entreposto que existia nos Açores da altu- vela, sem televisão ou internet, em que as ra dos Dabney durante a II Guerra notícias do dia chegavam em navios através Mundial, a guerra de 1812, a Guerra Fria de jornais atrasados, de cartas e diários e hoje, olhando para a Terceira e a sua enviados por parentes e amigos.” importância, é muito real”, sublinhou. A autora terminou todas as suas apreTal como no Providence Atheneaum, sentações com uma frase de Roxana

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Dabney sobre a vida da família no Faial: “não seriamos mais felizes noutro lugar”. Entre luso­‑descendentes saudosos, descendentes dos Dabney e filhos de portugueses que nunca foram aos Açores (mas ficaram com vontade…), corre um sorriso, um arrepio. Todos parecem saber, de uma forma ou de outra, do que fala.

O “ESPÍRITO DABNEY” Talvez seja o “espírito Dabney”, a que se referiu Jaime Gama, antigo presidente da Assembleia da República e ex­‑ministro dos Negócios Estrangeiros (1983­‑1985 e 1995­‑2002), na derradeira sessão dos “Dabney Days”, no McMullen Museum of Art. “Devemos manter o espírito Dabney e ter a mente aberta, o que contribui para estreitar fronteiras”, referiu. Este legado “ainda hoje perdura no inegável cosmopolitismo da cidade da Horta e no seu estilo náutico, sem paralelo em outros pontos da costa portuguesa”. Gama lembrou que “a ascensão e queda dos Dabney está associada à mudança de tecnologia nas rotas do Atlântico”. A sua importância – sublinha – “é sem dúvida o de uma enorme abertura ao comércio internacional, com o que daí resulta para a economia, a sociedade e a cultura locais, em especial nas ilhas do Faial e do Pico”. Açoriano de São Miguel, filho de um faialense, Gama conheceu cedo o legado destes americanos (e trabalhou para os conhecer melhor). Realça os momentos históricos a que a família, a partir daquele ponto crucial no meio do Atlântico, esteve associada. E alerta: “Urge passar do meritório trabalho em torno dos Anais para a fixação de um roteiro Dabney, de indiscutível valor turístico­‑cultural. Tal desiderato muito beneficiará de uma boa cooperação entre instâncias locais e regionais e a FLAD.” O presidente da Câmara da Horta, que participou nos “Dabney Days”, ofereceu ao Museu da Baleia de New Bedford uma cópia do documento municipal que cede à família um talhão no Cemitério do Carmo – onde ainda hoje estão sepultados vários dos ilustres Dabney do Faial. “A vereação entendeu depositar uma cópia desse documento num espaço onde as pessoas, neste lado do Atlântico, pudessem usufruir e consultar, que é o Museu da Baleia de New Bedford”, referiu João de Castro. O autarca não perdeu a oportunidade de anunciar, precisamente, a criação de um roteiro Dabney na Horta. * Jornalista do DN

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SOCIEDADE

Europa mediterrânica: entre a crise do euro e a Revolução Árabe POR SARAH SOUSA E SÁ*

a reunião teve como objectivo separar a atenção mediática exagerada dos factos e, ao mesmo tempo, explorar possíveis soluções e cenários futuros para a região. A sessão de abertura lançou o debate, colocando a Europa do Sul no centro da turbulência que afeta a zona euro. Uma vez que esta região foi a que mais sofreu com a contracção económica na Europa, a introdução de rigorosos planos de acção económica foi necessária em vários países. No entanto, a curto prazo, as medidas de austeridade resultantes têm reforçado o sentimento geral de incerteza, criando a

decepção e aumentando as dificuldades entre os cidadãos. Os participantes reconheceram a necessidade de identificar melhor as fontes da crise e as potenciais consequências a nível social e político das soluções propostas, se a União Europeia (UE) pretende inverter o ciclo de declínio. De seguida, foi discutido o impacto do movimento “Primavera Árabe” sobre a estabilidade da Europa do Sul. O Norte de África tem a tendência de sofrer mais com a crise económica da Europa do que vice-versa; contudo, em termos políticos, as 2012 PHOTO COPYRIGHT EUROPEAN UNION

Cerca de 45 especialistas internacionais reuniram-se na Fundação Luso­ ‑Americana (FLAD), em Lisboa, para a edição de 2013 do “Mediterranean Strategy Group”, um fórum de debate dedicado à análise das questões mediterrânicas que é liderado pelo German Marshall Fund dos Estados Unidos (GMF). O tema da edição deste ano foi “O Futuro da Europa Mediterrânica: entre a Crise do Euro e a Revolução Árabe”. Com a preocupação gerada pela depressão económica e a volatilidade política que actualmente assolam a Europa do Sul como pontos de partida,

O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, na inauguração de uma exposição sobre a “Primavera Árabe”.

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SOCIEDADE

convulsões nos países árabes tiveram repercussões colaterais, que se reflectiram nas crescentes tensões sociais observadas em todo o Sul da Europa. A prolongação dos tumultos no Sul do Mediterrâneo pode aumentar ainda mais essa volatilidade, cultivando o receio da imigração ilegal, o terrorismo e o islão político já latente na Europa. Sendo a Europa vizinha e principal parceiro comercial do Norte de África, muitos participantes entenderam que a UE tem o dever de ajudar os países árabes que se debatem com os desafios criados pela transição democrática. As lições aprendidas pelas democracias mais recentes do Sul da Europa podem ser particularmente úteis a este nível. A sessão seguinte reflectiu sobre o tipo de parceria que a Europa tem procurado desenvolver com o Médio Oriente e o Norte de África (MENA), através de quadros de cooperação existentes como a UE e a NATO. O início do Processo de Barcelona,​​ em 1995, assinalou o verdadeiro interesse por parte (do Sul) da Europa em participar mais activamente com os países vizinhos árabes. A Parceria EuroMediterrânica (PEM) foi construída sobre os princípios do diálogo multilateral e a promoção de reformas, mas, apesar das suas louváveis intenções, o projecto EuroMed tem pouco a mostrar quanto aos seus esforços e revelou-se fraco a nível das respostas a dar face às revoltas árabes. A actual reconfiguração da paisagem norte-africana deve encorajar a Europa a rever a PEM, de acordo com as realidades emergentes nos países parceiros. Uma abordagem mais pragmática iria beneficiar de um nível mais profundo de compromisso que promova o crescimento e desenvolvimento com base nas necessidades expressas e através da implementação de programas eficientes. A estratégia americana foi, também, analisada. A integração progressiva de novos países na UE tem sido uma fonte de dividendos políticos e de segurança para Washington, tendo reforçado a aliança transatlântica defensiva. A recente crise Paralelo n.o 7

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teve éxito quanto ao desenvolvimento dos Estados-membros do Sul. Contudo, também colocou fortes exigências a países que muitas vezes não tinham os recursos, o know‑ -how nem a capacidade institucional para gerir com êxito um progresso tão rápido. A introdução da moeda única numa zona caracterizada por diversos tipos e escalas de economias nacionais agravou a carga que os mesmos países tiveram que suportar, aumentando muitas das assimetrias já existentes – tendo finalmente alimentado a crescente divisão entre a Europa do Norte e a sua congénere do Sul. Os participantes chegaram à conclusão de que, a fim de contrariar a dinâmica disruptiva em evidência, a UE terá de se reinventar, de acordo com as exigências emergentes, através de uma abordagem inovadora mais capaz na resposta às tendências sociais e económicas únicas de cada membro. A União deve aproveitar-se das capacidades comprovadas que tem para mapear um roteiro para o futuro que respeite os princípios básicos fundadores do consenso, da solidariedade mútua e do fair-play, mas que se distancie do passado, estimulando uma melhor eficácia institucional, responsabilidade e comunicação com os líderes políticos nacionais e os próprios cidadãos europeus. Muitas das perguntas complexas que surgiram durante esta reunião do Mediterranean Strategy Group ficaram sem resposta. Porém, as discussões conseguiram revelar o que se encontrava por detrás da “narrativa da crise” que agora domina o discurso político para revelar as principais fontes de instabilidade, questões de discórdia, e desafios a enfrentar, tendo identificado medidas de acção possíveis que podem ainda levar a Europa a bom porto.

Muitas das perguntas complexas que surgiram durante esta reunião do Mediterranean Strategy Group ficaram sem resposta. Porém, as discussões conseguiram revelar o que se encontrava por detrás da “narrativa da crise” que agora domina o discurso político.

interna da Europa forçou, no entanto, muitos Estados-membros do Sul a reduzir as suas contribuições orçamentais num momento em que os EUA estão cada vez mais ansiosos que os seus aliados europeus compartilhem ainda mais a responsabilidade militar. A recente mudança estratégica da América em direcção à Ásia, como tal, deve ser vista como um “reequilíbrio” em resposta aos acontecimentos globais, e não como um abandono da Europa, que é ainda considerada uma parceira fundamental na preservação da estabilidade global. O mundo árabe representa uma peça-chave do puzzle geoestratégico, razão pela qual a NATO criou o seu Diálogo do Mediterrâneo em 2004. O formato flexível adoptado contribuiu para uma maior aproximação com os países MENA, mas infelizmente, o projecto foi largamente criticado devido a desentendimentos diplomáticos internos. Segundo alguns observadores, tais falhas puseram em questão a capacidade de a NATO agir como enquadramento para relações multilaterais além do domínio militar. Mas, apesar da ainda emergente identidade política da organização, a maioria ainda acredita na relevância da NATO como uma aliança de segurança regional. A sessão final procurou olhar para além do presente estado de emergência, reflectindo sobre o que pode ser feito para romper o ciclo de declínio no Sul da Europa. O projecto de alargamento da UE

* Mestre em Relações Internacionais / FLAD

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Galiza, Açores e o sonho americano POR ALBERTO PENA*

A Galiza e os Açores, regiões autónomas da Espanha e de Portugal, são dois territórios atlânticos excepcionais, que estão unidos por características de idiossincrasia social comum. Partilharam os mesmos destinos ao longo da História, ainda que percorrendo caminhos diferentes. A Galiza foi e continua a ser uma espécie de ilha na Península Ibérica, cujos sinais culturais, como os do povo açoriano, foram forjados na sua relação com o oceano Atlântico, e cuja economia assenta historicamente na pesca, na pecuária e na agricultura. As dificuldades de sobrevivência impulsionaram um espírito empreendor que levou os galegos e açorianos a espalharem­‑se pelo mundo na procura de novas oportunidades, abrindo a sua cultura ao intercâmbio atlântico desde o Norte do Canadá até aos confins da Terra do Fogo. O fenómeno da emigração galega e açoriana tem, portanto, muitas convergências, especialmente nos Estados Unidos de América, onde os emigrantes dos dois territórios encontraram um mundo novo no qual lançaram novas raízes, sem esquecer as velhas origens. Neste sentido, torna­‑se imprescindível resgatar a história desta experiência única de duas culturas atlânticas lusófonas imbuídas do sonho americano. Foi assim que se decidiu iniciar um projecto de colaboração entre várias instituições culturais portuguesas e galegas, que acharam necessário criar uma ponte de intercâmbio cultural e académico entre os Açores e a Galiza através da rota americana aberta pelos emigrantes açorianos e galegos. Há muitas histórias da emigração portuguesa e galega para os Estados Unidos da América que não foram contadas e que precisam de um estudo aprofundado dos diferentes elementos que caracterizaram estas migrações. Só assim se poderá ter um retrato fiel, não só do extraordinário fenómeno migratório atlântico, mas também de uma realida-

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de histórica que determinou e continua a influir nas próprias marcas identitárias da Galiza e dos Açores. Estamos, portanto, diante de um campo de investigação inexplorado, que tem inúmeros aspectos desconhecidos ou pouco estudados a diferentes níveis, especialmente de uma perspectiva comparatista. Através de uma iniciativa que foi lançada pelo professor Mário Mesquita, a Fundação Luso­ ‑Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e o Consello da Cultura Galega (CCG) decidiram, em 2009, desenhar um projecto de colaboração conjunta que ligou a instituições culturais atlânticas com um mesmo objectivo comum, neste caso o de estudar as causas e as consequências da emigração para a América, assim como as condições de integração das comunidades emigrantes e as suas manifestações sociais, culturais, políticas, demográficas, etc. É preciso dizer que o CCG, presidido pelo professor Ramón Villares, ex­‑reitor da Universidade de Santiago de Compostela (que está a prestar o seu apoio pessoal ao projecto) é a instituição cultural mais importante da Galiza, na qual estão representadas, para além das três universidades galegas (Vigo, Coruña e Santiago), todas as suas fundações culturais, a Real Academia Galega e outras academias especializadas, os museus e o próprio governo autónomo. Portanto, esta ligação especial entre a FLAD, que é a organização de referência no intercâmbio cultural luso­‑americano, e o CCG, é uma associação simbólica, mas também estratégica, para avançar numa maior e mais extensa rede de colaboração entre os povos lusófonos atlânticos. Esta ligação, a que se juntaram também outras instituições relevantes, como a Universidade e o Governo dos Açores, supõe uma oportunidade excelente para tentar consolidar uma ponte de intercâmbio entre os Açores e a Galiza, que está a ser Paralelo n.o 7

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construida com a ajuda de muitas pessoas, entre as quais há que destacar, de maneira especial, o professor Mário Mesquita e a professora Gilberta Rocha, do Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores, mas também o magnífico trabalho realizado na flad pela Dr.ª Paula Vicente, e pelos professores Marcelino Fernández e Xosé López, respetivamente administrador e secretário do CCG. Entre 14 e 16 de Outubro de 2009, realizou­‑se na Horta (Faial) o primeiro colóquio intitulado “Comunidades Euro­‑Atlânticas nos Estados Unidos da América. Experiências da Emigração da Galiza e dos Açores”, cujo livro de actas foi apresentado recentemente por ocasião da organização de uma nova actividade académica (agora realizada na Galiza, na singular ilha de San Simón, na Ría de Vigo) entre os dias 18 e 20 de Outubro sob o título: “Emigración e Exílio nos Estados Unidos de América”, com participação de investigadores, diplomatas e profissionais da comunicação americanos, portugueses e galegos. Nesta nova edição tentou­‑se fazer uma aproximação ao tema do exílio e o seu papel na diáspora, especialmente através da presença dos intelectuais portugueses e galegos nas instituições educativas americanas. Na celebração deste novo congresso apresentou­ ‑se o livro Galiza e Açores – A Rota Americana (FLAD – Almedina, 2012) que reúne essencialmente os conteúdos das comunicações que foram apresentadas no colóquio de Horta. Com dois textos introdutórios do Dr. Jorge Costa Pereira, vice­‑presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, e do então Reitor da Universidade dos Açores, o professor Avelino de Freitas de Meneses, o estudo abrange o fenómeno migratório galego­ ‑açoriano a partir de um ponto de vista completamente aberto, com abordagens que tratam assuntos relacionados com os seguintes temas de interesse: a história e a memória da emigração, os recursos Paralelo n.o 7

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humanos e económicos, a comunicação pública dos emigrantes, os projectos inovadores e os assuntos diplomáticos. Os professores Gilberta Rocha e Marcelino Fernández explicam algumas das chaves mais relevantes para compreender quando, porquê, para quê e em que condições emigraram os açorianos e os galegos para os Estados Unidos. Esta visão geral é completada com estudos mais específicos de outros autores. O professor da Universidade dos Açores, Ricardo Manuel Madruga da Costa, escreve sobre o fenómeno migratório desde a ilha do Faial no século XIX, e o docente da mesma universidade, Eduardo Ferreira, traça o perfil dos luso­‑americanos “nascidos em Portugal”. Por seu lado, a professora da University of Massachusetts Dartmouth, Maria Glória de Sá, realiza uma radiografia actual sobre a situação demográfica, económica e social dos portugueses nos Estados Unidos, e Luisa Muñoz Abeledo, da Universidade de Santiago de Compostela, faz uma aproximação ao modelo de emigração galega ao território norte­‑americano. Quanto à comunicação dos emigrantes, o ex-director do Portuguese Times, Adelino Ferreira, faz um retrato geral sobre a imprensa portuguesa na costa leste dos EUA, e o professor compostelano Xosé Lopez explica o sistema mediático dos galegos na América. Também José Maria Lópes de Araújo e Ruben Rodrigues aportam a voz da experiência no campo da comunicação para explicar a repercussão da emigração nos media. Tony Goulart publica um texto que estuda as ocupações laborais da comunidade açoriana na Califórnia. E, finalmente, a Dr.ª Maria Amélia Paiva, antiga cônsul de Portugal em Newark, descreve a realidade dos emigrantes no Canadá, e, eu próprio, analiso alguns aspectos sobre a influência pública dos emigrantes galegos nos EUA. *Professor da Universidade de Vigo-Galiza.

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ROBERT FISHMAN

Ver para além do curto prazo “Portugal é a maior história de êxito na Europa, entre 1974 e 1999”, diz, citando indicadores que fariam qualquer português abanar a cabeça, descrente.

A chuva miudinha não dá descanso. Cai, sem intervalo. Robert Fishman é pontual e está à porta da Estação do Rossio, tentando evitar uma molha. O dia é simbólico: 25 de Abril de 2012. Mas nem por isso a Avenida da Liberdade está cheia... Robert passou a manhã na sessão solene do Parlamento. Ouviu os discursos das galerias, como gosta de fazer sempre que vem a Portugal. À tarde desfila, Avenida abaixo, faça chuva ou faça sol. Para ele, a manifestação tem algo de etnográfico, de comemoração popular interclassista e sem barreiras geracionais. E, nas longas séries de dados que junta no seu gabinete, na Universidade de Notre Dame, no Indiana, a data da revolução portuguesa é um marco. “Portugal é a maior história de êxito na Europa, entre 1974 e 1999”, diz, citando indicadores que fariam qualquer português abanar a cabeça, descrente: “O consenso político entre os dois maiores partidos, PS e PSD, permitiu um avanço ímpar, em termos europeus, na educação, na produtividade e no nível de vida e cultural da população. Nenhum outro país do Sul da Europa fez tanto como Portugal, em tão pouco tempo.” Por esta altura, já estamos abrigados da chuva no muito apropriado Café Gelo – um local onde o País se tentou olhar de outra forma, fosse pelos olhos dos carbonários, dos poetas da geração de Orpheu, dos surrealistas ou dos opositores democráticos ao regime de Salazar. Robert Fishman olha para Portugal com o distanciamento de um académico, mas com a emotividade de

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RUI OCHOA

POR PAULO PENA*

Robert Fishman olha para Portugal com o distanciamento de um académico, mas com a emotividade de alguém que assiste a um “drama”. Paralelo n.o 7

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alguém que assiste a um “drama”. É uma virtude dos portugueses serem “O resgate português foi terrivelmenautocríticos. Mas não vale a pena te injusto”, refere. exagerar... Esse é, aliás, o mote da nossa conversa, dado que Fishman, investigador associado do Instituto Kellogg, havia escrito, em 2011, uma coluna de opinião no New York Times, criticando a insensibilidade do BCE do com uma imagem que viu nos notie das agências de rating ao que conside- ciários. O primeiro­‑ministro, Pedro rava ser os sinais de resistência à crise da Passos Coelho, a dirigir­‑se a uma manieconomia portuguesa. festação que o criticava para ouvir os seus Mas aproveitamos a conversa de hoje críticos. “Em muitos países isso seria para ir um pouco mais longe. Afinal, o impossível... Apesar de todas as dificulresgate já aconteceu. E, como garante dades, tanto os manifestantes como os Fishman, “a tragédia portuguesa faz parte governantes sabem dialogar. Isso é muito de uma tragédia maior”. A saber: o enfrapositivo e não é muito comum.” quecimento da democracia à escala euroA comparação com Espanha é inevitável. peia. “A democracia, tenho pena de o Robert Fishman é um dos grandes espedizer, está a diminuir na Europa. Os gover- cialistas norte­‑americanos na evolução nos e as populações perderam a capaci- democrática dos países ibéricos. Acaba, dade de tomar decisões democráticas. aliás, de publicar um trabalho sobre a Na zona euro, os governos estão a ser crise espanhola, que se vem juntar à sua impostos aos países, por razões tecnocrá- grande produção bibliográfica sobre os ticas, para cumprirem metas políticas que dois vizinhos e a introdução do euro. não foram decididas pelos eleitores, mas Em Espanha, defende, seria impossível pela Comissão Europeia ou pelo BCE. Isso ver Zapatero, ou Rajoy, a dialogar com é lamentável. Os países europeus ainda são manifestantes hostis. democracias, mas são democracias com um Profundo conhecedor da política interna poder diminuído. O número de assuntos dos dois países, Fishman revela que os sobre os quais os eleitos têm espaço para dois maiores partidos portugueses são tomar decisões está a diminuir.” “plurais internamente”, mas que têm conMas este pessimismo dá lugar a um seguido manter um consenso importante elogio a Portugal. Fishman ficou agrada- nas apostas de desenvolvimento, cujo

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aspecto mais relevante, para si, é o da política educativa. “Os dados que mais me surpreenderam, quando comecei a estudar Portugal no final da década de 70, foram os da política educativa, que é frequentemente mal compreendida aqui... Isso inclui a universalização do acesso, a elevação dos níveis de conhecimento e culturais e, como mostrou o último relatório Pisa, tais realidades tornam Portugal no país com o melhor desempenho na Europa do Sul.” Dias antes desta entrevista, Fishman estivera a dar uma conferência no Departamento de Estudos Políticos da Universidade Nova de Lisboa, a convite de um amigo com quem trabalhou em Notre Dame. A audiência era composta por centenas de alunos e um grupo de professores. Após a conferência, Robert Fishman pediu para que lhe colocassem questões. Uma delas apontava­‑lhe uma crítica: o seu discurso sobre o passado recente do país seria, talvez, desculpabilizador; não teria em conta os erros próprios dos portugueses. Fishman respondeu e rematou os seus argumentos com um toque de ironia: “É uma virtude dos portugueses serem autocríticos. Mas não vale a pena exagerar...” Hoje, insisto nesta enorme discrepância entre aquilo que este sociólogo observa, nos Estados Unidos, e a percepção generalizada, em Portugal, de um falhanço. Voltamos ao início: “Em 1974, Portugal era um país pobre e pouco alfabetizado. Precisava de fazer investimentos no seu futuro. E fê­‑lo. Foi sensato...” * Jornalista da Visão

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Prémio Gazeta Revelação

Talento nacional premiado Aos 25 anos, Alexandre Soares foi o vencedor do Prémio Gazeta Revelação 2011. Um reconhecimento que motiva o jovem português, actualmente a viver nos Estados Unidos, impulsionado com o apoio da FLAD e do Governo Regional dos Açores a abraçar ainda mais o jornalismo e a arte da escrita.

[Paralelo] Foi o vencedor do Prémio Gazeta Revelação 2011. O que significa este prémio? [Alexandre Soares] É um reconhecimento feito por pessoas com um percurso inquestionável. Olho para a lista dos vencedores anteriores e fico muito orgulhoso por pertencer a ela. Além disso, o dinheiro dá muito jeito. [P] Em que consistiu o prémio, concretamente? [AS] É um prémio monetário, no valor de cinco mil euros, que foi entregue pelo Presidente da República, numa cerimónia pública, que teve lugar em Novembro. [P] Como é que surgiu esta candidatura? Porque decidiu concorrer e quais as expectativas? [AS] Fui desafiado para concorrer por uma amiga, também jornalista. Entendi que tinha um conjunto de reportagens que me dava algumas hipóteses, mas não criei qualquer expectativa. Mandei a candidatura e nunca mais pensei no assunto. [P] Porquê esta reportagem sobre uma fotografia, e como é que esta imagem aparece na sua vida? O que motivou este trabalho? [AS] É uma reportagem que vem no seguimento do trabalho que estou a fazer junto da comunidade portuguesa nos Estados Unidos. Li a história de George Mendonsa num jornal da comunidade portuguesa de Massachusetts. Sabia que a história era desconhecida em Portugal e acreditava que merecia ser contada com mais pormenor. Depois, percebi que havia muitos portugueses que tinham lutado nas Forças Armadas Americanas e que as suas histórias também nunca tinham sido contadas. [P] Como é que desenvolveu esta “história” do emigrante português? Na sua opinião, porque foi premiada?

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[AS] Nunca pensei sobre isso, mas calculo que o júri tenha entendido que era a melhor que tinham a concurso. [P] Fale­‑nos um pouco sobre o protagonista desta imagem, George Mendonsa… [AS] George Mendonsa é um homem simples, mas com uma obsessão que o acompanha há décadas: provar que é o marinheiro da fotografia “Kissing Sailor.” Como ele me disse na conversa, o seu sangue “ferve” sempre que outro homem diz ser o marinheiro. [P] Vive actualmente nos EUA. Porquê a decisão de ir para os Estados Unidos? [AS] Já trabalhava como jornalista quando, em 2010, surgiu a hipótese de ir para os Estados Unidos com uma bolsa do Governo Regional dos Açores e apoio da Fundação Luso­‑Americana. Na altura, pareceu­‑me uma boa oportunidade. Decidi aceitar. [P] De que forma é que a experiência o fez querer ficar? [AS] Depois de oito meses nos Estados Unidos, ao longo dos quais vivi em três estados diferentes (Massachusetts, Nova Jérsia e Califórnia), percebi que podia trabalhar como jornalista no país. Neste momento, viver nos Estados Unidos proporciona­‑me mais e melhores desafios profissionais. [P] Como tem sido o relacionamento com outros jornalistas dos EUA? Acredita que isso é uma mais­‑valia? [AS] É uma óptima experiência. Aprende­ ‑se muito. Trabalha­‑se de uma forma completamente diferente nos Estados Unidos. Há, de facto, horários nas redacções. E são cumpridos, à excepção de alguns casos

pontuais. Há uma relação muito mais profissional com o trabalho. Não há pausas para fumar, tempo perdido no Facebook, ou duas horas de almoço (come­‑se, quase sempre, uma sandes ou uma salada em frente ao computador). Em compensação, caso não se esteja no piquete, às 18h00 os jornalistas de imprensa estão a sair das redacções. Depois, o editor tem um papel muito mais presente. Ajuda muito nos trabalhos, questiona, sugere fontes e, se necessário, manda reescrever todo o trabalho – mesmo aos jornalistas mais experientes. Essa colaboração entre redactor e editor é fundamental no jornalismo americano – e uma das razões para ele ser, na minha opinião, o melhor do mundo. [P] Como foi acompanhar a campanha eleitoral e a evolução das presidenciais? [AS] Foi a campanha mais ideológica dos últimos anos, mas o lado “espectáculo” da política americana permaneceu. Tive oportunidade de falar com senadores, congressistas e politólogos de várias ideologias e havia um sentimento comum: a América está numa encruzilhada. No final, enquanto assistia ao discurso de Barack Obama, na baixa de Chicago, com milhares de americanos, tive a confirmação do momento definitivo que o país atravessa. [P] E como surgiu o projeto de um sítio sobre as eleições americanas? [AS] Foi uma iniciativa minha. Desenvolvi o projecto, apresentei­‑o ao Sapo e à FLAD, que decidiram apoiar, e a partir daí tive de conseguir patrocínios. Foi um projecto a curto prazo em que tentei conquistar dois públicos: as pessoas que se interessam normalmente por estas eleições, e as que não têm um particular interesse mas que foram cativadas por um ângulo de inteParalelo n.o 7

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resse nacional que tentei introduzir em todos os trabalhos. [P] Faz cobertura da área de política? [AS] Sempre gostei de política, mas no meu trabalho prefiro escrever sobre temas sociais (imigração, direitos humanos, justiça, saúde…). Claro que todas estas áreas estão relacionadas, de uma forma ou de outra, com a actividade política. Pessoalmente, a política nacional não me interessa. Os políticos que temos no activo são, salvo raríssimas excepções, medíocres – falo como jornalista, não como eleitor (nessa qualidade, a minha avaliação é bem mais negativa). [P] Quais os planos para o futuro? No final do último ano, comecei a trabalhar com o Brasil e Angola. Quero aprofundar essas relações, mas continuar o trabalho com a comunidade portuguesa. [P] Apesar de ter apenas 25 anos, já se considera um “contador de histórias”? [AS] Não. Não tenho qualquer visão romântica desta profissão. Tento fazer o meu trabalho bem feito, todos os dias. É só isso. [P] Como surgiu o jornalismo e o gosto pela escrita? [AS] Até aos 18 anos, achei que ia ser biólogo. Quando terminei o secundário, percebi que, além de ciência, também gostava de direito, política, relações internacionais e muitas outras áreas e fiquei num impasse. Passados uns dias, percebi que a única profissão onde podia adiar a decisão de me especializar seria o jornalismo. O gosto pela escrita não surgiu. Escrever não é algo que faça de forma natural, nunca escrevi nada que não fosse para a escola ou para o trabalho. O que me dá prazer é estar na rua, conhecer as pessoas, o seu trabalho, as suas histórias, e pensar na melhor forma de contar tudo isso. O processo de escrita em si é quase mecânico: aprendi as regras, tento usá­‑las da melhor forma. Quando as coisas resultam bem, fico satisfeito, mas o sentimento não dura muito tempo. Há mais trabalhos à espera de serem feitos. Paralelo n.o 7

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O luso-americano George Mendonsa é um homem com uma obsessão: provar que é o marinheiro da fotografia “Kissing Sailor”.

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Renascença portuguesa: uma década de crescimento científico e cultural Os pós­‑graduados portugueses a viver na América do Norte juntaram­‑se no Canadá para reflectir sobre as mudanças dos últimos dez anos. POR ALEXANDRE SOARES*

(IBMC) a recordar o seu primeiro dia de trabalho em Portugal. Cláudio chegou ao país em Agosto de 1987. No final da conversa com o director do IPO de Lisboa, que o tinha contratado, o responsável disse­‑lhe: “Agora deve ir de férias. É Verão! Só no fim de Setembro é que se começa a trabalhar.” Cláudio, embora nascido no Chile, tinha uma formação anglo­

‑saxónica. Ficou em choque. “Portugal era assim”, diz. Muito mudou desde então. Percorrer os currículos dos associados da PAPS, que desde 1998 reúne a comunidade de pós­ ‑graduados portugueses nos EUA e no Canadá, é uma viagem aos melhores estabelecimentos de ensino e centros de investigação do mundo, como o MIT, a School of Visual Arts, Harvard, Smithsonian ou ???????????

O Sol já desaparecia do céu de Toronto, no Canadá, quando Cláudio Sunkel decidiu contar uma história. Era dia 14 de Abril e viviam­‑se os últimos momentos do XII Fórum da Portuguese­‑American Post­‑Graduate Society (PAPS). O tema do encontro – “Renascença portuguesa: uma década de crescimento científico e cultural” – levou o director do Instituto de Biologia Molecular e Celular do Porto

Encontro de pós-graduados portugueses a viver na América do Norte – os PAPS.

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Yale. Alguns deles ficam a trabalhar nos EUA ou partem para outros países europeus. Mas muitos regressam a Portugal. E contaminam o país com uma maneira diferente de fazer ciência e pensar a cultura. Durante dois dias, a porta do auditório do St. Michael’s College, na Universidade de Toronto, esteve fechada ao pessimismo. Nos últimos anos, Portugal tornou­‑se um país muito mais científico. É um facto. Várias estatísticas, lembradas no encontro, provam­‑no: em 1998 doutoravam­‑se 500 portugueses por ano, em 2010 foram 1600; a despesa do Orçamento do Estado dedicada à ciência em 2011 é o dobro do que era em 2005 e, no mesmo período de tempo, a despesa em Investigação e Desenvolvimento (I&D) passou de 0,81 por cento para 1,7 por cento (aproximando­ ‑se dos 1,9 por cento de média da União Europeia). O embaixador de Portugal no Canadá, Pedro Moitinho de Almeida, e o cônsul português em Toronto, Júlio Vilela, estiveram presentes. Logo na abertura, o embaixador disse que “a realização do fórum é um exemplo de que os portugueses podem fazer pós­‑graduações nas melhores universidades e trabalhar nas melhores multinacionais”. FINANCIAR A CIÊNCIA A primeira sessão foi dedicada ao tema “Inovação: passos portugueses num mundo global de ciência, engenharia e tecnologia”, moderada pelo jornalista Vasco Trigo. A abrir o painel, Cláudio Sunkel considerou ingénuos os que acreditam que “se pode sobreviver de contratos institucionais” e defendeu que “é preciso criar um ecossistema de desenvolvimento financeiro” no meio científico nacional. Mas, alertou, “só sendo excelentes em investigação é que o resto funciona”. João Xavier, investigador principal do Memorial Sloan­‑Kettering Cancer Center, em Nova Iorque, desenvolveu o tema do financiamento lembrando que 30 por cento do dinheiro que faz funcionar o seu centro vem de uma patente desenvolvida. Xavier considerou “desejável uma maior ligação entre a investigação e a indústria” e recordou que, “devido à crise, as universidades têm de abrir­‑se às empresas”. Questionado sobre o fim dos ministérios da Cultura e da Ciência, Sunkel admitiu tratar­‑se de “um problema sério” a nível político. “Não há ninguém sentado no conselho de ministros, o local onde se tomam as decisões, a representar quer a cultura, quer a ciência”, disse. Paralelo n.o 7

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Pedro Reis vence prémio de liderança Durante o XIII Fórum da PAPS, foi anuncia‑ do o vencedor do prémio PAPS­‑LBC Leadership de 2011. Pedro Reis, atualmen‑ te professor assistente no MIT, foi o esco‑ lhido pelo júri. O Leadership Award é uma iniciativa con‑ junta da PAPS com a Leadership Business Consulting e todos os anos distingue um projecto desenvolvido nos Estados Unidos por um membro da PAPS. O objectivo é distinguir projetos que “tiveram impacto

na área da ciência, empreendedorismo, negócio ou economia” e “motivar uma maior consciencialização em relação à excelência e liderança”. O vencedor deste ano, Pedro Reis, é professor assistente do MIT na área da engenharia mecânica e ambiental. O objec‑ tivo da sua investigação é “mudar o para‑ digma das instabilidades mecânicas, normalmente associadas às falhas em engenharia”.

INFORMAÇÃO EM REDE João Xavier disse que encontrou nos EUA tudo o que esperava – “recursos inigualáveis, a proximidade com os melhores especialistas, apresentações regulares dos líderes da investigação em várias áreas” – mas houve algo que o surpreendeu: a forma desprendida como se partilha informação. “Dei por mim a conhecer resultados de experiências em bares, de copo na mão. Encontros, por vezes, muito mais proveitosos do que um congresso ou ler um artigo.” A propósito, Cláudio lembrou o desabafo de um colega estrangeiro: no laboratório americano de onde viera, falavam de experiências na cantina; no bar do IBMC, falam de futebol. A segunda sessão foi dedicada ao tema “Empreendedorismo e liderança: adaptação a mercados em mudança que emergem de tecnologias disruptivas”.

painel, moderado pela professora Manuela Marujo, da Universidade de Toronto. Pedro Gadanho, desde Janeiro de 2012 curador do Departamento de Arquitectura Contemporânea do MOMA, em Nova Iorque, continuou com o mesmo tema. No início da sua apresentação, mostrou uma notícia do Arts & Letters Daily, o sítio de referência no mundo da arquitectura e arte, com este título: “Vencedor do Prémio Pritzer Souto Moura enfrenta desemprego?”. O curador considerou a história lamentável (“até porque quem enfrenta o desemprego são os seus 60 ou 70 colaboradores”) e disse que a peça realçava as dificuldades de comunicação num mundo mediatizado. Com o auxílio do jornalista Vasco Trigo (para compensar as ausências de Clara Pinto Correia e Manuel Lima, designer da Microsoft), os dois debateram a forma “como se compatibiliza a necessidade de comunicar com os pares e com o grande público”. Para terminar o encontro, Cláudio Sunkel fez uma última apresentação: “Mais de uma década de desenvolvimento científico em Portugal: o passado, o presente e um futuro incerto.” Uma estatística, das várias que apresentou, mostra que o investimento em ciência está a ter tradução directa na criação de riqueza para o país: o número de empresas que nascem nas universidades (spin­‑offs). De 2005 para 2011, esse valor passou de cinco para 106 na Universidade do Porto; de nove para 35 em Coimbra; de zero para 28 em Aveiro; de seis para 43 no Minho; e de zero para nove em Lisboa (no Instituto Superior Técnico foi de zero para 37).

COMUNICAR NO SÉCULO XXI Depois, chegou o caso de sucesso de Wilson Teixeira. Aos 40 anos, Teixeira é dono de várias companhias na área dos transportes, comunicação e tecnologias. Fundou a sua primeira empresa, a Able Translations, com apenas 21 anos e, admite, esteve dois anos e meio sem salário. Hoje, tem um número de colaboradores superior a 3500 que funcionam em mais de 100 idiomas. O sistema mais recente da empresa, e o que mostra com maior orgulho, é o Vicky, “um sistema revolucionário” de serviços de tradução em direto, através da internet. “Arte, cultura e comunicação: a crescente presença portuguesa no panorama cultural mundial” foi o tema do terceiro

* Jornalista freelancer

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Os negócios sociais Os negócios sociais são uma minoria de projectos sociais que têm condições para obter a sustentabilidade via geração de receita numa lógica de mercado. ???????????

POR GUSTAVO BRITO*

O “Linhas sobre Rodas” presta um serviço de costura com recolha e entrega ao domicílio que nasce da identificação conjunta de uma oportunidade comercial e de um desafio social ainda por resolver.

Os negócios sociais são uma minoria de projectos sociais que têm condições para obter a sustentabilidade via geração de receita numa lógica de mercado (isto é, colocando produtos e/ou serviços em mercados concorrenciais, em que vendem não por caridade mas porque os clientes neles reconhecem, de facto, utilidade), e segundo modelos em que a geração de receita está intimamente ligada ao impacto social que se pretende atingir. Os negócios sociais surgem por isso da identificação de uma oportunidade social

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(uma solução inovadora para um problema comunitário ainda por resolver) e de uma oportunidade comercial (uma oferta inovadora para uma necessidade de consumo não plenamente satisfeita), e em que esses dois elementos, o social e o comercial, nascem indissociáveis. Estas características fazem com que os negócios sociais possam ser geridos segundo os mesmos princípios e ferramentas dos negócios ditos “normais”, o que permite atingir elevados níveis de eficácia e eficiência social.

Num negócio social, porque a geração de receita está diretamente ligada ao impacto que se pretende atingir, a procura contínua pela venda e pelo crescimento comercial é um factor de criação de bem social. E porque é precisamente esse o impacto que se procura maximizar (e não o retorno dos accionistas), quando existir, o lucro deve ser reinvestido na prossecução desse objectivo. É portanto uma questão de prioridades: porque o negócio social tem uma missão primeiro que tudo social, o retorno do Paralelo n.o 7

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investidor está limitado. Isto é, não há lugar à distribuição de dividendos – apenas à devolução do capital investido, eventualmente a uma dada taxa de juro, alta o suficiente para tornar o investimento atractivo, mas limitada para não introduzir distorção de incentivos. Há boas razões para se conceberem negócios sociais capazes de “devolver” o dinheiro neles investido. Primeiro, porque se introduzirem distorções concorrências graves nos mercados em que operam, os negócios sociais podem acabar por causar dano social. Devem por isso competir em pé de igualdade com os outros negócios “ditos” normais, nomeadamente no que às obrigações legais e fiscais e à devolução de capital diz respeito. Segundo, porque a expectativa de devolução do investimento cria valor também do lado do financiador: reforça­‑lhe o incentivo para monitorizar o seu investimento mais de perto, e permite­‑lhe voltar a investir o mesmo dinheiro mais tarde noutro projecto, e assim perpetuar o impacto social, com recursos limitados. No contexto económico actual, e dadas as transformações sociais que se avizinham, esta migração de um modelo mecenático para um modelo de verdadeiro investimento social é da maior importância. Foi reconhecendo essa realidade que a Fundação Luso­‑Americana, a Fundação Calouste Gulbenkian e um particular (que pretende manter o anonimato) quiseram estar em Portugal no pelotão da frente desta nova forma de financiamento da inovação social, investindo na fase­‑piloto do “Linhas sobre Rodas”. “LINHAS SOBRE RODAS”: UM NEGÓCIO SOCIAL NO SECTOR DA COSTURA CO­‑CRIADO PELA FUNDAÇÃO EDP E PELA AGÊNCIA DE EMPREENDEDORES SOCIAIS O “Linhas sobre Rodas” presta um serviço de costura com recolha e entrega ao domicílio que nasce da identificação conjunta de uma oportunidade comercial e de um desafio social ainda por resolver. Por um lado, existe um segmento de profissionais muito activos que, devido às pressões crescentes sobre a vida familiar e tempo livre, têm dificuldades em encontrar soluções comerciais ajustadas às suas necessidades de confecção, arranjo e reparação de roupa. Em resultado, a roupa por arranjar acumula­‑se, entre outras tarefas domésticas para as quais se tem cada vez menos tempo. Paralelo n.o 7

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Por outro lado, exisNum negócio social, porque a geração tem em Portugal cosde receita está diretamente ligada tureiras experientes em situação económiao impacto que se pretende atingir, ca e social vulnerável. a procura contínua pela venda O seu desemprego ou condição laboral e pelo crescimento comercial é um precária resulta muifactor de criação de bem social. tas vezes, directa ou indirectamente, das transformações registadas no mercado têxtil nas últimas déca- ritório e na freguesia de Campolide. das. O objectivo desta primeira fase é validar Procura­‑se resolver estes dois problemas o mérito social e comercial da iniciativa. – a oferta sem clientes e os clientes sem Caso os resultados sejam positivos, será oferta – pondo as costureiras “sobre rodas”. alvo de um reforço de investimento que Ao deslocarem­‑se de mota ao local que for lhe permitirá operar em maior escala. mais conveniente ao cliente, as costureiras O crescimento a longo prazo do “Linhas acedem a um mercado que antes lhes esta- sobre Rodas” residirá no alargamento da va demasiado distante, e os clientes vêem base de costureiras recrutadas – através da o seu problema de conveniência resolvido. criação de pólos de trabalho noutros terO “Linhas sobre Rodas” foi lançado em ritórios em Lisboa – e na expansão para Novembro de 2012, numa versão­‑piloto outras cidades onde as mesmas necessie em escala reduzida, com operações dades estejam presentes. sediadas na Mouraria, em Lisboa, e um grupo de costureiras residentes nesse ter- * Responsável pelo Empreendedorismo Social /Fundação EDP

Ao deslocarem-se de mota ao local que for mais conveniente ao cliente, as costureiras acedem a um mercado que antes lhes estava demasiado distante, e os clientes vêem o seu problema de conveniência resolvido.

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A FLAD apoia o empreendedorismo e as startups POR CHARLES BUCHANAN*

Desde o final dos anos 1990 que a FLAD tem vindo a apoiar programas e acções para promover o empreendedorismo em Portugal, com parcerias, conferências e missões para os EUA. O objectivo é aumentar o empreendedorismo e promover a sua aprendizagem nas escolas secundárias portuguesas, universidades e na comunidade empresarial e criar novas empresas. Algumas acções foram direccionadas para jovens de forma a transmitir os conceitos de empreendedorismo e confiança, incentivar as jovens mentes; outras acções foram destinadas a universidades para ajudar na inovação e na criação de novas empresas. Fiquei convencido do grande potencial para Portugal e tenho lutado para manter a FLAD fortemente envolvida na promoção de iniciativas que conectem a inovação e o espírito empresarial. Existe em Portugal uma crescente consciencialização da importância da adopção de um pensamento empreendedor aplicado a todos os níveis de ensino, de forma a incorporar os seus conceitos e hábitos nos jovens, mas, neste campo, tem­‑se verificado que o país ainda não se encontra ao nível de outras sociedades europeias. É certo que Portugal tem feito grandes esforços para tornar a sua comunidade empresarial inovadora e competitiva. Assim, o ensino do empreendedorismo pode revelar-se uma jogada de mudança. Nestes anos de recessão Portugal precisa urgentemente de promover a inovação, novas startups, empresários, PME, exportações e, sobretudo, emprego para se tornar novamente competitivo e construir uma sociedade com espírito empreendedor. Os EUA têm criado uma cultura empresarial com uma vasta experiência em todos estes aspectos, por isso parece evidente que a FLAD deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para tirar vantagem das parcerias com os EUA. Isso criaria meios para trocas profissionais, novos contactos comerciais, desenvolvimento do mercado das exportações, incluindo os

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contactos críticos com capital de risco e capital de investimento em ambos os países. Portugal tem dado passos importantes, começando com a criação de uma Secretaria de Estado para o Empreendedorismo, Competitividade e Inovação. Durante os anos de 2012 e 2013, Portugal tem alargado o sistema de apoio incubador e “acelerador” aos novos empresários e tem agora um “ecossistema” de apoio para startups de sucesso. Como os EUA são vistos, há muito tempo, como o país mais forte a nível do empreendedorismo, desenvolvimento e educação, encontrei, ao longo destes anos, muitos parceiros para que a FLAD possa construir uma forte cooperação transatlântica. Por exemplo, organizámos várias reuniões e encontros com os responsáveis superiores da Fundação Kaufmann, o maior activista nos EUA no estudo e na promoção da educação para o empreendedorismo. Também convidámos portugueses a visitar a Fundação Kaufmann como a APBA – Associação Portuguesa de Business Angels que também é líder na organização da "Semana do Empreendedorismo" que se realiza todos os anos em Novembro em Portugal. É um evento global, que consiste numa semana durante a qual decorrem inúmeras iniciativas de ensino do empreendedorismo em Portugal, incluindo o conhecido Silicon Valley Comes to Lisbon, apoiado também pela FLAD. A FLAD também financiou durante vários anos a Junior Achievement, uma ONG americana internacional dedicada ao ensino de conceitos de empreendedorismo nas escolas secundárias. Este programa continua a ter um grande sucesso no que respeita ao desenvolvimento de aptidões, iniciativa e confiança nos jovens estudantes do 10.º ao 12.º ano. Relativamente às universidades, há cerca de dez anos, a FLAD iniciou uma parceria com a COTEC e a North Carolina State University, para realizar, em Lisboa e no Porto, programas com a duração de três meses Paralelo n.o 7

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Desde o final dos anos 1990 que a FLAD tem vindo a apoiar programas e acções para promover o empreendedorismo em Portugal, com parcerias, conferências e missões para os EUA.

para analisar e seleccionar projectos aliciantes de investigação tecnológica de elevado potencial de crescimento. Este programa foi designado COHITEC e tornou­‑se num dos programas mais emblemáticos da FLAD, continuando até ao presente, sob a liderança e experiência de Pedro Vilarinho. Este modelo único de descoberta e promoção de melhores tecnologias tem­ ‑se revelado extremamente bem­‑sucedido e obteve resultados que se traduziram numa quantidade de propostas de investimento de alto nível. Passemos agora a alguma história menos conhecida. Durante muitos anos, a FLAD foi um parceiro importante do EFC – European Foundation Centre (Centro Europeu de Fundações) na área das relações transatlânticas e no âmbito do programa de apoio à sociedade civil dos cinco países do Norte de África. Em 2005, a FLAD organizou em Lisboa um Fórum para os Líderes da Educação do Norte de África, e outro em 2006 com o US Council for Foreign Relations (Conselho Norte-Americano de Relações Externas), que teve lugar em Marrocos com o objectivo de comparar, na Universidade de Fez, os sistemas Paralelo n.o 7

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de educação e reformas para a criação de emprego olhando para o modelo da União Europeia (UE). Estas iniciativas culminaram na realização de um encontro, em 2007 na FLAD, com vista à promoção do empreendedorismo e de novas redes de contacto entre líderes de programas de empreendedorismo portugueses e seus homólogos marroquinos. Alguns anos mais tarde, a FLAD organizou, em colaboração com o Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, a Embaixada de Marrocos em Portugal e a APME – Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias, um Fór um para Mulheres Empreendedoras no qual participaram líderes marroquinos e americanos. Em 2010, o presidente da Comissão de Trabalho e Segurança Social na Assembleia da República, António Ramos Preto, organizou, juntamente com a FLAD e o PEEP – Plataforma para a Educação do Empreendedorismo em Portugal, um importante fórum na A. República baseado no tema do empreendedorismo na educação, com participantes dos EUA e de outros países da UE, com o objectivo de apoiar

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SOCIEDADE

Agora é o momento de Portugal tirar proveito das oportunidades e recuperar o tempo perdido. A juventude deve ser ajudada a liderar o caminho. A FLAD deve estar na vanguarda deste processo.

os esforços para o desenvolvimento de uma estratégia nacional para a educação do empreendedorismo, conforme recomendado pela Comissão Europeia. Este fórum despertou muito interesse e vários parceiros juntaram­‑se à FLAD para começar a trabalhar numa estratégia de empreendedorismo nacional. Simultaneamente, a FLAD e a Fundação Gulbenkian uniram forças com o Ministério da Educação para financiar uma avaliação de vários programas de aprendizagem do empreendedorismo que decorriam nas escolas secundárias, e para determinar os seus impactos. A avaliação do Programa Nacional de Empreendedorismo e Educação (PNEE) chegou à conclusão que os efeitos tinham sido excelentes e que as escolas tinham ficado satisfeitas com os resultados. Mais tarde, a FLAD apoiou os esforços para a criação da Plataforma para o Ensino do Empreendedorismo em Portugal (PEEP), uma associação sem fins lucrativos, composta por pessoas, organizações educacionais, empresas, entidades governamentais e organizações da sociedade civil. A missão da PEEP é ajudar no desenvolvimento e na implementação do programa nacional integrado de educação para o empreendedorismo e formação através de projectos de pesquisa, educação, formação e desenvolvimento de políticas públicas. A PEEP reúne entidades nacionais como a FLAD, Universidade de Lisboa, Universidade Católica do Porto, Universidade do Algarve e ISCTE­‑Audax – Centro de Investigação e Apoio ao Empreendedorismo e Empresas Familiares. Os parceiros dos EUA incluem a Universidade de Berkeley, Califórnia, o Centro de Empreendedorismo da Universidade do Colorado, e o Consórcio de Universidades Americanas para o Empreendedorismo. Em 2012, a PEEP ganhou vários projectos de financiamento da Comissão Europeia para apoiar actividades em Portugal. Com os recursos orçamentais da FLAD em rápido declínio nos últimos três anos e as suas prioridades direccionadas para outras áreas, o programa de desenvolvimento do empreendedorismo da FLAD recebeu apoio limitado. No entanto, nos últimos cinco anos, em Portugal, houve uma necessidade crescente de especialistas em startups, “mentores” e parcerias com centros de inovação dos EUA como o

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Silicon Valley, à medida que cada vez mais programas de empreendedorismo foram criados por ONG para promover startups e novas empresas. A recessão fechou muitas PME e criou uma elevada taxa de desemprego, mas é evidente que o futuro de Portugal depende da sua recuperação da recessão, do seu retorno para uma economia competitiva e da criação de oportunidades de emprego. Tudo isto assenta no crescimento de práticas inovadoras, na criação de novas empresas, de startups, no crescimento das PME, do capital de risco e das exportações. Em 2011 e 2012, a FLAD associou-se ao BES – Banco Espírito Santo no financiamento de um programa competitivo organizado pela Leadership Consulting em Portugal que visa seleccionar duas das melhores empresas tecnológicas para uma visita a Silicon Valley durante três meses com o objectivo de conhecer a sua rede de empresas e estabelecer novos contactos. Este é um excelente exemplo para proporcionar a empresas portuguesas a oportunidade de contactarem parceiros nos EUA, adquirindo novos conhecimentos em matéria de inovação e no acesso ao financiamento de capital de risco. Portugal não é diferente do resto da UE e dos EUA. Todos estão empenhados em criar emprego e novas empresas, mas alguns têm menos capacidades para o fazer. Está tudo na mente e na intuição das pessoas e muito poucos portugueses têm sido expostos a ambientes inovadores, formados para conceber novas ideias ou compartilhá­‑las com colegas. Acredito que os EUA estão, na generalidade, mais qualificados nessas práticas. Agora é o momento de Portugal tirar proveito das oportunidades e recuperar o tempo perdido. A juventude deve ser ajudada a liderar o caminho. A FLAD deve estar na vanguarda deste processo com um programa de financiamento sólido e abrangente para a formação de empresários portugueses e iniciativas para as startups. É esperado que a FLAD pondere o aumento deste investimento inicial em 2013, mas sendo um investimento, este será apenas recuperado no futuro. O tempo assim o dirá. * Administrador da FLAD Paralelo n.o 7

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28 entrevistas a luso-descendentes nos EUA A vida e a história de 28 luso­‑descendentes nos Estados Unidos da América contadas por Margarida Marante, no último trabalho antes do seu falecimento, e fotografadas por Rui Ochoa. Um livro de edição cuidada, prova material da vital ponte humana que reduz a distância entre os dois lados do Atlântico. Contribuir para a imagem dos portugueses, do País e da da língua portuguesa na América foram objectivos que estiveram na base do livro de Margarida Marante e Rui Ochoa, Portugueses da América, financiado pela FLAD e publicado pela Tinta­‑da­‑China, nas bancas desde o fim de 2012. O livro foi o último grande empreendimento da jornalista Margarida Marante, antes de falecer, para tornar públicos histórias e percursos de várias personalidades de origem ou nacionalidade portuguesa que se distinguiram em múltiplos campos de actividade, desde a política, ao meio académico, à investigação científica, ou ao sector empresarial. Foram entrevistados 28 luso­‑descendentes, testemunhas da história, como diz António Vitorino no prefácio do livro, para duas leituras: “uma mais imediata, a partir das narrativas individuais dos luso­‑descendentes nos Estados Unidos e outra identificando o fio condutor (per)seguido pela autora, Margarida Marante, sobre as características da diáspora lusófona no grande continente da América do Norte”. Vitorino acrescenta no prefácio que “através de histórias e reflexões pessoais, Margarida Marante coloca­‑nos em cheio na essência do fenómeno migratório, que é a dimensão humana dos seus protagonistas”. “Este livro resulta de uma viagem, longa em termos geográficos, intensa em termos de experiências de vida” diz a autora, acompanhada pelo fotojornalista Rui Ochoa que, com as suas imagens, completa este trabalho, assim transformado, segundo as palavras do prefaciador, num “retrato vivo de uma inalienável dimensão da nossa própria identidade como povo”. Paralelo n.o 7

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Através de histórias e reflexões pessoais, Margarida Marante coloca‑nos em cheio na essência do fenómeno migratório, que é a dimensão humana dos seus António Vitorino protagonistas.

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ANTÓNIO FRIAS Empresário

“A quinta maior empresa de betão dos EUA em 2009? António Frias diz que sim, que foi uma revista de engenharia que caucionou a classificação (da sua empresa).” Margarida Marante

Uma viagem deslumbrante por entre pequenas estradas bordejadas de árvores que ostentavam as célebres cores do “Indian Sommer”, até Hudson, Massachusetts. António Frias esperava-me com o seu sorriso e a sua boa disposição para ser fotografado a preceito. Rui Ochoa

FRANK DE SOUSA Professor universitário

“ […] é um homem de fé, perseverança e uma habilidade mágica para contar as muitas histórias que marcaram a sua infância na Fajã dos Vimes, na ilha de S. Jorge, e a sua partida para os Estados Unidos.” Margarida Marante

Vive num local onde as referências aos Açores são diversas, O mar e o ambiente de pesca ficam-lhe quase na soleira da porta. Frank de Sousa recebeu-me na sua casa e, ali, juntamente com a sua família, pudemos conversar e fotografar numa sessão que durou horas. Rui Ochoa

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CRAIG DE MELLO Premio Nobel da Medicina

“[…] emociona-se quando fala da filha, diabética do tipo 2, a quem injecta diariamente insulina. Foi seguramente a pensar nela – e em muitos milhões de pessoas com doenças incuráveis – que trabalho durante dez anos até descobrir uma espécie de ‘motor de busca’ […] do genoma humano.” Margarida Marante

Encontrei-o na Universidade de Medicina de Massachusetts numa manhã chuvosa. Afável, prestou-se às fotografias com disponibilidade, não sem que antes me oferecesse um cálice de Porto. Rui Ochoa

DOMITÍLIA DOS SANTOS Gestora de fortunas

“Corre maratonas como correu a vida toda para contrariar um destino que, na melhor das hipóteses, não lhe permitiria ir além de escriturária.” Margarida Marante

Domitília foi fotografada primeiro no seu gabinete e no dia seguinte nas salas e jardim do MOMA – Museu de Arte Moderna em Nova Iorque. Menos informal, as fotografias da segunda sessão foram as escolhidas por mim. Rui Ochoa

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ANTÓNIO HOMEM Galerista

“Não tem idade definida, moreno, alto, magro, um esteta que se pressente à distância.” Margarida Marante

António Homem esperava-me na sua galeria Sonnabend localizada na zona sul de Nova Iorque. Foi uma sessão fácil, pois, como homem das artes, facilitou-me a missão, sugerindo-me os melhores locais para tomada de imagens. Rui Ochoa

RIGO (Ricardo Gouveia) Artista plástico

“[…] é um activista, um idealista no sentido mais literal do termo, de alma revolucionária e coração à esquerda.” Margarida Marante

Comecei a fotografar Rigo logo no primeiro dia em que chegamos a São Francisco. Foi num pequeno bar do bas-fond da cidade que aí o encontrei convivendo com porto-riquenhos, cubanos e artistas de outras nacionalidades em particular da América do Sul. Rui Ochoa

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DONZELINA BARROSO Gestora de organizações não lucrativas

“Finalmente, num magnífico restaurante mexicano de Manhattan, fiquei a conhecer bem a acutilância de espírito desta nova-iorquina, moderna, muito aberta a novas tendências […].” Margarida Marante

O seu escritório fica junto ao célebre edifício nova-iorquino Rockefeller Center e é junto à sua famosa pista de patinagem que a fotografo. Foi uma sessão rápida e bem-disposta. Rui Ochoa

DANIELA RUAH Actriz

“As novelas portuguesas da TVI foram o pretexto para o despertar de um sonho muito mais exigente. Daniela Ruah sabia que era na representação que o seu futuro se jogava, e no deslumbramento da adolescência estabeleceu como objectivo a conquista de um Óscar de Hollywood.” Margarida Marante

O mau tempo não deu tréguas em Los Angeles e o dia em que fizemos a sessão de fotografias num restaurante perto de Hollywood, não foi excepção. Quando cheguei já me esperava na companhia da cadela Roxy. Rui Ochoa

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O fado É hoje considerado Património Oral e Imaterial da Humanidade mas nasceu como canção menor, património de marginais e boémios que ecoavam pelas ruas da Mouraria a sua triste vida. Mas está o destino traçado à nascença, ou pode um homem mudar o seu próprio fado? POR SÓNIA ANDRADE*

Barack Obama foi o primeiro afro­‑americano a ser eleito Presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Traçou o seu próprio destino, e abriu portas à concretização do que até aí parecia um sonho. No cartoon de André Carrilho o Presidente surge inserido no contexto do famoso quadro do pintor português José Malhoa intitulado O Fado. “Inserir Obama no quadro do Malhoa pareceu­‑me uma boa maneira de juntar dois mundos, a política internacional com o povo português”, diz o ilustrador. O cartoon levanta então uma pergunta: O que é que o destino de Obama tem a ver com O Fado pintado por José Malhoa? “Yes, we can” foi o slogan da campanha do 44.º Presidente dos EUA, com a mensagem de que as pessoas querendo, e unidas, são capazes de mudar a sua vida ou, até, o mundo. Querer é poder. Na tomada de posse em 2009, Obama segurou a Bíblia de Abraham Lincoln (1809 ‑1865), o 16.° Presidente dos EUA que liderou o país entre 1861 e 1865, durante a Guerra Civil Americana. Conseguiu preservar a união do país e abolir a escravatura, o que considerou ser “Um novo nascimento da liberdade”. Lincoln tornou­‑se um Presidente icónico mas teve como triste fado ser o primeiro presidente americano a morrer assassinado. E o novo nascimento da liberdade, não foi imediato, a escravatura acabou mas a segregação racial não. “WE CANNOT TURN BACK” Nos anos 60, no século XX, surgiu um homem que não se resignou ao destino de, por ser negro, ser discriminado. Em defesa da igualdade e liberdade, Martin Luther King (1929­‑1968) liderou um movimento pacífico, apelando à não­ ‑violência e ao amor ao próximo, reivindicando direitos civis para todos, indepen-

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“Inserir Obama no quadro do Malhoa pareceu-me uma boa maneira de juntar dois mundos, a política internacional com o povo português”, comentou o ilustrador André Carrilho. Paralelo n.o 7

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dentemente da sua cor. “I have a dream” é um dos mais fortes discursos da História, feito a partir dos degraus do Lincoln Memorial em Washington DC, em 1963, frente a uma plateia com mais de 200 mil pessoas. Foi um momento decisivo na história do Movimento Americano pelos Direitos Civis. “We cannot walk alone. […] We cannot turn back”, afirmou Luther King. Em 1964, recebeu o Prémio Nobel da Paz pelo combate à desigualdade racial através da não­‑violência. “Tenho o sonho de que os meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo de seu carácter.” A pressão do movimento de Martin Luther King acabou por gerar frutos e Lyndon B. Johnson, sucessor do Presidente John F. Kennedy (que havia sido assassinado em Dallas), conseguiu que o “Civil Rights Act of 1964” (Acto dos Direitos Civis de 1964) fosse aprovado pelo Congresso, seguido do “1965 Voting Rights Act” (Acto dos Direitos do Voto de 1965). Questionado sobre o tempo que faltaria para um negro chegar à presidência dos EUA, Luther King terá feito uma estimativa de vinte e cinco anos, ou seja, em 1990. Barack Obama chegou à Casa Branca dezanove anos depois da estimativa de King, que não viveu para ver esse dia, pois, tal como Lincoln, foi assassinado. “YES WE CAN” A luta pelos direitos civis, a paz, a igualdade e a dignidade humana foram as principais bandeiras de Obama. Uma das suas mais importantes vitórias foi o programa de serviço nacional de saúde ao alcance de todos os cidadãos, que ficou conhecido por Obamacare. Em defesa da paz retirou, como prometera, as tropas norte­ ‑americanas do Iraque, e tem por objecParalelo n.o 7

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como uma canção menor, mas também uma classe baixa marginalizada da sociedade portuguesa que ganha dignidade na tela. O reconhecimento da obra veio primeiro do exterior. O quadro foi mal recebido pela crítica portuguesa, precisamente por retratar uma realidade e uma música “menor”. Foi exposto pela primeira vez em 1910 na Exposição Internacional de Arte do Centenário da República da Argentina, em Buenos Aires, onde ganhou a Medalha de Ouro. Dois anos depois, O Fado foi apresentado em Portugal, na cidade do Porto. Daí seguiu para o Salão de Paris e, posteriormente, para Liverpool. Em 1915 obteve o Grand Prize, na Panama – Pacific International Exposition, realizada em São Francisco, na abertura do canal do Panamá. Finalmente, em 1917, foi apresentado em Lisboa na 14.ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas­‑Artes. A autarquia adquiriu a obra que foi colocada no Salão Nobre dos Paços do Concelho, depois integrada na exposição permanente do Museu da Cidade, estando, de momento, no Museu do Fado. O fado, entretanto, ganhou estatuto e foi classificado, pela Unesco, Património Oral e Imaterial da Humanidade em 2011. Lincoln, Luther King, Obama, Malhoa, Amâncio e Adelaide são exemplos de que um homem ou mulher livre, igual ao próximo, digno, pode mudar o seu destino e o mundo para melhor, independentemente de ter nascido em Honolulu, Atlanta, Hodgenville, nas Caldas da Rainha ou na Mouraria.

Lincoln, Luther King, Obama, Malhoa, Amâncio e Adelaide são exemplos de que um homem ou mulher livre, igual ao próximo, digno, pode mudar o seu destino e o mundo para melhor.

tivo retirar até 2014 a presença militar no Afeganistão. Tal como Martin Luther King, foi agraciado com o Nobel da Paz em 2009, e obteve, desde o primeiro mandato, o apoio da Europa. Conseguiu ser reeleito em 2012. Na tomada de posse segurou na mão as bíblias de Abraham Lincoln e de Luther King e assumiu a regulação da imigração, a igualdade de direitos civis para os homossexuais e o fim do acesso facilitado e generalizado da população às armas. Obama tem quatro anos para provar que sim, que pode traçar um destino diferente para a América e para o mundo. Poderá, é certo, fracassar e acabar o seu mandato a cantar um fado menor. Mas, tal como Lincoln e Luther King, já mudou o destino dos que eram e são marginalizados. Também José Malhoa conseguiu tal façanha com o quadro O Fado. Como? Em 1910 o pintor convenceu Amâncio e a sua companheira Adelaide “da facada” (conhecida assim por ter uma cicatriz na face esquerda), dois fadistas do bairro da Mouraria, onde terá nascido o fado, a servirem de modelo para o quadro. Nesse tempo fadista era sinónimo de marginal. Malhoa pintou os dois modelos no seu ambiente, numa casa humilde na Rua do Capelão, na Mouraria, um bairro que ainda hoje é reduto de imigrantes e desfavorecidos. O quadro ilustra de forma expressionista, não apenas o fado, tido

* Jornalista freelancer

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Disquiet / um desassossego literário luso-americano Pelo segundo ano consecutivo, o projecto “Disquiet” instalou-se em Lisboa, reunindo escritores portugueses, americanos e luso-americanos, com o objectivo de promover a cultura literária e o intercâmbio cultural. Uma iniciativa da Dzanc Books, uma editora americana sem fins lucrativos, que conta em Portugal com o apoio do Centro Nacional de Cultura, da Universidade Nova de Lisboa, da Universidade de Lisboa e da FLAD. POR CLARA PINTO CALDEIRA*

A primeira vez que tantos escritores luso-americanos se conheceram foi no “Disquiet”.

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UMA DUPLA À PROCURA DO MUNDO tores, apercebeu­‑se da vitalidade das Jeff Parker, 38 anos, e Scott Laughlin, 42, novas gerações e viu a luz da cidade. partilham a aventura da Dzanc Books e Ao voltar, falou com Jeff, e concordaram são a alma de “Disquiet”. Ambos editores, que Lisboa seria o próximo destino de Jeff é também professor de Escrita um programa literário internacional. Criativa na Universidade de Tampa e Scott Com as parcerias estabelecidas, 2011 foi é professor de Literatura num liceu o ano de arranque. de São Francisco. Encontrámo­‑los em Lisboa, no final da segunda edição deste programa. A pergunta impõe­‑se: porquê “Disquiet”? Palavra inglesa para “desasA ideia de “desassossegar” sossego”, é em priuma comunidade desligada meiro lugar uma homenagem ao livro – escritores americanos de Bernardo Soares, e portugueses e luso-descendentes um dos heterónimos de Pessoa. Mas é – surgiu naturalmente. mais do que isso: traduz o espírito da iniciativa de Jeff e Scott, que acreditam que temos de sair da nossa rua para encontrar o mundo, descobrir o desco- JUNTAR PARA MULTIPLICAR nhecido e, na quietude da leitura, encon- “A primeira vez que tantos escritores luso­ trar a inquietação da escrita. ‑americanos se conheceram foi no A ideia de “desassossegar” uma comu- ‘Disquiet’, o ano passado”, diz Jeff. Oona nidade desligada – escritores americanos Patrick, foi uma das participantes e voltou e portugueses e luso­‑descendentes – sur- este ano. Luso­‑descendente de quinta geragiu naturalmente. Jeff, neto de um ção, Oona cresceu em Provincetown, “uma lisboeta, já tinha tido a experiência cidade muito portuguesa”, com cerca de de dirigir, entre 2000 e 2008, a progra- três mil habitantes. Desde cedo que tentou mação de um Seminário Literário descobrir mais sobre as suas origens, e fê­‑lo Internacional em São Petersburgo que através da escrita e da leitura: Saramago, pretendia fazer a ponte entre a Rússia e Lobo Antunes, sempre estiveram entre as a América, onde conheceu Scott. Scott, suas preferências, e agora acrescentou por sua vez, descobriu Portugal na Gonçalo M. Tavares. Escritores luso­ Universidade de Boston, quando foi ‑descendentes, só conhecia Frank Gaspar e aluno de Alberto de Lacerda. Pela mão Katherine Vaz. Até encontrar Jeff em São do poeta que nasceu em Moçambique, Petersburgo e perceber que havia uma conheceu Pessoa, numa edição antiga a enorme comunidade invisível. Hoje tamdesfazer­‑se, e muitos outros autores por- bém integra a Dzanca Books e a experiêntugueses. Foi também através de Alberto ca, repetida, do “Disquiet”, em Lisboa, de Lacerda que Scott se encontrou pes- mudou a sua vida: “Apercebi­‑me de que soalmente com Paula Rego, de quem havia muita gente com histórias semelhanguarda dois desenhos. “Um luxo, sim, tes, quando comecei a escrever pensei que eu sei!”, diz, grato pela influência de era a única. Percebi que a experiência da Alberto de Lacerda na sua vida. “Foi uma discriminação sobre as origens portuguesas, descoberta de alguém com tantas ligações o esquecimento, a prevalência dos estereóe com uma obra fascinante, achei que tipos, o sentimento de isolamento aconteestava a encontrar o mundo.” cia também a outras pessoas, noutros locais Quando Alberto de Lacerda morreu, em e comunidades.” As suas origens estavam 2007, Scott acompanhou o processo presentes na sua vida, mas eram desconhecomplexo de trazer para Lisboa o espólio cidas, e isso entristecia­‑a, sobretudo porque imenso no apartamento londrino do as pessoas que sabiam as histórias estavam escritor e professor – 150 mil livros que a morrer. foram entregues à Fundação Mário Com obra publicada no género creative Soares. Em Lisboa, Scott conheceu escri- non ficion, ou seja, narrativas a partir da

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realidade e da memória, Oona Patrick identifica uma mudança na sua escrita, depois do “Disquiet”: “Dantes escrevia sobre Provence Town, agora escrevo sobre Portugal.” Segundo Jeff, que se orgulha de reunir uma enorme comunidade com tanto em comum, as achas que lançam fazem fogueiras, sobre as quais já não têm responsabilidade: “Apenas fazemos os contactos e trazemo­‑los aqui. Os resultados? Quatro deles têm livros a sair, nos Estados Unidos.” PORTUGAL – PERSONAGEM Na segunda edição do “Disquiet”, que decorreu entre 1 e 14 de Julho de 2012, vieram dos Estados Unidos 50 jovens escritores e dez escritores consagrados, entre os quais Kim Addonizio, Frank Sousa, Josip Novakovich, Deb Olin Unferth, Robert Wilson e Frank Gaspar. Aqui, reuniram­‑se em tertúlias, leituras, visitas por Lisboa e Cascais, com Rui Zink, Onésimo Teotónio de Almeida, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, Patrícia Reis e Patrícia Portela, entre outros. Um encontro com efeitos profundos numa cultura hegemónica como a americana, segundo Scott: “Viver nos Estados Unidos, numa cultura que, para o bem ou para o mal, é dominante, e onde há forças dominantes no mercado editorial que ditam o gosto de leitura, isso cria um isolamento, talvez oiçam falar de escritores franceses, ingleses, espanhóis, mas há todo um mundo literário aqui que não é só do passado.” * Jornalista freelancer

Efeitos colaterais do “Disquiet” Alguns dos partipantes da primeira edição do “Disquiet” criaram um grupo no Facebook chamado Presence/Presença ( h t t p : / / w w w. f a c e b o o k . c o m / g r o u p s / PresencePresenca/), que funciona como uma rede de apoio para oportunidades de publicação e participação em eventos, nomeadamente a participação significativa deste grupo na conferência da Association of Writers and Writings Programmes (AWP) que reúne mais de dez mil pessoas.

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Descobrir caminhos Promovido pelo Conselho Nacional de Educação, com o apoio da FLAD, surgiu um projecto que pôs alunos e professores a palmilhar quilómetros de trilhos da paisagem açoriana. Ferramentas: olho vivo, pé ligeiro e... uma máquina fotográfica. POR CARLA MAIA DE ALMEIDA*

As riquezas naturais dos Açores não se revelam a turistas e caminhantes apressados. Muitos desconhecem, por exemplo, que a madeira do cedro­‑do­‑mato, árvore dominante em altitudes acima dos 500 metros, foi em tempos usada para fabricar galochas, colheres e fechaduras, entre outros fins. Que, com a baga

de louro, cujas folhas andam sempre nas nossas cozinhas, se apurou óleo destinado à iluminação e a tratamentos medicinais. Que as sebes de azevinho, características do Natal, ainda abrigam pastores e servem de alimento ao gado. Que a uva­‑da­‑serra se presta à confecção de compotas, aguardente e vinagre.

Desenvolver nos jovens, bem como na escola, condições para que as pessoas adquiram uma identidade regional Ana Maria Bettencourt e local.

As riquezas naturais dos Açores reveladas pelo projecto “Cidadania e Sustentabilidades para o Século XXI. Caminhos para Uma Comunidade Sustentável nos Açores.”

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São apenas alguns exemplos dos saberes guardados pela vegetação endémica dos Açores, entre as mais exuberantes do território português. Qual o melhor lugar para se conhecer esta extraordinária biodiversidade? Na própria natureza, é claro. Foi o que fizeram mais de quatro centenas de alunos de escolas do ensino básico e secundário da Terceira, Faial e Pico, apostados em percorrer alguns dos trilhos mais bonitos das suas ilhas, com a ajuda dos professores e a máquina fotográfica a tiracolo. Este ano lectivo, outros colegas das escolas de São Miguel seguir­‑lhes­‑ão o exemplo. O projecto “Cidadania e Sustentabilidades para o Século XXI. Caminhos para Uma Comunidade Sustentável nos Açores” foi iniciado em 2009, sob a inspiração da Unesco e da sua perspectiva educativa para o desenvolvimento sustentável. A valorização do património herdado, a promoção de estilos de vida saudáveis e a formação de cidadãos mais implicados na defesa do planeta são alguns dos objectivos, a que se junta um outro: “Desenvolver nos jovens, bem como na escola, condições para que as pessoas adquiram uma identidade regional e local.” Palavras de Ana Maria Bettencourt, professora e presidente do Conselho Nacional de Educação, que promoveu e planificou o projecto, juntamente com Manuel Gomes, assessor deste organismo. Em termos de experiência pedagógica e educativa, trata­‑se de algo inédito a nível nacional: “Este projecto surge no Currículo Regional do Ensino Básico, o que é uma inovação. A ideia é que possa ser um instrumento para que as escolas da Região Autónoma encontrem as suas estratégias de educação para o desenvolvimento sustentável e para o reforço da identidade regional.” “Normalmente”, prossegue Ana Maria Bettencourt, em entrevista à Paralelo, “a escola está muito fechada ao meio e tem pouco espaço, fora do Currículo Nacional, para tudo o que não seja a aprendizagem intelectual. O que nós fizemos foi uma pesquisa sobre como se pode trabalhar com os professores e outras entidades que produzem vários tipos de conhecimento”. Assim, além dos alunos e professores de diversas disciplinas, o projecto integrou formadores e consultores, bem como trinta parceiros que incluem instituições governamentais e não­‑governamentais – entre as quais a Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento e a Agência Ciência Viva. Paralelo n.o 7

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Neste Verão, o Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, acolheu a exposição itinerante “no terreno.açores”.

Em termos de experiência pedagógica e educativa, trata-se de algo inédito a nível nacional.

Neste Verão, o Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, acolheu a exposição itinerante “no terreno.açores”, que registou alguns dos momentos mais significativos do trabalho de campo. A fotografia foi o instrumento privilegiado para “construir novos olhares” sobre as paisagens, captando nuances de luz, cor e texturas que escapam a um olhar mais superficial. Para isso, foi indispensável o contributo de Rita Castro Neves, fotógrafa e professora de fotografia, que ministrou o seu saber junto de alunos e professores em formações que acompanharam todo o desenvolvimento do projecto. “As crianças adoraram o desafio de descobrir caminhos e houve logo um grande entusiasmo”, afirma Ana Maria Bettencourt. “Outro aspecto muito importante foi os

alunos irem às assembleias municipais e fazerem uma intervenção enquanto cidadãos, propondo a classificação de trilhos ou a melhoria de certos aspectos.” Esse envolvimento ficou bem explícito nas chamadas “autobiografias ambientais”, em que os alunos foram convidados a descrever a sua relação pessoal com os lugares, as paisagens e o ambiente em que cresceram. “O local onde eu fui deita fumo e havia algumas poças de lama. Eu é que dei uma ideia para arranjar maneira de passar por cima da lama”, escreveu um aluno do 6.º ano. Outras boas ideias esperam para ser descobertas e partilhadas entre todos. Sempre com um olhar no terreno. * Jornalista freelancer

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A família portuguesa da Brown University POR SARAH ASHBY*

Para um transeunte que passeie pelas avenidas folhosas de East Side Providence a casa localizada em George Street 159 é necessariamente motivo para uma pausa. Conhecida como a Casa Meiklejohn, sede do venerável Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, esta casa colonial afasta-se timidamente da rua, com a sua fachada em tijolo vermelho coberta por sinuosas heras. O exterior modesto contradiz a função da Casa Meiklejohn – basta subir as escadas de pedra e atravessar o limiar do edifício para entrar numa atmosfera vibrante, onde uma cacofonia de português, falado com variadas entoações e cadências, se mistura com risos animados e ecoa nas escadas de madeira. É um microcosmo da cultura lusófona no meio de uma universidade americana, onde as estantes exibem nomes de gigantes literários provenientes de ambos os lados do Atlântico e onde se encontram frequentemente pastéis de nata, juntamente com outras confecções pecaminosas de uma padaria portuguesa, na sala de conferências. Como estudante do primeiro ano no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, esta casa animada tornou-se o verdadeiro centro da minha carreira estudantil, ainda no início; o portal para um nicho do mundo académico que rapidamente se tornou o meu próprio. Sou incapaz de identificar em que momento da vida decidi dedicar a minha educação aos estudos lusófonos. Longe de ser uma decisão premeditada, esta nova fase parecia-me o culminar lógico de um encanto pessoal com tudo o que é “luso’’. Eu tinha crescido a ouvir os meus pais contarem as suas memórias afectuosas sobre os seus anos enquanto jovem casal na ilha Terceira, e passei uma parte da minha própria adolescência nessa mesma ilha, a estabelecer raízes no ambiente de um crescimento excepcionalmente itinerante. Após a minha forma-

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tura em Middlebury College e ainda intimamente envolvida no mundo equestre português, também colaborava em projectos de pesquisa sobre a linguística portuguesa, trabalhava como tradutora de português e espanhol para uma empresa de software, e tinha espontaneamente decidido viver tanto tempo quanto possível com um visto de viagem no Sul do Brasil. Quando decidi traduzir esta minha paixão num grau de ensino superior, não havia dúvida onde iria apresentar a minha candidatura. Como estudante prospectiva, visitei o website da Brown University tão frequentemente que definitivamente o tornei a minha página inicial. Li e reli as biografias do corpo docente do Departamento – Dr. Luiz Valente, Dr. Nelson Vieira, Dr. Onésimo Almeida, Dr.ª Leonor Simas-Almeida e Dr.ª Patrícia Sobral – tantas vezes, que as fotos acompanhando as suas biografias adquiriram certa familiaridade reconfortante, como se fossem fotos de velhos amigos. Luiz Valente, chefe do Departamento, costuma dizer que o seu departamento é como uma família. E de facto somos: um pequeno grupo de estudiosos de diversas origens, com um interesse académico unificador que nos permite fazer amizades e estabelecer colaborações profundas. Os meus colegas e eu somos constantemente desafiados nos nossos cursos com Luiz, Nelson, Onésimo e Leonor a pensar profunda e criticamente, e a emular a qualidade da sua erudição notável enquanto desenvolvemos os nossos próprios nichos de investigação. Quando reflicto no meu primeiro ano no programa de pós-graduação, lembro-me daquilo que Eça de Queirós escreveu uma vez sobre o seu amigo e contemporâneo Antero de Quental: “lia muito, lia sempre e lia tudo’’. Patrícia Sobral preside aos cursos de Português para o programa de graduação, os quais integram os alunos de pós-graduação, dando-lhes a oportuParalelo n.o 7

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Como estudante do primeiro ano no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, esta casa animada tornou-se o verdadeiro centro da minha carreira estudantil na Brown University

nidade de compartilhar o seu conhecimento da língua portuguesa e literatura lusófona com os estudantes de graduação e garantindo a transformação de futuros formados de Brown em verdadeiros lusófilos. O dinamismo do programa de Patrícia é celebrado duas vezes por ano com um show de talento, durante o qual os estudantes de graduação assumem o palco para exibir o seu domínio da língua portuguesa através de maneiras mais criativas. O ano passado destacou-se um duo que dançou samba no pé, baladas de bossa nova, e uma rapariga especialmente audaciosa que fazia malabarismo enquanto recitava trechos de Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. Uma das coisas mais inspiradoras do meu primeiro ano como estudante de pós-graduação foi a variedade infinita de oportunidades de colaboração académica que a Brown me forneceu. Desde almoçar com o Dr. Mário Mesquita e o Dr. Miguel Vaz da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, cuja parceria com a Brown enriquece a vida de todo o estudante e nos envia professores talentosos como o Dr. Miguel Jerónimo, até coordenar e efectuar uma visita dos comandantes militares da base da Força Aérea americana das Lajes, percebi que a rede de influência da Brown abrange o mundo inteiro. Há dois dias, o meu telemóvel tocou aqui na ilha Terceira quando eu estava a sair do estábulo de cavalos após um passeio à tarde. “Olá, Sarah, está tudo Paralelo n.o 7

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bem? É o Onésimo, e estou com a Leonor aqui no Hotel Angra Garden...”, disse a voz familiar no outro lado da linha. Uma hora mais tarde, também eu estava acolhida numa grande cadeira no saguão do Hotel Angra Garden. Em qualquer outro caso a situação podia parecer improvável: lá estávamos nós no centro histórico de Angra do Heroísmo, a compartilhar recomendações de livros e planos de viagem no meio de uma reunião de um grupo de colegas do Seminário de Onésimo. Mas o facto é que a situação não era nada estranha – Onésimo e Leonor tinham-se transformado de biografias e fotos de um website, em mentores e amigos, que compartilharam o meu vínculo visceral com este pequeno pedaço de Portugal no meio do oceano Atlântico. Ao reflectir mais tarde naquela noite sobre o encontro, percebi quanto profundamente eu estava integrada no Departamento, e como ele se havia tornado uma parte essencial da pessoa que sou. No ano passado, o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University comemorou o seu vigésimo ano como um departamento académico independente. Estou ansiosa por celebrar mais momentos históricos com o Departamento, que continua a deixar a sua marca como uma instituição inovadora e uma referência de qualidade no país e no exterior. *Bolseira da FLAD

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As sete vidas de uma luso­‑descendente: um livro que revela o percurso invulgar de Patrícia Joyce Foi na Casa dos Açores em Lisboa que se apresentou o livro, editado pela FLAD, Quantas Vidas Tem Um Gato? Quantas Vidas Tem Patrícia?, o resultado de uma longa entrevista de Manuel Carvalho Gomes a Patrícia Joyce Fontes. Ou “apenas” uma conversa entre amigos. Apresentado por Ana Mesquita, que tem em comum com a entrevistada a formação base em Psicologia, este livro é uma história de vida e de muitos afectos. RUI OCHOA

POR CLARA PINTO CALDEIRA*

Patrícia Joyce Fontes foi professora, madre superiora, fez investigação, construiu casas e cultivou legumes – assim resumiu Ana Medina Mesquita a diversidade da vida “conversada” neste livro – todos papéis sociais com impacto nos outros e marcados pelo espírito da partilha. Filha de pais micaelenses, emigrados para os Estados Unidos no início do século XX , Patrícia Joyce nasce já no então país das oportunidades, a sétima de dez irmãos. Ana Medina Mesquita, psicóloga especialista em aconselhamento profissional para adultos com base na narrativa, comentou que esta narrativa original de Patrícia Joyce, que se assume como “portuguesa na maneira americana de ser portuguesa”, comportava já o desafio da afirmação da identidade e o combate ao estigma sobre a emigração. Desafios cumpridos, como destaca José Medeiros Ferreira no texto introdutório do livro, ao afirmar que Patrícia Joyce “sobressai pela construção do próprio destino, pela procura constante de aprendizagem, pela abertura permanente a novas experiências”, revelando­‑se um modelo inspirador para a emigração, ao afirmar­‑se de forma atípica, esquiva aos modelos de sucesso material ou político. Um longo caminho, caracterizado por perseverança e tranquilidade, ou teria tombado perante o episódio de infância em que uma professora lhe diz

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que todos os meninos conseguem aprender, até os portugueses... “NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO” Em East Providence, foi para a escola e aderiu ao escutismo. Católica, sentia na sua comunidade a diferença cultural em relação aos protestantes, mas vivida de forma pacífica. Na sua conversa com Manuel Carvalho Gomes, recorda, com humor, um episódio exemplar, quando no dia de São Patrício a comunidade irlandesa se vestia de verde e os católicos, por oposição, de laranja, desconhecendo que essa é precisamente a cor dos protestantes na Irlanda. A sua irmã mais velha, hoje com 89 anos, foi a primeira mulher licenciada da vila. Patrícia seguiu­‑lhe o exemplo, graças à adbicação de outra irmã, que fica em casa a cuidar da família. Segue então para Boston, sozinha, com as suas galochas, que lhe valiam a etiqueta de “saloia”... Não se deixou intimidar: termina o curso e volta para junto da família licenciada em Psicologia. Entretanto, é convidada a integrar uma congregação e torna­‑se madre superiora aos 25 anos, experiência que abandona por contestar a falta de autonomia das freiras e a distribuição classista das tarefas. Doutorou­‑se em Psicologia da Educação, trabalhou em várias faculdades americanas e viveu o clima anti­‑Guerra do Vietname, no qual se envolveu activamente. Por não querer pagar impostos americanos, como forma de protesto, decidiu sair do país.

Um livro que também é a Manuel Carvalho Gomes formou­‑se em Geografia e fez o mestrado em Geografia Física e Ambiente no domínio da educação ambiental, em 1995. Leccionou Geografia no ensino básico e secundário, e repre‑ sentou o Ministério da Educação nas Direcções­‑Gerais do Ambiente e do Consumo da Comissão Europeia. Escreveu vários artigos e participou em grupos de trabalho internacionais na área do Ambiente. É actualmente assessor do CNE e presidente da Associação CIDAADS (Centro de Informação, Divulgação e Acção para o Ambiente e o Conhecimento). Conheceu Patrícia Joyce em 1998 numa conferência de educação e informação para

Aos 46 anos trabalhava no Centro de lho de vários investigadores que é publiInvestigaçao e Educação do Saint Patrick’s cado em 1998. Regressou aos EUA em 2004, onde vive College, na Irlanda, mas tinha a vontade antiga de viver em Portugal e finalmen- num bosque a três horas de Nova Iorque, te aprender a língua. Candidatou­‑se, e sem conhecer os limites da sua propriedaem 1982 desenvolveu, na Faculdade de de, e com o desejo de deixar o seu patriPsicologia do Porto, estudos sobre as mónio a uma instituição de conservação diferenças dos testes de inteligência entre da natureza. crianças irlandesas, americanas e portuguesas e também sobre os níveis de leitura – um exemplo da sua visão universalisA permanência em Portugal, ta, marca da sua perque já visitara várias vezes, sonalidade. Ao regressar aos é o princípio de uma das fases mais Estados Unidos, marcantes da vida de Patrícia Joyce. Margarida Rosa, filha da escritora Ilse Rosa, fala­‑lhe numa amiga, bolseira da Fulbright e pede para recebê­‑la. Patrícia encara com DA ESCOLA PARA A COMUNIDADE alegria a excelente oportunidade de trei- Patrícia Joyce tem hoje 76 anos, a enernar a língua e conviver com portugueses. gia e a simpatia de uma jovem ainda Era a poeta Ana Maria Amaral, que devol- expectante, o mesmo sorriso generoso ve a hospitalidade e a recebe, mais tarde, da sua sobrinha­‑neta Lilly, de sete anos, com quem se apresentou. Continua a no Porto. A permanência em Portugal, que já visi- desafiar convenções, com alegria e seretara várias vezes, é o princípio de uma nidade. Como comenta Ana Mesquita, das fases mais marcantes da vida de que associou sempre a protagonista desPatrícia Joyce que, neste país, desenvol- tas páginas ao nome Joy(CE), significanve trabalho pioneiro na área da educação do alegria, e não Patrícia, a leitura deste ambiental e educação para o desenvol- livro transmite sobretudo jovialidade e entusiasmo. vimento sustentável, associada à E lembra ainda a apresentadora deste Universidade do Minho, com o projecto “Investigação, Visão, Acção, Mudança livro: na horta comunitária onde Patrícia faz trabalho voluntário, e cuja produção se (IVAM)” e o estudo “As Crianças como Agentes de Mudança Ambiental”, traba- destina aos mais desfavorecidos, encarrega­ ‑se dos espinafres, o legume da força. Apenas um dos trabalhos comunitários em que se empenha. Também já construiu casas sociais e colabora com ONG ambientalistas. história de uma amizade Viajou até à Palestina e associou­‑se a um grupo de activistas a favor de soluções não as questões ambientais, em Matosinhos: violentas para o conflito israelo­‑árabe. “No primeiro encontro, percebi logo que Actualmente, Patrícia Joyce vê em curso estava perante uma grande mulher, apesar a realização de um sonho antigo: é conda aparência frágil, e desde esse momen‑ sultora num programa de intercâmbio entre to fiquei interessado em descobrir a mulher escolas açorianas e americanas, “Projeto que ela era verdadeiramente, além da pro‑ Cidadania e Sustentabilidades para o Séc. fessora que me abordou em português com XXI. Caminhos para Uma Comunidade uma pronúncia americana sobre formas de Sustentável nos Açores”, coordenado pelo financiar publicações e conferências por Conselho Nacional de Educação (CNE) e parte do Ministério da Educação.” A partir co­‑financiado pela FLAD. daí, desenvolveu­‑se uma amizade que deu Quantas Vidas Tem Um Gato? Quantas Vidas Tem uma conversa que deu um livro. Sobre Patrícia?, em edição bilingue, conta a históesta sua quase­‑biografia conversada, ria de alguém que se resume a si própria Patricia Joyce afirma: “Eu sou uma pessoa desta forma: “Tive a sorte de encontrar que teve a grande sorte de encontrar um diversas situções onde posso ser eu.”

amigo como o Manuel.”

* Jornalista freelancer Paralelo n.o 7

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A América de João Medina A Minha América é assinado por João Medina e apresenta, sem academismos nem pudores, uma perspectiva particularíssima daquele país, que vai da literatura ao cinema, passando pela história, pelas ruas e as gentes da América que marca o intelectual português.

É o primeiro volume da colecção “Rio Atlântico”, editada pela Opera Omnia, e dirigida por Onésimo Teotónio de Almeida, com o apoio da FLAD, e foi lançado na sua sede, em Lisboa. UMA AMÉRICA QUE COMEÇA EM... LOURENÇO MARQUES “Ninguém deveria visitar a América pela primeira vez” – João Medina cumpre a tirada de John Kenneth Galbraith, citada por Onésimo Teotónio de Almeida na apresentação de A Minha América. É que antes de lá ir, João Medina visitou a literatura, o cinema, os ícones e a história americana diversas vezes: uma viagem que começou num momento muito particular da sua vida, como o próprio confessa no prefácio, após concluir o Colégio Militar e regressar à sua terra de origem, Lourenço Marques. Aqui, numa colónia menos sujeita ao obscurantismo da metrópole, entre 1954 e 1956, fez as primeiras descobertas de um percurso de explorador que não tem fim à vista. Muitas são, ao longo destas páginas, as referências às suas vivências precoces de um país onde viria muito mais tarde a permanecer longos períodos, dedicado à docência, na Johns Hopkins e na Brown University. Mas, neste livro, não é o professor catedrático que se dirige ao leitor, como também não deixa por esclarecer: “Assumidamente subjectivista e pessoalíssimo, ele valerá o que valer, mas não pretende de maneira nenhu-

Este é sem dúvida um livro sobre a América de João Medina. Como o próprio assume.

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ma constituir­‑se como manual para instruir educar ou leccionar quem quer que seja.”

o lado alguns leitores por não aguentarem o ritmo intenso da pedalada.” Uma pedalada que não percorre apenas os caminhos do deslumbramento e trilha também as contradições da nação que se afirma pelo princípio da liberdade, ao abordar o estereótipo de Uncle Sam, a questão das lutas pelos direitos cívicos ameri-

OS PRIMEIROS AMORES E A LUCIDEZ DE UM AMOR MADURO Autoproclamado “espécie de lusitano rebelde sem causa”, não é casual que um dos primeiros amores americanos de João Medina seja o filme de Nicholas Ray Fúria de Viver, em que a sua identificação com a Não só de livros é feita esta viagem. personagem de James Dean é confessa. Mas Os filmes americanos, “a máquina de da juventude vem fazer sonhar ou o sonho de celulóide” também o encontro com Walt Whitman, ocupam extensas páginas poeta da sua eleição, deste livro. “estentórico cantor da esperança ianque, do entusiasmo de ser partícipe duma aventura nova na história dos homens, pioneiros todos de uma Nova canos e uma sociedade desigual e com Arrancada do género humano”. momentos opressivos, de que a obra Mas não só de livros é feita esta viagem. Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, é bem a Os filmes americanos, “a máquina de fazer expressão de um pensamento crítico sonhar ou o sonho de celulóide” ocupam incontornável. extensas páginas deste livro, em que João Medina fala dos seus realizadores e filmes preferidos, onde inclui os contemporâneos A AMÉRICA REAL irmãos Cohen, mas também todos os Este é sem dúvida um livro sobre a estrangeiros que ali ancoraram a sua pro- América de João Medina. Como o próprio dução da sétima arte, como Fritz Lang, assume, de viva voz, deu­‑se a liberdade Otto Preminger ou Alfred Hitchcock. João de privilegiar a Nova Inglaterra, trata mal Medina dedica ainda capítulos às suas a Califórnia, não gostou de Baltimore, mas divas, Shirley MacLaine, Kim Novak e encantou­‑se com Nova Orleães. Nova Marilyn Monroe e a outras grandes figu- Iorque é referida pontualmente, a propóras do cinema americano, como Orson sito da Estátua da Liberdade, celebrada Welles ou Paul Newman. como “mãe dos exilados” nos versos graComo afirmou na apresentação Onésimo vados na pedra da poeta judia descentenTeotónio de Almeida: “João Medina te de portugueses, Emma Lazarus. apresenta­‑se em mangas de camisa e Um livro de empatias e não só: “A diamantém­‑se assim ao longo de mais de léctica de uma amizade muitas vezes pro400 páginas sem nunca perder o fôlego, duz obras”, declarou o autor à audiência apenas correndo o risco de fazer cair para que o escutava no auditório da FLAD. Falava

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de Onésimo Teotónio de Almeida, que o recebeu e acompanhou em muitas das visitas a um país já tão seu conhecido. “Na verdade”, concluiu Onésimo Teotónio de Almeida na apresentação, “este é um livro que, exibindo embora um entusiasmo que só os jovens têm perante o novo, é obra de maturidade na medida em que João Medina se espraia sem barreiras nem complexos a dizer precisamente o que sente e o que lhe dá na real gana, desdenhando o politicamente correcto ou para o que um europeu­‑que­ ‑se­‑preza deve ou não dizer sobre os Estados Unidos”. Um livro que levou o seu tempo (quatro anos de redacção e organização) e dele guarda as suas marcas, nas linhas escritas e nas apagadas: quando João Medina começou a escrever o primeiro prefácio, Barack Obama consagrava­‑se o primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América. Clara Pinto Caldeira/Jornalista freelancer

Uma colecção entre margens Como disse Mário Mesquita, administrador da FLAD, e figura fundamental no apoio deste primeiro volume, o editor José Manuel Costa, como açoriano, “tem uma compreensão mais efectiva do que é não estar no centro”. A colecção “Rio Atlântico”, da sua editora Opera Omnia, inicialmente pensada para divulgar auto‑ res açorianos no continente, abriu a sua vocação. Nas palavras do seu coordena‑ dor, “ela abrir-se-á a esse espaço imenso e indefinido das entre margens, que se estendem até à Califórnia, onde os Açores se prolongam”.

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Itinerância da Colecção de Arte Contemporânea nos Açores POR JOÃO SILVÉRIO* E SÉRGIO FAZENDA**

O programa de exposições iniciado no Museu Francisco Lacerda (São Jorge) é o primeiro passo de uma itinerância que se prolongou por outros quatro museus do arquipélago dos Açores: Museu dos Baleeiros (nas Lajes do Pico), Museu de Santa Maria, Museu da Graciosa e Museu das Flores. Esta iniciativa conjunta da Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento

(FLAD) e da Direcção Regional da Cultura do Governo dos Açores (DRaC) resulta de um protocolo assinado entre estas duas instituições que visa dar a ver as obras da Colecção de Arte Contemporânea da flad em contextos descentralizados. Este projecto itinerante foi precedido de um outro programa expositivo mais alargado, realizado nos anos de 2007­‑2008, em que foram realizadas três exposições

da coleção da FLAD no Museu Carlos Machado, Museu de Angra do Heroísmo, no Museu da Horta e na Biblioteca Pública desta cidade por ocasião da sua inauguração pública. O projecto, com curadoria de João Silvério (FLAD) e Sérgio Fazenda Rodrigues (DRaC), teve como objectivo principal dar continuidade a este processo de divulgação da arte contemporânea portuguesa e

Inauguração no Museu da Graciosa. Da esquerda para a direita, João Silvério, curador da FLAD; Sérgio Fazenda Rodrigues, curador da DRaC; Ricardo Ramalho, deputado à Assembleia Regional dos Açores; Conceição Cordeiro, vice-presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz da Graciosa; Jorge Paulus Bruno, director regional da Cultura do Governo Regional dos Açores e Jorge Cunha, director do Museu da Graciosa, Santa Cruz, Graciosa.

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A exposição itinerante, que contabilizou mais de quatro mil visitantes, foi acompanhada pela edição de um catálogo bilingue.

apresentou um formato mais concentrado que culminou com a selecção de obras do pintor João Queiroz incidindo sobre o trabalho que o autor desenvolve na prática do desenho e na sua reflexão sobre a paisagem como uma ideia, ou um instrumento, de representação. As

obras escolhidas, um conjunto de desenhos intitulado O Ecrã no Peito (1999), e duas pinturas, Sem título, de 1998, constituem uma possibilidade para ir ao encontro de questões sobre a representação, a imagem e o corpo como possibilidade de relação com a paisagem enquanto mode-

lo fragmentado do mundo e a forma como se constitui para nós como um sistema de relações. A exposição itinerante, que contabilizou mais de quatro mil visitantes, foi acompanhada pela edição de um catálogo bilingue, pensado a partir de um formato económico, mas sem perder de vista a boa reprodução das obras de arte e a qualidade dos textos para um público mais alargado. O catálogo inclui textos de Carlos César, na altura presidente do Governo Regional dos Açores, Mário Mesquita, administrador da Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento, um texto conjunto dos curadores da exposição, e um texto inédito da autoria de Delfim Sardo escrito especificamente sobre a obra de João Queiroz, O Ecrã no Peito. * FLAD; **DRaC

Vista da exposição na Igreja de Nossa Senhora da Vitória – Museu de Santa Maria, Vila do Porto, Santa Maria.

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Vista da exposição na Igreja de São Boaventura, monumento do século XVII integrado no Museu das Flores, Santa Cruz, Flores.

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Inauguração da exposição no Museu das Flores. Da esquerda para a direita, Sérgio Fazenda Rodrigues, curador da DRaC; o artista João Queiroz; João Silvério, curador da FLAD; Mário Mesquita, administrador da FLAD; e Jorge Paulus Bruno, director regional da Cultura do Governo Regional dos Açores, no Museu das Flores, Santa Cruz, Flores.

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Vista da inauguração no Museu Francisco de Lacerda, na Calheta, São Jorge.

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Inauguração no Museu Regional do Pico – Museu dos Baleeiros, Lajes do Pico, Pico. Ao centro, João Silvério, curador da FLAD, e Jorge Paulus Bruno, director regional da Cultura do Governo Regional dos Açores.

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LIVROS

Aqui chegamos a uma dimensão essencial do livro: o seu comprometimento. O comprometimento de quem ama.

Nas Duas Margens: da Literatura Norte‑Americana e Açoriana

Adelaide Freitas Linhas e Círculos

Entre a espera e a promessa POR NUNO COSTA SANTOS*

Adelaide Freitas (n. 1949) é uma das vozes que, situando­‑se entre os territórios nem sempre dialogantes da academia e da produção literária, mais têm contribuído para a definição de um pensamento estruturado e rico – fundador de sentidos – sobre a identidade açoriana. Se quisermos, uma das originalidades da autora está na confluência do discurso de várias linguagens: a académica, a crítica, a narrativa e a poética. Usando uma formulação, podemos dizer que, ao lermos os textos de Adelaide sobre os Açores, a literatura açoriana ou a identidade feminina, percebemos e sentimos que estamos perante a prosa de uma artista. De alguém que transformou o conhecimento acumulado de uma forma única, irrepetível, filha de uma sensibilidade criadora e criativa. Essa dimensão fecunda está muito presente nesta colectânea de textos, Nas Duas Margens: da Literatura Norte­‑Americana e Açoriana, apresentada emocionadamente numa nota inicial pelo seu marido e companheiro de navegações várias, Vamberto Freitas, também ele figura central na elaboração teórica sobre o imaginário da escrita açoriana, como “o último livro da Adelaide […], ensaios e escritos que ela (afectada por uma doença) queria deixar nesta precisa sequência”. Em feliz hora foi editado este volume, diga­‑se – assim puderam ficar fixados num único livro alguns dos ensaios mais importantes da autora (entre 1989 e 2003), desta forma mais facilmente acessíveis às novas gerações de leitores e pensadores interessados nas temáticas literárias açorianas. E, é claro, nas pontes que, pela escrita e pela

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vida, têm sido construídas entre o arquipélago (um lugar não só geográfico como também simbólico) e outros territórios. Este é um livro de refrões. De passagens que se repetem, assumidamente (a autora fala disso no prefácio), como quem espalha lembretes identitários pelos textos. Notas que nos remetem para um desenho próprio do arquipélago, um lugar que nos aparece nas suas múltiplas dimensões: como um lugar de solidão mas também de reencontro, um reduto ao mesmo tempo de esquecimento e de confluência de mundos, onde convivem o sentimento de orfandade, o naufrágio e a possibilidade de redenção. Um lugar raro e misterioso, apresentado pela prosa de quem o conhece em profundidade, além da superfície dos postais e dos anúncios: “Requerem as ilhas ‘o profano’, enquanto vulcanicamente protegem e amparam a casa dos deuses. São ilhas infalivelmente imprevisíveis e eternamente provocadoras.” Aqui chegamos a uma dimensão essencial do livro: o seu comprometimento. O comprometimento de quem ama. Tudo parte, naturalmente, de um grande amor à terra. Que por vezes se transforma em admiração ou em respeito – o respeito pelo seu lado oculto, pelos segredos que encerra, pelos sonhos que alimenta. Um amor maior que incide sobre um território conhecido e compreendido na sua profundidade e nos

seus humores pela autora: “Está ainda num céu sempre incerto, irrequieto e feiticeiro de constantes alternâncias de luz e de sombra, num jogo permanente que apaga, esbate e distancia montanhas e desfiladeiros, para logo as desocultar, aproximar e revelar­‑lhes o pormenor e a espessura.” O comprometimento afectivo revela­‑se também na reivindicação de uma autonomia literária – necessária para a afirmação de uma identidade própria. Um conjunto de vozes das ilhas ou à volta das ilhas que não as tornem dependentes dos olhares exteriores. É neste contexto que surgem tantos nomes e autores – alguns deles “de fora” mas cuja respiração é a de quem está dentro. Sim, também estamos perante um livro sobre autores. Os autores que partilham um mesmo imaginário: o imaginário açoriano, ao longo das últimas décadas tantas vezes evocado e tantas vezes refutado. Gente que escreve nas ilhas e fora delas. Portugueses e estrangeiros. Escritores discretos e nomes sonantes. Gaspar Frutuoso, Vitorino Nemésio, Raul Brandão, Daniel de Sá, Urbano Bettencourt, Eduardo Bettencourt Pinto, Onésimo Teotónio Almeida, Rui Machado, Antonio Tabucchi, Romana Petri, Katherine Vaz. Adelaide põe todos à conversa – talento seu – e nomeia­ ‑os como quem nomeia membros de uma mesma família. E há a baleia, lembrada em vários instantes e recuperada no último capítulo (um dos mais belos do conjunto), que vem clamar pelo fim do esquecimento do Atlântico e das ilhas que nele habitam. O bicho que com o seu canto chama o continente para uma realidade que teima em ignorar, numa “atlanticidade desde há muito adiada” – para que o mar, vital, necessário e desafiador, não se transforme no “deserto de água” lamentado pelo poeta florentino Roberto de Mesquita. A baleia, com o seu melancólico lamento a apelar ao reencontro da humanidade no espaço privilegiado da ilha e para a necessidade maior de apurar os sentidos, raros e necessários, “da escuta e da espera”. * Jornalista freelancer Paralelo n.o 7

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LIVROS

Seduzir ou Informar? – A Capa de Newsmagazine como Dispositivo de Comunicação Carla Rodrigues Cardoso MinervaCoimbra 169 páginas

A capa como elemento mutante entre o jornalismo e a publicidade POR CARLA MARTINS

Quando a Visão de 25 de Fevereiro de 2010 publicou na capa a fotografia do corpo de um homem vitimado pelas cheias da Madeira a ser resgatado da lama, com o título “Tragédia anunciada”, dezenas de leitores da revista insurgiram­‑se contra o que descreveram como escolha chocante e sensacionalista. A 10 de Agosto do mesmo ano, a já extinta versão portuguesa da revista Focus exibia, sob o título “Os segredos da mulher brasileira”, a imagem de um corpo feminino, de costas, com grande plano das nádegas, vestindo um reduzido biquíni de tons amarelo e verde, as cores da bandeira do Brasil. A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género queixou­ ‑se ao regulador dos media pela alegada difusão de estereótipos de género e de nacionalidade. Nos Estados Unidos, algumas das capas mais controversas da norte­ ‑americana Time, a pioneira mundial do género newsmagazine, fundada em 1923, suscitaram milhares de cartas de protesto e cancelamentos de assinaturas. Este tipo de reacções revela o poder de impressividade das capas das revistas de informação geral ou newsmagazines, ao ponto de estes dispositivos possuírem “leitura” autónoma, independentemente do desenvolvimento, no interior da publicação, dos temas destacados. Este é o objecto empíriParalelo n.o 7

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‘ co central da investigação de mestrado de Carla Rodrigues Cardoso, agora publicada em livro pela MinervaCoimbra. Deverá desde logo salientar­‑se que a obra representa um importante contributo para a praticamente inexistente bibliografia nacional sobre as revistas de informação geral, um terreno a desbravar nos estudos de media e jornalismo, inclusivamente no plano da sua cartografia histórica, que a autora esboça, sem pretensões de exaustividade, na primeira parte, de contextualização e teorização. A interrogação disjuntiva do título, Seduzir ou Informar?, sintetiza – diríamos, provocatoriamente, como um bom título jornalístico – o objectivo de “demonstrar e procurar compreender as lógicas de criação da capa das newsmagazines, partindo da análise do rosto das publicações” (p. 20). O título joga com a duplicidade de funções e de territórios das capas destes títulos. Como dispositivo de comunicação, situam­ ‑se no campo jornalístico e na missão de informar e de satisfazer necessidades cognitivas; por outro, são configuradas como objecto de desejo e de atracção, deixando­‑se permeabilizar pela linguagem do marketing. A capa é a “montra”, o “anúncio mais importante da revista”, usando uma expressão de Linda McLouglin. Nas palavras de Carla Cardoso, constituem­‑se como “elemento híbrido, mutante, a meio caminho entre o jornalismo e a publicidade” (p. 147). Na decomposição de textualidade, imagem, cor e design, indaga­‑se qual destas lógicas prevalece, pressupondo­‑se, como princípio genérico, que a capa das newsma‑ gazine é “pecadora”, tem “uma alma aparentemente mais próxima do marketing do que do jornalismo” (p. 44). O corpus de análise procurou diversidade, transnacionalidade e transcontinentalidade, sendo seleccionadas as edições dos primeiros três meses de 1999 da Visão – a mais antiga e com maior tiragem revista de informação geral portuguesa –, da francesa L’Express, da norte­‑americana Newsweek e da brasileira Veja. A abordagem metodológica baseou­‑se na combinação da análise de conteúdo com uma mais restritiva análise semiológica. Os resultados são expostos na segunda parte do livro, “Newsmagazines: dispositivos padronizados?”, onde se identificam como traços comuns às quatro publicações a aposta em contrastes gráficos e cromáticos, o predomínio da imagem sobre o texto,

A obra representa um importante contributo para a praticamente inexistente bibliografia nacional sobre as revistas de informação geral.

os títulos expressivos, a personificação elitista (as capas destacam sobretudo figuras do poder no masculino, caucasianas e de estatuto socioeconómico elevado), a ancoragem nos grandes temas de actualidade. Foram também detectadas diferenças, que organizam os títulos em dois grupos – a L’Express e a Newsweek, de um lado, a Veja e a Visão, do outro. A Visão – o benjamim do corpus, então completando seis anos – é qualificada como newsmagazine light, “sem a mesma densidade das congéneres na escolha e abordagem dos temas de capa e, consequentemente, na construção do seu dispositivo de comunicação” (p. 155). A revista nacional aparentava estar ainda à procura de uma identidade, não sendo indiferente o facto de nesse período ter sido adquirida pela Impresa. A data das edições seleccionada – correspondente ao timing em que a própria investigação académica decorreu – abre, segundo a autora, possibilidades de pesquisas comparativas futuras, apresentando a vantagem de olhar para as capas das newsmagazines antes de 11 de Setembro de 2001.

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LIVROS

Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola Tiago Moreira de Sá D. Quixote

O xadrez da descolonização de Angola POR PEDRO SEABRA*

Com Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola, Tiago Moreira de Sá retoma, uma vez mais, o estudo profundo e cuidadoso sobre o papel crucial que os EUA desempenharam em momentos­‑chave da história contemporânea de Portugal e do mundo lusófono. Desta feita, o autor procura demonstrar como a precipitação de desenvolvimentos em Angola no período pós­‑25 de Abril, assim como nos momentos imediatos após a independência, se deveu a uma complexa confluência de factores e actores que acabaram por contribuir para o despoletar de guerra civil que seguiu. Tirando partido do acesso a documentação norte­‑americana desclassificada e tratamento exaustivo de bibliografia especializada, a obra visa, acima de tudo, proporcionar um olhar compreensivo sobre um verdadeiro tabuleiro de xadrez, onde todas as peças relevantes se posicionaram para alcançarem os seus respectivos objectivos em Angola. Numa altura em que a détente da Guerra Fria ameaçava desmoronar­‑se, Angola viu­‑se basicamente à mercê das flutuações dos interesses das duas superpotências. No caso dos EUA, o chamado efeito “Vietname invertido” alimentava a necessidade de não perder mais nenhuma ‘frente de batalha’ para o campo soviético enquanto que, para a URSS, as novas incursões da China no Terceiro Mundo representavam um desafio impossível de ignorar. Para complicar ainda mais este puzzle, a instabilidade política em Portugal no pós­‑25 de Abril – com todas

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as suas implicações sobre como melhor conduzir e apoiar a descolonização de Angola – bem como o papel de spoilers regionais, tais como o Zaire ou a África do Sul, ou mesmo extra­‑regionais, como Cuba, implicavam níveis adicionais de dificuldade no tratamento desta questão. Por outro lado, não deixa de ser interessante notar como a própria formulação de estratégias e respostas oficiais se baseou nesta altura em percepções erróneas ou em escassa informação sobre o que de facto se passava no terreno. A obra é particularmente bem­‑sucedida ao demonstrar a política de reacção dos EUA nos primeiros momentos da descolonização angolana face ao

crescente apoio material da URSS ao MPLA que, para todos os efeitos, veio a alterar as regras do jogo de forma decisiva. Dez anos após o fim do conflito que devastou o país, compreender e reconhecer os erros do passado que conduziram Angola a tal caminho, continua a ser tão necessário como antes. Nesse sentido, Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola revela­‑se uma obra absolutamente instrumental e incontornável para uma melhor compreensão da génese da independência angolana. * Doutorando em Ciência Política no Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa.

A obra visa, acima de tudo, proporcionar um olhar compreensivo sobre um verdadeiro tabuleiro de xadrez, onde todas as peças relevantes se posicionaram para alcançarem os seus respectivos objectivos em Angola.

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LIVROS

Luso-American Literature: Writings by Portuguese-Speaking Authors in North America

ed. Henry Moser e António L. A. Tosta (New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press, 2011)

Vozes portuguesas na América POR TERESA F. A. ALVES*

A antologia de textos literários editada e apresentada por Robert Henry Moser e António Luciano de Andrade Tosta em 2011 é uma aposta bem-sucedida no desafio de dar visibilidade à produção cultural de um grupo cuja etiqueta é, conforme citação da contracapa, a de “minoria invisível”. Prefaciado por George Monteiro, referência incontornável para quem se ocupa da matéria constante desta obra, a recolha de textos aparece organizada em função de três pólos culturais dominantes, o português, o brasileiro e o cabo-verdiano, entre si ligados por um denominador comum – “a língua partilhada de Portugal” (p. IX). O critério pode parecer algo controverso, uma vez que alguns dos autores escolhidos, embora descendentes de emigrantes portugueses, já não falam e muito menos escrevem em português. E, apesar disso, a ligação da singularidade luso-americana à língua portuguesa é de tal modo importante que Monteiro inaugura o seu texto com uma interrogação pedida de empréstimo a um filme de Manuel de Oliveira sobre a emigração e a perda da língua materna:“Porque é que ele não fala a nossa fala?” Também os editores da antologia, numa introdução extensa e bem documentada, defendem a noção de que “a língua continua a ser o elo mais forte entre as comunidades lusófonas da América do Norte” (p. xxv). Não nos atenhamos, pois, a uma interpretação meramente literal, quer do título, quer do subtítulo da antologia, mas entendamo-los de um ponto de vista mais abrangente como uma idealidade que carece de ser analisado em função de contextos de ordem vária, essencialmente definidos Paralelo n.o 7

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pela circunstância histórica tal como esta se formula e reformula no encontro da experiência concreta do presente com a herança do passado. A designação “luso-americana” é, ainda, justificada pela experiência da imigração portuguesa, localizada na América do Norte, a que os editores atribuem um estatuto paradigmático pela dimensão, e até pela cronologia, e, posteriormente, abrange a cabo-verdiana bem como a brasileira de data mais recente, integrando-as numa “construção” identitária marcada pela diversidade das suas componentes culturais. Torna-se, assim, inevitável ser entendida enquanto um caso tão singular como o da cultura hispânica nos EUA, ou seja, assente na convergência de múltiplas culturas unidas por um legado comum, de que é testemunho eloquente a presente recolha. A par de informativa tábua cronológica documentando a antiguidade da presença “lusa” em terras americanas, a primeira e a segunda partes da antologia aparecem estruturadas em função de núcleos que chamam a atenção para a variedade de traços específicos que em cruzamento com a cultura americana a vão diversificando e se diversificam, nesse processo contribuindo para aquilo que Lawrence W. Levine descreveu como sendo a pedra angular de uma identidade cultural em perpétua mudança1. A inauguração da primeira parte e a posterior emergência de excertos de autobiografia ao correr da obra evidenciam a sensibilidade dos editores à modulação literária porventura mais porosa ao diálogo entre a cultura de acolhimento e a do imigrante, ainda que, numa antologia desta dimensão, se faça sentir a falta de uma voz feminina oferecida, por exemplo, no testemunho de vida de Laurinda C. Andrade. Mas o registo da diferença, o que pode ser considerado como alteridade étnica em relação à cultura dominante da América, sobressai no modo como Charles Peters, John Philip Sousa, Francisco C. Fagundes e Charles Reis Felix contam a sua vida; ou no olhar humorístico com que Onésimo Almeida compõe “crônicas” recheadas de saborosas histórias. Sobressai, ainda, na temática ficcional percorrida por imigrantes como José Rodrigues Miguéis e pelas gerações que já nasceram nos EUA, como é o caso de Katherine Vaz, Julian Silva ou Brian Sousa, e de Erika de Vasconcelos ou Anthony de Sá, naturais do Canadá. Sobressai, por fim, no lirismo poético de

Jorge de Sena, Alfred Lewis ou Eduardo Bettencourt Pinto e de todos os outros que, apesar de nascidos na América, como Olga Cabral, Frank X. Gaspar ou Thomas J. Braga, frequentemente regressam ao legado dos antepassados “lusos”. E cultivam-no de modos muito variáveis como atestam os registos de autores que, à excepção de Johnny Lorenz, são oriundos do Brasil, ou o de autores de Cabo Verde, maioritariamente nascidos neste arquipélago, ainda que Belmira Nunes Lopes e Kurt José Ayau sejam já naturais dos EUA e desenhem situação paralela à dos descendentes de imigrantes portugueses de outras origens. A memória a todos assegura uma herança originária enriquecida por vivências e testemunhos literários com ampla escala de variações entre o deslumbramento da pertença ao Novo Mundo e o sentimento de exílio e indefinível saudade. Ao correr desses contraditórios sentimentos se institui um feixe de criatividade tão rica como as culturas de onde emergem os autores e autoras em boa hora reunidos pelos editores desta antologia, em representação de muitas outras vozes que, igualmente, garantem a visibilidade da cultura luso-americana na América do Norte. The Opening of the American Mind: Canons, Culture and History, Boston, Beacon Press, 1990, p. 173.

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* Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa

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COLECÇÃO FLAD

Rui Toscano

São Paulo 24 Set 01

Alguma coisa acontece quando se fixa, demoradamente, sempre presente e sempre excessivo, e nem a fuga do olhar para o olhar sobre uma grande cidade. um ponto mais distante pode dissipar esse excesso: daqui até ao Em São Paulo 24 Set 01, Rui Toscano detém­‑se num plano fixo, fundo, a mesma silhueta repete­‑se em intermináveis variantes, numa única imagem da maior metrópole da América Latina. sem pausas e sem tréguas, “o avesso, do avesso, do avesso” infiElevando o olhar em perspectiva aérea, a imagem enquadra uma nitamente recortado sobre um céu indefinido, abstracto, estéril. parte da cidade como se mostrasse toda a sua extensão, ou como Numa primeira impressão, esta imagem poderia confundir­‑se se fosse possível, nesse enquadramento, ilustrar um conceito com uma reprodução directa e realista da imensa metrópole braabstracto de metrópole. No entanto, a eloquência da sinédoque sileira; porém, algo diferente tende a acontecer quando o olhar é aqui contrariada pela manifesta impossibilidade de avistar os se detém demoradamente: a revelação poética da artificialidade e limites da cidade, criando­‑se, assim, uma tensão entre o poder a descoberta de um improvável fascínio por uma paisagem hostil de um ponto de vista superior e a sensação esmagadora de um evocam, afinal, o espírito romântico da pintura oitocentista. horizonte inacessível. E é precisamente através desse confronto A ausência de som alia­‑se à aparente inexistência de movimenque a imagem se (con)funde com a realidade, potenciando a to; o carácter estático da imagem é apenas interrompido, num imersão do observador na paisagem urbana, marcada, desde o plano secundário, pela circulação automóvel ao longo de uma primeiro instante, pela expectativa de que algo aconteça. via rápida, paralela ao ecrã e ao olhar do observador. O trânsito À máxima profusão de acontecimentos que a cidade simboliza, automóvel é também o único indício da passagem do tempo e Rui Toscano contrapõe a hipótese de reduzir a acção a um mínimo subtil, quase imperceptível. Num exercício de deliberada contenção de meios expressivos, característica da sua obra, o Rui Toscano nasceu em 1970, em Portugal como no estrangeiro, Rui artista propõe uma interpretação contemporânea de um dos principais temas na história da arte Lisboa, onde actualmente vive e Toscano tem desenvolvido diversos ocidental – a paisagem – suscitando, ao mesmo trabalha. projectos performativos e multi‑ tempo, um questionamento sobre as fronteiras entre a pintura, a fotografia e o vídeo. A sua formação artística iniciou­‑se média em colaboração com outros Tal como Rio 09 Mai 01 (2002), que resultou no Ar.Co – Centro de Arte e Comu‑ artistas (Tone Scientists, Dub Vídeo da mesma viagem ao Brasil, em 2001, o vídeo São Paulo 24 Set 01 confirma o quotidiano como nicação Visual, onde frequentou Connection, Houseware Experience, tema central no trabalho de Rui Toscano que o curso de Pintura (1988­‑1990), Houselab). encontra, na cidade, o território preferencial para o cruzamento de referências culturais populares tendo prosseguido os estudos de Em 2001, recebeu o Prémio de Artes e eruditas. O artista regressará, de resto, a São Pintura e Escultura na Faculdade Plásticas União Latina. A sua obra Paulo noutros vídeos, como Infinity (2002) ou To The Mountain Top (2004), assim como numa de Belas­‑Artes da Universidade de encontra­‑se representada em várias extensa série de desenhos que integra, entre Lisboa (1989­‑1997). O seu percurso colecções institucionais e particula‑ outros, Cidade Escape (2003) e Copan Skyline (2003), apresentada em 2004, sob o título Sampa Works, multidireccional cedo ultrapassou res, como sucede com a Colecção na Galeria Distrito 4, em Madrid. o campo das artes visuais, para da Fundação Luso­‑Americana para Em São Paulo 24 Set 01 a imagem é construída como a própria realidade urbana que repreexplorar outras possibilidades cria‑ o Desenvolvimento, os acervos da senta: numa esquadria árida, sem concessões tivas, nomeadamente no domínio Fundação de Serralves e da Caixa estéticas e sem linha do horizonte, pondo em evidência “a dura poesia concreta” das esquinas da música. Para além de expor Geral de Depósitos ou a Colecção e avenidas que a música de Caetano Veloso regularmente, desde 1993, tanto em António Cachola. consagrou. Em todas as direcções, ergue­‑se o betão armado, mais alto ou mais baixo, mas

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COLECÇÃO FLAD

“Le plan est comme le mouvement qui ne cesse d’assurer la conversion, la circulation. Il divise et subdivise la durée d’après les objets qui composent l’ensemble, il réunit des objets et les ensembles en une seule et même durée. Il ne cesse de diviser la durée en sous-durées elles-mêmes hétérogènes, et de réunir celles-ci dans une durée immanente au tout de l’univers.” Gilles Deleuze, Cinéma 1: L’image mouvement, 1983

São Paulo 24 Set 01, 2001 Vídeo DVpal transferido para DVD, cor, sem som, 30’26’’ (loop), medidas de projecção variáveis

o principal factor de ambiguidade, na identificação desta obra como fotografia ou filme. Uma ambiguidade sublinhada pela repetição, em loop, que impede uma duração específica: não existe princípio, meio ou fim, apenas suspensão e retorno, cíclico e cadenciado. Essa tensão latente entre presente, passado e futuro próximo, que alimenta a expectativa do observador em testemunhar alguma coisa, é alimentada pela inscrição, no título do vídeo, de uma data que remete para uma outra, ligeiramente anterior. O filme autolocaliza­‑se, deste modo, no seguimento do 11 de Setembro, embora a relação entre as duas datas seja alheia à intencionalidade do artista, que pretendia apenas fornecer ao observador informação objectiva sobre o momento da filmagem, enquadrando a paisagem urbana num segmento temporal tão claramente definido como o plano fixo. Ainda assim, o paralelismo entre os dois momentos parece inevitável, na medida em que, a partir dos atentados de Nova Iorque, as vistas aéreas se converteram, por via de um drama globalmente partilhado, num aspecto central da iconografia urbana, espécie de forma simbólica da sociedade conParalelo n.o 7

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temporânea. Desde então, tornou­‑se estranhamente invulgar assumir uma perspectiva superior de uma grande cidade como uma imagem parada. Neste novo imaginário colectivo, as fotografias panorâmicas de metrópoles como Nova Iorque ou São Paulo tendem a transformar­‑se, virtualmente, em sequências de imagens, em instantâneos ou fragmentos de um acontecimento, como se o movimento estivesse sempre subjacente. E há um sentido trágico e romântico em tudo isto, que ultrapassa qualquer memória ou acontecimento específico. Mesmo que sejam apenas edifícios desinteressantes e anónimos, recortados em incontáveis variantes sobre um fundo indefinido; mesmo que seja somente mais um viaduto de betão, repetidamente percorrido por automóveis idênticos; mesmo que a repetição e a cadência dissolvam qualquer singularidade na monotonia do conjunto; mesmo assim, o olhar demora­‑se na imagem, porque a paisagem urbana abre sempre um campo ilimitado de expectativas. Na realidade, como na imagem, alguma coisa está sempre prestes a acontecer.

Helena Barranha

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Transatlantic Trends Transatlantic Trends é um inquérito anual sobre a opinião pública nos eua e na Europa. Este estudo é um projecto do German Marshall Fund of the United States (gmf) e da Compagnia di San Paolo (Turim, Itália) que em Portugal funciona com o apoio da Fundação Luso-Americana. Em 2012, foram estudadas as relações transatlânticas e o primeiro mandato de Obama; as últimas eleições americanas; a segurança transatlântica; as relações com a Rússia, Turquia e Ásia; e a economia e crise do euro. Relativamente a esta última, na União Europeia, 65 por cento afirmam ter sido pessoalmente afectados pela crise económica (um aumento face a 61 por cento em 2011), e 79 por cento registados que dizem o mesmo nos eua. Em Portugal, 89 por cento dos inquiridos dizem ter sido pessoalmente afectados pela crise económica. Neste contexto, a maioria dos americanos (52 por cento) diz não aprovar a gestão económica de Obama. Por sua vez, 56 por cento dos inquiridos na ue também desaprovam a gestão dos seus governos, um sentimento que é mais acentuado nas economias periféricas e mais problemáticas da Europa: Espanha (73 por cento), Itália (66 por cento) e Portugal (65 por cento). A Rússia mostra-se dividida quanto à gestão das questões económicas pelo seu governo (46 por cento aprovam, 46 por cento reprovam).

Mais informações em www.transatlantictrends.org


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