Paralelo #08

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O 25 de Abril de 74 visto por investigadores norte-americanos Quem são os políticos portugueses da Califórnia? O Nobel de origens açorianas A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP)

Aprender Português na América


Fundação Luso­‑Americana CONSELHO DIRECTIVO:

Teodora Cardoso (Presidente) Embaixador dos EUA Jorge Figueiredo Dias Jorge Torgal Luís Braga da Cruz Luís Valente de Oliveira Michael de Mello Vasco Pereira da Costa Vasco Graça Moura

“Belo céu azul [aqui em Nova Iorque] que me leva a pensar que nós estamos na mesma latitude de Lisboa, o que tenho dificuldade em imaginar.” Albert Camus, Cahier V (1946)

CONSELHO EXECUTIVO:

Maria de Lurdes Rodrigues (Presidente) Charles Allen Buchanan, Jr Mário Mesquita SECRETÁRIO­‑GERAL: José Sá Carneiro DIRECTORES: Fátima Fonseca, Miguel Vaz SUBDIRECTOR: Rui Vallêra e Paula Vicente ASSESSORES: João Silvério

Rua do Sacramento à Lapa, 21 1249­‑090 Lisboa | Portugal Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358 Email: fladport@flad.pt • www.flad.pt

Paralelo DIRECTORA: Maria de Lurdes Rodrigues EDITORA: Sara Pina COORDENADORA: Paula Vicente COLABORAM NESTE NÚMERO: Almerinda Romeira,

Alexandre Soares, Ana Maria Silva, Ana Cristina Cachola, Carla Baptista, Cláudia Henriques, Eduardo Pereira Correia, Filipa Melo, Francisco Belard, Idílio Freire, Isabel Aleario, Joana Carvalho Fernandes, Joana Rodrigues, Maria João Avillez, Marina Almeida, Miguel Monjardino, Pedro Borges Graça, Raquel Duque, Rui Ochoa, Sara Pina, Sofia Branco, Vanessa Rodrigues

DESIGN: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2] REVISÃO: António Martins IMPRESSÃO: www.textype.pt

Caro leitor

TIRAGEM: 1000 exemplares NIF: 501 526 307 Nº DE REGISTO NA ERC: 125 PERIODICIDADE: semestral

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paralelo@flad.pt Depósito legal: 269 114/07 ISSN 1646­‑883X © Copyright: Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento Todos os direitos reservados

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acordo de Parceria Atlântica de Comércio e Investimento (TTIP) é analisado neste número num artigo de opinião de Nuno Cunha Rodrigues que tem participado nos debates nacionais sobre o tema. Maria João Avillez escreve sobre a sua experiência na América, ou, como diz, nas “Várias Américas”. A reportagem de capa trata as novas abordagens do ensino de português nos EUA e, entre muitos outros importantes assuntos transatlânticos, discutimos com quatro excelentes investigadores o 25 de Abril e as suas consequências. A não perder a última edição desta revista em papel. A Paralelo continua online para relatar os assuntos de interesse para Portugal e os EUA. Muito para além do paralelo geográfico, partilhado pelos dois países, é mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa. SARA PINA

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O 25 de Abril de 74 visto por investigadores norte-americanos Quem são os políticos portugueses da Califórnia? O Nobel de origens açorianas

OFERTA DO EDITOR

Aprender Português

COMPLIMENTARYna América A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP)

CAPA

“Como se ensina português na América”

COPY

[POLÍTICA] 04 | Editorial Paralelo online

06 | Quem são os políticos portugueses da Califórnia? por Joana Carvalho Fernandes

25 de abril 1974 - 2014

O 25 de Abril de 74 visto por investigadores norte-americanos por Sara Pina

18 | Tudo é possível? 20 | “Foi um período de esperança e expectativa” 22 | A crise teve menos impacto negativo em Portugal 24 | “Tinha a sensação que o mundo estava a fazer-se de novo”

[PORTUGAL/EUA]

[ECONOMIA]

36 | O Nobel de origens açorianas

40 | A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP)

por Sara Pina

por Nuno Cunha Rodrigues

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Paralelo online

Fundada há quase sete anos, a Paralelo transitará para o formato digital, no quadro do Website da FLAD, sendo esta a oitava e última edição em papel.

A Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento decidiu centrar no online a sua comunicação institucional. Fundada há quase sete anos, a Paralelo transitará para o formato digital, no quadro do website da flad, sendo esta a oitava e última edição em papel. Centrada fundamentalmente nas iniciativas promovidas e apoiadas pela flad e em temas ligados às relações entre Portugal e os Estados Unidos da América, cada edição da Paralelo corresponde a um número de páginas de texto informativo igual ou superior ao dos magazines noticiosos (média de 80 páginas por edição). Esta decisão corresponde ao enorme desenvolvimento do espaço digital. O título da revista da flad passará a ser Paralelo Online, aludindo às relações entre Portugal e os Estados Unidos da América. Lisboa fica no mesmo paralelo de Nova Iorque, ainda que raramente isso nos ocorra, de um lado ou de outro do Atlântico. Paralelo

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EDITORIAL

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POLÍTICA

Luso-descendentes no Congresso norte-americano

A luz sobre o “mistério”da Califórnia acendeu-se com uma história de amor Quando a família Graves chegou ao Vale de São Joaquim, na Califórnia, Alvin Ray “não sabia nada sobre portugueses”. Ficou “muito impressionado com a beleza das mulheres”. Apaixonou-se. Casou com uma luso-descendente de terceira geração e apaixonou-se também pela sua família. Os avós, açorianos, inspiraram-no. Os portugueses do “Valley” foram objecto de vários trabalhos do historiador nas últimas décadas. Este ano, Alvin R. Graves lançou o livro California’s Portuguese Politicians – A Century of Legislative Service que conta a história de um século de participação dos emigrantes portugueses deste Estado na política norte-americana, e procura perceber a causa do seu sucesso. POR JOANA CARVALHO FERNANDES*

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Mas então, o “mistério” da Califórnia explica-se com uma coincidência ou com uma consequência? “Nada é mais humano do que a política. As ciências sociais não são como as ciências exactas. Este livro é um sumário das minhas observações, das minhas conversas, das minhas interpretações. Por isso, o que, na minha opinião, justifica que esta zona tenha produzido todos os luso-americanos eleitos para o Congresso não é apenas coincidência nem apenas consequência.É, ao mesmo tempo, um pouco das duas, e a explicação começa na linha que separa o urbano do rural”, acrescentou.

TONY GOULART

A Califórnia é o único Estado norte-americano onde existem congressistas de origem portuguesa. Isto acontece apesar de haver diversos outros pólos de emigração portuguesa dispersos pelo país, muitos deles mais numerosos e mais concentrados do que o deste Estado, como Massachusetts ou Rhode Island, na costa leste. O “mistério” da Califórnia “podia ser uma coincidência ou uma consequência”. Alvin R. Graves foi estudá-lo, com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). O resultado – California’s Portuguese Politicians – A Century of Legislative Service – é “um relato biográfico e histórico” numa janela de um século, que elenca todos os luso-americanos eleitos oficialmente na Califórnia, desde John G. Mattos, que em 1900 ganhou a eleição para a California State Assembly, até David Valadão, que, já em 2010, ganhou a eleição para a mesma assembleia, sendo eleito dois anos depois para o Congresso Federal, ao lado de dois outros políticos luso-americanos, Jim Costa e Devin Nunes. “O meu objectivo era dar a conhecer estas pessoas, que muitos – incluindo portugueses e luso-descendentes – não conheciam, ou não sabiam que eram de origem portuguesa. Quis também corrigir mal-entendidos. Eu sabia que havia muito por conhecer sobre este tema, nada

A apresentação do livro contou com a presença do embaixador de Portugal nos EUA (à direita) e o cônsul-geral em São Francisco (à esquerda).

tinha sido feito. Mas isto é uma colecção de biografias introdutórias, apenas para início de conversa. Traz mais perguntas do que respostas. É um ponto de partida para que quem tenha interesse no tema possa ter por onde começar”, explicou o historiador.

OS PORTUGUESES DO VALE DE SÃO JOAQUIM DA CALIFÓRNIA “Esta história começa com uma história de amor. Casei-me com uma portuguesa e apaixonei-me também pela sua família. O avô era um dos melhores exemplos dos portugueses que tínhamos no Vale. Nasceu nos Açores, era órfão e passou alguns anos num seminário, onde aprendeu francês e latim. Era bom em português e em matemática. Era empreendedor e um líder carismático. Era reconhecido por todos e teve sucesso. Ele inspirou-me. Foi por causa dele que comecei a estudar os portugueses”, recordou o historiador. Paralelo n.o 8

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POLÍTICA

E, no século XX, também não se pode separar a agricultura do agronegócio, que está, por sua vez, e ainda nos dias de hoje, muito ligado às questões da política”, disse. Assim, os portugueses foram construindo, a par de negócios de sucesso, nomes de família que se tornaram autênticas “marcas de confiança” para a comunidade: “Os portugueses estão entre os maiores, mais antigos e mais importantes empresários nesta área. O resultado de mais de 100 anos na liderança do desenvolvimento do sector agrícola foi uma imagem forte e respeitada para a família. Para as famílias. Os portugueses eram influentes na comunidade e esta confiança colocou-os em vantagem em relação à influência política na comunidade quando comparados com os emigrantes portugueses noutros Estados”.

Alvin R. Graves explicando o seu estudo de um século de políticos luso-americanos

Em 1969, Graves fez um mestrado na Universidade da Califórnia e estudou as leitarias portuguesas no Vale de São Joaquim. Mais tarde, estudou o papel destes emigrantes na agricultura daquele Estado. Voltou ao tema em 2002, quando a Portuguese Heritage Publications of California, uma organização sem fins lucrativos liderada por Tony Goulart, que promove a investigação sobre a presença portuguesa neste Estado, lhe fez um convite para rever estas investigações. Desse trabalho resultou o livro The Portuguese Californians. Para Alvin R. Graves, o que explica o inigualável sucesso dos emigrantes portugueses e luso-americanos na Califórnia na política tem raízes “em diferenças básicas que começam com as diferenças entre espaço rural e espaço urbano”. “Em primeiro lugar, importa perceber que não se pode separar o Vale da agricultura: esta terra é agricultura, sempre foi e sê-lo-á no futuro próximo. E, para analisarmos este assunto, também não podemos separar os portugueses deste Vale da agricultura. Quando aqui chegaram, há 100 anos, os emigrantes portugueses – sobretudo açorianos – vieram continuar uma actividade que já desenvolviam antes de mudarem de país e isto não aconteceu com as comunidades dos outros Estados. Aqui os portugueses começaram como pequenos agricultores e cresceram até serem líderes de grandes empresas. Não se separa a evolução da agricultura na Califórnia do crescimento da comunidade de emigrantes portugueses. Paralelo n.o 8

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COINCIDÊNCIA OU CONSEQUÊNCIA? Uma, e depois a outra. Ou seja, para o historiador, “pode identificar-se como coincidência – ou sorte, ou vontade – que portugueses ou luso-americanos tenham chegado a candidatos”. Contudo, depois actuou a consequência da herança forte. “Foi a história da família, a reputação da família e o seu poder de influência na comunidade que levou estes homens ao Congresso. A marca de confiança em que o nome das famílias portuguesas neste sítio se transformou pesou como vantagem para a vitória na eleição”, explicou. “Mesmo que não se conheça a pessoa,

Foi a história da família, a reputação da família e o seu poder de influência na comunidade que levou estes homens ao Congresso. Alvin R. Gravves

conhece-se a família. Se se disser o nome Mendes, as pessoas saberão de quem se está a falar. E se um membro da família Mendes liga e diz que o seu primo vai concorrer a um lugar, a reputação da família pesa no voto. Nestes casos, estamos a falar de famílias com um nome construído no espaço de mais de um século, e que têm uma rede de comunicação fenomenal”, acrescentou. Mário Mesquita, membro do conselho executivo da FLAD, explicou que a fundação apoiou a investigação de Alvin R. Graves porque esta era uma ideia com vários argumentos fortes: uma questão de

partida com interesse, o apoio de “personalidades destacadas da comunidade portuguesa” ao projecto e “a confiança que o investigador merecia”. As respostas que o trabalho de Graves encontrou puseram alguma luz sobre o tema, mas, sobretudo, trouxeram muitas outras questões: “Para perceber porque é que só na Califórnia existem senadores portugueses, será necessário estudar ainda, pelo menos, os Estados onde a emigração portuguesa é dominante, como Massachusetts, Rhode Island, New Jersey, entre outros. E tudo isso está por fazer”, concluiu. * Jornalista freelancer

Quem são os políticos portugueses da Califórnia? O novo livro California’s Portuguese Politicians – A Century of Legislative Service, da autoria de Alvin Graves e publi‑ cado pelo Portuguese Heritage Publications of California, Inc. com o apoio da Fundação Luso-Americana, foi apresentado em Tulare, nos Estados Unidos, numa sessão promovida no âmbito da 17.ª Gala da PALCUS, dia 1 de Novembro, e onde este‑ ve presente do congressista luso-america‑ no Devin Nunes. A obra resulta de um trabalho de investi‑ gação desenvolvido ao longo de vários anos e apresenta os luso-descendentes eleitos para cargos políticos, quer a nível estadual, quer federal, da Califórnia. O estudo, encomendado pela FLAD, incide especificamente sobre o Estado da Califórnia tendo como objectivo perceber por que motivo todos os luso-americanos eleitos a nível federal nos EUA são prove‑ nientes deste estado. Para compreender melhor este fenómeno, a FLAD apoia este trabalho que se insere na estratégia de ajudar os portugueses e luso-descendentes a afirmar-se politicamente, e de promover a cultura e língua portuguesas nos EUA. O livro foi também apresentado na Gala da PALCUS, contando com a presença do congressista luso-americano Jim Costa, do embaixador de Portugal nos EUA, Nuno Brito, e do cônsul-geral de Portugal em São Francisco, Nuno Mathias, e em mais três sessões realizadas nas cidades de San Jose e San Leandro. ANA MARIA SILVA LPM

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POLÍTICA

Seminários d’Óbidos 2013: políticos e diplomatas

Quem são as elites portuguesas que fazem a política externa? Resultado de uma parceria bem-sucedida iniciada em 2004 com a Câmara Municipal de Óbidos (CMO), como foi destacado pelo presidente Telmo Faria na sessão de abertura, o IPRI – UNL organizou, entre os dias 16 e 18 de Setembro, mais uma edição do seu Curso de Verão em Óbidos, este ano dedicada ao tema Políticos e Diplomatas: Quem são as Elites Portuguesas que Fazem a Política Externa?, sob a coordenação científica de Nuno Severiano Teixeira, director do IPRI – UNL. POR ISABEL ALCARIO*

Integrado no projecto “Política Externa e Regimes Políticos: Portugal 1890-2010”, também coordenado por Nuno Severiano Teixeira e desenvolvido no IHC e no IPRI – UNL por uma equipa multidisciplinar de investigadores oriundos da história, da ciência política, da sociologia e das relações internacionais e financiado pela FCT – MEC, que procura deslocar o centro da análise dos resultados para o processo de formulação da política externa portuguesa, desenvolvendo uma análise que incide em três dimensões: sobre os agentes (políticos e diplomáticos); sobre as estruturas institucionais (a estrutura orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros e a estrutura diplomática e consular); e sobre os processos de tomada de decisão política, neste seminário foram apresentados os primeiros resultados deste projecto, relativos mais concretamente à primeira dimensão. Organizado em painéis temáticos divididos pelos três dias do curso, onde diferentes especialistas apresentaram os seus trabalhos de investigação, os Seminários d’Óbidos proporcionaram ainda uma oportunidade de diálogo entre estes e alguns dos principais protagonistas da política externa portuguesa, objecto do seu estudo, ao contar com a participação de diplomatas de carreira, como o embaixador João Rosa Lã, Manuela Franco, actual directora do Instituto Diplomático e antiga Secretária de Estado dos Negócios

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cionais, ciência política e história), funcionários da alta administração pública aposentados e, no último dia, os adidos de embaixada admitidos no concurso de 2013, a edição de 2013 foi, provavelmente, a que contou com um público mais diversificado, revelando a forma como estes seminários se afirmam cada vez mais no panorama académico e mediático nacional. Pedro Tavares de Almeida, director do Departamento de Estudos Políticos da FCSH – UNL e investigador do IPRI – UNL, deu início aos seminários académicos com uma apresentação sobre o estudo das elites políticas portuguesas, onde introduziu a abordagem teórica e conceptual do estudo das elites A troca de sinergias entre académicos enquadrando, desta e protagonistas caracterizou o intenso forma, as apresentações seguintes. Em seguida, debate que marcou as sessões Alejandro Quiroz Flores, da Universidade de do Curso e que se prolongou Essex, apresentou o seu para os momentos de convívio. estudo sobre a sobrevivência política dos ministros dos Negócios A troca de sinergias entre académicos e Estrangeiros baseado numa análise longiprotagonistas caracterizou, aliás, o inten- tudinal realizada sobre cerca de 7500 so debate que marcou as sessões do Curso mandatos ministeriais em 181 países ao e que se prolongou para os momentos de longo de três séculos. A sessão da manhã convívio. Com um público composto por do dia 17, presidida pelo embaixador João investigadores, alunos de mestrado e dou- Rosa Lã, foi dedicada ao painel “Os toramento (das áreas de relações interna- Ministros” e permitiu a Nuno Severiano Estrangeiros e da Cooperação, e do embaixador Francisco Seixas da Costa, antigo Secretário de Estado dos Assuntos Europeus que, com os seus testemunhos sobre os seus percursos e experiências, permitiram aos participantes a entrada em alguns episódios mais curiosos da vida das chancelarias e do Ministério. Da mesma forma, Rui Machete, Ministro dos Negócios Estrangeiros e antigo Secretário de Estado da Emigração, não podendo estar presente presencialmente, enviou uma mensagem em vídeo aos participantes onde manifestava o seu apoio e interesse por mais esta iniciativa do IPRI – UNL e da CMO.

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POLÍTICA

maioria da literatura académica internacional sugere, levaram Manuela Franco a destacar a importância de ter personalidades com um peso político forte à frente do Ministério e menor capacidade de influência política dos especialistas. Ao terceiro dia, na sessão sobre as elites

com as suas mudanças e permanências, traçando simultaneamente um pouco da história das própria instituição. Filipe Abreu Nunes, do IDN, desenvolveu uma apresentação sobre o recrutamento das elites administrativas em Portugal (os directores-gerais), onde destacou o padrão de profissionalização matizado pela persistência de lógicas de politização clientelar. André Freire, do ISCTE – Manuela Franco destacou IUL, incidiu sobretudo a importância de ter personalidades sobre as atitudes dos deputados e eleitores com um peso político forte portugueses perante a à frente do Ministério e menor integração europeia e a forma como a crise ecocapacidade de influência política nómica tem afectado o dos especialistas. apoio a esta dimensão da política externa portuguesa, apontando para burocráticas e políticas, Nuno Severiano uma erosão deste apoio. Teixeira traçou a evolução do perfil dos embaixadores portugueses desde 1890, *Investigadora do IPRI e doutoranda do ICS

CÂMARA MUNICIPAL DE ÓBIDOS

Teixeira responder à questão “Quem é o Ministro dos Negócios Estrangeiros em Portugal?” e explorar uma dimensão comparada, a nível nacional, por António Costa Pinto do ICS – UL que focou sobretudo a escolha de ministros sem filiação partidária, os chamados especialistas, e internacional, por Goffredo Adinolfi do CIES – IUL, que apresentou o perfil do ministro dos Negócios Estrangeiros italiano desde 1919. Na sessão da tarde, dedicada aos secretários de Estado, Pedro Silveira, do CESNova apresentou o perfil dos secretários de Estado portugueses, baseado numa análise prosopográfica e da carreira governamental destes governantes, estabelecendo a distinção entre especialistas e políticos, e Isabel Alcario traçou o perfil dos secretários de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, elaborado no âmbito do projecto supramencionado. As conclusões de ambos os investigadores indicando que a maioria dos secretários de Estado não tem uma carreira ministerial posterior ao contrário do que a

Telmo Faria, presidente da Câmara Municipal de Óbidos (à esquerda) e Nuno Severiano Teixeira (director do IPRI) no curso “Políticos e Diplomatas: Quem São as Elites Portuguesas Que Fazem a Política Externa?” Paralelo n.o 8

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POLÍTICA

O sonho O dia 3 de Março de 1913 ficou marcado pela Marcha das Sufragistas na Avenida Pensilvânia em Washington, um dia antes da tomada de posse de Woodrow Wilson, o 28.º Presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Cerca de oito mil mulheres marcharam em protesto contra a política da sociedade norte-americana que lhes negava o direito ao voto. Foi um marco na luta pelo direito ao voto feminino. Foi há cem anos. POR SÓNIA ANDRADE*

to já nem sequer é visto como uma conquista, mas como algo natural e seria impensável ser de outra forma. Mas há um século, o que era impensável é que uma pessoa, por ser mulher, pudesse votar, ser governante, ou trabalhar “como um homem”. A discriminação era consensual até que algumas pessoas do sexo feminino tiveram o sonho de acabar com ela. A luta nos EUA terminou com a aprovação da 19.ª Emenda à Constituição dos Estados

Unidos de 1919 que concedeu à mulher o direito ao voto em todos os estados. No entanto, o movimento pelo sufrágio universal começou no Reino Unido da Grã­ ‑Bretanha e Irlanda onde a campanha pelo voto feminino foi mais radical. As “suffragettes”, como inicialmente e de forma pejorativa foram apelidadas, conseguiram em 1918 que o Representation of the People Act fosse aprovado, permitindo às mulheres acima dos 30 anos, proprietárias Library of Congress prints and photographs division Washington, D.C.

Em 2013 nos EUA, em Portugal e na maioria dos países ocidentais, uma mulher pode votar desde que seja maior de idade, mas esse direito pleno nos EUA só se tornou realidade em 1920 e em Portugal foi conquistado depois do 25 de Abril de 1974, há trinta e nove anos. No entanto, há ainda pelo mundo muitos países como o Koweit, entre outros exemplos, onde as mulheres não são dignas desse direito mas quer nos EUA, quer em Portugal esse direi-

A 19.a Emenda à Constituição Americana veio a dar resposta à luta das mulheres pelo direito de voto.

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de uma ou mais casas, exercer o direito ao voto. Mas demorou mais dez anos para que em 1928 este direito se estendesse a todas as mulheres com mais de 21 anos. O movimento, iniciado no século XIX, foi lentamente chegando aos quatro cantos do mundo onde sufragistas de diversas nacionalidades conquistaram a igualdade. O primeiro país a conceder o direito de voto às mulheres foi a Nova Zelândia em 1893, mas só a partir de 1920 é que as nações ocidentais foram dando às mulheres o direito de votar. E em pleno século XXI, alguns países ainda não permitem o voto feminino, entre outros direitos. A batalha continua cem anos depois. A I Guerra Mundial (1914-1918) obrigou um número cada vez maior de mulheres a substituir a mão-de-obra masculina, uma vez que os homens foram deslocados para o campo de batalha e muitos não voltaram ou regressaram mutilados. O papel da mulher na sociedade foi mudando e crescendo, não apenas pela sua contribuição laboral na guerra mas também pelos movimentos feministas, cujo ponto de partida começa na Convenção dos Direitos da Mulher realizada em 1848, em Seneca Falls, no estado de Nova York, EUA, na qual as mulheres defenderam o fim da escravidão, ainda antes do voto feminino. Em 1869, o território do Wyoming tornou-se pioneiro ao permitir esse direito e três estados o seguiram. Mas quando o Wyoming foi elevado a estado, parte da União exigiu a abolição do mesmo. O governo local declarou que preferia retardar cem anos a entrada do Wyoming para a União do que não conceder direitos políticos femininos. Na Europa os movimentos pelo direito da mulher ao voto foram intensos na Grã­ ‑Bretanha. Em 1897, a educadora Millicent Garret Fawcett e Lydia Becker fundaram a National Union of Women’s Suffrage Societies (NUWSS) que começou por ser uma associação pacifista mas a falta de resultados práticos levou a uma mudança de estratégia. Entretanto, em 1901 a Austrália concedeu às mulheres o direito ao voto, um facto que levou as inglesas a tornarem-se ainda mais radicais, incendiando estabelecimentos públicos, liderando ataques a casas de políticos e membros do Parlamento. O Governo levou a cabo uma violenta repressão e prendeu as líderes do movimento. Na prisão, as sufragistas fizeram greve de fome e acabaram por ser brutalmente alimentadas à força. Esta violência chocou a opinião pública e intensificou ainda mais as manifestações das sufragistas. Emily Wilding Davison, numa Paralelo n.o 8

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atitude desesperada, atirou-se para a frente do cavalo do Rei durante uma prova hípica, tornando-se a primeira mártir desta luta. Mas o processo não foi idêntico no resto do mundo. No princípio do século XX a Finlândia concedeu o voto às mulheres em 1906, a Noruega em 1913, em 1915 foi a vez da Dinamarca e Islândia. A Suécia foi o último país escandinavo a conceder o voto feminino em 1918. O voto das mulheres chegou à Holanda em 1917, à Rússia, após a Revolução Bolchevique, em 1917, à Alemanha em 1918, à Irlanda em 1922, à Áustria, Polónia, Checoslováquia em 1923. A Espanha deu o voto às mulheres em 1931 e França e Itália fizeram-no após a II Guerra Mundial em 1945. A Suíça permitiu o sufrágio universal apenas em 1971. Na América Latina, o Equador foi pioneiro ao consagrar este direito em 1929 e Eva Perón, a primeira dama da Argentina, conseguiu obter esse direito em 1947. Em Portugal a médica e viúva Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar em 1911, alegando que sendo chefe de família o poderia fazer uma vez que a lei não especificava o sexo do chefe de família. Levou a sua causa a tribunal e ganhou. Morreu aos 33 anos, uma curta existência mas suficiente para fazer história. Logo de seguida, o Governo mudou a lei explicitando que apenas o sexo masculino poderia votar. Em Maio de 1931, o voto foi concedido à mulher com várias limitações que duraram até ao 25 de Abril de 1974. Mas o sufrágio universal não se resume ao género masculino e feminino. Há 60 anos, a 28 de Agosto de 1963, o norte-americano Martin Luther King fez um discurso que se tornou icónico a partir dos degraus do Lincoln Memorial em Washington perante 200 mil pessoas, apelando ao fim da discriminação racial, aos direitos cívicos dos negros, entre eles o voto. Foi o laureado mais novo do Prémio Nobel da Paz e morreu assassinado antes de ver aprovado pelo Congresso norte-americano o Civil Rights Act of 1964, seguido do 1965 Voting Rights Act. “I have a dream” é o símbolo da reivindicação do movimento pacifista pela igualdade e fraternidade entre os homens. E a prova que, sem uso da violência, homens e mulheres, brancos ou negros, católicos ou muçulmanos conseguem derrubar barreiras racistas, machistas, políticas ou religiosas. Os Direitos Humanos estão consagrados na Declaração Universal da ONU escrita após a II Guerra Mundial. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”[...]. Todos podem invocar os direitos e as liberdades, sem

Library of Congress prints and photographs division Washington, D.C.

POLÍTICA

distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”. As sufragistas e os negros norte-americanos tiveram exactamente o mesmo sonho – o de serem considerados pessoas aos olhos das outras pessoas. Hoje, pelo mundo fora, os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos não são cumpridos na sua plenitude. O sonho morreu? * Jornalista freelancer

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POLÍTICA

A família Kennedy: imagens de perfeição

Entre o real e o imaginário o Presidente Kennedy e a sua família foram largamente falados em Novembro passado pelos 50 anos do assassinato de JFK, em Dallas. Nos anos 60, do século passado, como nunca antes tinha sido feito, a família Kennedy utilizou da melhor forma a divulgação mediática, tornando-se num casal perfeito, como num conto de fadas. As belíssimas imagens do fotográfo oficial Jacques

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Lowe reproduzem o ambiente mágico dos contos infantis, dos príncipes e princesas, da luta entre o bem e o mal, das fábulas do Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, daí o nome Camelot lhes assentar tão bem, apesar de não disfarçar uma vida de amarguras e desequilíbrios que assombrou a família como uma maldição, contribuindo, também, para o mito. Em 1963, o ambiente nos Estados

Unidos era de optmismo, sem paralelo com a actualidade. Segundo as sondagens da Gallup da altura, analisadas recentemente pelo Pew Research Center. JFK e a família eram o reflexo do sonho americano nas câmaras fotográficas de Jacques Lowe. Reproduzimos algumas imagens do fiel fotógrafo pessoal dos Kennedy captadas por um admirador seu – o fotógrafo Rui Ochoa.

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POLÍTICA

UE desejada Portugal com a percentagem mais elevada de inquiridos que se sentem afectados pela crise: 90%

A 12.ª edição do inquérito anual Transatlantic Trends revela que os europeus e americanos não são a favor de uma intervenção militar na Síria. 72% dos europeus e 62% dos americanos inquiridos, bem como 72% dos respondentes turcos, não querem que os seus governos entrem no conflito. A sondagem foi realizada antes do ataque com armas químicas. À medida que os países do Norte da África e do Médio Oriente continuam a lutar pela democracia, 47% dos entrevistados nos Estados Unidos, 58% dos europeus e 57% dos turcos inquiridos, preferem a democracia à estabilidade nos países da Primavera Árabe. A Transatlantic Trends 2013 é uma sondagem anual de opinião pública, conduzida pelo German Marshall Fund of the United States (GMF) e pela Compagnia di San Paolo (Turim, Itália), com o apoio da Fundação Luso-Americana (Portugal), da Fundação BBVA (Espanha), da Fundação Communitas (Bulgária), do Ministério dos Negócios Estrangeiros sueco, e do Barrow Cadbury Trust (Reino Unido). Os europeus sentem que a chanceler alemã Angela Merkel (47% de aprovação) fez um melhor trabalho na gestão da crise económica do que a União Europeia (UE) – com 43% de aprovação contra 49% de desaprovação. Os países da UE mais afectados pela crise tendem a registar os maiores índices de desaprovação quanto à gestão da crise pela UE (Espanha, 75%; França, Portugal e Reino Unido, 55%; e Itália, 49%). No entanto, as taxas de desaprovação de Merkel também subiram de forma acentuada nas economias que atravessam maio-

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© EUROPEAN UNION 2013 © ARCHITECTURE STUDIO

Transatlantic Trends: 66% dos entrevistados europeus vê a UE de forma favorável. Em Portugal a aprovação é de 56%, menos 25 pontos percentuais desde 2009; 62% dos europeus desaprovam a forma como os governos dos respectivos países têm gerido a crise económica.

Cinquenta e seis por cento dos europeus concordam com o Transatlantic Trade and Investment Partnership

res dificuldades – com picos de 65% em Portugal e 82% em Espanha. A sondagem à opinião pública europeia e dos EUA também mostrou opiniões favoráveis​​ sobre o comércio. À medida que as negociações com o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) avançam, 56% dos europeus e 49% dos norte-americanos inquiridos afirmam que o aumento do comércio transatlântico ajudaria as suas economias. Quando questionados sobre a imigração, as maiorias nos Estados Unidos (73%, uma descida face aos 82% em 2011) e na Europa (69%) disseram não estar preocupados com

a imigração legal. O mesmo não acontece no caso da Turquia, com 60% dos respondentes que afirmaram estar preocupados com a imigração legal. Por sua vez, 61% dos norte-americanos mostraram-se preocupados com a imigração ilegal, acompanhados por 71% dos inquiridos europeus e 69% dos turcos. Quase todos os entrevistados sobrestimaram a percentagem de imigrantes nos seus países. Relatório completo, metodologia e série de dados em www.transatlantictrends.org Paralelo n.o 8

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POLÍTICA

Mais atenção à NATO POR MIGUEL MONJARDINO

A Síria diz-nos como é que a NATO está a mudar. Olhamos para Damasco como um problema estratégico do Médio Oriente. E é. Mas a maneira como os líderes e as opiniões públicas europeias têm falado sobre este difícil problema, diz-nos muito sobre a actual contribuição do Velho Continente para a Aliança Atlântica.

Por um lado, não há nenhuma crise política entre europeus e norte-americanos na NATO. Por outro, há complacência do nosso lado. A NATO está a atrofiar silenciosamente no Velho Continente.

Um dos objectivos do euro foi tornar a Europa mais poderosa e influente a nível internacional. Para uns, o euro permitiria à Europa ser uma alternativa estratégica a Washington. Para outros, era o melhor caminho para fortalecer a NATO e equilibrar a relação transatlântica com os EUA e o Canadá. Uma união económica e monetária permitiria criar mais riqueza nos países europeus, melhorar as forças armadas e responder aos principais problemas de segurança internacional. O primeiro sonho nunca passou disso mesmo. Mas será que o segundo é realista? Dito de outra forma, será que na próxima década vamos conseguir que Washington continue a olhar para a NATO como a principal aliança a nível da segurança internacional? Na conferência “Portugal Europeu. E agora?” promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em Lisboa, Carlos Gaspar, assessor do Instituto de Defesa Nacional, e Anand Paralelo n.o 8

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Menon, professor no King’s College em Londres, chamaram a atenção para um paradoxo. Por um lado, não há nenhuma crise política entre europeus e norte-americanos na NATO. Por outro, há complacência do nosso lado. A NATO está a atrofiar silenciosamente no Velho Continente. Há duas razões para isto. Começando pelo Transatlantic Trends 2013 divulgado esta semana pela Fundação LusoAmericana para o Desenvolvimento, o relatório do German Marshall Fund diz-nos que a maioria dos europeus e dos norte-americanos continua a achar a NATO essencial. Mas também nos diz que as opiniões públicas olham para a organização cada vez mais como uma comunidade de democracias atlânticas e menos como uma organização de segurança e defesa. À primeira vista isto parece uma coisa agradável, quase sentimental. O problema é que a estratégia não é uma arte muito dada à sentimentalidade. Especialmente em Washington. Isto leva-me ao segundo ponto. Como é que vai ser possível garantir o futuro da NATO nas actuais circunstâncias políticas e manter a credibilidade militar das forças armadas europeias em Washington? Voltando ao Transatlantic Trends, o relatório mostra que o que preocupa as sociedades europeias não é a sua vulnerabilidade ou sequer os seus interesses estratégicos a nível regional ou internacional mas sim a injustiça dos seus sistemas políticos e económicos na distribuição das oportunidades e da prosperidade. Oscilamos entre as reformas a nível doméstico e a necessidade de mais integração para ultrapassar os problemas da zona euro. A segurança e defesa passaram do centro para as margens do debate políticos em quase toda a Europa. Estamos a fazer uma transição silenciosa da relevância para a irrelevância estratégica. É tempo de pensarmos no que é que isto significa para a NATO, os nossos interesses e valores. Texto publicado no Expresso a 21 de Setembro de 2013

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25 de abril 1974 - 2014

No âmbito dos 40 anos do 25 de Abril, a Paralelo entrevistou quatro importantes investigadores norte-americanos da área política e social, de algumas das mais reputadas universidades do mundo. Todos eles acompanharam de perto a Revolução Portuguesa, tendo viajado para Portugal onde viveram e estudaram o que se passava. Os acontecimentos de há 40

anos marcaram as suas notáveis carreiras universitárias e, também, pessoais. Philippe Schmitter, Kenneth Maxwell, Robert Fishman e Nancy Bermeo divulgaram, e continuam a divulgar, pelo mundo, através dos seus livros, artigos científicos e conferências, o que Portugal lhes revelou. Nas páginas que se seguem falam-nos dessas experiências.

Tudo é possível? Philippe Schmitter cientista político americano e professor emérito do Instituto Universitário Europeu estudou quase todas as transições para a democracia mas foi a portuguesa que lhe mudou a carreira. “Estive no local certo na hora certa”. POR SARA PINA FOTOGRAFIAS DE RUI OCHOA

[Paralelo] Em termos gerais é considerado que as revoluções frequentemente originam regimes não-democráticos, raramente conduzindo a democracias. A revolução do 25 de Abril foi diferente? Como? [Philippe Schmitter] O que liga as modernas revoluções com a autocracia é a existência de uma elite conspirativa coerente que é capaz de mobilizar violência de massa, afastar a anterior classe no poder e, também, capaz de se transformar num partido único dominante. Nenhuma dessas condições esteve presente na Revolução dos Cravos. A “elite” conspirativa consistia num grupo de jovens oficiais que não tinham nenhum plano coerente ou visão de uma sociedade ou políticas alternativas. A mobilização de massa que se seguiu não era violenta e não afastou a anterior elite liderante. Os oficiais foram incapazes de se organizarem num partido único e o seu zelo revolucionário foi rapidamente absorvido e dispersado por instituições militares englobantes das quais eles eram apenas uma pequena parte. [P] A revolução teve algum impacto na qualidade da democracia? E gerou alguns legados que podem de alguma maneira ajudar ou prejudicar na gestão da crise actual? [PS] Num dos artigos que escrevi sobre o assunto, não consegui encontrar nenhumas características duradouras da Revolução. Os dados da opinião pública que tinha entre 18 a 30 anos em Abril de 1974 não revelam um perfil político diferenciado de outras faixas etárias. Apenas foram mais

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“Portugal hoje tem uma das mais desiguais distribuições de rendimento da Europa e uma das taxas mais baixas de protesto popular.” diz Schmitter. Em 1974 houve muita mobilização (na foto).

conservadores e pouco inclinados a agir “extra constitucionalmente” ou mesmo para se manifestarem publicamente. Muitas das políticas revolucionárias foram alteradas. Portugal hoje tem uma das mais desiguais distribuições de rendimento da Europa e uma das taxas mais baixas de protesto popular (apesar de circunstâncias extremas que justificariam acções de protesto como aconteceu em Espanha). Podemos defender que este facto torna mais difícil resolver a crise actual já que o ímpeto reformador é fraco

(pelo menos em Espanha alguns sinais de sucesso começam finalmente a aparecer). [P] Porque veio para Portugal? [PS] Comecei a trabalhar sobre política portuguesa em 1970, exactamente por circunstâncias opostas às da Revolução, nomeadamente a persistência do corporativismo do Estado. Descrevi isso como «uma aventura de arqueologia política» onde pude constatar o autoritarismo dos anos 1930. Fiquei surpreendido como toda a gente com a Revolução, mas encantado. Na altura era Paralelo n.o 8

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25 de abril 1974 - 2014

Ali estava um país que eu considerava notoriamente estagnado, aborrecido e atrasado e que de repente se tornou exactamente o contrário, pelo menos por um curto período de tempo. Philippe Schmitter

professor visitante da universidade de Genebra e, assim que as minhas obrigações do segundo semestre terminaram fui para Lisboa (provavelmente em meados de Maio). [P] Pode partilhar alguma da sua experiência em Portugal e qual era o seu sentimento relativamente ao que se passava à sua volta? [PS] É impossível partilhar mesmo parte das minhas experiências como “observador participante” da Revolução. Ali estava um país que eu considerava notoriamente estagnado, aborrecido e atrasado e que de repente se tornou exactamente o contrário, pelo menos por um curto período de tempo. Nunca esquecerei o entusiasmo das multidões, o sentimento espontâneo de companheirismo, a enchente do novos grupos políticos e literários, a organização de projectos bastante ridículos mas excitantes (lembro-me do “modelo albanês”). Como o meu grande amigo Ary Zolberg disse sobre o Maio de 68, em Paris: “tudo é (ou pelo menos parece ser) possível”. A minha mais forte e especifica lembrança é de um grupo de viúvas, do interior, em frente à estação de comboios a olhar com espanto para um expositor de venda de revistas pornográficas recentemente disponibilizadas ao grande público. De alguma maneira esta situação capta a aceleração extraordinária de tempo e espaço que tinha acontecido. Escusado será dizer que não há mais expositores de venda de pornografia na estação, mas houve mudanças irrevogáveis em termos culturais. [P] Quais foram as consequências para a sua vida e carreira por ter estudado Portugal? [PS] A Revolução revolucionou a minha carreira como cientista político. Até aí fiz a minha vida (modestamente) estudando regimes de que não gostava, autoritários e corporativistas, na América Latina e no Sul da Europa. Claro que não tinha qualParalelo n.o 8

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1974: [Aqui] estava um país que eu considerava notoriamente estagnado, aborrecido e atrasado e que de repente se tornou exactamente o contrário.

quer suspeita que o 25 de Abril seria o primeiro movimento dos 80 a fazer a transição da autocracia (esperançosamente mas nem sempre) para a democracia. Tendo-o observado e escrito sobre ele (já para não falar de dois anos de viagens com o Juan Linz a tentar explicar para várias audiências por que as transições portuguesa e espanhola foram tão diferentes), fui levado a estudar comparativamente primeiro os países da Europa do Sul e

América Latina e, depois, a Europa de Leste, Ásia e, mais recentemente, o Médio Oriente e Norte de África (juntamente com o meu amigo e colega Guillermo O’Donnell). O resultado demonstra que eu estive no local certo na hora certa. Ironicamente, no entanto, retrospectivamente, a transição portuguesa demonstrou ser única nas suas características e isso tornou-me mais capaz de compreender a diversidade deste processo.

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25 de abril 1974 - 2014

“Foi um período de esperança e expectativa” Eu estava em Lisboa um mês antes do golpe. Quando regressei a Nova Iorque era uma das poucas pessoas que podia explicar o que tinha acontecido e porquê. POR SARA PINA

[Paralelo] Em termos gerais é considerado que as revoluções frequentemente originam regimes não-democráticos, raramente conduzindo a democracias. A revolução do 25 de Abril foi diferente? Como? [Kenneth Maxwell] É verdade que a maior parte das revoluções conduzem a resultados não democráticos. Pelo menos a curto prazo. Mas é importante lembrar que a Revolução dos Cravos começou com um golpe militar que derrubou um regime civil não-democrático muito longo. O maior objectivo dos oficiais mais novos que lideraram o golpe foi acabar com a guerra colonial em África, (Guiné-Bissau, Moçambique e Angola). O golpe português do 25 de Abril de 1974 e o seu original sucesso atingido muito rapidamente deixou as pessoas que estavam de fora completamente surpreendidas. Os observadores estrangeiros demoraram bastante tempo a compreender quem eram os actores no drama português. Acresce que o golpe português desenrolou-se num ambiente internacional complicado. A Guerra Fria era muita intensa nos meados nos anos 70. Os soviéticos estavam a recuar no Egipto. A Guerra no Vietname estava a chegar a um fim vergonhoso, com a queda de Saigão e a vitória de Ho Chi Min. Os Estados Unidos enfrentavam o escândalo Watergate. A demissão do presidente Nixon teria lugar pouco depois. Henry Kissinger era um elemento-chave

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Kenneth Maxwell é um dos grandes historiadores britânicos que estudou Portugal e o Brasil. Foi professor em Harvard e dirigiu o centro de estudos portugueses da Universidade de Columbia. Esteve recentemente em Lisboa a propósito dos 40 anos do 25 de Abril e lembra, nesta entrevista, histórias da revolução portuguesa que são, também, histórias do rumo que a sua vida teve: Vivendo nos EUA mas sempre atento ao nosso país.

Kenneth Maxwell junto ao rio Tejo numa visita que a mãe, a irmã e uma amiga lhe fizeram quando viveu em Lisboa, em 1964.

com Nixon e seria ainda mais poderoso com o sucessor de Nixon, Gerald Ford. Portugal tinha um papel estranho em todos estes conflitos. Durante a guerra de Yom Kippur, os Estados Unidos diligenciaram junto de Marcelo Caetano que tinha pedido um adiamento ao uso da base das Lajes, nos Açores, pela força aérea americana, para que os americanos reabastecessem os israelitas. Mais tarde, em compensação, os Estados Unidos prometeram – clandestinamente por causa do embargo de armas a Portugal – fornecer mísseis red eye para Portugal usar na Guiné­‑Bissau. O Partido Comunista Português também teve um papel importante depois do 25 de Abril. O PCP tinha sido fundado em 1921 e liderado desde 1934 por Álvaro

Cunhal. Era um partido leal à União Soviética e constante opositor à ditadura portuguesa. O PCP estava bem organizado e estabelecido em Portugal. Os novos partidos políticos democráticos em Portugal tiveram que se organizar e encontrar os seus militantes depois do golpe. Até o Partido Socialista, com um líder conhecido internacionalmente, Mário Soares, e uma longa tradição de oposição democrática ao regime de Salazar e Caetano, tinha acabado de ser fundado na Alemanha ocidental. Os partidos do centro e de direita no espectro político eram completamente novos. Portanto deram-se dois processos em 1974 e 1975, em Portugal: O primeiro e mais importante deve-se ao papel dos militares, embora a liderança militar estivesse Paralelo n.o 8

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25 de abril dividida quanto à velocidade da descolonização e os eventos em África fossem muito mais rápidos do que Lisboa conseguia controlar. Os movimentos de libertação de África conheciam, melhor que ninguém, os actores da revolução portuguesa e estavam preparados para usar esses contactos em seu benefício. O segundo processo foi o aparecimento de partidos políticos. O evento-chave foi a Assembleia Constituinte, em Abril de 1975, que foi eleita numa adesão às urnas de 90% da população. Pela primeira vez emergia o balanço das forças políticas no País. [P] A revolução teve algum impacto na qualidade da democracia? E gerou alguns legados que podem de alguma maneira ajudar ou prejudicar na gestão da crise actual? [KM] Sem dúvida a revolução aprofundou a democracia portuguesa. A mobilização das pessoas de todos os espectros políticos foi decisiva para os resultados em Portugal. É importante lembrar que estas lutas militares e políticas ocorreram no contexto do cenário de mudança de regime. Houve invasões de edifícios, apartamentos, terras. Enormes grupos de pessoas ocupavam as ruas. Depois de 1975 muitos portugueses que não foram considerados suficientemente revolucionários, que eram donos de propriedades ou de fábricas, ou que eram associados com o antigo regime foram forçados ao exílio. O sentimento da população supermobilizada não podia ser ignorado. Nos finais dos anos 70 a autoridade do Estado foi lentamente recuperada. O papel do povo consequentemente diminui. Mas a forma como a autoridade estadual foi recuperada criou novos problemas. Uma nova classe política emergiu e continua na sua maioria no poder, quarenta anos mais tarde. [P] Qual foi a sua experiência durante a revolução em Portugal? Que avaliação fazia do que se estava a passar? [KM] Eu comecei por viver em Portugal na primeira metade de 1964. Tinha-me graduado na Universidade de Cambridge. Não tinha estudado Portugal, nem conhecia a linguagem, nem sabia bem o que queria fazer após a licenciatura. E decidi passar um ano a aprender línguas. Vim para Lisboa e para Madrid. Foi enquanto estava em Lisboa que fui aceite no doutoramento na Universidade de Princeton. Aprendi a falar português em Lisboa e fiquei fascinado com a história de Portugal, especialmente o século XVIII (em Lisboa vivia perto da estátua do Marquês de Pombal). Paralelo n.o 8

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Em Princeton estudei com o professor Stanley Stein que era um dos principais especialistas na história do Brasil. Voltei a Lisboa para fazer investigação para a minha tese, em 1968, sobre o século XVIII em Portugal e no Brasil e voltei mais seis meses em 1972. Portanto tinha uma relação próxima com Portugal antes do golpe de 1974. Tinha bons amigos dos meus temMaxwell publicou vários livros sobre Portugal. pos de estudante. Em 1974 Aqui no seu gabinete na Universidade de Harvard. estava no Instituto para Estudos Avançados em Princeton quando o livro do O golpe português do 25 de Abril general Spínola, Portugal e o Futuro foi publicado e pensei de 1974 e o seu original sucesso que estaria para acontecer atingido muito rapidamente deixou algo de muito importante. Convenci a New York Review of as pessoas que estavam de fora Books que devia patrocinar a completamente surpreendidas. minha ida a Lisboa para ver com os meus próprios olhos Kenneth Maxwell o que se estava a passar e escrever sobre Portugal. Assim foi. Eu estava em Lisboa um mês antes do as Revoluções Atlânticas no fim do século golpe. Quando regressei a Nova Iorque XVIII, especialmente o impacto da revolução era uma das poucas pessoas que podia haitiana mas acabei por escrever um livro explicar o que tinha acontecido e porquê. sobre a Revolução Portuguesa: The Making O meu primeiro artigo na New York Review of Portuguese Democracy. Também escrevi um of Books foi chamado “Neat Revolution”. livro sobre o Marquês de Pombal. Na Voltei em Janeiro de 1975 para escrever Universidade de Columbia em Nova Iorque fundei e dirigi por muitos anos o Centro vários outros artigos. No Verão de 1975 havia muitos outros Camões para os Países de Língua Portuguesa. jornalistas estrangeiros em Lisboa, muitos A Donzelina Barroso que agora trabalha entusiastas da revolução. Alguns escreve- para a Rockefeller Trusts trabalhou comigo. ram vários livros bons mais tarde. Eu tinha Organizámos uma série de conferências em amigos que faziam parte das milícias e Portugal ao longo dos anos e publicámos pude perceber como estava a ser feito o o Camões Centre Quarterly que a Donzelina desmantelamento dos arquivos da PIDE em dirigia. Eu, também, publiquei vários Janeiro de 1975, por exemplo. Também outros livros sobre Portugal. acompanhei as manifestações de rua. Neste momento estou a preparar um Lembro-me da boa disposição que tinham. novo livro sobre o impacto do terramoto Certo dia houve uma manifestação em de 1755 e a reconstrução de Lisboa, porfrente ao Ministério do Trabalho, estava a tanto não me afastei muito de Pombal. chover torrencialmente. Os manifestantes Acho que a revolução portuguesa teve estavam a gritar contra a CIA mas convi- outro impacto frutuoso na minha vida. Não daram-me para me abrigar debaixo dos pude regressar ao Brasil antes de 1977. seus guarda-chuvas. Portanto perdi os piores anos da ditadura brasileira e das da Argentina e do Chile. [P] Qual foi o impacto da revolução portuguesa Portugal e a Europa do Sul eram uma hisna sua carreira? tória muito positiva no fim dos anos 70. [KM] Bem, trouxe-me muitas vezes a Portugal, Espanha e Grécia emergiram todos Portugal. O meu primeiro livro Conflicts and (especialmente Portugal e Espanha) de décaConspiracies: Brazil and Portugal 1750-1808 foi das de ditadura e isolamento. Foi um períopublicado pela Cambridge University Press do de esperança e expectativa, ao contrário em 1973. Tinha começado um estudo sobre do que aconteceu na América Latina.

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1974 - 2014


25 de abril 1974 - 2014

A crise teve menos impacto negativo em Portugal Sociólogo e cientista político americano, Robert Fishman dedicou uma parte importante do seu trabalho a estudar Portugal, para onde viaja com frequência. Considera que a democracia portuguesa se desenvolveu de uma forma inclusiva o que permitiu uma maior igualdade entre cidadãos. Defendeu que Portugal não precisava de resgate financeiro. POR SARA PINA

[Paralelo] Em termos gerais é considerado que as revoluções frequentemente originam regimes não-democráticos, raramente conduzindo a democracias. A revolução do 25 de Abril foi diferente, como? [Robert Fishman] Primeiro deixe-me dizer que as revoluções às vezes conduzem a democracias. Portugal não foi caso único. As revoluções francesa e americana ambas foram enormes contribuições para a emergência das democracias modernas, apesar dos problemas que também apareceram nestes dois países. Revolução como um tipo de processo sociopolítico não determina por si própria que tipo de sistema político (democrático ou não) irá prevalecer. O resultado dos processos revolucionários é moldado pela identidade política – ou preferências dos seus participantes – e por estruturas externas, condições, forças que interagem. A Revolução dos Cravos acabou numa democracia devido à caracterização política dos seus intervenientes e às condições externas com que a revolução interagiu. O timing da revolução e a sua localização contribuíram para o resultado mas não podemos esquecer a importância das decisões tomadas pelos seus participantes cruciais. Um factor de vital importância foi a decisão de convocar eleições e preparar uma nova constituição. Essas eleições, na altura simbólica do 25 de Abril de 1975, contribuíram grandemente para o sucesso de Portugal na institucionalização da democracia. [P] A revolução teve algum impacto na qualidade da democracia? E gerou alguns legados que podem de alguma maneira ajudar ou prejudicar na gestão da crise actual? [RF] Sim. Eu defendo que os processos social e cultural traçados pela democracia

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Reprodução do artigo que Fishman escreveu para o The New York Times defendendo que Portugal não precisava de resgate financeiro. Paralelo n.o 8

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A Revolução dos Cravos acabou numa democracia devido à caracterização política dos seus intervenientes e às condições externas com que a revolução Robert Fishman interagiu.

“A revolução marcou as circunstâncias para um tipo de políticas democráticas que por si só não garantem o sucesso mas que impedem que forças marginais moldem os resultados políticos.” diz Fishman que visita Portugal com regularidade.

reforçaram a profundidade da democracia portuguesa desenvolvendo um processo inclusivo de democracia que permite a Portugal aproximar-se dos objectivos normativos da igualdade entre cidadãos num nível mais profundo. A revolução marcou as circunstâncias para um tipo de políticas democráticas que por si só não garantem o sucesso mas que impedem que forças marginais moldem os resultados políticos. Isto certamente influencia a maneira como Portugal confronta a crise. As indicações preliminares são que a crise gerou desigualdades em Espanha mas – segundo os últimos dados disponíveis – não em Portugal. O meu amigo Pedro Magalhães deu conta disso no seu muito seguido blogue. Também, noutros aspectos, devastadora como a crise tem sido e continua a ser a experiência portuguesa é menos negativa do que noutros países. Os governos portugueses enfrentaram reais constrangimentos domésticos adaptando o que podem – e o que não podem – para lidar com a crise e até agora parece que terão conseguido resultados relativamente positivos para a sociedade portuguesa. [P] Porque decidiu estudar Portugal? [RF] Fui levado a estudar Portugal em parte devido aos contrastes fascinantes deste país e da sua vizinhança – Espanha onde eu vivi e estudei – e, também, pelo interesse Paralelo n.o 8

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intrínseco da cultura e história portuguesas. Estudei um semestre no liceu em Espanha e, na altura, desenvolvi um interesse pela história e políticas da Península Ibérica. Um ano antes da Revolução dos Cravos. Quando a revolução começou em Portugal em 1974, eu, como milhões de outros pelo mundo, acompanhei com muito interesse. Mais recentemente como investigador da sociedade e políticas espanholas vi os contrastes entre os dois países quase como uma experiência das ciências naturais que permite aos cientistas sociais examinarem as consequências de dois caminhos para a democracia de pólos opostos. Foi isso que me levou a estudar Portugal e o que aprendi acerca do país aprofundou o meu interesse. [P] Que experiências pessoais viveu pelas suas visitas a Portugal? [RF] A maior parte das minhas experiências em Portugal foi organizada à volta da minha actividade de investigação que incluiu entrevistas com várias pessoas em posições diversas no largo espectro político e social. Claro, tive oportunidade de fazer amizades em Portugal e usufruir da sua cultura, arquitectura, vida e cozinha. A minha mulher – professora de Direito em Espanha e eu – viajámos bastante em Portugal e gostámos muito. Apreciamos a música e o teatro e eu acompanho as notí-

cias dos jornais e televisões portuguesas. Assisti a sessões na Assembleia da República e tenho encontros com muitos investigadores portugueses. Uma das minhas mais memoráveis experiências diz respeito a um artigo de opinião que publiquei no New York Times, em Abril de 2011, argumentando que as circunstâncias subjacentes da economia portuguesa não obrigavam ao resgate. O meu ponto de vista é que as forças de mercado e a acção das agências de rating, mais do que o estado da economia, empurraram o país para o resgate – com as várias consequências negativas que se seguiram. As reacções foram muito comoventes para mim. Na manhã seguinte tinha uma longa lista de emails – muitos de cidadãos portugueses. Esses mails expressavam um profundo sentido de gratidão pelas minhas palavras na minha análise no New York Times e a minha chamada de atenção sobre o quanto forças de mercado não-reguladas podem cercear a democracia. Claro que alguns emails eram críticos mas a grande maioria era muito positiva (incluindo uma mensagem de um responsável pela negociação de títulos numa importante empresa em Londres). [P] Quais foram as consequências para a sua vida e carreira por ter estudado Portugal? [RF] Bem… Fiz bons amigos em Portugal e entre os investigadores portugueses. Acho que o contraste entre Portugal e Espanha abriu-me uma janela para o estudo e análise de processos e resultados profundamente importantes. Isto foi muito positivo para o meu trabalho e carreira, embora goste de ver este tipo de coisas como um resultado de mérito intrínseco do trabalho de investigação.

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“Tinha a sensação que o mundo estava a fazer-se de novo” Nancy Bermeo é professora em Oxford. Fez o doutoramento sobre Portugal onde viveu mais de dois anos, depois do 25 de Abril de 1974, e volta frequentemente até para visitar os amigos que aqui fez para a vida. Esta entrevista trouxe-lhe imensas memórias e pensamentos sobre esses dias de constantes mudanças em que os seus estudos do cooperativismo revelaram-se parte de uma complexa e intricada realidade que o País viveu. POR SARA PINA

[Paralelo] Em termos gerais é considerado que as revoluções frequentemente originam regimes não-democráticos, raramente conduzindo a democracias. A revolução do 25 de Abril foi diferente? Como? [Nancy Bermeo] É verdade. Muitas vezes associamos revoluções com o estabelecimento de regimes autoritários portanto a pergunta que faz é intrigante. Acho que a Revolução Portuguesa resultou numa democracia consolidada por uma variedade de razões complexas mas as mais proeminentes foram os valores políticos dos militares portugueses e das elites partidárias. O grupo de oficiais que, em última análise, controlou a revolução procurou acabar com a guerra colonial mas, também, quis a democracia para Portugal e isto foi imensamente consequente. As elites portuguesas também merecem todo o crédito por não terem incitado a violência em momento algum da tumultuosa transição. A violência é sempre uma desculpa para a contraviolência e os que querem o autoritarismo usam esses ciclos de medo para subir ao poder. Esta é a razão porque associamos as revoluções com o autoritarismo – as revoluções habitualmente envolvem violência. Portugal evitou isso. As elites portuguesas sabiamente enquadraram uma democracia em vez de uma ditadura como chave para estabelecer a ordem. Claro que a base dos resultados positivos reside no próprio povo português. Os militares e líderes políticos eram representantes destes.

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A violência é sempre uma desculpa para a contraviolência e os que querem o autoritarismo usam esses ciclos de medo para subir ao poder. Esta é a razão porque associamos as revoluções com o autoritarismo – as revoluções habitualmente envolvem violência. Portugal evitou isso. Nancy Bermeo

Os resultados da primeira eleição mostram bem isto de que falo. [P] A revolução teve algum impacto na qualidade da democracia? E gerou alguns legados que podem de alguma maneira ajudar ou prejudicar na gestão da crise actual? [NB] A revolução certamente aprofundou a qualidade da democracia na medida em que expandiu a concepção nacional do que são os direitos fundamentais dos cidadãos. Embora haja outros factores a revolução ajuda a perceber porque é que Portugal é o único país do Sul da Europa com um programa nacional de Rendimento Mínimo Garantido e porque tem sido mais bem-

-sucedido do que outros países europeus a evitar o racismo e a xenofobia. Acho que a experiência revolucionária ajudou a lidar com a crise. Em cada crise os portugueses melhoraram as suas capacidades para lidar com isso e a sua resiliência. Crises e choques podem trazer polarização ou cooperação. Em Portugal domina a cooperação. Esta é uma conquista rara e algo com que os partidos nos Estados Unidos podiam aprender.

[P] Porque veio para Portugal? [NB] Era uma estudante de doutoramento em Yale quando decidi estudar Portugal. Quis estudar o sistema cooperativo em que a divisão entre trabalho e capital não existia. As cooperativas industriais e agrícolas que apareceram deram-me a oportunidade de estudar essas experiências. Mal cheguei a Portugal percebi que o meu enigmático interesse era parte de um muito maior e mais complicado drama. [P] Pode partilhar alguma da sua experiência em Portugal e qual era o seu sentimento relativamente ao que se passava à sua volta? [NB] Na minha área específica fiquei profundamente comovida pelo orgulho que Paralelo n.o 8

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25 de abril RUI OCHOA

1974 - 2014

“Totalmente surpreendida com mobilizações de massas e inebriada com os slogans e mudanças à minha volta, tinha a sensação que o mundo estava a fazer-se de novo.” diz Nancy Bermeo que em 1974, estudante de doutoramento em Yale, veio viver para Portugal.

as pessoas ganharam com a propriedade mas não há dúvidas que a gestão trouxe pressões e complexidades que os envolvidos não esperavam. Claro que gerir qualquer empresa em Portugal era difícil nos finais de 70. Lembro-me de dois acontecimentos de interesse. O primeiro que capta os limites da revolução e o segundo que revela o seu importante e duradouro legado. O primeiro acontecimento deu-se no apartamento de uma amiga onde estava hospedada, mesmo antes de uma manifestação. A minha amiga tinha-se graduado em França (chamar-lhe-ei Marie) e o seu namorado português era uma figura razoavelmente conhecida da extrema-esquerda (chamar-lhe-ei José). Totalmente surpreendida com mobilizações de massas e inebriada com os slogans e mudanças à minha volta, tinha a Paralelo n.o 8

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sensação que o mundo estava a fazer-se de novo. Mas, ouvi o José a mandar a Maria passar a camisa dele a ferro enquanto ele se penteava… O mundo não se transformaria da noite para o dia… As mobilizações eram representações assim como a política. O segundo aspecto era as mobilizações de qualquer espécie. Uma deu-se numa pensão em que eu estive alojada. Tratou­ ‑se da organização de uma saída nocturna feita pela jovem empregada de mesa, vinda da zona rural, que trabalhava no restaurante da pensão. Foram mobilizadas uma jovem cozinheira, eu e outra estudante e dois rapazes acabados de chegar de Angola. Fomos todos de autocarro a um grande concerto com dança na Universidade de Lisboa. Juntos pelas semelhanças geracionais apesar das diferenças de classe, nacionalidade e simpa-

tias políticas divertirmo-nos – tinham baixado as barreiras entre as pessoas, com o fortalecimento dos trabalhadores, aparecendo redes sociais entre diferentes classes e o desejo de inclusão do “outro” viria a ter mais consequentes e profundas implicações do que estas manifestações que chamavam a atenção. [P] Qual foi o impacto da revolução na sua carreira e vida pessoal? [NB] Tendo chegado a Portugal no período pós-revolucionário tive uma perspectiva clara sobre a construção da democracia e aprendi imenso sobre o processo político. Penso sempre na experiência portuguesa quando reflicto sobre mudanças de regime. Relativamente à minha vida pessoal, os mais de dois anos que passei em Portugal trouxeram-me amizades para a vida que são de grande valor para mim.

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PORTUGAL/EUA

Como se ensina português na América Mais alunos, diferentes, novos manuais e currículos renovados – o ensino do português nos Estados Unidos está em transformação. TEXTO E FOTOS POR ALEXANDRE SOARES

A professora Raquel Martins Rosa escreve no quadro duas grandes letras. “U com I. Como se lê?”, pergunta. “Uiiiiiii” responde um coro de crianças. “Agora I com U”, diz, sublinhando cada palavra. “Como se lê?” “Iuuuuuuu”, devolvem os alunos. Podia ser uma aula em qualquer escola de Portugal – com o mapa do país junto do quadro, as pinturas de caravelas e oceanos nas paredes, o texto emoldurado sobre

Vasco da Gama – até que uma das crianças dispara: ”Teacher, can I...” E é de imediato interrompida pela professora. “Em português”, exclama Raquel. “Aqui fala-se em português.” A cena acontece na Escola Lusitânia, do Clube Português de Long Branch, em Nova Jérsia. Escolas comunitárias como esta são o nível zero do ensino do português nos Estados Unidos. É nestas salas de aula que a língua abandona os espaços domésticos

– as cozinhas e corredores onde as crianças aprendem as primeiras palavras para falar com a “vovó” – e se institucionaliza. Estas escolas são fundadas, financiadas e geridas pela comunidade portuguesa e recebem apoio pedagógico do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. No último ano lectivo, tinham cerca de dois mil alunos espalhados por dez estados norte-americanos (Nova Iorque, Nova Jérsia, Pensilvânia, Connecticut, Califórnia,

Professora Raquel Rosa com os seus alunos do 1.o ano da Escola Portuguesa de Long Branch.

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Flórida, Massachusetts, Rhode Island, Washington e Virgínia). A professora Raquel diz que o desvio da sua aluna para o inglês é agora a norma. “Estamos a falar de uma terceira geração que já não aprende o português como primeira língua”, explica. Há doze anos, quando começou a trabalhar nos Estados Unidos, isso não acontecia. “Quando cheguei, o português ainda era a língua que os alunos falavam em casa. Assisti a essa mudança na última década.” Uma mudança materializada nos manuais que utiliza na sala de aula e chegaram no início do ano, oferta do Instituto Camões. “Nos últimos anos desenvolvemos currículos adaptados a esta nova realidade”, explica o adjunto da coordenação do ensino do português nos Estados Unidos na área de Nova Iorque, António Oliveira. Esse trabalho resultou na elaboração de “manuais criados e pensados desde raiz com este novo paradigma em mente.” Em dois anos, o instituto distribuirá cerca de quatro mil exemplares. Outra novidade são os exames de certificação, que os alunos tiveram oportunidade de fazer pela primeira vez este ano. Os exames oferecem a certificação segundo o Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas (QECRL), um guia usado para descrever os objectivos a serem alcançados pelos estudantes de línguas estrangeiras na Europa, e poderão agora ser feitos, todos os anos, no final de cada um dos ciclos (4.º, 6.º e 9.º anos). António Oliveira diz que “a participação foi satisfatória para uma experiência-piloto”, com cerca de 200 alunos a completar as provas, e que “para o ano os números vão, pelo menos, duplicar ou triplicar.” O que o responsável considera “um grande sucesso” são os resultados obtidos: “O nível de aprovação rondou os 95%, o que nos dá uma boa indicação da qualidade do ensino.” Por todo o país, o número de alunos Paralelo n.o 8

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Alunos do 1.o ano na Escola Portuguesa de Long Branch.

As crianças “começam porque os pais as inscrevem, passam por uma fase em que acham aborrecido e depois começam a ir a Portugal, na adolescência, e ganham interesse novamente. Querem falar com os amigos, as namoradas... percebem a importância de falar outra língua quando se viaja, o valor que tem no mercado de trabalho.”

nestas escolas tem vindo a diminuir, devido ao decréscimo da emigração para o país. Mas isso não acontece na Lusitânia, onde o número de alunos se tem mantido e prossegue até ao final de cada ciclo.

“O número de alunos que desiste não é muito significativo”, garante Raquel, explicando que as crianças “começam porque os pais as inscrevem, passam por uma fase em que acham aborrecido e

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Ajuda muito que existam políticos luso-descendentes, que possam forçar uma mudança.” [...] Na cidade de Mineola, no estado de Nova Iorque, a comunidade uniu-se com o senador estadual Jack Martins, e hoje existem aulas de Português no liceu António Oliveira da cidade.

depois começam a ir a Portugal, na adolescência, e ganham interesse novamente. Querem falar com os amigos, as namoradas... percebem a importância de falar outra língua quando se viaja, o valor que tem no mercado de trabalho.” É o caso de Cristiana Santos, aluna do 6.º ano. “Acho que me pode ajudar a arranjar trabalho quando for grande”, diz

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a luso­‑americana de 11 anos. Quem lhe explicou essa vantagem, esclarece, foi a mãe. Cristiana tem vários colegas de origem portuguesa na sua escola, mas só um é que tem aulas de português “e os outros falam um bocadinho, mas não muito.” O presidente da Associação de Professores de Português dos EUA e Canadá (APPEUC), Diniz Borges, explica que “o português concorre hoje com uma amálgama de atividades extracurriculares que não existiam há vinte anos. Há o ballet, a natação, o judo... tudo isso em competição com o tempo que era usado para estas aulas.”

Uma das possibilidades para assegurar a sobrevivência destas escolas passa, então, por aceitar alunos de outras comunidades lusófonas, sobretudo a brasileira. Mas isso raramente acontece. Diniz Borges diz que “há poucos alunos brasileiros nas escolas comunitárias, uma percentagem mínima” e que “existe a tendência para essas comunidades fazerem a sua própria escola.” A entrada dessas crianças acontece sobretudo na costa leste, onde a comunidade brasileira vive nos mesmos locais que a comunidade portuguesa. Mas, mesmo nestes estados, Raquel Rosa diz que os responsáveis costumam resistir à entrada dessas crianças. ENSINO REGULAR Um dos grandes objectivos do Instituto Camões é aumentar o número de escolas do ensino regular que oferecem português nos seus currículos. “Dada a dimensão da comunidade, o Português tem uma preParalelo n.o 8

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O segredo é que “estes cursos se abrem a grupos étnicos e vendem o português como uma língua internacional e não como uma língua de herança.” [...] “o país não tem feito um bom trabalho a vender o português como uma língua internacional.” Diniz Borges

sença nas escolas americanas que ainda deixa muito a desejar” admite António Oliveira. “Há muito espaço para crescer.” Uma leitura dos números evidencia a vantagem: se nas escolas da comunidade há cerca de dois mil alunos e o número está a diminuir, no ensino regular existem mais de 13 mil e a tendência é para aumentar. A abordagem tem de ser cautelosa, no entanto, no contexto actual de restrição financeira norte-americana, em que todos os dias os orçamentos das escolas encolhem e os departamentos de línguas são os primeiros a sofrer com esses cortes. “Tudo tem de acontecer passo a passo”, explica António Oliveira. “Primeiro, temos de trabalhar com os distritos com forte presença portuguesa. Tem de existir uma comunidade que se una e reivindique estas aulas. Depois, tem de haver um professor de Português disponível. Finalmente, ajuda muito que existam políticos luso-descenParalelo n.o 8

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dentes, que possam forçar uma mudança.” O responsável dá o exemplo da cidade de Mineola, no estado de Nova Iorque, onde a comunidade se uniu com o senador estadual Jack Martins, e hoje existem aulas de Português no liceu da cidade.

Diniz Borges defende o mesmo caminho, explicando que, “como o sistema não é centralizado, e as decisões são tomadas autonomamente pelas escolas, há muitas mais possibilidades.” Um dos caminhos é a assinatura de protocolos com os estados,

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“40% dos alunos que vão para estes cursos não são portugueses, a maioria é de origem hispânica” e “o mesmo está a acontecer por toda a Califórnia e também em Massachusetts.” Revista Language Magazine

como o que Portugal tem com o estado de Massachusetts, desde os anos 90, e com o condado de Miami, na Flórida, desde o ano passado. O Instituto Camões pretende agora replicar o modelo: prepara-se para assinar protocolo com as cidades de Elizabeth e Newark, em Nova Jérsia, e está a iniciar negociações com os estados da Califórnia e de Nova Iorque. Diniz Borges garante que “não há cursos

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de Português que não sejam um sucesso; onde existem, estão cheios.” O professor fala da realidade que conhece melhor: no Vale de São Joaquim, na Califórnia, a escola de Turlock passou de 80 alunos para 200 em sete anos; no mesmo período, o liceu de Tulare passou de 180 para 418. “A procura existe. Há oportunidades que temos de agarrar onde existem professores luso-descendentes que podem ensinar

Português. Tem de ser este lobby local a trabalhar.” O professor explica que “40% dos alunos que vão para estes cursos não são portugueses, a maioria é de origem hispânica” e que “o mesmo está a acontecer por toda a Califórnia e também em Massachusetts”. Para o responsável, o segredo é que “estes cursos se abrem a grupos étnicos e vendem o português como uma língua internacional e não como uma língua de herança”. Borges acredita que “o país não tem feito um bom trabalho a vender o português como uma língua internacional”. “Há muito espaço para crescer no ensino regular porque os outros grupos étnicos, sobretudo os hispanos, têm um grande interesse pelo Brasil e muita facilidade em aprender português”, defende. O professor sugere que a expansão do ensino do português se concentre na população hispana. Se assim acontecer, argumenta, o universo de alunos potenciais deixa de ser às dezenas, talvez centenas, de milhares de luso-descendentes e expande-se para a maior comunidade étnica do país, com 53 milhões de pessoas. “É preciso vender o português como uma língua internacional e não como a língua com que se aprende para conseguir falar com a vovó”, explica o emigrante açoriano. “Embora isso seja muito bonito, não é nada pragmático.” UNIVERSIDADE Todas as sextas-feiras, a professora Raquel termina as aulas na Escola Lusitânia e caminha até ao pólo do Brookdale Community College, em Long Branch, onde dá aulas de português. Paralelo n.o 8

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As aulas começaram em setembro, depois de Raquel descobrir que a mulher do seu contabilista, Nancy Kegelman, era a directora de assuntos académicos da universidade. “Percebi que era uma oportunidade e convidei-a para vir conhecer a escola do clube”, explica Raquel. “Depois, falei-lhe da possibilidade das aulas na universidade, ela gostou da ideia, convidou-me a apresentar um projecto e, passado um ano, abriu a cadeira.” Para já, Raquel tem apenas 19 alunos. “Mas a escola tem 15 mil alunos e o curso acabou de abrir. O potencial de crescimento é enorme”, acredita. Ashley Gonçalves, 25 anos, é uma das suas alunas. A estudante de psicologia criminal inscreveu-se na cadeira para tentar aprender a língua do pai, um emigrante madeirense que morreu no ano passado. “O desaparecimento dele funcionou como uma chamada de atenção para as minhas raízes”, diz. Mas a escolha curricular tem outros motivos mais pragmáticos: “Vivemos numa área muito diversa culturalmente e saber mais uma língua pode ajudar-me a arranjar trabalho.” Maria Melindez, de 24 anos, tem a mesma esperança. Mas os seus colegas não percebem a escolha. “Quando digo que estudo português, dizem: ‘Português? Porquê?’ Ficam confusos. Ainda não percebem o potencial da língua”, diz a estudante de línguas modernas. A confusão dos seus colegas ajuda a justificar os números: apesar do português ser considerada pela revista Bloomberg a sexta língua mais importante no mundo dos negócios, está em 13.º lugar das línguas mais estudadas nas universidades americanas, segundo o último relatório da Modern Language Association. Apesar disso, no Outono de 2009, as universidades americanas contavam 11371 alunos inscritos, o que representava um aumento de 10,8% em relação a 2006. A revista especializada Language Magazine contou num artigo publicado este ano como, “enquanto os departamentos de línguas são reduzidos, ou completamente eliminados, a procura pelo Português aumenta.” “Apesar do Português ter sido sempre uma importante língua mundial, apenas recentemente tem sido reconhecido como uma língua importante no mundo dos negócios e relações internacionais”, pode ler-se no artigo. Recentemente, o jornal da prestigiada Universidade de Yale deu eco a esta mesma realidade. “Com a transformação do Brasil numa potência económica global, mais e mais alunos estão a Paralelo n.o 8

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inscrever-se em ‘Português Elementar’, mas sabemos que não é verdade”, explica. “É, sobretudo, motivado pelo crescimenmas o pequeno departamento de Português de Yale não tem professores suficientes to económico do Brasil e pelo aumento para suprir essa necessidade – ou os meios do seu poder político em toda a América latina.” para contratar novos.” O Instituto Camões tem três leitorados em universidades, comparticipa a colocação de professores, financia certas activi- O CONTRIBUTO DA FLAD dades e tem três Centros Camões, mas Desde o início da sua actividade, a António Oliveira admite que “o que acon- Fundação Luso-Americana para o tece de mais vibrante a nível universitário Desenvolvimento (FLAD) tem apoiado inúé totalmente independente dos esforços meras iniciativas para a melhoria do ensinacionais e quase sempre motivado por no do Português nos Estados Unidos. Este apoio começa com os mais jovens um interesse pelo Brasil.” Na universidade de São José, na e o concurso “Ler em Português”, organizado em parceria com a Rede de Califórnia, por exemplo, há um curso de Bibliotecas Escolares e o Plano Nacional Português que é inteiramente pago por um fundo criado pela comunidade aço- de Leitura. Todos os anos, alunos e proriana. Em Setembro, começou a funcionar fessores dos dois lados do atlântico são na Universidade de Massachusetts, em convidados a apresentar os seus trabalhos, Lowell, o “Centro Pedroso-Saab para em que desenvolvem um tema definido Estudos Portugueses e Culturais”, que foi pela organização. A edição 2012/13 foi tornado possível graças aos contributos subordinada ao tema Liberdade e de Luís Pedroso e do casal Mark Saab e Elisia Saab, empresários de ori“Apesar do português ter sido gem portuguesa que sempre uma importante língua doaram cerca de 850 mil dólares (660 mil euros). mundial, apenas recentemente tem A partir de Janeiro, a sido reconhecido como uma língua Universidade de Lesley, Massachusetts, em parceimportante no mundo dos negócios ria com a Universidade e relações internacionais”. Aberta, lança o primeiro certificado internacional Revista Language Magazine em Estudos Portugueses. Também no próximo ano, a universidade do Michigan vai Segurança numa Sociedade Plural e a do aumentar a sua oferta de estudos portu- próximo ano, associando-se à comemogueses com uma licenciatura dupla em ração de oitocentos anos de Língua português e espanhol e um programa Portuguesa, propõe o tema “Português, específico para alunos de doutoramento Uma Língua com História. “ O apoio da FLAD também se estende aos no próximo ano lectivo. A presença do português nas universidades americanas professores. O presidente da Associação tem, no entanto, várias décadas. O mais de Professores de Português dos EUA e antigo curso de verão de Português, na Canadá (APPEUC), Diniz Borges, explica Universidade de Massac husetts- que “uma das maiores reivindicações dos Dartmouth, comemorou este ano a sua professores [de português nos EUA] é a falta de formação para uma realidade em 20.ª edição. “Fomos o primeiro curso que surgiu mudança” e a FLAD tem procurado resolno país, em 1994, e neste momento há ver este problema. A Fundação promove cursos semelhantes em vários Estados, o a realização de cursos de verão em que nos enche de orgulho”, diz Frank Portugal que visam contribuir para o Sousa, que foi responsável pelo lança- aumento dos níveis de qualidade do ensimento do curso e serviu como director no do Português como língua não materdo Centro de Estudos Portugueses da na. O programa foi lançado em 2012 e anualmente são promovidas dois cursos: universidade até este ano. O professor garante que “apesar das difi- um na Faculdade de Letras da Universidade culdades, o ensino do Português nos EUA de Lisboa e outro na Universidade dos está numa boa fase” que deve continuar. Açores, em Ponta Delgada. Os cursos têm “Gostava de dizer que este crescimento se a duração de duas semanas e são certifideve à maravilhosa situação de Portugal, cados. Nas suas quatro edições, atingiram

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António Oliveira, fotografado na Quinta Avenida, em Nova Iorque.

um universo de 56 professores e as edições de 2014 já estão em preparação. A FLAD tem também apoiado inúmeras universidades norte-americanas na criação de departamentos de estudo da língua e cultura portuguesas. A fundação tem trabalhado com o Council of American Overseas Research Centers (CAORC), uma federação norte-americana de centros de investigação dentro e fora dos Estados Unidos, no desenvolvimento de um ambicioso projecto de cooperação transatlântica. No seguimento desta colaboração, foi criada uma rede de centros de investigação nas áreas das ciências sociais e humanas e lançado o concurso Bolsas para Docência e Investigação, que atribui bolsas a docentes integrados nas universidades e centros de investigação portugueses por períodos de um a quatro meses. Ao mesmo tempo, o CAORC oferece o programa CLR (Center for Lusophone Research)

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que promove a mobilidade de investigadores norte-americanos para desenvolverem os seus projectos de investigação em estudos lusófonos nas instituições portuguesas. Em 1996 e 1998, a FLAD assinou protocolos com a Biblioteca Nacional de Portugal e a Direcção-Geral de Arquivos/ Torre do Tombo, para facilitar a pesquisa de fundos portugueses a investigadores de universidades norte-americanas. Mais de uma centena de investigadores, quer em fase de doutoramento, quer em pós-dissertação, já beneficiaram destas bolsas desde o início do projecto. Nos anos 90 do século passado, a FLAD começou também a apoiar vários estabelecimentos de ensino superior norte-americanos. Estes apoios dirigem-se a universidades onde existem comunidades luso-americanas, mas também a cidades onde não existe uma forte presença por-

tuguesa. Ao abrigo destes protocolos, as universidades financiam a contratação de professores, a abertura de cursos de língua e cultura portuguesas, bolsas de investigação, intercâmbios de professores e alunos e outros eventos que promovem o Português. Entre as universidades beneficiárias, encontram-se várias universidades de prestígio, como a Universidade de São José (apoiada desde 2012), a Universidade de Berkeley (1998), a Universidade de Brown (1993), a Universidade de Georgetown (1997), a Universidade de Chicago (2005) e a Universidade de Massachusetts-Dartmouth e o seu Centro de Estudos Portugueses, que é hoje o maior centro dedicado à lusofonia no mundo anglo-saxónico graças ao apoio da Fundação, estabelecido em 1994. * Jornalista freelancer Paralelo n.o 8

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D.R.

CARTA BRANCA

Várias Américas MARIA JOÃO AVILLEZ

Há muitas Américas na minha cabeça quando me falam dos Estados Unidos. Comecei, corriam os anos setenta, por uma travessia de Norte a Sul, pela costa leste. De automóvel, com mochilas e duas crianças pela mão, a Verónica e o Pedro, meus filhos de 12 e 8 anos e felizmente para todos nós, o pai delas! Desde as cataratas do Niagara até à cosmopolita Miami, passando pela quase provinciana capital federal e pela efervescente Nova Iorque, com muitas paragens pelo meio, foi a aventura da descoberta: os parques, os museus, as Smoky Mountains, os diversos skyline de tirar a respiração... O espaço e a diversidade. Percebi que ia voltar porque era

que seria depois transformar as impressões em palavras para poder contar o que vira. Sem perder o fio à meada. Voltei a Washington, onde me falaram de Mário Soares, et pour cause: “Doctor Soares é muito nosso amigo! Mostrou-o bem quando esteve no poder!” Foi no Departamento de Estado, estava-se em Abril de 1986, Soares acabava de ser eleito Presidente da República, os meus interlocutores rejubilavam. E que delícia foi o mergulho nas conferências de imprensa de Larry Speaks, porta-voz de Reagan na Casa Branca: em mais parte nenhuma do mundo há igual. Nem na forma nem no conteúdo. Seguiram-se milhares de quilómetros enfeitados de pasmo: a mítica Califórnia, onde mora São Francisco tingida pela mesma luz de Lisboa e também a inquietante Los Angeles que viu A convite do Departamento de Estado – sorte minha nascer (em 1881) o Los Angeles Times, catedral – seguiu­‑se a vivência de um mosaico paradoxal e do jornalismo que pude visitar e questionar; vertiginoso feita em voo picado sobre estados, cidades, a ruralidade desconcertante do Middle-West (“Europe...? Where?”); as maravilhas em lugares, pessoas, histórias. [...] O mosaico é de tal estado quimicamente puro da arquitectura de Chicago, horas e horas de nariz no ar e modo diverso e permanente no seu carrocel de raças, emocionado face às maravilhas; a festa credos, línguas, usos e costumes que os seus cinquenta olhar de Nova Orleães, o eco musicalmente perfeito dos concertos no Met e no Lincold estados e mais de trezentos milhões de habitantes Center de Nova Iorque debruando dias de nos surgem de imediato com a evidência de um encontros, excitação e frenesim... A paisagem prodigiosa do Grand Canyon; a planura de continente mais do que com a verosimilhança Phoenix onde se abriga a mais avançada tecde um país. nologia espacial do país; Atlanta, pátria da cnn e da Coca-Cola.... Mas neste desorganizado mapa que a memória hoje me encena que dizer da amena e amável cidade de imperioso voltar. A convite do Departamento de Estado – sorte Boston, onde num ápice voltei cinco séculos atrás quando, numa minha – seguiu-se a vivência de um mosaico paradoxal e vertiginoso feita em voo picado sobre estados, cidades, lugares, pessoas, das cem (!) bibliotecas da Universidade de Harvard, me mostrahistórias. Como um livro mágico que alguém fosse abrindo à ram uma edição de Os Lusíadas datada de 1572? Voltei uma e outra vez, voltei muitas vezes. Mas um dia, de um minha frente catapultando-me para dentro de cada uma das suas páginas. O mosaico é de tal modo diverso e permanente no seu segundo para o outro, com um agudo aperto no coração, apercecarrocel de raças, credos, línguas, usos e costumes que os seus bi-me que uma foto dos meus filhos, já desbotada pelo tempo, cinquenta estados e mais de trezentos milhões de habitantes nos deixara derisoriamente de fazer sentido: tirada no World Trade Center na Primavera de 1979, ficara brutalmente amputada do surgem de imediato com a evidência de um continente mais do seu próprio cenário. Restavam os sorrisos da Verónica e do Pedro que com a verosimilhança de um país. estampados agora numa ficção que antes fora glorioso ex-líbris. Na minha cabeça, por tudo isto, uma só ideia nessa já longínqua Sim, voltei. Mas essa América tinha desaparecido. década de oitenta: estar à altura daquele quase demencial desafio

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FLAD apoia a tradução de obras em português e em inglês

Programas Alberto de Lacerda e Gregory Rabassa contribuem para divulgar autores portugueses nos Estados Unidos e autores americanos em Portugal Os nomes de um grande poeta e de um reconhecido tradutor – Alberto de Lacerda e Gregory Rabassa – honram o programa de apoio à tradução patrocinado pela FLAD. O concurso é anual, abrange obras literárias, históricas, filosóficas ou ensaísticas e podem candidatar-se tanto autores individuais como instituições e editoras. POR CARLA BAPTISTA*

Teresa Alves, investigadora no Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, especialista em Estudos Americanos e um dos membros do júri deste concurso, salienta a importância da iniciativa: “a FLAD já apoiava a tradução de obras mas este concurso, por ser regular, estar aberto a todos e procurar pôr as duas culturas a dialogarem uma com a outra, num espírito universalista e humanista, acrescenta uma dimensão nova”. Valoriza ainda o facto do concurso não estar circunscrito à literatura mas ser igualmente aberto à divulgação de obras científicas ou ensaísticas. Além da qualidade literária e do rigor científico, os critérios de selecção referem explicitamente a diversidade de géneros e a promoção do intercâmbio entre Portugal e os Estados Unidos como aspectos diferenciadores das candidaturas. As obras seleccionadas para apoio na última edição do programa Alberto Lacerda ilustram bem o espírito ecléctico e multidisciplinar que presidiu às escolhas do júri: das 8 obras a concurso, foram seleccionadas 5, incluindo romances de luso-descendentes, como

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Gregory Rabassa defende a tese de que a tradução é uma coisa impossível: “As pessoas esperam reprodução mas o melhor que podemos fazer é aproximação”.

Stealing Fátima, de Frank Gaspar; ensaios que cruzam ciência e arte, como Science Matters: Humanities as Complex Systems, organizado por Maria Burguete e Lui Lam; ou poesia, como um livro de textos inéditos atribuídos a um dos heterónimos de Fernando Pessoa, organizado por Jerónimo Pizarro. Os tradutores destas obras são, respectivamente, Maria Emília Madureira, José Maria Ribeirinho e Margarida Vale de Gato. Entre outros, o Programa Gregory Rabassa apoiou o livro A Piada Infinita, de

David Foster Wallace, traduzido por Lúcia Pinho e Melo, uma obra imensa e labiríntica (1198 páginas), de grande complexidade sintáctica, lexical e semântica, o trabalho mais memorável do autor antes do seu suicídio em 2008, vítima de depressão, doença da qual sofria desde os 26 anos de idade. Gregory Rabassa é uma figura incontornável na história moderna da tradução. O primeiro livro que traduziu, a convite de um amigo editor que o conhecia da Universidade de Columbia, onde se doutorou, ganhou em 1967 o National Book Award para Tradução. Era a novela Rayuela, escrita em 1963 pelo argentino Júlio Cortázar (em Portugal, está editado pela Cavalo de Ferro com o título O Jogo do Mundo – Rayuela; em inglês, o título dessa primeira edição da Pantheon ficou Hopscotch). Seguiram-se muitos outros livros de autores de língua espanhola e portuguesa, incluindo Jorge Amado, Machado de Assis, Clarice Lispector, Mário Vargas Llosa e Gabriel García Marquez. Entre os escritores portugueses, traduziu António Lobo Antunes e Mário de Carvalho. Aos 82 anos, escreveu o seu primeiro livro, Paralelo n.o 8

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intitulado If This Be Treason: Translation and Its Dyscontents (não está editado em Portugal), um registo autobiográfico sobre o seu ofício onde defende a tese de que a tradução é uma coisa impossível: “As pessoas esperam reprodução mas o melhor que podemos fazer é aproximação”. Alberto de Lacerda nasceu na ilha de Moçambique em 1928 e morreu em Londres, em 2007. O jornal britânico The Independent dedicou um obituário ao “aclamado poeta, artista e crítico” que passava parte do seu tempo no café Picasso, na King’s Road, ou no Dino, perto da estação de metro de South Kensington, um homem pequeno e nervoso com ar de vagabundo, deambulando de galeria de arte em cinema, carregando um saco de plástico cheio de livros e jornais e atravessando as ruas sem olhar para os carros. Foi um dos mais brilhantes poetas da sua geração, amigo de Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, António Ramos Rosa e Ruy Cinatti; um artista plástico que chegou a expor trabalhos em colagem e privava com os pintores amigos, como Vieira da Silva, Arpad e Jorge Martins (ambos o retrataram); um coleccionador, conhecedor e crítico erudito de literatura e pintura e um professor Paralelo n.o 8

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A obra de Alberto de Lacerda “vive em permanente confronto com a tripla pulsão da melancolia, da liberdade e da iconoclastia”, expressa no seguinte verso: “O tigre que caminha nos meus gestos Eduardo Pitta /Tem a graça insolente dos navios.”

inspirador de Poética na Universidade de Austin, brevemente em Nova Iorque e depois, durante 26 anos, na Universidade de Boston. Eduardo Pitta, seu amigo e admirador, escreveu no jornal Público, por ocasião da sua morte que, enquanto viveu nos Estados Unidos, “conviveu com os poetas Marianne Moore e Thom Gunn e com o pintor David Hockney, frequentou os sofisticados círculos literários da costa Leste e, em 1969, tinha uma antologia sua publicada pela Universidade do Texas, Sellected Poems. Foi o primeiro e único autor de língua portuguesa a dar um recital da sua poesia na Biblioteca do Congresso, em Washington”. O mesmo sucedeu em Londres: foi o crítico de arte John McEwen, com quem

tinha combinado um almoço domingueiro que, estranhando a demora, acabou por arrombar a porta de casa, descobrindo Alberto de Lacerda ainda em coma, vítima de ataque cardíaco, e um apartamento cuja indescritível desarrumação e espólio (mais de mil inéditos, muitos ainda por editar) se tornou lendária. É ainda Eduardo Pitta quem, “simplificando muito”, refere que a obra de Alberto de Lacerda “vive em permanente confronto com a tripla pulsão da melancolia, da liberdade e da iconoclastia”, expressa no seguinte verso: “O tigre que caminha nos meus gestos/Tem a graça insolente dos navios.” * Jornalista freelancer

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Luso-americano Nobel da Medicina

Do cozido das furnas ao ácido ribonucleico Desde miúdo tem um fascínio pela vida: Com a mesma curiosidade parou as brincadeiras no jardim da casa onde vivia, com os seus pais, para observar um pequena tartaruga atropelada, ainda não andava na escola e, já com 18 anos, escolheu estudar biologia molecular ao ler, no Washington Post, sobre a clonagem do gene da insulina humana numa bactéria. Em 2006, Craig Mello ganhou o Nobel da Medicina pelo estudo dos mecanismos do silenciamento de genes portadores de doenças evitando o aparecimento e evolução destas. É um dos impulsionadores da moderna epigenética que estuda as características celulares estáveis que não interferem com o DNA. TEXTO E FOTOS POR SARA PINA*

O Nobel da Medicina na sua visita a Ponta Delgada por altura da atribuição do doutoramento Honoris causa pela Universidade dos Açores.

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Lembra-se do seu avô açoriano descrever as ilhas e o cozido das furnas “imaginava lava a sair dos vulcões e as pessoas a cozinharem”, um cozinhado mágico à semelhança dos seus actuais trabalhos de laboratório onde analisa o RNAi – os mecanismos de interferência no ácido ribonucleico de uma célula que podem inibir processos genéticos malignos. A filha mais nova de Mello desenvolveu, no primeiro ano de vida, diabetes tipo 1 “ironicamente, a insulina humana, sintetizada a partir das moléculas num processo que me inspirou a seguir biologia molecular, está agora a dar vida à Victoria” É esse respeito e confiança na investigação médica que dá ao Nobel empenho no seu trabalho em prole da vida. Mello salienta que também o seu empenho é genético – chama “valor açoriano” à capacidade de sacrifício necessária para desenvolver o seu trabalho, assim como a maneira que encontra para relaxar “velejar […] esquece-se tudo”. Por isso, voltou feliz a Ponta Delgada, em 2012, para receber o doutoramento Honoris causa pela Universidade dos Açores. [Paralelo] Diz na sua autobiografia que se sente muito feliz em estar vivo e com a vida. Fale-nos dela. [Craig Mello] Tive muita sorte em ter os pais e avós que tive porque eles amavam Paralelo n.o 8

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Quando estávamos a crescer o facto mais marcante de ser um Mello é que éramos arreliados por causa do nome. O meu treinador chamava-me Marshmallow [goma ou sugo em português]. Mas estávamos bem cientes dos nossos antepassados, tanto portugueses como italianos no lado da minha mãe. Os nossos avós eram pessoas que trabalhavam muito e que nunca tiveram oportunidade de estudar. Nós sabíamos da sorte que tivemos em poder fazê-lo, de ter tido essa oportunidade porque eles trabalharam tanto para nós.

O facto mais marcante de ser um Mello é que éramos arreliados por causa do nome. O meu treinador chamava-me Marshmallow [goma em português]. Craig Mello

a vida e não havia muita pressão com as aparências. Fazíamos imensas coisas juntos. O meu pai era paleontólogo e fazíamos visitas às Rocky Mountains, a Montana e Dakota do Sul para procurar fósseis juntos. [P] Era uma actividade de família…? [CM] Sim. A minha mãe educou três crianças a que se juntou uma quarta mais nova a acampar. Ela era uma artista, tinha sensibilidade para a beleza do que a rodeava todos os dias e educou-nos a apreciar as experiências da vida. [P] Sabia da sua ascendência portuguesa? Até que ponto é que isso esteve presente na sua infância? [CM] Claro. Todos os anos visitávamos a família e vivíamos emergidos nela.

[P] Diz que o seu hobby é velejar. É um momento para estar sozinho e de reflexão? [CM] Exactamente. Esquecemos tudo. É mesmo importante termos algo nas nossas vidas em que sejamos um só com o que estamos a fazer. Só sentir a existência sem estar sempre a pensar. Pensamos demasiado. [P] Como descobriu a interferência do RNA (ácido ribonucleico) e de que maneira é importante? [CM] Estamos a trabalhar nesta área onde

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Estou feliz por ter renovado os meus laços com os Açores e a minha família aqui, sinto que toda a ilha é a minha família. Craig Mello

analisamos a hereditariedade do mecanismo do silenciamento. Podemos induzir silenciamento de genes [de doenças] em células, numa geração e isso ter efeitos para várias gerações seguintes. Isto é fascinante e tem consequências potenciais na evolução porque um organismo pode evoluir depois de experienciar essa informação e passá-la para os vindouros […]. Falamos deste campo como a epigenética e está a ganhar muita importância. Leva-nos a perceber alguns mecanismos moleculares envolvidos nas mudanças de informação genética sem alterar o ADN. O DNA é a base da informação genética – descobrimos que podemos modificar a informação genética herdada através da maneira como o DNA é “empacotado”. Além disso, agora, também, sabemos como alterar a herança de RNA passada de geração para geração.

"Precisamos de continuar a financiar a investigação [científica]"

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[P] O que se pode fazer com esta informação genética? [CM] Descobrimos este mecanismo que funciona como um motor de busca, por exemplo, o Google. Há imensa informação numa célula – é como a internet. Como é que controlamos essa informação? Se não temos uma forma de procurar, como a controlamos? [Temos de poder escrever o que procuramos para o motor de busca encontrar]. Sabemos agora que as células lidam com o mesmo problema – encontraram uma maneira para pesquisar a informação. O que elas fazem é usar uma pequena parte do códiParalelo n.o 8

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go genético na forma de RNA para fazer a pesquisa. Assim como podemos escrever no Google podemos fazer uma consulta em laboratório na cadeia dupla de RNA e quando inserimos isso numa célula animal ou planta podemos procurar lá dentro – é como escrever na janela de pesquisa do Google. […] A mesma busca que fazemos sinteticamente vai para a enzima que usa essa informação para procurar e encontrar toda a informação igual e depois regulamos essa informação. [P] Diria que o Prémio Nobel o mudou ou mudou o seu trabalho? [CM] Não, não mudou. Nos primeiros anos foi uma loucura. Dei centenas de conferências e era insustentável. Mas agora as coisas acalmaram muito e o meu laboratório está bem e a fazer descobertas excitantes que estamos a publicar e a discutir. [P] É bom partilhar e celebrar o seu trabalho nos Açores? [CM] Estou feliz por ter renovado os meus laços com os Açores e a minha família aqui, sinto que toda a ilha é a minha família. O meu avô nunca pôde regressar. [P] Reconhece nas suas visitas nos Açores as histórias que o seu avô lhe contava? [CM] Algumas delas. O meu avô mergulhava no mar atirando-se dos penhascos. Até agora ainda não vi ninguém fazer isso. Eu não vou fazer isso, Paralelo n.o 8

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embora já tenha mergulhado um pouco. […] Os meus genes de velejador podem ser dos meus antepassados açoreanos.

muitas provas que alguém esteja a tomar conta de nós. Portanto é melhor nós tomarmos bem conta de nós próprios.

Se olharmos para a história da humanidade não há muitas provas que alguém esteja a tomar conta de nós. Portanto é melhor nós tomarmos bem conta de nós próprios. Craig Mello

[P] A sua autobiografia debruça-se sobre os problemas ambientais e a falta de atenção para estes… [CM] Sim. A sustentabilidade ambiental é uma assunto muito importante a que não nos dedicamos. O capitalismo funciona bem porque, basicamente, mantém as pessoas motivadas para trabalhar pela recompensa. Mas não tem em conta o verdadeiro custo das coisas e por isso é insustentável. Se tem recursos limitados e os explora sem olhar para o futuro, o seu capitalismo vai funcionar bem por algum tempo e depois deixa de funcionar ao esgotarem-se as matérias-primas. E isso está a acontecer. […] Se olharmos para a história da humanidade não há

[P] O que podemos fazer? [CM] A oportunidade vem pela riqueza. Se perdermos a riqueza estamos só a trabalhar para sobreviver, sem oportunidade de apreender conhecimento. Como cientista, tenho muita sorte de ter tido a oportunidade de fazer o que faço. Isso resulta do trabalho duro de agricultores, de construtores civis, de trabalhadores fabris – as pessoas que fazem coisas para mim, damos por adquirido que teremos sempre possibilidade de comprar roupas ou arranjar comida. Temos esta oportunidade agora e penso que como comunidade temos de aliar-nos e tentar assegurar o futuro, perceber que temos de viver de uma maneira sustentável.

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O acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) POR NUNO CUNHA RODRIGUES*

Estão neste momento em curso negociações entre a União Europeia (UE) e os Estados Unidos da América (EUA) que visam alcançar um acordo de comércio: o chamado acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). Através da (eventual) celebração deste acordo ambos os blocos económicos – União Europeia e EUA – pretendem ampliar as recíprocas trocas comerciais atendendo aos benefícios daí decorrentes para ambos.

Na verdade, diferentes estudos económicos realizados evidenciaram as vantagens económicas associadas à criação de uma zona de comércio livre entre os EUA e a UE.

Esta circunstância foi reconhecida na declaração conjunta da Cimeira UE-EUA, emitida em 28 de Novembro de 2011 e, mais recentemente, na declaração conjunta, de 13 de Fevereiro de 2013, emitida pelo Presidentes norte-americano, da Comissão Europeia e do Conselho Europeu. “[…] diferentes estudos económicos realizados evidenciaram as vantagens económicas associadas à criação de uma zona de comércio livre entre os EUA e a UE” Na verdade, diferentes estudos económicos realizados evidenciaram as vantagens económicas associadas à criação de uma zona de comércio livre entre os EUA e a UE (apesar de, note-se, não estar em causa a criação de uma zona que mimetize o mercado interno europeu).

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Podemos, a partir desses trabalhos, destacar os seguintes factos relativos às relações transatlânticas: a) A União Europeia representa a maior economia mundial, estando em causa 25,1% do PIB mundial e 17% de todo o comércio mundial. b) Os EUA representam a segunda maior economia mundial com 21.6% do PIB mundial e 13,4% do comércio mundial; c) Juntas, as economias destes dois blocos económicos representam mais de metade do PIB mundial;1 d) As relações comerciais bilaterais são fundamentais para ambos os parceiros. Em 2011, a União Europeia foi o primeiro parceiro comercial dos EUA (com 17,6% de comércio de bens) sendo o Canadá o segundo maior e a China o terceiro; e) Os EUA representam o segundo maior parceiro comercial da União Europeia, representando 13,9% do comércio de bens (sendo a China o primeiro parceiro). f) As relações económicas transatlânticas estão profundamente integradas sendo em média transaccionados bilateralmente, por dia, quase 2 mil milhões de EUR em bens e serviços; g) 45 dos 50 Estados norte-americanos exportam mais para a Europa do que para a China. Em alguns casos a diferença é onze vezes superior (caso da Florida); h) A balança comercial dos EUA com a Europa é deficitária tendo esse valor sido agravado nos últimos anos face à crise financeira verificada na Europa; “No período que mediou entre 2000 a 2011, as exportações da União Europeia para os Estados Unidos e dos Estados Unidos para a Europa estagnaram em termos absolutos” Há ainda riscos associados às economias de ambos os lados do Atlântico que justificam a celebração do Tratado: Paralelo n.o 8

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© EUROPEAN UNION, 2013

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Herman van Rompuy, Barack Obama e José Manuel Durão Barroso (da esquerda para direita). Um acordo como aquele que está em causa permitirá a plena realização de uma parceria transatlântica ambiciosa.

i) A economia na zona euro está em contracção, em contraste com EUA, onde se espera um crescimento de 2% no próximo ano. ii) No período que mediou entre 2000 a 2011, as exportações da União Europeia para os Estados Unidos e dos Estados Unidos para a Europa estagnaram em termos absolutos, o que contrasta com o aumento significativo das exportações da Europa e dos EUA para a China. A esta circunstância não está alheio o facto de o euro se encontrar excessivamente valorizado face ao dólar. iii) A globalização e a emergência de novas economias (nomeadamente os chamados países BRICS) implicam que as relações económicas transatlânticas estejam a passar de uma posição de preeminência para uma posição de predominância – sendo relevantes, estas relações começam a deixar de ter o peso esmagador que tiveram no passado. A celebração de um acordo como aquele que está em causa permitirá, de harmonia com o relatório de avaliação de impacto preparado pela Comissão Europeia, a plena realização de uma parceria transatlântica ambiciosa e abrangente em matéria de comércio e investimento a qual poderá trazer ganhos económicos significativos para a UE (119,2 mil milhões de EUR por ano) e para os EUA (94,9 mil milhões de EUR por ano). Este valor equivale a um ganho de €545 no rendimento anual de cada familia de quatro pessoas na EU e, em média, de €655 por família nos EUA. Paralelo n.o 8

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“As exportações da UE para os EUA poderão aumentar 28% e as exportações totais da UE a nível mundial terão um incremento de 6%. As exportações dos EUA podem aumentar mais 8%” As exportações da UE para os EUA poderão aumentar 28% e as exportações totais da UE a nível mundial terão um incremento de 6%. As exportações dos EUA podem aumentar mais 8% o que pode representar, no final, um aumento de 0,5% no desempenho anual da economia europeia e de 0,4% na economia norte-americana em 2027, de acordo com dados da Comissão. As negociações do Tratado surgem, por conseguinte, na sequência de estudos económicos que evidenciaram as potencialidades de aprofundamento das relações comerciais transatlânticas face, nomeadamente, a um conjunto de obstáculos – pautais e não-pautais – então identificados e que criavam entraves a esse aprofundamento. Nessa decorrência foram apresentadas três opções políticas diferentes quanto ao objecto das negociações: a) Um cenário que não implicava alterações políticas substanciais e que assentava apenas em alterações pontuais em questões de âmbito regulatório; b) Uma outra hipótese, mais abrangente, na qual as negociações seriam centradas apenas em três pontos: i) obstáculos pautais ainda existentes; ii) liberalização dos serviços e iii) dos contratos públicos;

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tuais obstáculos que subsistam ser legítimos, não-discriminatórios e proporcionais; c. Manutenção de um acordo “vivo” que permita a progressiva eliminação de obstáculos não-pautais e a convergência regulatória transatlântica depois da celebração deste; (iii) desenvolvimento de regras comuns para enfrentar as oportunidades e os desafios globais partilhados de comércio visando: a. Manutenção de níveis elevados de defesa dos direitos de propriedade intelectual; b. Assegurar ao comércio e desenvolvimento níveis elevados de sustentabilidade ambiental e social; Note-se que nenhuma destas questões aparece, de forma ingénua, nas negociações. Todos os pontos anteriormente referidos acolhem, de alguma forma, litígios surgidos entre a UE (ou algum dos seus Estados-membros) e os EUA dirimidos no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Questões como as barreiras alfandegárias (que deram origem a um paradoxal e conhecido caso das bananas, entre os EUA e a UE, envolvendo zonas que quase não produzem bananas…); barreiras regulatórias (fito-sanitárias, como sucedeu com o caso tuna-dolphin); barreiras à prestação de serviços ou a questão dos organismos geneticamente modificados fazem recordar que litígios passados servem de lições para escrever tratados futuros. É legítimo, por conseguinte, afirmar que o novo Tratado visa prevenir litígios transatlânticos sabendo-se que, apesar de aliados, os EUA e a UE foram, no passado, litigantes recíprocos perante a OMC. UN PHOTO/JOHN ISAAC

c) Um derradeiro cenário mais abrangente, que incluía todas as relações comerciais transatlânticas, nomeadamente os obstáculos pautais e não-pautais existentes e decorrentes, verbi gratia, da subsistência de barreiras regulatórias ao comércio de bens, serviços, investimento e contratos públicos. Aqui podiam equacionar-se duas alternativas: uma, mais conservadora e outra mais ambiciosa tudo dependendo de saber até onde se pretende ir na eliminação de obstáculos pautais e não-pautais. O mandato conferido à Comissão Europeia e as negociações em curso permitem compreender que se avançou por este derradeiro cenário – mais ambicioso – apesar de sabermos que certos serviços foram, a priori, excluídos do âmbito das negociações em curso o que pode prejudicar o posicionamento negocial das partes. As negociações em curso visam alcançar três objectivos essenciais: (i) melhoria do acesso recíproco ao mercado de bens, serviços, investimentos e contratos públicos, a todos os níveis de governo que se traduz na: a. Eliminação ou redução das taxas alfandegárias; b. Abertura recíproca dos mercados de serviços; c. Liberalização e protecção do investimento; d. Efectiva abertura dos contratos públicos em todos os níveis de governo; (ii) redução das barreiras não-pautais e aperfeiçoamento da compatibilidade dos regimes regulamentares que se traduz na: a. Eliminação de barreiras ao comércio; b. Definição comum de regras devendo os even-

O problema do dumping social surge como entrave a uma efectiva liberalização do comércio internacional.

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“(…) o novo Tratado pode simbolizar uma antecâmara de evolução desejada para a OMC no contexto da liberalização do comércio internacional.” Neste domínio, o novo Tratado pode simbolizar uma antecâmara de evolução desejada para a OMC no contexto da liberalização do comércio internacional. Uma das maiores dificuldades que os negociadores irão enfrentar diz respeito à eliminação de obstáculos não-pautais. Porquê? Desde logo porque os obstáculos pautais são de fácil percepção – estamos a falar de taxas alfandegárias por todos conhecidas – sendo, consequentemente, de mais fácil negociação. Sucede até que as taxas alfandegárias transatlânticas são, em geral, relativamente baixas, apesar de não serem negligenciáveis. A OMC estima que as taxas alfandegárias praticadas pelos EUA sejam, em média, de 3,5% e as da União Europeia, em média, de 5,2%.

Estas taxas, sendo eliminadas ou atenuadas pelo Tratado em negociação, permitirão reforçar a competividade das exportações portuguesas para os EUA com evidente vantagem para as empresas nacionais.

Não obstante, existe ainda algum proteccionismo em determinados sectores económicos protegidos. Por exemplo, do lado da União Europeia são aplicadas taxas alfandegárias elevadas a produtos agrícolas, camiões (22%), calçado (17%), produtos audiovisuais (14%) e vestuário (12%). Do lado americano subsistem taxas alfandegárias elevadas em produtos agrícolas processados (tabaco – 350%); têxteis (40%); vestuário (32%) e calçado (56%). Estas taxas representam um valor residual no comércio bilateral (2% no caso das importações provenientes dos Estados Unidos para a Europa e 0,8 % no caso das importações provenientes da União Europeia para os EUA). Apesar de alguns autores não destacarem a relevância destes obstáculos pautais no contexto das negociações, é legítimo considerar que serão relevantes para Portugal uma vez que estão em causa parte dos produtos tipicamente exportados para os EUA. Atente-se, em particular, aos têxteis, vestuário e calçado, relativamente aos quais a abertura de um novo mercado pode revelar-se decisiva para o incremento das exportações portuguesas. É certo que a estrutura das exportações de Portugal para os EUA sofreu alterações nos últimos anos. Se, na década de 90 do século passado, se exportava sobretudo calçado, roupa de cama, cortiça, moldes, tecidos e vinhos (dados AICEP), em 2011 Paralelo n.o 8

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as principais exportações passaram a ser combustíveis minerais, máquinas e aparelhos, cortiça e matérias têxteis (pesando um total de 56% dos bens exportados para os EUA). Registe-se ainda a exportação de novos produtos de Portugal para os EUA que, em 2011, representavam um peso de 26%: químicos, pastas e papel; veículos e minerais. O que significa que, apesar da alteração do paradigma dos bens exportados, muitos deles sofrem ainda penalizações alfandegárias que prejudicam as nossas exportações. “As taxas alfandegárias, sendo eliminadas ou atenuadas pelo Tratado em negociação, permitirão reforçar a competividade das exportações portuguesas para os EUA com evidente vantagem para as empresas nacionais permitindo até diluir a desvantagem competitiva que se verifica actualmente em resultado da excessiva valorização do euro face ao dólar.” Estas taxas, sendo eliminadas ou atenuadas pelo Tratado em negociação, permitirão reforçar a competividade das exportações portuguesas para os EUA com evidente vantagem para as empresas nacionais permitindo até diluir a desvantagem competitiva que se verifica actualmente em resultado da excessiva valorização do euro face ao dólar. Deixemos agora de lado os obstáculos pautais e olhemos então para os obstáculos não-pautais. Estes nem sempre são conhecidos, o que pode causar alguma dificuldade. Não está em causa, por exemplo, o problema do dumping social que surge como entrave a uma efectiva liberalização do comércio internacional e que têm sido suscitado no contexto das relações comerciais entre a União Europeia e alguns países asiáticos, em particular com a China. Esse problema, felizmente, não se coloca nestas negociações como aliás reconheceu recentemente o Parlamento Europeu. Mas há outros entraves não-pautais que subsistem e que representam um obstáculo ao comércio internacional. Esses obstáculos podem ser de diversa ordem. Refiro-me, inter alia, a obstáculos legais ou regulamentares – face, por exemplo, a excessos ou insuficiências de intervenção regulatória relacionadas, nomeadamente, com o comércio de serviços a procedimentos aduaneiros, standards e normas técnicas ou sanitárias, restrições regulamentares ou dificuldades no reconhecimento mútuo que operam na retaguarda da fronteira. “A redução de obstáculos não-pautais constituirá parte do sucesso da liberalização do comércio em curso.” A redução de obstáculos não-pautais constituirá, por conseguinte, parte do sucesso da liberalização do comércio em curso.

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Alguns autores referem que a redução do custo associado à burocracia e regulação pode significar cerca de 80% dos ganhos totais com a liberalização do comércio internacional. Aqui, a experiência europeia com a definição de standards comuns, transversais aos Estados-membros, pode ser decisiva para o sucesso do mercado em formação. Na verdade, a definição de standards operada a nível europeu – supra-nacional – tem permitido solucionar eventuais conflitos entre Estados. Veja-se, a este propósito, a exigência de neutralidade associada à definição de especificações técnicas no contexto das directivas sobre contratação pública. Este exemplo pode ser aplicado, na prática, na indústria automóvel. Todos conhecemos os níveis de segurança exigidos aos fabricantes de automóveis quer nos EUA quer na UE. Se, no final, os padrões de segurança são equivalentes, certo é que os standards não são comuns.

Os contratos públicos equivalem, na União Europeia, a cerca de 20% do PIB e são responsáveis por cerca de 31 milhões de empregos.

Há aqui, por conseguinte, um caminho a percorrer. É certo que se tem procurado derrubar os obstáculos não-pautais existentes ao comércio internacional quer pela actuação de organizações internacionais, como a Organização Mundial do Comércio – através de acordos multilaterais como o GATS ou o TRIPS ou de acordos plurilaterais como o Acordo sobre Contratos Públicos – quer através de acordos bilaterais celebrados directamente entre Estados ou entre a União Europeia e outros Estados. É o que sucede, por exemplo, com diversos acordos bilaterais celebrados entre a União Europeia e países do leste da Europa ou do norte de África. A celebração de acordos bilaterais faz parte, aliás, da actual estratégia comercial da União Europeia. Tudo isto sem prejuízo de se considerar, como reconheceu o Parlamento Europeu, que o desenvolvimento e o reforço do sistema multilateral é um objectivo crucial.2 Na verdade, a conclusão de acordos bilaterais deve concorrer para uma crescente harmonização de padrões e uma mais ampla liberalização, que favoreça o sistema de comércio multilateral. “A supressão de obstáculos não-pautais será um tema central das negociações.”

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A supressão de obstáculos não-pautais será, consequentemente, um tema central das negociações. Em alguns casos pode até estar em causa a negociação de matérias simultaneamente abrangidas por acordos já celebrados pelos EUA e pela União Europeia. Vejamos, por exemplo, o caso dos contratos públicos. Os contratos públicos equivalem, na União Europeia, a cerca de 20% do PIB e são responsáveis por cerca de 31 milhões de empregos. Já existe um acordo sobre contratos públicos em vigor no contexto da OMC que, no entanto, é um acordo plurilateral, assinado, até ao momento, por apenas 43 Estados-membros da OMC, na sua esmagadora maioria países desenvolvidos. Deste acordo fazem parte os EUA e a União Europeia. Porém, uma vez que se trata de um acordo de geometria variável – face ao conjunto de excepções que o mesmo faculta aos Estados outorgantes – tem-se verificado um efeito de encerramento dos mercados públicos nos EUA decorrente, nomeadamente, do Buy American Act – que implica a preferência por PME's americanas – da circunstância de algumas das entidades adjudicantes mais relevantes nos EUA – como a Federal Aviation Agency – não estarem abrangidas por aquele acordo ou de 13 dos 50 Estados norte-americanos não fazerem parte do âmbito do acordo. Consequentemente, apenas 32% (178bn) dos contratos públicos nos EUA estão abertos a empresas europeias afectando, consequentemente, a possibilidade de empresas portuguesas ou da União Europeia actuarem no sector das obras públicas ou nos chamados sectores especiais (utilities) no caso de entes públicos infra-estaduais. O acordo sobre contratos públicos da OMC tem ficado, por isso, aquém do pretendido procurando-se, através das negociações em curso, abrir efectivamente os contratos públicos nos EUA a empresas europeias e vice-versa. Aqui importará assegurar o acesso de pequenas e médias empresas (PME's) a contratos públicos, algo que deve preocupar os negociadores e que está em linha com os projectos recentes de novas directivas de contratação pública que visam promover a participação de PME's em contratos públicos. As negociações irão seguramente tropeçar noutros pontos sensíveis no contexto do comércio transatlântico. Refiro-me, inter alia, aos seguintes aspectos em particular: i) Os transportes aéreos e marítimos, conhecendo as restrições aos serviços de transportes marítimos e de transportes aéreos que são propriedade de empresas europeias, nomeadamente no que diz respeito à propriedade estrangeira de companhias aéreas e à reciprocidade na cabotagem, assim como ao controlo de carga marítima; ii) A liberalização dos serviços financeiros, sem a qual dificilmente se pode construir um verdadeiro mercado livre ou um mercado interno. Paralelo n.o 8

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© EUROPEAN UNION, 2013

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Conversa entre Herman van Rompuy, à direita, e José Manuel Durão Barroso. Alguns consideram que estas negociações serão "as negociações do século".

Aqui, a União Europeia poderá contribuir com a recente experiência da União Bancária e da centralização dos processos de supervisão prudencial dos grandes bancos no BCE como ensaio para a criação de um regulador financeiro comum entre os EUA e a UE; iii) As indicações geográficas, como exemplo de protecção necessária a dar aos direitos de propriedade intelectual; iv) As questões relacionadas com a segurança alimentar, em que deve ser salvaguardado, no caso da UE, o princípio de precaução uma vez que, como reconheceu o Parlamento Europeu, “as percepções sobre organismos geneticamente modificados (OGM), clonagem e saúde dos consumidores tendem a divergir entre os EUA e a UE” tendo sido historicamente discutidas no seio da OMC; v) Os serviços culturais e audiovisuais, excluídos das negociações, por decisão do Parlamento Europeu, considerando o receio de que o acordo pusesse em risco a diversidade cultural e linguística da União. vi) A protecção dos dados pessoais, em que os pontos de vista americanos e europeus são diferentes, devendo aqui recordar-se o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS) e as normas deste, relativas à protecção de dados pessoais; vii) Os direitos dos trabalhadores; viii) Protecção ambiental; Em todas as questões analisadas há diferentes percepções entre os EUA e a União Europeia que fazem antever algumas dificuldades de negociação. “alguns consideram que estas serão as “negociações do século”.” Paralelo n.o 8

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“Todos estão conscientes que o aprofundamento das relações bilaterais transatlânticas é indispensável para sairmos da crise económica e recolocar os EUA e a UE na liderança económica mundial, relançando o processo de liberalização do comércio mundial.” Talvez por isso alguns consideram que estas serão as “negociações do século”. Porém, todos estão conscientes que o aprofundamento das relações bilaterais transatlânticas é indispensável para sairmos da crise económica e recolocar os EUA e a UE na liderança económica mundial, relançando o processo de liberalização do comércio mundial. Trata-se de uma experiência singular. Alguém disse que os tempos de crise são tempos de oportunidade. Caso este Tratado venha a ser aprovado também nós, Portugueses, teremos uma oportunidade de conquistar novos mercados que porventura pensávamos já conquistados. Assim os saibamos aproveitar. * Doutor em Direito. Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. O presente texto resulta da adaptação da intervenção efectuada no dia 8 de Novembro de 2013 na conferência realizada no Centro Cultural de Belém, organizada pelo Professor Vital Moreira, intitulada “O Tratado de Comércio e Investimento EU-EUA: uma perspectiva Luso-Americana”. 1 Dados fornecidos pelo Center for Transatlantic Relations Johns Hopkins University. 2 Cfr. Resolução sobre as negociações em matéria de comércio e investimentos entre a UE e os Estados Unidos da América.

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ECONOMIA

A economia portuguesa ao alcance de um clic Contribuir para aumentar o conhecimento que existe no estrangeiro sobre o País é o objectivo de Portugal Economy – PE Probe, site em língua inglesa, nascido na sociedade civil.

A informação é um recurso estratégico fundamental para qualquer tomada de decisão, estando a eficácia do processo dependente da qualidade da informação. No mundo global e supranacional de hoje, o futuro joga­‑se em decisões de indivíduos e instituições que, na maior parte das vezes, não só não conhecemos, como também mal nos conhecem. A percepção que o investidor estrangeiro, a agência de rating, ou o comprador de dívida pública têm do país num determinado momento corresponde efectivamente à realidade? Seguramente, nem sempre, pois, para que isso acontecesse, seria necessário que dispusessem da informação certa. Certa, no sentido da informação que importa e da fidedignidade da sua origem. Os avanços tecnológicos multiplicaram à velocidade do instante a informação actualmente ao nosso alcance, desde que haja tempo e paciência para a procurar, bem entendido. A grande dificuldade está, portanto, não na falta, mas na dispersão da informação. “Muitas vezes, os investidores e decisores internacionais não obtêm a informação que necessitam sobre Portugal, não porque ela não exista, mas porque nem sempre é fácil de encontrar”, explicou o professor universitário, Miguel Athayde Marques, que liderou a equipa que concretizou o Portugal Economy – PE Probe. Na origem do projecto está, assim, a constatação do reduzido conhecimento técnico que existe no estrangeiro sobre Portugal e a sua economia, resultante da dificuldade de aceder rapidamente e de forma organizada a informação detalhada e específica sobre o País, a sua economia e a sociedade portuguesa no que respeita os seus parâmetros fundamentais.

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PE Probe é um site em língua inglesa, com grande arrumação e variedade de informação. Sendo uma iniciativa “para inglês ver” no sentido literal do termo, não podia nos seus propósitos estar mais na antítese do significado da popular expressão portuguesa. Com efeito, o site visa combater um problema estrutural, que é o da falta de conhecimento externo sobre o País, disponibilizando a decisores económicos e financeiros, políticos, jornalistas, líderes de opinião, académicos e público em geral, estatísticas oficias, indicadores económicos e financeiros, relatórios e outros documentos relevantes sobre Portugal, com origem em fontes oficiais fidedignas, como o Instituto Nacional de Estatística ( INE ) e a Agência para o Investimento e o Comércio Externo de Portugal (AICEP). Com acesso gratuito, www.peprobe.com apresenta­‑se num menu limpo, com a atenção visual a recair num calendário de factos e eventos. Documentos de referência sobre a economia portuguesa e uma área noticiosa partilham o corpo da homepage, que destaca ainda uma zona de livraria. Toda a informação sobre a economia portuguesa está agregada por áreas. Sete, no total: Economic Outlook (Cenário económico), Public Finance & Debt (Finanças e Dívida Pública), Financial Sector (Setor financeiro), Troika Dashboard (Medidas da Troika), Capital Markets (Mercado de Capitais), Business (Negócios) e, por fim, People & Families (Pessoas e Famílias). Primazia ainda dada a informação relativa, por exemplo, ao ensino, à investigação feita no País, ao turismo e ao investimento. O site pode igualmente ser seguido nas redes sociais, estando preparado para res-

ponder em qualquer plataforma, seja ela computador, tablet ou smartphone. A criação deste canal na internet, com informação concentrada e sistematizada deve­‑se à iniciativa de sete instituições da sociedade civil, preocupadas com o défice de conhecimento externo do país. Três são Fundações – Gulbenkian, Luso­ ‑Americana para o Desenvolvimento e Oriente; duas são bancos ­– Caixa Geral de Depósitos e Espírito Santo ­– e a respectiva a Associação Portuguesa de Bancos e uma empresa privada, a Impresa.

O site visa combater um problema estrutural, que é o da falta de conhecimento externo sobre o País.

O professor universitário, antigo presidente da Bolsa de Valores Lisboa, Miguel Athayde Marques liderou a equipa que, após nove meses de trabalho, deu vida ao projecto, ao qual o Secretário de Estado Adjunto do Primeiro­‑Ministro, Carlos Moedas, garantiu a total colaboração da administração e dos organismos públicos no fornecimento de dados relevantes e a Presidência da República aplaudiu e está a patrocinar. Catarina Hall, gestora e formadora, dirige o projecto. Aquando do lançamento, Miguel Athayde Marques, falando em nome das sete entidades que apoiam esta iniciativa, sem fins lucrativos, explicou que o Portugal Paralelo n.o 8

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Economy – PE Probe “não é um site de mercados”, não se substitui ao INE ou à Pordata, sendo seu propósito combater a percepção “muito deficiente” e “influenciada pelos media internacionais” sobre a economia nacional. De acordo. Não basta ser confiável e cumpridor dos acordos para obter o reconhecimento dos mercados, é preciso ser pró-activo, como agora se diz. A credibilidade constrói­‑se. E esta é uma excelente iniciativa nesse sentido. A.R.

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Inspirar a mudança A Alma do Negócio é uma importante acha para o empreendedorismo. POR ALMERINDA ROMEIRA*

O empreendedorismo é a cada dia que passa um tema mais falado, mais ouvido, mais escrito, mais visto e mais debatido em Portugal. Felizmente. Como escrevem Tiago Gomes Sequeira e Alexandre Mendes, da Factory, “o empreendedorismo apareceu, então, como o remédio para todos os males, dando esperança a toda a gente”. Acendeu uma luz ao fundo do túnel. E embora não seja a solução milagrosa para a crise económica e para o desemprego, a verdade é que está a impulsionar Portugal para uma nova atitude comportamental. Mais produtiva e ganhadora. Empreender é, no limite, autoria. Dizem os responsáveis da Factory: “Sermos autores da nossa própria vida e treinarmos o hábito de pensar, independentemente da situação ou circunstância”. A Alma do Negócio, primeiro livro comercial das Edições Sabedoria Alternativa, um projecto de Sofia Ramos, ela própria uma empreendedora, é uma importante acha para esta dinâmica. Apoiado pela Fundação Luso-Americana e mote para um ciclo de debates sobre empreendedorismo, o livro apresenta uma visão global do tema, assente em 28 textos, escritos por 29 autores, em que cada um aborda um aspecto particular da temática. O empreendedor de Silicon Valley, pai do Lean Statup, Steve Blank, assina uma valiosa introdução. Entre os co-autores está o professor universitário e presidente para a Plataforma do Empreendedorismo em Portugal, Dana T. Redford. No início do novo milénio – assinala ele – Portugal era o único país da União Europeia que não tinha qualquer oferta de educação sobre o tema nos níveis básico e secundário. O primeiro curso foi criado em 2005. O caminho é recente, mas tem raiz. Justifica: “Muitos dos traços e atributos necessários para a criação de uma cultura empreendedora, como a iniciativa, a audácia e a criatividade, são intrínsecos aos portugueses, com excepção talvez da aptidão para correr riscos.” Risco. Risco é aqui a palavra-chave. Uma

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Capa de livro A Alma do Negócio. O detonador é a vontade, a determinação de fazer acontecer.

espécie de bússola. “Um negócio sem riscos não existe”, declara o empresário Miguel Monteiro. Efectivamente, lançar uma nova empresa acarreta um elevado risco de insucesso, o que limita, à partida, o universo do quem quer. António Lucena de Faria, CEO da Methodus, afina o perfil: “Um

empreendedor tem que ter uma vontade forte, um grande espírito de sacrifício, uma dedicação ao projecto que lhe permita trabalhar longas horas, resistir aos momentos de desânimo e nunca esquecer a visão que o levou a iniciar o caminho do empreendedorismo”. O detonador é a vontade, a determinação Paralelo n.o 8

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ECONOMIA

de fazer acontecer. imprescindível para quem quiser Um empreendedor tem que ter A ideia é importante, empreender em Portugal, dada a riqueza sem dúvida, mas está do seu conteúdo. Aos citados, uma vontade forte, um grande espírito prática longe de ser tudo. juntam-se os contributos da Fundação de sacrifício, uma dedicação ao Todos temos ideias. Kauffman (Bill Aulet e Fiona Murray), Como diz o business João Romão (Wishareit.com), Vasco projecto que lhe permita trabalhar angel, Paulo Andrez: Pedro (Dezine), Ricardo de Melo longas horas, resistir aos momentos “Por dia podemos Mesquita (Lets Bonus) Inês Silva (start gerar uma, dez, vinte up X), Rui Pereira (Outsystems), Miguel de desânimo e nunca esquecer ideias de negócio Júdice (Thema Hotel & Resorts), Luís a visão que o levou a iniciar diferentes.” A fibra Roquette Geraldes e Vasco Stillwell empreendedora medeD’Andrade (advogados na MLGTS), Maria o caminho do empreendedorismo. Miguel Ferreira (Too Small To Fail) Pedro -se, isso sim, na capaCarmo Oliveira (Entrepreneurs Break), cidade para lhe dar Miguel Calado (Eggnest) e João Fernandes vida, para a concreti(programa +E+I). zar. Descobrir a forma Como qualquer história inspiradora da de ganhar dinheiro com a ideia - ou seja, saber como e a ensinamento mais valioso que retirou das mudança, pretende-se que a A Alma do quem se vai vender o produto ou o ser- três empresas que fundou é a importância Negócio funcione como uma centelha. “O que deve ser dada à descoberta do mode- livro tem um papel muito importante, viço dela resultante. “Encontrar uma necessidade e clientes lo de negócio. “Cabe a cada empreendedor porque é urgente transmitir informação é onde tudo começa, no entanto, o ver- realizar uma verdadeira caça ao tesouro e conhecimentos úteis sobre o que é o dadeiro desafio é conseguir atrair clien- que, tal como nos romances de aventura, empreendedorismo e sobre como se tes pagantes de forma frequente e que apenas terminará com a chegada ao local podem criar novos negócios na situação sejam leais”, considera o fundador da assinalado no mapa com um ‘x’ – o mode- económica actual”, sublinha Charles Buchanan, administrador da Fundação Beta-i, Pedro Rocha Vieira. O CEO do lo de negócio sustentável”. Wygroup, Pedro Janela reafirma: “O foco Barbara Beck de Lancastre, CEO dos Luso-Americana, que ambiciona ver criaé vender, vender, vender como se não Colégios O Parque, diz o mesmo por do um verdadeiro ecossistema nacional houvesse amanhã. A preocupação de outras palavras: “O sonho do negócio de de apoio ao empreendedorismo em quem empreende tem de ser esta: encon- sucesso só se torna realidade se for bem Portugal. Nas mãos temos o desafio de trar clientes”. E se falhar? Falhar deve gerido e se for financeiramente viável.” construir o futuro. De leitura muito acessível, A Alma do fazer parte da cultura de empreendedorismo. O conselho de Miguel Monteiro Negócio é um guia prático de leitura * Jornalista do OJE aos jovens: “Errem, mas em pequena escala e ainda com possibilidade de mudar o rumo do projecto.” PARA ALÉM DO LIVRO Quando há pouco mais de uma década João Trigo da Roza, presidente da A Alma do Negócio Associação Portuguesa de Business Angels, era CEO da PTM.com e as primeiras startcomo plataforma de incentivo -ups da economia digital começavam a ao Empreendedorismo aparecer, as fontes de financiamento eram bastante escassas. “O meu primeiro contacto com formas de financiamento alternegócio e para quem quer ser empreen‑ O lançamento do livro A Alma do Negócio, nativas foi em Harvard no ano de 2003, dedor. O objectivo é incentivar o networking com a participação de 29 autores e com o no curso de Venture Capital e Private e promover a criação de redes de contacto apoio da Fundação Luso-Americana (FLAD), Equity”, contou-me, recentemente. Hoje, e de conhecimento, relevantes para o reflectiu-se também numa oportunidade “a realidade é bem diferente e, no nosso sucesso profissional de cada um. para promover o crescimento da comuni‑ ecossistema, começa a haver uma cadeia Assumindo-se como um projecto integra‑ dade de empreendedores em Portugal. de players capazes de suportar o desendo, A Alma do Negócio está acessível ao O evento de apresentação deste Guia volvimento das empresas ao longo do seu público através do site – www.aalmado‑ motivou, desde logo, a realização de um ciclo de vida. Carlos Silva, President & COO negocio.pt –, uma ferramenta agregadora conjunto de novos encontros dedicados da plataforma de equity crowdfunding de todas estas iniciativas realizadas e à esfera empreendedora, abordando os Seedrs, contabiliza o financiamento de 33 motor de divulgação do livro, através da mais diferentes temas relacionados com start-ups que, juntas, angariaram através qual são disponibilizados conteúdos diver‑ a criação de novos negócios e com os da Seedrs cerca de dois milhões de euros, sificados e considerados relevantes para desafios que se colocam a quem faz nos primeiros catorze meses de operação. o setor. parte desta comunidade. Desde Setembro, Portugal tem histórias fantásticas de a FLAD tem sido palco de vários debates, empreendedores que conquistam todos os lançando questões de partida, decisivas ANA MARIA SILVA dias mercados locais e internacionais. no processo de arrancar com um novo LPM Pedro Ludovice Ferreira, coordenador de Design de A Alma do Negócio, conta que o

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Novos olhares sobre o Índio: o cinema nativo-americano contemporâneo O cinema nativo-americano de ficção teve um forte impulso na década de noventa. POR JOANA RODRIGUES*

“It’s a good day to be indigenous”, diz­‑nos o locutor da rádio KREZ no filme Smoke Signals. E assim puderam dizer os autores do primeiro filme inteiramente criado por nativos americanos quando receberam o “Audience Award” no respeitado Festival de Sundance. Estávamos em 1998 quando o escritor Spokane / Coeur d’Alene Sherman Alexie

e o realizador Cheyenne / Arapaho Chris Eyre decidiram dar vida à história “This is What it Means to Say Phoenix, Arizona” do livro de contos The Lone­‑Ranger and Tonto Fistfight in Heaven, escrito por Alexie em 1993. Através do programa de incentivo à criação cinematográfica do Instituto de Sundance, os autores viram a possibilidade de transmitir,

através de Smoke Signals, a sua visão do que é a vida e a experiência de um nativo americano numa reserva no mundo contemporâneo. Mal sabiam eles que a sua obra constituiria um ponto de viragem não só para o cinema de ficção nativo­‑americano – o filme ganhou vários prémios na circulação em festivais e a Miramax decidiu

Filmagem de 5th World (2005) de Blackhorse Lowe com os actores Liv'andrea Knoki e Sheldon Silentwalker.

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distribuí­‑lo – como para a reformulação da imagem do índio, problemática inseparável de qualquer representação dos povos nativos da América do Norte. São vários os estudos, escritos e filmados, que perspectivam a maneira como os índios foram mostrados nos westerns que Hollywood difundiu a uma escala mundial ao longo de várias décadas. Entre os questões apontadas nestas investigações, sobressaem as histórias tendencialmente negativas na abordagem das personagens nativas, os erros na representação das tribos, dos seus hábitos e línguas, a ausência de nativos americanos nos castings para a representação dos seus líderes e, sobretudo, a ideia de que os nativos americanos estavam condenados à extinção, ao desaparecimento natural, à suplantação pelo Homem moderno, evoluído. O cinema nativo­‑americano de ficção – aquele que é controlado criativamente por nativos americanos – teve um forte impulso na década de noventa, apesar de tentativas desafiantes nos anos oitenta, como é o caso do filme Harold of Orange (1984) escrito por um veterano da literatura nativo­‑americana, o autor Anishinaabe Gerald Vizenor. Este foi um cinema que nasceu, sobretudo, da vontade de combater a superabundância de imagens vazias e redutoras das culturas nativas. Assim, cada filme que marcou o início deste cinema é comparável a um gesto de activismo, e obras como Smoke Signals (1998) de Chris Eyre ou, no campo das curtas­‑metragens, Cow Tipping: The Militant Indian Waiter (1992) de Randy Redroad, foram determinantes para cimentar um discurso de resistência que visava devolver aos nativos americanos o espaço da auto­‑reinvenção. “More pathetic than an indian on TV is an indian watching an indian on TV”, diz­‑nos Thomas­‑Builds­‑the­‑Fire enquanto vê um western numa das cenas de Smoke Signals, confirmando, com este comentário, um dos principais traços de Sherman Alexie enquanto escritor e argumentista: a consciência do potencial da ironia como alerta para a necessidade de transformações estruturais. Assim, em 2002, o contista decidiu escrever e realizar o filme The Business of Fancydancing no qual transporta o tom irónico e o registo da experiência emocional nativo­‑americana para um nível superior. Se Smoke Signals peca, segundo a estudiosa Jacquelyn Kilpatrick, por não ser suficientemente nativo­‑americano, ­– supõe­‑se, em grande parte, pela estrutura estandardizada de road movie que permite um maior alcance de público – já o filme Paralelo n.o 8

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Não existe apenas um olhar nativo-americano, mas sim vários olhares provenientes de diferentes culturas nativas.

afirma a ensaísta Jana Magdaleno Sequoya a relação seminal da identidade Os autores viram a possibilidade das tribos nativo­‑americanas de transmitir, através de Smoke com o seu homeplace. Desse modo, tanto em 5th World Signals, a sua visão do que é a (2005) e Shimasani (2009) de vida e a experiência de um nativo Blackhorse Lowe, como em americano numa reserva no mundo Four Sheets to the Wind (2005) e Barking Water (2009) de contemporâneo. Sterlin Harjo, as narrativas movem­‑se em torno da ideia realizado por Alexie ensaia a construção de pertença a um espaço envolvente que de raiz de uma nova imagem que nada é muitas vezes reflexo da paisagem intedeve ao índio transfigurado de Hollywood rior das personagens. A acrescentar ao trabalho de Sterlin Harjo a não ser pela contraposição de um retrato irreconhecível. O filme The Business of e Blackhorse Lowe, há o de vários realizaFancydancing representa, essencialmente, a dores como Nanobah Becker (Navajo), abertura de novos caminhos de criação Randy Redroad (Cherokee), Shelley Niro para autores contemporâneos, agora (Mohwak) que contribuem, também eles, para o alargamento das perspectivas sobre menos preocupados com o questionamento directo dos clichés e mais focados nas o que são, actualmente, as vivências nativo­ ‑americanas. Assim, não existe apenas um histórias que lhes interessam enquanto olhar nativo­‑americano, mas sim vários indivíduos. Blackhorse Lowe (Navajo) e Sterlin Harjo (Seminole / Creek) são dois olhares provenientes de diferentes culturas exemplos de realizadores emergentes que, nativas, e é exactamente essa variedade que não obstante as filmografias ainda pouco enriquece e alarga os domínios nos quais tem lugar a luta comum pela sobrevivência. extensas, marcaram já a diferença pela Nas palavras de Sterlin Harjo: “Our lanforma como fazem do cinema um espaço de afirmação da sua expressividade sin- guages are dying and our numbers are shrinking but we are still here and we can gular, incontornavelmente influenciada pelas culturas das quais provêm. Apesar still tell our stories. We survived, now take das abordagens distintas enquanto criado- a peak and see what life is like.”. res, ambos enfatizam, no seu trabalho, a relação das histórias com o espaço no qual *Realizadora e especialista em cinema nativo-americano acontecem, relembrando assim, como contemporâneo

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Do princípio ao fim da estrada: 30 mil quilómetros a pedalar no continente americano POR MARINA ALMEIDA* FOTOGRAFIAS DE IDÍLIO FREIRE

Durante um ano e três meses, mais precisamente 427 dias, dos quais 342 a pedalar, Idílio Freire, português de 44 anos, percorreu 15 países de bicicleta a uma média de 15,4 quilómetros/hora. Uma experiência extrema, de tempo e perseverança: pôs­‑se à prova e superou­‑se, viveu cada dia intensamente, juntou à sua massa genética os

rostos, as vozes, os cheiros, as vidas de centenas de pessoas com quem se cruzou. A partir desta viagem nada mais será igual na sua vida. Foi um sonho que o levou a deixar a sua vida rotineira casa­‑trabalho­‑casa e a trocar o pib do país – Idílio é economista no Instituto Nacional de Estatística e espe-

cialista em contas nacionais – pelos dias sem rotina, em que pedalar “era como respirar”. Escolheu começar em Inuvik, no Canadá (a 24 de Julho de 2010), e pedalou estrada fora ao longo de 30 002 quilómetros. Parou em Ushuaia, na Argentina, a 9 de Setembro de 2011: a estrada acabou.

Foi um sonho que o levou a deixar a sua vida rotineira casa-trabalho-casa e a trocar pelos dias sem rotina.

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“A viagem começa onde começa a estrada e acaba onde acaba a estrada”, resume numa simplicidade desarmante, já no regresso a Lisboa, onde se desdobra em palestras para olhos e ouvidos curiosos. Di­‑lo como se fosse para todos amarfanhar os objectos para 15 meses de vida em quatro alforges de bicicleta, uns 45 quilos. Comida, roupa, ferramentas da bicicleta, apetrechos de cozinha, primeiros­‑socorros, tenda e saco-cama. Uma bolsa no guiador com máquina fotográfica e os mapas. Numa mochila, o computador, lanterna, canivete. De alguma forma despejou o essencial do T2 nos apêndices de uma vulgar bicicleta todo­‑o­‑terreno (uma Scott Boulder) e partiu. Não admira que diga a dada altura da entrevista – em que se recorda de cada pormenor daqueles 427 dias (repete aqui e além o número mágico, 4­‑2­‑7) com os olhos, o rosto, tudo a brilhar – que a bicicleta era já o seu corpo. Seria, também, a sua casa. Idílio Freire viajou sem gps, seguindo os mapas de papel: pedalou cada quilómetro, cada declive, cada placa com o nome da terra, da maior à mais pequena. Diz que é capaz de reconhecer pelo cheiro todos os locais onde dormiu. Detém­‑se nas memórias, gesticula, conta histórias. Não se socorre muito dos milhares de fotografias que tirou: tem­‑nas na cabeça. Assim como os nomes de todas aquelas personagens. Como Brian, um americano com quem partilhou três semanas da viagem e que teve de regressar a casa quando estavam no México. Deixou­‑lhe o atrelado da bicicleta, no qual Idílio rearrumou a casa, mandando os alforges de regresso a Lisboa. Gravou a cultura dos povos na pele, não tem más experiências para contar. Teve sorte. Ou talvez aquilo que lhe disse o estranho americano fantasma à beira da estrada seja verdade: 98 por cento das pessoas do mundo são boas. Se teve de recuperar a bicicleta, foi ao mar. Estava ele em Buenos Aires – cidade onde passou umas semanas a “reaprender a andar” antes de voltar a Lisboa. Andava a passear na praia, a maré subiu e ele estava distraído. Lá se atirou às águas e salvou­‑a. A bicicleta já tomava por estes dias quase forma de gente, com vontade. Idílio ainda pensou em deixá­‑la ficar. Mas não. Ciclista e bicicleta aterraram em Lisboa a 24 de Setembro. O economista “dos números grandes” (como diz que dele dizem os amigos) fez um balanço da sua viagem de números pequenos: em média percorreu 87,7 quilómetros por dia à razão de 15,4 por hora, atingiu uma velocidade máxima de 84 quilómetros/hora. Pedalou durante 1943 horas, teve 38 furos, comprou 12 Paralelo n.o 8

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Idílio Freire, português de 44 anos, percorreu 15 países de bicicleta a uma média de 15,4 quilómetros/hora.

Teve sorte. Ou talvez aquilo que lhe disse o estranho americano fantasma à beira da estrada seja verdade: 98% das pessoas do mundo são boas.

pneus, substituiu 10 raios. Gastou “entre 20 e 21 mil euros”, amealhados a partir do momento em que começou a sonhar mais a sério. Mas as grandes contas desta aventura fê­‑las sozinho, em cima da bicicleta – a que passou a chamar Dempster, depois de uma aven-

tura renhida que o pôs à prova logo no início da epopeia, na Dempster Highway, no Canadá. O deve e haver salda­‑se numa factura intangível: “Felicidade constante ao longo de 427 dias.” *Jornalista do DN

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Inclusão social de crianças e jovens: um dia de (Des)Encontro O objectivo era simples: chamar a atenção para o skate e para outras linguagens alternativas como o surf, o snowboard, as artes circenses, o hip-hop, o rock, o graffiti ou a vela, enquanto veículos quase natutrais para a intervenção social junto de crianças e jovens em risco. A Skape, com o apoio da FLAD, reuniu na Casa Independente, ao Largo do Intendente, vários projectos e uma nova geração de empreendedores sociais que, diariamente, intervêm junto de vidas desencontradas. POR CLÁUDIA HENRIQUES*

Num dia de Outono, a manhã rompeu com um sol radioso.”Que sol de ideias que aí está!”, diz João Menezes da Skape, enquanto olha para o Largo do Intendente através das velhas portadas do salão da Casa Independente que, ainda há pouco tempo, e depois de muitas outras vidas, era salão de baile da Casa da Comarca de Figueiró dos Vinhos. O cenário parece improvável para uma conferência. Há um palco, mas é ao nível da assistência que os oradores falarão. “Nada de desníveis entre quem fala e quem ouve”, alerta João Menezes, enquanto arruma a sala. As cadeiras dos oradores pouco diferem das da plateia. Um sofá já puído e com as molas soltas, disfarçado por dois velhos cadeirões almofadados, compõe o espaço. O restante mobiliário parece também respirar o espírito de ruptura da conferência: cadeiras vintage e bancos corridos, desirmanados entre si, dispostos à medida que vão sendo encontrados pelo amplo espaço da Casa Independente. As paredes do salão estão em ruína anunciada, e até uma cadeira de dentista serve de bengaleiro improvisado. Por detrás dos oradores, no palco que nunca será utilizado – “o palco gera distâncias que não queremos”, insiste João –, há uma imagem enorme de

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um tigre, herança das noites dançantes, que desarma qualquer ideia de encontro formal. “MAS QUAL NORMALIDADE?” Parecia um encontro de amigos, daqueles em que se estabelecem pontes para o futuro, e nos quais todos os pontos de vista são bem-vindos. Em nome da FLAD , Charles Buchanan deixa claro que sem apoios e iniciativas institucionais, sem uma rede de contactos coesa e transversal na sociedade, os casos de sucesso entre as crianças e jovens em risco serão diminutos. O conceito de empreendedorismo social, diz o administrador da FLAD, “abre consciências e permite que os sonhos e ambições mais impensáveis se realizem”. Quando se pensa em inclusão social de crianças e jovens em risco, a pergunta parece quase inevitável, diz João Menezes: “Como é possível sobreviverem?”. Tantas vezes a ouviu em tom fatalista, que a resposta é também uma pergunta, mas cheia de possibilidades: “E porque não?”. A experiência com jovens skaters tem-lhe mostrado que, pela sua vertente lúdica, altruísta, idealista e identitária, os desportos de acção podem

gerar igualdade de oportunidades, uma atitude positiva perante a vida, e verdadeiras histórias de sucesso. “Este (Des)Encontro tem desde já uma vantagem: os espartilhos institucionais ficaram lá fora”, diz descontraidamente Pedro Calado, director executivo do Programa Escolhas. Ao papel de orador institucional, Pedro Calado prefere o desfiar de memórias da sua adolescência na Margem Sul, onde o espaço de vivência privilegiado era uma banda de garagem, simultaneamente “território de risco assumido e partilhado por um grupo de jovens, mas também espaço de pertença e de protecção como nenhum outro”. Ao recuar ao início do Programa Escolhas, em 2001, recorda uma das primeiras imagens que reteve numa visita a um bairro social: a de vários jovens encostados aos muros, sem ocupação, uma espécie de eternos “jovens reformados”. Num mundo não asséptico e diverso, o risco é tão ou mais natural do que a pretensa normalidade dos dias, insiste Pedro Calado, e deixa o alerta: “Achamos sempre que funcionamos na normalidade ou na anormalidade, quando o normal é o desvio”. VIDAS (DES)ALINHADAS A experiência no terreno, como a que Sara Almeida ( TESE – Associação para o Desenvolvimento) relata, de inclusão Paralelo n.o 8

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socioprofissional de jovens em bairros problemáticos de Cascais, ajuda a desconstruir preconceitos e “a ver a realidade de forma descompassada”, desprovida de rótulos e impossibilidades. É assim que Filipa Silva, do Chapitô, também se autodescreve: “uma técnica do terreno”. Filipa trabalha em centros educativos tutelados pelo Estado há oito anos. No início era a licenciatura em Política Social, mas agora o que a move é um projecto de vida maior que passa pelo trabalho com jovens entremuros. “Um gabinete climatizado seria um modo de vida mais cómodo, mas não me daria tanto gozo”, sorri, ainda que o prazer seja contrabalançado, ou mesmo questionado, pelo prisma do preconceito. Levar as artes circenses, o break dance ou o rap para os centros onde estão internados jovens aos quais foram imputados crimes nem sempre é bem visto. Como explica Filipa, “é uma batalha diária não sermos vistos como palhaços ou freaks sem utilidade”. Mobilizar e multiplicar a adesão é o grande objectivo de qualquer programa de empreendedorismo social. Na Entremundos, o processo de implementação de um negócio social junto dos jovens e população activa desempregada do Casalinho da Ajuda só foi viável depois dos técnicos conhecerem a dinâmica do bairro em profundidade. À descoberta de uma oficina desactivada no bairro, somou-se a formação em carpintaria de alguns dos moradores e a parceria estratégica com o Náutico Clube Boa Esperança, junto ao Cais do Sodré. Ana Sofia Proença, técnica da Entremundos, explica como a partir das sinergias criadas e do conhecimento do meio a sua associação implementou um projecto participado e economicamente viável de construção de embarcações. Este é, para Frederico Cruzeiro Costa, fundador da Social Entrepreneur Agency (SEA) um dos pontos fundamentais de qualquer projecto desta natureza: a sustentabilidade. Para Frederico, a ideia de que o empreendedorismo pode funcionar com base no voluntariado, no amadorismo e com magros recursos é falsa e tem que ser abandonada. “Qualquer dedicação à comunidade só será viável se souParalelo n.o 8

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bermos vender serviços no mercado, de forma a agilizarmos financeiramente o projecto social e garantirmos a nossa própria sustentabilidade financeira”, conclui Frederico.

curso e a explicação de que também eles, vindos das áreas da Economia e da Gestão, se sentiam deslocados até iniciarem este projecto. Rompendo com os desencontros, e acreditando que com a atitude certa todos podem descobrir dentro de si o seu “super­ ‑poder”, Diogo e Manuel apostam na O conceito de empreendedorismo mobilização de mensocial “abre consciências e permite tores que, nas mais variadas áreas, vão que os sonhos e ambições mais “contaminar” jovens impensáveis se realizem”. tocados pelos mesmos interesses. Charles Buchanan A atitude parece gerar atitude. Ao longo da sessão, o público Na base da intervenção transfigurou-se, bateu social junto de crianças palmas, e mimetizou os e jovens encontram-se, “Transformers” em jogos frequentemente, situalúdicos que a apresentações de insucesso escoção inicial não fazia prever. lar. O “Projecto para ti se Manuel Oliveira, psicólogo não faltares” da Fundação e fundador do Clube do Benfica, em parceria com as Optimismo, vê na atitude a alaescolas, combate o absentismo vanca primordial de qualquer e o abandono escolar, promoprojecto de vida: “qualquer problevendo a prática de modalidades ma que vos surja na vida só é resoldesportivas como o futebol, o voleivido com uma postura optimista”. bol ou o atletismo, e premiando os alunos que se esforçam na melhoria da sua assiduidade, comportamento e aproveiNA AMÉRICA COMO EM PORTUGAL tamento escolares. Em diálogo com a Steve Larosiliere, do projecto “Stroked”, plateia, Jorge Miranda, responsável por não conhecia o “Surf.art” de Paulo Canas este projecto, garante: “quando estabee Nuno Fazenda. Mas na distância que lecemos um compromisso com um desvai de Cascais a Nova Iorque encontram tes jovens é uma vitória, porque quem uma linguagem comum e transfronteivive em exclusão não vive em contrato riça, que vive das potencialidades dos social”. desportos de acção na promoção do bem estar social dos jovens. A prática de desportos radicais, constitui nas palaUMA QUESTÃO DE ATITUDE vras dos mentores dos dois projectos, Diogo Silva e Manuel Lamas ou, melhor, uma metáfora perfeira da vida. Afinal, os “Transformers”, chegaram à Casa como repete Steve, “não existem venIndependente com uma formalicedores nem vencidos, mas a convicção dade suspeita. Com blazers e de que há sempre a possibilidade de gravatas de ocasião, a maior tentar e de melhorar, com criatividade, dissonância estava nos ténis. se cairmos”. A apresentação começou rígiNo encerramento deste (Des)Encontro, da, sem qualquer rasgo criao juiz Armando Leandro, da Comissão tivo, e demasiado palavrosa. Nacional de Protecção de Crianças e Quando no ecrã surge a Jovens em Risco, regressa à metáfora do expressão “Nós não pescaskate como: “O skate e os outros desmos nada disto!”, os portos e motivações hoje apresentados “Transformers” fazem eles permitem dar o salto para a vida, na próprios a sua desconstrucerteza que nós, sociedade, também ção, e apresentam-se à temos de aprender a fazer skate e a fazer plateia de calções e t-shirt. das crianças e dos jovens sujeitos do seu Com a transformação físipróprio destino”. ca vem também a * Jornalista freelancer mudança de dis-

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Aman Ali O muçulmano americano POR SOFIA BRANCO*

“A vida de um muçulmano é muito semelhante à de qualquer outra pessoa, enfrentamos os mesmos problemas."

O melhor antídoto, contra tudo, é o humor. Aman Ali acredita piamente nisto, como muçulmano crente, mas moderno, urbano, cosmopolita, americano dos quatro costados, que escolhe amigos entre quem joga melhor basquetebol e não entre quem mais reza a Alá. Aman Ali, comediante, argumentista e contador de histórias, esteve recentemente em Portugal (ver caixa) para narrar as peripécias do projeto-viagem “30 Mosques in 30 States”, que o levou, juntamente com o fotógrafo e realizador Bassam Tariq, a visitar 30 mesquitas em 30 estados dos EUA, no Ramadão de 2011 (http:// www.30mosques.com). Cinquenta mil quilómetros depois, do Alasca a Nova

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Iorque, o projecto de fazer “um retrato honesto”, com contar “coisas boas e coisas más”, da comunidade muçulmana tornou-se viral. Guiaram seis a doze horas por dia e nunca precisaram de ficar em hotéis, porque as pessoas lhes abriram a porta de casa. Viram (e contaram) um pouco de tudo. Descobriram que a primeira mesquita dos Estados Unidos foi construída em Ross, uma terra com cinquenta habitantes em Dakota do Norte e que o estado de Montana é o único sem uma mesquita, apesar da comunidade que ali vive há trinta anos. A meio, a organização que se comprometera com o financiamento do projecto

cancelou-o e os autores recorreram, em desespero, ao Facebook e ao Twitter, angariando quatro mil euros em menos de dois dias. O ponto de partida para a “ideia maluca”, sobre a qual tem sido convidado a falar em todo o mundo, foi o contraste entre a realidade e a narrativa mediática. “Apercebi-me de que o que via na televisão não era o mesmo do que o que via na realidade. Um tipo na Flórida ameaça queimar o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, dizendo que não gosta do Islão (…) e depois descobrimos que apenas vinte pessoas vão à sua igreja, mas, se virmos televisão, pensamos que o tipo deve ser poderoso e influente”, exemplificou, em conversa com a Paralelo n.o 8

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Nos Estados Unidos, “a maioria” dos muçulmanos “são americanos que também são muçulmanos e não muçulmanos Aman Ali americanos”.

PARALELO, no final de uma sessão com estudantes na Universidade Nova de Lisboa. Apontando o dedo à comunicação social e à política pela construção de uma “narrativa” que “vê os muçulmanos como vilões”, Aman Ali, nascido e criado nos Estados Unidos, numa família de origem indiana e muçulmana, considera que “a perseguição e a discriminação resultam da falta de conhecimento” sobre uma comunidade com “pessoas muito religiosas, mas também liberais e moderadas”. Criticando os estereótipos acerca dos muçulmanos “devotos, religiosos, rígidos”, Aman Ali contrapõe: “Como é que se parece um muçulmano, é médico, taxista, farmacêutico, alguém lá da escola? Não há um perfil comum. Eu sou muçulmano e não passo a vida a dizê-lo às pessoas.” Não há uma história comum, os muçulmanos chegam aos EUA por razões diferentes e vindos de contextos diferentes. Relata histórias de muçulmanos que trabalham nos casinos de Las Vegas porque precisam do emprego e do dinheiro, apesar de o Islão não autorizar o jogo, e que vendem porco para garantir a sobrevivência das suas mercearias. “Não há um muçulmano comum, como não há um católico ou cristão ou judeu comum”, diz, observando: “A vida de um muçulmano é muito semelhante à de qualquer outra pessoa, enfrentamos os mesmos problemas, não conseguir pagar a renda do apartamento, uma ex-namorada a chatear, como conseguir uma boa educação e um bom emprego.” No mundo mediático, “quem grita mais alto é quem atrai mais as câmaras”, independentemente de também estar disposto a ouvir. Mas, reconhece, “é fácil culpar a comunicação social” e, por isso, é preciso dizer que a comunidade muçulmana também tem “um problema”. Afinal, onde estão “as vozes muçulmanas, que falem alto de paz e tolerância?”, questionou, para propor: “Temos de melhorar a comunicação.” Ao mesmo tempo, “não só os não muçulmanos devem visitar mesquitas, como os Paralelo n.o 8

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“Temos orgulho na nossa fé e religião, mas não andamos a pregar, não estamos aqui para converter ninguém."

muçulmanos devem visitar igrejas, sinagogas, templos”, em resumo saírem da “bolha” e travarem conhecimento com os outros. Aman Ali assume a dificuldade de pertencer, quando se nasce nos Estados Unidos mas se tem origens indianas e muçulmanas, mas vê nisso “uma vantagem” para o humor que faz e com o qual “qualquer miúdo muçulmano” se pode identificar e saber que “não está sozinho”. Durante a viagem que efectuou pelos Estados Unidos, Aman Ali surpreendeu-se com “o passado muçulmano” do país, desconhecido dos próprios muçulmanos. Dez por cento da população do país professa o Islão e os muçulmanos estão em todos os estados. Só num raio de cinco quilómetros em Nova Iorque encontram-se 135 mesquitas. “Como podemos esperar que os americanos saibam, se nós próprios não sabemos a nossa história? Muitos miúdos que cresceram na América, como eu, sentem que não pertencem. É por isso que é importante saber a História, porque finalmente nos sentimos em casa”, explica. Nos Estados Unidos, “a maioria” dos muçulmanos “são americanos que também são muçulmanos e não muçulmanos americanos”, distingue. “Temos orgulho na nossa fé e religião, mas não andamos a pregar, não estamos aqui para converter ninguém. Para seres meu amigo, não tens de ser muçulmano, tens é de ser fantástico em basquetebol, não me faças perder quando te passo a bola, é tudo o que me interessa”, brinca. Há uma linha que Aman Ali não atravessa:

Aman Ali veio a Portugal a convite da Embaixada dos Estados Unidos e, duran‑ te uma semana, realizou várias sessões em universidades de Lisboa, Porto e Braga, e visitou locais religiosos muçul‑ manos, nomeadamente a Mesquita Central e o Centro Ismaelita de Lisboa.

não goza com a religião, seja o Islão, ou outra qualquer. “As pessoas são orgulhosas da sua fé e isso é bonito. Por que haveria de gozar com isso? Não estou a tentar alienar as pessoas, ou chateá-las, quero fazê-las felizes”, justifica, comentando o polémico caso dos cartoons do profeta Maomé, que, garante, “adorava piadas”. Os líderes de todo o mundo, e não só os muçulmanos, “estão a perder o contacto” com os cidadãos, porque “o poder corrompe”, analisa, confessando ter-se entusiasmado com as primaveras árabes, mas entretanto desiludido com “os retrocessos”. “Belas mudanças aconteceram no Egito, mas olha o que está a acontecer agora. Essa é a minha hesitação… Mas a ideia de as pessoas se levantarem e terem uma voz… foi lindo”, diz, realçando o poder das redes sociais para darem “voz a quem não a tinha”. Aman Ali segue a máxima “come as you are to islam as it is” e é isso que quer: “dar voz aos sem voz”. E aproveitar para mostrar às crianças que não é por serem muçulmanas que não “podem sonhar”. * Jornalista da LUSA

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O americano que salvava europeus Muitos livros sobre as perseguições nazis ignoram Varian Fry. Mas sem a acção deste na Europa de 1940-41 as carreiras ou as vidas de numerosos escritores, artistas e intelectuais europeus teriam terminado nesse começo de década. POR FRANCISCO BELARD

André Breton, Hannah Arendt, Max Ernst, Chagall, Döblin, Duchamp, Meyerhof, Koestler, Feuchtwanger, Max Ophuls, Jacques Lipchitz e Franz Werfel são apenas alguns dos mais notórios entre os milhares (de várias nacionalidades, crenças e ideologias) que Fry ajudou a escapar – frequentemente com escala em Lisboa – da Europa ocupada pelo III Reich. Nessa operação também foi apoiada a viagem de França para Lisboa da norte-americana Marguerite (mais conhecida por Peggy) Guggenheim, personalidade “rich and famous”, o que não ocorria com a maior parte dos que procuravam sair da Europa. Instruída pela rede de Fry sobre o que devia dizer às autoridades policiais e alfandegárias (por exemplo, não se declarar judia, mas sim cidadã americana), era acompanhada por Ernst e amigos comuns. Nascido a 15-10-1907, Varian Fry estudara em Harvard, era jornalista e colaborava em revistas culturais e políticas. Podia ter tido uma vida tranquila nos EUA, que só em Dezembro de 1941 (após o ataque japonês a Pearl Harbor) entrariam na II Guerra Mundial, conflito até então sobretudo europeu. Em 1935, uma viagem a Berlim fê-lo verificar a violência contra os judeus. Ao voltar a Nova Iorque procurou alertar, no New York Times, quanto ao que se passava no Reich. Em Junho de 1940, quando a França capitulou, fundara-se em Nova Iorque o Emergency Rescue Committee, por iniciativa de intelectuais como o psicanalista Paul Hagen (socialista austríaco que em Maio chamara a atenção para a lista nazi de “inimigos do Reich”) com o apoio de Eleanor Roosevelt. Sabia­‑se que os judeus, mesmo sem actividade política, eram “inimigos”, mas não se adivinhava a dimensão do que se chamaria Shoah ou

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Varian Fry salvou muitos da perseguição nazi. Paralelo n.o 8

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Holocausto; assim, o comité elaborou Europa fez dele um discreto herói ameuma lista de cerca de 200 pessoas, não ricano e um notável herói do nosso limitada a “israelitas”na terminologia tempo. Apesar do seu nome pouco então corrente (“Juden” para os alecomum, Varian Fry ficou a ser um dos mães), tendo em vista escritores, artistas, mais ilustres desconhecidos da época. políticos, cientistas e outros refugiados Com efémero apoio consular, coordenou na zona não ocupada da França, aprouma singular operação de busca e salvaveitando quanto possível a neutralidade mento de milhares de pessoas que tendos EUA nessa fase. Fry aceita ser envia- tavam sair dos países ocupados pelo do a França, estabelecendo-se no Sul Reich ou vassalos deste, e cuja rota se com outros voluntários cuja missão é dirigia geralmente aos EUA. A neutraliajudar, por meios mais ou menos legais, dade permitia uma margem de manobra, os que precisam de abandonar a França mas com riscos, mesmo pessoais; os de Vichy e a Europa, em direcção à objectivos desafiavam os critérios do América ou outros destinos. Para muitos, Reich e do regime de Pétain. Em Sanary-­ o trajecto passa pela Espanha (neutral, ‑sur-Mer, Nice e outros locais não muito mas politicamente próxima do Eixo distantes do porto de Marselha tinham-se italo-alemão) até que, em Lisboa, em concentrado artistas e intelectuais franligação com o Unitarian Service ceses, alemães, “apátridas” e oriundos da Committee, possam embarcar em navios Europa Central e de Leste, sonhando com ou aviões para países onde fiquem a o outro lado do Atlântico. O seu elenco, salvo (e que os aceitem, o que nem sempre acontece). O reconhecimento de passaportes, a emissão de vistos e a Em 1967, meses antes de morrer, obtenção de bilhetes recebeu a Legião de Honra não são sempre fáceis nem céleres, além dos por iniciativa de Stéphane Hessel; obstáculos que a ditaem 1995, postumamente, dura põe, sob critérios variáveis, à entrada de foi recordado no memorial de Yad gente que considere Vashem, sendo o primeiro cidadão indesejável. A cidade não é totalmente seguamericano a figurar entre os ra para os que conse“Righteous among the Nations”. guem lá chegar (em Setembro de 1941, Berthold Jacob é raptado em Lisboa pela Gestapo, com apoio plausível de agentes da PVDE; morrerá entre 1933 e 1940, parece um capítulo na Alemanha em 1944). Mas a capital da história cultural europeia; vemos, além portuguesa é, por mar e ar, a única saída dos já mencionados, nomes como Aldous – ou a “última fronteira” na parte oci- Huxley, Kantorowicz, a família Mann, dental da Europa. A cidade que a National René Schickele, Joseph Roth. Alguns morGeographic Magazine de Agosto de 1941 rem de doença ou acidente antes de qualdesignara como ‘Lisbon – Gateway to quer travessia geográfica. Thomas Mann Warring Europe’, é também o local de partira cedo para os EUA e por sorte seria saída, iluminado à noite ao contrário de dissuadido de voltar à Alemanha. Stefan cidades europeias que o risco de bom- Zweig, após estadias em Inglaterra e em bardeamentos obriga à escuridão, o que Nova Iorque, fixou-se no Brasil, onde se levará Arthur Koestler (refugiado que a suicidou em 1942. Muitos partiram em custo será acolhido em Londres após navios ou passaram a fronteira com a uma fuga também com escala entre nós) Espanha, em direcção a Lisboa. Nem a escrever, referindo-se a Portugal: “This todos conseguiram os papéis que lhes was Neutralia, the land without blackout”. permitiriam escapar ao inferno. Mas boa Foi no intervalo neutral entre 14-08-­ parte dos que sobreviveram deve-o a Fry ‑1940 e 6-09-1941, que do ponto de e ao seu grupo. O que é mais intrigante, vista actual parece breve mas para os ao avaliarmos hoje essa missão, não é protagonistas da época terá parecido apenas que se tenham salvo tantas vidas; interminável, que a acção de Fry na outros (poucos) o fizeram então. É que,

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O contributo de Varian Fry para a fuga desses membros da intelligentsia europeia e suas famílias é inestimável.

sabendo embora que cada vida é única e irrepetível, ela foi decisiva para salvar dos campos de concentração ou de extermínio muitos cujas biografias, que hoje podemos ler, ultrapassaram os anos fatídicos sem que o nome do seu principal salvador fosse conhecido e celebrado. O contributo de Varian Fry para a fuga desses membros da intelligentsia europeia e suas famílias (nem todos judeus e nem todos célebres, mas alvos predilectos do nazismo) é inestimável. Sofreu por não ter conseguido ajudar muitos outros. Mas a lista assumida como prioritária foi largamente ultrapassada pelo número dos que protegeu e salvou. A missão em Marselha (abruptamente terminada, por pressões políticas) e, regressado ao seu país, as críticas que faria à política de imigração não o ajudaram na fase “maccarthysta” dos anos 50. Coube-lhe experimentar uma peculiar condição de refugiado. Em 1967, meses antes de morrer, recebeu a Legião de Honra por iniciativa de Stéphane Hessel; em 1995, postumamente, foi recordado no memorial de Yad Vashem, sendo o primeiro cidadão americano a figurar entre os “Righteous among the Nations”. * Jornalista freelancer

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A Biblioteca do Congresso No centenário do nascimento de Raul Rego, (1913-2013) homem de letras, jornalista e resistente à ditadura, divulgamos esta sua crónica, sobre a Biblioteca do Congresso em Washington DC, publicada inicialmente no Jornal do Comércio. POR RAUL REGO

livro raro à venda, lá estão os agentes desses imensos armazéns de sabedoria concentrada a verificar o estado da raridade e a fazerem a sua oferta. “Não se encontra na Biblioteca do Congresso” é o atestado de raridade que os bibliófilos passam aos volumes que mais estimam e mostram às visitas do seu pequeno mundo. Visitando

o Capitólio e saindo pelas traseiras, a Biblioteca do Congresso fica-nos à direita, a cem metros, mas não a vemos imediatamente. Está num tufo de arvoredo, como todos os edifícios anexos ao Congresso e ao Supremo Tribunal. De arquitectura nada simples e de não muito bom gosto. Parece ter sido escolhido por novo-rico na intenRUI OCHOA

Nunca se fala de livros que a Biblioteca do Congresso não acuda ao pensamento. Os Anglo-Saxões concentraram os dois maiores centros de livros do Mundo – o British Museum e a Biblioteca do Congresso. Com toda a fama de materialismo que os cerca, não descuram as coisas do espírito. Onde quer que apareça

Chama-se Biblioteca do Congresso e como tal começou, tendo sido criada para serviço dos legisladores americanos em 1800.

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“Não se encontra na Biblioteca do Congresso” é o atestado de raridade que os bibliófilos passam aos volumes que mais estimam e mostram às visitas do seu pequeno mundo.

ção de causar espanto ao vizinho; com as suas colunas atarracadas e varandas acanhadas, era um arquitecto de alma pequena quem o concebeu. A Renascença Francesa não deu aqui o seu melhor. Dá-nos, de fora, a impressão de ser um edifício sem luz, a despeito das janelas abertas na frontaria. Frontaria cheia de acanhamentos, nem sequer as duas escadarias que dão acesso à entrada principal lhe dão nobreza e à-vontade. Entramos, e é uma floresta de colunas e colunelos, arcos e arcarias, onde se não distingue o dedo de gigante que lhes imprima unidade e harmonia. O salão e escadaria de entrada não desdizem da frontaria. Só os medalhões e mosaicos lhes dão vida e uma certa beleza. A todos os cantos se nos deparam mostruários com documentos e volumes diversos, reclamos a exposições da Biblioteca. Os lanços da escadaria nobre sobem, pesadões até ao primeiro andar, em toda a volta corre uma balaustrada e uma colunata rica, mas pouco elegante. Os mármores e aplicações de bronze multiplicam-se, bem como os dourados, mas o espectador permanece frio, indiferente. Nada toca a nossa sensibilidade. Faltou, como em toda a construção, a chispa que ilumina e incendeia o espírito. Enquanto esperamos, por termos chegado antes da hora que nos havia sido marcada, Paralelo n.o 8

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continuamos a ver as mesas-mostruários. Representam por si sós um atractivo e a melhor das propagandas do livro e a sua conservação. Não há luxos nem apresentações. A falta de luxo é, aliás, uma das características que observamos em toda a vida americana; procura-se é o útil, o confortável, o cómodo, o prático. Um elevador leva-nos à secção hispânica, onde espera por nós o Dr. Francisco Aguilera que nos acompanhará nesta rápida visita à Biblioteca do Congresso. Em sua companhia enfronhámo-nos nos corredores enormes e bem esclarecidos do edifício, percorremos estantes de literatura e história portuguesas e espanholas; estendemos a mão aqui e sai-nos a primeira edição do De Rebus Emmnuelis Gestis de D. Jerónimo Osório. Mesmo ao lado, a mesma obra em formato menor. É uma edição de Colónia, de 1574, de que por acaso conhecêramos um exemplar e que nunca vimos mencionada em bibliografias, nem dela faz menção Aubrey Bell na biografia do Bispo de Silves. Como se sabe, a primeira in folio e impressa em Lisboa em 1571. Aqui e além, entre os livros, vemos tacos de madeira com a “lombada” escrita. Ocupam o lugar de obras que se encontram nos reservados. Onde quer que estendamos a mão, arrancamos preciosidades que fariam o orgulho de bibliotecas. Perguntamos pela traça, essa visita incó-

moda de todas as livrarias e bibliotecas. Não há traça aqui. Todo o livro que entra é cuidadosamente desinfectado, antes de ir ocupar o lugar que lhe compete na fila dos seus pares. Não há traça, mas todas as medidas se tomam como se houvesse e fosse preciso evitar a sua propagação. As estantes são feitas de barriguinhas de aço. São como grelhas sobrepostas umas às outras. No solo, a ligação da estante ao sobrado também é constituída por uma grelha das mesmas barrinhas de aço, de forma que os terríveis bicharocos não têm campo para passear livremente e se alimentarem à tripa-forra. Não têm a liberdade de outras bibliotecas. Passamos por uma sala onde o vermelho domina, nos tapetes e nas decorações. Ao centro um busto do presidente Wilson. É a sua biblioteca legada, bem como todos os seus papéis, à Biblioteca do Congresso. É a de um historiador, de um político e de um jurista. Quase todos os presidentes têm seguido esta norma de legar os papéis oficiais à Biblioteca do Congresso. Esses legados, como se calcula, revestem-se de importância extraordinária para a História dos Estados Unidos e para aqueles que a queiram escrever. Mais adiante entramos na secção de livros jurídicos, a maior do mundo. Legislação e jurisprudência, não só dos Estados Unidos mas de todos os países, encontram-se aqui na sua máxima força. Não esqueçamos o nome da casa. Chama-se Biblioteca do Congresso e como tal começou, tendo sido criada para serviço dos legisladores americanos em 1800. Serve hoje de Biblioteca Nacional, mas permanece fiel ao espírito da fundação muito alargado, embora. Quando a capital se transferiu de Filadélfia para Washington previa-se na Lei uma verba para a compra de livros úteis ao Congresso

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“Em dada altura passamos por uma porta estreita e estamos numa varanda interior que dá para a sala principal de leitura. Enorme pátio circular com a luz vinda a jorros de todos os lados, amaciada e discreta, reina ali um silêncio completo.” Raúl Rego descrevendo a sua visita à Biblioteca do Congresso.

e o arranjo do espaço para os guardar. Foi o início da Biblioteca em 1800. Dois anos depois, o Presidente Jefferson nomeava o primeiro bibliotecário, John Beckley. Os livros encontravam-se instalados em algumas salas para o efeito adaptadas, no edifício do Capitólio. Ardeu em 1814, quando o Capitólio foi incendiado pelos britânicos. Logo em 1815 era comprada a biblioteca de Thomas Jefferson que viria a servir de núcleo para as novas colecções. Novo incêndio, em 1851, viria a destruí-la parcialmente. Desde 1870 que nela entram todos os livros, mapas, músicas e outros impressos em território dos Estados Unidos. A expansão foi rápida desde esse depósito legal obrigatório. De tal forma que as salas no edifício do Capitólio se tornaram acanhadas. Em 1886, o Congresso previa, em lei especial, a construção de um edifício próprio e não distante onde ficassem instaladas convenientemente as suas colec-

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ções. Em 1897 era inaugurado o edifício actual. De notar é que no edifício do Capitólio se encontram também alguns aposentos com as colecções de legislação mais manuseadas pelos “pais da pátria”. Vimo-las de passagem na visita obrigatória ao Senado e à Câmara dos Representantes. Ao fim de trinta anos de utilização, com os livros a entrarem cada vez mais numerosos, o edifício tornou-se pequeno. Foi preciso construir outro, o chamado Anexo, que se encontra por detrás do principal. Arquitectura moderna, sem nada de característico, mas com uma certa elegância, na sua brancura de paredes. Liga os dois edifícios um túnel e um sistema de pneumáticos traz e leva os livros e manuscritos entre os dois edifícios. Os dois dispõem de uma superfície de soalhos que anda pelos 15 hectares e as prateleiras em fila perfariam 390 quilómetros. Uma distância como de Lisboa a Braga, por estrada!

Além das colecções de Direito, as mais notáveis de todas, muitas outras se destacam, como as colecções de aeronáutica e de música. A colecção de livros chineses, tida como a mais completa fora da China, e a de livros russos, também a maior fora da União Soviética. A colecção de manuscritos tem-se enriquecido de contínuo com as reproduções de manuscritos dos arquivos europeus, que um donativo de John Rockefeller Jr. tornou possível. A secção de livros raros, os nossos chamados reservados, conta nada menos de 200.000 volumes. São os que nas estantes encontrávamos representados por um bocado de madeira e um título na “lombada”. Neste número contam-se primeiras edições preciosas, encadernações raras, cerca de 25.000 folhetos dos primeiros tempos da vida cívica americana, mais de 1.600 volumes de jornais americanos do século XVIII, e muito perto Paralelo n.o 8

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de 8.000 incunábulos. Continuam a citar-nos alguns números referentes à maior livraria do Mundo: tem presentemente 9.500.000 volumes e folhetos, à roda de 13.000.000 de manuscritos, mais de 2.100.000 mapas, cerca de dois milhões de peças e volumes de música, uns 2.225.000 negativos fotográficos, chapas e fotografias. Acrescentando a tudo isto os discos gravados, microfilmes, filmes e outros materiais, o total de espécies contidas nestes dois blocos ascende aos 31 milhões! O nosso amável guia, cuja erudição bibliográfica lhe permite viver neste mar de tinta e papel, como peixe na água, vai-nos levando por corredores e galerias, falando da organização dos serviços da Biblioteca até as obras em que se empregam os 2.200 funcionários que nela trabalham. O intercâmbio com outras instituições culturais de todo o mundo é intenso e a catalogação não se limita às obras aqui existentes. É a Biblioteca do Congresso que está encarregada do Catálogo Nacional da União, contendo já mais de 12 milhões de fichas para os livros de consulta mais importantes existentes em livrarias americanas e canadianas. Há, como de resto em outras livrarias similares, a publicação de catálogos e guias bibliográficos, bem como de textos manuscritos e livros raros que se encontram na Biblioteca. Há ainda a publicação de livros em alfabeto Braille ou de “livros falados”, em discos para cegos. À parte estas actividades bibliográficas, há as do ensino; presentemente existem seis cadeiras: Música, Belas-Artes, História americana, Aeronáutica, Geografia e Poética inglesa. Os serviços administrativos e culturais, toda a actividade deste formigueiro tão bem organizado e tão atarefado que se Paralelo n.o 8

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Passamos por uma sala onde o vermelho domina, nos tapetes e nas decorações. Ao centro um busto do presidente Wilson. É a sua biblioteca legada, bem como todos os seus papéis, à Biblioteca do Congresso. É a de um historiador, de um político e de um jurista.

passa pelos corredores sem vermos vivalma, está sob a direcção do bibliotecário do Congresso. À entrada, numa lápida, encontram-se nomes de todas as personalidades que têm ocupado o cargo desde John Beckley até C. Evans, que o deixara dias antes da nossa visita. Tem dois adjuntos e directamente dependentes destes uma data de secções e subsecções, meramente administrativas umas, inteiramente culturais ou só jurídicas outras. Umas dezenas de colmeias onde o livro é analisado ou tratado sob os aspectos mais diferentes, desde o «copyright» até o seu custo ou qualidade do papel empregado nele. Em dada altura passamos por uma porta estreita e estamos numa varanda interior que dá para a sala principal de leitura. Enorme pátio circular com a luz vinda a jorros de todos os lados, amaciada e discreta, reina ali um silêncio completo. E leitores e funcionários movem-se em baixo, de contínuo. Actividade constante e intensa sem perturbar ninguém. Como se todos andassem com pezinhos de lã, ou estivessem num templo. E o recinto enorme não deixou de nos dar à primeira vista ideia de uma mesquita. Depois pareceu-nos um grande estabelecimento bancário com os funcionários atrás das

carteiras, os móveis enormes dos ficheiros e os leitores que vêm e vão, continuamente, a procurar os livros ou a trazê-los. O móvel central, os ficheiros e as carteiras de leitura têm todas a disposição circular. O conjunto é grandioso e as decorações do tecto e das colunas, muito vivas e exuberantes, contribuem para essa grandiosidade, embora sem a menor sobriedade. Esta não a encontrámos em parte alguma do edifício. Além dessa sala de leitura, há outras nas diversas secções. Há ainda os gabinetes particulares destinados aos investigadores, vindos para estudar determinado assunto e precisando para tal de determinadas condições. Esses gabinetes, não são uma dúzia ou duas. Há nada menos de 172, onde o investigador está como no seu escritório. À margem das actividades bibliográficas, outras muito importantes se desenrolam. De salientar as actividades musicais. Salão de música, Museu e objectos expostos, e toda a actividade musical são obra de Mecenas. Deparamos com eles por toda a parte nesta América de tão grande fama de materialismo. Foram oferecidas pelas senhoras Whitall e Coolidge, por conta das quais correm ainda todas as despesas de concertos e museu.

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Intelectuais públicos: uma conferência inédita em Portugal A FLAD foi a anfitriã da conferência “European Conference on Public Intellectuals”, organizada por Lawrence Friedman, da Universidade de Harvard, e Pilar Damião de Medeiros, do Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores, nos dias 25 e 26 de Outubro de 2013. Pela primeira vez, o encontro realizado em Harvard anualmente desde 2009, teve uma extensão na capital portuguesa, reunindo vários académicos e especialistas de países diversos, como Estados Unidos, França, Inglaterra, Espanha, Holanda e Portugal, em torno do papel do intelectual público na vida social e política, com participações de nomes de destaque como Dolan Cummings, Alain-Marc Rieu, Jim Clark, Kristine Harper ou Helen Fordham, entre outros. POR CLARA PINTO CALDEIRA* FOTOGRAFIAS DE RUI OCHOA

Os organizadores: Pilar Damião de Medeiros, do Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores, e Lawrence Friedman, da Universidade de Harvard.

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A conferência, na tradição de Harvard, realizou-se à porta fechada à excepção de duas sessões abertas ao público: no primeiro dia, “Intellectuals and Universities: A Glass Half-Full” por Dorothy Ross, da Universidade Americana Johns Hopkins, e no segundo, duas apresentações sobre a relação entre intelectuais públicos e exílio: “Intellectuals and Exile” por José Pacheco Pereira, do Instituto Universitário de Lisboa, e “Public Intellectuals, exile, post-exile and gender”, por Maria Carrilho, do ISCTE. A organizadora portuguesa, Pilar Damião de Medeiros, fala sobre a iniciativa e a relevância do tema. [Paralelo] Esta iniciativa constitui uma extensão do encontro anual sobre o tema promovido pela Universidade de Harvard. Como surgiu o encontro em Lisboa? [Pilar Damião de Medeiros] Em 2012, tive oportunidade de participar, pela primeira vez, na Conference on Public Intellectuals em Harvard, onde fui acolhida com grande simpatia pelo Professor Lawrence Friedman e pelo seu grupo restrito de académicos e amigos que, desde 2009, tem vindo a problematizar, sob diversos olhares disciplinares, o papel do intelectual público. No final do encontro, no qual participam no máximo 25 conferencistas, o Professor Lawrence Friedman propôs-me Paralelo n.o 8

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organizar uma conferênDifundiu-se o conceito de intelectual cia na Europa, nomeadapara caracterizar os homens mente em Lisboa, nos mesmos moldes. E assim de letras e ciências que intervêm foi. Após a partilha de na arte e na vida pública, ou ideias e de troca de dezenas de e-mails, apresentámelhor, aqueles com capacidade mos a nossa proposta à de influenciar e mobilizar a opinião FLAD, a qual, na pessoa do Professor Mário pública e a política. Mesquita, aceitou ser o sponsor do evento. É importante salientar que, para esta conferência, foram convidados 23 investigadores de [PDM] Obviamente que a ancoragem hisreconhecido mérito nesta área de estudo tórica situa-se no Affaire Dreyfus (finais que representaram instituições académicas século XIX), no qual um oficial judeu foi de prestígio: Universidade de Harvard, condenado, através de um processo frauUniversidade dos Açores, Universidade dulento e injusto. Como acto de revolta, de Lisboa, Universidade de Oxford, personalidades de profissões, ofícios e Universidade de Johns Hopkins, quadrantes ideológicos diversos envolveUniversidade Nova de Lisboa, Universidade ram-se no debate público. A figura que de Tilburg, Universidade de Cambridge, mais se destacou foi Émile Zola que, atraUniversidade do Porto, Universidade vés de uma carta aberta intitulada “J’ de Rochester, Universidade de Lyon, accuse!” no jornal L’ Aurore (dirigido na Universidade de Cincinnati, Universidade altura por George Clemenceau), repreda Florida, Universidade de Notre Dame sentou um maior efeito na opinião públiAustralia, London Insitute of Ideas, ca em geral e no caso em concreto. Universidade de Évora, Universidade de A partir deste affaire immortelle, como definiu Marcel Proust, difundiu-se o conceiNorth Carolina e Universidade Drew. to de intelectual para caracterizar os [P] O conceito de “Public Intellectual”, aqui homens de letras e ciências que intervêm abordado, tem uma ancoragem histórica e teóri- na arte e na vida pública, ou melhor, aqueles com capacidade de influenciar e ca? Qual?

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[..] é importante que o espaço onde é produzido o discurso sobre o mundo social continue a funcionar como um campo de luta onde o pólo dominante não esmague o pólo dominado, a ortodoxia não esmague a heresia. Porque neste domínio, enquanto houver luta, P. Bourdieu (1983) haverá história, isto é, esperança”.

Carta aberta intitulada “J’ accuse!”, de Émile Zola, no jornal L’ Aurore (dirigido na altura por George Clemenceau).

mobilizar a opinião pública e a política. Entretanto, a discussão sobre o papel, e mesmo a importância, do “intelectual” no mundo contemporâneo faz parte de uma reflexão empreendida por vários teóricos da modernidade tardia. A já vasta bibliografia, ver por exemplo: A. Gramsci, J. Benda, C. Wright Mills, E. Shills, P. Bourdieu, Z. Bauman, U. Eco, E. Said, M. Winock, N. Chomsky, P. Johnson, A. Gouldner, B. Misztal, S. Collini, entre outros, sobre as representações – positivas, mas também negativas – do intelectual, ilustra a multiplicidade de posições, também elas díspares, sobre a relevância do intelectual nos séculos XX e XXI. [P] Qual é a relevância desta temática na actualidade? [PDM] Face à consolidação da crise global, ao crescente poder da aristocracia financeira, que tende a dominar todas as esferas do “mundo da vida”, ao actual panorama de aguda injustiça social, aliada à fragilidade política que, neste momento, se encontra simultaneamente sobrecarregada de problemas e demasiadamente vazia de pensamento, acredito que os intelectuais voltaram a ter um papel de relevo no espaço público. É, todavia, óbvio que, no interregno entre os Novos Movimentos Sociais e os Novos Movimentos Globais, a figura do intelectual sofreu várias interpretações e

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críticas. Ora, com a morte de Jean Paule Sartre, o “intelectual total” que, através da imaginação democrática, de um vasto repertório de ideias, avaliações, capacidades e lógicas, divulgava e defendia os valores universais, esvai-se aquando da substituição das metanarrativas pelas micro-ideologias, pelos discursos fragmentários, descontínuos e dispersos (Lyotard, 1979) que brotavam na esfera(s) pública(s) ao longo dos anos 60 e 70. O fim das grandes ideologias contribuiu, por um lado, para o fim do intelectual legislador e, por outro, para a ascensão do intelectual especialista (Michael Foucault), que, de igual modo, a partir dos finais dos anos 90 volta a ser posta em causa devido à proximidade entre intelectuais e movimentos sociais de ordem global. No entanto, e face ao actual debate em torno do lugar, ou não, do intelectual público no século XXI, entendo que estes, nomeadamente os Europeus, independentemente das suas estratégias de intervenção, têm vindo a reconhecer que uma posição crítica e livre de constrangimentos sistémicos tornou-se indispensável num período onde o fundamentalismo do mercado, o perigo dos emergentes “apartheids culturais” e a produção do medo, que gradualmente se vem instalando numa Europa de valores moribundos, assombra as liberdades das sociedades Europeias. Stephan Hessel, Jürgen Habermas, Ulrich Beck, Daniel CohnBendit, Fernando Savater, António Lobo Antunes, Mário Soares, Bernard­‑Henri Lévy, Vassilis Alexakis, Juan Luis Cebrián, Umberto Eco, Eduardo Lourenço, entre muitos outros, são alguns dos intelectuais que, a partir da validade e legitimidade do seu discurso, têm tido a capacidade de pôr em causa as verdades absolutas do poder político-financeiro, através de um discurso contra-hegemónico, e têm conseguido projectar as vozes das minorias na agenda pública, mediática e política. Em suma, acredito que a

posição de P. Bourdieu (1983, p. 70) em relação à questão “Os Intelectuais estão fora do jogo?”, que passo a citar: “[..] é importante que o espaço onde é produzido o discurso sobre o mundo social continue a funcionar como um campo de luta onde o pólo dominante não esmague o pólo dominado, a ortodoxia não esmague a heresia. Porque neste domínio, enquanto houver luta, haverá história, isto é, esperança” – volta a fazer sentido na acção dos intelectuais públicos da Europa paradoxal do século XXI. [P] O conjunto das conferências aborda uma diversidade de questões, desde a questão do neo­ ‑liberalismo, a democracia actual, casos concretos de intelectuais públicos. Que eixos temáticos gostaria de destacar ou especificar na organização global desta iniciativa? [PDM] Bem, esta conferência teve como intuito principal discutir as diferentes formas de intervenção pública dos intelectuais, independentemente dos seus contextos históricos, sociais e culturais. Como bem referiu, foram convidados investigadores de áreas disciplinares bem diferenciadas. A amplitude das discussões foi grande e muito fértil. Tivemos desde um teórico físico, que abordou a luta de Einstein pela unificação entre ciência e civilização, a uma socióloga que questionou se os cientistas poderão ser ainda considerados intelectuais; desde um cientista político, que discutiu sobre o papel dos intelectuais públicos espanhóis face à crise económica, a um historiador que desafiou a audiência a pensar sobre a relação entre intelectuais públicos, política pública e filantropia na História norte-americana; desde um psicanalista que, a partir dos estudos do psiquiatra Robert Coles, fez uma abordagem sobre a vida política das crianças, a um sociólogo que analisa o engagement de dois músicos contemporâneos, Lopes-Graça e Luigi Nono. É, ainda, importante referir que, ao longo de todas estas discussões, o debate foi muitíssimo rico e levou os Paralelo n.o 8

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CULTURA

maior escassez de verdadeiras alternativas críticas; a mobilização dos intelectuais nos movimentos sociais; a perda ou não da legitimidade dos intelectuais públicos na esfera pública; os intelectuais e os desafios da Europa multicultural; e sobre

RUI OCHOA

conferencistas a reflectir sobre as mais variadas problemáticas, nomeadamente, sobre a crescente mercantilização do trabalho académico na academia; a excessiva especialização e o estreitamento das disciplinas, que tende a levar a uma

a relação entre cultura política e intervenção intelectual. [P] Foi abordada, face a Portugal, a questão dos intelectuais e do exílio. Que aspectos gostaria de destacar desta problemática? [PDM] Achamos pertinente ter uma mesa redonda sobre os “Intelectuais e o Exílio”, principalmente por esta conferência ser realizada em território português. Maria Carrilho e José Pacheco Pereira foram convidados a fazer uma exposição sobre o compromisso dos intelectuais durante as diferentes fases do exílio. Maria Carrilho destacou o seu percurso de exilada altamente politizada na Itália que, enquanto lutava por uma democracia emancipadora em Portugal, se envolvia em movimentos de carácter internacional. Com base na sua recente obra sobre os escritos políticos, As Armas de Papel (2013), José Pacheco Pereira ilustrou o cenário social, cultural e político do regime salazarista que, na tentativa de amordaçar as liberdades humanas, instigou o surgimento de espíritos de oposição, de indivíduos que reagiram contra um estado repressivo e claustrofóbico e que tiveram o ímpeto de lutar, mesmo durante a sua estada no exílio, por uma pátria democrática. A meu ver, os intelectuais portugueses do exílio são, na sua grande maioria, marcados por um espírito de luta constante, de militância política e de inconformismo face aos valores míopes de um regime ditatorial. Como verdadeiros impulsionadores da democracia pluralista em Portugal, muitos destes intelectuais assumiram um espírito de oposição e não de acomodação, e, recorrendo à terminologia de E. Said, provocaram “abalos sísmicos” no sistema, sacudiram um regime bafiento e refrescaram-no com uma ética cosmopolita, fruto dos tempos de exílio. Incorporaram, de facto, o papel de verdadeiros “democracy helpers” (B. Misztal, 2007). Enfim, é este o perfil de intelectual que me parece que, no Portugal do século XXI, tenderá a ressurgir: um intelectual público que produza juízos críticos, instigue o debate público, participe activamente em movimentos que têm como finalidade a liberdade, a igualdade e a solidariedade e, acima de tudo, denuncie as arrogâncias de um regime democrático despojado de valores democráticos. * Jornalista freelancer

Esta conferência teve como intuito principal discutir as diferentes formas de intervenção pública dos intelectuais, independentemente dos seus contextos históricos, sociais e culturais. Paralelo n.o 8

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CULTURA

Habitar(s) POR JOÃO SILVÉRIO*

João Onofre, Rui Toscano e Francisco Tropa. A ideia de habitar como forma de ocupação espacial e temporal, que o seu título enuncia, propõem-nos uma pluralidade de dimensões plásticas, poéticas e conceptuais. A relação entre o corpo e o espaço habitado, quer como um arquétipo, quer como um desejo, uma realidade ou uma utopia apresentam-se em linguagens e técnicas diferenciadas entre o projecto conceptual, a maqueta, a pintura, o desenho, a obra fotográfica, a escultura, a performance, o vídeo e a edição de um livro de fotografia de autor, intitulado ist, 1994.

A exposição conta ainda com a edição de um catálogo com prefácio dos curadores, Suzanne Cotter, directora do Museu de Serralves; Isabel Sousa Braga, curadora do Museu e de João Silvério, curador da colecção da FLAD, bem como com uma série de textos sobre cada um dos artistas, da autoria de Pedro Faro. * Curador Exposição Habitar(s), Galeria da Biblioteca Ameida Garrett, Porto. 30 de Novembro 2013 a 23 de Fevereiro 2014. FOTO: FILIPE BRAGA © FUNDAÇÃO DE SERRALVES

A exposição que reúne obras das colecções de arte contemporânea da Fundação Luso­ ‑Americana para o Desenvolvimento (FLAD), e da Fundação de Serralves no espaço da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, no Porto, HABITAR(S), vem na continuidade do protocolo de depósito da colecção da FLAD na Fundação de Serralves assinado em 1999. A exposição é composta por obras dos artistas Augusto Alves da Silva, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Alberto Carneiro, Mauro Cerqueira, José Pedro Croft, Alicia Framis, Eberhard Havekost, Cristina Iglesias,

Em primeiro plano uma escultura de José Pedro Croft (Sem título, 1997, Col. Serralves). Na parede lateral uma vista parcial da obra fotográfica de Augusto Alves da Silva composta por 50 fotografias de diferentes formatos (ist, 1994, Col. FLAD). Na parede do fundo, um desenho de Pedro Capalez (Sem título 1985, Col. FLAD) e um vídeo de Rui Toscano (São Paulo 24/Set/01, 2001, Col. FLAD).

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FOTO: FILIPE BRAGA © FUNDAÇÃO DE SERRALVES

CULTURA

FOTO: FILIPE BRAGA © FUNDAÇÃO DE SERRALVES

Em segundo plano, na parede lateral, vista parcial da obra fotográfica de Augusto Alves da Silva (ist, 1994, Col. FLAD). Em primeiro plano, a obra de João Onofre que integra a realização de uma performance (Box Sized Die featuring Holocausto Canibal, 2007-14, Col. Serralves). Do lado direito uma vista da escultura de Pedro Cabrita Reis (Inferno, 1989, Col. FLAD).

Vista superior da exposição. Em primeiro plano uma obra da artista espanhola Cristina Iglesias (Sem título (Passage 1), 2002, Col. Serralves). Na parede do fundo uma escultura de José Pedro Croft e uma pintura de Eberhard Havekost. Junto à fachada uma vitrina com projectos de Alberto Carneiro.

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CULTURA

Vista da parede de fundo da sala da exposição. Do lado esquerdo da parede a escultura de José Pedro Croft (Sem título, 1993, Col. FLAD) e do lado direito a pintura de Eberhard Havekost (Superstar, 2005, Col. Serralves).

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LIVROS

Um Observador Observado

tradução e comentário de um texto de Silas Weston. Ensaios de Carlos Riley, Ricardo Madruga da Costa e Leonor Sampaio da Silva. Núcleo Cultural da Horta (NCH) com o apoio da Fundação Luso-Americana, 2013

Um viajante e três observadores POR MARINA ALMEIDA*

Há uma imagem que envolve a capa de Um Observador Observado e retém o leitor. A montanha do Pico quase naif, quase tosca, mas – sabemo-lo – imponente e rija. E, no virar da contracapa, aqueles que parecem pequenos barquinhos pairando sobre o Canal. Foi num como estes, de nome Perseverance, que em 1855 chegou Silas Weston às chamadas ilhas ocidentais, os nossos Açores. Desafia-nos o folhear deste livro a saber mais sobre a imagem. Uma reprodução do magnificente Panorama de Russell & Purrington – um pano de 400 metros de comprimento por 2,5 de altura – que está agora no New Bedford Whaling Museum, nos EUA. A tela foi desenhada por Benjamin Russell, baleeiro, e pintada, já em terra firme, a meias com Caleb Purrington. Uma obra de arte para desenrolar publicamente, feita cinema, para ver devagar. Retenhamo­ ‑nos, pois, nesta toada. Era assim que se chegava aos Açores, torrões de lava que saíram das profundezas da terra trespassando o mar. SilasWeston demorou-se uns “dezassete longos dias” a bordo do Perseverance antes de vislumbrar as Flores e o Corvo. Já o americano suspirava por terra e, acima de tudo, por água – tal como os que o acompanhavam nesta viagem com escala de onze dias nos Açores e destino a Cabo Verde. “Isto vai ser um luxo”, exclamou alguém no início do relato de Weston à chegada às ilhas. Estava Paralelo n.o 8

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o grupo “fartíssimo” das agruras do oceano que Uma escrita limpa que nos traz as impressões acabava mais devagar do muito vivas de um viajante que chega que os livros que com no século XIX aos Açores. eles embarcaram e do que a sobrante indolênvapor do vulcão que saía das rochas sob cia flutuante. É Silas Weston quem dá a voz àquele os seus pés. Foi Carlos Guilherme Riley quem achou punhado de gente que se vê no porto da “Villa da Horta”, nos procedimentos sani- este texto de Silas Weston, agora publitários necessários para não disseminar cado neste Um Observador Observado. Este é pragas estrangeiras. Já prontos para pôr os um livro com muitos livros dentro, que pés em terra firme, chegam a bordo “três o Núcleo Cultural da Horta acaba de edinativos” com fruta e “chapéus de palha tar com o apoio da FLAD. Uma edição de grosseiros” que os viajantes não tardaram enorme riqueza. O relato de Weston – a regatear. A fruta, que “chegou na altura que corre, paralelo em português e em certa e era deliciosa”, vitaminou-os para inglês, sem descuidar a reprodução da capa original –, a história de Weston pelo os dias seguintes. Silas Weston escreveu, no regresso a casa, seu descobridor, o minucioso Carlos “Visita a um Vulcão ou o que eu observei Riley, as contingências da tradução e da nas Ilhas Ocidentais”. Uma escrita limpa escrita da época, pela adoradora de palaque nos traz as impressões muito vivas de vras Leonor Sampaio da Silva, e a vida um viajante que chega no século XIX aos insular à época, respirada por Ricardo Açores. Com o normal choque de culturas, Madruga da Costa. Não falta aqui nada. por vezes alguma sobranceria e o deslum- A não ser parar o nosso tempo para, devabre absoluto em dois momentos: a descida gar, desenrolar este livro. à caldeira do Faial e a subida à montanha do Pico, onde, acima das nuvens, sentiu o *Jornalista do DN

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LIVROS

O Mar na História, na Estratégia e na Ciência MESQUITA, Mário & VICENTE, Paula (Coordenadores) Lisboa, Ed. Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento Tinta-da-China, Junho de 2013

Mar português POR PEDRO BORGES GRAÇA*

A Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento tem vindo a apoiar e promover de modo intensivo, há já alguns anos, um trabalho de reflexão estratégica e investigação científica sobre o oceano atlântico que merece ser devidamente notado, em particular por todos aqueles que em Portugal se interessam pelos assuntos do mar, tanto académicos como decisores e empreendedores. O último output é precisamente o livro de que nos ocupamos aqui, apresentado em sessão pública pouco antes das férias do Verão deste ano de 2013, numa edição cuidada e esteticamente conseguida, sem dúvida pela experiência e bom gosto dos coordenadores e da editora Tinta-da-China que nos tem habituado a livros tão bonitos quanto literária e cientificamente cativantes. Este resulta da realização do III Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt, na Ilha do Faial nos Açores, de 27 a 29 de Abril de 2012, porventura aquele que, desde 2008, quando foi lançada a iniciativa bienal do evento, menos atenção dirigiu especificamente às relações transatlânticas entre Portugal e os Estados Unidos, concentrando­‑se precisamente nas questões essenciais da História, Estratégia e Ciência que fundamentam essas mesmas relações. Comparando com os anos anteriores, sem descurar portanto o contexto da cooperação transatlântica, esta obra

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denota ter ocorrido um salto qualitativo na abordagem científica do mar português e das potencialidades acrescidas que este abriga, inclusivamente no cenário de vir a ser reconhecida pela Comissão de Limites das Nações Unidas a proposta portuguesa de extensão da plataforma continental. O Mar na História, na Estratégia e na Ciência revela uma abordagem multifacetada, multidisciplinar, que suscita o alcance de um patamar transdisciplinar sobre a dimensão indissociavelmente atlântica do

mar português e dos seus recursos enquanto factores indutivos de crescimento económico e desenvolvimento nacional neste momento de crise prolongada. Os seus cerca de quarenta autores traduzem uma “massa crítica” incontornável no estudo dos assuntos do mar em Portugal, e à FLAD se fica a dever esta abordagem de largo espectro, onde poderemos por exemplo encontrar a visão estratégica sobre os Açores de um major­‑engenheiro português do primeiro quartel do século XIX, relembrado por Ricardo Madruga Paralelo n.o 8

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LIVROS

[...] O Mar na História, na Estratégia e na Ciência revela uma abordagem multifacetada, multidisciplinar, que suscita o alcance de um patamar transdisciplinar sobre a dimensão indissociavelmente atlântica do mar português e dos seus recursos enquanto factores indutivos de crescimento económico e desenvolvimento nacional neste momento de crise prolongada.

da Costa, ao lado do futuro sustentável dos oceanos no século XXI reflectido por Tiago Pitta e Cunha, ou do sonho tornado realidade de circum­‑navegação solitária, de Genuíno Madruga, natural da Ilha do Pico e vivo representante da mais velha e melhor tradição do carácter marítimo português, tão naturalmente presente nos Açores. Reflectir sobre o mar português a partir dos Açores, nesta abordagem de largo espectro, induz no leitor uma percepção geopolítica deveras interessante, realçando a inclinação para oeste da emigração e das relações transatlânticas em equilíbrio com a inserção política a leste enquanto fronteira extrema de Portugal e também da União Europeia. Com efeito, se tomarmos em consideração o cenário de desenvolvimento dos Estudos do Atlântico em direcção a outros temas que não somente os tradicionais da História da Escravatura e da Literatura, como é comum na maioria das universidades anglófonas, francófonas e lusófonas, é possível afirmar que a condição atlântica açoriana se apresenta como uma alavanca histórica percursora dos emergentes estudos estratégicos do atlântico na abordagem da intersecção da natureza e da sociedade, configurando academicamente como quase­‑paradigma “o mar como desafio para a unidade das ciências”, como observa Viriato Soromenho­ ‑Marques”. Na verdade, a dimensão do mar português, mesmo sem a extensão da plataforma continental, é colossal em comparação Paralelo n.o 8

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não só com o nosso território continental e insular mas também com os territórios marítimos de outros países muito maiores e economicamente potentes que Portugal. Esta situação confere­‑nos um elevado potencial de recursos ainda por inventariar e seguramente nos põe enquanto Nação velha de nove séculos perante o desafio de assumirmos plenamente o mar como conceito estratégico nacional. Isto significa necessidade de investimento, tecnologia e conhecimento e de parcerias estratégicas com quem possamos encontrar interesses mútuos para responder a esse desafio. Nesta visão os Estados Unidos estão precisamente na primeira linha do horizonte. Ricardo Serrão Santos lembra que “a Universidade dos Açores é a única universidade portuguesa que gere um navio de investigação” e Fernando Barriga diz­‑nos que “a era da mineração submarina está prestes a começar e apenas conhecemos cinco por cento dos fundos marinhos”. Somos pois levados a pensar que há muito a fazer, mas também que a Ciência avança hoje a um ritmo tal que, no futuro, nos poderá trazer a possibilidade de termos um aproveitamento económico do mar que projecte Portugal para fora da prolongada crise que sofremos. Com consciência histórica, visão estratégica e ciência, é esse ânimo que adquirimos ao lermos o presente livro que a FLAD em boa hora tornou realidade, como aconteceu com o sonho de Genuíno Madruga, marinheiro português do século XXI.

Para colocar os Açores no mapa dos deba‑ tes sobre estratégia e política internacio‑ nal foi fundado, em cooperação com o Governo Regional dos Açores, o Fórum Açoriano Franklin D. Roosevelt, com perio‑ dicidade bienal. A denominação visa homenagear a figu‑ ra de Franklin D. Roosevelt e o seu papel decisivo nas relações euro-atlânticas. O primeiro Fórum teve lugar em Ponta Delgada, em Julho de 2008, comemorando os 90 anos da escala de Roosevelt nos Açores (São Miguel e Faial), quando viajou rumo à Europa na qualidade de Secretário da Marinha do Governo do Presidente Wilson, em 1918. O tema principal do I Fórum foi “As Relações Transatlânticas na Opinião Pública Europeia e Americana”. A segunda edição decorreu na Terceira em Abril de 2010. O Fórum debateu ques‑ tões prementes na agenda transatlântica, a evolução histórica da relação Europa­ ‑EUA, e o papel geopolítico do Atlântico e dos Açores ao longo do último século. O III Fórum Franklin D. Roosevelt foi dedicado ao “Mar na Perspectiva da História, da Estratégia e da Ciência” e decorreu na Horta, em 2012.

* Professor do ISCSP­– UL Coordenador do projecto A Extensão da Plataforma Continental: Implicações Estratégicas para a Tomada de Decisão (FCT, CAPP­– ISCSP­– UL, Marinha, ESRI Portugal)

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LIVROS

Portugal, Jesuits and Japan – Spiritual Beliefs and Earthly Goods Victoria Weston 2013, McMullen Muse of Art, Boston College.

Nova pesquisa sobre a arte namban reunida em livro POR VANESSA RODRIGUES

Se o explorador Marco Polo, no célebre livro de viagens Cidades Invisíveis do italiano Italo Calvino, relatasse ao soberano mongol Kublai Kan, nessas tertúlias curiosas entre os dois, o que viu do comércio e trocas culturais entre os militares japoneses e os portugueses, os “nanban-jin” (“bárbaros do sul”), entre os séculos XVI e XVII, dir-lhe-ia que encontrara um mundo colorido, exótico e, talvez, em mudança. Um mundo habitado por paquidermes, de templos e palácios em ouro, de peripécias com jesuítas e piratas, de grande azáfama naval, mulheres a costurar com fios de seda e homens a fazer acrobacias nas velas dos barcos. Kublain Kan pedir-lhe-ia provas, de imediato, e o viajante, como competente antropólogo, mostraria-lhe-ia finas obras de arte, ilustrações que recriam a vida quotidiana desse povo, objectos ornamentais, equipamento militar, cerâmica, têxteis, móveis. Se fosse no mundo de hoje, Marco Polo estaria nada mais, nada menos do que a relatar o universo de Portugal, Jesuits and Japan - Spiritual Beliefs and Earthly Goods, a grande exposição que está no McMullen Museum of Art da Universidade de Boston até 2 de Junho e dar-lhe-ia um exemplar do livro

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com o mesmo nome editado por Victoria Weston. Trata-se de uma colecção inédita na História da Arte Nanban, que reúne 70 obras raras, a partir de colecções privadas e instituições de Portugal e dos Estados Unidos. Esta iniciativa, preparada durante cerca de 4 anos, só foi possível graças a uma nova pesquisa, reunindo diferentes académicos e instituições museológicas e diplomáticas. Além disso, Marco Polo poderia falar, ainda, da riqueza cartográfica criada pelos jesuítas, que traçaram e desenharam mapas europeus e japoneses, hoje raridades, e de artefactos e telas que contam uma história mais profunda do que a que está documentada nas cartas e textos contemporâneos. E esta é outra grande novidade que sobressai da análise dos ensaios dos oito autores, entre historiadores e historiadores da arte, deste novo livro sobre a arte nanban, que analisam os intercâmbios sócio-culturais, através do fluxo de mercadorias nos barcos portugueses. Em sentido restrito, esta nova abordagem explora as transformações políticas, culturais, artísticas, tecnológicas e linguísticas no Japão com a chegada dos portugueses por volta de 1543 e a evangelização cristã, iniciada por São Francisco Xavier, “O

Historiadores e instituições de Portugal e EUA aprofundam estudos inéditos sobre trocas comerciais e culturais portuguesas no Japão, entre os séculos XVI e XVII, e promovem livro e exposição, no McMullen Museum of Art.

Apóstolo do Oriente”, em 1549, até à expulsão dos portugueses em 1639. Conforme analisa neste livro a historiadora da arte Alexandra Curvelo, que trabalhou juntamente com Weston na criação da narrativa e do tema desta exposição, sugerida inicialmente pelo historiador da arte Pedro Moura Carvalho, a chegada dos portugueses foi um “prólogo”, “um novo paradigma” para a arte nanban, iniciada depois que embarcações portuguesas foram desviadas para o porto de Tanegashina, ilha a sul do Japão. Foi, pois, o início de um período de internacionalização que deu fôlego a uma nova era de exploração e troca de ideias que influenciaram ambas as culturas e que, ainda assim, continua a surpreender o mundo de hoje. Paralelo n.o 8

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LIVROS

Ponto Último e Outros Poemas

Título original: Endpoint and Other Poems Tradução de Ana Luísa Amaral Civilização Editora, 2009

Updike e o seu ponto final poético POR CLARA PINTO CALDEIRA

“Uma vida vertida nas palavras­‑desperdício aparente/ Tentando preservar a coisa consumida.” São versos do poema ‘O Autor Observa o Seu Aniversário’, incluído no livro Ponto Último e Outros Poemas, testemunho final de uma existência dedicada à escrita, sobretudo de romances, distinguindo­‑se também como contista, crítico e cronista. Mas John Updike, celebrizado pela Tetralogia do Coelho, que conta a vida de um desportista falhado, atravessando a história da América, e as Bruxas de Eastwick, adaptado ao cinema, começou precisamente por publicar um livro de poesia, em 1958 (The Carpentered Hen and Other Tame Creatures). Talvez não seja assim tão inusitado que as suas últimas palavras dadas à estampa sejam também poéticas. Abre­‑se Ponto Último com a sensação quase inevitável de quem lê um testamento, escrito entre 2002 e 2009, período de grande fragilidade clínica que culminaria com a sua morte. Um livro encomendado, confessa o autor, em jeito de dedicatória: “Para Martha, que me pediu mais um livro. Ei­‑lo, com todo o meu amor...” E é para ela, sua mulher, que escreve o último poema. Entre esta dedicatória e a última página, está uma vida, cuja narrativa (inevitável, mesmo no género poético) é atraParalelo n.o 8

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Updike, o escritor que quis ser animador da Walt Disney e que conviveu desde menino com as aspirações literárias da sua mãe

vessada de enorme tristeza, mas também aguçado sentido de humor, grande ironia e uma ainda vital capacidade de recordar e olhar tudo. Este não é apenas um livro sobre a proximidade da morte, a falência das capacidades, a nostalgia de um futuro que não existirá. É também um retorno aos locais da infância, ao fascínio adolescente por Doris Day, à admiração pelo golfista Payne Stewart ou a oportunidade de celebrar o basebol americano: “inventado na América, onde, sob/ o bom humor do jazz travesso, a oportunidade/ de falhar é um direito de todos,/ a come-

çar pelo basebol.” Também desse direito nos fala Updike, o escritor que quis ser animador da Walt Disney e que conviveu desde menino com as aspirações literárias da sua mãe: “Eu parti do seu fracasso”, escreve, no mesmo poema em que, referindo­‑se a si ou a ela, alerta: “Um escritor, mesmo parecendo ter um coração de pedra/ precisa de cuidados”. Não é de pedra o coração de Updike, que termina este livro assim: “Que a vida: um subterfúgio sujo/ E a morte é séria, longa e escura./ O choque: ela ir registar­‑se em lado algum, só onde for.”

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LIVROS

O Canto de Aquiles Madeline Miller 2012; Bertrand Editora; 344 págs.

O outro calcanhar de Aquiles POR FILIPA MELO*

Na história dos deuses e heróis da Grécia Antiga, Pátroclo não passa de uma nota de rodapé. Em vão o seu nome significava “honra do [seu] pai”, Menécio, rei e filho de reis. Franzino e desengraçado, o príncipe “não era rápido”, “não era forte” e “não sabia cantar”, mas, aos dez anos, num acidente, mata um miúdo que o aponta como cobarde. Rejeitado pelo pai, é então exilado para Ftia, onde o rei Peleu, pai de Aquiles, o adopta e o educa. Pátroclo virá a ser o melhor amigo do semideus Aquiles, que, para lhe vingar a morte no campo de combate troiano, matará Heitor, filho do rei de Tróia, consumando a profecia das Moiras e ditando o seu próprio fim. Pátroclo é o verdadeiro calcanhar de Aquiles, tal como o apresenta Madeline Miller num ambicioso romance de estreia, vencedor do Orange Prize (cujo fim foi anunciado logo após esta última atribuição) e best seller do New York Times em 2012. Numa escolha temática nada usual na literatura norte­‑americana, O Canto de Aquiles é uma reelaboração de um mito grego; o do mais forte e valoroso guerreiro de todos os tempos, “o melhor dos gregos”, filho da cruel ninfa Tétis, treinado pelo centauro Quíron e protagonista da Ilíada de Homero. Madeline Miller, formada em

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Estudos Clássicos na Universidade de Brown, professora de Latim e Grego Antigo, trabalhou esta fantasia histórica durante dez anos, convicta de que a relação entre Aquiles e Pátroclo merecia maior protagonismo. Assim, metade do romance desenvolve­‑se como relato da iniciação de Aquiles nas artes da guerra e no amor. Tétis luta com ferocidade contra a proximidade de Pátroclo, mas em vão. Como ex­‑pretendentes de Helena, Aquiles e Pátroclo estão obrigados por juramento a resgatá­‑la. Contudo, o que acaba por conduzi­‑los até Tróia é a ameaça feita por Ulisses de contar ao povo que surpreendera Aquiles vestido de mulher. Homero não o refere no seu poema épico, mas Ésquilo (na tragédia perdida Mirmidões) e Platão (em Simpósio) não hesitaram em destacar a relação amorosa e sexual entre os dois amigos e Alexandre, o Grande, e o seu companheiro Heféstion, de passagem por Tróia e perante todo o seu exército, terão colocado oferendas nas

campas dos dois amantes (segundo, por exemplo, o retórico romano Claúdio Eliano). O Canto de Aquiles, narrado por Pátroclo até mesmo depois de morto (graças à “semivida dos espíritos não sepultados”), é uma história de amor digna de um romance de cordel, mas salva da trivialidade pela grandiosidade dos cenários e personagens mitológicos. Quase no final, Escamandro, o deus do rio e protector do povo de Tróia, luta contra Aquiles e pergunta­‑lhe: “Ele vale a tua vida?” Ele, Pátroclo, valerá antes de mais a morte de Heitor, cujo cadáver Aquiles devolverá à família, no primeiro grande gesto de compaixão na história da humanidade. Madeline Miller, também compassiva, ainda terá tempo para levar Tétis a unir os dois amantes no mesmo túmulo e a gravar os dois nomes, Aquiles e Pátroclo, lado a lado na pedra e na memória. *Jornalista Paralelo n.o 8

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LIVROS

Ronald Reagan: 100 years Ed. Ronald Reagan Presidential Foundation Simi Valley, California, 2011.

O Grande Comunicador POR EDUARDO PEREIRA CORREIA E RAQUEL DUQUE

Num estilo característico da cultura norte­ ‑americana, de elogio da força de carácter e de liderança, este livro apresenta­‑nos a vida e o legado do homem que governou a nação durante quase uma década e que se tornou num dos presidentes mais amados da América. Prefaciada pelo antigo senador Howard H. Baker Jr., a obra está subdividida em cinco capítulos que apresentam as etapas do chefe de Estado ­– The Lifesaver; The Leading Man; The Governor; The President; The Legend. Com cerca de 250 páginas, este livro oferece um valioso acervo de imagens da sua vida pessoal e política, muitas delas exclusivas e singulares, pertencentes não só ao espólio da família Reagan, mas também ao vasto arquivo da Ronald Reagan Presidential Library. Localizada em Simi Valley ­‑ Califórnia, é actualmente uma das mais importantes fundações de presidentes dos Estados Unidos, constituída apenas por fundos privados, com a missão de enaltecer o passado de Ronald Reagan e a história política norte­‑americana. Desde cedo, Reagan distinguiu­‑se como líder, quer na vida académica, na carreira em Hollywood, como governador da Califórnia e enquanto Presidente dos Estados Unidos da América, ganhando o respeito dos cidadãos e de líderes mundiais. Apesar de ter iniciado a sua carreira política no seio do Partido Democrata, Reagan alcançou o seu primeiro cargo no Partido Republicano, em 1966 quando se tornou Paralelo n.o 8

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Ronald Reagan: 100 Years é uma obra que celebra o centésimo aniversário do nascimento deste Presidente, numa edição oficial comemorativa da Ronald Reagan Presidential Foundation. No momento em que se preparam as homenagens de uma década do seu desaparecimento, esta biografia oficial é relembrada enquanto testemunho histórico da política norte-americana e mundial do século XX.

governador do Estado da Califórnia. Ronald Reagan chega à Casa Branca aos 69 anos de idade, valendo­‑lhe o título de candidato mais velho a ser eleito para a presidência dos Estados Unidos, num período crítico da economia do país, com elevados níveis de desemprego, de impostos e de taxas de juro. No seu primeiro discurso inaugural em 1981, defendeu

uma política económica baseada no corte de impostos, controlo da despesa federal e na limitação do poder governamental privilegiando a iniciativa privada, abordagem esta que ficaria conhecida como Reagonomics. No balanço dos seus dois mandatos, algumas questões foram controversas, nomeadamente a aprovação de legislação severa na luta contra as drogas, onde contou com o apoio da Primeira­ ‑Dama Nancy Reagan. No plano externo, e devido ao contexto da Guerra­‑Fria, os gastos com a Defesa aumentaram exponencialmente e contribuíram para o início do colapso da União Soviética. Um aspecto notável que distinguiu Ronald Reagan no seu dinamismo político foi a amizade pessoal desenvolvida com Mikail Gorbatchev. A sua presidência restaurou a força americana e a influência global, levando valores como a liberdade e a democracia ao mundo. Esta biografia não só retrata a vida de um dos líderes políticos mais destacados do seu tempo, como também nos oferece uma visão atenta sobre a Guerra­‑Fria, um período indelével das relações internacionais. Recordado pela nação como Dutchman, Ronald Reagan será lembrado para sempre, no mundo, como “O Grande Comunicador”.

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COLECÇÃO FLAD

João Onofre

Imagem e movimento

Existem constantes nos vídeos de João Onofre: o corpo – às vezes dor, promovendo uma auto-consciência do corpo e das suas humano, às vezes objectual, outras nem uma coisa nem outra possibilidades. A repetição em loop amplia esta ideia de limite e mas ainda corpo – e a acção – dirigida, controlada mas sempre de possibilidade física ao obrigar os corpos a encontrarem-se constrangida pelas suas próprias possibilidades. Por isso o seu eternamente. trabalho é sempre performativo. Contudo, não existem dúvidas Não sendo figuras assexuadas, os corpos actuam, aqui, como relativamente ao seu estatuto – o vídeo – dado que a acção é elementos que se contrapõem e entram, inevitavelmente, em sempre consciente e dependente da presença de um dispositivo conflito, estabelecendo entre si uma relação dialéctica em que que a regista. A prática artística de João Onofre foi sempre pau- cada corpo opera como tese e antítese, de forma alternada. As tada pela necessidade de inscrição, pelo que estes dois momen- imagens que daqui resultam funcionam como síntese, sem recortos, a acção e o seu registo, não funcionam como entidades rer a artifícios visuais que excedam aquilo que é exigido à acção. autónomas mas enformam, na sua simultaneidade, a expressão A acção é o fim em si mesmo, permitindo reduzir a unidades de um corpo que é imagem e movimento. É deste corpo que mínimas aquilo que pode um corpo: imagem e movimento. Ana Cristina Cachola trata a obra de João Onofre. Em Untitled (1998) um homem e uma mulher encontram-se frente a frente, sugerindo, a sua disposição, uma possibilidade de confronto. João Onofre nasceu em Lisboa, em P.S.1. / MoMA Contemporary Art Cen‑ Esta possibilidade é confirmada, quando se 1976, cidade onde vive e trabalha. É ter, New York (2002); Nothing Will Go encontram, alternadamente, em embates violentos, amplificados pela presença do som sinformado pela Faculdade de Belas Artes Wrong, Museu Nacional de Arte Con‑ copado que corrobora a violência do choque. de Lisboa e pelo Goldsmiths College, temporânea, Lisboa e Centro Galego A situação interroga o limite do corpo, tema recorrente nos trabalhos de Onofre que em Pas em Londres (MA em Fine Arts). Começa de Arte Contemporânea, Santiago de d’action (2002), por exemplo, apresenta um a expor no final da década de 1990. Compostela (2003); João Onofre, Toni grupo de bailarinos que se mantêm em posições clássicas de ballet (pointes e demi pointes) Realizou várias exposições individuais Tàpies, Barcelona (2005); Cristina Guer‑ durante o máximo tempo possível. em Portugal e no estrangeiro, de entre ra Contemporary Art, Lisboa (2007) João No caso Untitled (1998), a experiência de limite reside no desafio à gravidade, porque, as quais se destacam João Onofre, Onofre, Galleria Franco Noero, Torino na verdade, o corpo que acolhe o impacto está I-20, New York (2001); João Onofre, (2007) e Palais de Tokyo, Paris (2011). deitado sobre o chão e o outro içado no ar. A rotação da imagem cria uma ilusão de verticalidade que interpela e aproxima o especta-

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COLECÇÃO FLAD

“Não sendo figuras assexuadas, os corpos actuam, aqui, como elementos que se contrapõem e entram, inevitavelmente, em conflito, estabelecendo entre si uma relação dialéctica em que cada corpo opera como tese e antítese, de forma alternada.”

Untitled, 2008 Vídeo

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OFICINA DE LEITURA E ESCRITA CRIATIVA

ASAS SOBRE A AMÉRICA WINGS OVER AMERICA LER MAIS ESCREVER MELHOR a partir da grande literatura norte-americana com

FILIPA MELO

(crítica literária, escritora)

ILUSTRAÇÃO: ANDRÉ CARRILHO

cá estamos de mãos dadas, walt, dançando o universo na alma. fernando pessoa

ORGANIZAÇÃO

FORMADOR

Filipa Melo

FUNDAÇÃO LUSO-AMERICANA Rua do Sacramento à Lapa, 21 • Lisboa INSCRIÇÕES: fladport@flad.pt ou tel. 213 935 800


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