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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - QUARTA-FEIRA, 14 DE SETEMBRO DE 2016
ARTE SEQUENCIAL
O mundo numa página Com traço limpo e conciso, o ilustrador Troche mantém diálogo com leitor sobre temas universais ADRIANA MARTINS Editora assistente
B
astam dois minutos com Gervasio Troche para notar que seu jeito parece combinar com sua obra. Simpático e, ao mesmo tempo, um tanto tímido, revelase delicado como seus desenhos, mas sem nunca perder o magnetismo. O uruguaio foi um dos convidados internacionais da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, que aconteceu de 8 a 11 deste mês. No evento, Troche participou das mesas “Quadrinhos na America Latina” e “Quadrinhos silenciosos” – esta última sobre trabalhos sem diálogos, aspecto fundamental de sua obra. Ironicamente, é no silêncio que os desenhos de Troche encontram uma eloquência desconcertante. Situados entre o quadrinho e a ilustração, eles abordam temas universais, tão distintos que torna difícil citar exemplos. São metáforas e sutilezas materializadas a partir de um traço limpo e conciso (simples no sentido de essencial, não de simplório), em preto, branco e muitos cinzas, enriquecido com texturas de aquarela. Todas revelam uma capacidade de fazer emergir sentimen-
FIQUE POR DENTRO
Do Uruguai para o mundo Gervasio Troche nasceu em 1976 e passou a infância na Argentina, no México e na França. Mora no Uruguai desde os dez anos de idade. Começou a desenhar ainda criança. Iniciou sua formação numa oficina de história em quadrinhos e estudou na Escola Nacional de Belas ArtesdeMontevidéu. Realizou exposições na Argentina e no Uruguai, além de ter colaborado para veículos de comunicação locais e internacionais. No Brasil, fez um mural de 85m² no Sesc Ipiranga (2015) e ilustrapara ojornalFolha deS. Paulo.
de “Desenhos invisíveis”, primeiro livro do autor
tos, reflexões, sensações – desde as cotidianas até aquelas da intimidade mais recôndita. De tão difícil descrever, mais fácil é observar as reproduções nesta página. Em “Desenhos invisíveis” (2013), seu primeiro volume, o colega de profissão Fabio Zimbres bem que tenta, no texto de apresentação. “É como se, com uma folha de papel, ele filtrasse ideias que passam distraídas ao lado. Troche levanta a folha e a ideia se revela lentamente através dela, o que explica a invisibilidade dos desenhos: estamos focando um pouco além deles, na ideia que se move do outro lado. (...) cada página deste livro é uma janela, que faz companhia a outras janelas”.
Lacunas O livro é uma compilação dos trabalhos que o artista publicou em seu blog (portroche. blogspot.com) entre 2009 e 2012. A leitura pode ser em qualquer ordem, mas nunca rápida ou desatenta. O desenho do uruguaio convida à contemplação, para que o próprio leitor a preencha com sua bagagem e, assim, construa com ele o sentido da obra. Mais que deixar lacunas propositalmente, Troche lavra o espaço entre o desenho e quem o lê, criando um terreno fértil onde brotam novas construções simbólicas. O que dizer, por exemplo, do feixe da lanterna que, na completa escuridão, jorra planetas e estrelas, ou o rosto da amada, em vez de luz? Ou seriam esses a própria luz? Qual é a sua luz? São questionamentos que Troche joga ao leitor em poucos minutos, com silêncio que grita.
Um “cobertor noturno”: o céu estrelado, repleto de planetas e cometas, aparece repetidas vezes nos desenhos de Troche
Ilustrações
Continuação Neste ano “Desenhos invisíveis” ganhou continuação: o livro “Equipaje” traz novo material do artista. No Brasil, os dois volumes foram lançados pela Lote42, que na Bienal tinha um dos stands mais interessantes da feira. São dois livros para manter na parte mais acessível da estante, para serem (re)visitados com frequência.
ENTREVISTA Troche Quadrinista
“Quandodesenhonão pensomuito,émais umacatarse” Seusdoislivrostrazemcompilaçõesdetrabalhospublicadosno blog.Tevealguma dificuldadede passardainternetparaopapel?
Não, porque meu traço é bem artesanal, já trabalho muito pensando no papel, com aquarela, lápis. Uso a internet como meio para publicar. Mas o que o público vê lá São os desenhos originais, do papel. O mercado no Uruguai é muito pequeno. Então em 2008, 2009 me sugeriram usar a internet. No início fiquei meio ressabiado, mas um dia decidi abrir o blog, um amigo meu me ensinou a usar, pensei 'vamos ver no que dá'. Depois de um tempo o blog começou a ter movimento e passei a
gostar. Foi crescendo até surgir a possibilidade de um livro. Seusdesenhos sãotãocerteiros,com temasuniversaisediscursobemconstruído.Podefalarumpoucodoseu processocriativo?Comoéocaminho daideia àmetáfora édelaaodesenho?
Desenho de maneira muito intuitiva, o processo é bem instintivo. Quando desenho não penso muito, é mais uma catarse. Desenho para me desafogar. Não vou já com uma ideia pensada, ela apenas sai (durante o processo). Não tenho esse poder de desenvolvimento, mas de síntese. É minha forma de expressão. Olho muito para a folha em branco. Às vezes o
desenho sai do nada, às vezes saio para caminhar, outras vezes ouço música. Mas a ideia é a última coisa de todo processo, antes há muito de observar, de ler. É muito difícil mas é lindo. Quando tenho a ideia aí penso em trabalhar o desenho. Ela meio que já aparece com a imagem. Seusdesenhos falamdetantacoisa numaúnicaimagem.Éfácilseidentificarcomeles...
Muito do que eles falam já vem de você (leitor). Quando alguém vê o desenho ele continua dentro da pessoa. Todos podem interpretar coisas deferentes, mas também temos muito em comum. Etudoissosem palavras...
Com o tempo fui transformando meu trabalho em quadrinho mudo, foi uma evolução uma mudança com os anos até chegar a isso. Mas quem sabe talvez no futuro volte a escrever (textos, diálogos).