Por uma Poética do Gesto: Potências ambientais na arquitetura ativadas por Hélio Oiticica

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO TECNOLÓGICO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

FLÁVIA MARTINI RAMOS

Por uma Poética do Gesto: Potências ambientais na arquitetura ativadas por Hélio Oiticica

FLORIANÓPOLIS 2019


Flávia Martini Ramos

Por uma Poética do Gesto: Potências ambientais na arquitetura ativadas por Hélio Oiticica

Dissertação submetida ao Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Gonçalves dos Santos

Florianópolis 2019


Ficha de identificação da obra

O Presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001


Flávia Martini Ramos Por uma Poética do Gesto: Potências ambientais na arquitetura ativadas por Hélio Oiticica O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros: Profa. Iazana Guizzo, Dra. Universidade Federal do Rio de Janeiro Prof. Rodrigo Almeida Bastos, Dr. Universidade Federal de Santa Catarina Rodrigo Gonçalves dos Santos, Dr. Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em arquitetura e urbanismo. Assinado de forma digital por Fernando Simon Westphal:02083464907 Dados: 2019.08.07 11:43:20 -03'00' ____________________________

Prof. Dr. Fernando Simon Westphal Coordenador do Programa de forma digital por Rodrigo Goncalves Assinado Rodrigo Goncalves dos Santos:01683234944 dos Dados: 2019.08.06 20:20:08 Santos:01683234944 ____________________________ -03'00'

Prof. Dr. Rodrigo Gonçalves dos Santos Orientador

Florianópolis, 9 de agosto de 2019.


AGRADECIMENTOS Raras são as construções feitas de forma solitária. Agradeço pela ajuda na construção deste trabalho: Aos meus pais Marisa Martini e Luiz Antônio Ramos pelo apoio e inspiração constante, por compreenderem este processo e seus efeitos de forma tão sensível e carinhosa e por insistirem na ética, no respeito e na empatia; A Daubigny Tolentino, parceiro de todas as horas, pela paciência, abertura, ajuda e carinho, por compartilhar visões e exercícios de mundo e de arquitetura e por se reinventar sempre; Ao professor Rodrigo Gonçalves dos Santos por aceitar orientar este trabalho, por fazê-lo de forma tão gentil e pacienciosa e por promover encontros, debates e intervenções de ordem corporal, arquitetônica e sensível; Às professoras Karine Daufenbach, Vanessa Goulart Dorneles e Vera Helena Moro Bins Ely pelo acolhimento durante a graduação e a possibilidade de descobrir e explorar temáticas diversas, empáticas e sensíveis na arquitetura, despertando e exercitando o gosto pela área e pela pesquisa acadêmica; Ao professor Rodrigo Almeida Bastos por provocar a aproximação com a obra de Hélio Oiticica, pelo apoio sempre gentil e atento no desenvolvimento deste e outros estudos, por exercitar a docência de forma tão responsável e comprometida e por inspirar alunos e pesquisadores; À professora Andréa Holz Pfützenreuter pela acolhida sempre solícita e por promover discussões tão pertinentes a este estudo durante o mestrado; Às colegas Alexssandra da Silva Fidelis e Bárbara Fischer por dividirem orientador, percursos e inquietações e por inspirarem com sua força, competência e inteligência invejáveis; A Elaine Nascimento pelas inúmeras conversas, trocas, projetos e parcerias, pela energia contagiante e por compartilhar a vontade de tornar prática a teoria; Aos colegas Angélica Camargo, Fábio Pedroso Dias, Paula Polli e Renato Slomski pelas discussões e pela presença ativa nos grupos de leitura em constante formação; Às arquitetas Larissa Miranda Heinisch, Mariana Moraes Luiz e Gabriela Yoshitani da Luz pelos cafés e por inspirarem com suas ações responsáveis, comprometidas, sensíveis e inteligentes;


Ao professor Fernando Simon Westphal, coordenador do PosARQ/UFSC e à PROPG/UFSC pelo apoio no comparecimento aos eventos científicos; À CAPES, pelo apoio financeiro concedido ao longo dos dois anos de mestrado.


Prelúdio: Casa É carnaval no morro da Mangueira. Cheiro, batuque, vibração. Cores, movimento, música, gozo. Um ir e vir na cidade, os corpos suados. Que corpos são esses? Que cidade é essa? Apartheid. Alpinismo. Alforria. Todos os corpos alforriados. Livres para cheirar, batucar, vibrar, colorir, mover, musicar, gozar. Livres para sentir. O Carnaval no Morro da Mangueira é onde e quando o sentir tem lugar e corpo. Onde e quando a experimentalidade aflora e se incorpora pelo batuque, pelo cheiro, pelo suor. Pela visão-tátil que é tato em si. Pelo tato em si todos os sentidos afloram e se incorporam. E em uma casa despretensiosa, simples, de materiais ordinários, feita por homens ordinários para homens ordinários é onde e quando o Morro, o Carnaval e os corpos têm abrigo. Não é fevereiro, mas é Carnaval nesta casa que está ora no Morro, ora nos corpos do viver marginalizado. Nesta casa todo dia é dia de Carnaval. Todos os dias são dias para abrigar e (celebrar a alteridade do) sentir, incorporar e experimentar.1 Este é o gesto inicial: Experimentar (ser) corpo. Ecoando o gesto de Oiticica: Experimentar o experimental (OITICICA, 1972). Enunciando o convite ao gesto: Experimentar a Casa Ambiental. Para

desvendá-la,

não

chave-dispositivo-prático,

mas

convite-processo-

experimento. Reconhecimento de retina. Leitura corporal. Para entrar na Casa Ambiental não há senhas ou fechaduras. Há que ser um pouco Oiticica. Abertura: vivência. Pode entrar. 1

Este trecho consiste em uma adaptação do texto “Oiticica de Portas abertas: Considerações sobre a Casa Ambiental”, elaborado pela autora e publicado na revista A (a) Margem, disponível em: <https://issuu.com/grupoquiasma/docs/a_a_margem_02_final.compressed>. Acesso em: 31 jul. 2018.


RESUMO Pensar em diálogos entre arte e arquitetura é sempre desafiador, especialmente quando se esbarra em tentativas de definição dos campos. Afastando-se desta pretensão, este trabalho trata de identificar algumas aportações da obra ambiental de Hélio Oiticica à arquitetura na contemporaneidade. A partir do reconhecimento de semelhanças entre contextos e agenciamentos, revela-se um atual distanciamento entre as produções arquitetônicas e a vida cotidiana e encontra-se em Oiticica inspiração para questioná-las e repensá-las. Referenciando espacialidade, vivência e atravessamentos, parte da produção ambiental do artista é aqui revisada em paralelo com teorias e obras arquitetônicas, sugerindo a possibilidade de explorar uma arquitetura ambiental como forma de resistir à espetacularização urbana. Esta discussão é materializada em um estudo mais atento de duas obras arquitetônicas atuais – as Casas da Quinta Monroy, do escritório Elemental, e o Memorial do Holocausto, de Peter Eisenman – que se aproximam dos conceitos e relações ambientais e sugerem a potência de aplicá-los de forma consciente e intencional na arquitetura. Vislumbra-se, então, a possibilidade de formular e testar um Programa Arquitetônico Ambiental e propõe-se encaminhamentos para realizá-lo, endossando discussões e produções cada vez mais sensíveis, atentas e próximas do corpo e da vida, como a produção ambiental de Hélio Oiticica. Palavras-chave: Hélio Oiticica. Arquitetura Ambiental. Arquitetura sensível.


ABSTRACT Thinking about dialogues between art and architecture is always a challenge, especially when attempts to define the fields are made. Away from this pretension, this work deals with some contributions of the work of Hélio Oiticica to the contemporary architecture. Similarities between contexts and strategies reveal distances between architecture and daily life and Oiticica‟s production inspire a critical review about it once his environmental work refers to spatiality, experience and relations. Part of Oiticica‟s environmental production is studied, as well as some architectural theories and works, suggesting the possibility of resisting urban spectacularization through an environmental architecture. In order to materialize this discussion, two architectural works are analyzed – the Quinta Monroy Housing, by Elemental, and the Holocaust Memorial, by Peter Eisenman – approaching environmental concepts and relations and recognizing its importance. This study suggests the possibility of formulating and testing an Environmental Program adapted to architecture and proposes some future actions and researches in order to motivate sensitive productions in architecture, as close to the body as Oiticica‟s environmental work. Keywords: Hélio Oiticica. Environmental architecture. Sensitive architecture.


LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Cartão Postal 01: A casa-turbulência ....................................................... 23 Figura 2 – Frank Gehry, Museu Guggenheim de Bilbao: o Museu e seu entorno ..... 34 Figura 3 – Frank Gehry, Museu Guggenheim de Bilbao: forma e materiais .............. 34 Figura 4 – Richard Serra, “The Matter of Time”: Vista superior ................................. 37 Figura 5 – Richard Serra, “The Matter of Time”: Vista do experienciador ................. 37 Figura 6 – Cartão postal 02: A casa-vibrátil............................................................... 39 Figura 7 – Cartão postal 03: A casa-corpo ................................................................ 44 Figura 8 – Cartão postal 04: A casa-vivência ............................................................ 48 Figura 9 – Exposição da Monalisa no Louvre: o corpo espectador ........................... 50 Figura 10 – Cartão postal 05: A casa-frágil ............................................................... 55 Figura 11 – Cartão postal 06: A casa-potência ......................................................... 56 Figura 12 – Síntese Gráfica das Considerações sobre Arquitetura e Contemporaneidade em direção a Oiticica ......................................................... 57 Figura 13 – Cartão postal 07: A casa-afeto ............................................................... 62 Figura 14 – Cartão postal 08: A casa-HO ................................................................. 63 Figura 15 – José Oiticica Filho, Microfotografia......................................................... 70 Figura 16 – José Oiticica Filho, Fotografia ................................................................ 70 Figura 17 – José Oiticica Filho, D-10 A, 1958 ........................................................... 70 Figura 18 – José Oiticica Filho, Recriação C1, 1958 ................................................. 70 Figura 19 – Cartão postal 09: A casa-diálogo ........................................................... 84 Figura 20 – Metaesquema de 1955/1956 .................................................................. 86 Figura 21 – Metaesqeuema de 1956 ......................................................................... 86 Figura 22 – Metaesquema de 1957/1958 .................................................................. 86 Figura 23 – Metaesquema de 1958........................................................................... 86 Figura 24 – Bilateral Teman Bil 003, Hélio Oiticica, 1959 ......................................... 89 Figura 25 – Relevo Espacial, Hélio Oiticica ............................................................... 89 Figura 26 – Interação com um Relevo Espacial, 1959 .............................................. 90 Figura 27 – NC6 – Núcleo Médio 6, Hélio Oiticica, 1961 .......................................... 92 Figura 28 – Grande Núcleo, Hélio Oiticica, 1960 ...................................................... 93 Figura 29 – Núcleo 6, Hélio Oiticica, 1960 ................................................................ 93 Figura 30 – Fachada da Storefront for Art and Architecture ...................................... 96 Figura 31 – Paineis da Storefront vistos desde o exterior ......................................... 96


Figura 32 – Paineis da Storefront vistos desde o interior .......................................... 96 Figura 33 – Penetrável Filtro, Hélio Oiticica, 1972 .................................................... 99 Figura 34 – Penetrável PN1, Hélio Oiticica, 1960 ................................................... 100 Figura 35 – Penetrável A Invenção da Luz, Hélio Oiticica, 1978/1980 .................... 100 Figura 36 – Projeto Cães de Caça, Hélio Oiticica, 1960-1961 ................................ 106 Figura 37 – Teatro Oficina, Lina Bo Bardi e Edson Elito, 1994 ............................... 107 Figura 38 – Teatro Oficina, Lina Bo Bardi e Edson Elito, 1994 ............................... 107 Figura 39 – B15 Bólide Vidro 4 – Terra, Hélio Oiticica, 1964 .................................. 108 Figura 40 – B11 Bólide Caixa 9, Hélio Oiticica, 1964 .............................................. 112 Figura 41 – B33 Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2, Hélio Oiticica, 1965 ................... 112 Figura 42 – B47 Bólide Caixa 22, Hélio Oiticica 1967 ............................................. 114 Figura 43 – Contra-Bólide nº1: Devolver a Terra à Terra, Hélio Oiticica, 1979 ....... 117 Figura 44 – B52 Bólide Saco 4, Hélio Oiticica, 1966-1967 ...................................... 117 Figura 45 – Bólide Cama, Hélio Oiticica, 1968 ........................................................ 117 Figura 46 – B55 Bólide Área 2, Hélio Oiticica, 1967 ................................................ 117 Figura 47 – Cartão postal 10: A casa-parangolé ..................................................... 118 Figura 48 – Hélio Oiticica, samba e Parangolés ..................................................... 120 Figura 49 – Mulheres vestindo Parangolés ............................................................ 120 Figura 50 – Parangolé P30 capa 23 m'way ke, vestido por Luiz Fernando Guimarães, Hélio Oiticica, 1965. .......................................................................................... 121 Figura 51 – Parangolé P4 vestido por Nildo da Mangueira, Hélio Oiticica, 1978 .... 123 Figura 52 – Parangolé, Hélio Oiticica ...................................................................... 123 Figura 53 – Parangolé P4, Capa 1, vestido por Hélio Oiticica, 1964 ....................... 128 Figura 54 –Tropicália (PN2 e PN3), Hélio Oiticica, 1967 ......................................... 130 Figura 55 – Tropicália, Hélio Oiticica, 1967 ............................................................. 130 Figura 56 – Frederico de Morais vestido o Parangolé idealizado por Hélio Oiticica em homenagem à Che Guevara, Apocalipopótese, 1968 ...................................... 137 Figura 57 – “A Invenção da Cor”, Magic Square #5, De Luxe, Hélio Oiticica, 1977, construído postumamente no Instituto Inhotim, MG ......................................... 140 Figura 58 – Magic Square #5, Hélio Oiticica, 1977 ................................................. 141 Figura 59 – Magic Square #5, Hélio Oiticica, 1977 ................................................ 141 Figura 60 – Manuscrito do Manifesto CAJU, Hélio Oiticica, 1979 ........................... 143 Figura 61 – Seja Marginal, Seja Herói, Hélio Oiticica, 1968 .................................... 145 Figura 62 – Cartaz do filme “Hélio Oiticica”, 2015 ................................................... 145


Figura 63 – Cosmococa 5 Hendrix War, Hélio Oiticica, 1973 .................................. 147 Figura 64 – Ninhos, Hélio Oiticica ........................................................................... 152 Figura 65 – Interior de um Ninho, Hélio Oiticica ...................................................... 152 Figura 66 – Rhodislândia, Hélio Oiticica, 1971 ........................................................ 153 Figura 67 – Éden, Hélio Oiticica, 1969 .................................................................... 156 Figura 68 – Éden instalado no Carnegie Museum of Art entre 2016 e 2017 .......... 156 Figura 69 – Síntese Gráfica da integração Arte-Arquitetura na obra de Oiticica ..... 163 Figura 70 – Cartão postal 11: A casa-tato ............................................................... 165 Figura 71 – Porta do Inferno, Auguste Rodin, 1880-1917 ....................................... 168 Figura 72 – Diagrama comparativo entre as estruturas de labirinto e pirâmide ...... 177 Figura 73 – La Femme Maison, Louise Bourgeois .................................................. 186 Figura 74 – La Femme Maison, Louise Bourgeois .................................................. 186 Figura 75 – A Casa é o Corpo: Labirinto, Lygia Clark, 1968 ................................... 186 Figura 76 – Cartão postal 12: A casa-instante ........................................................ 191 Figura 77 – Cartão postal 13: A casa-gozo ............................................................. 199 Figura 78 – Cartão postal 14: A casa-experiência................................................... 205 Figura 79 – Cartão postal 15: A casa-resistência .................................................... 207 Figura 80 – Cartão postal 16: A casa-contágio ....................................................... 210 Figura 81 – Cartão postal 17: A casa-gesto ............................................................ 215 Figura 82 – Síntese gráfica relacionando arquitetura, caráter “anti” e caráter ambiental .......................................................................................................... 221 Figura 83 – Casas da Quinta Monroy antes da intervenção ................................... 226 Figura 84 – Implantação de um conjunto de casas da Quinta Monroy .................... 227 Figura 85 – Alejandro Aravena/Elemental, Casas Quinta Monroy: Composição original .............................................................................................................. 229 Figura 86 – Alejandro Aravena/Elemental, Casas Quinta Monroy: Composição original .............................................................................................................. 230 Figura 87 – Expansões realizadas pelos moradores da Quinta Monroy ................. 231 Figura 88 – O Memorial do Holocausto e seu entorno ............................................ 238 Figura 89 – Nível térreo do Memorial do Holocausto .............................................. 239 Figura 90 – Nível subterrâneo do Memorial do Holocausto .................................... 239 Figura 91 – Relação entre a topografia do terreno e as alturas dos blocos ............ 244 Figura 92 – A vivência do Memorial do Holocausto ................................................ 245 Figura 93 – A vivência do Memorial do Holocausto ................................................ 245


Figura 94 – O uso do Memorial enquanto lugar de encontro e espaço de estar ..... 249 Figura 95 – O uso do Memorial enquanto lugar de ócio e lazer .............................. 249 Figura 96 – Cartão postal 18: A casa-explosão....................................................... 254 Figura 97 – Cartão postal 19: A casa-mundo .......................................................... 257 Figura 98 – Poesia visual de Reynaldo Jardim ....................................................... 261


LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Comparação entre o caráter “anti” e o caráter ambiental.....................208


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Bn – Bólide n, sendo n um número CA – Casa Ambiental HO – Hélio Oiticica PA – Programa Ambiental Pn – Parangolé n, sendo n um número UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UIA – União Internacional de Arquitetos


SUMÁRIO 1.

ABRINDO AS PORTAS: UMA INTRODUÇÃO ........................................... 17 2.

O VENTO QUE A PORTA DESLOCA: ESTA VISITA É REALMENTE

NECESSÁRIA?......................................................................................................... 19 BLOCO 1 3.

O RECONHECIMENTO DA CASA AMBIENTAL ........................................ 23

3.1.

DESCENDO AO PORÃO: ARQUITETURA E ATUALIDADE ...................... 23

3.1.1.

As Imagens e a Espetacularização ........................................................... 27

3.1.1.1. 3.1.2. 3.1.2.1.

Imagens Fortes e Imagens Frágeis ................................................. 32 A Arquitetura do Cotidiano ........................................................................ 39 O Apelo Corporal-Total ................................................................... 44

3.1.3.

Dissonâncias e Convergências ................................................................. 48

3.2.

A SAÍDA DO PORÃO: PERSPECTIVAS ..................................................... 56

4.

REVIRANDO GAVETAS: O ENCONTRO COM HÉLIO OITICICA ............. 63

4.1.

O CONTEXTO-HO ....................................................................................... 66

4.1.1.

O Corpo-HO ................................................................................................. 68

4.1.2.

O Tempo-HO ............................................................................................... 72

4.1.3.

O Espaço-HO .............................................................................................. 76

4.2.

A AÇÃO-HO ................................................................................................. 84

4.2.1.

Metaesquemas ............................................................................................ 85

4.2.2.

Invenções .................................................................................................... 87

4.2.2.1.

Bilaterais e Relevos Espaciais ........................................................ 88

4.2.3.

Núcleos........................................................................................................ 91

4.2.4.

Penetráveis ................................................................................................. 97

4.2.4.1.

Do Penetrável à Poética do Gesto .................................................. 98

4.2.4.2.

Da Poética do Gesto às ordens ambientais .................................. 100

4.2.5.

Projetos ..................................................................................................... 103

4.2.6.

Bólides....................................................................................................... 108

4.2.6.1.

Ruptura ......................................................................................... 109

4.2.6.2.

Materiais........................................................................................ 110

4.2.6.3.

Corpo ............................................................................................ 111

4.2.6.4.

Imagem ......................................................................................... 115

4.2.6.5.

Continuidade ................................................................................. 116


4.2.7.

Parangolés ................................................................................................ 118

4.2.8.

Tropicália ................................................................................................... 128

4.2.9.

Manifestações Ambientais ....................................................................... 134

4.2.9.1.

Apocalipopótese............................................................................ 136

4.2.9.2.

Magic Squares .............................................................................. 139

4.2.10. Cosmococas ............................................................................................. 146 4.2.10.1.

Adendo Branco ............................................................................. 149

4.2.11. Ninhos, Éden e Barracão ......................................................................... 151 4.3.

ECOS-HO .................................................................................................. 157 BLOCO 2

5.

OS MATERIAIS DA CASA AMBIENTAL: ARTE E ARQUITETURA ........ 165

5.1.

UM DIÁLOGO: FUSÃO .............................................................................. 172

5.1.1.

A partir do Espaço Público ...................................................................... 175

5.1.2.

A partir da Casa ........................................................................................ 182

5.2.

UM CAMINHO: ANTIARTE E ANTIARQUITETURA .................................. 191

6.

CASA EM FESTA: O AMBIENTAL ........................................................... 199

6.1.

SUBINDO AO SÓTÃO: DO CARÁTER “ANTI” AO CARÁTER AMBIENTAL ....................................................................................................................205

6.1.1.

Correspondências .................................................................................... 207

6.2.

DE VOLTA AO TÉRREO: O AMBIENTAL NA ARQUITETURA ................. 210

6.2.1.

Considerações sobre um Programa Ambiental Arquitetônico ............. 215

6.2.2.

Caráter e Gesto ......................................................................................... 219

7.

POÉTICAS DO GESTO: ARQUITETURAS AMBIENTAIS ........................ 222

7.1.

UMA ARQUITETURA-NINHO: AS CASAS DA QUINTA MONROY........... 224

7.2.

UMA ARQUITETURA-PENETRÁVEL: O MEMORIAL DO HOLOCAUSTO ....................................................................................................................236

7.3.

CASA AMBIENTAL: EPÍLOGO DO QUE É PRELÚDIO ............................ 254

8.

UM RELATO SOBRE A VISITA: CONSIDERAÇÕES FINAIS .................. 257

8.1.

LABIRINTOS FUTUROS: ENCAMINHAMENTOS ..................................... 261 REFERÊNCIAS .......................................................................................... 265 ANEXO A – Carta para Educação dos Arquitetos (UNESCO/UIA) ........ 272


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1. ABRINDO AS PORTAS: UMA INTRODUÇÃO Esta dissertação se dedica a estudar diálogos entre o contexto atual da arquitetura e parte da obra ambiental de Hélio Oiticica, artista brasileiro cuja extensa produção inspira reflexões sobre corpo, espaço, cultura, sociedade, entre outros temas que tangem os universos ora tão próximos, ora tão distantes da arte e da arquitetura. Entende-se que tratar de suas produções e posturas vanguardistas não dispensa uma estrutura organizadora, mas pode remeter a um modo alternativo de realizá-la. Assim, adotando uma postura experimental que é eco inevitável de Oiticica, este estudo foi desenvolvido a partir de dois discursos paralelos e autorreferenciados: um mais lógico e linearizado e outro mais poético e fragmentado, apresentado na forma de cartões postais – correspondências tanto físicas, quanto metafóricas – intercaladas ao texto inicial, servindo ora como epígrafe, ora como ilustração ou resumo do tópico ao qual se relaciona e abrindo-se, por vezes, a intervenções do/a leitor/a. Responsável por descrever uma visita a uma casa hipotética onde reside Oiticica, essa narrativa se constrói junto de fotomontagens e apresenta instruções2 que relacionam as suas partes incitando a construção experimental de um todo espacial. Sugere-se, para sua leitura e manuseio, não um manual, mas uma experiência de desvendamento que ecoa o visitar: ela pode ser feita tanto seguindo a ordem apresentada, intercalando os dois textos, como pode desenvolver-se de forma independente, após a reunião de todos os textos-fragmentos3. Cabe ressaltar que eles podem ser lidos em sequência ou de forma alternada. Seu tratamento enquanto cartões a serem destacados, reunidos, colecionados, deixados inertes na posição que lhes foi apontada, recortados, transformados ou conservados fica à critério dos atravessamentos e vontades do/a leitor/a. Esta estrutura torna possível exercitar idas e vindas em narrativas diversas e repletas de referências afetivas constituídas tanto a partir de grandes teóricos como de experiências ordinárias (aqui tratadas com o mesmo cuidado e atenção), salientando o reconhecimento da arquitetura como campo transdisciplinar. Nele emergem discussões diversas que sugerem desconstruções e inspiram cautela, 2

Sugere-se que as dobras sejam feitas inicialmente e que as partes demarcadas como áreas de sobreposição sejam coladas. 3 Os cartões sem texto são convites a intervenções, sugerindo a composição coletiva da narrativa.


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expectativa, olhares atentos, espanto, reconhecimento, entre outras sensações singulares e subjetivas. Acredita-se que emoções semelhantes são despertadas no primeiro contato com um lugar e que investigar motivações, afetos e efeitos que relacionam Hélio Oiticica e arquitetura deixando-se levar em um processo sem vislumbrar seu final exato remete a experiências parecidas. O convite a uma visita revela-se, então, metáfora direta desta situação. Inspirada por Iñaki Ábalos (2003) cujo livro "A boa-vida: visita guiada às casas da modernidade" explora a vida e as casas (reais e/ou imaginárias) de personalidades da era moderna, a visita aqui proposta segue relacionando diretamente sujeito e arquitetura, reconhecendo e exaltando a pluralidade que tal abordagem implica ao reconhecer a grande variedade de expressões arquitetônicas que podem ser sintetizadas na figura da casa. Embora o livro em questão trate da modernidade – e de tentativas de superação do reconhecimento das expressões positivistas como única prática do período –, acredita-se na potência de aplicar a mesma estratégia no contexto atual, valorizando a diversidade que o caracteriza. Trabalha-se, então, com a possibilidade de investigar produções e reflexões arquitetônicas tanto ativadas pela obra de Hélio Oiticica quanto ativadoras de seus princípios a partir de uma visita a sua casa imaginária, a Casa Ambiental (CA). Distante das pretensões de ser uma CA S.A., organização que institui, verticaliza, impõe um modo de viver e homogeneíza, mas corpo(r)ação que se torna corpo-ação –, a Casa Ambiental é expressão de um morar mutante, dependente da percepção que provoca e que faz provocar. Sua essência se expressa especialmente em seu morador: marginal e herói, de pensamentos-labirinto, militâncias tropicalistas, criado(r) dos Bólides, Parangolés e da antiarte e capaz de extrapolar convenções e conveniências, Hélio Oiticica é o sujeito social, crítico, criativo, interventor, agente, fenomenológico e ativo que habita a Casa Ambiental. Metáfora de suas obras, lugar de transgressões pela potência expressiva da (anti)arquitetura, sua casa se confunde, por vezes, com seu próprio corpo, suas ações e seu tempo. A casa de Oiticica alude, então, ao que o próprio artista confidenciou a Waly Salomão (2003, p. 72): "habitar um recinto é mais do que estar nele, é crescer com ele, é dar significação à casca-ovo”. Hélio habitou, cresceu e ressignificou a casca expandida da arte e da arquitetura, com suas obras que transcendem separações na direção da totalidade ambiental que o artista almejava. Vislumbrá-lo ressignificando casa pode endossar reconhecimentos potentes na


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arquitetura atual, que desvela produções e teorias bastante afins a alguns de seus princípios.

Sua

casa

(mesmo

que

hipotética)

ora

reafirma,

ora

provoca

reinterpretações, ajudando a refletir sobre a materialidade sensorial dos corpos, a riqueza de seus afetos, as complexidades de suas experiências e inúmeras outras questões que revelam a atualidade e importância da obra de Hélio Oiticica. Guiando e sendo guiado pela visita à Casa Ambiental oiticiquiana na tentativa de ressaltar a potência do ambiental na arquitetura atual, este trabalho se estrutura em dois blocos: o corpo e a casa. Enquanto o primeiro apresenta o corpo como parte indispensável de uma arquitetura inspirada por Hélio Oiticica, dedicando-se a justificar a importância desta discussão, a reconhecer alguns dos tratamentos deste termo na obra do artista e a estudar partes de sua vida e obra, apresentando e refletindo sobre alguns de seus conceitos e princípios, o bloco “casa” trata da materialização de reflexões apresentadas no bloco anterior, reconhecendo potências ambientais em arquiteturas existentes e esboçando alguns caminhos para o desenvolvimento

de

processos

interessados

em

produzir,

ambientalmente,

experiências arquitetônicas. Busca-se reconhecer possibilidades de fazeres arquitetônicos inspirados pelo artista ensaiando o desenvolvimento de um Programa Ambiental na arquitetura, por exemplo. Cabe exaltar, entretanto, que vislumbrar e articular procedimentos ambientais a partir da obra de Hélio Oiticica não caracteriza, aqui, uma tentativa prepotente de revolucionar conceitos e processos, mas de relacionar-se ao existente estabelecendo diálogos com inúmeras abordagens afins já desenvolvidas e em desenvolvimento no contexto atual no sentido de tentar endossá-las e servir ao seu fortalecimento. 2. O VENTO QUE A PORTA DESLOCA: ESTA VISITA É REALMENTE NECESSÁRIA? A qualquer um que seja minimamente introvertido, o ato social de fazer uma visita parece intimidador. Implica exteriorizar-se, sair de uma zona de conforto, renunciar a alguns postulados amplamente aceitos, abrir-se a uma nova experiência, permitir (a si e ao outro). Assim, é necessário convencer-se de que a jornada pela Casa Ambiental é digna deste pequeno esforço de deslocamento. Por este motivo, enfatiza-se sua importância na reafirmação da conexão entre corpo e espaço a partir


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do reconhecimento e ativação dos afetos e dos sentidos a partir da experiência. Referenciando Jean-Paul Thibaud, tem-se que: Tais reflexões fazem-se importantes não porque seja necessário acrescentar mais uma camada de dificuldades aos problemas energéticos, climáticos, políticos, econômicos, demográficos ou técnicos, mas, sim, porque se trata da nossa própria maneira de habitar o mundo urbano, de como nos encaixamos e o experimentamos no nosso cotidiano. (THIBAUD, 2012, p. 4)

Acredita-se que os traços oiticiquianos que caracterizam a Casa Ambiental podem oferecer uma visita capaz de explicitar questões por vezes implícitas nas relações arquiteturais, sensibilizando, despertando o corpo e reafirmando a importância de abrigá-lo em dimensões que transcendem o físico ou o visual, focando menos na materialidade dos objetos arquitetônicos e mais em sua característica relacional. Seja a partir das fotos nostalgicamente revisitadas, dos cheiros que parecem voltar à memória, ou dos hábitos que corpo e espaço inscrevem um no outro, uma visita tocante ecoa (em) quem a experiencia. Também por isso, talvez, o discurso aqui desenvolvido adote essa estratégia de exposição: por pressupor uma “maior sintonia com a própria estrutura da experiência” (THIBAUD, 2012, p.6), central no reconhecimento do corpo como parte importante da arquitetura e do título vanguardista da obra de Oiticica. Entende-se que experiência e corpo evocam sensações e vivências particulares e plurais cujo acesso e validação podem inspirar posturas mais tolerantes e abertas na produção atual de arquitetura. Este contexto pauta a defesa por um olhar diverso e sensível e é melhor discutido futuramente, mas cabe ressaltar que se considera sua transformação constante inevitável, tendo por base as trocas entre diversas áreas que pautam sua constituição. Assim, corpo, arte, arquitetura e o contexto atual não são vistos como estruturas prontas, predefinidas e estáticas, mas como processos que se adaptam a inúmeros fatores, reinventando-se continuamente em uma metáfora da vida cotidiana. Na obra de Hélio Oiticica as fronteiras entre arte e vida são borradas, sugerindo a potência de se investigar alguns de seus princípios em fazeres arquitetônicos semelhantes e capazes de fomentar esta aproximação. Arrisca-se, aqui, a perseguir a sugestão de Tania Rivera (2012, p. 12) e tentar “pensar com Hélio, e não apenas sobre sua obra”, referenciando-a como disparadora de reflexões


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atentas ao corpo e à dimensão humana – seus afetos e sentidos –, promovendo discussões a respeito da arquitetura e seu papel na resistência a ações capazes de despersonalizar ambientes e promover afastamentos entre espaço e corpo ou arquitetura e vida. Esta discussão reconhece a importância da subjetividade e insinua sua aproximação com fazeres ambientais. Propõe-se, então, vasculhar o porão da Casa Ambiental a fim de revelar o que motiva a sua existência e que perspectivas ela pode apontar.



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3. O RECONHECIMENTO DA CASA AMBIENTAL Figura 1 – Cartão Postal 01: A casa-turbulência

Fonte: Produzido pela autora

3.1. DESCENDO AO PORÃO: ARQUITETURA E ATUALIDADE Reconhecer a Casa Ambiental implica estar aberto a experienciar; dispor o corpo livre no espaço e, mais do que percorrer cômodos, contagiar-se com eles porque reconhecer o ambiental na casa é transcender o conhecer a casa acessando outra camada de sentido: a camada dos sentidos. Para isso, é necessário visitar de forma ativa, sem a polidez que afasta, mas a partir de um desvendar tátil, olfativo, sensual. Reconhecer a Casa Ambiental é, assim, reconhecer-se nela, acessando mais do que o contato visual distante supõe: imergindo. E, se imersão evoca profundidade e contágio, pode-se iniciar a visita justamente pelo porão, ambiente


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que jaz na profundidade ao mesmo tempo silenciosa e pulsante do terreno. Levando-se em conta a noção de Gaston Bachelard que o encara como metáfora à raiz da casa e/ou do sujeito, entende-se o porão como “o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas” (BACHELARD, 1993, p. 209), lugar onde o corpo sente medo, o inconsciente se manifesta e as paredes enterradas reduzem a capacidade de fuga, forçando o corpo a situar-se no tempo e no espaço em que se encontra. Esta tomada de consciência é crucial no reconhecimento da Casa Ambiental. Entender-se corpo que é parte da casa e, por extensão, do contexto do qual também ela é parte, faz encontrar nas ramificações do porão questões importantes para a compreensão do ambiental e de sua importância na atualidade. Cabe ressaltar que Bachelard (1993, p. 210) ainda identifica a expansão dos porões em uma espécie de “emaranhados de subterrâneos”, comunicando-se entre si e construindo quase que uma nova cidade enterrada. Assim, a rede subterrânea nascida dos porões, sobre a qual as casas se assentam de forma consciente ou não, pode incubar potências articuladas de forma a extrapolar os limites do pontual e do aparente. Nos porões, as casas-corpos se ramificam no terreno que, por sua vez, se infiltra na casa, tornando a atmosfera úmida, escura e labiríntica, espaço de confinamento, maturação e contato. Com que se contagia, então, a Casa Ambiental? Que potências subterrâneas ela abriga em seu porão? Com quais redes ela se conecta e se articula? Entre as inúmeras latências nascidas do contágio com o atual contexto, marcado por sua pluralidade, é possível identificar conexões entre a Casa Ambiental e vertentes artísticas e arquitetônicas que desejam reinventar relações e produções em direções cada vez mais personalizadas e horizontais. Estas vertentes encontram respaldo na teoria de Rosalind Krauss (1984) que identifica a partir da escultura, uma ampliação de campos marcada pela experimentalidade e pela exterioridade, levando Anthony Vidler (2015, p. 247) a reconhecer um momento no qual “depois de várias décadas de autonomia autoimposta, a arquitetura ingressou há pouco em um campo bastante ampliado”. Os autores insinuam bases para discussões que extrapolam limites entre áreas rigidamente setorizadas, expandindo seu alcance e, consequentemente, sua complexidade. É neste sentido que Vidler (2015, p. 247) complementa seu raciocínio indicando que “se os antigos teóricos procuravam identificar as bases singulares e essenciais da arquitetura, hoje o foco recai sobre a multiplicidade e a pluralidade, à medida que os fluxos, as redes e os mapas substituem as grades, as estruturas e a


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história”.

Assim,

complexidade

e

diversidade

revelam-se

características

indissociáveis do contexto atual, caracterizando uma arquitetura não pautada por essências lineares, únicas e inequívocas, mas por expressões singulares, contextualizadas, relacionais, ampliadas, enfim. A Casa Ambiental é expressão que se conecta a esta pluralidade complexa, pois se reinventa com cada um de seus visitantes. Seu porão, além de contagiar-se com os já citados Krauss e Vidler, ramifica-se em direções que também revelam um pouco de Paola Jacques, Juhani Pallasmaa, Deborah Berke, Iazana Guizzo, Kenneth Hays, entre outros/as autores/as que endossam perspectivas labirínticas, rizomáticas, humanas e sensíveis na teoria e na prática arquitetônica. Descer ao porão da Casa Ambiental é, então, um convite a aprofundar-se na reflexão sobre inúmeras vertentes da arquitetura atual, especialmente as afetivas e sensoriais, percorrendo

um

caminho

experimental

e

reconhecendo-a

como

processo

fragmentado que surge de (e que lança) inúmeras ramificações. Dentre elas, destacam-se caminhos delineados na resistência ao afastamento entre arquitetura e corpo, revelando o importante papel assumido pela figura que os percorre e os desenha: o/a arquiteto/a, agenciador/a que ora favorece, ora ameaça relações e expressões. Sua formação é considerada na Carta para a Educação dos Arquitetos4 como “um dos desafios ambientais e profissionais mais significativos do mundo contemporâneo” (UNESCO; UIA, 2011), enfatizando sua responsabilidade e insinuando a influência de sua produção no mundo atual. Parte disso se deve à compreensão da arquitetura não como área isolada, mas disciplina expandida, articulada e articuladora, segundo antecipado por Vidler e Krauss. Em conformidade com os autores, Kenneth Hays declara: [...] a arquitetura envolve questões de percepção, formação do sujeito, imagem, sistema e código; compartilha domínios com a ética e a jurisprudência, a gravidade e a meteorologia. O contexto específico de uma única instância da arquitetura envolve todas as forças tecnológicas, estéticas, econômicas, jurídicas e psicológicas que impelem a produção social e, de certo modo, articulam a própria história. E as exigências e reivindicações conflitantes e demasiado determinadas que a sociedade dirige à arquitetura – seus patrocinadores, produtores e público – encontram-se ao mesmo tempo figuradas e reprimidas em sua forma. (HAYS, 2015, p. 359)

4

A Carta pode ser consultada no Anexo A deste trabalho.


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Tal afirmação não só apresenta a arquitetura em conexão direta com a sociedade como também reconhece certo aprisionamento em seu exercício, revelando a complexidade de sua prática e a necessidade de sua discussão constante. Que sujeitos as vertentes mais disseminadas da arquitetura atual ajudam a formar? Que histórias elas ajudam a escrever? A qual sociedade elas servem? E quais repressões elas são capazes de retaliar ou se prestam a reproduzir? Estas são algumas das interrogações apresentadas a quem agora vagueia no porão da Casa Ambiental. Elas são especialmente importantes quando se considera que os edifícios “não são oásis que se refugiam da história [...], e sim retransmissores num sistema cultural geral de gerenciamento, administração e manobra do afeto humano e do desdobramento histórico” (KWINTER, 2015, p. 67). A irresponsabilidade no tratamento deste sistema cultural e a negação do afeto ou sua usurpação por intenções mais relacionadas a componentes econômicas e mercadológicas do que ao fator humano em si pode culminar em efeitos históricos, econômicos e sociais distantes da vida cotidiana, do corpo e das ramificações mais subjetivas da arquitetura. Iazana Guizzo formula com contundência a preocupação com a dinâmica de intervenções atualmente predominante no ambiente urbano: O processo de construção das cidades, na maior parte das vezes, está vinculado ao acúmulo de dinheiro de alguns poucos (especulação imobiliária), ao trabalho quase escravo de outros (operários) e à inserção do futuro morador em um padrão muitas vezes desprovido de qualquer poética e sentido (consumidor). Parece que essa experiência hegemônica de construir as cidades se tornou um dos suportes para que a maior parte dos envolvidos nela perca sua autonomia, seja ela física ou espiritual. Isto é, a experiência de construção, nesse segundo caso, parece estar agenciada a um movimento de constrangimento da vida, de tristeza ou de morte, de desconexão da constituição dos territórios existenciais causada pela fixação da vida em modelos apriorísticos, que são também arquiteturais. (GUIZZO, 2018)

Estes modelos citados pela autora atraem especial atenção quando relacionados às afirmações de Guy Debord (1967) sobre a sociedade do espetáculo. O autor remete sua origem ao nascimento e ampliação das lógicas de consumo e de publicidade, que fazem desejar objetos, mercadorias e modos de vida muitas vezes esvaziados de sentido e desconectados das realidades locais/pessoais. Percebe-se que algumas vertentes da arquitetura atuam como agentes deste espetáculo, favorecendo a manutenção desta sociedade e a replicação por vezes alienada de


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modelos universais, quase sempre excludentes, importados de realidades frequentemente distantes dos contextos onde são reproduzidos, ajudando a replicar lógicas exploratórias e impessoais, distantes da profundidade existencial e desconectadas dos modos de vida da sociedade, padronizando-os e restringindo-os. Compreender o contexto atual da arquitetura como um campo ampliado marcado pela pluralidade de ações e pela complexidade das necessidades pede pela tomada de consciência a respeito de sua forte influência sobre a constituição das cidades e, por extensão, sobre a sociedade como todo. Entende-se que cabe aos/às arquitetos/as a opção por seguir reproduzindo estas lógicas ou invertê-las em nome de fazeres mais sensíveis e personalizados. Frente à responsabilidade implicada por uma arquitetura reconhecida de forma tão articulada e ao reconhecimento de sua pluralidade de valores e ações, destacam-se duas vertentes a serem aqui exploradas de forma mais pormenorizada: uma que relaciona a arquitetura à era da dissolução de fronteiras e a reconhece (e a exercita) como produto do mercado de imagens, afirmando sua vocação para o espetáculo, e outra capaz de revelar que, paralelamente à produção de arquitetura como bem de consumo despersonalizado, alienado dos contextos locais em nome de performances de produto, “existem indícios de uma inegável assimilação da vida urbana, da rua e da imaginação popular” (KWINTER, 2015, p. 66) em algumas expressões que se aproximam do cotidiano. Cabe realizar, então, uma reflexão mais aprofundada a respeito destas questões – que são apenas uma parte da agenda de discussões da arquitetura atual e que se apresentam aqui em forma de oposição dualista em nome da brevidade necessária para seguir desenvolvendo o raciocínio pretendido – investigando marcas do forte apelo imagético e espetacular e sua repercussão na relação entre arquitetura e vida cotidiana. 3.1.1. As Imagens e a Espetacularização Deparar-se com a noção da arquitetura enquanto campo ampliado favorece o entendimento de que ela “não é absolutamente tão simples quanto um edifício” (HAYS, 2015, p. 359). De fato, a União Internacional dos Arquitetos (UIA) sustenta que a arquitetura “usa conhecimentos de ciências humanas, ciências sociais e naturais, tecnologia, ciências ambientais, artes e humanidades” (UNESCO; UIA, 2011), diversificando sua abordagem e ampliando o alcance e responsabilidade de


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suas ações. Entretanto, verifica-se que “em vez de ser uma metáfora existencial vivida e incorporada [ecoando suas vertentes humanas e sociais, por exemplo], a arquitetura de nossos dias tende a projetar imagens apenas na retina, como se fossem fotografias de arquitetura, para a sedução ocular” (PALLASMAA, 2013, p. 119), revelando a força e predominância das vertentes arquitetônicas que focam mais nos aspectos formais e nos efeitos ópticos de suas produções. Acredita-se que parte da postura negligente com as componentes não-visuais exercida pela arquitetura atual dominante pode ser reflexo do fortalecimento das relações de consumo e do desenvolvimento do mercado de imagens que caracteriza a sociedade na história recente. Kwinter (2015, p. 66), por exemplo, afirma que “o design gráfico produziu uma revolução completa, mas ainda não plenamente reconhecida, pós-revolução do rock, só que desta vez para os olhos, e não mais para os ouvidos” em meados da década de 1980. No mesmo sentido, mas com uma distância temporal de quase cinquenta anos, Guy Debord também apontou o importante papel da imagem e da representação na sociedade que intitulou espetacular (DEBORD, 1967). Segundo o autor, o espetáculo está diretamente relacionado às lógicas de mercado e de produção, e se constitui como “uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD, 1967, p. 22). A arquitetura, como uma das principais produtoras de imagens de amplo acesso, não é imune neste sentido e, muitas vezes, exerce este papel de forma intencional. Este trabalho não tem o intuito de exorcizar a arquitetura espetacular; mas de exaltar a necessidade de seu tratamento atento, assim como a tomada de consciência sobre suas intenções. Acredita-se que, em determinadas situações, o espetáculo pode ser desejável e agregar valores, discussões e relações interessantes a casos específicos, entretanto, sua replicação despercebida e irrestrita revela-se perigosa e alienante. Ciro Pirondi (2016, p. 52) percebe os riscos implicados pela reprodução acrítica de arquiteturas espetaculares e salienta sua relação com o contexto sócioeconômico atual. Nas palavras do arquiteto, a “a competição toma conta do mundo. A eficiência é a palavra de ordem. Somos [referindo-se aos/às arquitetos/as] uma engrenagem constituída para produzir sem reflexão, sem questionamento” em nome da produtividade e do marketing pessoal e de produtos. Esta noção é apontada por Kwinter (2015, p. 68) como herança dos preceitos modernos, entendendo que “a arquitetura assumiu seu destino moderno como regime informacional orientado para


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ambientes performativos, protocolos e, in extremis, operações psicológicas”. Os ambientes performativos e as operações psicológicas remetem diretamente à ânsia pelo marketing e pelo espetáculo, no chamado regime informacional, usando a arquitetura como meio de promover instituições, ampliar o alcance de produtos e servir por vezes de pano de fundo estático e indiferente a operações de mercado. A característica protocolar, por sua vez, enfatiza a frieza de expressões pautadas por funcionalismos e rituais acríticos, que Luis Kahn já identificava como problemático no período moderno. Segundo ele, “uma das grandes deficiências da arquitetura, hoje, é que as instituições não estão sendo definidas, mas apenas dadas por um programa, e transformadas em um edifício” (KAHN, 2002). A padronização, a impessoalidade, o automatismo programa-edifício e a preocupação com a otimização de recursos acima das relações que os edifícios são capazes de estabelecer ou reprimir se expressam neste distanciamento entre construção e reflexão crítica, dando lugar a arquiteturas desconectadas de seus contextos e corpos. Esta postura tanto favorece, quanto é favorecida pela supervalorização da imagem. A

obra

de

Pallasmaa

aprofunda

este

entendimento,

detém-se

na

compreensão de seus efeitos e apresenta, especialmente, o distanciamento da condição humana como uma de suas principais problemáticas. Segundo o autor, “as imagens são convertidas em mercadorias infinitas fabricadas para postergar o tédio; os próprios seres humanos são mercantilizados, se consumindo de modo indiferente, sem ter a coragem ou mesmo a possibilidade de confrontar sua própria realidade existencial” (PALLASMAA, 2011, p. 33). Influenciada por este processo, a arquitetura dominante, em vez de exercitar um fazer “embasado na existência humana, [...] tem adotado a estratégia psicológica da publicidade e da persuasão instantânea; as edificações se tornaram produtos visuais desconectados da profundidade existencial” (PALLASMAA, 2011, p. 28). Entende-se que esta profundidade é abordada pelo autor como forma de evocar a componente humana, tratada tanto a nível subjetivo, quando são abordadas questões referentes à imaginação e aos significados que cada ser humano atribui às arquiteturas e imagens, quanto a nível mais objetivo, quando se explora o distanciamento do corpo na concentração exclusiva sobre a visualidade. Para Alfonso Martinez, criar uma arquitetura a partir das imagens oferece o risco de interiorizar o trabalho em seu autor, “que pode decidir solitariamente diante


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desse objeto, a ponto de acreditar que é somente seu" (MARTINEZ, 2000, p. 15). Isso se dá, em parte, porque ao criar o/a arquiteto/a evoca tanto imagens comuns, dominadas pela sociedade de forma geral, quanto trabalha com imagens pessoais, contagiando a produção com suas próprias memórias e heranças. É neste contato que se revela o risco de negligenciar imagens importantes para os corpos que usufruirão da arquitetura criada, uma vez que pode ocorrer um distanciamento entre criador/a e usufruidor/a. Pallasmaa complementa esta noção afirmando: É evidente que uma experiência de arquitetura profunda não pode advir de um conceito intelectualizado, de uma ideia formal abstrata, do refinamento compositivo ou de uma forma visual fabricada. Uma experiência de arquitetura comovente e revigorante surge da reativação das imagens ocultas em nossa historicidade. (PALLASMAA, 2013, p. 127)

O autor acredita na potência da arquitetura que é materialização de projeções mentais, resgate de referências afetivas e sensíveis, unindo objetividade e subjetividade

e

transcendendo

composições

exclusivamente

plásticas

e

excessivamente racionais. Assim, a questão da imagem na arquitetura pode operar tanto afastando corpos e edifícios, quanto aproximando-os, ou seja, tanto servindo à alienação, quanto à identificação pessoal. A preocupação com a imagem enquanto criação de objetos visualmente sedutores, propagandísticos e grandiosos, explorando somente o apelo visual espetacular é o que se entende aqui como o aspecto problemático do trabalho com a imagem na arquitetura. A subversão da significância afetiva, a negligência de imagens menores ou pessoais ou a sua adoção como estratégia de marketing ou dominação é o que deturpa a ideia da imagem como potencializadora de experiências significativas, agregadoras de corpos e arquiteturas, caracterizando uma espécie de imagem alienada que intenciona afastá-los. Não se trata, assim, de negar o apelo visual ou o trabalho com imagens, mas de englobá-los em um todo maior, combinados a outros sentidos e em nome de identificação, pertencimento, reconhecimento, e não de dominação ou constrangimento de repertórios pessoais. Acredita-se que esta tentativa seja, de qualquer modo, um esforço vão, uma vez que a experiência que relaciona a totalidade sensorial e as arquiteturas é inevitável. É o que insinua Pallasmaa ao afirmar que “uma edificação é encontrada, não apenas vista; ela é acessada, confrontada, adentrada, relacionada com nosso corpo, percorrida e utilizada como um contexto e uma condição para diversas


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atividades e coisas.” (PALLASMAA, 2013, p. 124). Assim, apesar de algumas práticas se desviarem desta noção, “em vez de criar meros objetos de sedução visual, a arquitetura [inevitavelmente] relaciona, media e projeta significados. O significado final de qualquer edificação ultrapassa a arquitetura” (PALLASMAA, 2011, p. 11), mesmo a espetacular, revelando sua extensão ao ser humano e à sociedade. Naturalmente, produções excessivamente focadas no apelo visual, podem inibir certas relações e confrontamentos, criando barreiras imateriais e gerando processos segregatórios, mas seja em maior ou em menor grau, a imersão corporal ocorre e é significativa para quem experiencia as arquiteturas. É neste sentido que o exercício arquitetônico focado exclusivamente na relação visual pode se converter em um "treinamento para a irrealidade" (MARTINEZ, 2000, p.24): é uma tentativa de negar a relação inevitável nascida no uso que é prerrogativa das produções arquitetônicas. Assim, percebe-se que a experiência, a totalidade sensorial e o corpo podem até ser reduzidos e manipulados em determinadas expressões, mas são partes indissociáveis da arquitetura. As tentativas de afastamento entre edifícios e corpos, de seleção de públicos e mercados e de restrição/controle de usos desenvolvem objetos arquitetônicos espetaculares, formas ousadas e, por vezes, obras icônicas intimidadoras e distantes. Elas desvelam a potência do apelo imagético e visual, e revelam que “a arte da visão, sem dúvida, tem nos oferecido edificações imponentes e instigantes, mas ela não tem promovido a conexão humana ao mundo” (PALLASMAA, 2011, p. 19), concretizando a hegemonia de produções que, especialmente a partir do período moderno, “tem abrigado o intelecto e os olhos, mas tem deixado desabrigados nossos corpos e demais sentidos, bem como nossa memória, imaginação e sonhos” (PALLASMAA, 2011, p. 19). Diretamente ligada ao desenvolvimento do consumo, do mercado de imagens e da espetacularização urbana, as vertentes dominantes da arquitetura atual denotam, assim, uma exploração desenfreada da visualidade em tentativas de afastamento entre corpo e arquitetura. Outras vertentes, entretanto, se desenvolvem superando a exclusividade da visão, valorizando a experiência e resgatando o corpo na arquitetura. Pallasmaa as reconhece apontando a possibilidade de se substituir as imagens aqui tratadas como alienadas e irreais exercitando a criação de imagens alternativas mais críticas e conectadas com a realidade preexistente e seus corpos. O arquiteto rebatiza tais termos separando-os em imagens fortes e imagens frágeis.


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3.1.1.1. Imagens Fortes e Imagens Frágeis A teoria das imagens elaborada por Juhani Pallasmaa é bastante pertinente na reflexão sobre a situação atual da arquitetura. Para o autor, uma imagem frágil se opõe a expressões espetaculares e distantes introduzindo questões mais humanas e abertas. Entende-se a partir de seu discurso que enquanto a imagem forte “aspira ao artefato perfeitamente articulado e final”, “uma gestalt frágil por outro lado, permite acréscimos e alterações, uma forma frágil possui tolerância estética, abre margem para mudanças” (PALLASMAA, 2013, p. 136) e, consequentemente, é mais receptiva à experiência e aos corpos. Acredita-se que esta tolerância estética também ecoa em uma flexibilidade social e humana, acolhendo diversas subjetividades e despindo-se de pretensões totalitárias frequentemente reproduzidas em imagens fortes, especialmente ao considerar que “a clareza da imagem frequentemente contém uma repressão oculta” (PALLASMAA, 2013, p. 136). Assim, intervenções e objetos arquitetônicos duramente definidos, por vezes intimidadores em função de sua grande escala, materiais pouco usuais no entorno e dinâmicas de uso restritivas podem ser entendidos como estratégias que ajudam a compor imagens fortes de arquitetura. Cabe ressaltar que as imagens são aqui abordadas como projeções mentais derivadas da apreensão das arquiteturas por seus experienciadores tanto em função de sua visualidade quanto das relações que permite, sugerindo usos, favorecendo determinados públicos e impactando diretamente os contextos. As imagens fortes, neste sentido, evocam especialmente o que até então foi chamado de imagens alienadas ou irreais, arquiteturas grandiosas e icônicas que, na maioria das vezes, servem a interesses ligados a estratégias econômicas, ao marketing, e a instituições privadas. A título de exemplo, apresenta-se como imagem forte na produção recente de arquitetura, o Museu Guggenheim de Bilbao (1991-1997), projetado pelo arquiteto Frank Gehry. O edifício se expressa a partir de uma forma ousada que se destaca do entorno tanto a partir da organicidade de suas curvas e das propriedades visuais de seu material de revestimento – as brilhantes chapas de titânio –, quanto de sua escala (Figura 2). Embora sejam feitas alusões entre a forma de referências navais do Museu e seu entorno portuário ou entre os materiais metálicos e o caráter industrial da área, acredita-se que a robustez da estrutura e os efeitos dramáticos de


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seus revestimentos e formas (Figura 3) não sugerem uma integração tão harmônica. As motivações que nortearam a construção do Museu na cidade e, especificamente, na região, entretanto, justificam com maior ênfase seu repertório formal, sua escala e seu sentido, uma vez que o edifício assume grande relevância dentro de um plano de revitalização da área portuária anteriormente degradada de Bilbao. Segundo Joana Oliveira (2012, p. 104), a cidade espanhola visava “deslocar sua estratégia do setor industrial para o setor terciário de serviços, transformando Bilbao num importante centro turístico e cultural”. Assim, a prerrogativa para a construção do Museu que motivou a aproximação entre a municipalidade e a Fundação Guggenheim foi a criação de um marco não só urbano, mas mundial, fundando um forte ícone arquitetônico e midiático. Nas palavras de Kwinter (2015, p. 68) “em 1997, em Bilbao, entre as maquinações de um interminável jogo de xadrez político, ergueu-se um edifício de inegável beleza e exuberância perante um mundo faminto, embora cético”. O autor referencia as motivações políticas e as estratégias econômicas que motivaram sua construção e reconhece como o contexto da época e a expressividade da forma arquitetônica favoreceram sua recepção, relatando que “o desvelamento do monstruoso objeto dançante de Bilbao, como um tremeluzir elétrico no horizonte aterrorizante do século XXI, foi saudado com uma histeria que evocava nada menos que uma visitação mística” (KWINTER, 2015, p. 68), comentando o grande fluxo de visitas que o Museu atraiu no período. Entretanto, para o autor, a atração operada pela obra deveu-se mais à repercussão midiática do que à qualidade do edifício que, para ele “é no máximo um espetáculo lírico de son et lumières sobre um tema clássico muito batido” (KWINTER, 2015, p. 69).


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Figura 2 – Frank Gehry, Museu Guggenheim de Bilbao: o Museu e seu entorno

Figura 3 – Frank Gehry, Museu Guggenheim de Bilbao: forma e materiais

Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/786175/ classicos-da-arquitetura-museu-guggenheimde-bilbao-gehry-partners

Fonte: http://radames.manosso.nom.br/arquitetura/ culturais/museu-guggenheim-bilbao/

Simone Neiva e Rafael Perrone, por outro lado, demonstram uma maior simpatia pelo empreendimento e afirmam de forma consciente, porém otimista: O museu deixa de ser um repositório de obras e objetos e de funções educativas e, no caso de Bilbao, torna-se uma filial ou franquia de um empreendimento cultural; ao mesmo tempo em que vê reduzidas suas funções anteriores, amplia seu programa como incentivador, catalisador e promotor urbano, requalificando seu entorno [...]. (NEIVA; PERRONE, 2013, p. 106)

Acredita-se que a ideia de encarar um edifício museológico como forma de transcender o suporte e ampliar a experiência artística a partir de um tratamento crítico que supera a figura do museu como repositório é bastante potente e relevante. Entretanto, a intenção de explorá-lo sob o título de “empreendimento cultural” contradiz esta interpretação. A própria noção de requalificação do entorno a partir da exploração do turismo e da atração de investimentos voltados ao setor privado revelam-se ideias menos comprometidas com o caráter cultural, uma vez que poderia valorizar as preexistências locais em vez de abrir-se de forma tão entusiasmada a interferências externas e mais ligadas à criação de um produto de mercado. Desta forma, a visão dos autores insinua um certo romantismo na análise do edifício que esbarra na noção da arte como bem consumível e dos museus como objetos de entretenimento (OLIVEIRA, 2012, p. 110), em vez de espaços capazes de favorecer o reconhecimento de tensões sociais, questionamentos pessoais e ativações críticas tão exploradas nas expressões artísticas contemporâneas. Joana


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Oliveira coloca-se ao lado de Kwinter e assume uma postura mais crítica na análise desta arquitetura: [...] o grande destaque atribuído a este edifício a nível arquitetônico encontra-se, sobretudo, na demonstração clara da serventia a uma sociedade capitalista e superficial, através da carga simbólica e monumental. Convertido no principal símbolo do século XX e que se mantém neste início de novo século, afirma-se como marco urbano tradutor de uma contemporaneidade marcadamente midiática. (OLIVEIRA, 2012, p.123)

É neste momento que se faz pertinente a distinção elaborada pela autora entre dois tipos básicos de museus contemporâneos: o museu ícone e o museu silencioso, que podem ser relacionados de forma direta às imagens fortes e frágeis da arquitetura, respectivamente. Os museus ícones, dos quais o Guggenheim de Bilbao é uma das principais expressões, baseiam-se na criação de uma “obra de arte total” (OLIVEIRA, 2012, p. 111), configurando monumentos urbanos escultóricos e espetaculares. Para a autora, é “através da imagem formalmente apelativa, uma monumentalidade impositiva, a linguagem própria, o cunho de „autor‟ e a busca pelo „diferente‟ e pelo nunca antes visto” (OLIVEIRA, 2012, p. 117) que o Museu Guggenheim de Bilbao e os museus ícones se constituem. Os museus silenciosos, por outro lado, baseiam-se mais nas interpretações sensíveis dos contextos de intervenção e em expressões respeitosas e integradas a seus lugares, como “alegorias da neutralidade” (OLIVEIRA, 2012, p. 151). Embora tal ideia remeta ao tipo de cubo branco, redução fortemente explorada em museus modernos que levam a neutralidade a um extremo, acredita-se que ela evoca, no caso do Museu Guggenheim de Bilbao, um tratamento mais delicado de seu entorno e de sua população, preservando-os e potencializando-os. Inúmeras expressões fortes, frágeis e mesmo intermediárias de arquiteturas de museus podem ser acessadas no contexto atual e acredita-se que sua pluralidade seja desejável e enriquecedora. Conforme citado anteriormente, não se trata de condenar as expressões fortes ou espetaculares, pois é possível reconhecer que há casos em que elas são pertinentes e agregam potência tanto a seu contexto urbano, quanto a suas dinâmicas expositivas e de vivências artísticas. O que se reconhece enquanto problemático aqui é o tratamento negligente com as preexistências locais ocorrido em Bilbao em nome de uma ação segregadora regida por estratégias mercadológicas que acabou por descaracterizar completamente seu contexto.


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O Guggenheim de Bilbao, entretanto, não é somente espetacular. Interiormente, em oposição aos fortes estímulos presentes em seu exterior, apresenta uma configuração mais clara e fluida em espaços banhados de luz natural. Eles permitem diversos percursos e pontos de vista em uma atitude menos determinista, enriquecendo a experiência arquitetônica ao valer-se do interior do edifício como potencializador das expressões artísticas em vez de expressão artística total em si. Exemplo disso também pode ser encontrado na obra “The Matter of Time” (Figura 4 e Figura 5) de Richard Serra, a qual integra o acervo permanente do Museu. Ela é composta por grandes chapas curvas de aço cortén que, assim como a forma ousada do edifício que as abriga, também são frutos de intenso estudo formal e de desempenho estrutural. Entretanto, a completude da obra não se esgota aí, mas revela-se mais em sua experiência dinâmica – o andar entre as chapas que sugerem caminhos ora amplos, ora enclausurados, por vezes lineares e, em outros casos, labirínticos – do que em sua contemplação passiva. Assim, acredita-se que o Museu que externamente se constitui como uma das maiores expressões da espetacularização urbana contemporânea e das imagens fortes na arquitetura, internamente ensaia uma procura por imagens mais frágeis e relações mais significativas. A diluição da autoria da obra que passa a ser composta e reinventada pelos corpos que a adentram e da potência visual da forma transferida à experiência são os princípios que aproximam os interiores do Guggenheim de Bilbao e a obra de Richard Serra a expressões de imagens mais frágeis. Identifica-se, desta forma, a definição de imagens fortes e frágeis a partir de princípios de oposição: enquanto uma é rígida e espetacular, a outra tolera – e, por vezes, anseia por – transformações; enquanto uma valoriza a macroescala, a outra se detém aos microacontecimentos; enquanto uma serve mais ao valor econômico, outra se atém aos valores humanos; enquanto uma representa valores, instituições, a outra desconstrói e escapa a representações fechadas e hegemônicas. Assim, acredita-se que a produção de arquiteturas excessivamente definidas e nas quais o forte apelo visual distancia o comprometimento com o humano-total (ou seja, com a sensorialidade enquanto todo), pode ser equilibrado com produções mais críticas, balanceando definições e indefinições – aqui entendidas como flexibilidade ou aberturas a diferentes usos, corpos e experiências – com a concepção de arquiteturas frágeis, ou seja, “contextuais e responsivas”, preocupando-se com “a interação sensorial e não com as manifestações idealizadas e conceituais”


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(PALLASMAA, 2013, p. 133), ao contrário do exercício padrão que predomina nas práticas atuais. Cabe ressaltar que, apesar de seguir a terminologia definida por Pallasmaa, acredita-se que as imagens frágeis são, por vezes, muito mais fortes em suas relações do que as imagens fortes propriamente ditas, mas respeita-se a postura do autor que as nomeia segundo seus efeitos visuais e contextuais. Figura 4 – Richard Serra, “The Matter of Time”: Figura 5 – Richard Serra, “The Matter of Time”: Vista Vista superior do experienciador

Fonte: http://atraves.tv/esculturas-gigantes/

Fonte: http://atraves.tv/esculturas-gigantes/

Junto com a exploração irrestrita do apelo visual característico das expressões fortes de Pallasmaa, há que se considerar a influência dos meios de representação na criação das arquiteturas e de suas imagens. Percebe-se que o avanço da tecnologia e dos softwares voltados para o campo em questão tenta caminhar

no

sentido

de

facilitar

modelagens

e

pré-dimensionamentos,

disponibilizando bibliotecas, extensos acervos, acesso a dados climáticos, demográficos, morfológicos, entre outros. Entretanto, o trabalho criativo mediado pelo computador é um assunto extremamente delicado que também pode, segundo Pallasmaa (2011, p. 12) “reduzir nossa magnífica capacidade de imaginação multissensorial, simultânea e sincrônica, ao transformar o processo de projeto em uma manipulação visual passiva”. Assim, percebe-se que eles podem acabar favorecendo a criação de imagens fortes, sugerindo que a relação entre arquitetos/as e seus instrumentos de criação ainda tem muito a evoluir. A este respeito, Alfonso Martinez afirma: O problema dos meios de representação em Arquitetura está contido na questão de como utilizá-los para nossos fins, sem sermos levados a fazer apenas o ótimo para este meio. A planta exerceu uma extrema fascinação como instrumento para a distribuição, ao custo de ter transformado a composição em distribuição, esquecendo o restante da arquitetura para projetar edifícios como se fossem distribuições com envoltórios. (MARTINEZ, 2000, p. 47)


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Reafirma-se, a partir deste discurso, que os meios de representação também podem influenciar diretamente a capacidade imaginativa e a concepção de imagens na arquitetura. Além disso, a exclusividade dos instrumentos também pode influenciar criações capazes de priorizar excessivamente um aspecto em detrimento dos vários outros que compõem a arquitetura. É neste sentido que Martinez (2000, p. 47) enuncia: “cada arquitetura traz as marcas dos meios pelos quais foi projetada”. O autor acredita que a perspectiva futura para os meios de representação pode fazer referência ao seu uso combinado, buscando a compensação dos limites de um a partir das possibilidades dos outros a fim de afirmar o domínio humano sobre eles, no lugar da relação inversa que por hora predomina. A partir desta reflexão torna-se possível afirmar que a arquitetura pode expressar-se de várias maneiras, mas que “entre elas não está a neutralidade, a inocência”

(MARTINEZ,

2000,

p.

47),

e

que

tomar

consciência

dos

condicionamentos que seus meios (tanto no sentido de instrumentos de criação, como enquanto entorno físico, social e econômico) denotam é essencial para evitar o favorecimento de fazeres alienados e da proposição de relações excludentes – estritamente formais ou exageradamente técnicas, por exemplo – acima das relações de todo capazes de potencializar as expressões arquitetônicas. Entendida enquanto processo de criação que, em função das dinâmicas atuais foi temporariamente convertida em instrumento publicitário, a representação pode ser encarada criticamente e usada “para ultrapassar seus limites e alcançar a própria arquitetura” (MARTINEZ, 2000, p. 49). A partir disso, vislumbra-se a possibilidade de valorizar o que o mesmo autor chama de “experiência real do edifício”, assumindo o papel transformador da arquitetura que não serve (só) ao mercado, mas especialmente aos seus experienciadores. Assim, acredita-se que um uso combinado de instrumentos de representação e uma mediação crítica de interesses e preexistências podem favorecer exercícios mais equilibrados e conscientes de criação de imagens, restituindo à arquitetura valores experienciais e corporais em uma atitude bastante pertinente a correntes da atualidade interessadas em preservar a pluralidade de vertentes arquitetônicas. Nesta oscilação entre força e fragilidade, entre espetacularização e neutralidade, percebe-se que a arquitetura atual vibra com(o) o porão da Casa Ambiental. E que quem agora o visita, revela-se como o/a arquiteto/a capturado/a


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nas reflexões de Deborah Berke (2015, p. 63); como aquele/a que “não pode se fazer de ingênuo. A arquitetura não é inocente” e, por vezes, segue criando imagens fortes e espetacularizadas excluindo as possibilidades de desvendamento, negando a vibração aqui reconhecida, separando-se do corpo e alienando-se de suas potências sensoriais que ultrapassam o visual. A mesma autora chama, então, à reflexão: “O que os arquitetos deveriam fazer, em vez disso? Resposta simples e direta: reconhecer as necessidades da maioria e não da minoria; atender à diversidade de classe, raça, cultura e sexo; projetar sem se prender” (BERKE, 2015, p. 59), ou seja, permitir-se contagiar pelos contextos, aproximar-se do cotidiano e dominar seus meios para expressar de forma contundente o necessário para cada caso. É neste momento que se revela uma vertente capaz de ser tanto resistência à arquitetura alienada, irreal ou forte, quanto possibilidade de exercício de uma arquitetura frágil, crítica e contextualizada: a arquitetura do cotidiano aparece como potência

dissonante

da

vertente

arquitetônica

dominante

espetacularização. 3.1.2. A Arquitetura do Cotidiano Figura 6 – Cartão postal 02: A casa-vibrátil

Fonte: Produzido pela autora

marcada

pela


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Deborah Berke e Martinez responsabilizam os/as arquitetos/as pelos processos que caracterizam a situação atual de sua profissão em função das condutas que escolhem seguir. Entende-se que uma conduta necessária e pertinente ao momento seja a aproximação ao cotidiano e que o processo de profissionalização em arquitetura é essencialmente importante nesta definição, caracterizando-se como um dos pontos a ser abordado na formação de novos/as arquitetos/as. Martinez aponta que esse processo tem seguido, na maioria dos casos, uma lógica de divinização na qual “o arquiteto restringiu-se a copiar o projeto de um edifício completo que estava em sua mente. Essa fantasia tende a ocultar a verdadeira especialidade do trabalho de projetar" (MARTINEZ, 2000, p. 13) e se relaciona ao entendimento da formação em arquitetura como algo que finaliza após determinado período, em detrimento da compreensão de que o aprendizado nesta área é constante e ininterrupto – como são as dinâmicas sociais e urbanas e o desenvolvimento da tecnologia, dos materiais, do ser humano, etc. Assim, percebese que a discussão sobre os atuais processos de projeto, profissionalização e produção de imagens na arquitetura pode basear-se em uma linha muito tênue que separa a criação responsável e comprometida com seu contexto de intervenção do produto pré-concebido herdado da cultura de divinização que negligencia os processos e as trocas necessárias a um projetar mais horizontal e próximo do cotidiano. Entende-se que estes processos fazem parte de um momento no qual “a arquitetura

passou

por

uma

importante

ressignificação”

(GUIZZO,

2018),

especialmente no que diz respeito à “quebra do paradigma científico no qual o movimento moderno se apoiou amplamente e os efeitos dos seus conjuntos construídos entre guerras” (GUIZZO, 2018), tornando inevitável o questionamento das ideias universais e de processos de projetos baseados em modelos estabelecidos a priori. Mas, quando este questionamento se iniciava, reconhecendo as problemáticas dos exercícios baseados em preceitos rígidos e do endeusamento dos/as

agenciadores/as

da

arquitetura,

seguiram

outras

problemáticas,

especialmente despertadas pela sociedade da imagem. Dentre elas destacam-se as estratégias de marketing que simulavam uma aproximação com as pessoas e seus contextos para cooptar modos de vida e transformá-los em objetos de consumo e desejo. Assim, no processo de ressignificação da arquitetura, há que se considerar a aproximação ao cotidiano a partir de dois pontos principais: o que o favorece e


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valoriza em essência e o que atua deturpando-o. É neste sentido que facilmente se confunde o marketing de sucesso com a cultura popular, quando na realidade “a substituição do comum pela marca não era uma transformação inocente do cotidiano, e sim a usurpação do cotidiano pela publicidade” (BERKE, 2015, p. 62). Para

que

a

arquitetura

não

atue

da

mesma

forma,

enunciando

demagogicamente um preceito para subvertê-lo, entende-se que cabem reajustes de conduta fomentando aproximações mais conscientes com o cotidiano. Entende-se que elas ainda são tímidas e geram certas resistências nas correntes mais conservadoras, entretanto, apóia-se a ideia de Thibaud (2012, p. 6) de que “nos detalhes mais comuns da vida urbana, é revelada toda a sensibilidade de uma era”. É possível exaltar, a partir desta noção, a intransigência de se prosseguir negando ou corrompendo estas sensibilidades, a vida cotidiana e seu extenso repertório de imagens frágeis abertas ao corpo, a reinterpretações e a expressões conectadas e aderidas. Juhani Pallasmaa (2013, p. 20) sugere que uma das funções mais importantes da arquitetura neste momento pode ser a de “articular o encontro do mundo com a mente humana”, em conexão direta com a sociedade, entretanto, verifica-se que “apesar do número impressionante de contribuições excepcionais, por vezes, espetaculares da nossa profissão, o percentual do ambiente construído atualmente, que foi projetado e construído por arquitetos e urbanistas, é surpreendentemente baixo” (UNESCO; UIA, 2011). Assim, vislumbra-se a abertura a um pensamento crítico sobre a arquitetura do cotidiano, não para diminuir as produções populares na pretensão ilusória de transferir toda a produção arquitetônica para arquitetos/as, mas para aproximar as ações destes/as de necessidades, corpos e imagens reais, ampliando seu alcance e pertinência. Acredita-se que esta ampliação possa ajudar a compreender melhor as dinâmicas urbanas e sociais e as necessidades delas advindas, favorecendo expressões capazes de aliar necessidades humanas e técnicas, saberes científicos e empíricos, objetividade e subjetividade. Neste sentido, a atenção ao cotidiano aparece como potência capaz de interferir na cultura arquitetônica favorecendo ações menos verticalizadas, esboçando uma perspectiva de ação diferenciada da atuação dos/as arquitetos/as de imagens fortes. Paola Jacques sugere que, no sentido oposto da realização de grandes obras espetaculares – nas quais o apelo visual e as imagens fortes são evidenciados –, o papel do/a arquiteto/a atual pode residir em microintervenções que


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respeitam seu contexto físico e social e reconhecem suas dinâmicas preexistentes, por exemplo. A autora afirma que no caso das favelas, as ações dos/as arquitetos/as podem se dar “seguindo o processo e a estética [...] iniciados pelos favelados, a despeito da lógica preconizada por arquitetos, urbanistas e planejadores em geral” (JACQUES, 2003, p. 142). Esta seria uma maneira de aliar saberes, visões de mundo, formalidade e informalidade, equilibrando espetáculo e cotidiano. Mas o que seria, então, uma arquitetura do cotidiano? Primeiramente, há que se esclarecer os pontos que a distinguem e a aproximam de uma arquitetura dita popular: este termo é aqui utilizado como sinônimo da arquitetura do cotidiano referenciando expressões concebidas por nãoarquitetos/as, e não estandardizando/folclorizando determinados repertórios. A partir deste entendimento, é possível perceber que tipo de tratamento uma arquitetura do cotidiano dá a expressões populares. Martinez (2000, p. 101) identifica que, “apesar das variações nos modos de produção, os procedimentos projetuais da arquitetura popular sobrevivem e que esta constitui, como em todas as épocas, a maior parte das atividades edilícias”. O autor relata que as expressões populares de arquitetura, em função desta sobrevivência, despertam historicamente o interesse dos/as arquitetos/as, mas que este se restringe, por vezes, a questões como a integração visual ao entorno e o emprego de técnicas e materiais econômicos e eficientes. São identificados, nestes princípios que remetem ao emprego de materiais locais e ao trabalho com a topografia natural, meios para minimizar custos e facilitar a absorção de determinadas imagens. Entretanto, o interesse dos/as arquitetos/as pela arquitetura popular raramente transcende estas questões. Em oposição a este entendimento restrito, a Carta para Educação dos Arquitetos enuncia que um dos objetivos da formação na arquitetura remete à “compreensão das relações que existem entre as pessoas e espaços arquitetônicos e, entre estes e o seu ambiente (entorno)” e ao papel do/a arquiteto/a “no desenvolvimento de diretrizes que levam em conta fatores sociais” (UNESCO; UIA, 2011). Assim, a UIA sugere “a incorporação da arquitetura não oficial à nossa disciplina: não como modelo de economia de materiais, da poesia da pobreza, mas como provedora de novas imagens com as quais introduzir variantes em nossos repertórios (MARTINEZ, 2000, p. 81)”. Embora a questão de reproduzir repertórios imagéticos possa aludir a meras aproximações formais, favorecendo reproduções esvaziadas de conteúdos e fomentando estratégias de absorção de expressões


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pouco conectadas a outras questões além das plásticas e visuais, acredita-se que esta afirmação é importante em função da abertura a novas linguagens e do apelo ao reconhecimento de outras dinâmicas que fogem ao domínio do que é proposto exclusivamente por arquitetos/as, auxiliando nas discussões sobre a incorporação da alteridade na arquitetura. Resistindo à apreensão de imagens enquanto aspecto meramente visual e imergindo na arquitetura popular de forma mais intensa e profunda, negando sua normatização, Deborah Berke, de forma bastante didática e informal afirma que a arquitetura do cotidiano pode ser aquela que resiste a “definições estritas; qualquer tentativa rigorosa de delineá-la de maneira concisa levará inevitavelmente a contradições” (BERKE, 2015, p. 59). Assim, mais do que dizer que uma arquitetura do cotidiano obedece a determinados preceitos, pauta-se a partir de uma metodologia rígida ou se expressa com base em certo repertório formal/material, pode-se dizer que ela trabalha com imagens frágeis, abrindo-se a interferências e a atualização constante, em um processo de construção que nunca se encerra por completo, uma vez que acompanha as necessidades humanas, sociais e culturais sempre transformáveis. Assim, mais do que revelar-se a partir de diagnósticos, quantitativos, observações e demais avaliações frias e distantes, acredita-se que a essência de uma arquitetura do cotidiano pode se manifestar especialmente pela vivência. Uma das questões mais importantes na aproximação com o cotidiano ou na valorização da arquitetura popular pode ser, portanto, o apelo corporal.


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3.1.2.1. O Apelo Corporal-Total Figura 7 – Cartão postal 03: A casa-corpo

Fonte: Produzido pela autora Em arquitetura, os critérios do bom gosto parecem ditar que a presença do corpo não seja reconhecida nos ou pelos edifícios. As fotos de arquitetura raramente mostram pessoas, e o verdadeiro usuário é muitas vezes ignorado pelo arquiteto. O resultado é a esterilidade. A presença visceral não pode ser negada. (BERKE, 2015, p. 61)

Esta afirmação de Deborah Berke denota o afastamento entre a arquitetura e os corpos que parecem macular sua espetacularidade. Na arquitetura do cotidiano, entretanto, a presença visceral revela-se uma das principais características. Percebe-se que as produções populares denunciam um uso, um corpo que existe e se relaciona com a arquitetura seja evidenciando a funcionalidade ou a subjetividade. Segundo Iazana Guizzo (2018), “é nesses termos que uma casa


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popular pode ser mais parecida com uma obra prima do que uma casa desenhada por um arquiteto diplomado”. A autora ainda complementa que, em sua produção e uso, está presente uma questão de afeto: “as relações que constituem uma morada estão entrelaçadas aos corpos que a habitam. E esse entrelaçamento não cumpre apenas uma função [...]. Ela também possui o seu poder de afetar e de ser afetada” (GUIZZO, 2018) uma vez que possibilita ou constrange distintos modos de ser e estar. Assim, o corpo surge na arquitetura popular tanto em sua dimensão física quanto mental, tanto sensorial quanto sentimental e se revela especialmente importante na reflexão sensível e crítica de Juhani Pallasmaa. O autor chega a formular o afastamento entre corpo e arquitetura como uma patologia: [...] a falta de humanismo da arquitetura e das cidades contemporâneas pode ser entendida como consequência da negligência com o corpo e os sentidos e um desequilíbrio de nosso sistema sensorial. O aumento da alienação, do isolamento e da solidão no mundo tecnológico de hoje, por exemplo, pode estar relacionado à certa patologia dos sentidos. (PALLASMAA, 2011, p. 17)

Entende-se que o desequilíbrio dos sentidos referencia a problemática da ênfase excessiva na visualidade, único sentido valorizado no corpo esquartejado pelas vertentes dominantes da arquitetura atual, e encontra-se no apelo corporal “total”, ou seja, na consideração do corpo enquanto totalidade sensorial na qual um sentido complementa o outro de forma a tornarem-se indissociáveis, um caminho para reverter a patologia identificada por Pallasmaa. Entende-se que a “arquitetura dos arquitetos” distancia-se historicamente das necessidades cotidianas a partir do afastamento com o corpo-total, chegando a um ponto no qual “algumas das formas mais admiradas pelos profissionais são aquelas mais rechaçadas pelos usuários” (MARTINEZ, 2000, p. 145). É neste momento que se percebe a potência do caráter vivencial na produção e na fruição da arquitetura: A autonomia do projeto, como substituto da arquitetura vivida, alcança seu ponto máximo nas faculdades de Arquitetura. O estudante separa-se do entorno construído que conhece e habita; este é, por hipótese, má arquitetura. A experiência vivida não pode suavizar a rigidez dos modelos da boa arquitetura moderna. O arquiteto formado deste modo tem por objetivo impor à realidade uma arquitetura paralela, a Arquitetura de Arquitetos [...]. (MARTINEZ, 2000, p. 81)

O exílio cômodo e autoimposto dos/as arquitetos/as que se colocam distantes da vida cotidiana por vezes renega o valor do vivencial na arquitetura. À distância, o


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corpo do/a arquiteto/a fica confortavelmente reduzido à visão e, sendo este o único corpo que ele/a conhece, pressupõe que todos os outros também se pautem nesta redução. Entretanto, Pallasmaa (2011, p. 10) afirma que o sentido da visão é apenas uma especialização do tato, sentido que predomina no corpo e caracteriza seu sistema sensorial como um todo incapaz de ser separado. Em nome da vivência, entende-se que há que se redescobrir o corpo, restituí-lo em sua completude de sentidos, e assumir o corpo do/a arquiteto/a também como elemento ativo, sensível e aberto, imprescindível na fruição e na criação de arquiteturas conscientes e próximas do cotidiano. Paola Jacques enfatiza em seu livro “Estética da Ginga”, que a obra e a vida de Hélio Oiticica, especialmente após seu contato com o cotidiano do Morro da Mangueira (Rio de Janeiro, década de 1960), assim como a arquitetura das favelas, são um alerta para possibilidades de um fazer arquitetônico alternativo baseado na vivência direta e no reconhecimento da diversidade. A flexibilidade, o dinamismo e o centro no corpo são alguns dos conceitos que se delineiam em seu discurso no intuito de esboçar a ideia de que o ato de projetar a partir de vivências “é, com efeito, sempre uma questão de alteridade” (JACQUES, 2003, p. 55). A autora coloca que nas favelas a assinatura dos/as arquitetos/as é substituída por um fazer coletivo e orgânico, de desenvolvimento constante, introduzindo a noção da cidade não enquanto organização estática que museifica objetos e se afasta da componente humana, mas enquanto organismo mutável e diverso que está em constante transformação. Acredita-se que a atenção a estes aspectos pode auxiliar na compreensão da complexidade do espaço urbano (essencialmente humano), ultrapassando sua análise meramente morfológica – que não é dispensável, mas tampouco absoluta –, e diluindo a questão da autoria ao reconhecê-lo enquanto construção coletiva. Não é à toa que Pallasmaa coloca que “o trabalho criativo exige uma identificação corporal e mental, empatia e compaixão” (PALLASMAA, 2011, p. 12). Acredita-se, então, que o caráter vivencial – amplamente exercitado por Oiticica, conforme exposto em breve – pode ser incentivado na experiência dos/as arquitetos/as, auxiliando na superação da patologia dos sentidos e do afastamento entre a sua arquitetura e a arquitetura do cotidiano ao incitar o contato com a própria vida urbana, as necessidades reais e humanas – mais do que formais e mercadológicas –, a construção de uma relação forte e íntima com o contexto de


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intervenção e a empatia entre os/as produtores/as do espaço em sua composição coletiva. Não se trata de postular que todos/as os/as arquitetos/as devam agir em um único sentido, mas que a consciência da alteridade seja exercitada a fim de evitar fazeres alienados que replicam lógicas de dominação desfavorecendo a diversidade que caracteriza e enriquece os espaços públicos. O apelo corporal-total favorecido pela arquitetura do cotidiano é exposto aqui, então, como forma de atentar para a experiência humana; as inúmeras possibilidades de vivências, relações, afetos, sentidos e significados inerentes à vida que integram o campo ampliado da arquitetura. Talvez ela também possa ser acessada por outros meios, mas a experimentalidade oiticiquiana, o caráter ambiental de sua obra e sua própria postura de vivenciador, inspiram este pensar.


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3.1.3. Dissonâncias e Convergências Figura 8 – Cartão postal 04: A casa-vivência

Fonte: Produzido pela autora

Considerar a arquitetura como campo ampliado, segundo apontado por Anthony Vidler (2015), revela inúmeras dissonâncias e convergências tanto entre suas vertentes atuais, quanto em relação às discussões sobre arte. A principal dissonância explorada neste estudo alude à distância existente entre a arquitetura espetacular de imagens fortes e as expressões cotidianas de imagens frágeis nas quais o corpo parece ter (mais) lugar. Ela denota grande proximidade com as discussões sobre arte, aludindo ao afastamento entre proposições excessivamente rígidas e experimentos mais desintelectualizados especialmente problematizado por Hélio Oiticica. A partir da dissonância observada, então, identifica-se uma convergência entre campos e ações interessante para a construção desta discussão. Naturalmente, há que se enfatizar que ela é proposta por uma arquiteta e orientada por outro arquiteto, o que faz com que o interesse maior no estudo da obra de Hélio Oiticica recaia sobre questões diretamente relacionadas com espaço, corpo, ambiente e sociedade. Estudos expandidos sobre princípios que extrapolam esta abordagem podem carecer de bibliografias complementares. Tendo este foco em vista e atendo-se especialmente à convergência recém citada, é possível


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destacar dois pontos principais passíveis de antecipação para que a leitura dos tópicos seguintes seja respaldada por certo direcionamento: um deles trata da relação existente entre as imagens fortes e frágeis na arte e na arquitetura e o outro alude ao aspecto vivencial de algumas proposições artísticas referenciando potências que podem ser exploradas na arquitetura. A proximidade existente entre as áreas no primeiro ponto apresentado se revela especialmente quando se percebe que a fixidez das imagens espetaculares da arquitetura atual ecoa ao menos em parte a rigidez das formas artísticas do final dos anos 1950. Estas formas foram questionadas pela vanguarda artística brasileira, da qual Oiticica fez parte, agenciando movimentos de desinstitucionalização da arte a fim de abri-la para expressões mais frágeis (aludindo à teoria das imagens de Pallasmaa), passíveis de interferências e recriações. Inicialmente pautadas pela manipulação, estas expressões se desenvolveram no sentido de uma abertura completa, fundindo objeto e sujeito, transcendendo a ideia de mediação e desconstruindo a figura do artista em exercícios constantes de criação (coletiva) de imagens. Oiticica passou a basear sua produção em trocas dinâmicas capazes de entrelaçar objeto e experienciador a partir do corpo, das sensações e da vivência, enquanto as obras mais tradicionais restringiam-se a uma relação mais distante e menos incorporada, explorando de forma quase exclusiva o contato visual. Exemplo claro da relação convencional das obras de arte é o que acontece com a Monalisa, de Leonardo da Vinci, no Museu do Louvre (Figura 9): um cordão de isolamento impede a aproximação dos observadores e uma chapa de vidro disposta na frente do quadro dificulta sua apreciação de determinados pontos de observação. Assim, é estabelecida uma relação de distanciamento tanto a nível físico, quanto metafórico, constituindo uma imagem forte tanto da arte como um todo, quanto desta obra que a representa. É perfeitamente compreensível que este cuidado seja tomado haja vista a magnitude da obra em questão, entretanto, do ponto de vista da experiência, este arranjo reafirma o mito do distanciamento da arte, produto da genialidade artística e, muitas vezes, inalcançável. O corpo que se relaciona a este objeto constitui-se como um ser distante, quase um voyeur que admira o aristocrático mito, ou seja, em boa parte das vezes, o corpo que se depara com uma imagem forte de arte é o corpo espectador.


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Figura 9 – Exposição da Monalisa no Louvre: o corpo espectador

Fonte: https://bjella.com/sketched-and-sketching-in-firenze/mona-lisa-at-the-louvre/

A Monalisa no Louvre constitui-se como testemunho de uma genialidade, de uma época e de um determinado sistema social/econômico/artístico e afirma seu valor mais como patrimônio do que como pintura: para análises profundas sobre composição, cores, pinceladas, os livros e reproduções digitais da obra podem oferecer uma experiência ironicamente mais próxima do que a vivência direta em seu contexto. Assim, o que se identifica nesta análise é que a Monalisa repousa no Louvre como metáfora do sistema tradicional da arte, que constitui imagens fortes especialmente ao valorizar mais o objeto do que a experiência ou mais a relação visual distante do que a imersão vivencial e o contato direto. Não se pretende desprezar, neste discurso, o valor histórico ou patrimonial da obra ou mesmo questionar as intenções de Leonardo e o formato de seus trabalhos. Entende-se que eles fazem parte da obra e que são expressões de seu tempo. O que se tensiona, aqui, é a relação que o arranjo expográfico atual estabelece, reforçando as heranças de uma tradição artística de imagens fortes que, em experimentações mais recentes, são tensionadas. Neste sentido, a obra de Hélio Oiticica passa a dispensar cordões de isolamento e superfícies/comportamentos polidos: em oposição ao realizado na Monalisa, exercita, reafirma e oferece à experiência imagens frágeis. Não significa dizer que os efeitos de suas obras não tenham força ou potência, que não se valham da visualidade ou mesmo que não sejam passíveis de expografias convencionais e subversões para relações tradicionais, mas a tolerância, a proximidade, a


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consideração do corpo e a desconstrução da figura do autor, que passa a compartilhar a criação da obra, sugerem outras compreensões e relações. Seus princípios e efeitos insinuam, ainda, um outro corpo, que passa do espectador distante da Monalisa para o experienciador imerso em imagens frágeis. Para Paola Jacques (2003, p. 83) a obra de Oiticica “é uma negação do artista como criador de objetos, seu papel seria mais de propor práticas”, concebendo projetos que são “simples e generosos, não ainda definidos, e são mostrados como situações para serem vividas”. É neste sentido que sua obra concebida há quase seis décadas dialoga diretamente com o contexto atual da arquitetura: abrindo precedentes para discutir formas de abertura à fragilidade, a um corpo mais ativo e ao exercício de imagens menos espetaculares, fortalecendo vertentes alternativas às dominantes no exercício atual da disciplina. Despido dos preconceitos e prepotências dos absolutistas – como os/as arquitetos/as referenciados por Martinez que impõem o que consideram a boa arquitetura a contextos que, por vezes, sequer conhecem –, Hélio Oiticica abriu sua obra e expandiu seu alcance corporal especialmente após conhecer e morar no Morro da Mangueira no Rio de Janeiro. É especialmente a partir deste ponto de virada em sua obra que se ativa a segunda convergência aqui citada: a que se dá a partir da vivência. Hélio dedicou-se a uma experiência de imersão direta na realidade cotidiana do morro carioca, ampliando seus círculos de convívio e conhecendo novas formas de expressão e de vida com outras problemáticas e necessidades. Tal atitude é especialmente importante quando se analisa o contexto repressivo da ditadura brasileira no qual se desenvolveu, em consonância com uma revolução mundial marcada pelo crescimento da sociedade do consumo e da imagem. No final da década de 1960, remetendo à época da produção mais intensa de Hélio Oiticica, Guy Debord afirmou que a sociedade do espetáculo influenciou de tal maneira os modos de vida que “tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação” (DEBORD, 1967, p. 22). De maneira breve, porém potente, pode-se mensurar desde já a potência do comportamento e das obras de Hélio Oiticica neste contexto. O contato com o cotidiano através da vivência direta exerceu forte influência em suas produções e acredita-se que ela possa desencadear processos de atenção, valorização, compreensão e incorporação da diversidade na atividade do/a arquiteto/a atual de forma similar. É como se o reconhecimento da arquitetura popular ativasse a consciência sobre seu contexto social – subjetividades


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e alteridades –, auxiliando na reforma das práticas tanto artísticas, quanto arquitetônicas que visam transcender a representação e alcançar, como Oiticica (1986) afirmava, a própria vida. Assim, a postura de arquiteto/a pode referenciar Oiticica ao desencadear experiências coletivas a partir do reconhecimento das subjetividades e de novos métodos que superam a ação tradicional, evocando, dentre tantas possibilidades, uma nova figura que Paola Jacques conceitua como o/a arquiteto/a-urbano/a. Para a autora, ele/a “seria o suscitador, o tradutor e o catalisador dos desejos dos habitantes. Partiria [...], por exemplo, do princípio de que a melhor maneira de se criar um caminho de pedestres em um gramado é esperar para ver a trilha deixada na vegetação pelos próprios passantes” (JACQUES, 2003, p. 151). Assim, o trabalho do/a arquiteto/a-urbano/a dissolveria questões de autoria, passando a ser coletivo e anônimo e se pautaria especialmente nas vontades de seus sujeitos e em suas marcas no espaço. Esta quase dependência dos corpos não-arquitetos/as, entretanto, não é o descarte do/a arquiteto/a diplomado, ou seja, “não quer dizer que a população não precisa mais de arquitetos. Ao contrário, significa que os arquitetos também precisam da participação da população para que a cidade seja de fato uma construção coletiva” (JACQUES, 2003, p. 151). Cabe salientar que não se deseja rotular obras, arquitetos/as, teorias ou períodos históricos, nem afirmar posições capazes de polarizá-los, evitando extremismos que podem incidir sobre paixões e deturpar as análises, parcializandoas. A intenção é evitar absolutismos, pedindo não por uma escolha entre linguagens, metodologias ou períodos históricos e modelos a serem seguidos como regras, mas por uma compreensão de sentido complementar, na qual os contrapontos inspiram adaptações ou rupturas segundo demandado pela sensibilidade à nova realidade, como os enraizamentos que partem do porão da Casa Ambiental, ora constituindo pontos de inflexão que alteram brevemente discursos e valores, ora interrompendoos bruscamente para iniciar novas ramificações. Naturalmente, esta é uma visão a respeito do tema que não tem a prepotência de estabelecer um tratado sobre a arquitetura atual ou sobre a melhor forma de tratá-la, mas tenta reconhecer ao menos parte da polifonia característica da época por entender que ela pode se desenvolver abarcando a diversidade de abordagens de acordo com as necessidades reveladas em cada contexto, abarcando suas diversas vertentes e colocando-as à serviço das demandas específicas, distantes dos modelos universais


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e apriorísticos. Entende-se que, assim como não se pode ditar um caminho redentor para a arquitetura de museus, segundo referenciado nos tópicos anteriores, tampouco é possível encontrar procedimentos universais que darão cabo de toda a diversidade de necessidades, corpos e vivências urbanas. Interessa, aqui, apontar alguns dos inúmeros aprendizados que podem ser absorvidos e reformulados a partir das produções de Hélio Oiticica. Ressalta-se ainda que a obra tanto teórica – igualmente vasta e interessante – e prática do artista buscou superar a representação em nome da experiência, espacializando produções e superando a prevalência do visual. A atitude vanguardista e questionadora de Oiticica questionou postulados convencionais, inspirando fazeres alternativos, inovadores, não alienados e diretamente conectados a seu tempo e espaços. Uma das perspectivas para o ato de projetar inspirado por Hélio, pela superação das imagens fortes e pela ativação do corpo remete, então, ao engajamento social, à vivência direta dos contextos de intervenção e à sensibilidade à diversidade de necessidades (sejam elas sociais, técnicas, experienciais, afetivas, econômicas, etc). Entende-se que isso é importante especialmente ao se considerar que “enquanto a arquitetura dos anos 1970 e 80 era algébrica – com tipos e elementos que só adquiriram sentido de modo relacional –, a nova arquitetura é topológica: tem uma condição de campo em vez de objeto, de continuidade em vez de clausura, de coisa indistinta em vez de calibrada” (HAYS, 2015, p. 361). Salientando que encara-se a continuidade citada pelo autor como contextual e não histórica, acredita-se na pertinência do diálogo com a obra de Hélio no sentido de fortalecer as vertentes arquitetônicas que trabalham com imagens frágeis e cotidianas de forma vivencial, crítica, consciente e aderida. Percebe-se, então, que a arquitetura atual como campo ampliado sugere a superação de dominações e predominâncias em nome da diversificação de abordagens, pedindo pela superação do excessivo apelo visual e espetacular em direção a uma preocupação maior com o corpo-total revelado nas vivências, no cotidiano e na arquitetur a popular. Hélio Oiticica foi um dos responsáveis por uma reforma semelhante na arte ampliando relações e desconstruindo meios e expressões convencionais. Essa postura inovadora antecipou algumas das problemáticas vislumbradas atualmente na arquitetura, reafirmando a figura de Oiticica enquanto forte inspiração nas reflexões aqui pretendidas. Além disso, a arte espacializada do artista insinua lógicas bastante próximas da arquitetura atual, que


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pode investigá-las explorando potências e restrições. Identifica-se a partir das divergências da arquitetura atual tratadas nesta discussão, uma convergência com a arte oiticiquiana (que pode ser considerada também arquitetura, mas é aqui referenciada como tal a fim de tornar o discurso mais claro) como forma de expandir os limites e intensificar o reconhecimento e trabalho com o corpo refletindo e visando produzir o que Hays (2015) considera uma “nova arquitetura”. O autor afirma que escrever sobre ela [...] significa escrever tanto com o corpo, como com a mente, captando fatores atmosféricos e ecológicos com o sentimento e o afeto, e também com o pensamento [...]. O modo de escrever a que nós temos acesso agora não é a inscrição (com as certezas aí implicadas), e sim o diagrama. Escrever diagramaticamente significa tornar visíveis as conexões entre a arquitetura e outras práticas e modos de pensar, esquandrinhando-a em busca de suas precondições e pressupostos operacionais, seus centros de poder e movimentos, rastreando as consequências à medida que seus efeitos se multiplicam e depois se separam e dispersam para encontrar outras alianças. A escrita diagramática enfatiza a conexão, a escolha e a mudança. (HAYS, 2015, p. 361)

É nesta possibilidade de mudança que não nega nem condena as produções realizadas até aqui, mas visa endossar as correntes que atuam no sentido de ampliá-las, que residem os principais objetivos desta dissertação, assim como algumas das ramificações que partem do porão da Casa Ambiental. Neste espaço que agora se visita, algo de Oiticica foi agregado em meio a compostos finos e graúdos. E se ali estão, ali vibrarão. Simultaneamente frágeis e fortes, suscitarão a dúvida e a turbulência, o esquecimento no porão – escolha nada inocente de alguns – ou sua redescoberta em arqueologias necessárias no contexto atual.


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Figura 10 – Cartão postal 05: A casa-frágil

Fonte: Produzido pela autora


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3.2. A SAÍDA DO PORÃO: PERSPECTIVAS

Figura 11 – Cartão postal 06: A casa-potência

Fonte: Produzido pela autora

Apresenta-se, a seguir, ecoando de forma quase literal a sugestão de Hays para uma “escrita diagramática”, uma síntese gráfica (Figura 12) do que foi apresentado até aqui no intuito de esboçar perspectivas capazes de pautar reflexões futuras.


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Figura 12 – Síntese Gráfica das Considerações sobre Arquitetura e Contemporaneidade em direção a Oiticica

Fonte: Produzido pela autora

Entende-se que, a partir do contexto atual, complexo e plural, ações mais conscientes a respeito dos processos de espetacularização urbana e afastamento do cotidiano podem se dar reaproximando o corpo e as preexistências populares.


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Assim, desvelada a Casa Ambiental e acessadas algumas das ramificações que partem de seu potente porão, cabe deixá-lo, contagiado/a por seus afetos e carregando alguns de seus valores no sentido de prospectar possibilidades de mudanças. O reconhecimento da arquitetura como campo ampliado, “como um saber de fronteiras e nunca uma especialização, o que seria seu suicídio” (PIRONDI, 2016, p. 54), revela sua dinamicidade, exercitando uma visão global e nãoespecializada na área. Percebe-se, a partir disso, a importância de considerar que "não há apenas um único processo projetual, apenas uma maneira de se levar a cabo" (MARTINEZ, 2000, p. 17) os processos (diversos) que a compõem, entendendo que cada caso, contexto e necessidade podem demandar diferentes procedimentos e reconhecendo a necessidade de expandi-los e reinventá-los. Segundo Martinez, Os meios que serviam para imaginar um edifício e para construí-lo entraram em crise sem que tenhamos com que substituí-los. [...] Não temos como único objetivo criar a beleza do objeto, buscamos apenas melhorar a trama de relações objeto-sociedade. (MARTINEZ, 2000, p. 51)

Assumindo a arquitetura como parte inerente da sociedade e importante em sua construção consciente, o autor sugere a necessidade de renovar metodologias, posturas e discussões, desenvolvendo-as e aplicando-as não de modo exclusivo, mas complementar, em uma cadeia capaz de incutir nos/as arquitetos/as um repertório de estratégias com habilidades para extrapolar limitações e meios demasiadamente restritos para o contexto atual e suas (tanto novas quanto renovadas) problemáticas. Imaginar formas de ampliá-los a partir do contágio e da sensibilização à necessidade específica de cada projeto pode ser uma perspectiva para o/a arquiteto/a generalista proposto por Ciro Pirondi. A esta figura também se oferece uma ampliação na direção da sensibilidade. Ampliando o saber para diversas fronteiras, enfatiza-se a necessidade de reverter a patologia dos sentidos e desconstruir a ideia de uma arquitetura ainda pautada nos mesmos processos iniciados por programas prontos e diagnósticos distanciados, em nome da possibilidade de imergir sensorialmente nos contextos e se deixar afetar. A partir do contato com o lugar – que transcende seu diagnóstico – arquitetos/as podem ampliar seus fazeres na busca por melhorar as relações com a sociedade, sensibilizando-se e abrindo-se à construção dos processos de criação de forma coletiva.


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Um dos caminhos que inspiram esta ação relaciona-se à superação das imagens fortes e dos “rituais mecânicos que levam do programa para o partido” (MARTINEZ, 2000, p. 190) muitas vezes pautados mais na relação forma-função do que na aderência aos contextos e aos corpos. Parte disso relaciona-se à problemática da crença no gênio criativo, do “endeusamento” do/a arquiteto/a e da individualização excessiva do processo de projeto. “Quando se substitui esse processo por outro [...] que busque ensinar a fazer projetos que são mais de Arquitetura que de aluno, abre-se uma perspectiva de aprendizado coletivo (MARTINEZ, 2000, p. 77), compartilhado com o saber popular, as preexistências, a vida e o cotidiano. O autor propõe, então, utilizar a cidade como fonte de saber e inspiração, “não como um museu de disposições eternas” (MARTINEZ, 2000, p. 71), mas como laboratório onde inúmeras relações – continuamente reinventadas – podem ser reconhecidas. Esta postura, mediada especialmente pela obra de Hélio Oiticica, pela visão de Paola Jacques, e pelos escritos de Pallasmaa, enfatiza a importância do corpo na arquitetura, seja o corpo do/a arquiteto/a, sejam todos os corpos do cotidiano (arquitetos/as incluídos/as) que experimentam os espaços, capazes de desmaterializar fronteiras e auxiliar no fortalecimento de vertentes mais sensíveis da arquitetura atual. Uma abertura maior a influências da arquitetura popular, à consideração não só do espaço, mas especialmente o corpo, a superação do visual em nome do todo sensorial e o exercício de práticas que podem envolver outros tipos de instrumentos são algumas das perspectivas que as dissonâncias e convergências aqui tratadas esboçam em resistência aos discursos e ações hegemônicos no campo ampliado da arquitetura. Pallasmaa (2011, p. 34) afirma que “há sinais de que um novo modo de olhar esteja emergindo” na direção destas perspectivas, para as quais convergem algumas metodologias e práticas. A deriva dos situacionistas ou a errância de Paola Jacques são exemplos disso, constituindo-se como ação crítica e resistente na sociedade do consumo e da imagem ao propor o que não pode ser consumido ou reduzido ao visual: a experiência pessoal e singular, incapaz de ser comercializada ou sintetizada em uma única imagem. Entende-se, portanto, que possibilidades de abertura à subjetividade a partir do reconhecimento da alteridade e do corpo já incentivam a produção de arquiteturas resistentes a padrões de espetacularização, reprodução de imagens fortes e atitudes de distanciamento do cotidiano. Esboça-se, assim, um novo papel tanto para o/a arquiteto/a, que passa a ser um/a propositor/a


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de vivências espaciais mais do que um/a construtor/a de imagens prontas, quanto para o/a experienciador/a, que deixa de ser “usuário/a” ou “espectador/a” da arquitetura para torna-se um/a ativador/a que incorpora a obra e nela é incorporado/a. Percebe-se a partir disso que ensaios para superar os distanciamentos da arquitetura alienada e irreal já se dão em obras concebidas em termos de vivência e participação, capazes de evocar a incorporação, ou seja, a presença de um corpo que já não é um corpo padrão –

virtualidade irreal –, mas que considera as

diversidades ergonômicas, sensoriais, sociais, históricas e culturais. Desta forma, enquanto vertentes históricas exaltavam um fazer arquitetônico voltado para a industrialização e padronização, ações atuais podem apontar para a volta ao personalizado, transcendendo a supremacia do tecnicismo e dos formalismos em nome de produções mais humanas e sensíveis. O reinventar da ciência, que também tem se desenvolvido no sentido de validar outros métodos que não só o experimental também apóia esta flexibilização de limites. Acredita-se, portanto, que se delineia um caminho com grande potencial a ser explorado no sentido da construção de cidades mais humanas, capazes de ceder mais aos apelos vivenciais que aos espetaculares e de reconhecer a alteridade, adaptando ferramentas específicas a cada preexistência. Assim, coloca-se a perspectiva de endossar processos não excludentes, mas colaborativos, vislumbrando de forma otimista possibilidades para uma arquitetura cada vez mais contextualizada, consciente, e próxima de assumir com destreza seu papel social, histórico, identitário, funcional e, enfim, transformador. A partir desta reflexão, reitera-se a intenção, necessidade e pertinência do diálogo com a vida e obra de Hélio Oiticica, que inspira e referencia este discurso por conjugar diversos aspectos aqui apontados, como o corpo, a participação ativa, o caráter vivencial, a criação de imagens frágeis, o respeito às preexistências humanas, a superação da manipulação visual passiva para uma incorporação que envolve toda a sensorialidade do corpo, a valorização das expressões populares, a dissolução do gênio artístico, o compartilhamento da obra aberta para a criação coletiva, entre outras. Compreender partes de Hélio Oiticica revela-se um passo importante no esclarecimento de relações inevitáveis entre suas produções e dimensões arquitetônicas, endossando a base crítica para este diálogo e fomentando a investigação de estratégias capazes de redirecionar processos na


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arquitetura atual no sentido de resgatar sua conexão com as humanidades, segundo sugerido por Pirondi (2016, p. 54). É neste sentido que se vislumbra importância de reconhecer a Casa Ambiental. Para fazer emergir de seu porão sombrio agentes e valores capazes de transcender e transformar fazeres arquitetônicos hegemônicos, é necessário evitar que ela se entregue passivamente às turbulências, ruindo antes mesmo de ser reconhecida enquanto objeto (que transcende o objeto) de valor. A Casa Ambiental insinua-se, então, como resistência aos sismos de uma atualidade que vibra em dissonância quando, com rigidez excessiva, firma-se em preceitos engessados em vez de movimentar-se junto das efervescências, adaptando condutas. Construção coletiva liderada por Oiticica, que percorria a cidade subterrânea levantando, do porão, poeira que chega ao térreo, sobe ao sótão e se assenta nos móveis e gavetas da Casa Ambiental, ela induz ao contato, à visita. Entretanto, percorrer seus cômodos como quem aprecia um palácio transformado em museu não permite acessar sua complexidade. Ela só se revela a quem reconhece que “museu é o mundo”

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(OITICICA, 1986, p. 79); que a experiência ganha sentido quando

atravessa, atinge os afetos e faz encontrar cotidianos e corpos uns nos outros. Tossir

e

lacrimejar

durante

uma

arqueologia

sentimental,

afetando-se

e

reconhecendo-se no obscuro porão é o passe para subir ao térreo e revirar as gavetas onde surgem novas potências: Hélio Oiticica.

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Expressão proferida por Hélio Oiticica, ela é amplamente utilizada em discursos sobre a sua obra, batizando livros, estudos acadêmicos e exposições. A afirmação que a contém enuncia: “Parangolé é antiarte por excelência; inclusive pretendo estender o sentido de „apropriação‟ às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação – seria isto um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte etc., e ao próprio conceito de „exposição – ou nós o modificamos ou continuamos na mesma. Museu é o mundo; é a experiência cotidiana [...]” (OITICICA, 1986, p. 79).


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Figura 13 – Cartão postal 07: A casa-afeto

Fonte: Produzido pela autora


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4. REVIRANDO GAVETAS: O ENCONTRO COM HÉLIO OITICICA Figura 14 – Cartão postal 08: A casa-HO

Fonte: Produzido pela autora Você tem que ler Hélio Oiticica como quem passeia por um jardim, por um labirinto. Você pega um caminho que você acha que é agradável, que tem a ver com alguma experiência prévia sua e aí o que você for achando no caminho, as bifurcações e o que você quiser tomar, você tem que trabalhar essa obra dentro de uma forma hipertextual. Porque se você linearizar, aí você está perdendo muita coisa. Que é um conceito que está na obra dele, que é „Mundo erigindo mundo‟, que é a partir de um bloco, junto com outro bloco, junto com outro bloco, você vai construir um todo. (BRAGA, 2013)

A sugestão de Paula Braga é seguida nesta pesquisa que se dedica, neste momento, a apresentar um panorama geral sobre algumas obras, a formação, as posturas e o contexto de atuação de Hélio Oiticica para então resgatar conceitos e referências que ajudam na construção das reflexões propostas. Um trabalho


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constante de (re)descoberta da potência de suas produções teóricas e práticas em relação direta com a arquitetura, a partir de diversas relações – com o corpo, com o espaço, com o comportamento, entre outras – é o que se busca exercitar neste texto que se desenvolve pautado pela cronologia das obras, mas que se bifurca e lança novos caminhos conformando o labirinto quase inevitável que é o pensamento, especialmente quando provocado pelo artista diverso, intensamente propositivo, transdisciplinar e crítico que foi Hélio Oiticica. Sua obra (e seu contexto de desenvolvimento) relaciona-se diretamente com o contexto atual e pode auxiliar no endossamento de conceitos, posturas e perspectivas alternativas às dominantes nos campos ampliados da arte e da arquitetura – os quais, cada vez mais, se imbricam de forma praticamente indissociável. O intuito desta investigação é refletir sobre sua obra especialmente a partir dos corpos e dos espaços, sem resguardar-se somente à esfera do teórico por entender que, embora ela seja de suma importância, pode ser melhor compreendida a partir de espacializações capazes de tensionar alguns conceitos na prática. À teoria aqui explanada, portanto, somam-se exemplos e análises de obras construídas tanto na era-Oiticica6, como na atualidade com o objetivo de contextualizar as discussões não como ilustração, mas como articulação que engloba teoria, espaço, corpo, arte, arquitetura, etc. Cabe salientar que a relação aqui pretendida não negligencia a diferença de contexto histórico entre a época da produção de Hélio Oiticica e o período atual, mas entende que a atitude vanguardista do artista diminui a distância de cerca de sessenta anos existente entre suas primeiras produções e os tempos correntes, e que sua trajetória pautada especialmente por desconstruções e rupturas ativa conceitos extremamente pertinentes na atualidade. Além disso, acredita-se que os períodos históricos sejam abstrações que separam o que, na realidade, é um todo diverso e ramificado, repleto de rupturas e continuidades que evidenciam a ligação direta entre eles. Assim, o reconhecimento da obra de Oiticica não tem a pretensão de institucionalizá-la enquanto um clássico ou de abordá-la nostalgicamente, mas de referenciá-la como um dos ativadores possíveis na desconstrução de alguns paradigmas atuais tendo por base o posicionamento crítico e o desenvolvimento experimental. 6

Termo empregado por entender que a produção de Oiticica parece incapaz de encerrar-se em um período específico, mas situar-se em um “entre”, ecoando problemáticas, propondo superações, prenunciando novos fazeres, enfim.


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Celso Favaretto (2016) comenta a atualidade de Hélio Oiticica ao observar que, embora as discussões sobre o artista tenham ficado adormecidas por quase uma década após sua morte em 1980, ressurgem em exposições retrospectivas no início do século XXI. Tania Rivera (2012, p. 11) faz parte das personalidades que agenciam este ressurgimento ao reconhecer que “pensar em Hélio Oiticica é necessário, hoje”. Entretanto, a autora alerta que é necessário fazê-lo não para seguir “a onda de reconhecimento internacional da arte brasileira a partir dele e de Lygia Clark, não para incensá-lo e rapidamente alinhar a produção posterior a ele sob sua égide. É preciso se debruçar sobre o trabalho de Hélio para...pensar” (RIVERA, 2012, p. 11-12). Neste sentido, acredita-se que a reativação do nome de Oticica na atualidade se dá não pelo interesse em atualizar sua obra, mas em perceber – e prosseguir com – a trajetória de ação e reflexão sobre o que poderia ser a arte após seu afastamento do regime restrito da representação. A partir do reconhecimento da situação atual da arquitetura – questões sobre a criação de imagens incluídas – aponta-se o interesse no diálogo com Hélio na ânsia de endossar vertentes da arquitetura que se expandem para além da visualidade ou do espetáculo. Quando inúmeros movimentos artísticos começaram a operar em sentido semelhante, na tentativa de uma abertura estrutural da arte a fim de desprendê-la de seu suporte, “começava a se entender que a ideia de representação era restrita demais para dar conta das transformações que estavam ocorrendo na consciência dos comportamentos individuais e nas relações da arte com a cultura” (FAVARETTO, 2016). Entende-se este movimento especialmente a partir do cubismo, que passou a incorporar em suas colagens elementos da vida cotidiana 7, passando a integrá-la na representação para, justamente, iniciar a desconstrução desta. Ainda marcado por este sistema, o cubismo pode ter iniciado uma trajetória de transição que vai da pintura aos comportamentos e que “surge do desejo da arte moderna de se realizar no ambiente” (FAVARETTO, 2016). Percebe-se boa parte destes movimentos como presença constante na obra de Hélio Oiticica que “desapossa o artista da função anterior romantizada e o torna um propositor de situações ou de oportunidades de invenção e faz da arte alguma coisa que se perfaz ativamente” (FAVARETTO, 2016), em vez de postulado baseado em relações 7

Em uma interpretação da vida “não como ideia ou sugestão, mas a vida como acontecimento” (FAVARETTO, 2016).


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sujeito-objeto nas quais este é posto em primeiro plano e aquele é esvaziado de autonomia, potência e sensibilidade. Encara-se esta atitude de ater-se mais ao corpo e suas relações como diretamente relacionada ao papel do/a arquiteto/a atual, exaltando não paralelismos, mas imbricações entre artista e arquiteto/a e entre arte e arquitetura. 4.1. O CONTEXTO-HO Além das semelhanças citadas, o contexto geral em que as proposições de Hélio se efetivaram também denotam relação direta com o período atual: embora a democracia tenha sido reconquistada – ao menos em parte – no século XXI, afastando-se temporariamente dos radicalismos da ditadura militar brasileira, a tensão política, os movimentos sociais (com destaque para o feminismo), o papel da tecnologia, as problemáticas urbanas entre outros aspectos efervescentes na segunda metade do século XX persistem na contemporaneidade sob outras roupagens. Entende-se que a Guerra Fria, por exemplo, relegou avanços tecnológicos que refletem diretamente na sociedade atual (e na produção arquitetônica mediada frequentemente por plataformas e equipamentos digitais); que posturas segregadoras e xenofóbicas se mantêm em setores da sociedade motivando proposições de muros-de-Berlim-contemporâneos tanto físicos – como na fronteira entre Estados Unidos e México ou nos condomínios fechados das cidades brasileiras – quanto virtuais – como nos equipamentos urbanos elitizados, nos espaços da cidade controlados por setores específicos, nas produções de imagens fortes, etc.; que o modelo de urbanismo rodoviarista e espetacular consolidado em Brasília segue ecoando na construção das cidades que se pretendem modernas mesmo num contexto totalmente diferente... Inúmeras são as semelhanças e relações existentes entre os períodos, seja numa espécie de looping histórico, quando alguns fatos e posturas ensaiam uma espécie de repetição, seja no desenvolvimento processual que faz avançar os fatos e seus ecos, favorecendo a análise de algumas das mudanças ocorridas há pouco menos de sessenta anos. Acredita-se que a postura de Hélio Oiticica relaciona-se diretamente à sociedade de sua época – fortemente marcada pela ditadura militar brasileira e pelos movimentos estudantis internacionais, em um momento de forte efervescência política no cenário mundial –, atentando à possibilidade de o artista não só ter


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antecipado algumas problemáticas advindas de seu contexto, mas também ter explorado alternativas aos transtornos então atuais. Acredita-se que arte, cidade, arquitetura e sociedade caminham em estrita sintonia, e que cada obra, atitude ou movimento se relaciona aos inúmeros fatores que os constituem. Assim, entende-se que falar da década de 1960 e discutir Hélio Oiticica a partir da lente da arquitetura – que não deixa de ser artística e social – permite estudar posturas e vislumbrar fazeres socialmente comprometidos no sentido de favorecer construções coletivas e participativas, atentar para a necessidade de valorização do corpo e do comportamento e motivar desconstruções de ações-padrão institucionalizadas que demandam uma revisão crítica. Cabe, por fim, esclarecer o que se entende enquanto obra de Hélio Oiticica, referida neste estudo evocando as produções não só de objetos artísticos e performances, mas também de teoria e crítica. Favaretto (2016) acredita que parte do interesse atual sobre Hélio recai justamente na intensa reflexão que o artista fazia sobre suas proposições, geralmente acompanhadas de notas, textos e/ou poemas datados em seus famosos “Notebooks”. Fernando Cocchiarele (2013), curador da exposição “Museu é o Mundo”, concorda com Favaretto sobre a importância da reflexão no trabalho de Oiticica e comenta que, embora se tenha a noção de que o artista só é artista quando cria um trabalho nos moldes artísticos mais convencionais, mas que quando escreve, muda de campo, no caso de Hélio é impossível separar estas duas instâncias que se interpenetram. Para Cocchiarele, o trabalho de Hélio é uma trança entre teoria e ação, figura potente no esclarecimento da mistura existente entre linearidade e labirinto em seu trabalho. Esta trança revelase como fusão de linearidades capazes de configurar um labirinto fluido cuja complexidade vai se revelando sucessivamente à medida que se adentra nas fibras que tecem o emaranhado composto por teoria e prática. Esta interpretação também evidencia a mutabilidade do conjunto que, hoje estudado segundo necessidades e questões atuais (que contaminam os olhos de quem lê), já é uma obra distinta daquela pretendida pelo artista ou interpretada/experimentada em sua época. Naturalmente, não cabe aqui revisitar toda a obra de Oiticica (tampouco temse o tempo ou a maturidade para isso), mas acredita-se possível expor e estudar alguns de seus princípios geradores como forma de disparar discussões importantes – ao menos algumas de suas latências e perspectivas. São apresentadas, então, considerações sobre Hélio Oiticica, seu corpo, seu tempo, seu espaço e algumas de


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suas ações, para discorrer sobre as principais temáticas de interesse despertadas ao longo do estudo que motiva esta pesquisa, evidenciando algumas relações com apelos, carências e potencialidades da arquitetura atual. A fim de tornar esta leitura mais fluida e menos repetitiva, por vezes será empregada a forma “HO” para referirse a Oiticica. Assim, HO, Hélio e/ou Oiticica, o artista-corpo-tempo-espaço, é pautainspiração plural neste estudo experimental e igualmente diverso. 4.1.1. O Corpo-HO A casa onde vivem, que pode não ser só aquela, mas será a que houver por onde quer que andem, tem esse caráter de um ambiente-recintotal – até a comida, o comer, o vestir, o ambiente em si, mostram que lá com eles a vida e a obra não se podem separar, pois na verdade não há essa diferença mesmo. (SALOMÃO, 2003, p. 83)

Esta discussão se dedica à casa-corpo de Hélio Oiticica; considerações sobre o papel do corpo em sua obra serão feitas adiante (e de modo constante). Interessa aqui contextualizar brevemente as principais experiências vividas por Hélio que motivaram seus questionamentos e influenciaram a obra do artista nascido no Rio de Janeiro em 1937 e morto em 1980 na mesma cidade. Personalidade inseparável de sua obra, considerado apolíneo pelo rigor de suas ações, pelo comprometimento crítico, e por algumas de suas heranças sociais, e dionisíaco por sua permissividade à experimentação e a um viver dinâmico como o de quem samba de improviso, Oiticica é filho de Ângela Santos Oiticica, sobre quem se tem pouca informação, e de José Oiticica Filho, fotógrafo, engenheiro, professor de matemática e entomólogo (PROJETO HÉLIO OITICICA). Cabe destacar o importante papel que o pai de Hélio teve enquanto fotógrafo – sendo um dos nomes mais icônicos da fotografia moderna brasileira –, ao desenvolver tanto microfotografias utilitárias para documentar seu trabalho de pesquisador (Figura 15) como fotografias experimentais (Figura 16), abstratas e pesquisas construtivistas (Figura 17 e Figura 18), afastando-se das representações figurativas e experimentando novas possibilidades técnicas e estéticas (ITAU CULTURAL). Pode-se identificar na obra de José, inclusive, estudos bastante semelhantes aos que Hélio posteriormente exercitou no Grupo Frente, prenunciando a fotografia do pai algumas pesquisas realizadas na pintura construtivista do filho.


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Para Waly Salomão (2003, p. 22), poeta e amigo, uma das principais lições que Hélio herdou do pai é que “o exame vivenciado pela experiência direta é uma didática superior à obediência passiva e cega”. Evidenciar sua filiação, portanto, é estratégia aqui usada para insinuar que sua propensão a explorar vivências e experimentações pode remontar à própria herança familiar que, em atitudes talvez tão ousadas quanto as que Hélio assumiu questionando a arte tradicional, optou por uma educação afastada das escolas nos primeiros anos de vida dos filhos. Além disso, o Projeto Hélio Oiticica evidencia que a formação de Hélio também foi diretamente marcada pela influência do avô paterno, José Oiticica, “conhecido filólogo, professor, escritor, anarquista e editor do jornal Ação Direta” (PROJETO HÉLIO OITICICA), com forte discurso político e engajamento social. Em 1947 José Oiticica Filho ganhou uma bolsa da fundação Guggenheim e mudou-se com a família para Washington, onde Hélio e os irmãos frequentaram uma escola pela primeira vez. José trabalhou no United States National Museum – Smithsonian Institution por dois anos e retornou para o Rio de Janeiro nos anos 1950, quando Hélio passou a trabalhar traduzindo textos e peças de teatro. É neste momento (1954) que Hélio Oiticica passa a ser filho não só de Ângela e José: tendo aulas de pintura com Ivan Serpa no MAM-RJ, Hélio passa a ser filho também de Mondrian e Maliévitch e ganha como novos irmãos Lygia Clark, Mário Pedrosa e Ferreira Gullar. Explorando processos originados da dinâmica da Bauhaus, Hélio começa a realizar estudos denominados Secos que posteriormente evoluem para o que chamou de Metaesquemas: pinturas geométricas em guache sobre cartão que exploravam relações perceptivas de forma e fundo. Inserido na linha construtivista e, desde já, registrando suas atividades e reflexões, Oiticica reconhece em Mondrian uma referência fundamental para suas experimentações. Segundo Favaretto (2015), Oiticica acreditava que a direção construtivista ajudava a entender “ao mesmo tempo a nossa arte e ao mesmo tempo a nossa formação, a nossa construção histórico-social”, utilizando desde cedo suas produções como forma de reflexão crítica sobre a sociedade brasileira.


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Figura 15 – José Oiticica Filho, Microfotografia

Fonte: http://www.heliooiticica.org.br/biografia/bioj of1960.htm

Figura 16 – José Oiticica Filho, Fotografia

Fonte: http://www.heliooiticica.org.br/biografia/bioj of1920.htm

Figura 17 – José Oiticica Filho, D-10 A, 1958

Figura 18 – José Oiticica Filho, Recriação C1, 1958

Fonte: http://www.artnet.com/artists/jose-oiticica-

Fonte: http://www.infoartsp.com.br/agenda/jose-

filho/forma-d-10aaa-a-

oiticica-filho-jof/

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Em sequência, Lygia Clark e Ferreira Gullar convidaram Hélio Oiticica para participar do Grupo Neoconcreto no Rio de Janeiro, momento no qual suas pinturas sobre cartão evoluíram para óleos sobre tela e compensado, substituindo as formas geométricas por explorações puras de cor que prenunciaram os Bilaterais. Segundo Tania Rivera (2012, p. 20), a depuração da cor ocorrida especialmente a partir de


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1959 “ativa espaço, tempo (duração) e ato”, iniciando uma transição do suporte para o ambiente e levando Oiticica a fazer a crítica ao quadro no intuito de soltar o fundamento da pintura – a cor – no espaço. É quando uma sucessão de eventos determina uma das experiências mais marcantes na obra (e talvez na vida) de Hélio Oiticica: na década de 1960, Oiticica começa a trabalhar no Museu Nacional como auxiliar técnico do pai, até sua morte em 1964. Ano do Golpe Militar e de inúmeras latências políticas e sociais, é também o ano em que, levado pelo escultor Jackson Ribeiro, o corpo de Hélio Oiticica imerge na Estação Primeira de Mangueira. Esta experiência revoluciona sua obra pois, mediada pelo samba e pelos percursos – tanto espacial, quanto socialmente – labirínticos do Morro da Mangueira, Hélio ativa seu próprio corpo, em consonância com a ativação crescente do corpo dos/as

espectadores/as

que

progressivamente

transformavam-se

em

participadores/as de suas obras. A experiência no Morro, assim, fez com que, à descoberta do espaço, seguisse a descoberta do corpo – suas potências, seus desejos, sua fome, suas festas, sua obediência e sua marginalidade incluídas – que vinha se processando nas experimentações do artista. A respeito desta experiência, Waly Salomão escreveu: O Hélio quando foi para Mangueira vivenciou a barra-pesada num processo de ruptura e recusa do mundo burguês que o formou e o rodeava. Não foi uma FAVELA TOUR. Foi um aprendizado gozoso e doloroso. Cair de boca no mundo. Cannabilidinar. Uma reivindicação feroz de singularidade lúcida, tensa, extremada contra a regra geral média e morna. Encantamento e vertigem. Marginalibidocannabianismo. (SALOMÃO, 2003, p. 54)

Assim, corpo espacializado no tempo (ou temporalizado no espaço, como a discussão sobre sua obra pode vir a sugerir nas próximas linhas deste texto), o corpo-HO era tanto corpo, quanto casa que, conforme exposto inicialmente, não se separa da obra. O corpo-HO era samba, Mangueira e transição entre Morro e Zona Sul, cor espacializada, experimentador do labirinto da vida. Conforme citado anteriormente, Paola Jacques (2003, p. 55) coloca que a experiência nas favelas é sempre uma questão de alteridade e, de fato, o Corpo-HO, liberto e tornado passista que explode na Whitechapel Experience8, revela-se tanto seu, quanto do outro, a partir do entendimento de que

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Exposição realizada na Galeria Whitechapel, em Londres, em 1969, com curadoria de Guy Brett de extrema importância na carreira do artista.


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[...] o outro não é uma abstração descarnada [...]. O outro é um corpo de carne y hueso que opera uma transmutação do próprio corpo do Hélio tornando-o sensível ao sensível. Andando pelo mundo em uma peripatética pregnância que cumpria a formulação do devorado Merleau-Ponty de “apagar a linha divisória entre o corpo e o espírito”. (SALOMÃO, 2003, p.3637)

Tanto o corpo de Hélio, quanto o tratamento do corpo em sua obra, portanto, foi corpo ativo, total, crítico e espacializado, apropriado pelo artista conformando um estado de espírito que impele à vivência, à experimentação, ao contágio, a um usufruir do carnal para atravessar sentimentos, acessar vontades, ativar afetos e conectar-se a subjetividades. Situado tanto no tempo passado, quanto no tempo presente e, espera-se, também no futuro, o Corpo-HO foi corpo que ainda é corpo, que ativa corpo e que motiva corpo, desconstruindo velhas noções e provocando novas perspectivas. 4.1.2. O Tempo-HO A visão dos poetas não explica a arte pela historicidade formal ou conceitual, pelas démarches institucionais ou através de política das artes. Próxima em espírito, em essência, fala-nos de dentro do território da arte: região que não se pode querer organizar nem midiatizar. (SALOMÃO, 2003, p. 12)

Ao corpo livre e libertador de Oiticica corresponde um tempo igualmente dinâmico e repleto de efervescências. É difícil linearizar sua trajetória, entretanto, torna-se necessário entender o contexto que a motivou, composto tanto por narrativas mais institucionalizadas e institucionalizantes, como por reconhecimentos poéticos e políticos mais próximos de seu próprio território, referenciando Waly Salomão (2003). As questões mais ligadas às primeiras narrativas foram parcialmente abordadas no tópico anterior, referenciando o ingresso de Hélio no Grupo Frente, sua vivência no Morro da Mangueira e suas produções progressivamente mais ousadas e públicas. Cabe, entretanto, retomar brevemente esta estrutura básica para salientar a importância do contexto concretista para Hélio no desenvolvimento de experiências com a cor, a luz e suas possibilidades de espacialização. A partir da produção dos Metaesquemas concretistas, identifica-se na obra de Oiticica o que Celso Favaretto (2000, p. 51) identifica como uma “tentação expressiva”, tornada clara na expansão das produções planas para o espaço e das questões mais estilísticas para abordagens mais políticas.


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Progressivamente, Hélio passou a demonstrar certa inquietação com “a perda da espontaneidade das práticas concretas, do seu excesso intelectualista”, vislumbrando “o sentido da cor como „cor-cor‟, como „corpo‟, e do quadro como „corpo da cor‟” (OITICICA, 1986, p. 58). Assim, a noção de construtivismo de Oiticica passou a se reinventar, revitalizando – junto de práticas neoconcretas – algumas prescrições concretas e evoluindo de experiências formais para experiências perceptivas, com foco na “fundação de novas relações estruturais na pintura (cor) e na escultura, abrindo novo sentidos de espaço e tempo” (FAVARETTO, 2000, p. 28). Entendido, então, enquanto técnica estrutural disposta a transformar a pintura, o construtivismo de Oiticica experimentou a desintelectualização e a desestetização, desprendendo-se do objeto de arte e caminhando para formulações de participação focadas no sujeito e no corpo; o construtivismo de Oiticica transformou-se em “sentido de construção”. A este respeito, tem-se que: O “sentido de construção” vem de encontro à “máxima contingência” a que se submetem os artistas: entregar-se à “construção do mundo do homem” – utopia moderna, especialmente do construtivismo, de estabelecimento de novas relações estruturais e humanas, através da criação de ambientes que não sejam meramente utilitários e racionais. Para isso, a contribuição da nova realidade plástica construtiva em que se fundem arquitetura, escultura e pintura é da maior importância. (FAVARETTO, 2000, p. 30)

Este “sentido”, a partir das necessidades de fomento de relações humanas, trazia implícita a noção de proposições comportamentais, transgredindo a normatividade da corrente modernista até então dominante e prenunciando um novo momento da arte. Celso Favaretto (2000, p. 35) atribui a latência da participação e do comportamento aos problemas sociais da época, frente aos quais se percebia que justaposições de conteúdos a formas – típicas do concretismo – não bastariam, sendo necessário conferir à arte uma maior potência no tensionamento de questões. Não se pode negar a importância da estratégia concretista no sentido de romper com a visão puramente representativa que envolvia a arte brasileira, mas os experimentos de Hélio e da vanguarda da época passaram a ir além da crítica ao conteudismo representacional, implodindo a relação sujeito-objeto e propondo jogos perceptivos nos quais já “não pode mais haver de um lado criação e, de outro, fruição da obra” (RIVERA, 2012, p. 14), mas um todo interdependente que se refaz em constância.


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Assim, de forma resumida, pode-se dizer que Oiticica começou a produzir sua obra em um momento no qual o concretismo se fundia com a “tendência em acentuar a espacialidade pictórica” (FAVARETTO, 2000, p. 32) do cubismo, desnaturalizando objetos e operando de forma a intensificar a superação da representação com base em uma lógica extremamente racional. Junto a outros artistas “neoconcretos” que combatiam o mecanicismo exacerbado destas produções – em especial Lygia Clark –, Oiticica questionou esta lógica e passou a se dedicar à retomada de categorias expressivas (suprimidas na reprodução de formas seriadas do concretismo) na arte, enfatizando a experiência direta da percepção. Desta maneira, o artista propôs “o experimentalismo e a participação do espectador, já ao nível da criação, como fundamentais” (FAVARETTO, 2000, p. 40), realizando “uma verdadeira tração entre sujeito e objeto, de modo a pôr em crise o objeto de arte e o sujeito da arte e fazê-los transformarem-se mutuamente” (RIVERA, 2012, p. 14-15). Em outras palavras, o que buscava Oiticica era ir além da alternância entre sujeito e objeto “em prol de uma verdadeira síntese dialética” entre eles, “através de uma noção de forma que inclui o espectador e, portanto, se transforma” (RIVERA, 2012, p. 22). Hélio idealizou, então, junto da vanguarda neoconcreta, “um novo objeto para a pintura; libertando-a da tela e realizando-a no espaço real; rompendo com as categorias estéticas fundadas na obra de arte como objeto autônomo e isolado, e tomando o objeto estético como objeto relacional” (FAVARETTO, 2000, p. 40). É neste momento que as aproximações com a arquitetura, especialmente seu momento atual, se revelam com maior potência. Entende-se, a partir disso, que o movimento de transferência das pinturas de formas geométricas sobre papel para a soltura no espaço também expressa a transição do Concretismo para o Neoconcretismo (ou para o reconhecimento e exercício de um “sentido de construção”, para usar as palavras de HO uma vez que o artista repudiava os conceitos “neo”), marcando o que Oiticica enunciou enquanto o fim da pintura e do quadro. Para ele, vivia-se um momento de crise da arte, marcada pela perda da espontaneidade, pelo excesso de intelectualização e por relações excessivamente mecânicas (e segregatórias) entre sujeito e objeto. A reversão deste quadro foi vislumbrada, então, na participação, que constituiu um marco na passagem da pintura bidimensional para a espacial, essencial dentro da obra de Oiticica “tendo em vista seu objetivo de aceder a „novas ordens‟ artísticas em direção às Manifestações Ambientais” (FAVARETTO, 2000, p. 45). Além de


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inaugurar uma nova forma de expressão artística, à nova fase da pintura, então, “corresponde um novo espaço estético, onde tudo pode surgir, tudo pode relacionarse com tudo em jogo permanente” (FAVARETTO, 2000, p. 19). Por isso as gavetas da Casa Ambiental abrigam conteúdos ambíguos e fragmentados que se referenciam entre cômodos: em nome do jogo, da ludicidade, do imprevisto e do flexível capazes de compor um todo que, segundo explorado em breve, revela-se expressão do ambiental. Cabe ainda salientar a forte influência do pensamento marxista na década de 1960 (MARQUEZ, 2009), que atuou acentuando o interesse social em detrimento da produção de individualidades – característica da sociedade do consumo. Hélio Oiticica denota grande simpatia por este deslocamento e se envolve diretamente na posição crítica que o sistema artístico passa a adotar a partir dele. Segundo Renata Marquez (2009, p. 68), “desacreditando em qualquer atividade produtivista, a Escola de Frankfurt estabelece que toda produção é ideológica e reflete as forças dominantes do sistema econômico”, levando alguns artistas a estabelecerem um programa crítico que desconfiava de seus próprios meios e irrompia agressivamente na vida cotidiana a fim de fazer cessar a acumulação de produtos ideológicos (MARQUEZ, 2009) e a replicação de lógicas de controle e alienação. A instauração da ditadura militar no Brasil em 1964 atua potencializando esta posição na obra de Hélio, condicionando boa parte de seu pensamento e gestos. A repressão e o policiamento de corpos, discursos, expressões, dinâmicas e alteridades catalisaram a saída de HO do contexto normatizado dos museus e galerias para a vida urbana orgânica e pulsante. A cidade passa a ser, então, tema constante em suas obras, como “fonte antropológica e política” na qual o artista recolhe “elementos, personagens e símbolos urbanos devolvendo-os sob novas formas” (MARQUEZ, 2009, p. 68). Tensionando seu ambiente político e social, Hélio Oiticica articula cor, espaço, duração, tempo, vivência, experimentalidade, cidade, enfim, e cria a “metáfora do corpo livre, corrigindo a exclusão fruto da desigualdade sócioeconômica e da censura gerada pela violência da repressão militar à oposição política” (MARQUEZ, 2009, p. 69). A dimensão da obra oiticiquiana, assim, atravessa inúmeras esferas e ultrapassa discussões estilísticas aderindo de tal maneira a seu contexto que se torna expressão política em si. A cidade transgressora interessa a Hélio de tal maneira que, conforme exposto há pouco, ele se muda para o Morro da Mangueira e


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carrega seus corpos, materiais, meandros e modos de vida tanto para os museus quanto para outros espaços da cidade provocando um intercâmbio de realidades e escancarando as diferenças políticas, econômicas e sociais de um país ao mesmo tempo policiado – sob a égide da ditadura – e livre – sob a regência de seus próprios corpos. Esta necessidade de gerar estranhamento, de denunciar realidades diversas e de afirmar a alteridade nacional enquanto força que resiste às colonizações espetaculares e universalizantes, faz da cidade tanto tema/fonte, quanto espaço de criação/vivência artística. Oiticica trabalha especialmente seu “aspecto patológico: miséria, repressão, drogas, neocolonialismo, fronteiras de exclusão” (MARQUEZ, 2009, p. 68) e colhe em seu contexto uma matéria-prima que é viva e pulsante (MARQUEZ, 2009); urbanidade em si. Transmutado em proposição vivencial, o contexto de Hélio Oiticica influencia diretamente suas produções e provoca a criação de novas ordens artísticas, fazendo emergir o caráter ambiental a partir da aspiração a uma totalidade que congrega espaço, tempo e corpos; crítica e ação. Interessando-se pela arte que não pode ser consumida, pedindo por posições críticas e vivências ativas e fazendo “coincidir o político e a renovação da sensibilidade, a participação social e o deslocamento da arte” (FAVARETTO, 2008, p. 16), a obra de Hélio ajuda a abrir um importante campo de desenvolvimento artístico experimental, de interações, performances e obras mutantes capazes de tensionar o contexto vivido pelo Brasil e esfacelar seus projetos modernos (FAVARETTO, 2000, p. 15). É como se, a partir da aderência ao contexto de sua época, o Corpo-HO fizesse uma ponte entre tempos, transportando à atualidade carente das fragilizações oiticiquianas, inquietações e possibilidades. 4.1.3. O Espaço-HO Ao contrário das especulações sobre Corpo-HO e Tempo-HO, nas quais se buscou esclarecer mais o contexto referido pelos termos do que a forma com que Hélio os envolvia em suas obras, na discussão sobre o Espaço-HO as noções se confundem. A preocupação aqui é mais relacionada com o tratamento e potência do espaço na obra de Hélio Oiticica e alude diretamente a suas vivências, uma vez que remete a duas noções principais e profundamente interligadas: a do espaço estético e a do espaço labiríntico. Enquanto o espaço estético é uma noção diretamente relacionada às formulações da arte neoconcreta, o espaço labiríntico alude às


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vivências de Hélio na Mangueira e enquanto a experiência espacial estética relaciona-se especialmente ao Tempo-HO, ou seja, ao conceito de espaço desenvolvido no período neoconcreto, a vivência labiríntica alude mais ao Corpo-HO imerso no Morro da Mangueira dos anos 1960. Tais conceitos são amplamente ativados nas obras de Oiticica. Antes de esclarecê-los de forma mais atenta, entretanto, cabe resgatar algumas questões sobre as mudanças de percepção sobre o conceito de espaço que se processavam na arte da época. Segundo exposto anteriormente, Oiticica chegou à crise da pintura através da experiência de desintegração do quadro no contexto das experimentações neoconcretas, fundando um novo espaço expressivo. Para Favaretto (2000, p. 44) este espaço, “ao privilegiar a experiência, no momento mesmo da intervenção, rompeu o exclusivismo do programa concretista, abrindo no Brasil direções variadas de pesquisas contemporâneas”. Neste novo espaço, segundo o mesmo autor, não há hierarquia de forma, cor e fundo, compondo relações que ajudam a diluir, também, a hierarquia existente na relação sujeitoobjeto. A experiência e as sensações que a espacialização sugere transcendem estas questões, alcançando a expressividade a partir de princípios menos rígidos e relações mais abertas. Entende-se, portanto, que o Neoconcretismo iniciou a superação das dicotomias figura-fundo e sujeito-objeto a partir do entendimento da obra como de arte como estrutura orgânica, chamada por Sperling (2008, p. 119) de “quase-corpo” ou não-objeto. Este é o momento em que se percebe que o Espaço-HO é, também, o espaço que abriga não só a visão, mas o corpo como todo, em uma interpretação na qual o conceito de corpo (e de percepção) e o conceito de espaço se inter-relacionam. Estes conceitos evocam a reflexão sobre o objeto artístico que se desintegra em experiência, tensionando a supremacia do objeto diluído em nome da participação. Nas palavras de Tania Rivera (2012, p. 22), a produção artística “só se concreta como forma expressiva nessa participação”. O espaço, então, transformou-se no próprio objeto reinventado: um novo objeto não consumível nos moldes tradicionais, mas passível de múltiplas experiências e percepções, ativando corpos e comportamentos e diluindo suas fronteiras em relação ao corpo. Assim, o EspaçoHO insinua sua conversão em objeto que é não-objeto, negando sua acepção convencional.


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Cabe aqui ressaltar a teoria desenvolvida por Ferreira Gullar na década de 1960, que enuncia: “o não-objeto não é um antiobjeto, mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto” (GULLAR, 2007, p. 70). Esta ausência de rastros se dá pelo princípio de imersão que exalta uma participação não mediada, mas composta de forma direta a partir do corpo completo e ativo. Aproximações com este conceito são frequentes na obra de Oiticica tanto no tratamento do espaço, quanto dos próprios objetos que transferem o foco em sua materialidade para o sujeito, cujo “reviramento” (RIVERA, 2012, p. 148) eles operam. Assim, enquanto não-objeto, “o objeto é ativação da presença do sujeito no mundo” (RIVERA, 2012, p. 149), tanto a partir de seu corpo quanto das referências a suas memórias e afetos. Segundo Tania Rivera (2012, p. 150), “a paixão pelo objeto, condição básica à arte, é anseio por essa condição de extimidade (nossa „intimidade‟ que está fora, tornando-se comum). Busca de si na coisa, anseio por um encontro com o real no qual surge o sujeito, descentrado, subvertido, não identitário”. Essa busca pressupõe e define uma abertura do objeto (que pode ser espaço), o qual passa a definir-se a partir da inconclusão, necessitando do outro pois “sem ele, a obra existe apenas em potência, à espera do gesto humano que a atualize” (RIVERA, 2012, p. 61). A partir das explorações do não-objeto “a arte retoma, como fenômeno vivo, a fundante experiência do homem no mundo” (RIVERA, 2012, p. 60), fundindo-os no espaço. Tania explica que “graças à estrutura do „não-objeto‟, na experiência artística espectador e obra se fundiram no espaço” (RIVERA, 2012, p. 61). Assim, uma noção básica sobre a teoria do não-objeto de Ferreira Gullar ajuda a entender o processo de evolução da obra de Oiticica e a ampliação espacial que ela passa a operar em nome de relações mais diretas e ativas com os sujeitos. A partir de sua dimensão relacional, dos convites de imersão do corpo, da ativação do espaço e das experiências é possível vislumbrar, então, a noção do Espaço-HO como espaço estético ativado e ativador de não-objetos. Entendido não a partir da funcionalidade ou do utilitarismo, mas como um abrigo que permite que os corpos se deixem atravessar e imergir em performances, ele é o espaço que ativa percepção e comportamento. Paula Braga (2016) considera que, para Oiticica, “o espaço estético depende de uma vivência estética”, cuja maior prerrogativa não é a arquitetura, mas uma “vivência vital”, “que altera o espaço estático em um espaço


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estético de uma forma quase mágica”. A autora atenta para o fato de que, no vocabulário de Hélio, mágico se define como o que excita os sentidos e chega a comentar que os projetos e maquetes que o artista idealiza “são arquiteturas para a necessidade do corpo de se deixar atravessar por uma onda estética” (BRAGA, 2016). Identifica-se, então, o espaço estético conceituado por Paula Braga em relação direta com o espaço neoconcreto interpretado por Celso Favaretto. Para o autor: O espaço neoconcreto é, pois, um espaço ativo. As formas e cores não se distribuem numa superfície apenas como uma dinâmica visual, exercício de percepção informada por Gestalt; formas e cores são integrantes de um espaço que mobiliza significações que transcendem o perceptivo. À produção concreta de campos de energia substitui-se um campo de ações e tensões, acenando para vivências – o que impossibilita qualquer proposta de integração funcionalista. (FAVARETTO, 2000, p. 41-42)

Acredita-se, então, que o Espaço-HO enquanto espaço estético nasce das experiências neoconcretas a partir de um entendimento do corpo que vai além da visão ou de seu aparelho perceptivo, transcendendo sua passividade e atingindo a imersão no espaço de modo ativo e experimental, relacionando-se e interagindo em um sistema que abriga (não-)objeto, corpo e espaço e dilui as fronteiras entre eles. O espaço estético de Oiticica configura-se, então, mais como subjetividade, compreendendo comportamento e experiência do a partir de atributos formais objetivos e determinados. Este foco no comportamento revela que, na obra de Hélio o “campo de ação não é apenas o sistema de arte, mas a visionária atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social” (FAVARETTO, 2008, p. 16). Esta significação é entendida como parte do papel da arte que, segundo Oiticica, sempre tem uma função política (FAVARETTO, 2008, p. 19). Alguns dos textos de Celso Favaretto aludem, inclusive, à relação entre inconformismo estético e inconformismo social agenciada

pelo

artista9,

cuja

aproximação

pode

ter

sido

desencadeada

especialmente pela sua vivência no Morro da Mangueira – o que se verifica, por exemplo, a partir de obras como Seja Marginal, Seja Herói e B33 Bólide Caixa 18 -

9

Para mais informações a respeito pode-se consultar FAVARETTO, Celso. Inconformismo Estético, Inconformismo Social, Hélio Oiticica. In: BRAGA, Paula (Org.). Fios Soltos: A arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 15-22.


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Homenagem à Cara de Cavalo, que tensionam problemas sociais diretamente relacionados à realidade do Morro. A forma com que Hélio aproximava sociedade e arte pode inspirar a reinvenção da relação desta com a arquitetura, aludindo às perspectivas traçadas no capítulo anterior. Além disso, Favaretto também cita a interceptação da subjetividade como algo central no trabalho de HO. Para Paula Braga (2008, p. 271), a subjetividade pode ser entendida como o que preenche virtualmente o espaço em sua experiência e que é incitada, especialmente, pela estrutura de labirinto. Seguidamente referenciada por Paola Jacques em seus escritos sobre a experiência de Oiticica no Morro da Mangueira, esta figura também ajuda a entender o conceito de EspaçoHO. Waly Salomão (2003, p. 36) coloca que o contato com o Morro “para Hélio representou a descoberta do corpo tornado dança e de outros modos de comportamento“. Entende-se que este foi um período de novas descobertas para o artista em um momento no qual ocorria uma mudança dos meios e de concepção de arte, com seu deslizamento para o vivencial e a proposição de práticas dissensuais (FAVARETTO, 2000, p. 16). Acredita-se que tenha sido a partir da experiência na Mangueira, então, que Hélio encontrou a soltura que buscava no campo da arte a partir da invasão pela vida, especialmente por novas narrativas e novas dinâmicas sociais e urbanas. Paola Jacques encara a dinâmica urbana da favela como a dinâmica do labirinto, entendendo-o como “um tecido maleável, que segue o movimento dos corpos” (JACQUES, 2003, p. 65). O espaço labiríntico se insinua como algo constantemente mutável, que evidencia processos e pressupõe movimento, desvendamento, experimentação. Noção semelhante é melhor explicada por Waly Salomão (2003, p. 87-88): A própria arquitetura enviesada da favela, as chamadas „quebradas‟ porque as ruas, quero dizer as vielas, becos sem saída, nunca seguem um caminho linear, é um caminho meândrico e a seu modo refundiu no Hélio a própria ideia de labirinto, tão presente no trabalho-desejo dele.

Percebe-se que mais do que forma, o labirinto é um estado, uma dinâmica, um caminho-movimento que se reinventa continuamente, transmutando previsível em imprevisível e efetuando a passagem do comum para uma nova perspectiva continuamente inventada pela ação de percorrê-lo. A teoria de Bernard Tschumi


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(1998) corrobora com esta concepção, conceituando o labirinto como experiência “where all sensations, all feelings are enhanced, but where no overview is present to provide a clue about how to get out10” tendo por base uma percepção não mediada, ou seja, imediata, que compõe a experiência em si. Não cabe, neste estudo, aprofundar-se mais nesta teoria, entretanto, ela é aqui apresentada como provocação para pesquisas futuras e como base, ainda que superficial, para entender a vivência oiticiquiana como experiência labiríntica tanto a nível físico ou literal, quanto metafórico. Espaço labiríntico e espaço estético fundem-se nesta percepção. Pode-se dizer, então, que o contato de Oiticica com o Morro da Mangueira se deu de forma labiríntica a partir de um contágio pela experiência, “sem artepoverismo e nem embelezamento da miséria” (SALOMÃO, 2003, p. 129), mas pela vivência direta de um novo ritmo, de novos processos, de outras produções e relações. Jacques (2003, p. 15-16) coloca que o interesse de Hélio não residia em legitimar esteticamente a favela, nem em representá-la formalmente, mas em compreender seus processos, entendendo-a não como arte, mas como reserva de arte, “potencial artístico que somente o artista pode tornar visível” (JACQUES, 2003, p. 12). Assim, Hélio contagiou-se na favela com uma nova ideia de espaço, o espaço labiríntico, no qual identificou grande semelhança com as formulações que vinha elaborando. É como se as experimentações espaciais que o artista viesse fazendo ganhassem o sentido que lhes faltavam, formulando concretamente o que sua obra insinuava. Além disso, o princípio de mutabilidade do labirinto ativo e continuamente reinventado também é importante no reconhecimento do Espaço-HO. Favaretto (2000, p. 116) identifica a arquitetura do Morro como “organização espacial aberta, adaptada às mutações do ritmo de vida”, cujas construções estão em um “contínuo estado

de

incompletude”

(JACQUES,

2003,

p.

24).

As

construções

e,

consequentemente, suas vias de conexão, estão permanentemente se reinventando, crescendo, sofrendo adaptações, em um ritmo muito mais acelerado que o da cidade formal. Assim, não há, no Morro, estados permanentes (JACQUES, 2003, p. 65), mas uma efemeridade insinuada pela transformação contínua que alude metaforicamente a toda a trajetória de Hélio identificada, por ele mesmo, enquanto 10

“Onde todas as sensações, todos os sentimentos são intensificados, mas onde nenhuma vista aérea se apresenta para fornecer uma pisa sobre como escapar”.


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Program in Progress, ou seja, enquanto processo contínuo de evolução e complementação. Labiríntico, portanto, é o espaço processual e estético que atravessa com experiências diversas e continuamente reinventadas quem se lança em sua experimentação. A vivência na Mangueira ajudou a desencadear esta noção a partir das inúmeras descobertas que ofereceu a Oiticica, como novas subjetividades e dinâmicas urbanas, problemática social, novas arquiteturas, experimentação, marginalidade, coletividade, samba e, especialmente, corpo. Para Pedrosa (1981): Foi durante a iniciação ao samba [que há quem ouse assemelhar com a dança que é o caminhar meândrico em uma favela], que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para uma experiência do tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade.

Cabe destacar que, após a vivência no Morro, Hélio teve algumas experiências vivendo fora do país, especialmente em Londres, onde realizou a Whitechapel Experience, em 1969 e em Nova York, onde viveu entre 1970 e 1978, quando retornou ao Rio de Janeiro. Embora o embrião de sua obra pareça localizarse no Brasil, sua postura de relacionamento direto com seu contexto de vida a partir da imersão na cultura local o acompanhou em experimentações também fora do país. Isso se reflete em sua obra que, mesmo quando expressa o mesmo título – os Parangolés, por exemplo – explora diferentes materiais e demais dispositivos em uma relação direta com o contexto em que se desenvolvem. Esta capacidade de se reinventar junto das condições que encontrava, evoluindo em conjunto, evidencia a sensibilidade de Hélio e sua atenção à(s) sociedade(s) em que vivia. Considera-se este caráter um dos mais fortes de sua obra. Entende-se, então, o Espaço-HO como ativado e ativador por meio do corpo completo e das vivências. Ciclicamente alimentado pelas experimentações que geravam proposições vivenciais para motivar novas experimentações, o conceito de Espaço-HO une vida e obra do artista em vertentes estéticas e labirínticas, além de ser um forte ponto de contato entre suas produções e a dimensão arquitetônica. Esta relação será tratada com maior cautela em discussões futuras, mas adianta-se a noção de Hélio de que “o espaço [e acredita-se que ele se refira ao conceito de espaço estético e labiríntico aqui chamado Espaço-HO] é importantíssimo em


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concepções arquitetônicas contemporâneas. A arquitetura tende a diluir-se no espaço ao mesmo tempo que o incorpora como um elemento seu” (OITICICA, 1986, p. 29). A noção crítica sobre o termo insinua que a arquitetura pode tanto compreendê-lo, quanto transcendê-lo e que ele é prerrogativa para seu fazer. Percebe-se que, assim como seus objetos que se soltaram no espaço provocando vivências e comportamentos, reinventando a arte que já não pode mais ser definida somente enquanto objeto, Oiticica entendeu a arquitetura como sistema que envolve o mesmo conjunto, no qual é impossível definir um dos elementos (espaço, comportamento, objeto, vivência, etc.) sem contagiar-se pelos outros. No tópico apresentado a seguir esta concepção será melhor explorada a partir das obras do artista, mas acredita-se na relevância da compreensão deste conceito para a articulação entre as demais discussões aqui pretendidas. Arte, arquitetura, labirinto, vivência, corpo, experimentação, (não-)objeto, espaço, estética, sentidos, percepção, comportamento, relação, imersão, subjetivação, significação, Morro, samba,

processo,

continuidade,

ativação,

ginga,

quebradas,

mutabilidade,

incompletude, instabilidade, dissenso, política, desconstrução...o espaço de/em Hélio é diverso e ativante, abrangendo tanto estes conceitos quanto outros tantos que podem surgir da experiência singular de contágio e subjetivação. Não há certo e errado, nem noção fixa e imutável no Espaço-HO: há processo, descoberta e transformação. Por isso afirma-se que o Espaço-HO é estético e labiríntico.


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4.2. A AÇÃO-HO Figura 19 – Cartão postal 09: A casa-diálogo

Fonte: Produzido pela autora

Tempo, corpo e espaço-HO são articulados nas ações de Oiticica, abordadas aqui de forma parcialmente fragmentada de acordo com suas implicações nas reflexões pretendidas. Existem muitas outras criações e processos que não serão diretamente abordados em função da extensão e da complexidade que acarretariam11, entretanto a bibliografia referenciada pode guiar a pesquisa entre as diversas outras produções do artista. Algumas das manifestações aqui mencionadas são obras em si; outras são modalidades e reflexões que evocaram outras tantas

11

As obras constantes neste texto tampouco são abordadas com a pretensão de esgotar as reflexões a seu respeito, mas na busca por ressaltar as principais características que auxiliam no diálogo entre a arquitetura atual e a arte de Oiticica.


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articulações. As principais criações abordadas neste estudo são: os Metaesquemas, as Invenções (Bilaterais e Relevos Espaciais), os Núcleos, Penetráveis, Projetos, Bólides, Parangolés, a Tropicália, as Manifestações Ambientais (Apocalipopótese e Magic Squares), Cosmococas, os Ninhos, Éden e Barracão. 4.2.1. Metaesquemas Conforme citado anteriormente, as primeiras experimentações de Hélio nas artes se deram na forma de Metaesquemas, pinturas em guache sobre papel cartão elaboradas no contexto do Grupo Frente. Guiados pela lógica construtivista ou, segundo Gonzalo Aguilar (2016), por uma quase obsessão na organização das formas, eles compõem uma série produzida entre os anos 1950 e 1960 a partir do trabalho com princípios como simetria, racionalidade, rigor matemático e cor. Cabe destacar que os Metaesquemas foram assim denominados por Hélio Oiticica em análise posterior realizada na década de 1970 e que seu caráter serial configura um fazer característico do artista, cuja obra apresenta inúmeras variações sobre temas e estruturas similares revelando o caráter experimental e progressivo de seu trabalho. A

série

dos

Metaesquemas

revela

um

processo

de

evolução

de

experimentações livres com fortes heranças construtivistas para perspectivas de quebras e inovações especialmente no tratamento da forma. Assim, é possível vislumbrar uma extensa variedade de produções e identificar tanto versões que remetem diretamente ao trabalho geométrico de Mondrian (Figura 20 e Figura 21), quanto outras iniciam a desconstrução do geometrismo e racionalismo, insinuando tensões de cunho espaço-temporal com formas que aparentam instabilidade e vibração (Figura 22 e Figura 23).


86

Figura 20 – Metaesquema de 1955/1956

Figura 21 – Metaesqeuema de 1956

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra66363/grupo-frente

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra 20585/grupo-frente

Figura 22 – Metaesquema de 1957/1958

Figura 23 – Metaesquema de 1958

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra66365/metaesquema

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra4864/metaesquema

A partir destas transformações, Favaretto (2000, p. 51-52) identifica que os Metaesquemas foram considerados por Hélio uma evolução na pintura em função da “indicação efetiva do salto para o espaço” que ela vem a operar com os trabalhos da vanguarda da época. Entende-se que esta pode ser uma visão precipitada, uma vez os Metaesquemas prenunciam de forma ainda tímida a tomada do espaço pela pintura. É inegável, entretanto, que eles testemunham o processo de superação da representação evoluindo, conforme exposto nas imagens, de composições em grelhas rígidas a uma certa desestabilização com a introdução de espaços em branco e rotações/angulações das formas regulares. Assim, retângulos vão sendo transformados em trapézios e noções de movimento vão sendo crescentemente incorporadas, prenunciando a ampliação dos limites da pintura que, em proposições


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futuras, chega a alçar-se ao espaço. Entende-se que sua principal contribuição diz respeito à transformação da estrutura gráfica em um espaço virtual (FAVARETTO, 2000, p. 53) e ao tensionamento de questões sobre o espaço pictórico (e extrapictórico) e as relações figura-fundo, que vão paulatinamente sendo desconstruídas. A partir deste viés os Metaesquemas passam a se desdobrar em novas proposições, profetizando a “evolução da pintura” (FAVARETTO, 2000, p. 53) para além das fronteiras às quais até então se limitava ao culminarem nas inúmeras obras reunidas sob o título de Invenções. 4.2.2. Invenções Superada a rigidez das estruturas compositivas das obras, a atenção de Oiticica se direciona, a partir de 1959, para a cor. Ela já era pauta de algumas explorações concretistas em busca de atonalidade e a sutileza em seu tratamento por HO já era notada nos Metaesquemas, sobre os quais se identifica uma cuidadosa aplicação das tintas que sequer revelava as pinceladas do artista (TATE MODERN). Nas Invenções, Hélio desprende-se das experimentações compositivas com módulos geométricos sobre papel cartão e passa a pintar planos inteiros com a mesma cor uniforme, atendo-se a suas potências e vibrações em superfícies monocromáticos e geométricas que desconstroem a própria noção de quadro. Novas superfícies e materiais, como chapas de madeira e compensado, passam a ser exploradas nestas expressões, eliminando figura, fundo e suas relações a ponto de o interesse maior recair sobre as relações entre cor, luz e percepção. Oiticica experimenta, então, soltar estes elementos no espaço, evocando não mais experiências em que o olhar do espectador se aprofunda no quadro, mas em que o corpo todo reconhece as relações de cor e estrutura (FAVARETTO, 2000, p. 59). As Invenções insinuam a transição das figuras e tensões (movimentos, vibrações) presentes na superfície bidimensional dos Metaesquemas para o espaço extra-quadro. É com estas experimentações que Oiticica opera uma das mudanças mais radicais da pintura, espacializando-a efetivamente. De maneira mais elucidativa pode-se dizer que As Invenções radicalizam a transformação da pintura, levando-a ao limite de suas possibilidades. Como metalinguagem do quadro, as Invenções


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exaurem o ato de pintar e a estrutura da pintura, propondo o espaço “como elemento totalmente ativo”. (FAVARETTO, 2000, p. 57)

Enquanto introdução do espaço ativo e da percepção incorporada da obra, as Invenções prenunciam o caráter ambiental na obra de Oiticica e ativam o corpo e o novo papel do/a espectador/a, que passa a transformar-se em participador/a ou experimentador/a, consolidando a superação do viés representativo no trabalho do artista. Bilaterais e Relevos Espaciais são as principais expressões das Invenções e ilustram o caráter processual e evolutivo das obras de Hélio levando ao extremo a preocupação concretista sobre a autonomia da cor que vai, progressivamente, se inserindo na transição para explorações neoconcretas. Neste momento, a rigidez compositiva e conceitual passa a se desconstruir compreendendo as cores não como entidades absolutas, mas disparadoras da percepção “numa passagem que traz, implícita no corpo e no ato, uma comoção do sujeito” (RIVERA, 2012, p. 20). 4.2.2.1. Bilaterais e Relevos Espaciais O sujeito comovido pelas Invenções vai, progressivamente, afirmando-se como corpo a partir dos Bilaterais e dos Relevos Espaciais. Produtos-processo, pode-se dizer que os Bilaterais e Relevos Espaciais consistem nos primeiros experimentos de Hélio a explorar atitudes não contemplativas. Como que realizando espacialmente o plano elaborado nas superfícies dos Metaesquemas, os Bilaterais propõem a vivência da cor a partir das superfícies planas e monocromáticas expostas de modo suspenso no espaço. As investigações sobre as possibilidades de se expandir a pintura acabam por envolver o espaço e fomentar a criação do que se considera uma nova forma de expressão localizada entre a pintura e a arquitetura (TATE MODERN b), ou uma pintura espacial (Figura 24): “trata-se então da tentativa de efetuar propostas de síntese entre estrutura, espaço e tempo, o que implica fundamentalmente reexame da relação entre sujeito e objeto” (RIVERA, 2012, p. 21). A ativação do espaço ativa, também, o corpo e seu comportamento na relação com a obra, renovando a pauta reflexiva e apresentando uma nova problemática. Se a rigidez de formas era negada, a rigidez da relação sujeito-objeto também parecia incoerente. Entretanto, o Bilateral, mesmo que disposto no espaço potencializando a cor e o ambiente, pouco exigia do corpo além da contemplação em sua apreensão. Neste sentido é que novos experimentos surgiram sob o título de


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Relevos Espaciais, planos monocromáticos semelhantes aos Bilaterais que começam

a

apresentar

dobras

e

superposições,

almejando

uma

maior

tridimensionalidade (Figura 25). Esta complexificação que remete à inquietação de uma relação ainda pouco ativa entre sujeito e objeto passa a exigir do corpo, movimento, instigando-o a enxergar dentro das dobras ou atrás do primeiro plano de apreensão. Produção importante na trajetória do artista, estas Invenções representam tanto a passagem do suporte para o espaço real, tensionado pelo jogo entre a cor, o vazio e o desvendamento móvel dos espectadores-participantes (Figura 26), quanto inauguram a duração das obras, inserindo o caráter temporal. A depuração da cor, portanto, “ativa espaço, tempo (duração) e ato” (RIVERA, 2012, p. 20), o que desperta em Oiticica uma lógica relacional que passa a pautar a quase totalidade de suas obras subsequentes. Figura 24 – Bilateral Teman Bil 003, Hélio Oiticica, 1959

Figura 25 – Relevo Espacial, Hélio Oiticica

Fonte: https://www.tate.org.uk/art/artworks/oiticicabilateral-teman-bil-003-t12762

Fonte: http://www.heliooiticica.org.br/obras/ obras.php?idcategoria=9


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Figura 26 – Interação com um Relevo Espacial, 1959

Fonte: http://arteatual.blogspot.com/2007/06/ hlio-oiticica-online.html

Percebe-se, então, que Bilaterais e Relevos Espaciais se relacionam diretamente, compondo variações de um mesmo princípio e evoluindo no sentido de realizar ampliações na arte temporalizando-a e espacializando-a. Segundo Favaretto (2000, p. 61), “o espaço gerado pelos Bilaterais é ativo e ativante; [...] altera os comportamentos habituais da experiência estética”, agenciando mudanças na relação entre corpo e obra. Pode-se dizer, de acordo com o que se conceituou como espaço estético, que estas obras chegam a auxiliar na reforma do conceito de experiência estética na pintura, introduzindo noções de comportamento e percepção em sua definição. Favaretto (2000, p. 61) também atribui esta evolução aos Relevos Espaciais, afirmando que a partir deles “produz-se um „aumento conceitual‟. Os efeitos variados de luminosidade decorrem da posição do objeto no espaço [...]. A participação do espectador depende do lugar da observação”, variando com o movimento e as particularidades de cada corpo. Identifica-se, então, um forte potencial fenomenológico e o início da incorporação de noções de mutabilidade e efemeridade na obra de Oiticica. Assim, “a experiência contemplativa transmuta-se em um comportamento vivencial. Vivencia-se a arte, vivencia-se a cor, vivencia-se a obra” (FAVARETTO, 2015), identificando nas produções oiticiquianas do final da década de 1950, potências que ampliaram a arte e que podem inspirar fazeres alternativos na ampliação da arquitetura atual. Verifica-se que a partir dos Bilaterais e dos Relevos Espaciais, a superação da pintura convencional – suporte, representação e relações passivas entre sujeito-objeto – se concretiza em HO.


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4.2.3. Núcleos Isto, ao meu ver, não significava somente uma depuração extrema, mas a tomada de consciência do espaço como elemento totalmente ativo [...]. Tudo o que era antes fundo, ou também suporte para o ato e a estrutura da pintura, transforma-se em elemento vivo; a cor quer manifestar-se íntegra e absoluta nessa estrutura quase diáfana, reduzida ao encontro dos planos ou à limitação da própria extremidade do quadro. (OITICICA, sem data, p. 1)

A cor e o espaço que ganham vida nas produções oiticiquianas revelam nos Núcleos e Penetráveis um ponto de inflexão entre duas fases da obra do artista: uma visual e outra sensorial (FAVARETTO, 2000, p. 65). Adentrando na década de 1960, Hélio reinventa as Invenções concebendo uma espécie de Relevo Espacial espacializado, ou seja, o artista explode progressivamente as dobraduras que conformavam os Relevos Espaciais e separa seus planos (Figura 27 e Figura 28) configurando, então, os Núcleos: placas monocromáticas de madeira penduradas em um suporte ripado a partir de “posições marcadas e numeradas, como em uma planta”,

configurando

uma

“construção

arquitetônica

de

diversos

níveis”

(FAVARETTO, 2000, p. 64), ortogonal e labiríntica, na qual o corpo do/a observador/a transmutado/a em participador/a pode entrar. As placas são inicialmente fixadas em suas posições – para evoluir a versões em que os experimentadores podem movê-las – e buscam seguir na exploração do que Oiticica chamava de “desenvolvimento nuclear da cor”, referindo-se a sua potência espacial e temporal (que referencia a duração da experiência), “como se ela pulsasse dentro do seu núcleo e se desenvolvesse” (OITICICA, sem data, p. 3). Hélio explora, então, uma dimensão infinita da cor a partir do núcleo que se expande pela vivência e se revela “uma percepção de estruturas-cor no espaço e no tempo, muito mais ativa e completa no seu sentido envolvente” (OITICICA, sem data, p. 2). Este sentido alude à criação de caminhos, percursos passíveis de se desenvolverem entre as placas coloridas próximos das experiências dos corpos nas arquiteturas vivenciais. O convite à vivência dos Núcleos incita não só o reconhecimento da pulsação óptica da cor, mas de seus efeitos multissensoriais para os quais uma experiência dinâmica é prerrogativa. Para Hélio Oiticica (sem data, p. 3), “a visão estática da obra, de um ponto só, não a revelará em totalidade; é uma visão instável a sua; melhor dizendo uma visão cíclica” (Figura 29). Acredita-se que o termo cíclico aqui empregado, entretanto, não se refere a uma repetição de


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eventos ou sensações, mas a um movimento contínuo que, mesmo retornando ao mesmo ponto, é capaz de despertar diferentes percepções da obra. É neste sentido que Oiticica reconhece a abertura de caminhos na arte para a aspiração do que enuncia como a “sensibilidade do homem moderno, ou seja, a de transformar a própria vivência existencial, o próprio cotidiano, em expressão, uma aspiração que se poderia chamar de mágica tal a transmutação que visa operar no mundo do ser humano” (OITICICA, sem data, p. 15). Este mundo é tanto interior quanto exterior, e o interesse do artista recai sobre cada subjetividade ativada, legitimando as diversas expressões e percepções como componentes fundamentais das suas obras ou mesmo como reverberações que dispensam legitimação e que superam a autoridade da arte. Derivadas da componente essencial que evolui da cor que se pretendia autônoma, para a vertente humana que ressignifica cor, experiência e obra, estas experimentações de Hélio insinuam a desintelectualização da arte, libertando-a e abrindo para inspirações cotidianas. Figura 27 – NC6 – Núcleo Médio 6, Hélio Oiticica, 1961

Fonte: http://press.cmoa.org/high-resolution-images/helio-oiticica/plates_024_023_fh/


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Figura 28 – Grande Núcleo, Hélio Oiticica, 1960

Fonte: http://arteatual.blogspot.com/2007/06/hliooiticica-online.html

Figura 29 – Núcleo 6, Hélio Oiticica, 1960

Fonte: http://memorialdademocracia.com.br/ imaginacao/artes-visuais/vanguardas

Favaretto (2000, p. 90) coloca, então, que os Núcleos são arquiteturas nas quais “o corpo entra como requisito construtivo”, explorando uma estética de movimento e envolvimento e aumentando a ênfase no processual e no participativo. Hélio

aproxima-se

do

cotidiano

validando

e

considerando

o

corpo

sem

necessariamente colocá-lo no centro da obra, mas colocando-o “em movimento no espaço, em pulsação com a cor, em gestos que se desenrolam temporalmente” (RIVERA, 2012, p. 24). Tais gestos advindos da abertura ao corpo desmantelam a rigidez ao acolher a indefinição da obra, ressignificada e reinventada em cada experiência. É nesse sentido que os Núcleos fornecem uma grande contribuição nas discussões sobre arte, corpo e arquitetura, uma vez que se “desloca o que se designa como „arte‟, em que vigem a disponibilidade criadora (pela participação, pelo improviso), o processo, o inacabamento e a indeterminação” (FAVARETTO, 2000, p. 91). A permissividade ao toque, à interação e à manipulação das peças nos Núcleos compostos por placas móveis também desestabiliza expressões convencionais que demandavam distância e certa impessoalidade na interação sujeito-objeto. Oiticica inaugura, então, o que Celso Favaretto (2000, p. 64-65) designa “campo de ação”: “Caminhando por labirintos de cor, banhando-se assim em cor, penetrando em cabines que ele mesmo constrói com a movimentação de placas, o espectador experimenta um espaço de tensões” que só ganha sentido a partir do corpo. Suas vontades criadoras, suas percepções, suas reações, sua entrega produzem o manipular e o reinventar. Wisnik (2017, p. 97) considera que este espaço de tensões contribui para uma desprogramação dos corpos, “potencializando-lhes o sentido de um viver não programado” a partir da transformação dos módulos então chamados


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“ambientais”. A potência destas obras questiona comportamentos e promove em seu/sua experimentador/a, indagações que transcendem a cor e o fazer artístico, permitindo que cada participador/a seja tão artista – e responsável pela desconstrução das formas de arte e vida convencionais – quanto o propositor da obra. Nas palavras de Oiticica (1962, p. 4), “o núcleo é a elaboração e a vontade de dar uma grande ordem puramente intuitiva aos elementos de que disponho: cor, estrutura, espaço, tempo. Seu sentido é uma espécie de síntese entre o arquitetônico e o musical”. Em vários momentos Oiticica chegou a afirmar que o que fazia era música, ecoando as investigações em realização na música moderna e aludindo a uma correspondência entre o papel do som e o papel da cor. Segundo Favaretto (1989-1990), “a „dimensão infinita‟ da cor provém da musicalidade” existente em sua pulsação e na exploração de seus tons tímbricos. Assim, Oiticica sugere a articulação de elementos visuais, táteis, comportamentais, enfim, sensoriais

em

essência

em

obras

simultaneamente

arquitetônicas

(pela

espacialização) e musicais (pela pulsação). Os Núcleos ajudam, portanto, na espacialização da cor, na humanização da obra, no trabalho sinestésico que desconstrói categorias e fazeres e na articulação entre tempo e espaço, endossando progressivamente o caráter construtivo da produção de Hélio. Ao exaltar-se aspectos arquitetônicos e construtivos explorados nos Núcleos, fortes heranças das explorações concretistas, cabe resgatar o que o artista afirmava sobre o conceito: Construtivo seria uma aspiração visível em toda a arte moderna, que aparece onde não esperam os formalistas, incapazes que são de fugir às simples considerações formais. O sentido de construção está estritamente ligado à nossa época [...]. É esta sem dúvida a época da construção, construção do mundo do homem, tarefa a que se entregam, por máxima contingência, os artistas. Considero, pois, construtivos os artistas que fundaram novas relações estruturais [...] e abrem novos sentidos de espaço e tempo. (OITICICA, sem data, p. 6-7)

É a partir desta noção de construção como proposições que envolvem o corpo (aqui usado em substituição ao termo “homem”) no espaço e no tempo, explorando novas relações entre arte e comportamento e entre objeto (já transmutado em “não-objeto”) e espectador/a (transformado/a em participador/a experimentador/a) que se inserem os Núcleos. É também a partir desta afirmação


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que se reitera a aproximação entre a obra de Oiticica e a arquitetura, especialmente em seu contexto atual, insinuando a superação de formalismos e a conexão direta com o ser humano em uma abertura para novos sentidos. A conexão entre sujeito e objeto operada pelos Núcleos, entretanto, ainda prescinde de certa profundidade, definindo-os como expressão de arte participativa mais a partir da manipulação do que da imersão propriamente dita. Eles ainda guardam uma certa exterioridade da obra em relação ao corpo. Para ilustrar melhor este distanciamento, traça-se um paralelo com uma expressão arquitetônica que se compõe de forma similar aos Núcleos: a sede da Storefront for Art and Architecture (Figura 30) em Nova York. Fundada em 1982 como uma “plataforma experimental e um espaço expositivo para ativar e engajar vozes emergentes e promover discussões públicas a respeito de questões que afetam, influenciam e podem mudar o ambiente construído” (STOREFRONT FOR ART AND ARCHITECTURE, tradução nossa) abarcando a arte, a arquitetura e o design, esta organização teve sua fachada reformulada na década de 1990 a partir de uma ação resultante da parceria entre o arquiteto Steven Holl e o artista Vito Acconci. Segundo o arquiteto, a edificação se insere na esquina de um bloco que marca a intersecção entre três bairros distintos (STEVEN HOLL), consistindo em uma potente área de contato entre eles. Além disso, Steven ainda explica que o espaço expositivo é bastante restrito e se estrutura a partir de uma planta triangular, fazendo com que sua fachada seja um de seus planos mais longos e uma importante aliada na expressão arquitetônica da organização. Em função disso, a reforma realizada por Holl e Acconci deu especial importância à fachada, buscando ainda potencializar suas relações e tensionar questões referentes aos espaços expositivos e ao regime de arte tradicional. O artista e o arquiteto resolveram, então, compor uma fachada permeável e interativa, permitindo interferências externas em uma crítica à exclusividade do mundo da arte e de seus espaços expositivos. Holl e Acconci propuseram um grande plano com recortes pontuais preenchidos por painéis pivotantes de tamanhos e orientações diversas (Figura 31 e Figura 32), capazes de reinventar continuamente a fachada e permitir sua diluição integrando o interior e o exterior da galeria que ela limita (STEVEN HOLL). Os painéis podem ser movimentados por qualquer pessoa, tanto a partir do interior, quanto do exterior, e abrem seu desenho à interferência, tolerando alterações e reinventando-se continuamente como uma imagem frágil de


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arquitetura. Percebe-se que a porosidade da fachada é uma potente estratégia tanto física como metafórica que sugere ou ilustra a abertura da instituição à participação popular. Entretanto, apesar do importante trabalho com a dissolução de fronteiras entre interior e exterior e entre e vida cotidiana e a arte, com a democratização a seu acesso e com a contribuição à arquitetura de espaços expositivos que o projeto da Storefront representa, flexibilizando expografias e adaptando-se a diferentes formatos, acredita-se que ele não se aprofunda na relação entre corpo e arquitetura. Embora sejam sugeridos contatos importantes, a fachada compõe-se como um Núcleo oiticiquiano que deseja abarcar uma certa complexidade relacional mas ainda se expressa a partir de configurações excessivamente rígidas para tal. Figura 30 – Fachada da Storefront for Art and Architecture

Fonte: http://storefrontnews.org/general-info/about-storefront/ Figura 31 – Paineis da Storefront vistos desde o exterior

Figura 32 – Paineis da Storefront vistos desde o interior

Fonte: https://architecturenow.co.nz/articles/ worldwide-storefront-call-for-proposals/-York

Fonte: https://archpaper.com/2012/07/on-viewaestheticsanesthetics-at-the-storefront-for-artand-architecture-through-july-28/


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As configurações espaciais tanto dos Núcleos quanto da fachada da Storefront for Art and Architecture, ainda que permitam inúmeras combinações e possam compor uma infinidade de possibilidades distintas, baseiam-se em movimentos pré-definidos e, a certo ponto, limitadores. Esta constatação não desmerece as obras em questão, mas aponta possibilidades de superação que, na obra de Oiticica, geram inquietações e novas experimentações. No sentido de aprofundar sua aspiração construtiva, o artista expande os Núcleos e os transforma em uma nova categoria intitulada como Penetráveis. Cabe refletir sobre como processo semelhante poderia se dar em arquiteturas inspiradas pela Storefront. 4.2.4. Penetráveis Segundo Oiticica (sem data, p. 5), enquanto “os primeiros núcleos são a culminância da fase anterior das primeiras estruturas no espaço, o penetrável abre novas possibilidades ainda não exploradas dentro desse desenvolvimento a que se pode chamar construtivo da arte contemporânea”. Na categoria dos Penetráveis o artista projeta grandes estruturas abertas, em configurações labirínticas operadas por planos fixos no chão, sugerindo e esperando comportamentos (SPERLING, 2008, p. 118) em uma espécie de ampliação dos Núcleos. Estas estruturas, pela escala e configuração que apresentam, sugerem arquiteturas labirínticas (Figura 33), insinuam cômodos e transições, evocam figuras de casas, edifícios, comunidades, enfim, de agrupamentos humanos e urbanos. Segundo Favaretto (2000, p. 68), os enfatizam “polimorfias, mobilidades, acontecimentos e aberturas”, dependendo diretamente da imersão do/a participador/a e de seu movimento dinâmico. Os Penetráveis conformam-se, então, como espaços que oferecem caminhos a serem percorridos entre planos banhados de cor (Figura 34) e/ou de luz (Figura 35), convidando ao desvendamento e transferindo a autonomia da cor para o seu/sua experimentador/a. Não há um percurso sugerido, um sentido de visitação. Há um convite: imersão.


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4.2.4.1. Do Penetrável à Poética do Gesto Pode-se dizer que nos Penetráveis a visão cíclica explorada nos Núcleos se transforma no que Oiticica chama de visão global ou esférica, pois o/a participador/a é colocado/a virtualmente dentro da cor/luz. É a esta experiência desvelada na transição sutil da visão cíclica para a visão global que Favaretto (2000, p. 67) referencia como “uma poética do gesto”, ou seja, “o que ressalta fazer-aparecer, o manifestar, o significar uma nova atitude artística” e é neste sentido que a expressão foi incorporada no título deste trabalho. Não referenciando o gesto criador, nem sequer remetendo ao artista: trata-se do gesto de apropriação, do gesto perceptivo momentâneo e efêmero que insinua dança, teatro, pintura, espacialização, corpo. Nas palavras de Tania Rivera (2012, p. 29) “mais do que reafirmar um lugar para o corpo, a obra de Hélio agencia, principalmente, lugares que nos convocam a um deslocamento, a um desconhecimento do campo onde estamos e à realização de trajetórias múltiplas em um espaço labiríntico”. Seu gesto revela-se especialmente na ênfase de quem quer reafirmar que o que fala no corpo é além-boca, alémlinguagem falada e é plural, diverso e cambiante. A poética do gesto evoca o corpo que é central no reinventar de HO, que é a negação da arte convencional e que pode, também, endossar o despertar perceptivo na arquitetura atual. O gesto também interessa aqui conforme referenciado por Guy Debord (1967). Para o autor, ele é a resistência frente ao domínio visual das representações; o convite à imersão que aproxima corpos e contextos e os dota de autonomia e consciência. Debord acessa a discussão sobre o gesto a partir das considerações sobre a intencional distância muitas vezes colocada entre corpo e objeto (seja ele um item de consumo, uma peça de arte, seja a própria sociedade, modos de vida, etc) a partir da contemplação passiva, tônica bastante semelhante à trabalhada na obra de Oiticica. A partir dela, o corpo se torna espectador e “quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo” (DEBORD, 2967, p. 28). Este distanciamento propositado consiste em uma estratégia que esvazia progressivamente corpos, viveres e culturas preexistentes estabelecendo uma exterioridade espetacular. Nas palavras de Guy Debord (1967, p.28), “a exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos


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apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em nenhum lado, porque o espetáculo está em toda a parte”, aprisionando os corpos mesmo em suas ilusões de liberdade. Torna-se claro, então, o que motiva a adoção da metáfora da casa neste trabalho: reconhecê-la ambiental é como penetrar nestas camadas de dissimulações e acessar o que vai além do espetáculo; restituí-la é como restituir o gesto próprio, desvelando corpos ativos e capazes de manifestar gestos próprios, longe de condicionamentos e pré-definições. Se, de tão contagiados pelo espetáculos, estes corpos já não sabem mais que gestos são seus, Hélio poeticamente dispõe um espaço de redescoberta, propondo Penetráveis onde o movimento labiríntico do perder-se se converte em um significativo reencontro. É este o movimento operado por Oiticica que a poética do gesto revela como inspiradora e necessária a operações igualmente sensíveis e críticas nas vertentes anti-hegemônicas da arquitetura atual. Acredita-se que uma poética do gesto transcende o objeto, o produto ou o espetáculo, assim como a ação unidirecional – que reserva o gesto somente para o/a arquiteto/a – constituindo processo, revelando comportamento, criação coletiva, movimento e alteridade a partir do corpo aberto e consciente. Figura 33 – Penetrável Filtro, Hélio Oiticica, 1972

Fonte: http://codinomepensador.blogspot.com/2009/11/ antiarte-por-excelencia-de-helio.html


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Figura 34 – Penetrável PN1, Hélio Oiticica, 1960

Figura 35 – Penetrável A Invenção da Luz, Hélio Oiticica, 1978/1980

Fonte: http://press.cmoa.org/highresolution-images/heliooiticica/plates_025_img_3673-2/

Fonte: http://www.jornaljovem.com.br/edicao17/exposicao52.php

4.2.4.2. Da Poética do Gesto às ordens ambientais É neste ponto de contato intenso entre o Contexto-HO e a atualidade que “Oiticica, com teorização singular, inaugura as suas „ordens de manifestações ambientais‟” (FAVARETTO, 2000, p. 64). Este termo será mais explorado adiante, mas pode-se compreendê-lo parcialmente a partir dos disparadores presentes nas expressões dos Penetráveis. Eles revelam “a conversão do espaço plástico em ambiente” (FAVARETTO, 2000, p. 76) e exaltam o comprometimento de HO com a transformação do espaço em Espaço-HO, ou seja, de um espaço estático para um estético e labiríntico; espaço ambiental. Em outras palavras, o espaço que Oiticica passa a trabalhar especialmente a partir dos Penetráveis “é espaço arquitetônico onde o corpo é convidado a entrar. Porém, em vez de visar que o corpo ali se instale placidamente, ele incita a um movimento do sujeito” (RIVERA, 2012, p. 30), tanto cinético quanto metafórico e interior, aludindo à desconstrução pessoal, à revisão de valores, à transformação de conceitos, percepções, etc. Paola Jacques chega a lembrar que no centro dos labirintos há, por vezes, espelhos, transformando a busca nos espaços labirínticos em uma busca de si mesmo (RIVERA, 2012, p. 32). Assim, “uma convocação do corpo pode portanto ser capaz, graças a uma proposição poética, de reengatar o sujeito em suas aspirações mais íntimas” (RIVERA, 2012, p.


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30). É neste sentido que o lema “participação do espectador” por vezes utilizado para conceituar a obra de Oiticica pede por uma ampliação para além do clichê, revelando a profundidade e o hibridismo entre sujeito e objeto melhor sugerido por conceitos como fusão, imersão e/ou incorporação. Tania Rivera (2012, p. 71) chega a sugerir que a participação converte-se na força criadora das obras de Oiticica, enunciando que sua “criação é encontro”, tanto porque suas obras por vezes originam-se de encontros do artista com determinadas realidades, quanto porque provocam um recriar constante a partir da relação com os corpos e sujeitos. Pode-se dizer, então, que com a ideia de participação o artista trata “de apelar para uma potência coletiva de „criação‟ que é (re)criação poética do sujeito, no objeto, no outro, na cultura em suas raízes, de forma subversiva e transformadora” (RIVERA, 2012, p. 70). Essa vontade, segundo Tatiana Ferraz (2006, p. 149), já existia desde princípios do século XX de uma forma mais utópica. Nas propostas de Oiticica e, especialmente nas experimentações ambientais, ela se desenvolve na forma de experimentações reais, sendo “tomada como dado intersubjetivo e inerente à realização dos trabalhos” ao compor “a estrutura própria da obra” (FERRAZ, 2006, p. 149). Assim, enfatiza-se a profundidade e importância de compreender a participação em Oiticica como atitude que é “muito mais do que uma interação por parte do espectador ou participante, trata-se de convidá-lo a recolocar em jogo o mundo da representação e seu lugar nele” (RIVERA, 2012, p. 124). As manifestações surgidas desta ampliação ajudam a compreender o que Hélio nomeia como ordens ambientais. Tal separação sugere uma estratégia desenvolvida pelo artista para organizar suas obras essencialmente seriadas e permitir-se romper com cronologias e ilusões evolutivas inaugurando, de acordo com necessidades suas ou identificadas sensivelmente em seus ambientes, novas formas de expressão, ou seja, novas ordens. A participação ativa dos corpos e o caminho experimental perseguido por Oiticica ao longo de toda a sua trajetória levam a este entendimento e a esta necessidade, permitindo reconhecer esgotamentos e reinaugurar manifestações relacionadas ou não umas às outras. Assim, todos os títulos aqui apresentados como Ação-HO constituem ordens que congregam inúmeras variações. É comum, portanto, encontrar diversas produções que carregam o mesmo título, mas variam em numerações ou em nomenclaturas secundárias – por vezes homenageando amigos ou outras personalidades –


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apresentando-se de formas variadas e dispondo-se à participação segundo preceitos semelhantes. As Figuras 33, 34 e 35 ilustram esta afirmação: todas correspondem a Penetráveis (intitulados, respectivamente, “Penetrável Filtro”, “Penetrável PN1” e “Penetrável A Invenção da Luz”), e se estruturam de forma parecida, estabelecendo caminhos a serem percorridos, entretanto, seus materiais, sua configuração e sua extensão variam. Trata-se da diversificação expressiva de um mesmo princípio. O título ambiental que precede as ordens corresponde, de certa forma, a este conjunto de variações. O termo que será melhor explorado futuramente, remete, muitas vezes, à noção de totalidade; à reunião de fatores distintos, sejam eles elementos compositivos, culturais, sensoriais, etc. Ele sinaliza, neste momento, o papel das ordens enquanto conjunto que congrega os diferentes preservando e valorizando a sua diferença em vez de uniformizá-la e reduzi-la. A partir do reconhecimento e do trabalho consciente em ordens ambientais, Hélio Oiticica escancara “a operação mais estimulante das pesquisas contemporâneas: a abertura” (FAVARETTO, 2000, p. 77), pois a realiza no nível da própria criação. Suas obras se abrem experimentalmente a variações, abrangendo corpos, temas, contextos, procedimentos, materiais, operações, dinâmicas e gestos distintos. Esta abertura atua expandindo campos e relações na pretensão ambiental recém citada, relacionando-os em uma totalidade diversa. Assim, Oiticica enfatiza com os Penetráveis a poética do gesto, da participação ativa e da reinvenção constante agenciada tanto pela alteridade, quanto pelo próprio artista a partir do corpo e da vivência. O fim da arte representativa é, enfim, decretado no exercício oiticiquiano, resistindo ao espetáculo, às universalizações e induzindo à subjetivação constante. A este respeito, Oiticica (1960, p. 2) afirma: Quanto mais não objetiva é a arte, mais tende à negação do mundo para a afirmação de outro mundo. Não a negação negativa, mas a extirpação dos restos inautênticos das vivências do mundo, corriqueiras. [...] O que é preciso é que o mundo seja um mundo do homem e não um mundo do mundo.

Respaldadas por esta noção as proposições ambientais de Hélio passam a atuar na reaproximação dos sujeitos com suas singularidades e vontades. Sugerem que “o eu se revira poeticamente no espaço, abrindo mão da expressão direta para tornar-se ele mesmo forma sinuosa, forma indefinida” (RIVERA, 2012, p. 27) e


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reinventar-se ou reconectar-se consigo e com um mundo que o permita fazê-lo. Assim, acredita-se que é a partir da proposição de vivências humanas – iniciadas com maior ênfase nos Penetráveis – que a arte subjetiva de Hélio passa a operar no sentido de reconquistar o lugar do corpo no espaço, restituindo ao ser humano um mundo que é seu e devolvendo ao gesto sua face poética. A partir disso, a efemeridade ganha especial importância, pois um comportamento, operado por determinado corpo no espaço mutável e em um intervalo de tempo definido, nunca poderá ser reproduzido sob as mesmas condições. A arte se reafirma, então, campo ampliado, lugar de “uma atuação imprevisível e singular por parte do participador” (RIVERA, 2012, p. 29) que, portanto, não pode ser consumida enquanto produto ou objeto acabado. Ela é processo que valoriza cada micro-ação (incluindo a opção de abster-se do contato) e que se reinventa tanto a partir de variações e continuidades, quanto de rupturas e reinaugurações. Síntese das aspirações ambientais, experimentais, construtivas e comportamentais, o Penetrável sinaliza a consolidação da nova arte de Hélio Oiticica, onde o visual se funde com as outras extensões sensoriais e o corpo experimentador atua de forma total na obra com a mesma – ou até maior – responsabilidade de quem a propõe. 4.2.5. Projetos Em um movimento constante de expansão tanto de conceitos quanto de escala, Oiticica passa a elaborar os Projetos, “inicialmente realizados em forma de maquetes, depois, em manifestações ambientais” (FAVARETTO, 2000, p. 68), a partir da síntese realizada nos Penetráveis. Chamar estas produções de Projetos é estratégia usada pelo próprio artista para questionar nomenclaturas ou rótulos artísticos que pressupõem “categorizações normatizadoras” (SPERLING, 2008, p. 118), além de implicar em algo aberto a ser concretizado, referindo-se ao ato de “lançar-se em proposições futuras, „experimentar o experimental‟” (SPERLING, 2008, p. 118), lema que guiou a ação de HO. O primeiro e, talvez, um dos mais significativos Projetos é denominado Cães de Caça (Figura 36) – nome extraído de uma constelação – que caracteriza uma obra expressa na forma de um grande jardim com três entradas, fazendo a transição entre natureza e elementos construídos. Ele é composto por cinco Penetráveis idealizados por Oiticica, uma obra de Reynaldo Jardim (o Teatro Integral) e outra de Ferreira Gullar (o Poema


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Enterrado, realizado em parceria com HO). Esta, concebida para se instalar no jardim da casa de Hélio na década de 1960, encontra uma descrição bastante clara nas palavras de Gonzalo Aguilar: A obra consistia em uma escada que conduzia a uma grande construção cúbica de 2,5 x 2,5 metros, feita abaixo do nível do solo, com uma antessala de 1,5 x 2,5 metros. O leitor-espectador entrava nesse recinto e se deparava com um cubo menor (40cm), de cor vermelha, sem um dos lados. Esse cubo continha (o espectador devia tirá-los) outros dois cubos: um verde (25 cm) e outro branco (12 cm), este último sem aberturas. Quando o espectador tirava o último cubo – o branco –, deparava-se com um espelho e a palavra „rejuvenesça‟, na base do cubo. Descrito ironicamente por Ferreira Gullar como „o primeiro poema com endereço postal da literatura mundial‟ (op. cit., p. 60), o Poema enterrado não pôde ser utilizado porque uma chuva inundou o local. (AGUILAR, 2016, p. 63)

O Poema Enterrado denuncia a proximidade de Hélio com a poesia (especialmente a personificada pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos), e inaugura uma característica que passa a ser recorrente em suas obras: a sobreposição de palavras/textos/poemas. O próprio Oiticica produziu extensa obra teórica em conexão direta com suas proposições construídas (ou construtíveis), denotando a proximidade do artista também com esta forma de expressão. A respeito da integração entre estas modalidades e entre seus penetráveis e as expressões de Reynaldo Jardim e Ferreira Gullar que integram o Projeto Cães de Caça, Oiticica (1961, p. 3) escreve: Creio que se integram em espírito, por possuírem também, noutro campo, um caráter estético e mágico, e, como os penetráveis, também são penetráveis, sendo possível de cada vez um só espectador. Num sentido mais alto, são obras simbólicas, derivadas de diversos campos da expressão, que se conjugam aqui numa outra ordem, nova e sublime. É como se o projeto fosse uma reintegração do espaço e das vivências cotidianas nessa outra ordem espaço-temporal e estética, mas, o que é mais importante, como uma sublimação do humano.

Acredita-se que os artistas trabalharam, no Projeto, na concepção de um espaço – nunca construído, mas expresso de forma bastante elucidativa em forma de maquete – como preexistência ativada a partir da experiência/vivência à maneira dos Penetráveis, integrando-os tanto entre si, quanto no ambiente no qual se inseriam. Celso Favaretto (2000, p. 75) denuncia certa preocupação de Hélio com o tratamento problemático de Penetráveis como esculturas dispostas em espaços públicos, o que pode justificar sua vontade de realizar o Projeto dentro destes


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termos. Verifica-se, assim, uma grande articulação entre as partes que compõem o Cães de Caça, dispensando o valor de objetos esculturais e as rupturas espaciais para explorar diretamente o conteúdo revelado a partir da experiência orgânica e contínua. Oiticica (1961, p. 1) afirma que o Projeto, “pelo fato de possuir obras, ou melhor, ser constituído de obras de caráter estético, ressaltou logo também o seu caráter não utilitário e, em certo sentido, mágico”, que se ativa a partir dos mesmos elementos explorados nos penetráveis: cor, espaço e tempo. O caráter labiríntico também é essencial na sua compreensão, sendo expressado tanto visualmente como de forma virtual. Segundo Tatiana Ferraz (2006, p. 153), “no labirinto, existe uma forte alusão à natureza, pela qual a transição entre os espaços é estruturada”. A autora afirma que, seguindo o princípio de continuidade e organicidade da experiência, as transições entre os espaços do Projeto são suavizadas pelo uso de diferentes materiais: A alvenaria corresponderia ao universo elaborado industrial (e remeteria a uma construção literal); a transição seria feita pelo mármore branco (matéria orgânica natural processada), idealizado para a calçada na entrada; e finalmente a área com areia, que resumiria o universo estritamente natural. (FERRAZ, 2006, p. 153)

As transições no labiríntico Projeto Cães de Caça aludem tanto a uma sucessão de materiais não contrastantes, mas complementares e capazes de permitir marcações sutis de espaços, quanto a integração de uma determinada gama de “mundos” – metáforas de relações, sistemas sociais e tecnologias – em um todo articulado e coeso. Oiticica considera esta atitude uma evolução que abre precedentes a novas experimentações e afirma que “a estrutura da obra só é percebida após o completo desvendamento móvel de todas as suas partes, ocultas umas às outras, sendo impossível vê-las simultaneamente” (OITICICA, 1961, p. 2), ecoando os primeiros Relevos Espaciais. A vivência, portanto, se torna quase inevitável neste espaço que convida ao movimento.


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Figura 36 – Projeto Cães de Caça, Hélio Oiticica, 1960-1961

Fonte: https://m.chicagoreader.com/chicago/helio-oiticica-to-organizedelirium/Slideshow/25950296/2595028

É neste sentido que, dinâmico e labiríntico, o Projeto Cães de Caça alimenta, para Favaretto (2000, p. 79) uma noção na qual “o espaço torna-se literalmente arquitetônico, dispondo-se à virtual inclusão do „tempo orgânico‟ das vivências”. Para o autor, a experiência espaço-temporal que é prerrogativa no Projeto, também é essência da arquitetura, aproximando novamente a arte de Hélio a este campo. Neste sentido, pode-se traçar um paralelo interessante entre o Projeto Cães de Caça e uma obra icônica da arquitetura brasileira, ecoando alguns princípios dos Projetos oiticiquianos e dialogando diretamente com suas intenções penetráveis e suas ideias de vivência, desintegração do espaço utilitário em experiência e convite à experimentação: trata-se do Teatro Oficina (Figura 37 e Figura 38), em São Paulo, dirigido por Zé Celso (José Celso Martinez Pereira, amigo de Hélio Oiticica) e reformado na década de 1990 por Lina Bo Bardi e Edson Elito. Expressão arquitetônica de princípios muito semelhantes a algumas das aspirações ambientais de Oiticica, o Teatro Oficina insinua-se como um grande Penetrável. Trata-se de uma extensa rua na qual interior e exterior, público e privado se confundem em uma transição lenta e dinâmica, configurando um espaço que envolve e é envolvido por seus/suas experimentadores/as, atravessando-os/as e sendo atravessado por eles/elas. A rua central é margeada por galerias laterais montadas com estruturas metálicas onde a platéia se acomoda (e, especialmente, transita), explorando diversos pontos de vista e experimentando uma proximidade que desfragmenta limites e tensiona o Teatro concebido por Zé como manifesto. Esta obra revela um caráter labiríntico mesmo estruturando-se a partir de um eixo


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longitudinal simples, que dispensa complexidades espaciais em nível físico, mas as revela virtualmente a partir da dinâmica e da vivência. Além disso, o Teatro também é um exemplo de imagem frágil de arquitetura, pois abre-se a diversos acontecimentos, estrutura-se com certa flexibilidade espacial, aceita intervenções e procura adaptar-se a cada peça e a cada dinâmica de modo único, oferecendo vivências singulares e servindo, mais do que ao traço de seus arquitetos, às vontades dos corpos que com ele interagem e às necessidades das peças que ali se desenvolvem. Figura 37 – Teatro Oficina, Lina Bo Bardi e Edson Elito, 1994 (ano de conclusão da obra)

Figura 38 – Teatro Oficina, Lina Bo Bardi e Edson Elito, 1994

Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/878324/classicos-daarquitetura-teatro-oficina-lina-bo-bardi-e-edsonelito?ad_medium=gallery

Fonte: https://www.archdaily.com. br/br/878324/classicos-da-arqui tetura-teatro-oficina-lina-bo-bardi-eedson-elito?ad_medium=gallery

Como o Projeto Cães de Caça nunca foi construído e, portanto, não permite que se fale a partir de fatos, encontra-se no Teatro Oficina o que se considera uma aproximação concreta, articulando experiência, espectador transmutado em ativador, espaço estático transformado em espaço estético e linearidade disparadora de vivências labirínticas. A subjetivação encontrada na obra de Hélio ecoa nas abstrações envolvidas no Teatro Oficina, que revela a potência de se explorar ambiental e experimentalmente os espaços e as proposições artísticas.


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4.2.6. Bólides Rompendo com um caminho composto por experimentações espaciais e exercícios de expansão da arte para fora de seus limites convencionais, Oiticica opera um retorno sutil ao objeto, caracterizando-o como “estrutura „contida‟ de cor” (FAVARETTO, 2000, p. 91) nas experimentações chamadas Bólides. Neste momento, HO se apropria de recipientes como caixas, sacos, latas, entre outros, e os preenche com materiais coloridos (terra ou areia tingidas, por exemplo) (Figura 39), exaltando “a cor em estado pigmentar, estimulando a experiência de exploração de texturas, consistências, etc., com o objetivo de desvendar as virtualidades da cor imanente e liberar sua luminosidade intrínseca” (FAVARETTO, 2000, p. 91). A expansão espacial que vinha se desenvolvendo é, então, parcialmente contida nos receptáculos que não excluem o papel da participação do espectador como subjetivador da obra, desvendando-a e criando inúmeros significados, mas reinterpretam alguns objetos da vida cotidiana e voltam a enfatizar a cor, seus timbres e vibrações. Figura 39 – B15 Bólide Vidro 4 – Terra, Hélio Oiticica, 1964

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra4886/b15-bolide-vidro-4-terra


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4.2.6.1. Ruptura À primeira vista os Bólides rompem com a lógica espacial até então em desenvolvimento na obra de Oiticica. Gonzalo Aguilar (2016, p. 10) afirma que com as obras desenvolvidas sobre este título, “a arte de Hélio Oiticica dá um salto, abre uma fresta, provoca uma ferida”, abandonando a suspensão etérea de elementos delicados e esbeltos em nome de explorações de objetos ordinários – por vezes até grosseiros – da vida cotidiana. É neste sentido que além de retornar do espaço para o objeto, Oiticica parece focar mais neste do que no sujeito. Entretanto, ao aprofundar-se no reconhecimento dos objetos utilizados por Oiticica, percebe-se que as componentes do sujeito e do espaço não deixam de ser referidas, apenas são abordadas de forma distinta. Para Tania Rivera isso fica especialmente claro quando se percebe que a ação de Hélio se distancia, por exemplo, da ação de Duchamp com seus ready-mades uma vez que, ao apropriar-se dos objetos, HO não tem a intenção de expô-los em museus nomeando-os como obras, mas visa reacender “uma poesia que já estava lá, nessa criação anônima, perdida no tempo, mas presente como prática coletiva” (RIVERA, 2012, p. 42). Tatiana Ferraz (2006, p. 153155) complementa esta noção afirmando que, diferentemente de Duchamp, “o essencial em Oiticica é a impregnação de mundo que tais objetos transportam, já processados no comércio das trocas sociais” e contagiados pelos sistemas e sujeitos. Assim, “estranhamente vívido, tornado familiar, o objeto dá notícia de nós mesmos” (RIVERA, 2012, p. 49-50), assumindo-se como não-objeto que muito além de propor relações utilitárias, guarda a potência de ativar memórias, afetos, modos de fazer, enfim, partes de si mesmo. Assim, “o objeto não é mais produto do eu, nem objeto de conhecimento a ele externo; ele não é aquilo que fala de um indivíduo, mas aquilo que fala como sujeito” (RIVERA, 2012, p. 55). Desta forma, o que em um primeiro momento se insinua como ruptura pode ser reconhecido, após análise mais detida, como um adensamento, um encolhimento de escala em uma obra processual que até então se ampliava sucessivamente. O estranhamento é natural, neste sentido, entretanto, é possível reconhecer que nos pequenos objetos do cotidiano Oiticica sintetiza sujeito e espaço fundidos na superação da relação dualista e distante. Os desejos por um hibridismo ensaiados nas imersões espaciais acabam se consolidando mais a nível metafórico que físico mediados, ironicamente, por objetos. Entretanto, os Bólides operam, sim,


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com certa violência na obra de HO, rompendo se não com sua trajetória, com as dimensões nas quais sua arte opera. Gonzalo Aguilar sinaliza que as produções realizadas especialmente na segunda metade da década de 1960 marcam “uma mudança brusca em sua produção, que vai da dimensão estética ao âmbito da lei e da política” (AGUILAR, 2016, p. 34). Esta mudança se revela, especialmente, quando Hélio passa a abordar de forma mais diretas questões relacionadas à legalidade e ilegalidade e à democratização da obra de arte, tanto em seu acesso, quanto em suas temáticas. Antes de adentrar nesta análise, entretanto, cabe explorar mais a fundo a diversidade de expressões dos Bólides. 4.2.6.2. Materiais Além da importância do objeto em si, é bastante relevante na apreensão destas obras o reconhecimento da diversidade de materiais que elas reúnem. Entende-se que este movimento se dá ainda no contexto das investigações sobre as possibilidades expressivas da cor. Se nos Núcleos ela era explorada em termos de sua pulsação óptica, relação com a luz e tons, nos Bólides ela passa a se expressar mais a partir das texturas, operando um deslocamento “para seu timbre, sua materialidade e intensidade” (AGUILAR, 2016, p. 49). Gonzalo complementa esta ideia afirmando que “a matéria da cor não é neutra (não é tela esticada), mas sim intervém estendendo sua qualidade tátil de superfície rugosa, granulada ou áspera. A cor tem corpo” (AGUILAR, 2016, p. 49) e ativa o corpo pela tatilidade, da qual a visualidade é a aproximação primeira, mas especialização a partir do qual a experiência não se concreta em totalidade. É necessário desconstruir a noção do sistema de arte convencional com suas expografias distantes e seus cordões de isolamento e abrir a obra ao corpo, à manipulação que inspira o sentir para permitir que um Bólide se expresse em toda a sua potência. A partir dessa abertura ao sentir, a alteridade é evocada, uma vez que não há respostas padrão típicas da lógica estímulo-reação premeditada ou um repertório determinado de materiais capazes de conectar-se com a subjetividade. Todos os materiais são passíveis de provocar reações e ativar os corpos. Assim, “não só se amplia o repertório de materiais à disposição, mas também se elimina a divisão entre materiais dignos e indignos, disponíveis e encontrados, artísticos e não artísticos; (AGUILAR, 2016, p. 10): os materiais que se expressam nos Bólides são aqueles


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que se comunicam com os sujeitos. Se a diversidade é prerrogativa da existência humana, obras tão conectadas a ela não podem deixar de considerá-la. Os materiais que compõem a obra de arte, então, “já não são aqueles que a tradição estética traz, e sim os que o mundo oferece” (AGUILAR, 2016, p. 11) revelando a sensibilidade de Oiticica ao cotidiano, à diversidade de identidades e à pluralidade na construção de afetos. Desta maneira, o encontro com os materiais não é premeditado ou “regido por uma lógica prefixada”, mas “pode ser produto do acaso. Há sempre um princípio construtivo porém este funciona mais como um dispositivo do que como um programa: estabelece passos iniciais sem exercer tanto controle sobre o que virá” (AGUILAR, 2016, p. 11). Essa abertura de Oiticica que se presta mais a reconhecer as obras do que a propriamente criá-las a partir do zero também é prenúncio do caráter ambiental de seus exercícios, conjugando corpo, espaço, objetos, materiais, sensações, afetos e a liberdade de um criar contínuo e compartilhado, aberto de forma permanente a ressignificações. 4.2.6.3. Corpo Além das expressões com objetos colhidos na vida cotidiana e materiais advindos do quase-acaso – uma vez que o reconhecimento de suas potências dilui a aleatoriedade completa –, há também Bólides que se constituem a partir de criações originais de Hélio (Figura 40). Um dos exemplos mais emblemáticos disso é o Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2, Homenagem a Cara de Cavalo (Figura 41), que resgata a ideia de ruptura enunciada anteriormente. Segundo Gonzalo Aguilar (2016, p. 34), “foi o próprio Oiticica que assinalou o caráter de ruptura dessa obra ao dizer que ela constituía um „momento ético‟”, caracterizado por ser “ao mesmo tempo, uma ampliação e uma saída do estético” (AGUILAR, 2016, p. 42). De forma mais aprofundada o autor afirma que ele inspira a busca por situações em que o aspecto sensorial é ampliado: O momento ético envolve o sujeito em sua integridade, já não como portador de um olhar estético, e sim como ser político e vital. Mais ainda, comove-o em sua própria existência, porque o momento ético significa que o sujeito deve abrir-se para o outro, até diluir-se no impessoal e no coletivo, levando sua arte até os limites da invenção. (AGUILAR, 2016, p. 14)


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É que além das explorações com a cor em estado pigmentar, Hélio passa a trabalhar com questões de ordem política e social. No Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2, o artista expõe junto de um saco com pigmento vermelho e de uma tela que funciona como um filtro para quem se depara com a obra, uma foto amplamente veiculada nos jornais da época do corpo inerte do bandido Cara de Cavalo cravado de tiros. O inimigo número um da polícia da época era amigo pessoal de Oiticica, e desencadeou uma série de reflexões em sua obra que se conectava cada vez mais com as efervescências da época. Figura 40 – B11 Bólide Caixa 9, Hélio Oiticica, 1964

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra66313/b11-bolide-caixa-9

Figura 41 – B33 Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2,

Hélio Oiticica, 1965

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra4892/b33-bolide-caixa-18-homenagema-cara-de-cavalo

Segundo Aguilar (2016, p. 44), “o assassinato de Cara de Cavalo marca um momento muito sensível da mudança das relações de poder no Brasil: era o início da ditadura militar, o Estado redefinia suas funções governamentais, o aparato repressivo estava se organizando” e a mídia atuava atiçando os ânimos. O que Hélio faz é capturar o sensacionalismo dos meios de comunicação que influenciavam fortemente as posições e opiniões de grande parte da sociedade (AGUILAR, 2016) e propor uma outra visão a respeito da violência urbana e das problemáticas sociais. O artista enuncia a partir do Bólide realizado em homenagem à Cara de Cavalo, “a necessidade da arte visual de participar da espetacularização, de incidir em suas


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imagens, de disputar seu caráter público, aspecto que será fundamental não só na obra posterior do artista carioca, mas também em toda a arte brasileira dos anos 1960” (AGUILAR, 2016, p. 41), prenunciando atitudes amplamente exploradas no tropicalismo, por exemplo. Além dessa expansão para a temática social e para uma postura ética que une arte e vida especialmente em sua dimensão política, Hélio também acentua nesta obra aproximações com a escrita, ensaiadas timidamente no Projeto Cães de Caça. Para o Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2 Oiticica escreve um poema sucinto mas bastante enfático. No saco plástico que contém o pigmento vermelho lê-se: “Aqui está, e ficará! Contemplai seu silêncio heróico”. Gonzalo Aguilar (2016, p. 47) identifica nestes breves frases o questionamento do que intitula “quatro elementos de longa tradição estético-filosófica”, sendo eles: [...] a obra de arte como permanência e como trabalho de monumentalização („Aqui está,/e ficará!‟), a contemplação como atividade própria do domínio estético que se desloca para o olhar político („Contemplai‟), o limiar paradoxal que constitui a relação entre a morte e a linguagem (o seu/silêncio‟) e a obra de arte como produção de heroicidade („heroico‟). Permanência, contemplação, vínculo entre a linguagem e a morte, heroicidade. O que Oiticica encontra no acontecimento da morte trágica de seu amigo é a produção, ao mesmo tempo, de heroicidade e marginalidade (experiência que depois seria condensada na famosa 12 bandeira de 1968, „Seja marginal, seja herói‟ ), e o desafio de uma arte fúnebre que instaura a entrada do elemento orgânico na obra do artista. Organismo morto e silencioso, que se dota de vida (permanência) e de palavra. (AGUILAR, 2016, p. 47)

Esta capacidade de síntese enfatizada no poema se assemelha ao que Hélio operou com os Bólides, reduzindo a escala física, mas ampliando o alcance crítico condensado em estruturas menores mas repletas de questionamentos e potências. Também é possível perceber na análise de Gonzalo Aguilar sobre o B33, Homenagem à Cara de Cavalo a presença do corpo enquanto elemento vivo, organismo dotado de potência e resistente à seu desaparecimento ou negligência. Assim o Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2 não só incorpora de forma mais enfática a linguagem verbal na obra de Oiticica, como também apresenta o corpo humano como elemento inseparável de seus trabalhos. “A partir daí, Oiticica não poderá prescindir do corpo, mas não do figurado, representado ou em imagem, e 12

Cabe ressaltar que, embora a bandeira “Seja marginal, seja herói” apresente temática e estratégias similares às do Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2, a figura que estampa a bandeira não é Cara de Cavalo (Manuel Moreira), mas Mineirinho.


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sim dos corpos de carne e osso, o organismo vivo que está em tensão com a natureza inerte da obra de arte” (AGUILAR, 2016, p. 50), ou seja, o corpo que inscreve marcas de sua vivacidade e se opõe a relações alienadas e distantes. Neste sentido, destaca-se outro Bólide que explora diretamente este questão: o Bólide Mergulho do Corpo (Figura 42), recipiente cheio de água em cujo fundo se lê a frase que o batiza. Para Salomão (2003, p. 90), ele “é na verdade um espelho fluido, cambiante, precário, oblíquo e dispersivo pois a pessoa se pega lendo a frase superposta e integrada à sua imagem como uma cicatriz”. No reflexo deste espelho d‟água, ativa-se a pergunta: “que corpo é este?” à qual o mesmo autor responde: Seguramente posterior às concepções médicas do corpo no século XIX e princípios do século XX. Não é propriamente o monte de órgãos descrito nas lâminas dos anatomistas, nem somente a conjunção de processos de que tratam os fisiologistas, nem se restringe ao objeto de análise dos biólogos; quer dizer, não se reduz só ao corpo de que a ciência vê ou de que fala. [...] o corpo capaz da fruição sensorial, o corpo desreprimido, o corpo erótico, o corpo matriz das singularidades e fonte originária, renovável, de prazer. (SALOMÃO, 2003, p. 90-91)

Legitimando o lugar deste corpo e a ampliação de seu entendimento para além das concepções rígidas e restritas ao cientificismo, os Bólides retornam a uma escala menor de exploração que nem por isso configura retrocesso, mas fomenta avanços

em

direção

a

novas

experimentações,

conceitos

e

temáticas,

concretizando-se como “uma nova ordem de obra, e não um simples objeto ou escultura” (OITICICA, 1979, p. 1). Figura 42 – B47 Bólide Caixa 22, Hélio Oiticica 1967

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66334/b47-bolide-caixa-22


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4.2.6.4. Imagem Nesta nova ordem destaca-se o trabalho surpreendente com imagens frágeis na arte, apesar da aparente contradição inspirada pelo forte apelo material das produções. É que mesmo consistindo em objetos, os Bólides não deixam de se abrir à experiência, tolerar intervenções e reinventar-se constantemente. Eles evocam o que Gonzalo Aguilar conceitua como “forma orgânica” em oposição às “formascristal”, em um paralelo direto com as imagens frágeis e fortes, respectivamente. Essa breve elucidação se faz importante por ressaltar a consolidação da busca neoconcreta que, desde o final dos anos 1950, questionava a autossuficiência da forma (AGUILAR, 2016, p. 18). Os Bólides constituem formas menos rígidas, que não opõem resistência a intervenções externas em uma confortável posição autônoma, mas que incorporam elementos aleatórios e se abrem para uma heterogeneidade maior entre o planejamento e os resultados da obra de arte (AGUILAR, 2016, p. 18), em uma atitude ambiental menos determinista. O autor considera que estes exercícios são heranças diretas das aberturas operadas pelo Neoconcretismo em relação a uma nova atitude perceptiva inspirada pelo “‟pensar com o corpo‟ de Merleau-Ponty” (AGUILAR, 2016, p. 18), que aludia a um corpo não objetual ou funcional, mas „fenomenal‟, “um „corpo da experiência‟, que era necessário interrogar” (AGUILAR, 2016, p. 18). Assim, encontra-se uma base para o desenvolvimento de formas orgânicas e de imagens frágeis na obra de Oiticica e da vanguarda da época na aproximação com a subjetividade e a experiência humana. Gonzalo (2016, p. 18) ressalta que “não há que confundir a forma orgânica, que é pura vida, com o humanismo, que é a aposta nas formas humanas que historicamente foram impostas ao organismo” (AGUILAR, 2016, p. 18), revelando um reinventar de repertórios e referências mais conectados com o interior dos corpos, sua essência e construções pessoais do que com as manipulações externas capazes de ditar comportamentos e fabricar sentimentos. Resgata-se o Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2 como obra importante nessa operação por abrir-se ao questionamento e subverter as imagens da mídia com provocações para reinterpretações. Os Bólides de Oiticica, portanto, também podem indicar caminhos para o exercício consciente e comprometido de imagens frágeis ou formas orgânicas, desconstruindo as formas e imagens que resultam mais de processos de espetacularização do que de conexão com o corpo e a dimensão humana.


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4.2.6.5. Continuidade Percebe-se a partir do breve recorte aqui realizado – tendo em vista a diversidade de expressões que compõem a série dos Bólides – que à ruptura insinuada inicialmente revela-se ampliação na investigação sobre as mesmas questões (como a cor), exercícios semelhantes de abertura (ao corpo e a novas temáticas) e práticas ainda críticas e resistentes (às estratégias de dominação tanto no sistema da arte, quanto na sociedade como um todo). O retorno ao objeto operado pelos Bólides não deixa de sinalizar, assim, sua desconstrução. Em função de seu caráter relacional e dinâmico, eles são referenciados como transobjetos, ou seja, elementos que transcendem a estaticidade e distância dos objetos convencionais. Eles são responsáveis por dar seguimento às expressões que evitam o objeto-suporte, convertendo-o em objeto-obra especialmente ao visar o comportamento (FAVARETTO, 2000, p. 96), ou seja, desencadeando ações e demandando o envolvimento de um corpo que, assim como nos Núcleos, Penetráveis e Projetos, não contempla uma obra de um ponto de vista fixo preestabelecido a partir da frontalidade. Nos Bólides também não há frontalidade ou rigidez interpretativa/visual. Assim, mesmo não configurando espaço, os Bólides não deixam de ativar o desvendamento móvel e interativo ou de insinuar espacializações. É o que se revela na sua reinvenção como contrabólides – como no caso de “Devolver a terra à terra” (Figura 43), expressão na qual o receptáculo se desintegra – ou no prenúncio dos Parangolés (Figura 44) e Ninhos (Figura 45), por exemplo. Algumas expressões de Bólides esboçam, ainda, uma espécie de princípio de obras posteriores como Tropicália ou Éden, a exemplo do Bólide Área (Figura 46), consistindo em um campo de experimentação intensa para Hélio. É como se, nesta fase, o artista desenvolvesse pequenos protótipos de produções futuras, sintetizando em menor escala e complexidade o que podem chegar a ser algumas de suas maiores expressões. Ferreira Gullar (2012) acredita que é com os Bólides que Oiticica chega no limite das explorações neoconcretas, afirmando que este é o ponto mais intenso de sua produção. Seja como concretização das aspirações neoconcretas ou como prenúncio de sua obra futura, o valor dos Bólides é inegável para entender a obra e os princípios de Hélio Oiticica.


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Figura 43 – Contra-Bólide nº1: Devolver a Terra à Terra, Hélio Oiticica, 1979

Figura 44 – B52 Bólide Saco 4, Hélio Oiticica, 1966 | 1967

Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script= sci_arttext&pid=S1678-53202012000200022

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra66332/b52-bolide-saco-4

Figura 45 – Bólide Cama, Hélio Oiticica, 1968

Figura 46 – B55 Bólide Área 2, Hélio Oiticica, 1967

Fonte: http://teatroficina.com.br/mostra-helio-oiticicamuseu-e-o-mundo/

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra66327/b55-bolide-area-2

Marcando o desenvolvimento da produção oiticiquiana em direções cada vez mais corporais e experimentais, Gonzalo sintetiza o papel de ruptura e continuidade dos Bólides especialmente a partir do B33 – Homenagem à Cara de Cavalo. Segundo o autor, ele instala-se fora da série, à margem da trajetória cromática, para constituir-se como um núcleo de energia, uma origem velada. O Bólide caixa 18 Poema caixa 2, Homenagem a Cara de Cavalo tem poucos herdeiros no conjunto da obra de Oiticica, porém se pode dizer que o restante de suas peças (isto é, quase todas) é um esforço para erguer esse corpo do chão, colori-lo e fazê-lo dançar. É uma origem velada porque percorre toda a sua obra. (AGUILAR, 2016, p. 51)


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Lançando-se com ainda mais ênfase na desconstrução das imagens fortes e das formas-cristal, no acolhimento do corpo, na aproximação com a vida, a política e a sociedade, Hélio estabelece nos Bólides a origem de uma nova ordem artística capaz de culminar em uma categoria de expressões que abarcam em sua simplicidade propositiva boa parte das questões até então esboçadas em sua obra: os Parangolés. 4.2.7. Parangolés Figura 47 – Cartão postal 10: A casa-parangolé

Fonte: Produzido pela autora PARANGOLÉ = o corpo esplende como fonte renovável e sustentável de prazer; conceito maleável de extrema adaptabilidade aos lugares mais diferentes entre si. Ou deveria permanecer a capa PARANGOLÉ exemplar de um esteticismo low-tec, amostra representativa do reino da escassez tal


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qual uma carapaça fossilizada ou um casulo abandonado pendurado imóvel num museu, relíquia de um sítio arqueológico de um passado enterrado??? (SALOMÃO, 2003, p. 25-26)

Pode-se dizer que se os Bólides fundam uma nova ordem de expressão artística, os Parangolés inauguram um novo caráter: o caráter-Parangolé. Produção de extrema importância no entendimento da potência transformadora da obra de Oiticica, os Parangolés são propostos ainda tendo a cor e o comportamento ativo do/a participador/a como pautas principais mas, invertendo a lógica de contenção dos Bólides, constituem experimentos de expansão. É a partir da dança, dos movimentos dos corpos, que se opera uma transição ao sensível característica dos Parangolés e de suas ampliações. Para Favaretto (2000, p. 104), esta “é a proposição com que Oiticica formula sua „arte ambiental‟”, concretizando uma nova forma de expressão já ensaiada que retoma a poética do gesto de forma ainda mais forte, valorizando o instante, o subjetivo e o efêmero. Constituídos como grandes capas coloridas a serem experimentadas pelo corpo através dos atos de “carregar, andar, dançar, penetrar, percorrer, vestir” (FAVARETTO, 2000, p. 105), os Parangolés (Figura 48 e Figura 49) são abrigos idealizados por HO a partir de suas inúmeras investigações e vivências cujo nome deriva de um encontro urbano específico: Isso eu descobri na rua, essa palavra mágica. [...] Um dia, eu estava indo de ônibus e na Praça da Bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de madeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem vértices de retângulos no chão. Era um terreno baldio, com um matinho, e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio de barbante de cima a baixo. Bem feitíssimo. E havia um pedaço de aniagem pregado num desses barbantes, que dizia: “aqui é...” e a única coisa que eu entendi, que estava escrito, era a palavra “Parangolé”. Aí eu disse: É essa a palavra. (FILHO, sem data, apud. FAVARETTO, 2000, p. 117)

A efemeridade, a noção de construção, a simplicidade, o improviso e a personalização que foram reconhecidas no abrigo atravessaram Hélio de tal maneira que tornaram-se prerrogativas em seus Parangolés, apontando esta obra como uma grande síntese de boa parte de suas formulações. Tal afirmação também demonstra que a incorporação da palavra não remete à gíria popular ou à “folclorização” dos termos, mas a determinadas relações e valores resumidos na inscrição que nomeava o abrigo mutante. Silva (2014) ainda reconhece que esta é a primeira obra


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de Hélio a tematizar diretamente a cidade e ressalta seu interesse especial sobre “construções que recusavam o decoro da norma arquitetônica”, expressando-se de maneira ampliada e espontânea e assumindo certa marginalidade. Esta é uma estratégia provocativa utilizada por Oiticica no questionamento dos padrões da arte e das relações sociais e aparece constantemente em sua obra “incorporando a revolta13”. Figura 48 – Hélio Oiticica, samba e Parangolés

Figura 49 – Mulheres vestindo Parangolés

Fonte: http://institutobybrasil.org.br/helio-oiticicacorpo-movimento-e-arte/

Fonte: https://www.revistaforum.com.br/heliooiticica/

É neste sentido que se retoma junto de Paola Jacques a experiência de Hélio no Morro da Mangueira, influência extremamente relevante no desenvolvimento desta obra que é fortemente relacionada ao(s) contexto(s) e que extrapola estereótipos evocando imersões vivenciais. A autora afirma: “acontece que os Parangolés são diretamente ligados ao samba e ao carnaval, mitos do Rio, que não são „folclóricos‟, pois são produtos de verdadeiras vivências” (JACQUES, 2003, p. 38). Sem o intuito de exotizar, portanto, ou de conferir determinado caráter comercial que configuraria um retrocesso no processo de desinstitucionalização da arte operado por Oiticica junto da vanguarda da época, o artista relaciona a essência da experiência do Morro, do carnaval, do abrigo, da cor, do corpo e da tomada do espaço não para transferir ou meramente reproduzir, mas para explorar em experimentação. Pode-se dizer, neste sentido, que o Parangolé opera uma

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Referencia-se aqui o Parangolé P15 Capa 11, de 1967, que trazia a inscrição “Incorporo a revolta”. Cabe destacar que ele não foi a única obra dentro desta categoria a aliar-se à escrita, sendo que há outros exemplares de Parangolés com alguns “slogans de poemas breves” (AGUILAR, 2016, p. 93) relacionados a determinados momentos, acontecimentos ou sentimentos tanto do artista, quanto coletivos. Eles endossam o repertório de obras de Hélio que se aproximam da escrita como potencializadora.


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transmutação da vivência em experimentação (e vice-versa), induzindo a uma abertura a percepções e experiências. Cabe destacar que a obra de Hélio Oiticica conecta-se de tal forma ao seu contexto que, após sua mudança para Nova York, os Parangolés passaram a apresentar formas e materiais diferenciados (Figura 50). As novas dinâmicas de vida e a rígida paisagem urbana totalmente distinta da organicidade do Morro da Mangueira e da exuberância natural do Rio de Janeiro pautaram uma nova expressão. “As novas capas foram feitas com materiais mais sofisticados e eram também muito mais formais, rígidas, estáticas, à imagem dos arranha-céus da cidade” (JACQUES, 2003, p. 41). Entretanto, o caráter básico de suas intenções se mantinha em uma atitude que soa como a tradução a um novo idioma: a linguagem de Hélio se adaptou para comunicar-se diretamente a seu novo contexto de intervenção, mas manteve a proposta de obras que não são objetos, mas “eventos instáveis e indefinidos” (FAVARETTO, 2000, p. 105), fugazes e diferenciados. Figura 50 – Parangolé P30 capa 23 m'way ke, vestido por Luiz Fernando Guimarães, Hélio Oiticica, 1965.

Fonte: http://www.design-is-fine.org/post/82302752193/ h%C3%A9lio-oiticica-luiz-fernando-guimar%C3%A3eswears


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Assim, cada evento, seja no Brasil ou nos Estados Unidos, no Morro ou na cidade formal, é entendido como único em sua expressão a partir do movimento, da incidência da luz, do soprar do vento, da emoção do corpo que veste e dança e/ou dos corpos que contemplam. É isso o que leva a dizer que o Parangolé é um fenômeno total, ou seja, uma experiência ativadora da noção de “totalidade ambiental”. Quanto a este conceito, ressalta-se a participação e o desvendamento corporal da obra pela experimentação direta: [...] a “totalidade ambiental” opera como um “sistema ambiental”, cujo pólo é o participante. Na “vivência-total Parangolé” desenvolve-se um espaço intercorporal, criado pelo desdobramento da estrutura-Parangolé, executada pelo participante e pelos elementos da situação. A participação atualizada, como “vivência mágica”, algumas das relações possíveis no espaço em que se desenvolvem as ações: é uma “participação ambiental”. (OITICICA, 1986, p. 67)

Lembrando que o termo “mágico”, quando relacionado à obra de Hélio, remete especialmente ao que envolve os sentidos e atentando-se à questão da atualização da participação, entende-se o Parangolé como um dispositivo síntese de ativação capaz de agenciar “[...] estruturas-percepções, que relevam de uma outra ordem do simbólico: o comportamento” (FAVARETTO, 2000, p. 107). A atualização da participação é entendida uma vez que a obra não trata de uma manipulação ou interação exteriorizada, mas de uma incorporação (Figura 51 e Figura 52), uma experiência direta e única que desintegra a passividade: se só houverem espectadores, não haverá Parangolé. A obra é, portanto, um convite à instabilidade, à transformabilidade, à atualização constante, à reinvenção da arte, das galerias e dos museus, à uma nova compreensão do corpo, à participação, enfim. A presença de observadores, entretanto, não deixa de fazer parte da expressão dos Parangolés, que se caracterizam como (não-)objetos intercorporais. Segundo Tania Rivera (2012, p. 38) “há um jogo entre o olhar de quem veste e o olhar de quem assiste” que contagia e “trans-forma” os sujeitos. Com base nisso, tem-se a ideia de que “o parangolé é, de saída e por definição, coletivo. Porque ele ocupa um lugar entre o eu e o outro, entre sujeito e objeto, entre sujeito e cultura. Esse lugar que é fora de nós e no entanto se torna íntimo” (RIVERA, 2012, p. 36).


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Figura 51 – Parangolé P4 vestido por Nildo da Mangueira, Hélio Oiticica, 1978

Fonte: https://imagesvisions.blogspot. com/2013/09/o-parangole-de-heliooiticica.html

Figura 52 – Parangolé, Hélio Oiticica

Fonte: http://www.revistacliche.com.br/2014/11/elefante/

Além disso, percebe-se na descoberta da palavra “parangolé” uma relação direta com a noção de abrigo. Transmutado em roupa, casa, comunidade e tantas outras imagens, o Parangolé compõe-se essencialmente como abrigo. Além da derivação direta da construção reconhecida por Oiticica, percebe-se em sua concepção o uso de materiais cotidianos, por vezes presentes nas casas e na vida íntima das pessoas, como lençóis e cortinas, “como se Oiticica tivesse escolhido o mais íntimo dos materiais usados para representar com maior pertinência a ideia de abrigo” (JACQUES, 2003, p. 35). Paola resgata esta ideia também a partir da vivência de Hélio do Morro da Mangueira afirmando que “o Parangolé, como dizia Oiticica, implica todo um programa. Vai muito além do objeto – as capas, tendas e estandartes. É também um processo de busca da ambiência das favelas (samba/sociedade/arquitetura) que não passa pelo formalismo simplista ou estetizante” (JACQUES, 2003, p. 36). O abrigo, assim, tensiona vida íntima e social, identidade e apropriação, imagens frágeis, formas orgânicas, expressões cotidianas.


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É neste sentido que Salomão (2003, p. 38) reconhece o Parangolé como uma expressão brutalista que “nasce da constatação da contingência” e “nada tem de decorativo ou polido”: Surge [o Parangolé] de uma vontade de apreender o sentido bruto do mundo em seu nascedouro. Cumplicidade e simbiose com as agruras e a volta por cima daqueles que na metáfora geométrica constituem a base da pirâmide social. Daqueles que vivem, o mais das vezes, de bicos, de bocas, de expedientes, de subempregos, de camelotagem. (SALOMÃO, 2003, p. 38)

Agenciando, portanto, a desintelectualização e desestetização da arte, o Parangolé une expressão artística incorporada e problemas sociais e se “transforma no ícone vorticista-corporal mais poderoso das artes contemporâneas” (SALOMÃO, 2003, p. 39). Talvez em função da inspiração advinda de uma moradia, talvez pela evolução progressiva da arte de Hélio na direção do ambiental, o Parangolé “não se trata, assim do corpo como suporte da obra; pelo contrário, é a total „in(corpo)ração‟. É a incorporação do corpo na obra e da obra no corpo.” (CARDOSO, sem data, apud. FAVARETTO, 2000, p. 107). Esta relação de troca mútua borra as fronteiras corpo-objeto e ativa a dança, cujas imagens liberadas são “móveis, rápidas, inapreensíveis – são o oposto do ícone, estático e característico das artes ditas plásticas – em verdade a dança, o ritmo, são o próprio ato plástico na sua crudeza essencial” (OITICICA, 1986, p. 73) e não espetacular. Acredita-se, portanto, que a aproximação inevitável com a dança – especialmente a partir da espontaneidade do samba – se dá tanto de forma direta, através dos Parangolés, como na forma de uma metáfora à arte contemporânea aspirada por Hélio, evocando a efemeridade, o movimento, a transformabilidade e a imersão do corpo que ativa e libera formas orgânicas. Percebe-se, assim, que a trajetória de HO transita entre diversas áreas e se compõe a partir de diferentes formas de expressão e experimentação, mas não deixa de apresentar uma coerência assombrante: a cor que era contida em figuras geométricas

contrastadas

com

fundos

uniformes

de

papel

cartão

nos

Metaesquemas, espacializa-se nas placas que compõem os Bilaterais e Relevos Espaciais e torna-se tátil nos Bólides para então soltar-se totalmente em materiais fluidos que compõem os Parangolés, referidos por Celso Favaretto (2015) como “cores aladas” em uma sucessão de rupturas que permite sua expansão. Ela ativa,


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então, dimensões espaciais, musicais, comportamentais, corporais, alcançando esferas políticas e éticas. É o que se verifica na teoria de Sperling (2008, p. 120), que afirma: “como resposta aos condicionamentos impostos pela cultura e pelo sistema de arte e instigação à desprogramação do sujeito, o parangolé se efetiva na duração de sua apropriação pelo público chamado a vesti-lo e assisti-lo coletivamente”. Pode-se dizer, então, que a partir das explorações da cor e da estética que desembocam nos Parangolés, Hélio articula o comportamento e a ética efetivando sua nova ordem de expressão fundada no espaço, no tempo e no corpo: a ordem ambiental. Diretamente relacionada a questões inerentes às produções construtivas ou arquiteturais, a ordem ambiental e os Parangolés suscitam curiosidades em suas possíveis reverberações na atualidade. Há relatos de experiências que denotam um entendimento falho de seus princípios, como casos em que alguns dos Parangolés originais foram expostos em museus como objetos inertes, aos quais a aproximação ou interação eram proibidas em nome da conservação material (JACQUES, 2003), ou nos quais algumas capas foram recriadas e vestidas para serem posteriormente expostas em mostras fotográficas, em vez de exploradas em performances coletivas14. Segundo Oiticica (1964, p.1): Não quero aqui a apreensão objetiva transposta dos materiais de que se constitui a obra: p. ex. plásticos, panos, esteiras, telas, cordas, etc., nem essa mesma relação a objetos aos quais se relacionam as obras: p. ex. tendas, estandartes, etc. Essa relação das “aparências” com coisas já existentes existe mas não é primordial na gênese da ideia, ou talvez o fosse de outro ponto de vista do “porquê” dessa relação verificada no decorrer da realização da obra, da sua plasmação. O que interessa aqui no momento é a intenção do “como” dessa plasmação da obra, da “intenção” primeira específica da mesma.

Acredita-se que, ao compreender a obra que se deseja total ambientalmente a partir de princípios constitutivos e lógicas estruturais e não da transferência passiva de poéticas fabricadas, é possível esboçar novos caminhos para a articulação do caráter-Parangolé na atualidade. Segundo Oiticica (1964, p. 2), “tratase da procura de „totalidades ambientais‟ que seriam criadas e exploradas em todas 14

Referencia-se especialmente a exposição “Parangoleando”, que desenvolveu vestimentas inspiradas nos Parangolés – e estetizadas a partir de drapeados e cinturas marcadas – expondoas em forma de fotografias na área comum de um shopping de Brasília, em agosto de 2014. Maiores informações a seu respeito estão disponíveis em: <https://www.joaopteles.com.br/parangole>. Acesso em: 02 ago. 2018.


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as suas ordens, desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano, etc.”. O artista ainda coloca que estas ordens não seriam estabelecidas a priori, mas surgiriam segundo necessidades criativas nascentes uma vez que o sentido construtivo do Parangolé que almeja uma “arte ambiental” por excelência, nasce das latências populares e pode ou não chegar a uma arquitetura característica (OITICICA, 1964, p. 2). Esta possibilidade se transforma em fato na obra de Hélio que transcende a divisão entre campos e amplia arte e arquitetura fundindo-as (e produzindo-as) efetivamente. Assim, entende-se que o reconhecimento dos Parangolés enquanto expressões que transcendem o objeto e evocam a participação a partir do cotidiano e de seus corpos expande discussões e possibilidades no contexto atual. Cabe questionar: ainda é possível identificar, nas cidades brasileiras, as arquiteturas Parangolés ou elas foram cooptadas pelas produções hegemônicas e reduzidas a universalismos? É mesmo possível reduzir estar expressões ou o caráter-Parangolé é inerente às expressões cotidianas e populares e resiste a tentativas de esvaziamento? É possível, então, reconhecer conscientemente suas articulações mágicas e delinear caminhos alternativos em um fazer atual resistindo às cooptações ilusórias e potencializando as produções ambientais? Para Oiticica, [...] na arquitetura da „favela‟, por exemplo, está implícito um caráter do Parangolé, tal a organicidade estrutural entre os elementos que o constituem e a circulação interna e o desmembramento externo dessas construções, não há passagens bruscas do „quarto‟ para a „sala‟ ou „cozinha‟, mas o essencial que define cada parte que se liga à outra em continuidade. (OITICICA, 1986, p. 68)

Tal noção reafirma a potência e necessidade de

se pensar em

desdobramentos do Parangolé a partir de sua própria origem: a construção de abrigos. É aqui reconhecido, então, mais um dos fios soltos da obra de Oiticica, que pode ser levado adiante exercitando arquiteturas parangolés, preservando seu caráter e potencializando sua existência. “Experimentar o experimental” (OITICICA, 1972). Reitera-se o convite de Oiticica. Percebe-se que revisitar a obra diversa e polifônica de HO, tão distante e tão próxima do contexto atual, e pensar junto com ela perspectivas e formas de ação revela especial potência a partir do caráter-Parangolé. Passível de exercício a partir da proposição e vivência de imagens frágeis, este caráter traz à luz a poética do


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gesto, aproximando-a da arquitetura atual de forma especialmente clara, incitando o reconhecimento de seus corpos, a abertura a suas vontades, a conexão com seu contexto, a resposta crítica e maleável a suas problemáticas, a resistência ao espetáculo e às universalizações esvaziadoras, enfim. Na organização dinâmica de propostas que imbricam o material e o subjetivo, que se recusam ao confinamento em setorizações excludentes e que revelam formas alternativas de abrigar, produzir e de viver os Parangolés revelam-se elementos de extrema relevância na obra in progress de Oiticica, ampliando diálogos e revelando-a como um processo que envolve diferentes escalas, incita movimentos, realiza autorreferências, e trabalha com alternâncias de escalas, temáticas e estratégias complementando e expandindo-as. Mesmo quando há rupturas, como se verifica quando se comparam Bólides e Parangolés, percebe-se que há aspectos comuns guiando produções e relações em sentidos sensíveis e de ampliação constante. Neste sentido, tem-se uma perspectiva capaz de reconhecer que Os bólides e os parangolés são, então, em um aspecto, complementares, as duas faces de um mesmo devir: voltando-se para o interior, para as vísceras, os bólides avançam rumo ao invisível para torná-lo tátil e dar um salto em relação à noção do que é arte. Desdobrando-se no fora, os parangolés testam o espaço público e buscam transformá-lo com imersões corporais e participações do espectador. Nem instituições legitimadoras nem formas fixas: no umbral do que está por vir, a arte de Hélio Oiticica vai se fazendo. (AGUILAR, 2016, p. 17)

Ela vai não só abrindo caminhos para novos experimentos e avanços em seu desenvolvimento mas também passa a reverberar em outras formas de expressão, incidindo de forma cada vez mais direta no contexto social e político a partir da abertura aos corpos. O devir que se enuncia tanto a partir da interioridade e contenção dos Bólides, quanto das possibilidades de extrapolação e abertura dos Parangolés encontra na transição entre os anos 1960 e 1970 disparadores potentes no diálogo com a rigidez de instituições e dinâmicas sociais. É nesta época que se desenvolve no Brasil um dos movimentos artísticos e culturais mais importantes (e contraditórios) na história: a Tropicália.


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Figura 53 – Parangolé P4, Capa 1, vestido por Hélio Oiticica, Hélio Oiticica, 1964

Fonte: https://www.e-flux.com/announcements/40793/hlio-oiticica-the-body-of-color/

4.2.8. Tropicália A obra de Hélio não era uma expressão local, mas era fortemente contextualizada no Brasil e no Rio. Não era coisa pra inglês ver. (Salomão, 2003)

Cabe salientar que as explorações diretamente comprometidas com seus contextos realizadas por HO, das quais os Parangolés são claras expressões, não implicavam nem em restrições, nem em exotizações esvaziadoras. Eram propostas que referenciavam experimentações estruturais preocupadas com a potência transformadora e crítica, e não com a produção de objetos para serem estetizados e comercializados em mercados restritos e distantes. É neste sentido que se afirma uma atuação ambiental total de Oiticica – abrangendo música, poesia, construções efêmeras, intervenções, arte, política, literatura, crítica, etc. – que culmina na Tropicália. Conforme abordado neste estudo, até os anos 1950 “a geometria da forma impunha-se sobre a expansão da cor. Com os bólides e os parangolés, a relação muda e a cor se espalha de um modo indeterminado” (AGUILAR, 2016, p. 112). Este espalhamento está vinculado ao que Gonzalo conceitua como a


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superação de uma “crise da mediação”, eliminando a distância sujeito-objeto. Em Tropicália, então, a cor passa a se realizar no espaço provocando uma efetiva incorporação sem mediação e sem respostas padrão. Momento em que as tensões políticas se acirram e os movimentos “contra” efervescem, quando “as práticas da modernização e da revolução se cruzam, se opõem, se articulam e são debatidas” (AGUILAR, 2016, p. 19), Tropicália e Hélio Oiticica atuam como importantes atores no contexto brasileiro. Desta obra origina-se o icônico movimento nacional cujo nome é extraído de sua obra, transferido a uma música de Caetano Veloso e expandido em forma de um acontecimento que transcende modalidades e categorias. Segundo Favaretto (2008, p. 19), a obra de Oiticica intitulada Tropicália “conjuga experimentalismo e crítica”, compondo-se de três penetráveis – dois PN2 (1966) Pureza é um Mito e um PN3 (1966-1967) Imagético, com plantas, areias, araras, poemas-objetos, capas de Parangolé, e um aparelho de TV no final – em uma disposição labiríntica que convida à experimentação de um modo de vida popular e brasileiro criticando a colonização da cultura nacional e a repressão de suas formas de expressão. Pode-se dizer que a obra articula o mito da pureza, uma vez que a miscigenação e o contágio são inevitáveis frente ao pluralismo da sociedade brasileira com uma crítica às imagens unificadoras e totalizantes agenciadas, dentre outras maneiras, especialmente pelos meios de comunicação. A Tropicália – obra exposta na mostra Nova Objetividade, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em abril de 1967 – aborda uma possível imagem brasileira não unificada, mas diversa e forte no intuito de romper com idolatrias, universalismos e subjugação a outras culturas. Oiticica afirmava: [...] creio que a Tropicália veio contribuir fortemente para essa objetivação de uma imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo inadmissível aqui: na verdade eu quis com a Tropicália criar o mito da miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo -, nossa cultura nada tem a ver com a européia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Para a criação da verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa maldita herança européia e americana terá que ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terá, que na verdade são as únicas significativas. (OITICICA, 1986, p. 106)

Assim, valorizando a expressão local, Oiticica trabalhou em Tropicália (Figura 54 e Figura 55) no intuito de descolonizar as imagens e a produção artística


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brasileira, devorando símbolos de Brasil a partir de “uma linguagem de resistência à diluição” (FAVARETTO, 2000, p. 142) enunciando traços da cultura negra e índia ocultados pela valorização extremada de culturas estrangeiras. Figura 54 –Tropicália (PN2 e PN3), Hélio Oiticica, 1967

Figura 55 – Tropicália, Hélio Oiticica, 1967

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra 66335/tropicalia

Fonte: http://gente.ig.com.br/cultura/2017-1014/tropicalia-artes.html

Tropicália reconhece, no contexto da época (entre 1965 e 1968), algumas necessidades como a articulação da produção cultural em termos de inconformismo e desmistificação, a vinculação da experimentação de linguagens às possibilidades de uma arte participante e a reação à repressão (FAVARETTO, 2008, p. 15). Tais questões incutiram em um grupo de artistas da época uma postura radical que introduz, reconhece e explora a vivência popular na cultura brasileira e desnaturaliza referências. Assim, para Favaretto (2000, p. 139), “sistema delirante, máquina de produção de sentido, Tropicália é um ambiente-acontecimento que opera transformações de comportamentos”, unindo a potência dos penetráveis a experiências ligadas a vivências nacionais. Os experimentadores da obra, ao penetrá-la, eram convidados a tirar os sapatos para sentir as variações de piso, “um filtro sensorial que questiona e corrói o exótico enquanto estereótipo” (SALOMÃO, 2003, p. 69). Novamente a partir do corpo, então, a sensorialidade era ativada promovendo encontros entre mundos – a simplicidade dos materiais que formam os penetráveis e a tecnologia encerrada no aparelho de TV, por exemplo – em uma tentativa de exaltar e compreender as assincronias do país (FAVARETTO, 2015). É neste sentido que “o Penetrável Tropicália (1966) mapeou o ambiente cultural da Favela da Mangueira” (SILVA, 2014), incorporando materiais, imagens e formas de


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vida que eram, então, incorporadas por seus visitantes. Em outras palavras, tem-se que: As imagens do Brasil moderno e do Brasil arcaico, do industrial e do artesanal, do erudito e do popular, do rico e do pobre, juntas, revelaram o nosso mosaico cultural. Essa concepção causou um "curto-circuito" nas temporalidades constitutivas do País ao submetê-las a uma espacialidade específica. De fato, o funcionamento da obra de Oiticica era propositadamente caótico e a sua unificação era obtida pelo som de uma televisão ligada ao fundo. Assim, o projeto desenvolvimentista foi barrado pela visão do atraso tecnológico, a erudição foi estancada pelo arcaísmo e uma resultante populista foi ironizada pelo efeito cafona do conjunto. (SILVA, 2014)

Mais do que “coisa para inglês ver”, como sugeriu Waly Salomão no início deste tópico, a Tropicália de Oiticica tratava de um diálogo direto com a própria sociedade brasileira, que era simultaneamente a origem e o fim da obra, sua inspiração e sua revolta, elemento tratado com apreço e revolta. O mito da pureza brasileira ou de uma unidade cultural era desconstruído a partir do caos, do labirinto e da diversidade que o contato com uma alteridade diversa propunha. Percorrer o Penetrável era, assim, transferir-se a diversas realidades brasileiras, confrontando as heranças dos sujeitos que ali adentravam, do próprio Oiticica que mapeou um contexto com base em seus afetos e experiências e dos materiais e configurações espaciais que encerram em si possibilidades múltiplas de ativações. Esta visão passou a se expandir e ser compartilhada entre diversos artistas brasileiros, dando origem a um movimento que extrapolou os limites da arte e encontrou em outras expressões tanto florescimentos pertinentes, quanto deturpações contraditórias. Assim, além da manifestação ambiental de Hélio, a Tropicália também se expressou na música, especialmente a partir das produções de Caetano e Gil, Torquato e Capinam e Os Mutantes. Oiticica identifica no grupo baiano “a mesma tônica de suas manifestações ambientais: a renovação de comportamentos, de critérios de juízos, etc.” que “passa pelo modo de produção, aliando conceitualismo, construtividade e vivência” (FAVARETTO, 2008, p. 21). Assim, estrutura semelhante àquela presente nas manifestações ambientais de HO pode ser identificada em algumas músicas tropicalistas que “se desenvolvem como eventos que descentram a percepção organizada por continuidade, propondo-se como ações que exigem do ouvinte a produção de significados” (FAVARETTO, 2000, p. 147). O movimento produzido de um modo geral pela Tropicália foi, então, uma revolução iniciada no


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Brasil – Zé Celso (2010) enuncia: “a terra tremeu primeiro aqui!” – que reuniu diversas formas de expressão e grupos culturais e integrou um contexto mundial de reações culturais e movimentos de cunho político e crítico. Há que se atentar, desta maneira, para sua proximidade com os demais movimentos “contra” do período, que reuniram diversas expressões. A seu respeito, Celso Favaretto (2000, p. 153) afirma: A posição crítica e a atuação cultural, requeridas pelo momento, faziam coincidir o político e a renovação da sensibilidade, a participação social e o deslocamento da arte. Entretanto, o que garantia a unanimidade das propostas, a despeito das diferenças de experimentação, era o tom contestador, a atitude “contra”.

Identificava-se “nas escolhas tropicalistas uma recusa dos valores estéticos dominantes” (AGUILAR, 2016, p. 23), renovando a arte e expandindo-a para além dos seus limites. Expressões múltiplas que faziam coincidir estruturas rígidas com propostas abertas, categorias artísticas diversas e um forte tom contestatório passaram a ser comuns na arte do período, tanto no Brasil quanto fora dele, onde contextos semelhantes de forte repressão e consequente resistência também se desenvolviam. Novos modos de vida passam a ser propostos e novas expressões passam a ser inseridas nos repertórios artísticos. Para Gonzalo Aguilar, Frente à modernização autoritária e à disciplina revolucionária, o Tropicalismo surge como uma terceira opção de modernidade radical, que inclui o aventureiro, um modo de vida mais aberto, o experimentalismo artístico e um populismo vanguardista que se propunha a vincular as conquistas formais do Modernismo aos repertórios populares e de massa. Para realizar essa operação, o Tropicalismo recuperava um filão anarquista que remontava, pelo menos, à vanguarda antropofágica de Oswald de Andrade e recuperava a figura do aventureiro frente à militante. (AGUILAR, 2016, p. 20)

A Tropicália brasileira desenvolveu-se antecipando questões deram início ao movimento internacional da contracultura, cujo prefixo não indicava uma negação da cultura enquanto todo, mas a parcela produzida nos moldes tradicionais. É o que leva Zé Celso (2010) a complementar: “a gente dizia que era contracultura por ignorância. Mas a gente tava cuidando da vida, sabe? Em todos os sentidos”. Este cuidado, aliado à motivação de negação do que se fazia até então com a cultura brasileira, formalizou-se na arte em forma de “antiarte”, que vincula a “atitude criativa


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às exigências de ordem ético-individual, e as sociais gerais‟” (OITICICA, 1986, p. 72). Local de encontro, portanto, entre cultura e sociedade, entre posição artística e política/ética, a antiarte passa a ser a tônica que rege a obra de Oiticica e de outros artistas da vanguarda da época, situados em um “momento de fratura da modernidade” (FAVARETTO, 2000, p. 154) como postura que questiona postulados convencionais se caracteriza por “uma abertura às novas linguagens, um destemor frente à banalidade, uma ousadia corporal que não se podia pedir aos corpos trabalhados pela alta cultura do Modernismo” (AGUILAR, 2016, p. 24). Isso faz com que ocorra um afastamento das expressões artísticas rígidas e excessivamente intelectualizadas reconhecendo em outras linguagens referenciadas por Gonzalo Aguilar como residuais uma potência mais coerente de manifestação. É neste sentido que o autor reconhece que, “de fato, os tropicalistas extraíram boa parte de seu arsenal da linguagem da moda, ao mesmo tempo residual e mercantilizada” (AGUILAR, 2016, p. 25). Isso ressalta a habilidade tropicalista de transitar entre diversos repertórios e conjugá-los para “debater a produção de imagens culturais” (AGUILAR, 2016, p. 25) que, certamente, não se compõe apenas a partir de atributos visuais ou de forma representativa. A moda permitiu, assim, uma aproximação direta com os meios de comunicação sem deixar de explorar uma dimensão tátil e sensual, conjugando espetacularização

e

resistência,

visualidade

e

vivência,

representação

e

sensorialidade. Os figurinos dos cantores tropicalistas, por exemplo, operavam um movimento no qual “o corpo é entregue à espetacularização, porém o trabalho com os sons, as roupas e as texturas instala a opacidade agressiva do contato e da proximidade tátil” (AGUILAR, 2016, p. 25). É como se na ânsia de aproximar-se à própria vida, os artistas e o movimento imergissem no sistema para desvirtuá-lo ora de forma bem humorada e pitoresca, ora de maneira mais agressiva. Naturalmente, este processo não se deu sem perdas e desvios: o forte apelo midiático do movimento favoreceu sua cooptação e transformação em artigo mercantil, atitude hostilizada por Hélio pela redução que representava ao tentar compor imagens únicas, afastando-se da ideia que originou o movimento. Além disso, uma imagem tropicalista incide inevitavelmente em um apelo representacional, fortemente questionado pelos artistas que compuseram o movimento por supor uma certa autonomia e uma independência em relação ao sujeito (ou ao ponto de vista) “que a produz e do corpo que faz dela suporte. A imagem tropicalista não é algo passivo e


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que se encontra ao final do percurso, e sim algo atuante, orgânico e vital, que sempre tem um corpo que atualiza” (AGUILAR, 2016, p. 25). Percebe-se a partir das ações e reações que compõem o diverso movimento Tropicalista originado a partir do Penetrável Tropicália proposto por Hélio Oiticica que ele é testemunho – ativo – de processos de formação e questionamento da identidade nacional. O movimento articulou-se unindo formas de expressão, pontos de vista, movimentos tanto de aumento quanto de redução conceitual, em um exercício ambiental complexo e amplo. Suas formulações tanto físicas quanto teóricas foram construídas através de processos de subjetivação e significação agenciados especialmente a partir de uma vanguarda artística crítica e consciente de seu contexto. Para Zé Celso (2010), Rogério Duarte, Luís Carlos Saldanha e Hélio Oiticica foram as “três bruxas da revolução de 1968”: “Foi no caldeirão deles que foi costurada toda essa revolução cultural no Brasil em 1967 que antecedeu a manifestação mundial dela”. Embora a Tropicália tenha sido posteriormente subvertida e comercializada como produto, acredita-se que as manifestações ambientais de Hélio Oiticica em sua concepção tenham sido essenciais para efetivar uma reforma na arte tanto nacional, quanto internacional, levando Sperling (2008) a afirmar que Tropicália é o ápice do programa ambiental de Oiticica. Acredita-se que é nesta obra de Hélio, dentre as tantas outras que integram sua produção, onde se verifica com maior clareza a relação direta entre arte e política, entre vivência e crítica e entre espacialização e sociedade. Na Tropicália, Hélio deixa especialmente claras suas intenções de encontro e articulação entre (anti)arte e vida e sugere infinitas possibilidades de expansão. Cooptado e parcialmente esquecido, o movimento ainda marca fortemente o imaginário brasileiro, podendo motivar expansões e novas produções igualmente potentes e afastadas dos reducionismos absolutistas. Uma imagem frágil e orgânica de um país plural e rico, em cujo cotidiano se encontram latências e potências de uma cultura diversa e atenta à alteridade é o que se identifica, aqui, como um dos maiores legados da Tropicália. 4.2.9. Manifestações Ambientais Desde os Parangolés e, especialmente, a partir de Tropicália, Hélio passa a realizar obras que congregam performances coletivas em espaços públicos e abertos, além de tentativas – por vezes frustradas – em museus e galerias. De forma


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genérica, são tais eventos e aspirações do artista que se denominam Manifestações Ambientais, compondo experimentações que encontram paralelos especialmente na obra de Flávio de Carvalho. É necessário exaltar que as Manifestações representam apenas uma forma de expressão da ordem ambiental, a qual se expande comportando outras diversas ocorrências e estratégias. O que elas caracterizam, entretanto, está no centro do que se conceitua como ambiental e no que se desenvolve na quase totalidade da trajetória de Hélio Oiticica. Segundo Tania Rivera (2012, p. 116), “a problematização da relação sujeito/objeto que marca a trajetória heliana se radicaliza na afirmação do ato/acontecimento” e a arte passa, então, a operar com o ambiente. A complexidade desta ordem, a profundidade de suas ações e sua intensa conexão a um momento político bastante delicado expandem essa discussão de tal forma que seria necessário realizar um estudo focado exclusivamente nelas para esclarecer de forma satisfatória seu caráter e suas ações. O que se realiza aqui é um apanhado geral a respeito das principais Manifestações que ajudam a traçar um caminho para se aproximar do que pode ser o ambiental na obra de Hélio Oiticica, ativando conceitos e inspirações importantes neste quesito. Para abarcar outras questões que vão além da teoria ambiental, sugere-se consultar as referências constantes na bibliografia desta dissertação. As Manifestações são importantes expressões a serem estudadas aqui não só por operarem ampliações de ordem ambiental, mas também por ainda carecerem de registro apesar de sua magnitude. Seu desdobramento se deu especialmente na época de forte repressão do período militar, período no qual o espaço público, que era tomado pelas proposições artísticas de vanguarda, foi “sequestrado” (AGUILAR, 2016), restringindo sua plena e livre expressão. Segundo Gonzalo Aguilar (2016, p. 123), “o lugar para estender as bandeiras e as cores era o espaço público, mas não o espaço público como algo dado, e sim como um âmbito a que cada ato – artístico, político, midiático – buscava dar forma e redefinir”. O movimento de saída dos espaços institucionalizados da arte para o espaço público carregava grande potência de expansão dos fazeres artísticos e das noções de sujeito. Entre outros acontecimentos que o motivaram, tem-se a expulsão dos moradores do Morro da Mangueira do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro quando, junto de Hélio Oiticica, eles tentaram realizar uma performance vestindo Parangolés. Esta “foi a prova, para Oiticica, de que deveria caminhar para outros territórios” (AGUILAR, 2016, p. 90), culminando na tomada do espaço público e na reinvenção do sujeito.


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Este, “mais do que um observador que trabalha a partir de seu gabinete ou no consultório, é um ativador que sai à rua para trabalhar fora dos protocolos da ciência (ou transformando-os)” (AGUILAR, 2016, p. 85). Estas noções de sujeito e de espaço público, entretanto, entravam em choque com as disposições autoritárias e excessivamente controladoras do regime de governo da época. Diante disso, inúmeros artistas foram presos e fortemente reprimidos – incluindo aqueles ligados à Tropicália –, situação diante da qual Hélio retirou-se do país. Muitas de suas ideias de Manifestações Ambientais – que tinham forte ligação com o contexto brasileiro – acabaram, então, ficando relegadas a planos e desenhos não concretizados, mas nem por isso são menos potentes ou inspiradoras. São destacados aqui dois experimentos que compreendem parte das Manifestações Ambientais, um realizado pouco antes do “sequestro do espaço público”, na progressiva retirada de HO de museus e galerias e no exercício de performances coletivas, e outro construído postumamente, revelando a riqueza do material teórico produzido por Oiticica, o planejamento minucioso de suas obras – embora não dos comportamentos – e uma atitude que Gonzalo Aguilar (2016, p. 80) conceitua como a de “transformar os restos em sintomas”, ou seja, exercitar a capacidade de abstração para compreender e subverter as forças que dotavam o espaço público e a arte de uma passividade que não lhes eram característica. Seus restos foram explorados em obras sensíveis, inteligentes e sintomáticas. 4.2.9.1. Apocalipopótese Diante de uma hipótese do apocalipse esboçada em função do contexto da época, Apocalipopótese (Figura 56) foi uma Manifestação assim batizada por Rogério Duarte fundindo “„apocalipse, „apoteose‟ e „hipótese‟ com um sentido muito ambivalente” (AGUILAR, 2016, p. 94). Realizada em 18 de agosto de 1968 – poucos meses antes da decretação do AI-5 – integrando a programação da “Arte no Aterro: um mês de arte pública”, ela reuniu diversos artistas em uma “série de proposições simultâneas de participação” (AGUILAR, 2016, p. 49) no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, durante três domingos consecutivos. Segundo Gonzalo Aguilar (2016, p. 94-95)


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[...] toda a experiência teve um forte impacto político e artístico: os parangolés de Hélio Oiticica (um deles dedicado a Che Guevara), os Ovos de Lygia Pape, as Urnas quentes de Antonio Manuel e a performance de Rogério Duarte com seus terríveis cães amestrados concretizaram uma promessa de arte participante e de oposição articulada em torno do ato ou do povo em ato. Porém, diversamente das encenações de Antonio Manuel e de Rogério Duarte, Oiticica não buscava um efeito exterior no campo da política. Sua intervenção crítica está em relação com a libertação das restrições corporais e com a ampliação do sensorial.

Embora a reverberação no contexto político fosse inevitável, a preocupação de Oiticica recaía especialmente sobre “a desabituação do comportamento e dos costumes que deveriam ser reinventados constantemente no encontro com o estranho, com o animal, regido pela contingência.” (CERA, 2012, p. 52). Experimentar e sugerir mudanças de rota, interromper discursos dominantes e questionar padrões de comportamento agenciados por propostas diversas foram algumas das ações e intenções que esboçaram, em Apocalipopótese, possibilidades de criação coletiva e resistência. Figura 56 – Frederico de Morais vestido o Parangolé idealizado por Hélio Oiticica em homenagem à Che Guevara, Apocalipopótese, 1968

Fonte: http://portacurtas.org.br/filme/?name=apocalipopotese_guerra_paz

Não cabe aqui explorar de forma detalhada cada proposta contida na Manifestação, entretanto, ressalta-se o caráter comum de “experiência-corpo que não pode ser apreendida por nenhum poder” (CERA, 2012, p. 55), realizando no espaço público o que a obra de Oiticica esboçava desde o início de suas pretensões ambientais. A incompletude do ato, e a sua caracterização enquanto manifestação – que alude a um traço anímico além de supor finitude e efemeridade – revela um caráter de um mundo que está sempre por ser inventado e reinventado, especialmente a partir do corpo e de sua experiência (CERA, 2012, p. 52). Assim,


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Apocalipopótese se revela enquanto “experiência que se faz com o resto, com o „fio solto‟, para mudar o rumo, mudar o hábito” (CERA, 2012, p. 52), descondicionando os corpos, o espaço público, as relações, a arte, etc. Identifica-se, nisso, um prenúncio otimista de um devir menos apocalíptico, mas aberto, sensível e experimental. Entretanto, “apenas quatro meses depois da realização do evento, os valiosos resultados que Oiticica alcançou com sua arte ambiental perderam o contexto em que adquiriram sentido: o da construção de um poder marginal e alternativo no espaço público, contra o autoritarismo militar e a sociedade burguesa” (AGUILAR, 2016, p. 95), símbolos do condicionamento e da repressão. Muito se poderia discorrer a respeito desta Manifestação, especialmente ao reconhecê-la, segundo sugerido por Flávia Cera (2012, p. 51), como um dos acontecimentos “mais marcantes das participações coletivas propostas por Hélio”. Destaca-se, ainda, sua reverberação em um outro ato público e coletivo agenciado por Oiticica denominado Mitos Vadios e performado em 1978 em São Paulo, que desenvolveu-se de forma similar, mas em um contexto bastante distinto. O que interessa a este trabalho, entretanto, é como Apocalipopótese revela uma potência coletiva de descondicionamento de corpos a partir da experiência, capaz de ilustrar de forma extrema as aspirações do caráter ambiental. A Manifestação congregou diversas formas de expressão não a partir da setorização em categorias distintas, mas de sua indissociabilidade em nome de um experienciador aberto e sensível. Ressalta-se, ainda, o espaço público como lugar que acolheu estas práticas e as inspirou, fazendo pensar sobre a potência de se imaginar tratamentos urbanos mais conectados a esta possibilidade latente e por vezes oculta em alguns exercíciospadrão. Inúmeras

imagens

frágeis

podem

ser

extraídas

da

efemeridade

e

imprevisibilidade dos comportamentos, das singularidades reunidas em um coletivo e do contato com a alteridade que convive de forma harmônica com seus corpos abertos e sensíveis. Elas podem sugerir formas de aproximação mais conscientes com o cotidiano e ensaiar resistências a dinâmicas dominantes, como a da espetacularização, revelando a potência do corpo quando este é considerado em sua completude e a partir da coletividade. A postura de Oiticica – e dos demais artistas que integraram as proposições de participação de Apocalipopótese – revela, também, uma figura bastante inspiradora: a do artista como agenciador de criações artísticas, e não necessariamente, criador em si. Ele é despido da aura controladora


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comum nas expressões convencionais oferecendo oportunidades de criação, em uma confiança cega no potencial dos corpos e de suas ações. Distante da ditadura tanto política, quanto do sistema de arte, Apocalipopótese foi registrada em vídeo por Raymundo Amado e culminou no filme “Apocalipopótese – Guerra & Paz”. 4.2.9.2. Magic Squares Em oposição à dinamicidade de Apocalipopótese, mas ecoando sua riqueza de registro – uma vez que esta obra só pôde ser construída em função das instruções detalhadas deixadas por Hélio Oiticica quando a criou –, Magic Squares (Figura 57, Figura 58 e Figura 59) é uma Manifestação Ambiental de caráter bastante distinto que se configura como um penetrável. Cabe destacar que ele é exposto aqui e não no tópico sobre Penetráveis por seu caráter público e, especialmente, urbano, conformando-se como um convite para penetrar na cidade, “romper com a ordem cotidiana das coisas” (FERRAZ, 2006, p. 155) e promover o Delirium Ambulatorium. Termo criado por Hélio na década de 1970, ele se refere a um caminhar livremente pelas ruas em uma espécie de deriva, um vagar de improviso, um preâmbulo, tanto revelado quanto capaz de revelar “acontecimentos poéticos-urbanos” (OITICICA, 1979b). Segundo Tatiana Ferraz (2006, p. 141), ele seria “algo como uma resposta ambiental à perda da escala humana na cidade contemporânea” e é trabalhado em inúmeras outras obras do artista. Os Magic Squares nascem, dentro desta ótica, de “uma vontade artística de atuação imersa no tecido social, que pressupunha o deslocamento do objeto para uma situação social urbana ativa” (FERRAZ, 2006, p. 41), aproximando arte, vida e mundo, artista e cotidiano, propostas desintelectualizadas e um fruir espontâneo em um espaço que é, ao mesmo tempo, diferenciado e ordinário. Tatiana Ferraz (2000, p. 159) aprofunda esta noção afirmando que O penetrável se configuraria, assim, numa espécie de intervalo espaçotemporal na cartografia urbana – quer nos seus percursos, quer na paisagem da cidade. A obra torna-se instrumento capaz de detonar uma experiência surpreendente, na qual o transeunte se transforma em ator dessa nova espacialidade, posição equivalente ao que os situacionistas chamaram de „vivenciador‟, pela lógica da criação de uma „ambiência‟.


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A ideia de intervalo é especialmente potente ao insinuar um tempo que fica em suspensão num espaço que é sutilmente marcado por uma intervenção capaz de ativar um novo olhar para o urbano em vivências mais atentas e sensíveis. Este espaço – que sempre esteve ali, democrático e potente – se revela de forma diferenciada, estendendo-se ao corpo e convidando-o à ressignificá-lo. “Esse índice de intimidade, que possibilita criar uma situação individualizada dentro de qualquer que seja a macro-escala do espaço que o contenha, formula uma espacialidade da ordem do doméstico, da intimidade” (FERRAZ, 2006, p. 159) e aproxima os sujeitos de seus contextos. Esta aproximação, entretanto, é agenciada pelo próprio sujeito, por seu próprio corpo, configurando uma experiência que é só sua e que imprime/redefine/expande/revela sua subjetividade. Espaço e corpo, assim, estabelecem uma relação ativa, influenciando-se mutuamente. É neste sentido que Teresinha Barachini (2015) escreve sobre a noção de espaço exercitada em Magic Squares. Para a autora, “em geral, as teorias sobre espaços são estabelecidas a partir da ideia de conjunto e da relação de suas partes. Mas, o espaço pode conceituar-se em seu vazio” (BARACHINI, 2015). Entender o espaço como ativo pode ser, então, entendê-lo como este vazio aberto a ser constantemente ressignificado, uma vez que não se restringe à qualidades limitadoras mas apresenta inúmeras possibilidades. E esta é uma das prerrogativas para a obra ambiental de Hélio Oiticica. Figura 57 – “A Invenção da Cor”, Magic Square #5, De Luxe, Hélio Oiticica, 1977, construído postumamente no Instituto Inhotim, MG

Fonte: http://maisondadi.com/arte-2/inhotim-magic-square/


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Figura 58 – Magic Square #5, Hélio Oiticica, 1977

Figura 59 – Magic Square #5, Hélio Oiticica, 1977

Fonte: http://maisondadi.com/arte-2/inhotimmagic-square/

Fonte: http://maisondadi.com/arte-2/inhotimmagic-square/

Assim, pode-se inferir que uma das motivações centrais dos Magic Squares era configurar “labirintos públicos” a fim de “criar uma virtualidade, uma ativação de vivências subjetivas” (BRAGA, 2008, p. 272) passíveis de ocorrer na cidade tanto a partir de intervenções deste tipo, quanto de uma abertura ao uso cotidiano de forma realmente aberta. O recurso usado por Oiticica para configurar os labirintos que compõem esta Manifestação está sugerido em seu próprio nome: não se sabe ao certo (sequer o artista podia afirmar) se a tradução mais justa consideraria squares enquanto praças ou quadrados, entretanto, ambos os significados se mostram pertinentes à proposta que se baseia na criação de espaços vazios (como praças) a partir de plantas e elementos de geometrias rígidas (em sua maioria, quadrados). Segundo Paula Braga (2008, p. 272), ao compor os Magic Squares Oiticica “retira do plano os quadrados de Maliévitch e Mondrian transformando-os em praças”. Através de quadrados de dimensões parecidas, cores diversas e materiais diferenciados – como telas translúcidas, superfícies opacas ou planos vazados esta Manifestação é parte de um conjunto de obras que induziam à imersão dos experienciadores não só na arte, mas na cidade, tentando exaltar os espaços públicos como lugares de convívio, permanência e vivência urbana. Tatiana Ferraz (2006, p. 159) pontua ainda que apesar da composição dispersa dos Magic Squares, cujos planos são soltos no espaço e, na maioria das vezes, não apresentam qualquer tipo de fechamento lateral ou superior, sua leitura pode-se dar como a criação (ou reconhecimento) de um abrigo: Por mais vazado e expandido que seja o penetrável em suas laterais, ao chegar à clareira onde a obra está instalada, o pórtico nos remete a entrada


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de um abrigo, no qual o visitante curioso percorreria um trajeto não sinalizado, espontâneo, impelido ora pela orientação da luz incidente no ambiente ora pela atração e repulsão provocada pelas cores impressas nas paredes e suas diferentes texturas promovidas pela diferenciação dos materiais ali empregados.

Acredita-se que a leitura espontânea da instalação que induz à definição de percursos específicos e experiências individuais ativa memórias e subjetividades nos corpos que imergem nos Magic Squares, remetendo novamente a uma experiência íntima que alude à figura do abrigo ou da casa. Uma oportunidade de reconhecimento de si na cidade, uma leitura do urbano enquanto abrigo, uma aproximação do cotidiano em nome de sua poética e potência, um criar compartilhado que divide a autoria da obra e evoca a coletividade tão importante na cidade são algumas das inspirações que Magic Squares esboça. Cabe destacar que as afirmações sobre os Magic Squares são feitas mais em termos de possibilidades do que enquanto certezas em função de sua construção póstuma e deslocada de seu contexto original, ao menos no caso do Magic Square #5. Embora a pretensão de Hélio fosse inserir a obra no contexto urbano, este encontra-se em uma área aberta do Instituto Inhotim, ajudando a despertar algumas experiências, mas guardando certa distância do plano original. Felizmente, o hábito da escrita e a farta produção de registros feitos por HO resultaram em documentos que se configuram quase como manuais de instruções para montagem das Manifestações, apresentando especificidades de materiais, lugares, dimensões e tamanhos, permitindo sua construção fiel e uma reflexão a respeito de suas influências. A partir de algumas Manifestações realizadas e destes registros que motivaram obras erigidas postumamente, verifica-se a atualidade de suas obras ambientais, que mesmo deslocadas do contexto – tanto temporal quanto espacial – inicialmente previsto, insinuam uma grande potência expressiva. Resgata-se aqui a ideia de que boa parte das manifestações de Oiticica são ambientais, especialmente quando se entende seu processo e sua produção como ativadores da percepção de espectadores convertidos em participantes, do envolvimento

sensorial

e

da

espacialização

contextualizada,

ou

seja,

do

relacionamento entre obra e contexto (seja físico ou social). Entretanto, as produções aqui tratadas em termos de Manifestações Ambientais abrangem especialmente os já abordados Magic Squares e Apocalipopótese, assim como Mitos Vadios, Marginália, Caju (Figura 60), entre outros. Estas manifestações


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consistiram em ações conjuntas com outros artistas, grupos culturais, parcelas da sociedade, entre outros agentes diversos, compondo um repertório dinâmico de acontecimentos abertos e imprevisíveis. A tomada da cidade era uma de suas pautas mais importantes, seja a nível físico ou metafórico – quando da impossibilidade de se expressar livremente no espaço público –, e reafirma sua vontade de tomar o mundo como museu, conceito reinventado junto da obra de Oiticica. Figura 60 – Manuscrito do Manifesto CAJU, Hélio Oiticica, 1979

Fonte: http://54.232.114.233/extranet/enciclopedia/ho/ index.cfm?fuseaction=documentos&cod=722&tipo=2

O que se deseja enfatizar, então, a partir das Manifestações Ambientais de Oiticica é sua importância na transferência das proposições artísticas do espaço sacralizado ou institucional do museu para o espaço urbano – que parece ser o espaço ambiental por excelência. As ações ambientais de Hélio refletem, assim,


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“uma revolta individual contra cada tipo de condicionamento social” (SALOMÃO, 2003, p. 45) e sugerem novas apropriações do espaço, propondo uma vivência da cidade enquanto playground. Além disso, elas enfatizam o espaço público e a vida urbana também como fontes de inspiração para proposições, a exemplo do que se dá em “Seja Marginal, Seja Herói” (Figura 61). Nesta obra, o inconformismo social se reverte em produção que tematiza e questiona a morte de Alcir Figueira da Silva. Ao encontrar-se encurralado pela polícia, Alcir suicidou-se e a foto de seu corpo estendido no chão foi amplamente veiculada pela imprensa e apropriada, posteriormente, por Hélio Oiticica em uma atitude de [...] contra-ataque do „guerrilheiro‟ solitário em resposta ao slogan divulgado („bandido bom é bandido morto‟) e ao justiçamento praticado pela falange exterminadora. Dentro do contexto geral sufocante do Brasil pós-ditadura militar de 64, não há mediação nem meio-termo: a heroicização do vitimado indica o grau absoluto da reversão HO como também seu extremo ceticismo em relação ao legalismo caricato-liberal brasileiro de então. (SALOMÃO, 2003, p. 44)

Ecoando o gesto que homenageou Cara de Cavalo no Bólide Caixa 18 Poema Caixa 2, Oiticica desenvolve uma bandeira-poema que desencadeia inúmeras ações realizadas por outros artistas, reverberando com grande potência na sociedade da época. “Seja Marginal, Seja Herói” também constitui-se, portanto, como prova de que antiarte e arte ambiental não só resultam em, mas também de espacializações e vivências, em contato direto com a cidade, a sociedade e suas questões. A obra representa, para Salomão (2003, p. 44-45), a capacidade de Hélio de “cruzar zonas de fronteiras inóspitas” e inaugura o movimento chamado Marginália que, junto de tantas outras manifestações, ressalta o caráter transdisciplinar e social das propostas de Oiticica. Há muitos registros audiovisuais destes acontecimentos que podem favorecer uma pesquisa mais aprofundada a seu respeito, incluindo o filme “Hélio Oiticica” 15 (Figura 62), dirigido pelo sobrinho do artista, César Oiticica Filho e lançado em 11 de setembro de 2015 e o já citado “Apocalipopótese – Guerra & Paz”, que registra a manifestação homônima. Acredita-se que esta forma de registro das obras de Hélio – e a quantidade de material audiovisual gerado a seu respeito reitera esta noção – 15

O site oficial do filme (http://www.heliooiticicaofilme.com.br/) já foi acessado pela autora mas encontrou-se indisponível em pesquisas recentes. A página <https://www.facebook.com/HelioOiticicaOFilme/>, acessada em 08 set. 2018, entretanto, fornece alguns detalhes importantes a seu respeito.


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seja a que mais se aproxime de revelar a experiência de suas proposições, especialmente por capturar com mais detalhes parte das vivências em si – sons, cores, movimento, vento, incidência solar/luminosa, etc. A integração entre áreas favorecidas por esta arte dialoga diretamente com a produção de HO, e compõem um importante testemunho de suas ações, entretanto, ainda apresenta limitações e não é capaz de corresponder à realidade em completude. A experiência individual e subjetiva, assim como demais condições sensoriais como cheiro e temperatura não podem ser transmitidas ou veiculadas por nenhum meio além da vivência em si. Apesar disso, aproximações entre Oiticica e o cinema são frequentes não só para registrar obras, mas também para expandi-las a novos formatos. Isso se dá tanto em função de sua amizade com grandes figuras da área, especialmente Glauber Rocha e Ivan Cardoso, quanto a partir de experimentações realizadas pelo próprio artista no que ele denominou “quase-cinema”. Figura 61 – Seja Marginal, Seja Herói, Hélio Oiticica, 1968

Figura 62 – Cartaz do filme “Hélio Oiticica”, 2015

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2638/ bandeira-poema

Fonte: https://www.facebook.com/HelioOiticica OFilme/ photos/a.356743361072938/ 3580139376125 47/?type=3&theater


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4.2.10.

Cosmococas

Experimentos audiovisuais são especialmente realizados por Oiticica nas obras reunidas sob o título de Cosmococas (Figura 63). Segundo Gonzalo Aguilar (2016, p. 166), elas “fazem parte da busca que Oiticica vinha realizando de um „cinema‟ antinarrativo e ambiental, que denominou quase-cinema”. Rejeitando o princípio de montagem cinematográfica em sequências organizadas, Hélio tratou de realizar registros de fragmentos ou “momentos-frame” em uma abordagem que ao mesmo tempo se aproximava do pop e o desconstruía. Neste sentido, as experimentações realizadas como “quase-cinema” Não são como o cinema convencional, mas o vampirizam no que Oiticica considerava o essencial: fazer do espaço um lugar inventivo, em que não importasse a forma de arte, e sim a energia que esta pudesse dar à vida. Os quase-cinema também implicam uma crítica ao cinema no que este tem de mais conservador: a passividade e imobilidade que exige do espectador. Começa então uma nova aventura no deserto: o espaço público onde havia realizado suas invenções já não era acessível, havia sido sequestrado pelo poder. Hélio Oiticica inicia incursões em terras incógnitas. (AGUILAR, 2016, p. 125)

Tais incursões se desenvolveram quando Oiticica já morava fora do Brasil e contagiava-se com a cultura norte-americana, passando a abordar questões relacionadas com os grandes ícones da cultura pop e com a potência subterrânea do underground. Além disso, nos anos 1970, HO começa a “pesquisar sobre as possibilidades artísticas das cerimônias do êxtase” (AGUILAR, 2016, p. 166) nas quais encontra vontades anímicas, insinuações ritualísticas e possibilidades de intensificar experiências que inspiram suas obras. O contato do artista com as drogas, especialmente a cocaína, potencializa este interesse e abre precedentes para investigações mais introspectivas na trajetória de HO.


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Figura 63 – Cosmococa 5 Hendrix War, Hélio Oiticica, 1973

Fonte: https://outraspalavras.net/brasil/para-conhecer-helio-oiticica-estetica-etica-politica/

Além de caracterizarem-se como experimentos de “quase-cinema”, as Cosmococas também reúnem estas outras questões, reinventando, mais uma vez, a obra de Hélio Oiticica. O que o artista realiza neste momento são sobreposições de linhas de cocaína sobre rostos e obras de figuras da cultura pop. Posteriormente, Hélio registra momentos destas intervenções e os projeta em salas fechadas combinando-os a músicas, ruídos e objetos dispostos no ambiente criando proposições imersivas e ambientais. Oiticica convida os corpos a experimentar sua sensorialidade deitando-os no chão, sentando-os em redes ou fazendo-os imergir em piscinas psicodélicas de águas turvas e banhadas de luz colorida para vislumbrar projeções, ouvir músicas, deixar-se contagiar, enfim. Segundo Gonzalo Aguilar (2016, p. 166), os Block Experiments in Cosmococa, Program in Progress, são, então, “uma série de instalações realizadas juntamente com Neville D‟Almeida, que combinam a ambientação espacial e sonora com a projeção de slides dos rostos de Marilyn Monroe, Luis Buñuel, Yoko Ono, Jimi Hendrix e Mick Jagger, maquiados com linhas de coca.” A cocaína é usada como pigmento branco que desenha a presença de um sujeito sobre as imagens da cultura de massa, marcando nelas “bela e transgressivamente, a cifra de seu prazer e de seu corpo, através da droga” (RIVERA, 2012, p. 112). As linhas brancas compõem um vestígio que atesta uma presença complementada sinestesicamente no ambiente no qual “algo resta do sujeito, uma vez realizado um ato onde está em jogo seu gozo, e isso que resta é justamente o que se pode chamar arte” (RIVERA, 2012, p. 123). Este resto aparece


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tanto nas próprias imagens, nas quais por vezes se pode identificar os materiais usados para o uso de drogas, quanto no ambiente, a partir dos objetos ali dispostos. Cosmococa revela-se uma redefinição na trajetória de Hélio, “em parte, porque muitos dos motivos que haviam marcado suas invenções na década anterior haviam se modificado” (AGUILAR, 2016, p. 167), como o espaço público e o contexto nacional, que se revela outro para um artista deslocado de sua terra natal. “Com esses procedimentos, as Cosmococas parecem afirmar, por um lado, que nossa relação com os corpos se modificou totalmente, que já não se desenvolve no espaço público, e sim nos meios de comunicação” (AGUILAR, 2016, p. 172) e passa a agenciar a conquista deste novo meio expressivo através de sua subversão. O próprio conceito de corpo é reinventado, recolhendo-se em uma solidão de exílio revelada por vestígios que podem ser vistos, mas já não são compartilhados, ecoando a vida do artista naquele momento.

Gonzalo Aguilar (2016, p. 174)

entende que Se, nos anos 1960, Oiticica descobre que a arte não deve situar-se em espaços públicos preexistentes, e sim deve inventá-los, a revelação das Cosmococas, apesar da ausência de mudança política em seu horizonte, não é menos fundamental: a máquina sensorial do corpo não deixa de traçar pontos e linhas de fuga. O corpo – na encruzilhada dos meios de comunicação de massa – é espaço público. É (será) a nova sede das lutas políticas.

O gozo provocado pela droga é, neste sentido, uma afronta ao corpo condicionado e reprimido. Ele evoca uma experiência descentradora, de um sujeito que se entrega, se assujeita (RIVERA, 2012, p. 145), provocando um “ultrapassamento da obra em prol de uma vivência perceptiva que se expande em um campo simultaneamente libidinal e ético de relação com o outro” (RIVERA, 2012, p. 126). Além disso, a droga potencializa o acaso e a abertura, constituindo-se assim, em uma espécie de radicalização das pretensões oiticiquianas até então desenvolvidas. Neste sentido, Tania Rivera identifica um paralelo entre as Cosmococas e os Parangolés, afirmando que a cocaína – um dos principais componentes da obra – autua provocando agenciamentos similares aos do Parangolé: “ela assinala a perda de um ponto de vista fixo, o descentramento do eu, em prol de experiências coletivas e corporais que (re)constroem, com desejo e gozo, a própria Cultura” (RIVERA, 2012, p. 129). Assim, “Cosmococa é um programa experimental, aberto e em progresso, não apenas por ser um convite ao outro e a


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suas reações a tal „não-ambiente‟, mas porque atua sobre o mundo de modo a acentuar a multivocidade” (RIVERA, 2012, p. 146), à maneira dos Parangolés e das demais aspirações ambientais. 4.2.10.1.

Adendo Branco

A aproximação das Cosmococas com os Parangolés não é acidental. Hélio não deixou de produzi-los e os reinventou de forma adaptada aos novos contextos em uma evolução contínua e sensível. É o que se revela quando se resgata o Parangolé P30 Capa 23, M‟way ke que, “tem uma singularidade em relação aos outros” (AGUILAR, 2016, p. 159): enquanto quase todos trabalham geralmente com o laranja e os amarelos, este alcança um efeito branco mediante o uso de uma tela de náilon de mosquiteiro; enquanto quase todos foram feitos para a urgência do momento, a data de produção desse parangolé se estende de 1965 a 1972, ou seja, desde quando Oiticica estava no Rio de Janeiro (na época de plena ebulição política) até os tempos do exílio, quando ele já estava em Nova York. Demorou muitos anos para fazê-lo e o intitulou „M’way ke’, em um jogo de palavras joyceano que se pode ler como „meu caminho‟, „milky way‟ (via-láctea) ou „me desperta‟ (wake, e uma referência explícita ao escritor irlandês). (AGUILAR, 2016, p. 159)

O refinamento deste Parangolé e sua construção constante em uma evolução não linear guarda potências que vão além da particularidade cromática e da rigidez pouco característica das demais produções desta ordem. A seu respeito, Oiticica (1966, apud. AGUILAR, 2016, p. 159) chega a afirmar: “A capa 23 P30 que foi planejada em 65 (maquete) só a estou terminando agora: e possui toda a densidade ambiental-pele desses anos, como que somados: [...] é como o Manto de Plumas: o raio x do corpo de quem veste; síntese ambiental”. As transparências revelam-se essenciais nesta imagem, assim como a condensação dos inúmeros sentidos do corpo, sutilmente presentes em um objeto que, quando incorporado, sintetiza Parangolé e Cosmococa, individual e coletivo, visual e sinestésico, ambiental, enfim. Nas palavras de Aguilar (2016, p. 159), “é como se a Capa 23 construísse, ao longo do tempo, uma arché das outras capas ou uma espécie de núcleo que exige ser lido em plano diverso do das capas coloridos”. É como se ela fosse uma síntese que encerra a potência de todos os outros experimentos até então realizados. Cabe


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interrogar se é neste mesmo sentido que a predominância do branco se dá. Tratando-se de cor-luz, ela é a soma de todas as cores. Acredita-se, neste sentido, que o uso do branco no Parangolé em questão dialoga diretamente com a cocaína – pigmento convenientemente branco das Cosmococas – e revela-se tanto metáfora ao alcance de um extremo nas investigações sobre a cor, quanto parte de um contexto maior. Gonzalo Aguilar (2016, p. 131) considera que, no final dos anos 1960, estabeleceu-se uma centralidade na figura de Malevich e, especialmente, em sua obra Branco sobre Branco. O autor repara que, além disso, a disseminação do branco também se dá em outras áreas, a partir de outras referências, afirmando que “no fim dos anos 1960, uma grande quantidade de fenômenos leva a pensar que o recurso do branco é indício de uma situação mais ampla, que excede [...] as especificidades de cada arte” (AGUILAR, 2016, p. 131). Ampliando-se como síntese não só da cor-luz, mas síntese ambiental no sistema cultural (não só artístico), o branco passa a aparecer no cinema, na música, nas artes plásticas, é usado em capas de discos e outras inúmeras manifestações, aludindo a uma superação drástica da forma, do conceito, da representação e da desconsideração do tempo. Tal noção fica especialmente clara ao perceber-se que [...] o branco não é uma consolidação da forma, e sim sua ameaça, o jogo irresoluto entre o finito da obra e sua abertura para outra coisa, seja o infinito, o absoluto ou a matéria que, com sua força ou energia, questiona a forma. Ao mergulhar no branco como suporte ou matéria da arte, as obras terminam afirmando algo que, em um primeiro olhar, parece escandaloso: o absoluto da imanência. E a potência da arte para criar, nesse plano, novas sensações, experiências e modos de reflexão. (AGUILAR, 2016, p. 141)

O uso do branco interessa especialmente a este estudo justamente em função desta potência imanente que une o visível e o não visível em uma espécie de “experiência do êxtase na imanência” (AGUILAR, 2016, p. 163), ou seja, na essência. Ele dialoga diretamente com as provocações das Cosmococas e sugere, junto delas, a possibilidade de se assumir e explorar a imanência no exercício de resistência à criação de imagens fortes ou obras-cristal, tolerando o gesto, provocando-o até, abrindo-se a ele e ao corpo descondicionado não para condicioná-lo, mas para permiti-lo entrar em êxtase a partir do que há, em si, de particular. Esta experiência ecoa diretamente a poética do gesto, compondo-se


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enquanto convite a uma síntese que compreende cada individualidade, cada sujeito e cada corpo. 4.2.11.

Ninhos, Éden e Barracão

Após as polêmicas Manifestações Ambientais, em um momento bastante próximo do que caracteriza os experimentos com o branco, Hélio Oiticica realizou a Whitechapel Experience (1969), em Londres – talvez a exposição mais importante de sua carreira, onde foi possível reunir boa parte de sua obra – e se mudou para Nova York logo em sequência. Recém chegado, HO realizou a exposição Information no MAM e a partir de então retirou-se efetivamente das galerias e museus, dando sequência a suas investigações ambientais no momento póssequestro do espaço público, que “levou os artistas a redefinirem o lugar de suas práticas” (AGUILAR, 2016, p. 124). É neste contexto que Hélio expõe/dispõe (à experiência) os Ninhos (Figura 64 e Figura 65). Estruturas que lembram Bólides ampliados ou Penetráveis reduzidos, os Ninhos evocam o habitar e chegam a ser montados no próprio apartamento do artista em Nova York. Seus exemplares mais conhecidos, entretanto, foram os instalados em universidades, como a de Sussex (atendendo a convite) e a de Rhode Island (para o qual Hélio concebeu um Ninho chamado “Rhodislândia” em 1971), para uso dos estudantes. Cabe destacar que há literaturas nas quais estas instalações são consideradas Penetráveis; elas aqui são referenciadas enquanto Ninhos por se aproximarem de forma mais direta ao abrigo que as manifestações desta obra evocam. Conforme citado anteriormente, a obra de Hélio é labiríntica, não-linear, fragmentada, livre de cronologias e endurecimentos em categorias excessivamente definidas. Assim, toma-se a liberdade de abordar sua obra segundo estes preceitos.


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Figura 64 – Ninhos, Hélio Oiticica

Fonte: http://meunomepravoce.blogspot.com/2010/11/trabalhoartistas_18.html

Figura 65 – Interior de um Ninho, Hélio Oiticica

Fonte: http://caminandoporla bienal.blogspot.com/2010/12/helio -oiticica.html

Os Ninhos dão seguimento ao viés participativo da arte de Oiticica, enfatizando o reconhecimento de si no espaço e abrindo-se de forma ainda mais contundente à criação de “extimidade”, referenciada anteriormente como condição de encontro do sujeito com o objeto comum, característica de uma intimidade exteriorizada ou de um exterior temporariamente internalizado. É neste sentido que os Ninhos tratam “de outra forma de convidar o sujeito a se apresentar” (RIVERA, 2012, p. 16). A respeito de Rhodislândia (Figura 66), por exemplo, Tania Rivera afirma que se dá um convite a uma participação temporária, “ou melhor: um convite a habitar um espaço e nele construir um lugar (ainda que „temporário‟). Essa participação tem, portanto, um rigor que Hélio diria „construtivo‟ ou estrutural, mas que se conjuga de forma indissociável com o „afetivo‟” (RIVERA, 2012, p. 26). Apesar de um viés agressivo que caracteriza obras de Hélio contemporâneas aos Ninhos, como as Cosmococas, o artista revela que ainda mantém um gesto sutil no trato com o corpo e a alteridade, propondo abrigos de forma delicada e sensível, aberta aos afetos de seus/suas experimentadores/as. Isso, entretanto, não pressupõe passividade na relação entre obra e sujeito. Segundo Tania Rivera (2012, p. 26-27), “não se trata de se confirmar como parte de uma obra e completá-la pela afirmação de seu eu, mas, ao contrário, de aceitar transformar a si próprio graças a uma arquitetura, uma proposta”. Esta noção é especialmente importante ao afirmar a potência das construções de Hélio sobre os


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sujeitos e os corpos, causando reverberações que extrapolam a imersão sensorial, mas tratam de provocar ressignificações contínuas. Concebidos como cápsulas, “os ninhos são essa resposta à ideia de habitar um recinto, crescer nesse recinto, dar um significado ao que ele chama de casca-ovo” (BRAGA, 2016), segundo exposto anteriormente. Para sua experiência, Hélio convidava os participantes a trazerem materiais

e

objetos

pessoais

para

intervir

nas

estruturas

preexistentes,

personalizando-as em uma apropriação direta. Originalmente, as cápsulas eram compostas por armações de madeira e fechamentos fluidos em tecidos por vezes transparentes, permitindo sensações simultâneas de privacidade e união e favorecendo a multiplicação, em um crescimento orgânico nos moldes de uma comunidade. Proximidade com o cotidiano, desintegração da imagem cristal, manifestação de fragilidade e abertura e resistência à espetacularização são questões evidentes nestas obras. Os Ninhos configuram, portanto, uma metáfora a pequenas habitações e destinam-se, especialmente, à permanência, ao descanso e ao lazer. Figura 66 – Rhodislândia, Hélio Oiticica, 1971

Fonte: https://documentotcc.wordpress.com/tag/oiticica/

Oiticica aspira, com esta obra, a um lazer que não é compensação a horas exaustivas de trabalho, mas momento criativo, potente e necessário à natureza humana, também evocado nas Cosmococas recém descritas. Neste sentido, Paula Braga (2016) identifica uma forte semelhança com a teoria esboçada por Guy Debord no livro “A Sociedade do Espetáculo” – que, segundo ela, Oiticica conhecia –


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e com a arquitetura. A autora coloca que, no livro, Debord descreve parte da problemática social em função de uma rede de conexões fraca, em que as partes não se ligam entre si, mas somente a um centro que dita regras e padrões para o espetáculo e para o lazer. O que liga os espectadores no espetáculo – que pode ser o urbano ou o artístico, por exemplo – é, então, o centro que reúne os diferentes mas os mantêm isolados: Ao contrário, o Hélio Oiticica aspira a uma arquitetura não-espetacular, que não ligue pontos a um centro onde uma pessoa enuncia e vários pontos, separadamente ouvem. Ele imagina uma arquitetura que possa criar uma rede complexa de ligação entre vários nós. E é isso o que ele consegue com os Ninhos. (BRAGA, 2016)

Metáfora da habitação e da vida cotidiana e em comunidade, os Ninhos são contemporâneos à formulação do conceito de Crelazer, igualmente livre e dispersivo. Caracterizado por HO evocando o lazer criativo, necessário ao corpo, ele trata de “uma utopia sensorial da pura criatividade e do puro lazer” (AGUILAR, 2016, p. 170-171). Nos Ninhos ele é evocado a partir do descondicionamento do corpo e de seu abrigo em privacidade, caracterizando micro-espaços dentro de um espaço maior – o das universidades, por exemplo – onde o tempo e as exigências do viver programado ficam suspensas. Tania Rivera (2012, p. 113) considera que, em função disso, talvez os Ninhos possam ser tomados “como a proposição artística maior de Oiticica, englobando todas as suas obras e fundindo arte e vida, linguagem e visualidade, criação e crítica, cultura e sujeito sempre de modo múltiplo, fragmentado, plural”. Percebe-se que cada autor que estuda a obra de Hélio identifica-se com algumas obras em especial, assinalando o caráter ambiental que elas apresentam ao manifestarem-se como fusão de diversos princípios identificados na obra do artista. Nesta pesquisa, acredita-se que uma das obras mais importantes de Oiticica é o Parangolé, por ativar a poética do gesto em alusão a algumas das necessidades identificadas na arquitetura atual. Entretanto, há que se reconhecer o valor dos Ninhos como aproximação mais direta e menos abstrata a ela. Cabe ainda ressaltar que estas estruturas descondicionantes dialogam diretamente com outra criação de Oiticica, o Éden: O Éden-Oiticica é oposto à tradição judaico-cristã, não é um ÉDEN que precede a queda, o ÉDEN HO é o que redime a queda. Redimir-se da queda não pelo mecanismo culposo da labuta alienada – ganhar o pão


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suado – mas através de uma atitude erótica não repressiva em relação à realidade. (SALOMÃO, 2003, p. 70-71)

Éden (Figura 67 e Figura 68) – proposição realmente projetada, ou seja, desenhada,

pré-concebida,

planejada

caracteriza-se

como

um

campo

experimental de liberdade e lazer onde as experiências humanas são permitidas e incentivadas.

Sua

montagem

alude

a

arquiteturas

primitivas,

construídas

espontaneamente (BRAGA, 2016) e destina-se a abrigar comportamentos livres de regras e padrões preestabelecidos. Éden ajuda a entender o conceito de Crelazer como um “viver não-programado e não-planejado”; “lazer criador acessado em estados de repouso” (SPERLING, 2008, p. 122) e uma vez que se desenvolve no museu, ao contrário dos Ninhos, atua no sentido de re-fundar o espaço “expositivo” como “recinto-participação, espaço-comportamento” que dá continuidade às explorações ambientais e (anti)artísticas de Oiticica. Apesar de um caráter inicialmente distinto dos Ninhos, percebe-se uma conexão direta, uma vez que “não se trata [...] de um espaço público genericamente aberto a todos, como um parque ou uma praça, mas de um composto heterogêneo formado por unidades privadas” (WISNIK, 2017, p. 103). A subversão de Hélio que cria espaços íntimos em locais públicos se repete, desta vez no museu. As cores claras exploradas nas texturas dos pisos, os materiais têxteis investidos como fechamentos das estruturas de madeira, o convite a descalçar os pés e o cercamento da instalação no museu sugerem ao/à experimentador/a um espaço de acolhimento e relaxamento, induzindo-o ao Crelazer. Esta atmosfera zen, entretanto, não é a única na qual Oiticica explora o conceito. Ele também aparece nas Cosmococas contrapondo a tranquilidade de Éden com uma variedade de estímulos em uma transição que ecoa os delírios sagrados e profanos tanto em seus nomes, quanto em suas vivências. Nestas e em outras obras que envolvem o conceito de Crelazer, percebe-se que Há uma relação erótica light, gostosa, uma coisa preguiçosa, um espairecimento, um gozo do tempo sem imediatez, um tempo com vagar, um tempo eterno, um tempo sem objetivos, um tempo prazeroso, sem horários apressados, sem obrigações. (SALOMÃO, 2003, p. 105)

Oiticica, além de trabalhar com a participação do corpo ativo, propõe também nestas obras a cessão de um tempo de fruição, “diferente do tempo do capitalismo


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protestante, por exemplo, time is money. É diferente disso. Time is money não, time is pleasure. É o reinado do princípio do prazer e suspensão do princípio da realidade” (SALOMÃO, 2003, p. 105) em um convite à mergulhar na sensorialidade.

Figura 67 – Éden, Hélio Oiticica, 1969

Figura 68 – Éden instalado no Carnegie Museum of Art entre 2016 e 2017

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra66379/eden

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra66379/eden

Esta imersão é explorada por Oiticica através do Crelazer de variadas formas, incluindo as propostas no Barracão, quando as investigações são ampliadas para uma escala maior. Obra que ecoa a experiência dos Ninhos e do modo de vida do Morro, Barracão é inspirado na arquitetura das favelas, cujas casas apresentam grande flexibilidade e pouca definição na transição entre os cômodos (BRAGA, 2008, p. 274). Nas palavras de seu criador: [...] moradia da FAVELA é o q eu queria como „algo q não nasce da casa estruturada nos modelos conhecidos‟: BARRACÃO não seria „imitar estrutura-espaço do BARRACÃO do morro‟: isso seria burrice por não possuirmos o tipo de experiência igual à do morador do morro mas semelhante à dele: o q me atraiu então era a não-divisão do BARRACÃO na formalidade da CASA mas a ligação orgânica entre as diversas partes funcionais no espaço interno-externo do mesmo [..] há portanto na minha ideia de BARRACÃO essa exigência inicial sobre espaço-ambiente: criar espaço-ambiente-lazer q se coadune a um tipo de atividade q não se fragmente em estruturas pré-condicionadas e q em última instância se aproxime de uma relação corpo-ambiente cada vez maior. (OITICICA, 1973, p. 42)

Oiticica formula com o Barracão uma “„arquitetura de vida‟ sem paredes, descondicionada” (BRAGA, 2008, p. 274) reunindo a teoria desenvolvida desde a espacialização da cor, iniciada com os Metaesquemas, passando pela ativação pelos

corpos

efetivada

nos

Parangolés,

alcançando

a

necessidade

de


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desnaturalização dos comportamentos almejada em Tropicália e abarcando, por fim, os ensaios sobre comunidade e Crelazer experimentados nas Manifestações Ambientais, em Éden e nas Cosmococas. Barracão passa a ser, então, uma síntese das expressões de Oiticica aqui expostas, uma vez que “[...] transforma o indivíduo em um bólide e o ambiente proposto pelo artista no agente que abre as gavetas e acha materiais escondidos no bólide” (BRAGA, 2008, p. 266). Oiticica alcança, então, o corpo que ativa o espaço que ativa o corpo. Desperta o corpo que desvenda o espaço que desvenda o corpo. E opera um borrar de fronteiras entre o que até então eram dicotomias, abrindo precedentes para uma vanguarda que segue em desenvolvimento. 4.3. ECOS-HO

“[...] aí está a obra de Hélio Oiticica aberta e esplendorosa, incentivando e aguardando novas leituras e relações” (AGUILAR, 2016, p. 30)

Encerra-se a apresentação das obras mais importantes de Hélio a este estudo apontando que, “em Oiticica, o suporte que sustenta a tela já não é a moldura ou o chassi de madeira, e sim o corpo vivo que, ao adquirir visibilidade e força própria, deixa de ser suporte para transformar-se em outro elemento de composição” (AGUILAR, 2016, p. 57). No eco de suas experiências, é possível reconhecer que o artista “não aponta nessa nova fase para a transformação política, e sim para uma política dos corpos. Uma arte micro que desenvolve seus saberes, seus limites e suas potências” (AGUILAR, 2016, p. 27). Assim, sua obra é um convite a uma abertura aos corpos, a conectar-se com suas potências para fazer emergir fazeres necessários a um contexto problemático e passíveis de agenciar transformações importantes mesmo a partir de uma escala micro. Atentar-se a esta escala, é contradizer imagens fortes e espetaculares em nome de atuações mais silenciosas, ligadas ao cotidiano e ao corpo. Entende-se que tais agenciamentos podem se dar em inúmeras áreas, mas destaca-se a aproximação da arte ambiental de Hélio com a arquitetura a partir do tratamento das obras enquanto espaços, da atenção à criação de ambiências, da sensibilidade crítica ao contexto urbano e social, enfim, da abertura ao cotidiano das cidades e às necessidades e potências dos corpos que nela vivem.


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Os trabalhos abordados nesta dissertação revelam como as obras de Hélio Oiticica imprimiram novos contornos para a prática artística moderna a partir de experiências vivenciais sobre o território urbano, materializadas em formulações de outras ordens que não a do objeto de arte (...). Além disso, elas enfatizaram o caráter contingente da experiência estética do sujeito – seja do artista ou do espectador. A originalidade desses trabalhos residia em que deviam se constituir como „processo‟, na „duração‟ da relação entre o sujeito e o espaço – uma experiência de espaço que aqui se apresenta por meio de uma prática do ambiente urbano formalizado. (FERRAZ, 2006, p. 25)

Acredita-se que, de forma semelhante, a trajetória do artista implica novos rumos também para a contemporaneidade, supondo a transcendência dos objetos, da espetacularização, das imagens fortes e da forma cristal a partir da inclusão do corpo e da abertura à alteridade. Segundo Tania Rivera, o que Hélio “escreve e faz dá lugar ao sujeito, ou seja, convoca o outro” (RIVERA, 2012, p. 92), inspirando ações atentas à experiência, ao cotidiano e à vida como todo. A vivência de Hélio em contextos diferentes do seu e sua entrega imersiva na cidade e nas obras de arte revelam que o corpo, em sua obra, é “a „fresta‟ pela qual se experimenta o mundo” (AGUILAR, 2016, p. 193), e que foge ao controle do artista. “Este já não se colocava em uma posição exterior à obra, guiado pelos processos de construção, mas se envolvia e se tornava ou uma extensão da obra ou seu suporte (como também ocorre com o espectador)” (AGUILAR, 2016, p. 129) ativando a participação, a diluição do conceito de autoria e uma reforma do conceito de espaço – seja ele museológico ou não. Deste contato com a alteridade e desta abertura à imersão, o espaço passa a ser, em sua obra, “terreno de subversão, de parangolé, de torção entre o dentro e o fora, o eu e o outro” (RIVERA, 2012, p. 39). Lugar onde há uma “instauração simbólica de uma exterioridade íntima” (RIVERA, 2012, p. 64), ou seja, um reconhecimento de si e uma possibilidade de criar intimidades, privacidade, significações pessoais, “o espaço é arquitetônico justamente ao se conformar como lugar para o sujeito” (RIVERA, 2012, p. 63-64), abrigando sua subjetividade em uma abertura sensível ao corpo. Percebe-se, a partir do conceito de corpo e de espaço e do labiríntico percurso traçado entre as obras de Oiticica consideradas mais pertinentes para este estudo, que a trajetória do artista é síntese de seu corpo, seu tempo e seu espaço e que, embora se apresente de diversas maneiras, tem como ponto comum a


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construção coletiva, aberta e relacional, prerrogativa do caráter-Parangolé e da arte ambiental. Embora a exposição realizada tenha tido por base a cronologia – salvo algumas inversões –, sabe-se que a interpretação linear é redução no caso de HO e que assim como em seu pensamento ou nas performances e vivências que propunha, é impossível realizá-la de forma desconectada. Assim, enxergam-se as obras de HO como partes de um processo contínuo que se autorreferencia em conexão direta e crítica com seu contexto. Além disso, destaca-se que, a partir da impossibilidade de se esboçar todos os ecos que a obra de Oiticica pode ter na atualidade, alguns fios serão deixados soltos para estudos futuros. Adota-se aqui, entretanto, o objetivo de compreender a poética por trás de alguns desejos e ações do artista no intuito de reconhecer – e futuramente explorar – especialmente as questões que se estendem à arquitetura atual e suas possibilidades de se desenvolver (ao menos em parte) em direções ambientais. Desta forma, este bloco realizou uma aproximação mais global com a obra de Oiticica a partir do reconhecimento de aproximações com seu contexto e ideais, visando um entendimento capaz de destacar pontos a serem explorados futuramente com discussões relacionadas de forma mais direta à arquitetura atual. De forma geral, Celso Favaretto sintetiza: Segundo a linha construtiva que elegeu, Oiticica situa-se no horizonte das transformações artísticas e ideias estéticas surgidas da pulverização dos códigos de produção e de recepção dos anos 50, desde a eclosão da popart e a sequência de proposições de body-art, arte conceitual, minimal art, etc. Centrado na questão da estrutura-cor, Oticica deslocou o lugar e o sentido da pintura, como etapa preparatória para a chegada a aquilo que ele chamava de „ordem ambiental‟, que transformaria a arte em campo de ações, em que se interceptariam construção e vivência. Isto ocorreu a partir da invenção do Parangolé que detona um Programa em Progresso (Program in Progress) desenvolvido até a sua morte em 1980. Surge desta detonação feita com o Parangolé, a sua concepção de antiarte e, acima de tudo, de um além-da-arte, que se desdobrou a partir de uma cascata de proposições: Manifestações Ambientais, Suprassensorial, Crelazer, Ninhos, Delírios Ambulatórios, Contrabólides, etc. (FAVARETTO, 2016).

Pode-se dizer que Oiticica manifestou de maneira rara uma unidade de programa, uma coerência entre suas obras que denota não uma linearidade ou uma sucessão, mas uma capacidade de metalinguagem, de se autorreferenciar (enquanto corpo, tempo, espaço, obra e artista) e manter-se fiel a suas escolhas e posturas. Mais do que uma evolução, o Program in Progress de HO referencia sua capacidade de reflexão crítica (evidenciada não só em suas expressões “finais” mas


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também nos inúmeros escritos que produzia em paralelo ao longo de seu processo de criação e experimentação) ou, como diria Favaretto (2016), seu papel de teorizador da arte contemporânea, capaz de ativar e disparar seus discursos em práticas e objetos que eram experimentos-processo, não obra-produto. Esta atitude revela o que para alguns pode ser a explicação das revisitações constantes (e crescentes) a Hélio na atualidade: o caráter reflexivo (que para Celso Favaretto (2016) é fundamental na arte moderna e contemporânea) e não sempre imediatamente perceptivo. Estas reflexões induzem a várias outras e ativam a inquietude de investigar mais a fundo os conceitos disparados por Oiticica, especialmente no que diz respeito ao espaço e ao comportamento. Ativados principalmente a partir dos exercícios de “desprogramação do espaço, desfuncionalizado e refundado, e da ação artística, fluidificada no espaçotempo da existência” (SPERLING, 2008, p. 124) tais conceitos enaltecem a vida cotidiana, os pequenos acontecimentos e o valor da experiência em detrimento do valor do objeto (por vezes espetacular e afastado do corpo e da vida). É a partir disso que a poética do gesto se apresenta e se revela essência das obras que visam o uso do espaço “como campo para o gesto, entendendo o gesto como parte estética do ato” (BRAGA, 2016). A este respeito tem-se que, enquanto o ato tem uma finalidade (é utilitário), o gesto é sua parte desinteressada, evocada na liberdade do Crelazer, na espontaneidade dos Parangolés, na incorporação dos Penetráveis e em tantos outros experimentos de HO. A poética do gesto é, portanto, tônica da antiarte formulada por um artista que pregava a busca por novas formas de expressão, experimentação e vivência, fundindo e ampliando campos e efetivando o que Celso Favaretto (2016) reconhece como um além-da-arte. Artista capaz de detonar, especialmente a partir da antiarte e da poética do gesto, uma nova ordem – a ordem ambiental – explorando a participação e o corpo, Hélio Oiticica inspira não só fazeres, como posturas. Nas palavras do poeta e amigo Waly Salomão (2003, p. 107-108), “Hélio viveu sob o signo da aceleração e da intensidade. Nele não cabe a carapuça do paradigma morno-médio. Ele não cabe nessa moldura, assim como o que fazia saiu do quadro. [...] Ele buscava os solavancos”. Sua obra reflete a intensidade desta busca e reverbera diretamente na arquitetura atual a partir do sentido vivencial e construtivo, dos labirintos processuais, da destruição do objeto enquanto item estático para sua transformação em proposta relacional ativante e do questionamento ético, político e social que


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integra suas obras de forma indissociável. Sua postura ecoa, ainda, provocando um reformar de figuras, especialmente do/a arquiteto/a de imagens fortes, de arquiteturas espetaculares e de distanciamentos alienados e alienantes para agenciadores/as de dinâmicas políticas e sociais conscientes de seus papeis e mais próximos do cotidiano e de seus corpos. Vislumbra-se, então, como alguns dos ecos da obra do artista (que são recortes de uma totalidade muito maior de Ecos-HO) a serem investigados na atualidade: a ativação do corpo, da percepção e do comportamento como centrais no questionamento de vivências programadas e alienadas; a consideração da arte ambiental e da arquitetura em relação direta, sugerindo a partir da antiarte uma antiarquitetura; a necessidade de reconhecer e potencializar as arquiteturasParangolé existentes; a potência de explorar de forma experimental a dimensão ambiental em vertentes da arquitetura atual; a possibilidade de fazê-lo a partir de vivências do cotidiano e/ou de um Programa Ambiental arquitetônico. As discussões seguintes têm o intuito de explorar alguns destes questionamentos e parte destas possibilidades ressaltando a dimensão arquitetônica da obra de Oiticica e sua potente influência na reforma e fortalecimento de fazeres anti-hegemônicos na atualidade. A leitura de Waly Salomão sobre a obra do amigo inspira esta busca: Hélio Oiticica, este homem-poliedro em estado de permanente intensidade, amalgamou cosa mentale e transe instintivo genital em que a obra espelha o paroxismo do prazer [...], dança do intelecto e dilaceração dionisíaca, obsessiva ideia de fundar uma nova ORDEM frente às categorias exauridas da arte e a indignação da rebeldia ética, a quase catatonia do Quasi Cinema e o júbilo epifânico (reino do SUPRASENSORIAL) do ÉDEN, num todo múltiplo, totalidade indivisível vida/obra. Oiticica foi movido pela legenda EXPERIMENTAR O EXPERIMENTAL, tensionou a si mesmo enquanto campo imanente de possibilidades SÍSMICAS e se metamorfoseou em vertigem, voragem, redemoinho. VÓRTEX. Na linha abaixo do Equador. (SALOMÃO, 2003, p. 126).

A personalidade de HO ecoa ainda hoje, não só abaixo do Equador, mas em todo o globo. Manifesto: Que estes ecos contagiem, que a experimentalidade tenha lugar e que o ambiental receba a atenção devida em um contexto tão favorável a (e tão carente de) seu reconhecimento. Para

revirar

gavetas,

aproximar-se

de

Oiticica,

acessar

conteúdos

escondidos, redescobrir, reinventar, revelar o mágico na experiência, na casa e no corpo, é necessário transitar, colocar-se em movimento, entrar em corredores


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escuros, percorrer, enfim, o caminho que vai do corpo à casa: estender-se. Lançarse ao espaço. Arriscar-se. É necessário tomar o percurso como experiência de contato, aprendizado, evolução em constância, in progress, tentativa exercitada por esta primeira investigação. Apresenta-se, então, uma síntese dos principais EcosHO (Figura 69) ilustrada por um caminho que ora desvia, divagando subjetivamente, e ora cria pontes e viadutos para encurtar distâncias conectando a trajetória de Oiticica com questões bastante presentes na arquitetura atual. Trata-se de uma breve referência a um caminho interpretativo que entende a substituição da representação pela vivência como ponto crucial em uma das inflexões do percurso meândrico que revela fragilidade, mágica e desprogramação. Baseada no caráter-Parangolé, a transmutação arte-arquitetura nasce do gesto – labirinto, corpo, movimento, vivência – e referencia a Casa Ambiental insinuando desconstruções, espacializações, esboços “anti” e pontos de transição inspiradores cujas gavetas tentam quem as encontra a esvaziar seu conteúdo no bolso para carregar sempre consigo. Levando um pouco de cada gaveta, contagiado pelas obras e reflexões deste bloco, é necessário, então, percorrer o caminho que faz fundir arte e arquitetura. E para percorrê-lo na Casa Ambiental, é necessário rearranjar seus espaços, abrindo passagens que criam bifurcações e continuidades e evoluem das discussões sobre o corpo, para as discussões sobre a casa – das quais o corpo também é parte. O bloco seguinte dedica-se, portanto, a explorar de forma mais detida alguns dos pontos de intersecção entre a arte de Oiticica e discussões sobre a arquitetura na atualidade, bem como apontar perspectivas ambientais que, acredita-se, podem ajudar na superação progressiva de algumas de suas problemáticas e na aproximação dos campos com a própria vida. Afinal, segundo Zé Celso (2012), “o que o Hélio queria é exatamente o que a minha geração queria e o que nós todos queremos e continuamos querendo: é esse envolvimento na vida. Cair de boca na vida”.


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Figura 69 – Síntese Gráfica da integração Arte-Arquitetura na obra de Oiticica

Fonte: Produzido pela autora



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5. OS MATERIAIS DA CASA AMBIENTAL: ARTE E ARQUITETURA Figura 70 – Cartão postal 11: A casa-tato

Fonte: Produzido pela autora

Do que é feita a Casa Ambiental? Quais são seus materiais, técnicas construtivas, desejos e afetos? Alvenaria, reboco, ferro e vidro, madeira, tecidos, pedras, areia, cal. Inúmeras são as expressões de sua materialidade. Entretanto, não só como objetos e estratégias de ordem objetiva elas se manifestam. Tempo, luz, umidade, corpos, dinâmicas espaciais também ajudam a erigi-la. Também imprimem suas marcas na materialidade, seja desgastando o piso, patinando os revestimentos ou apodrecendo os móveis que pegaram chuva. Eles também são materialidade em si. A Casa Ambiental, portanto, não se restringe à técnica, nem está segmentada em uma expressão esquartejada. Não há alvenaria que não guarde a umidade dos dias de chuva, nem reboco que não denote a duração da


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construção. Como uma colcha de retalhos, a casa se constrói no tempo e num espaço modificando-o e sendo por ele modificada. A mesma relação se dá quando se fala (dos campos ampliados) de arte e arquitetura. Tentar defini-las certamente implicará em reduções e atuará contra sua pluralidade característica; esforçar-se em separá-las tampouco é mais conveniente. Entende-se arte e arquitetura em relação direta, especialmente quando observadas sob a ótica ambiental. Embora elas sejam encaradas enquanto disciplinas distintas – e apresentem desenvolvimentos ora similares, ora divergentes – seus princípios são como os materiais da Casa Ambiental, diretamente relacionados às condições que neles incidem. Percebe-se que, no contexto de desenvolvimento das obras de Hélio Oiticica, tanto o campo artístico quanto as correntes arquitetônicas passavam por processos semelhantes. É, inclusive, interessante observar alguns paralelos quase literais, a exemplo dos princípios concretistas que guiavam a pintura para uma certa pureza num período muito próximo ao que se desenvolviam os preceitos da arquitetura moderna. Pautadas em uma rigidez de desenho, em princípios cartesianos e em uma

lógica

racionalista,

arte

concretista

e

arquitetura

moderna

dialogam

diretamente. Atribui-se tal conexão ao contexto histórico em que ambas se inseriam, revelando-as como componentes de uma sociedade da qual suas produções são sintomáticas. É no questionamento dos princípios concretistas que Hélio e outros artistas da vanguarda se inserem, questionando as “formas históricas que a razão assumiu para propor outras, mais vinculadas ao afeto, ao nonsense e ao contato corporal” (AGUILAR, 2016, p. 196). Seu esforço não foi em direção da irracionalidade, mas da busca por um alargamento no campo da arte. Caminhando em direção às alteridades, essa ampliação se revela especialmente a partir das “implicações cognitivas” (FERRAZ, 2006, p. 97) das propostas artísticas e da inclusão do corpo, debatendo-se “com os enfrentamentos do mercado, e de outros processos de institucionalização da arte, ao atuar crítica e mais decisivamente no mundo

da

cultura”

(FERRAZ,

2006,

p.

97).

Sua

democratização

e

desinstitucionalização revelam-se, portanto, em conexão direta com a presença de um corpo na arte e com a reinvenção de suas relações. Segundo Tatiana Ferraz (2006), este movimento em direção ao corpo já se inicia no final do século XIX, quando Rodin realiza a obra “A Porta do Inferno” (Figura 71) para a entrada do Museu de Artes Decorativas de Paris. Ecoando as “Portas do Paraíso” do batistério de Florença, Rodin modifica o “espaço narrativo


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clássico, rompendo com a premissa do monumento e passando a pleitear cada vez mais uma imersão da obra no espaço do observador” (FERRAZ, 2006). Embora esta obra possa pressupor uma relação mais de sobreposição entre uma expressão artística e um elemento arquitetônico, revelando certa superficialidade na aproximação entre elas, além de basear-se e uma lógica essencialmente visual, destaca-se sua importância enquanto invasão do espaço cotidiano, uma vez que a escultura não se localiza dentro do espaço institucionalizado no museu, mas interpela seu visitante de forma inusitada. A obra é frequentemente citada como importante marco neste sentido, integrando manifestações capazes de projetar “o campo da arte para além dos gêneros artísticos fixados até então, buscando expandir a noção de escultura em termos espaciais, temporais e experienciais” (FERRAZ, 2006). Rosalind Krauss (1984) esclarece esta ampliação do campo da escultura a partir da obra de Rodin (referenciando tanto “A Portas do Inferno”, quanto o “Monumento a Balzac”), afirmando que ela evidencia o “desvanecimento da lógica do monumento” (KRAUSS, 1984, p. 131) até então característico do gênero escultórico. A escultura, até o século XIX, era entendida como uma representação comemorativa que se relacionava ao lugar onde era instalada e falava “de forma simbólica sobre o significado ou uso deste local” (KRAUSS, 1984, p. 131). Ao expressar-se de forma autônoma e subjetiva, absorvendo o pedestal, Rodin desconecta suas esculturas do lugar, rompe com o seu apelo representativo e abre de forma significativa a obra à experiência em função do que se conceitua como externalidade. Em sua abstração autorreferenciada, a escultura foge dos sentidos universais e se converte em relação contagiada pelo/a observador/a, seu tempo e seu espaço, conectado-o a obra e desconectando-a de um lugar fixo para um espaço tão transitório quanto a diversidade de observadores. Neste deslocamento, o próprio artista se reinventa, incapaz de deter o sentido da obra agora independente e em constante recriação nas relações que favorece.


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Figura 71 – Porta do Inferno, Auguste Rodin, 1880-1917

Fonte: https://dicasdefrances.blogspot.com/2015/11/museu-rodin-paris.html

Este exercício já realizado por Rodin entre 1880 e 1917 é ampliado ao longo da história da arte, reposicionando o/a observador/a perante a obra e efetivando uma mudança de foco para o corpo a partir da desmaterialização do objeto (FERRAZ, 2006, p. 37) e da desconstrução de suas relações tradicionais. No período moderno, “a ideia de escultura como categoria universal entra em colapso” (FERRAZ, 2006, p. 31) e os valores plásticos passam a ser relegados a segundo plano em nome dos valores vivenciais que agenciam a ampliação da arte ao espaço e ao corpo. Esboça-se assim uma ligação direta entre escultura e arquitetura, sobre a qual Vidler (2015, p. 245) escreve: A verdadeira ambigüidade entre a escultura e a arquitetura surgiu, é claro, com a adoção modernista da abstração como linguagem formal de ambas. Enquanto a escultura representava a figura, e a arquitetura os estilos históricos, havia pouco debate sobre sua interface, até que Auguste Rodin fundiu a superfície da porta com o espaço de suas formas esculturais, e até que o construtivismo e o neoplasticismo determinaram que as formas abstratas no espaço serviriam igualmente à arquitetura, à escultura, à pintura e às artes gráficas.

Assim, à ampliação operada no campo da escultura e à progressiva “derrocada da „lei dos gêneros‟ artísticos” (FERRAZ, 2006, p. 23) sucede-se uma aproximação cada vez maior entre arte e arquitetura, ambas expandidas para além de suas ações tradicionais, de forma que “talvez não seja exagero afirmar que esse campo arquitetônico ampliado deve muito à ampliação anterior do campo da


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escultura. Assim, as ***artes espaciais***16 agora se justam em campos ampliados que se sobrepõem” (VIDLER, 2015, p. 251) e complementam. Além da escultura, os preceitos excessivamente rígidos da pintura também passaram

a

ser

questionados,

especialmente

a

partir

das

experiências

neoconcretas, que também dialogam diretamente com a ativação do espaço e a superação dos formalismos. Junto delas surgem, na vanguarda da época, os situacionistas, arquitetos/as, poetas, cineastas, artistas plásticos/as e outros profissionais que atuam desenvolvendo uma forte crítica social, cultural e política ao contexto em que viviam (ITAU CULTURAL b). O Neoconcretismo foi mais explorado aqui por aludir diretamente à formação artística de Oiticica, inspirando fortemente sua obra. Entretanto, paralelos importantes também podem ser traçados com essa outra vanguarda, para a qual o reconhecimento do espaço social se dava essencialmente em termos políticos, sob o qual propunham um urbanismo revolucionário que questionava, por um lado, o cotidiano enrijecido pelo espaço funcional de uma sociedade utilitarista; e, por outro, a cultura aderida aos dirigismos do mercado e do espetáculo. Sob influência das atuações dada, fundadas numa estética da negação e do „choque‟, o situacionismo reivindicava uma postura transgressora e libertária nesse espaço social, cujo alcance só era possível por meio da „construção de situações‟. (FERRAZ, 2006, p. 37)

De forma similar ao que os neoconcretistas exercitaram na pintura – expandida para escultura – os situacionistas provocaram na arquitetura e no urbanismo um apelo à abertura ao corpo e aos indivíduos que deixam de ser espectadores de situações fechadas e rígidas para serem vivenciadores que criam, junto dos/as propositores/as, obras diversas. Segundo Tatiana Ferraz (2006, p. 37), “a essência do programa situacionista era a crença no poder do transitório”, ecoando os princípios de instabilidade e desconstrução das experiências neoconcretas. Este transitório também sinaliza a abertura a significações pessoais, uma vez que cada interpretação das obras/situações é temporária, efêmera e cambiável seja na mudança de experimentador/a, seja nas transformações de cada um/uma. É possível identificar neste diálogo entre pintura, escultura e arquitetura e entre algumas de suas vanguardas – seja Rodin, prenunciando ampliações para o cotidiano, seja o 16

Reprodução da grafia original do autor.


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Neoconcretismo ganhando o espaço e superando o formalismo, o situacionismo questionando propostas unificadoras de arquitetura e urbanismo ou os outros inúmeros movimentos que atuaram no sentido de uma ampliação e integração entre campos – alguns deslocamentos importantes ocorridos nas proposições dos anos 1950 e 1960. Dentre eles, Tatiana Ferraz (2006, p. 33) evidencia: “a negação da natureza simbólica da arte a crítica à autoridade do artista cujo gesto seria expressão de uma „psicologia‟ pessoal; a transferência da qualidade perceptiva da obra, de uma posição contemplativa de mundo a uma consciência fenomenológica da obra e de sua própria existência”, além da temporalização das obras, expressas na duração de sua experiência e da desconstrução das ideias fechadas e setorizadas para proposições cada vez mais abertas e transdisciplinares. Estes deslocamentos demonstram os desafios de uma nova sociabilidade que emergia ao longo do século XX e “reagia às tendências funcionais da ordenação da vida urbana [...], às novas tecnologias [...], aos conflitos morais acirrados nos anos de guerra, ao reposicionamento do sujeito [...], à exacerbação do aparato visual e informacional da cultura de massa” (FERRAZ, 2006, p. 35) entre outras ações padronizadoras que reduziam relações e interpretações. Neste contexto, uma nova situação urbana surge e, no espírito da contra-cultura, a produção artística da década de 1960, “vai reivindicar a restauração dos vínculos entre arte e vida” (FERRAZ, 2006, p. 143) em nome da alteridade, do reconhecimento dos corpos e da pluralidade que caracteriza cidade, arte e (contra-) cultura. A espacialização é uma das saídas encontradas na busca de uma potencialização desta diversidade e a vanguarda brasileira é extremamente importante neste momento. Wisnik (2017) chega a afirmar que, no Brasil, isso explica o interesse pelos espaços informais/marginais das cidades,

escrachando

sua

identidade

múltipla em

conformidade com as aspirações de Tropicália e de Oiticica. O autor ainda afirma que, “no caso brasileiro, a espacialização da arte também é acompanhada por uma abertura essencial ao seu campo de significação criando „obras abertas‟ que só se definem na contingência de relações interpessoais e, portanto, não de forma unidirecional e assertiva” (WISNIK, 2017, p. 97), mas no horizonte das imagens frágeis e do cotidiano. Para este entendimento é especialmente interessante a noção de que “a realidade não é um solo firme sobre o qual se possa construir um conjunto de representações ao redor do homem. A poesia e a arte anunciam e exploram a


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fragmentação deste solo e a impossibilidade de a representação dar conta da vida pulsante do sujeito, da cultura” (RIVERA, 2012, p. 153). A espacialização da obra se apresenta como uma alternativa para a arte se despir de um certo autoritarismo e abrir-se às potências da vida, como fez Oiticica ao mergulhar no Morro da Mangueira. Desta experiência, Hélio extraiu “signos de manifestações mais vitais do que aquelas encontradas na arte e na arquitetura eruditas e oficiais” (WISNIK, 2017, p. 99), dinamizando seu repertório – não necessariamente formal, mas temático, material, etc. – e ampliando o alcance de suas proposições. O artista passou, então, a ser um dos principais expoentes no desenvolvimento de uma arte espacial e participativa a partir de concepções abertas, labirínticas e passíveis de alteração. “Ao espaço geometrizado e limitado por barreiras, próprio da arquitetura, ele contrapõe um espaço topológico contínuo e aberto à manipulação do participante” (WISNIK, 2017, p. 97) em cuja experiência se revela uma nova dimensão da obra: a temporalização. A duração da experiência do corpo no espaço, do sujeito na obra é o que, para Favaretto (2000, p. 79) faz com que o espaço de Oiticica se converta em um espaço literalmente arquitetônico, dispondo-se à virtual inclusão do “tempo orgânico” das vivências. A este respeito, Guilherme Wisnik afirma: Assim, parece que a arte pública brasileira iniciada nos anos 1960 alcançou resultados mais contundentes subvertendo o espaço de frequência pública de museus e galerias por meio de uma intrusão transgressora da esfera privada nesses espaços, ou substituindo a noção de público pela de circuito, do que realizando trabalhos significativos em espaço urbano, que lograssem e, desse modo, ressignificassem a dimensão da esfera pública em si mesma – algo permanentemente problemático no Brasil. (WISNIK, 2017, p. 110)

Conforme visto com as Manifestações Ambientais e os Parangolés, alguns experimentos coletivos no espaço urbano chegaram a ser realizados, entretanto, em função do contexto político do país, eles não persistiram. A alternativa vislumbrada por Hélio, então, foi a de exercitar a criação de intervenções em outros espaços públicos, tanto em museus e galerias – com Éden, por exemplo – quanto em demais ambientes da vida cotidiana – a exemplo dos Ninhos instalados em universidades, onde tempos e relações ficavam suspensos em nome de criações subjetivas e pessoais. A característica dos circuitos ou dos percursos labirínticos também atua de forma relevante ao investir o corpo de autonomia, movimento, vivência capaz de


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reconquistar seu espaço físico e metafórico. É neste sentido que Tania Rivera (2012, p. 148) afirma que na arte especializada, nas obras de Oiticica e nas expressões ambientais, o sujeito “está, ele que nunca é de maneira reificada e constante”. Assumindo

a

subjetividade

dos

sujeitos,

abrindo-se

aos

corpos,

espacializando-se, verifica-se a transformação das expressões artísticas, originada em um “processo de crítica do objeto, precipitado pelo problema da cultura de massa, onde os trabalhos se reconhecem num mundo da cultura, mesmo ao resistirem a sua cooptação” (FERRAZ, 2006). Agenciada pela desconstrução das utopias modernas – em especial ao purismo e sua rigidez – e reconstruída a partir da inclusão de conceitos reformados de corpo, espaço e tempo, percebe-se a arte como um campo ampliado em diálogo direto com as expressões espaciais de modo geral. Neste sentido, as aproximações entre arte e arquitetura especialmente observadas na produção de Hélio Oiticica se revelam tanto a partir da semelhança contextual – por sua inclusão no mesmo sistema cultural –, quanto em função de suas estratégias de resistência e reinvenção. Neste horizonte, Pallasmaa (2011, p. 25) reconhece arte e arquitetura na contemporaneidade afirmando que sua tarefa comum “em geral, é reconstruir a experiência de um mundo interior indiferenciado, no qual não somos meros espectadores, mas ao qual pertencemos de modo indissolúvel” e ativo. As aportações entre as duas áreas, sob esta óptica, se dão de forma inquestionável, e se revelam especialmente no caráter ambiental elaborado por Hélio Oiticica. Assim, é possível afirmar que, firmando-se na “fundação de um espaço para o sujeito”, “persiste, saturada, bela e enigmática, ao mesmo tempo sólida e delicada, construída e sempre a se refazer, sua móvel arquitetura” (RIVERA, 2012, p. 181). 5.1. UM DIÁLOGO: FUSÃO A materialidade da Casa Ambiental expressa, a partir do exposto, um processo de criação que é dinâmico e ininterrupto, incapaz de ser restrito a categorias ou setorizado em períodos específicos. Ela ecoa a ação de Oiticica que, segundo Tania Rivera (2012, p. 154), revela a “potência de alteridade em movimento, construindo sujeito e mundo” em um desenrolar no qual “tudo é prelúdio para outra coisa”. Arte, então, pode ser prelúdio de arquitetura, espaço arquitetônico reinventado pode ser prelúdio de uma experiência artística, crítica e contágio podem


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ser prelúdio de fazeres resistentes, tempo e corpo podem antecipar o ambiental, reconhecimento de um sujeito pode ser prelúdio para a fundação de novas relações, abertura pode antecipar reinvenção, vivência pode ser prelúdio de incorporação e vice-versa. Inúmeros prelúdios podem ser identificados nas obras de Hélio aqui estudadas, entretanto, interessa a esta dissertação especialmente o prelúdio para uma arquitetura ambiental. Possível a partir do entendimento de arte e arquitetura como campos ampliados e diretamente relacionados, ela remete a um caráter ambiental nascido de uma sensibilidade ao contexto histórico, político e social capaz de agenciar novas ações e relações. Propõe-se aqui intensificar o diálogo entre arte e arquitetura, especialmente entre a arte de Hélio e a arquitetura atual, tanto a partir do espaço público, quanto a partir da casa – metáfora do espaço privado – para traçar um caminho na direção de uma visão ambiental da arquitetura. Estes diálogos baseiam-se na noção de que a obra de Hélio Oiticica se relaciona com a arquitetura em suas diversas escalas, referenciando desde o espaço público vivenciado – seja a partir da tomada da rua com os Parangolés e Manifestações Ambientais, seja a partir de sua própria postura no Morro da Mangueira –, como a escala da casa e dos pequenos ambientes, insinuada nos Penetráveis, nos Ninhos, na própria Tropicália, enfim. Entende-se que a relação entre arte e arquitetura é ativada em sua obra tanto em nível metafórico quanto a partir de referências diretas, motivando o pensar crítico sobre sua prática e teoria. Conforme visto, as propostas de Oiticica ativam questões como o corpo, sua participação nas construções artísticas compartilhadas e a potência política ou o conteúdo social que cada proposta carrega revelando um caráter ambiental que pode ser caro a transformações estruturais no contexto contemporâneo. Alguns paralelos entre suas obras e arquiteturas edificadas já foram realizados ao longo da apresentação anterior. O que se deseja aqui, de forma complementar, é aprofundar alguns pontos de contato inicialmente a partir da teoria e, posteriormente, investigando mais a fundo arquiteturas existentes. Cabe salientar que uma das principais preocupações que evita o adentrar no campo das considerações da arquitetura como arte nesta discussão remete ao problemático entendimento desta em sua definição tradicional de objetos essencialmente visuais, afastados dos corpos e por vezes elitizados, fortes e espetaculares. Entende-se que esta lente direcionada à arquitetura pode induzir à interpretação errônea de obras enquanto objetos que seduzem a visão e relegam o


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corpo, as sensações, a vivência e as diversas preexistências (físicas ou humanas) ao acaso. Simon Unwin (2013, p. 25) afirma que “as pessoas e suas atividades são um componente indispensável da arquitetura, não apenas como espectadores a entreter, mas como contribuintes e participantes”. Acredita-se, em concordância com o autor, que o ser humano é parte da essência da arquitetura, ecoando as produções de Oiticica capazes de transcender o objeto e alcançar o nível da vivência e da participação. A partir deste esclarecimento, acredita-se que HO pode se revelar “mediador do retorno à arte que é indispensável ao urbanismo, à arquitetura e, porque não dizer? à própria arte” (RIBEIRO, 2003) e apresenta-se a discussão sobre algumas relações entre arte e arquitetura aportadas pela sua obra com base em duas escalas principais: a do espaço público e a da casa – imagem aqui usada para se referir metaforicamente à arquitetura ou ao abrigo e não, de modo literal, a um programa residencial. As análises são feitas a partir das relações teóricas e materiais com a obra de Hélio, no intuito de fomentar discussões bastante pertinentes no contexto atual. Caracterizando uma contemporaneidade diversa, indefinida, orgânica, repleta de problemas e de possibilidades, ele insinua aberturas favoráveis a análises igualmente plurais e interdisciplinares capazes de negar as dicotomias e os reducionismos na busca por diálogos e ampliações. Assim,

entende-se

que

arquitetura

não

é

arte

tradicional

nem,

necessariamente, arte contemporânea. Tampouco a arte é arquitetura em sua completude. Este discurso, então, não é sobre ser, mas sobre estar, assumindo a efemeridade característica da contemporaneidade e das transformações. Uma obra de arte pode ser arte e/ou arquitetura. E pode tanto ser ambas, quanto nenhuma. Além disso, pode ser em um momento e deixar de ser em outro. Não importa. O foco aqui recai sobre o entendimento de que arte e arquitetura são pequenos processos que compõem processos maiores capazes de caracterizar vida, sociedade, condição humana, etc. Neste momento, dadas as particularidades do contexto atual e todos os fios soltos17 que a obra de Hélio Oiticica, de modo provocante (e talvez intencional), deixa, entende-se que arte contemporânea pode ser arquitetura, que arquitetura pode ser arte relacional, que arquiteto/a pode ser artista-vivenciador/a, e

17

Referenciando o livro homônimo publicado por Paula Braga.


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que seus diálogos podem enriquecer ambos os campos. São estes os principais aspectos que guiam as discussões a seguir. 5.1.1. A partir do Espaço Público Entendido como âmbito das interações com a alteridade e de construções coletivas, o espaço público abarca a potência da rua e do urbano e se revela, para Oiticica, a partir de sua vivência direta. Exercitada especialmente no Morro da Mangueira, a experiência de um viver marginal ativou com maior ênfase questões como a pertinência social e a cultura brasileira na obra do artista, revelando novas potências e problemáticas capazes de motivar criações que exploram a incorporação, a coletividade e a experimentação. As imagens reconhecidas e acessadas por Oiticica no espaço público, entretanto, não eram referenciadas como imagens estáticas, mas diretamente transformáveis, oferecendo a possibilidade de construção de significações pessoais a partir da participação direta. Suas obras, especialmente a partir da vivência no Morro, assumem a efemeridade como um dos conceitos centrais, valorizando o momento e o processo de interação. Neste sentido, Paola Jacques (2003), tendo por base a obra de Deleuze e Guatarri, discorre sobre a experiência de Hélio na favela a partir de três figuras conceituais ativadas pela vivência: o rizoma, o fragmento e o labirinto, características do território, das construções e da organização urbana, respectivamente. Enquanto o rizoma se refere a processos de crescimento e formação de territórios urbanos de maneira orgânica e múltipla – em oposição ao pensamento binário e à formação de imagens precisas –, o fragmento evoca a estética dos barracos construídos coletivamente, com sobras de materiais encontrados e em um processo contínuo que não depende de projeto prévio e raramente atinge uma configuração final. O labirinto, por sua vez, referencia o que aqui se entende como uma sensação oriunda da relação entre rizoma e fragmento, que configura ambiências urbanas diversas, orgânicas e em constante transformação, originando quebradas e meandros. Esta figura, brevemente abordada na discussão sobre o Espaço-HO, revelase importante no reconhecimento do valor e da potência das manifestações informais de arquitetura, corroborando sua desintelectualização, à semelhança do que ocorreu a partir de algumas operações artísticas aqui abordadas. Segundo Paola Jacques (2003, p. 68) a identificação do labirinto “tira a arquitetura de seu


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quadro sempre estático, ativando nela uma tensão interna” capaz de configurar territórios nos quais não existe “nenhum mapa definitivo que pode ser traçado. Só há mapas instantâneos” (JACQUES, 2003, p. 65). A complexidade da favela e da vida urbana informal, assim como sua dinamicidade e reinvenção constante passam a ser reconhecidas e a esboçar uma necessidade de resistência a reduções que padronizam e engessam modos de vida. A abertura que Hélio realiza em suas obras vivenciais,

concebidas

para

serem

alteradas

pelo

corpo,

reinventadas

e

ressignificadas ecoam esta potência cotidiana, que se aproxima da arquitetura popular e se distancia de suas expressões formais. A este respeito, tem-se que: A arquitetura e, sobretudo, o urbanismo são antilabirínticos; existem para evitar o labirinto, a desordem e o caos espacial. [...]. O arquiteto e, sobretudo, o urbanista, criam marcos, planos, mapas; transformam continuamente os labirintos em pirâmides. A pirâmide é um espaço seguro; a estrutura piramidal, ao contrário da labiríntica, sempre faz cortes nítidos. (JACQUES, 2003, p. 91-92)

A autora enfatiza que a ação padrão da arquitetura e do urbanismo por vezes se excede na organização e no controle de espaços e dinâmicas de forma a negar a natureza instável da vida cotidiana, restringindo-a a espaços rigidamente demarcados, pouco conectados ao corpo e intolerantes a (necessárias) alterações ao longo do tempo. Esta postura organiza os espaços segundo uma lógica piramidal, bastante próxima da estrutura em árvore conceituada por Alexander (1965), criando imagens fortes e expressando-se a partir de formas-cristal que reduzem as relações e por vezes falham em sua utópica lógica excessivamente controladora e distante do cotidiano. Neste ponto percebe-se como a ação moderna positivista ainda ecoa nas ações de planejamento atuais e como a obra de Oiticica pode oferecer caminhos para repensar seu direcionamento. O artista encontrou no espaço público da favela, em seus labirintos, rizomas e fragmentos, a desinstitucionalização que buscava na arte até então regida por princípios próximos aos “piramidais”, ou seja, verticalizados e autoritários. A vivência de espaços descondicionados ajudou a despertar em sua obra a potência de sua evocação, atentando para as possibilidades de reflexão crítica sobre a experiência. Assim, embora os labirintos evoquem percursos mitológicos nos quais os corpos frequentemente se perdem, os labirintos de Oiticica são concebidos como espaços para as pessoas “se acharem, se encontrarem consigo mesmas e também com os


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outros. São espaços de convívio, espaços para viver. Ali o que primeiro se perde são os condicionamentos sociais, os preconceitos, as imagens estereotipadas” (JACQUES, 2003, p. 84), fomentando desconstruções e ativando o corpo como entidade na qual se investe grande poder transformador. O reconhecimento desta dinâmica espacial alternativa revela uma potência ambiental que se revela nas obras do artista e que pode inspirar um fazer semelhante na arquitetura. Apresenta-se a seguir um diagrama comparativo entre a figura do labirinto e da pirâmide (Figura 72) a fim de melhorar o esclarecimento de tais questões. Figura 72 – Diagrama comparativo entre as estruturas de labirinto e pirâmide

Fonte: Desenvolvido pela autora


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A postura de abertura inspirada por Hélio constitui, portanto, uma espécie de prerrogativa para um novo fazer arquitetônico mais aberto e aderido. Entende-se que a imersão do artista no Morro, sua vivência direta em um contexto alternativo ao seu revelou, sensivelmente, potências que foram transferidas a suas obras configurando propostas que aceitam o contágio, induzem ao contato direto, ativam a sensibilidade do corpo e do espaço e operam fazendo o/a experienciador/a aderir no contexto da mesma forma que o contexto adere no corpo do/a experienciador/a. É neste sentido que a experiência de HO na Mangueira revela-se especialmente inspiradora para os/as arquitetos/as e contamina percepções sobre o seu fazer, motivando posturas como a do/a arquiteto/a-urbano/a citado no início desta dissertação, ou do bricoleur recém reconhecido. Cabe ressaltar que não se pretende romantizar a favela ou a sua experimentação por parte de Hélio, mas de revelar a potência que reside nas ações de contato direto com outros meios de vida, ampliando o reconhecimento da alteridade por parte de artistas e arquitetos/as. Identifica-se que a abertura tanto de Hélio à Mangueira, quanto das figuras de arquitetos/as a seus contextos de intervenção invocam também a figura do wanderer, conceitualizada por Otto Bollnow (2011). Semelhante ao flaneur de Baudelaire ou ao errante de Paola Jacques, o wanderer pratica uma atividade subjetiva, livre, e incerta (BOLLNOW, 2011, p. 110) que consiste no percorrer de caminhos sem objetivo específico, em uma atitude que exercita o lazer e a liberdade. Para o autor, o wanderer é capaz de construir uma relação mais íntima com seu meio, evocando um despertar para o papel central do corpo no mundo e para a ativação de emoções, sentidos e relações. Os espaços excessivamente determinados e rígidos ou as referidas estruturas piramidais de organização espacial, entretanto, podem diminuir a potência destas experiências de tomada do espaço pelo corpo livre e descondicionado. Acredita-se, então, que a figura do wanderer remete à Oiticica na favela e revela a potência das organizações cotidianas e das experiências abertas, imersivas e significativas. A partir daí, novos olhares podem surgir, assim como novas compreensões e relações, favorecendo um diálogo com as ações arquitetônicas a partir do surgimento do/a arquiteto/awanderer, figura inspirada em Oiticica capaz de converter uma leitura sensível de seu contexto – um Delirium Ambulatorium – em proposições aderidas, críticas e pertinentes a ele.


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Cabe ressaltar que o wanderer evoca a figura do corpo que se deixa levar pela experiência não em estado permanente, mas em momentos de contágio, de vivência e sensibilização capazes de aportar em seus fazeres outras noções e articulações. Sua figura, assim, é transitória. É postura que pode ser assumida em determinados momentos e contextos para alcançar novas questões e fazeres. Salienta-se, ainda, que o wanderer, a partir da obra de Oiticica, pode se revelar tanto no artista, como no/a experimentador/a, a exemplo do que se dá na dinâmica do Parangolé, quando “a relação do artista-propositor com o participante que veste o PARANGOLÉ não é a relação frontal do espectador e do espetáculo, mas como que uma cumplicidade, uma relação oblíqua e clandestina, de peixes do mesmo cardume” (SALOMÃO, 2003, p. 37). A incorporação do Parangolé e do wanderer, a vivência do/a arquiteto/a-urbano/a e a sua sensibilização como possível bricoleur trazem à tona um outro caráter amplamente explorado por Hélio e central em sua obra: o experimental. Segundo Waly Salomão, “assim Hélio Oiticica compreendia a tarefa do artista: abandonar o trabalho obsoleto do especialista para assumir a função totalizante de experimentador” (SALOMÃO, 2003, p. 32). Tal postura foi assumida por um Héliowanderer no Morro da Mangueira e é proposta em boa parte de suas obras. Sua potência evoca um posicionamento crítico frente às instituições sociais e demanda constante processo de questionamento e imersão. Nas palavras de Waly Salomão, A experimentalidade tal como definida por ele [referindo-se a Hélio Oiticica] está profundamente apoiada nessas possibilidades do vivido, nas vivências de poéticas com e do outro, fenômeno que se dá também pela impregnação entre campos expressivos. Tão mistificada e frequentemente deturpada, a experiência de Hélio Oiticica na Mangueira é parte do que isto significava para ele. (SALOMÃO, 2003, p. 9-10)

É possível perceber que o experimental em Hélio remete tanto ao caráter vivencial bastante enfatizado aqui, como à questão da alteridade que se revela no contágio com outros corpos e nas trocas e trânsitos entre diferentes áreas de expressão. Além disso, o experimental também pressupõe o inacabado ou o desconhecido, aludindo a uma construção subjetiva, labiríntica e errante. Assim, pode-se relacionar este caráter ao wandering não só a partir das vivências espaciais, mas como postura de vida; filosofia.


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É neste sentido que se entende Hélio Oiticica como artista que explorava “a força da ideia de tomar a vida como experimento” (SALOMÃO, 2003, p. 100), questionando os condicionamentos sociais e as repressões tanto da ditadura, como do cotidiano. Assim, pode-se dizer que “desacreditando os projetos de longo alcance, de concepções históricas feitas de regularidades, essa atitude desligou o finalismo, afirmando o poder de transgressão do intransitivo” (FAVARETTO, 2008, p. 22), ou seja, do que está constantemente sendo (re)construído de forma pessoal e incapaz de ser comercializada ou reproduzida em iguais condições. Em suas obras, Oiticica exercita esta noção inicialmente nos Núcleos passíveis de manipulação, passando pelos Parangolés diretamente dependentes dos corpos e de suas vontades e atingindo os Ninhos, onde se abrem possibilidades de personalização direta. Em todas estas expressões – e em muitas outras – há uma condição de reconhecimento de si, de criação de espaços íntimos e de diálogo com afetos e desejos pessoais que caracterizam as experiências como eventos únicos, efêmeros e transformadores. Nos Ecos-HO que ressonam na atualidade, fazeres igualmente atentos à alteridade urbana, abertos ao seu exercício e intervenção e passíveis de reinvenção resultantes de seus contatos e trocas se destacam. Identifica-se, então, na obra e na vida de Hélio uma postura experimental tanto inspirada por sua experiência no Morro, quanto inspiradora desta e que se entende de forma diretamente relacionada à vivência do espaço público e às intervenções sobre ele. Segundo Oiticica, “o espaço experimental da arte ambiental se constitui a partir da articulação de elementos prontos, transformáveis e para fazer” (OITICICA, 1986, p. 76), identificando o espaço público como potência experimental e ambiental, e pontuando três características básicas em sua conformação: o preexistente, o alterável e o novo que se assume preexistente e, novamente alterável e novo, em um ciclo ininterrupto, fragmentário e labiríntico de ressignificação e reinvenção. O artista ainda afirma que “a palavra „experimental‟ é apropriada, não para ser entendida como descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de sucesso e fracasso, mas como um ato cujo resultado é desconhecido” (OITICICA, 1972) ou mesmo desnecessário, pois o processo é o que dispara potências e valores. Acredita-se que esta seja uma metáfora especialmente cabível à vida e à cidade, entidades orgânicas, em constante processo de transformação, cujos mapas finais não são mais do que instantâneos que, no momento mesmo de suas capturas, já se transformaram novamente.


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A partir do experimental, da postura de wanderer e das figuras do rizoma, do fragmento e do labirinto, então, torna-se possível compreender parte da tônica das obras de Oiticica, assim como sua potência na relação com questões diretamente relacionadas ao fazer arquitetônico atual. Destaca-se, especialmente, a produção oiticiquiana como exercícios de uma arte do corpo que resiste; uma arte da alteridade, da efemeridade, da abertura e do contágio, contrariando os postulados convencionais dos sistemas rígidos e fechados. A este respeito, Ana Clara Torres Ribeiro afirma: Com dicotomias pré-fabricadas, o lugar, o corpo, a ação e o movimento dos muitos outros são reconhecidos somente como alvos de políticas públicas ou como formas que contrariam as diretrizes do urbanismo e da arquitetura. Nada tem a ensinar, já que a intenção é a de apenas controlar, disciplinar ou, pior, destruir o jogo jogado. (RIBEIRO, 2003).

Hélio, ao contrário, reconhece valor no jogo e convida a ele promovendo-o não de forma folclórica ou institucionalizada, mas interessada em sua essência, experimentando-o e transgredindo, assim, a “norma-narciso” que nega a alteridade e as ações horizontais. É neste sentido que o espaço público evoca, sob o filtro da obra de Hélio Oiticica – especialmente Núcleos, Penetráveis (incluindo Tropicália) e Parangolés –, aproximações entre arte e arquitetura: propondo o contágio e o convívio que dilui categorias na experiência. A sensibilidade e poesia de Waly Salomão sintetizam esta abordagem com maestria: O feixe dos sentidos aceso e a apreensão da GESTALT imanente para quem sabe bem se impregnar de visões, cheiros e fumaças, tatos e audições. O eu superintelectualizado e burguês tornado vapor, vaporizado. Andar por dentro das arquiteturas e armações populares e gozar. Andar, andar, andar, perder os passos na noite também perdida. Não constituiu o costumeiro procedimento acadêmico de „estudo da comunidade‟, com o „olhar afastado‟ de quem não pretende se lambuzar na teia das relações simbólicas, ou, „pior‟, copular com o mundo. (SALOMÃO, 2003, p. 41)

Em vez disso, fez-se parte para dar lugar à alteridade, ao experimental, ao corpo, à abertura, à imersão, à resistência, ao rizoma, ao fragmento e ao labirinto que se fundem no espaço público.


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5.1.2. A partir da Casa Entende-se que a menor das casas – sejam edificações, sejam pequenas intervenções urbanas como um colocar de cadeiras na calçada, a apropriação de um vendedor ambulante ou o sentar em uma escadaria – interfere diretamente no espaço público e que este também pode ser casa quando revela-se abrigo do corpo. Entretanto, a distinção entre os dois conceitos é realizada aqui como forma de evocar cidade e moradia, público e privado, exterior e interior. Não se ignora a relação indissociável entre casa e espaço público, que se definem mutuamente em uma trama ampla e complexa, mas realiza-se aqui uma diferença de abordagem a fim de simplificação e sistematização. Esta estratégia foi adotada levando-se em conta a potência das figuras que o espaço público e a casa evocam em maiores graus, ajudando a organizar a reflexão aqui realizada. Neste sentido, destaca-se que o primeiro pode ativar especialmente a figura do labirinto, a vivência como wanderer, e a postura experimental. Acredita-se que a casa, por sua vez, pode relacionar-se com maior intensidade, a partir do diálogo com a obra de Oiticica, a questões como o abrigo, o corpo e o espaço/ambiente, evocando especialmente a figura do fragmento. Entende-se que estas aportações remetem, em parte, à ativação de memórias a partir da referência à imagem da casa e exalta-se a potência de ela revelar a vivência enquanto pressuposto. Bachelard (1993, p. 206), por exemplo, afirma que “a casa natal é uma casa habitada”, evocando em um corpo ativo, espacializado, repleto de memórias que são constantemente referenciadas em seu modo de vida. O mesmo autor ainda afirma que “[...] a casa natal está fisicamente inscrita em nós. Ela é um grupo de hábitos orgânicos” (BACHELARD, 1993, p. 206), que contagia com formas de habitar, hierarquias, funções e sensações a memória e o corpo. Entende-se, assim, que como a casa se inscreve no corpo, o corpo se inscreve na casa, levando Juhani Pallasmaa (2013, p. 125) a afirmar: “experimentar um lugar, espaço ou casa é um diálogo, um intercâmbio: coloco-me no espaço e o espaço se assenta em mim”, reiterando a noção da casa e do corpo enquanto entidades mutuamente definidas. De forma similar, Merleau-Ponty (2004, p. 546) enfatiza que “interior e o exterior são inseparáveis. O mundo está inteiro dentro de mim e eu estou inteiro fora de mim”. Assim como o corpo pode ser considerado o interior e a casa, o exterior, esta distinção também pode ser estendida a um


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entendimento da casa como o interior e do espaço público como o exterior, reafirmando sua indissociabilidade e influência mútua. Estas noções aparecem frequentemente nas obras de Hélio Oiticica, que explora habilmente as potentes trocas entre corpo e espaço, interior e exterior, espaço público e privado, etc. Desta forma, emprega-se aqui o termo casa como síntese das relações, da vivência e da memória – consciente ou não – do corpo ativo, sensorial e sentimental que troca, interage e imerge no espaço: que incorpora. Entende-se que a “a imagem vivenciada de uma casa é uma aglomeração de várias imagens e recordações isoladas, e não um objeto singular ou uma imagem fixa” (PALLASMAA, 2013, p. 126), estática ou rígida, referenciando especialmente o sujeito, sua carga histórica e sua construção social, além de seu constante processo de evolução e abertura. A casa vivenciada, portanto, é exemplo de imagem frágil e orgânica que se refaz continuamente e se conecta temporal e espacialmente com o corpo. É neste sentido que se interpreta a noção de Bachelard de que a casa é vivida tanto em sua realidade quanto em sua virtualidade, similar à ideia de Otto Bolnow (2011, p.120) de que ela pode mediar as relações entre sujeito e mundo, apresentando-se como centro necessário à existência. Bachelard (1993, p. 201) enuncia noção semelhante afirmando que “sem ela [a casa] o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida”, constituindo seu centro e revelando sua potência como abrigo que permite o recolher-se tanto físico, quanto “virtual”. A partir disso, se torna possível reconhecer a potência da casa que não é um arquétipo padrão, mas imagem personalizada e subjetiva capaz de reunir conceitos importantes à arquitetura e à obra de Oiticica. É o caso da evocação do abrigo presente na origem do Parangolé, por exemplo, e na sua transformação em capavestimenta. Segundo Paola Jacques, Abrigar é criar um interior para nele entrar, é constituir uma delimitação entre exterior e interior. Essa separação pode existir em diversos níveis, iniciando com o próprio corpo, ou seja, com o sujeito a ser abrigado: há primeiramente as vestimentas, depois as cobertas, o abrigo, a casa, o quarteirão, a cidade. (JACQUES, 2003, p. 26)

Neste sentido, o conceito de abrigo referencia tanto proteção, quanto delimitação de um espaço pessoal capaz de assumir diversas escalas e despir-se da rigidez que, à primeira vista, surge na separação entre interior e exterior.


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Cabe ressaltar que o conceito de abrigo é utilizado quase em oposição à ideia de habitar em função de uma importante diferença entre os dois termos. A leitura sensível que Paola Jacques faz da vivência de Oiticica no Morro da Mangueira ajuda a vislumbrar esta distinção de forma mais clara: para a autora, os barracos fragmentários da favela se aproximam mais da ideia de abrigar que de habitar, apontando como principal diferença entre os dois conceitos a temporalidade. Nas palavras de Jacques (2003, p. 26), “a grande diferença entre abrigar e habitar vem do fato de que abrigar é da ordem do temporário e do provisório, enquanto habitar é da ordem do durável e do permanente”. De forma similar, é possível observar que “habitamos nosso corpo em permanência, mas o abrigamos provisoriamente com uma vestimenta. É a diferença entre o ser e o estar” (JACQUES, 2003, p. 26). Desta maneira, no abrigo há uma abertura maior a alterações, uma flexibilização da forma e uma preocupação menos centrada na imagem. Na habitação, entretanto, esta tolerância parece ser negada, transferindo a distinção entre o estar (transitório) e o ser (estático) para arquiteturas de imagens frágeis e fortes, respectivamente. A temporalidade, assim, aparece como importante noção na distinção entre produções cotidianas e eruditas, uma vez que sua tolerância e consideração são observadas com maior frequência nas arquiteturas populares. É como se, de forma genérica, a maior parte das expressões cotidianas produzisse abrigos, enquanto as produções eruditas produzem, majoritariamente, habitações. Naturalmente, há exceções em ambos os casos, mas à título de esclarecimento, esta generalização se revela bastante enfática. É neste ponto em que uma aproximação interessante pode se dar com as produções de Hélio Oiticica. Conforme visto anteriormente, a importância do estar em sua obra referencia o transitório, impermanente e/ou intransitivo que potencializa o experimental e advém de uma abertura frente à vida. Acredita-se, com base nisso, que a imagem da casa enquanto abrigo aberto ao corpo e tolerante a suas transformações pode ser sintetizada no Parangolé, reunindo de forma poética questões como a personalização e a efemeridade, reiterando a importância da alteridade na construção de significados e de vivências. Além disso, encara-se a ativação do Parangolé pelo corpo em diálogo direto com a construção física e virtual da casa que, em um processo orgânico e afetivo, pode constituir-se, ela mesma, como corpo. É como se abrigo e corpo, casa e sujeito, se fundissem em uma figura mutante que abriga e se quer abrigada, que se reinventa, agindo e reagindo de


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forma anímica e constante. A fluidez dos Parangolés e a predominância dos elementos têxteis em sua expressão reiteram esta visão. A casa referenciada neste estudo, dialogando com a obra de Hélio e com uma abordagem sensível da arquitetura, mais próxima do corpo e do cotidiano é, essencialmente, abrigo; Parangolé. Espaço vivenciado no qual o corpo intervém organicamente a partir de necessidades, afetos, memórias, em um entendimento respaldado por Pallasmaa (2013, p. 125) que afirma: “nosso mundo existencial tem dois focos simultâneos: nosso corpo e nossa casa. Há um relacionamento dinâmico especial entre os dois” que pode ser entendido, conforme citado anteriormente, tanto a partir da capacidade de mediação da casa entre sujeito e mundo, como a partir de sua completa fusão, ativando a ideia de que corpo e espaço se relacionam de forma orgânica a ponto de incorporarem-se (ou espacializarem-se) um no outro. Assim, as extensões do corpo na casa personalizada e vivenciada e as inscrições da casa no corpo físico e virtual, despertam para a consideração de que “a casa é uma metáfora do corpo, e o corpo é uma metáfora da casa” (PALLASMAA, 2013, p. 125). A noção de abrigo, neste sentido, constitui-se como um dos principais pontos desta relação, revelando-se tanto na obra de Oiticica – na roupa-capa-Parangolé, nos Penetráveis abertos à experiência, nos Ninhos, lugares de construção de intimidades e diferenciações, por exemplo – quanto no abrigo primeiro do corpo no corpo: o ventre. Expandida em produções artísticas vanguardistas, esta noção pode ser identificada especialmente nas obras de Louise Bourgeois e Lygia Clark. Bourgeois explora a casa como corpo, abrigo e ventre na série intitulada La Femme Maison (Figura 73 e Figura 74). Embora a tônica da obra da artista, de forte apelo feminista, seja mais interpretada como uma crítica à domesticação da mulher que suporta a casa, mas é por ela reprimida (Figura 73), também é possível esboçar relações com a noção de maternidade, ventre e abrigo que encerra não para condicionar, mas para proteger (Figura 74). A casa, então, pode referenciar tanto uma prisão, quanto um abrigo seguro, contrastando com a sinuosidade do corpo da mulher a partir de uma geometria rígida capaz de tensionar, também, o excesso de intelectualização. Além disso, o corpo desabrigado pela casa que só compreende a cabeça conjura, ainda, noções de vulnerabilidade da mulher. Assim, a casa relacionada ao corpo em sua obra é capaz de ativar inúmeras interpretações relacionadas à arquitetura, às construções históricas e às relações sociais, especialmente de gênero.


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Figura 73 – La Femme Maison, Louise Bourgeois

Figura 74 – La Femme Maison, Louise Bourgeois

Fonte: https://www.labrys.net.br/labrys23/libre/ gabriela.htm

Fonte: http://aeromancia.blogspot.com/2010/ 11/casa-corpo-corpo-casa-em-louise.html

Além de Bourgeois, Lygia Clark, artista que cultivou uma relação muito próxima com Hélio Oiticica e em cuja obra potências muito semelhantes podem ser identificadas – papel transgressor e vanguardista incluso – também trabalhou com a noção de casa em suas criações. A artista, por sua vez, dialogou com a casa como abrigo, corpo e ventre a partir de uma formulação labiríntica quase literal. Nas palavras de Waly Salomão (2003, p. 42), “Clark formulou uma simbiótica pílula concepcional, uma síntese imbatível dos arquétipos arquitetônicos e corporais: A CASA É O CORPO/O CORPO É A CASA”. Sua obra assim intitulada (Figura 75) consistia em um labirinto a ser percorrido aludindo à experiência do nascimento, com referências diretas a diversas etapas do parto. Além de enfatizar o caráter do desvendamento móvel, do corpo ativo e aberto à sensibilização e da metáfora do abrigo como o corpo em si, a artista também evoca a noção de casa-ventre como polifonia e subjetividade, aberta à ressignificações a partir de seus experienciadores. Figura 75 – A Casa é o Corpo: Labirinto, Lygia Clark, 1968

Fonte: https://casaclaudia.abril.com.br/moveis-acessorios/nova-york-se-curva-a-lygia-clark/


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Entende-se que estas duas artistas mediam a expressão da relação entre corpo e casa apresentando de forma intermediária entre literalidade e metáfora o que em Oiticica encontra-se como abstração total. É possível identificar, então, alguns pontos de contato entre as obras de Clark, Bourgeois e Hélio, como a mutabilidade do sistema, a personalização e a imbricação entre casa e corpo. Acredita-se que entender a casa a partir destas contribuições ajuda a expandir a discussão sobre a obra de Oiticica e sobre a própria arquitetura, vislumbrando-as dentro de um panorama mais amplo repleto de exercícios e aproximações semelhantes. Além disso, os três artistas salientam a importância das noções de corpo, abrigo e ambiente na reflexão sobre o espaço vivenciado, discussão que é tônica da arquitetura. Considera-se, então, que a casa “direciona, confere escala e emoldura ações, relações, percepções e pensamentos. E, o que é mais importante de tudo, ela articula nossas relações com outras pessoas” (PALLASMAA, 2013, p. 124). Assim, sua figura abriga grandes potências que arquitetura e arte podem agenciar e favorecer, concretizando “a ordem social, ideológica, cultural e mental, conferindo-lhes forma material metafórica” (PALLASMAA, 2013, p. 124). Para o exercício de fazeres arquitetônicos atentos a estas dimensões, revela-se importante refletir sobre a ampliação da figura da casa sugerida a partir destas obras e discussões, atentando-se a valores por vezes pouco explorados ou reconhecidos, mas constantemente manifestados – de forma consciente ou não – na vivência cotidiana. No diálogo entre as produções de Bourgeois e Clark e a obra de Oiticica a partir da casa e do corpo cabe destacar, além dos Parangolés, os Ninhos. Seu arranjo por vezes já referencia, visualmente, conjuntos de pequenas habitações. Entretanto, o interesse sobre eles recai especialmente na possibilidade de personalização que apresentam. Nesta proposição, HO segue explorando a tônica do morar cotidiano, do construir fragmentário dos barracos das favelas e da organicidade labiríntica dos espaços não institucionalizados. Inspirado pela reinvenção constante agenciada pela abertura ao (e do) corpo, Hélio parece referenciar a vida como todo; o processo de desenvolvimento que pressupõe a transformação contínua do ser e de suas expressões. Assim, o estudo do caráter de abrigo e corpo sintetizados na figura da casa e ativados nas proposições de Oiticica tanto a partir de sua vivência na favela, como na sensibilidade e crítica à vida e ao


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cotidiano revela uma das origens de sua obra no ponto de intersecção artearquitetura: a mutabilidade do sistema, a indeterminação e a personalização, relegando ao corpo e ao comportamento papeis principais e investindo o poder da criação no/a experimentador/a. Isso motiva as proposições abertas de Oiticica, explorando o caráter experimental e inaugurando a arte ambiental. A partir disso, entende-se que a figura da casa pode ajudar a compreender, além de abrigo e corpo, a potência do aberto; do inacabado. Segundo Paola Jacques (2003, p. 43), “a durabilidade não interessa mais. O incompleto é, a partir daí, o efêmero. A efemeridade de uma forma, a longo prazo, é análoga à do ser vivo” (JACQUES, 2003, p. 43). Hélio desperta para a possibilidade de o inacabado incitar à exploração e à descoberta e o emprega como estratégia para fomentar a participação em suas obras. Neste ponto, entretanto, há uma dificuldade de diálogo entre a arte de Oiticica e a arquitetura, pois, conforme visto anteriormente nas discussões sobre o labirinto, a arquitetura tem grandes dificuldades em abrigar os riscos do acaso, do incompleto e do fragmentário. Paola Jacques (2003, p. 47) enfatiza que “a arquitetura sempre esteve ligada à ideia do durável. O homem construiu sua história a partir das ruínas de outras épocas. Os povos da Antiguidade construíam para a eternidade”. Assim, evitar determinismos excessivos, conceber imagens frágeis de arquiteturas (resgatando a teoria exposta anteriormente) e renunciar ao que se identifica como “uma atração megalômana pelo eterno” (JACQUES, 2003, p. 47), que seduz os/as arquitetos/as desde os primórdios de suas atividades, remete a uma mudança radical não só na arquitetura, mas na postura pessoal de quem quer abrigar em vez de fazer habitar. Retomando esta ideia nas construções que referenciam mais o estar – e, consequentemente, o aberto e inacabado – do que o ser, considera-se que a aproximação com o corpo enfatiza que a casa não só está no espaço, mas é espaço, sendo por ele conformada e dele conformadora. Neste sentido, a casa vivenciada ou a casa-abrigo revela que “como o corpo, a arquitetura é uma totalidade espacial transformável” (SPERLING, 2008, p. 125) que está em constante processo de (re)construção. Sperling ainda coloca que o espaço pode ser a condição existencial do corpo, e que a criação a partir deste pressupõe, portanto, a efemeridade de uma entidade que está sempre se transformando. Torna-se, então, quase inevitável que as relações de abertura e de casa-corpo se inscrevam no corpo da mesma forma que o corpo se inscreve no espaço. Entende-se que na arquitetura,


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assim como na obra de Oiticica, “ao espaço geometrizado, conformado por limites claramente estabelecidos (representação-observador, dentro-fora), contrapõe-se um espaço topológico contínuo, conformado por gradientes de aberturas de participação e circulações” (SPERLING, 2008, p. 125). Este espaço assume o corpo enquanto entidade inseparável, sem o qual a participação não se estrutura, as experiências não podem se desenvolver e o abrigo perde o sentido. Desta forma, acredita-se que na concepção de casas vivenciadas – casasabrigo ou casas ambientais – a consideração do tempo e do espaço ativo são tão importantes quanto seu programa funcional. É como se a este se estendesse, em paralelo, um “programa ambiental” que não exclui as preocupações funcionais e técnicas, mas as complementa com um corpo que transcende a ergonomia e as necessidades biológicas ativando subjetividades, virtualidades, memórias e afetos. Evoca-se, assim, uma postura de abertura, de tolerância, de organicidade e fragilidade por entender que, naturalmente, “o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo” (BACHELARD, 1993, p. 200), transformando-o de forma praticamente inevitável. Entende-se, portanto, que falar sobre a importância da casa na arquitetura é como o discurso de Anne Cauquelin sobre a obra de Oiticica (especialmente os Parangolés): não se trata “de construir uma teoria do desenvolvimento arquitetural a partir de uma imagem fictícia (a cabana na floresta, a gruta ou mesmo o abrigo que a vestimenta proporciona), mas de ver e compreender os gestos de envelopamento, uma arte do envelopamento” (CAUQUELIN, 2003). A poética deste envelopamento evoca o abrigo e a casa, resgatando o gesto (não artístico ou arquitetônico, mas total; ambiental) que desvenda e transforma. Assim, a casa descortina inúmeras poéticas na arte e na arquitetura, motivando a adoção da narrativa paralela que acompanha a redação desta dissertação. Entende-se que, mais do que servir como ilustração, o ato de simular uma visita a uma casa consiste em um convite sutil ao contágio, à ativação de paixões, utopias, subjetivações, de reconhecimento de si na alteridade a partir da imersão e da vivência sugeridas por uma visita que não é polida e distante, mas desce ao porão, vasculha gavetas, tateia paredes, pilares, piso, em função do corpo aberto e sensível que a agencia. Segundo Bachelard (1993, p. 201), “é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem” e acredita-se que qualquer espaço que deseje ser casa e abrigar o corpo necessita atentar-se para estas necessidades


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capazes de transcender o físico e pedir por uma configuração atenta, diretamente conectada à dimensão humana. Merleau-Ponty ajuda a entender estas potências afirmando que: [...] o sujeito efetivo precisa primeiramente ter um mundo ou ser no mundo, quer dizer, manter em torno de si um sistema de significações cujas correspondências, relações e participações não precisem ser explicitadas para ser utilizadas. Quando me desloco em minha casa, sei imediatamente e sem nenhum discurso que caminhar para o banheiro significa passar perto do quarto, que olhar a janela significa ter a lareira à minha esquerda, e, nesse pequeno mundo, cada gesto, cada percepção situa-se imediatamente em relação a mil coordenadas virtuais. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 181182)

Pode-se entender tais coordenadas, portanto, referenciando

não só

elementos físicos, mas modos de vida, construções culturais e históricas, relações sociais, enfim, caracterizando a casa tanto como espaço concreto, como virtual e temporal. A estratégia em se ativar discussões a seu respeito, assim, busca revelar as potências de se entender qualquer arquitetura que abrigue o corpo como casa, sensibilizando a partir da obra de Hélio um fazer igualmente vivencial e aderido ao contexto e ao corpo. Acredita-se que este pode ser um caminho para aproximar arquitetura e diversidade, tolerância, fragilidade e respeito às diferentes construções – não só físicas – inerentes à diversidade humana, fomentando a criação de fazeres capazes de abrigar corpo e mundo. O abrigo, o corpo, o espaço, o tempo, o processo, a transformação e o fragmento fundem-se, então, na figura da casa.


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5.2. UM CAMINHO: ANTIARTE E ANTIARQUITETURA Figura 76 – Cartão postal 12: A casa-instante

Fonte: Produzido pela autora

Como trabalhar com estas imagens expandidas de espaço público e casa? Como integrá-las às preexistências físicas e sociais? Que arquitetura pode ser capaz de congregá-las? Que exercícios podem agenciá-las? É extremamente importante refletir criticamente a respeito dos fazeres atuais na arquitetura, entretanto, é igualmente necessário pensar formas de melhorá-los em vez de ater-se a uma posição confortável, acusatória e distante, em nome do compromisso com mudanças efetivas. Reconhecer-se como parte deste sistema, como fez Oiticica, para implodi-lo caso se julgue necessário torna-se imperativo. Por este motivo, cabe estender o diálogo entre arte e arquitetura para o esboço de caminhos de


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ultrapassamento de algumas das problemáticas identificadas, tomando Hélio como uma importante fonte de inspiração. O artista “soube metamorfosear o mundo dado em sistema significante e chumbar a ordem da vivência com a ordem da expressão” (SALOMÃO, 2003, p. 67). Hélio articulou – a partir da relação com outros artistas e vanguardas – a superação da representação nas artes, a desconstrução do objeto como foco de interesse e a soberania da sensação, do comportamento e da transformação em suas proposições. A tal atitude, o artista deu o nome de “antiarte”, referenciando a negação das expressões tradicionais ao incorporar o público não mais enquanto espectador, mas como participante ativo. “Assim, a antiarte transforma a concepção de artista: não mais um criador de objetos para a contemplação, ele se torna um „motivador para a criação‟” (FAVARETTO, 2000, p. 124) que passa a ser coletiva, compartilhada. Acredita-se que o papel de agenciador ou mediador de criações conquistado pelo artista a partir da antiarte aponta a possibilidade de se viabilizar a conquista de papel parecido para arquitetos/as contemporâneos/as interessados/as em superar a arquitetura que favorece o habitar em vez do abrigar, o objeto espetacular em vez das relações humanas e o permanente e rígido no lugar do transitório e aberto. Entende-e que a negação da arquitetura antilabiríntica por arquitetos/as-urbanos/as, wanderers, ou bricoleurs pode motivar uma prática inspirada na artiarte: a “antiarquitetura”. O deslocamento proposto pelo prefixo anti na arte, “aponta para uma nova inscrição do estético: a arte como invenção cultural. Seu campo de ação não é o sistema de arte, mas a visionária atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social” (FAVARETTO, 2000, p. 124). Assim, a antiarte é proposta como investigação do cotidiano que não impõe um acervo de ideias e estruturas acabadas e que tampouco define o que é e o que não é arte. Nas palavras de Gonzalo Aguilar (2016, p. 59), “já não sabemos o que é arte, já não estamos mais na pintura, já não podemos encapsular o devir de uma obra: a arte é uma situação em que ela pode perder a si mesma”, dada sua abertura e indefinição. O que se sabe, entretanto, é que a antiarte procura o deslocamento do campo intelectual racional para o vivencial, conferindo ao/à experimentador/a a possibilidade de descobrir, a partir da participação, algo que para ele possua significação (OITICICA, 1986). Assim, a relação entre experimentador/a e obra se reinventa a partir de participações abertas e imersivas, ressignificáveis e transformáveis que, apesar de sugerirem tolerância e


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inúmeras possibilidades de expressão, não eliminam processos rigorosos de composição: elas englobam “experiências de cor, estrutura, dança, palavra, procedimentos conceituais, estratégias de sensibilização dos protagonistas e visão crítica na identificação de práticas culturais com poder de transgressão” (FAVARETTO, 2000, p. 125). Assim, a postura antiartística questiona significações habituais, buscando desnormativizar a arte e descondicionar seus corpos sem, entretanto, negligenciar seu compromisso social. A grande diferença é que a experiência assumida como parte da essência da expressão artística não pode ser consumida, vendida ou apreendida de forma distante e visual. Além de romperem com a frontalidade das obras e estaticidade dos corpos, assim, as proposições de situações a serem confrontadas em vez de apreciadas visualmente inauguram o que se enuncia como um dos ecos mais frutíferos da antiarte: o caráter ambiental. Segundo Celso Favaretto (2000, p. 127): Na medida em que o essencial dos ambientes não é a estetização de objetos e espaços, mas a confrontação de participantes com situações, o interesse concentra-se nos comportamentos: ampliação da consciência, liberação da fantasia, renovação da sensibilidade. O ambiental é uma modalidade da atividade desestetizadora, empenhada no questionamento das categorias habituais da arte e do circuito. Efetua uma mutação de conceitos e de procedimentos, desterritorializa os participantes e prescreve as obras de arte.

Percebe-se, então, que a antiarte – pauta das criações de Hélio que evocam a figura da casa e do espaço público – formula-se como proposição ambiental tendo por princípio a participação (FAVARETTO, 2000, p. 124) e o descondicionamento e absorvendo o que a arte até então institucionalizada negligenciava: o cotidiano, o ordinário e o corpo. Isto é o que justifica o prefixo “anti” e inspira a inquietação sobre possibilidades de fazer o mesmo com a arquitetura convencional. Não se trata de afirmar de forma reducionista que a arquitetura nunca se preocupou com a participação. Entretanto, os termos nos quais essa participação se dá é por vezes excessivamente restritivo e controlado, podendo, de forma similar ao operado na arte, expandir-se em uma possível “antiarquitetura”. Acredita-se que, de certa forma, isso já seja exercitado, especialmente pelos bricoleurs, que exercem com maestria a habilidade de sensibilização aos lugares e aos modos de vida. Confrontar-se com suas ações insinua questões semelhantes às enunciadas por Hélio Oiticica e motiva o pensamento sobre a prática de


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antiarquiteturas capazes de potencializar a restituição de poder ao corpo, ao acaso, à personalização e à criação de identidades múltiplas e plurais, em detrimento das identidades unificadoras e comercializáveis que são por vezes fabricadas, em vez de reconhecidas. Desta forma, tem-se que: A arquitetura, por essa via, não se resume à sua materialidade ou constituição física. O espaço arquitetural é um campo do qual propositor, objeto e público participam, do objeto material para o vivencial. A arquitetura como representação, depositária de significados (pretérito) socioculturais, econômicos e tecnológicos passa a ser facilitadora de significações (presente), veículo para a experiência do corpo. O que desloca o entendimento da forma arquitetônica como contentor representativo para a forma como campo estrutural de ações intersubjetivas; e o entendimento do espaço como espaço espacializado em que as relações foram instituídas e geometrizadas para o espaço espacializante, em que as relações estão ativamente em construção. (SPERLING, 2008, p. 134)

O que pode ser feito, neste sentido, é expandir as expressões que por vezes estão mais sob o domínio da arquitetura popular do que da erudita para práticas capazes de aproximá-las, colocando arquitetos/as a serviço do cotidiano não para institucionalizá-lo, mas para somar ao saber empírico o conhecimento dos profissionais. Capazes de potencializar de forma segura e responsável expressões que, de uma forma ou outra, já se dão no espaço urbano, os/as arquitetos/as podem contagiar-se com os fazeres sensíveis ampliando suas ações e extrapolando os procedimentos-padrão por vezes adotados de forma acrítica e alienada. A abertura ao reconhecimento da arquitetura popular como latência de necessidades, dinâmicas e relações pode ampliar a arquitetura formal desconstruindo suas formascristal e questionando a reprodução de imagens fortes e espetaculares a partir do contágio com as formas orgânicas e as imagens frágeis. A própria figura do/a arquiteto/a pode, assim, se diluir, desconstruindo-se em fazeres compartilhados, coletivos, capazes de agenciar saberes, memórias, relações, desejos, afetos, técnicas, programas, tecnologias, enfim, diversos e complementares de uma (anti)arquitetura aberta ao corpo e efetivamente comprometida com ele. O diálogo com a antiarte, então, ajuda a evidenciar noções relevantes à arquitetura atual, sugerindo a atenção às figuras ampliadas do espaço público e da casa. Enquanto o primeiro, mediado pela obra de Hélio, revela a potência das vivências, o segundo incentiva o abrigar das construções de significados pessoais, referenciando tanto cada corpo individualmente, como as coletividades, grupos e associações. Assim, é possível considerar que a obra de Hélio explora a postura anti


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como resistência às totalizações institucionais capazes de reduzir as experiências sensoriais e privar os corpos de suas potentes expressões autônomas e espontâneas. A compreensão de que cada espaço vivenciado se constrói de forma contínua a partir das trocas entre corpo habitado e corpo habitante ajuda a revelar a potência da arquitetura que media materialidade e virtualidade, alcançando expressões capazes de assumir os processos de subjetivação como intenção, e não consequência secundária relegada ao acaso. É neste sentido que Pallasmaa (2013, p. 124) identifica a importância de se entender as imagens da arquitetura como convites: “o piso é um convite para que fiquemos eretos, tenhamos estabilidade e possamos agir, a porta nos convida a entrar e passar por ela, a janela, a olhar para fora e observar, a escada, a subir e descer”. Assim, cada decisão material evoca relações e comportamentos, revelando o espaço como meio no qual ambos se expressam. No mesmo sentido, Pirondi (2014) considera que “talvez inventamos a técnica para discursarmos sobre arte. A pauta não é a música, só pode ser música se ouvida, se preencher o espaço. Uma porta não é só dobradiça e maçaneta. É um rito de passagem seletivo do corpo, um divisor entre mundos”. A tomada de consciência a este respeito atua, ao menos em parte, restituindo à arquitetura o esboçado na antiarquitetura, revelando que a dimensão imaterial não deixa de influenciar a materialidade. Ela tampouco descredibiliza a arquitetura por focar-se menos em suas questões técnicas e mais em discussões de cunho subjetivo, mas enriquece-a ao oferecer aos corpos lugares mais confortáveis e conectados a suas necessidades. Segundo Waly Salomão (2003, p. 103) uma arte sensível e aderida “é cosmo; não é cosmético”, noção que aqui se estende à arquitetura porque o cosmo, justamente, as compreende em relação direta. O poeta exalta que as expressões relacionais e socialmente comprometidas, derivadas de vivências e propostas por Oiticica não têm a intenção outrora prioritária na arte convencional de entreter – especialmente as elites – ou provocar fugas de cotidianos problemáticos. Pelo contrário: elas trazem em sua agenda a explicitação dos problemas sociais através da sensibilização do corpo inteiro, englobando o cosmo tanto a partir do contexto, quanto do corpo experimentador. Tais preocupações relacionam-se de forma direta à antiarquitetura ou à arquitetura ambiental insinuadas pelo diálogo com a obra de Hélio. Elas não são supérfluas ou falhas por aterem-se mais às questões subjetivas; mas se referem ao corpo; ao espaço ativado e ativante; ao ser humano enquanto


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finalidade primeira; ao(s) cosmo(s). Renunciam aos totalitarismos das imagens fortes e pressupõem a superação dos procedimentos convencionais ampliando seu entendimento para dimensões mais sensíveis e igualmente pertinentes em sua definição e aplicação prática e responsável no cotidiano. Estas expressões de antiarquitetura sequer deixam de ser ciência se analisadas segundo a ótica de Merleau-Ponty (2004, p. 3). O autor destaca que “todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda”. Assim, entende-se que o discurso ou a ação científica despidos da vivência direta do mundo correm o risco de afastar-se de sua constituição real e negligenciar seus valores. Além disso, se a ciência é “a expressão segunda” do mundo, somente a experiência pode revelá-lo diretamente. A obra de Oiticica oferece perspectivas para incentivar ações experimentais e imersivas tanto de corpos propositores, quanto experimentadores, sejam em propostas reconhecidas como arte ou arquitetura. Além disso, acredita-se que as transformações na arquitetura, por envolver dinâmicas urbanas complexas, disputas de poder, custos frequentemente elevados, noções de permanência e eternidade que implicam lentidão de construção e de tomada de decisões, entre outras questões, se dão de forma mais lenta, revelando uma menor liberdade em seu exercício quando comparado às expressões artísticas. Desta forma, percebe-se que estas podem favorecer e catalisar transformações e processos de formação de vanguardas, por exemplo, antecipando novas discussões e práticas. A poética do gesto revelada na obra de Oiticica, assim, constitui prelúdio de novas arquiteturas para quem ousar abrir-se a elas; prenuncia fazeres alternativos e abertos. Conforme exposto, esta poética encontra sua principal potência no corpo que, “na ação mesma do viver é simultaneamente o ser criador e o próprio „objeto‟ da arte” (SPERLING, 2008, p. 122), ressaltando a desconstrução deste conceito. Acredita-se na potência da arquitetura capaz de assumir posição semelhante, superando demagogias e transformando em prática os discursos sobre participação e interferência direta da coletividade nas concepções de espaços públicos e casas. Além disso, a superação do objeto espetacular, assim como a desconstrução do quadro promovida na pintura, constitui um caminho a ser explorado neste sentido. É o que Sperling enuncia ao colocar que a contribuição maior de oiticica à arquitetura,


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“só se efetivou pela reconsideração ontológica da própria arquitetura, como entrecruzamento de relações espaciais e vivenciais geradas pelo corpo ativo, a contrapelo da reificação do objeto arquitetônico”. Desta forma, considera-se que assim como o suporte se dissolveu na arte de Oiticica, o “objeto” (forma-cristal ou imagem forte) pode dissolver-se na arquitetura, não a partir de sua negação completa, mas de sua reforma com base em valores relacionais, humanos e subjetivos, mais próximos do cotidiano e da vida. Percebe-se, então, que a obra de Hélio sugere uma antiarquitetura que é, em essência, ambiental, a respeito da qual Sperling (2008, p. 126) afirma: [...] a arquitetura como manifestação ambiental, no sentido de Oiticica, é, pois, estruturação de um campo e não formatação de uma forma; é abertura à construção pela experiência vivencial, e não definição por completo em uma abstração projetual. Da „representação‟ para a „presentificação‟. Vai além do espaço „pronto‟, pois compõe-se de elementos „transformáveis‟ e „para fazer‟, gradientes de abertura para a continuidade processual.

O caminho para uma arquitetura que se insinua a partir da leitura aqui realizada sobre a obra de Oiticica reúne, assim, bricolagem e superação da representação visando à configuração “presentificada” de labirintos, propondo estruturas passíveis de permitir e incentivar o wandering a partir de vivências do/a arquiteto/a e dos corpos que experienciam – e, por vezes, constroem junto – suas proposições. Esta proposição da arquitetura abre-se à construção de casas enquanto abrigos transformáveis como a “casca-ovo” anteriormente referenciada, que cresce junto com o corpo que abriga. De forma resumida, Sperling (2008, p. 134) coloca que esta visão ambiental da antiarquitetura estrutura-se especialmente a partir da transformação de três aspectos principais: “o espaço (deslocado do geométrico da representação para o topológico das relações), o tempo (de permanência para efemeridade) e a relação obra-espectador (obra destinada a um espectador passivo deslocada para um campo ativado pelo participador-atuante)”. Acredita-se que a partir de então torna-se possível entender e explorar a arquitetura como convite e cosmo e esboçar um entendimento da antiarquitetura como resistência que transforma preceitos estabelecidos. A arquitetura ambiental pode ser entendida, então, como uma das lentes aplicáveis na seleção destes preceitos a serem transformados, oferecendo estratégias e caracterizando-se como abordagem contida na antiarquitetura.


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Cabe destacar que a postura aqui investigada e o apelo ao ambiental são apenas parte de um número incontável de possibilidades que podem ser exploradas no contexto da antiarquitetura. Tal consciência, entretanto, “não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão” (SALOMÃO, 2003, p. 52-53). Não se deseja apontar a antiarquitetura ou arquitetura ambiental como únicos caminhos para a arquitetura atual, mas como opções passíveis de exploração que, dentre tantas outras, merecem ser abraçadas e exploradas, contagiadas pela paixão de Hélio (e pelo corpo, pelo experimental, pela vivência, pela imersão), deixando conservadorismos, preconceitos, alienações e conformismos à parte. Este é o convite deste trabalho que se experimenta no caminho incerto, mas carregado de sentido, da arquitetura que quer abrigar o corpo em dimensões expandidas. Entende-se que explorar as possibilidades que emergem do diálogo entre arquitetura e arte – especialmente a vertente ambiental –, no caminho labiríntico guiado (ou transviado) por Hélio Oiticica, pode ajudar a alcançar uma poética do gesto; poesia espacializada que dissolve objeto, espaço e sujeito, trançando relações que imbricam estes elementos a ponto de já não mais ser possível defini-los separadamente. É neste sentido que se parodia a afirmação de Waly Salomão (2003, p. 117) que apresenta um “desígnio de Hélio: ultrapassamento da sensorialidade malhada. Poesia que sacraliza a revolta e anula a separação da vida, de um lado e da arte, do outro lado”. Propõe-se como desígnio da antiarquitetura o ultrapassamento da sensorialidade negada. Como poesia que reverte a separação da vida, de um lado e da arquitetura, do outro lado. A obra de Hélio sugere um abrigar que pode ser explorado a partir da atenção ao temporário, ao provisório, ao orgânico, vivo, latente, que se transforma, expandindo ou retraindo, endurecendo ou amaciando, de acordo com o corpo. Como perspectiva, ela sugere expressões anti e ambientais materializadas, talvez, em uma espécie de arquitetura-Parangolé. Um abrigo do corpo: arquitetura para vestir. O abrigo da alteridade, o corpo experimental, o espaço-corpo, o processo, a imersão, a abertura à transformação, a resistência-anti, o labirinto fragmentário se fundem e fazem fundir (anti)arte e (anti)arquitetura em propostas ambientais.


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6. CASA EM FESTA: O AMBIENTAL Figura 77 – Cartão postal 13: A casa-gozo

Fonte: Produzido pela autora

A partir de uma espécie de cartografia sensível da obra de Hélio Oiticica direcionada a endossar perspectivas de uma antiarquitetura foi possível vislumbrar um caráter que permeia casa e espaço público, corpo, tempo e espaço, dissonâncias e convergências entre fazeres institucionalizados e cotidianos, imagens fortes e frágeis, formas-cristal e orgânicas: o caráter ambiental. Referido enquanto escala, ordem ou programa, o ambiental ainda é um termo de difícil definição na obra de Oiticica, mas amplamente empregado pelo artista. É possível reconhecê-lo em inúmeras expressões, manifestando-se direta ou indiretamente, de forma literal ou subjetiva tanto nas produções oiticiquianas, quanto em outras tantas vivências, espaços e proposições – conforme apontado na análise sobre a Ação-HO –,


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articulando um devir anti e total. Resistindo à exclusividade das formas-cristal, ao totalitarismo das imagens fortes, à predominância da espetacularização e aproximando-se do cotidiano, das micro-intervenções, do corpo, dos afetos e da sensorialidade, a arte ambiental atua por meio da vivência do corpo, revelando-se como o que constrói e é construído nessa relação extrapolando limitações, categorias e definições estritas. Segundo Tatiana Ferraz, “no Brasil, a demanda por uma escala ambiental se deu a partir das experiências do Neoconcretismo” (FERRAZ, 2006, p. 149), quando a tomada do espaço pela pintura ganhou força. Conforme visto, as categorias artísticas começaram a se dissolver e ampliar em nome da espacialização e da fusão entre formas de expressão dedicadas a construir vivência, crítica, afeto, reconhecimento de si, enfim. Neste sentido que, pode-se reconhecer que, para além das propostas que tomam o espaço, a arte ambiental se revela na dissolução do objeto de arte. Referindo-se aos experimentos da vanguarda neoconcreta, Ferraz (2006, p. 103) afirma que “é nesse processo de desintegração do objeto artístico que os trabalhos de Hélio Oiticica passam a conquistar uma dimensão ambiental, capazes de impregnar-se do mundo em estreito diálogo com o observador participante, o qual os acionaria numa experiência ambiental”. Articulando esta experiência encontra-se o corpo que é autônomo, mas não desvinculado de seu contexto, nem somente restrito a um sentido ou a uma forma de apropriação da obra; tanto o corpo do proponente quanto o corpo do experienciador inserem-se em um mundo que impregna sua experiência e suas significações de forma total, ou seja, congregando estímulos, heranças, motivações, comportamentos, etc., que remetem a complexidade do corpo e do contexto considerados um todo inseparável entre si e entre categorias e sentidos. De forma similar, Gonzalo Aguilar (2016, p. 13) enuncia que “essa „arte ambiental‟ já não deve ser avaliada exclusivamente segundo valores estéticos, mas também – ou sobretudo – segundo valores culturais” aderidos de forma consciente ou não no corpo e em seus contextos. A dissolução do objeto culmina, assim, não só na espacialização, mas nas incorporações que fazem fundir arte e corpo, arte e mundo, arte e vida, levando à reflexão: “arte ambiental: que reivindica a dimensão da ação? Experiência vital por meio da arte? Não quer representar a vida, mas vivêla. Não se trata de uma proposição moralista, mas vivencial” (FERRAZ, 2006, p. 95). Pode-se inferir que as proposições ambientais, portanto, são sensíveis aos


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contextos, mas de forma indeterminada, ou seja, sem ditar sua interpretação unificada ou sua transmutação em um sentido exclusivo validado por algum tipo de autoridade – seja um sistema maior, um/a propositor/a (artista, arquiteto/a) ou a própria obra que opera ditando reações-padrão. A arte ambiental distancia-se das representações – remetendo à Rodin, na virada do século XIX para o século XX – invalida a autoridade e vale-se do corpo como articulador de um sistema amplo e complexo. A ativação do espaço, da obra e da experiência ambiental, assim, não parte de determinismos, mas da liberdade e da pluralidade das interpretações e ressignificações constantes agenciadas pelo corpo ativo e crítico. O rompimento com a representação fica especialmente claro a partir das proposições vivenciais. Nas palavras de Tatiana Ferraz (2006, p. 29) “a partir daí, a arte apresentava-se não mais como representação da realidade, mas realidade em si, posta no mundo e percebida por meio de uma operação ativa”. Esta operação já se realizava desde o cubismo e se consolida especialmente com a abertura que autonomiza corpos e campos ampliados. Assim, ao contrário do que o discurso até aqui realizado enfatizando o espaço e o corpo pode levar a pensar, “na arte nãorepresentativa, o tempo seria o principal fator” (FERRAZ, 2006, p. 104) porque a vivência os compreende em uma duração que é sua e variável; elástica, como o que acontece em uma festa, segundo Gadamer (1985). Para o autor, a festa articula um tempo que não é o tempo cronológico no qual se baseia a sociedade para marcar suas fases de vida. Tampouco é o tempo do relógio, contato e agregado “a uma lenta sequência de momentos vazios” (GADAMER, 1985, p. 65); trata-se do que o autor intitula “tempo próprio”, “que nos é conhecido a todos por experiência própria” (GADAMER, 1985, p. 65). Assim, o tempo da festa remete a sua duração; à suspensão do tempo enquanto entidade reconhecida de forma automatizada e distante na rotina diária, separado em blocos – os dias, as estações, as fases da vida, etc. – e ao seu resgate enquanto o demorar-se. Nas palavras do próprio autor, a festa “pela sua própria festividade, dá o tempo, e com sua festividade faz parar o tempo e leva-o a demorar-se – isso é o festejar” (GADAMER, 1985, p. 65) e é parte do convite ambiental de Oiticica. Suspender conceitos e demorar-se em sua apreensão pessoal e única, em uma reconstrução que é própria e significativa no reconhecimento de cada corpo. Como uma festa, a experiência artística vivencial remete tanto ao corpo e ao espaço, quanto ao tempo em que um se demora no outro, o que ocorre de variadas


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maneiras dependendo do dia, do sujeito (suas heranças, afetos, construções sociais, etc.), do contexto físico, social, histórico, econômico, das condições atmosféricas, do estado da arte, entre outros fatores. A arte ambiental revela-se, neste sentido, como aquela que só se completa na festiva experiência espaço-temporal (FERRAZ, 2006, p. 141) ativada pelo corpo aberto e disposto a imergir nas proposições, levando a considerar o ambiental “para designar aqueles trabalhos que lidaram com aspectos sociais e culturais da cidade como pressupostos de uma atuação ampliada da arte e cuja manifestação se dava na experiência espaço-temporal, manifesta no embate com o fruidor” (FERRAZ, 2006, p. 41). Esta ampliação, além de diluir o objeto atuando no espaço, tendo a incorporação como prerrogativa, temporalizando as obras e conectando-as de forma crítica com seus contextos, reinventa as formas de expressão artística, dispondo de um repertório material e imaterial muito maior. A arte que é ambiental, assim, exterioriza e se lança para fora de si mesma (RIVERA, 2012, p. 99), concretizando operações de deslocamento e exteriorização do sujeito. Quanto à primeira operação, entende-se que a abertura ambiental relaciona a arte a outras dimensões, nas quais “as questões nacionais, culturais, étnicas, políticas se emaranham” (AGUILAR, 2016, p. 65). A operação de exteriorização do sujeito, por sua vez, é aqui interpretada tratando de sua desconstrução, de sua constante redefinição, de sua fragmentação e re-formação (ou transformação) a partir de seu contexto e da vivência das proposições. O sujeito passa a estender-se a elas, reconhecendo a si mesmo nas obras, revelando seus afetos, construindo pequenos territórios, enunciando necessidades, provando seus desígnios, enfim. A operação de deslocamento da arte é vislumbrada, ainda, como resposta ao desafio de aproximar arte e vida. “Para enfrentá-lo, Oiticica deixou de fazer obras para inventar situações”, entendidas como propostas que “não se opõem às obras, e sim as incluem e ao mesmo tempo as extrapolam e as levam ao limite, à beira de sua dissolução” (AGUILAR, 2016, p. 22). É que as situações artísticas oiticiquianas são formas orgânicas que compartilham a criação; imagens frágeis abertas a intervenções constantes e “a processos que modificam a obra e até podem desintegrá-la. Não pode ser conservada, porque se desdobra em um tempo e lugar determinados” (AGUILAR, 2016, p. 22), negando a comercialização e a reprodução. As obras, em oposição às situações, por sua vez, implicam condições mais limitadas, menos tolerantes ao improviso e ao inacabamento. Em outras palavras, “a


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obra é o que permanece invariável em qualquer tempo e espaço: por exemplo, um Metaesquema e, em menor medida, os Relevos Espaciais. É necessário conservála” (AGUILAR, 2016, p. 22). É possível e conveniente fazê-lo. Assim, as situações não deixam de ser obras artísticas em seu sentido expandido, mas distanciam-se da acepção restrita e ampliam o conceito em direções mais abertas, denunciando uma ruptura essencial na obra de Hélio (normalmente abordada enquanto um continuum): a ruptura ambiental. Nela, o sujeito é deslocado de uma relação restrita e essencialmente visual com obras estáticas e consumíveis para ser interpelado por situações que o exteriorizam, vibrando liberdade, experimentação, lazer, abertura, gozo. A festa é uma boa metáfora ao caráter ambiental também neste sentido. Ela é o momento de celebração gozosa em que os diferentes se reúnem em prol de conveniências,

interesses,

detalhes

compartilhados

mesmo

que

de

forma

momentânea, preservando as individualidades e comemorando-as. É o momento da celebração não-representativa, mas vivencial. Gadamer (1985, p. 61-62) afirma que “se há algo relacionado com toda a experiência da festa, este algo é o que impede todo isolamento de alguém frente a outrem. Festa é coletividade”; a tomada de consciência ativa frente à alteridade que não deixa brechas para a passividade do distanciamento ou da ignorância. Esta celebração das diferenças que ocorre na festa consiste “claramente numa coletividade não bem definível, num reunir-se para algo, sobre que ninguém sabe dizer para que propriamente. São afirmações, não por acaso, semelhantes à experiência da obra de arte” (GADAMER, 1985, p. 62), especialmente a arte ambiental de Hélio Oiticica. São, também, afirmações necessárias para efetivar uma mudança crítica na acepção padrão da arte, pois, ainda que hajam inúmeros movimentos de deslocamento – e os operados por Hélio são apenas parte deles – ainda predomina um entendimento rígido que remete constantemente às relações fortes e à sociedade do espetáculo que não se deixa envolver de forma tão aberta na festa ambiental. É neste sentido que, ainda valendose de Gadamer, cabe ressaltar: Uma das grandes falsificações advindas através da arte da reprodução de nosso tempo é que nós, quando vemos no original, pela primeira vez, as grandes construções da cultura humana, assimilamo-las frequentemente com uma certa decepção. Elas não são mais absolutamente tão pictóricas como as conhecemos das reproduções fotográficas. Em verdade, essa decepção significa que ainda não se passou absolutamente da mera qualidade contemplativa


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pictórica da construção até ela como arquitetura. É preciso ir-se lá, entrar, sair, circundá-la, aos poucos passear por ela e assimilar o que o produto final promete ao próprio sentimento vital e sua elevação. Assim, gostaria de fato de resumir a consequência dessa curta reflexão: na experiência da arte, trata-se de que aprendamos, na obra de arte, uma forma específica de demorarmo-nos nela. (GADAMER, 1985, p. 69)

A idealização da festa, assim, a desintegra. Doar tempo e absorver o tempo da obra surgidas por contingência na própria experiência – festa que se constrói progressivamente – torna-se atitude ambiental de resistência à passividade das acepções contemplativas e distantes que pode ajudar a efetivar a transição da arte e da arquitetura de seus próprios campos ilusoriamente restritos para a vida em si, campo ampliado e de ampliações constantes. A festa é, então, a celebração que doa tempo, espaço e corpo aos campos ampliados – e deles colhe tais elementos. É o carnaval que liberta o corpo. E o corpo liberto que transita, com sua atitude anti, por áreas expandidas, é prenúncio do caráter ambiental. Entretanto, reunindo o que até então se apresentou sobre a vida e a obra de Oiticica, percebe-se que o corpo livre não é, necessariamente, o corpo desprendido, desconectado, mas ao contrário, o corpo aderido, contextual e ativo em seu contexto. Ele é livre por ser aberto ao contágio e a transformações que, por vezes, o mesmo corpo agencia. É neste sentido que as experiências de HO sugerem uma aderência tão grande entre obra e corpo a ponto de eles se tornarem elementos quase indiferenciáveis. E talvez aí mesmo viva o ambiental: na indistinção entre categorias, modalidades e formas de expressão que se revelam na vivência completa e um corpo que é por inteiro – sensorialidade não-esquartejada, subjetividade considerada, diversidade exaltada. Neste trabalho, o ambiental se manifesta em abertura, experimentação, especulação e identificação, passível de ser expandido, retrabalhado e revisitado segundo outros pretextos e diálogos. O que condiciona esta abordagem é um direcionamento que aproxima arte e arquitetura, corpo e mundo, Oiticica e vida.


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6.1. SUBINDO AO SÓTÃO: DO CARÁTER “ANTI” AO CARÁTER AMBIENTAL Figura 78 – Cartão postal 14: A casa-experiência

Fonte: Produzido pela autora

O sótão, segundo Bachelard (1993), é a oportunidade de racionalização. Expressão da segurança, do sujeito consciente, ele induz à organização do pensamento; a uma vista geral. Reconhecendo o entorno em que a Casa Ambiental se assenta, compreendendo o valor de sua visita, revirando suas gavetas cômodo por cômodo, reconhecendo-a na introspecção do cotidiano pacato e necessário ou na efervescência da festa, cabe subir ao sótão, refúgio silencioso e afastado que permite uma vista parcialmente de fora. Do topo da pirâmide que contém o labirintocasa, pode-se sintetizar arte, arquitetura e corpo na figura da Casa Ambiental e vislumbrar este caráter a partir de uma sistematização que não deixa de ser aberta e


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estar em constante construção, mas que é capaz de guiar com maior clareza seu reconhecimento na arte e na arquitetura. Cabe destacar que esta reflexão baseia-se em fragmentos de discursos e ações ambientais realizados tanto por Hélio Oiticica, quanto por autores/as que estudam a sua obra. A visão aqui apresentada consiste, então, em uma das interpretações possíveis sobre o tema e pode ser expandida, contestada e/ou complementada. Entretanto, é necessário arriscar-se neste sentido pois, como se o desconforto em discutir algo tão aberto e ao mesmo tempo pessoal, diretamente ligado às inspirações do artista, intimidasse os/as autores/as, as ocorrências do termo de forma aprofundada na literatura que trata sobre Hélio Oiticica são pouco frequentes se comparadas às de outros aspectos de sua produção. Acredita-se que este esforço é espacialmente válido pois um dos principais pontos de contato entre arte e arquitetura e o contexto dos anos 1960 e 1970 (época da produção mais intensa de Hélio) e a contemporaneidade atravessa as fronteiras do ambiental. Assim, assume-se aqui o risco de realizar este diálogo nem de forma prepotente, contaminada por aportações deterministas, tampouco inconsequente, desligadas de referências e correspondências pertinentes. Arrisca-se, através da escrita, uma compreensão do tema em uma atitude experimental inspirada em HO na qual o texto e a compreensão se fazem juntos em nome de uma ampliação das discussões sobre o termo. Um dos caminhos vislumbrados neste esclarecimento diz respeito aos diálogos entre o ambiental e a atitude “anti”, a qual remete às experiências da vanguarda artística brasileira e, posteriormente, ao movimento da contracultura como todo. Conforme explorado anteriormente, a antiarte negava a arte convencional a partir da reforma de seu exercício, questionando procedimentos e comportamentos padrão. Ela inspira a antiarquitetura ao se vislumbrar necessidades de ultrapassamentos semelhantes na área em questão. O caráter ambiental, por sua vez, emerge (ao menos em parte) em extensão a estas negações e deslocamentos, quase enquanto respostas a elas ou alternativas de agenciamento por elas despertadas. Naturalmente, não significa que a antiarte ou a antiarquitetura traçam um manual de procedimentos do tipo ação e reação, no qual a cada pretensão “anti” corresponde uma resposta específica ambiental. O diálogo entre eles se dá a partir de um tortuoso caminho, um labirinto, que, de forma genérica, chega com frequência em superações similares. Entretanto, ressalta-se que as ações se dão em conjunto e


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atuam de forma diretamente relacionada. É possível perceber, neste sentido, que às aspirações “anti” correspondem estratégias ambientais que atuam direcionando a crítica e a teoria a uma ação alternativa. Reunindo o que foi discutido nestes últimos tópicos e considerando a arquitetura ambiental como uma das possíveis articulações da antiarquitetura, são esboçados a seguir alguns paralelismos que podem ajudar a esclarecer conceitos e relações. Figura 79 – Cartão postal 15: A casa-resistência

Fonte: Produzido pela autora

6.1.1. Correspondências A título de sistematização, elaborou-se um quadro (Quadro 1) que exibe algumas correspondências entre as negações “anti” e as aberturas ambientais. Ele enfatiza as relações mais diretas vislumbradas entre as duas posturas, entretanto,


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entende-se que sua relação não é unidirecional, mas plural e múltipla, congregando em algumas estratégias ambientais, por exemplo, diversas negações “anti” e viceversa. Propõe-se que sua leitura seja feita com este cuidado. De forma genérica, entretanto, as articulações ambientais são apresentadas como uma das possíveis respostas às pretensões “anti”. Assim, vislumbra-se que enquanto o “anti” nega a representação, por exemplo, o ambiental trabalha com uma das alternativas de superá-la: a espacialização; enquanto o “anti” pede pela desconstrução do objeto, o ambiental tenta fazê-lo a partir de propostas vivenciais; enquanto o “anti” nega a relação convencional entre o sujeito passivo e o objeto distante, o ambiental articula corpo e obra na duração da experiência, e assim sucessivamente. Todos os itens que compõem o quadro foram extraídos do texto elaborado até aqui, motivo pelo qual são apresentados neste momento de forma mais sucinta. Quadro 1 – Comparação entre o caráter “anti” e o caráter ambiental


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Fonte: Produzido pela autora

Pode-se afirmar, assim, que a atitude “ambiental” está contida na atitude “anti” a partir de ações que trazem implícitos seus questionamentos e negações. Operando a partir de ampliações, o caráter ambiental se revela em extensão tanto à (anti)arte, quanto à (anti)arquitetura, favorecendo um esclarecimento mais aprofundado a respeito das possibilidades e características de uma arquitetura ambiental.


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6.2. DE VOLTA AO TÉRREO: O AMBIENTAL NA ARQUITETURA Figura 80 – Cartão postal 16: A casa-contágio

Fonte: Produzido pela autora

Assim como a arte encontra em seu contexto provocações e latências que influenciam seu fazer, o mesmo se dá na arquitetura ainda que, por vezes, de forma mais lenta. É neste sentido que a esta não fica ilesa às problemáticas relacionadas às suas imagens, à espetacularização urbana, ao afastamento do cotidiano e à negligência do apelo corporal. Embora todas as arquiteturas que pressuponham uso abarquem a componente humana, esbarrando na vivência mesmo que de forma não intencional ou pouco atenta, muitas vezes o corpo é relegado a planos secundários em produções que priorizam princípios formais, construtivos, tecnológicos, mercadológicos, enfim. Com base nisso, as relações entre os espaços e os corpos são, por vezes, assépticas e distantes, fazendo com que uma expressão da qual a vivência é prerrogativa se distancie dela com resoluções afastadas do corpo. Isso facilita a criação de arquiteturas espetaculares, desconectadas da escala humana e de

suas

expressões

orgânicas

e

imateriais,

negando

afetos,

memórias,

necessidades cotidianas, entre outros fatores. Esta postura se deve à inúmeros fatores – alguns já descritos anteriormente – como a construção histórica da disciplina, a dinâmica econômica da sociedade atual,


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os interesses dos órgãos que, por vezes, financiam as arquiteturas e os contextos urbanos nos quais elas se inserem, por vezes como estratégias de promoção no mercado mundial. Neste sentido, Kwinter (2015, p. 65) afirma: O mundo mercantil em que vivemos, eficiente mas unidimensional, impulsionado por forças incansavelmente suplicantes, no qual praticamente só subsistem relações de troca, é um mundo em que, digamos assim, sofremos a intimidação implacável do projeto, em seu miasma de hiperestilo, afetação artificial e micromanipulação humana que antecipa todos os nossos movimentos e gestos.

Esta antecipação do projeto que visa controlar usos e dinâmicas é uma expressão antiambiental por excelência, que caracteriza boa parte das produções arquitetônicas contemporâneas expressas de forma antilabiríntica, afirmando-se a partir de determinismos, da intolerância a alterações e da rigidez propositiva. Ela revela o primeiro ponto a ser explorado na caracterização de uma arquitetura ambiental. Se na arte ambiental o artista respondia à necessidade de desintegração do objeto com a espacialização, provocando vivências e abrindo-se aos corpos, sua figura se desintegrava. A experiência de cada corpo reinventava a obra a partir de suas intenções, afetos, vontades, fazendo do artista um propositor inicial que não domina os desdobramentos de sua obra, mas compartilha sua criação. Assim, a autoridade de um artista que, sozinho, domina a significação da obra, é desconstruída na direção vivencial, insinuando novas relações e dimensões na atividade artística. Na arquitetura, por sua vez, esta abertura também pode se dar desconstruindo a figura do/a arquiteto/a e os determinismos de proposições rígidas e fechadas. Wisnik (2017, p. 98) enxerga esta transição em extensão ao urbanismo, relacionando-a ao ultrapassamento do ideal moderno: “superando a divisão racionalista da cidade em funções [...], a concepção ambiental se baseia numa trama de relações intersubjetivas mais abertas”. Segundo o autor, isso não só desloca o foco dos formalismos para questões mais complexas e subjetivas, como também revela a conexão constante e dinâmica que ecoa na cidade e em suas arquiteturas, clamando por flexibilizações e aberturas. Neste sentido, o/a arquiteto/a reificado/a, endeusado/a, que domina todas as etapas da vida de uma arquitetura – desde sua criação, passando pela inserção na cidade e em suas dinâmicas e alcançando seu uso – é desconstruído/a em uma


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abordagem ambiental na direção de um/a propositor/a que compartilha seu fazer. Ele/a se relaciona, assim, de forma igualmente direta com as necessidades e latências de seus contextos, aproximando-se do cotidiano ao entender que em suas expressões incidem valores e dinâmicas sociais indispensáveis às arquiteturas e à própria vida. Nas manifestações arquiteturais cotidianas “os acontecimentos não precisam ser ditados e programados por arquitetos. Uma arquitetura do cotidiano permite os ritos pessoais, mas evita prescrever rituais” (BERKE, 2015, p. 61). Ao contrário, ela se abre à criação e recriação de rituais, usos, configurações diretamente relacionadas aos corpos e suas necessidades, independente do resultado formal ou visual. Aliás, a própria ideia de resultado é questionada nas expressões cotidianas uma vez que elas estão em constante construção. A partir disso, percebe-se que o cotidiano tem uma componente imprevisível; “o próximo cotidiano não é descoberto por análises de mercado ou grupos de pesquisa” (BERKE, 2015, p. 62). Ele nasce da própria vivência, da evolução dinâmica das relações, de seu constante reinventar, revelando uma característica ambiental intrínseca por ser uma construção coletiva, constante e aberta agenciada pelos corpos e seus contextos. É necessário reconhecer, entretanto, que alguns cotidianos negam sua evolução natural ao serem influenciados por modos de vida fabricados e transformados em itens de consumo. Este, entretanto, não é o cotidiano ambiental, mas aquele “flerta, às vezes perigosamente, com a cultura de massa. No entanto, [o cotidiano ambiental] continua a ser o que ainda não foi cooptado” (BERKE, 2015, p. 63). De forma inversa, tampouco a atitude ambiental busca cooptar o cotidiano, mas dialogar com ele, flertar, contagiar-se, permitindo ser transformado por ele. Assim, além de pressupor a desconstrução do/a arquiteto/a que controla excessivamente a arquitetura, tanto espacial quanto temporalmente, a arquitetura ambiental sugere uma aproximação com o cotidiano. Deborah Berke (2015, p. 60) revela que este mundo é bastante complexo e rico, afirmando que “o mundo cotidiano é sensual. Atrai o olhar, e também o toque, a audição, o olfato. A arquitetura do cotidiano abarca os locais conhecidos por seu cheiro, as superfícies reconhecíveis por suas qualidades táteis, as posições estabelecidas por eco e reverberação”. Assim, a arquitetura ambiental, ao se aproximar do cotidiano, também se aproxima de um entendimento do corpo como um todo sensorial a partir do qual se constroem memórias, significações, afetos, enfim, que se manifestam em


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seus meios e contextos. Isso pressupõe, além de uma ampliação do conceito de corpo antecipada pela postura “anti” e efetivada em proposições “totais”, ou seja, que congregam diversas modalidades e categorias, uma atitude de respeito às preexistências e reconhecimento de suas manifestações. A arquitetura do cotidiano, portanto, pode inspirar fazeres cada vez menos agressivos, capazes de intervir minimamente em dinâmicas potentes e necessárias aos contextos em que se desenvolvem. Além de inspirar a figura do/a arquiteto/aurbano/a, assim, ela pode sugerir uma postura de arquiteto/a de imagens frágeis. É que a arquitetura do cotidiano “não procura a distinção tentando ser extraordinária [...]. Em sua muda recusa a dizer „Olhe para mim‟, ela não dita o que devemos pensar. Permite que formulemos nosso próprio significado” (BERKE, 2015, p. 60), dispondo-se à experiência e à significação de forma delicada e aberta. Tal postura é válida tanto no tratamento de arquiteturas já existentes, como na proposta de novas obras, sugerindo uma aproximação sensível do/a arquiteto/a a seu contexto e elaborações atentas e abertas a ele. É neste sentido que a obra de Oiticica opera exercícios importantes, sugerindo tanto a partir de suas proposições em espaços públicos, quanto das subversões realizadas em espaços institucionalizados – que podem ser interpretados como metáforas da cidade formal –, uma sensibilidade inspiradora na construção de formas orgânicas abertas à experimentação, imagens frágeis passíveis de reconfiguração constante e resistência à espetacularização em nome de uma conexão profunda e respeitosa com comunidades, preexistências físicas, dinâmicas sociais, enfim. Sperling

sintetiza

uma

possível

interpretação

da

arquitetura

como

manifestação ambiental a partir da obra de Hélio ressaltando seu afastamento de preocupações excessivamente (e, por vezes) exclusivamente objetivas e fechadas em um repertório restrito em nome de aberturas, contágios e apropriações. Segundo o autor, “a arquitetura como manifestação ambiental, no sentido de Oiticica, é, pois, estruturação de um campo e não formatação de uma forma; é abertura à construção pela experiência vivencial e não definição por completo em uma abstração projetual” (SPERLING, 2008). Ela pressupõe, assim, a negação do/a arquiteto/a como aquele/a que controla todas as etapas do projeto, a aproximação ao cotidiano e ao corpo como todo sensorial e a abertura dos corpos – tanto proponentes, quanto experimentadores – a alterações, influências, desconstruções e reconstruções, enfim, transformações em si, ultrapassando a rigidez em nome da flexibilização. As


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imagens fortes de arquitetura espetacular, neste sentido, podem ser contrapostas a microintervenções ambientais, exercitando formas orgânicas, vivenciais e abertas de construção compartilhada e aspirações menos visuais e mais sensoriais. No ponto de encontro entre devaneio e racionalidade, entre teoria e prática, representado pela volta ao térreo da Casa Ambiental, pode-se identificar alguns princípios de possíveis arquiteturas ambientais, ressaltando seu caráter de abrigo temporário que se reinventa constantemente em nome de um corpo ordinário e plural. Encerrando em seu cotidiano potencialidades labirínticas, este corpo pode agenciar

construções

coletivas

capazes

de

evocar

a

instabilidade

dos

Metaesquemas, a virtualidade das Invenções, a interatividade dos Núcleos, a continuidade dos Penetráveis, a imersão dos Projetos, a conexão contextual dos Bólides, o gesto dos Parangolés, a pluralidade de Tropicália, o inconformismo social e a potencialização do espaço urbano das Manifestações Ambientais, a abertura à fragmentação, ao Crelazer e ao contato crítico com a mídia das Cosmococas e as constantes (des)territorializações de Ninhos, Éden e Barracão. Neste encontro com a obra e os princípios de Hélio Oiticica, fazeres aderidos, críticos e sensíveis de arquitetura podem emergir, transbordando o contato com o cotidiano. Dado inicialmente a partir de “diagnósticos” que o pressupõem doente sem sequer vivenciá-lo,

este

contato

encontra

formas

de

expansão,

compartilhando

desconstruções com a arte não-representativa, espacializada e temporalizada e a antiarquitetura na direção do corpo não somente como aquele que usufrui, mas que interfere e cria junto. As potências, necessidades e afetos deste corpo encontram abrigo transitório, transformável e em constante estado de mutação no ambiental que aproxima arte, arquitetura e vida através da incorporação. Organizações espaciais fluidas e orgânicas, pautadas na experiência e na vivência direta, aberta e sensível são exemplos

de

manifestações

neste

sentido.

Qual

seriam,

entretanto,

os

procedimentos capazes de levar a uma arquitetura ambiental? Como praticá-la e como reconhecê-la? Entende-se que parte destas questões podem se revelar percorrendo um caminho atento a questões identitárias e experimentais, flexíveis e personalizadas, induzindo a novos exercícios de criação e tratamento de espaço em uma tentativa de superação das padronizações e dos universalismos.


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6.2.1. Considerações sobre um Programa Ambiental Arquitetônico Figura 81 – Cartão postal 17: A casa-gesto

Fonte: Produzido pela autora

Segundo comentado anteriormente, o caráter ambiental aparece referenciado de diversas maneiras na obra de Oiticica. Uma delas o elabora na forma de programa, a respeito do qual Silva (2014) afirma: “o Programa Ambiental referendou uma mudança geral ocorrida na arte do século 20. De fato, Oiticica trocou as categorias artísticas tradicionais pela contextualização da obra, seja no tocante aos seus efeitos visuais, táteis ou semânticos”. O esboço de um entendimento ambiental da arquitetura estende tais efeitos a seus domínios, exaltando possibilidades a serem exploradas neste sentido. Boa parte dos procedimentos de criação de arquiteturas ligados a programas arquitetônicos, entretanto, ainda não se abrem de forma suficiente a estes exercícios – ao menos nas correntes hegemônicas. O


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próprio conceito de programa é um dos elementos que pode atuar restringindo seu alcance. Segundo Vidler (2015, p. 248-249), a ideia de „programa‟ foi transformada na primeira época das vanguardas, partindo do significado que tinha no século XVIII – como um exercício de elaboração de projetos para estudantes de arquitetura –, em um conceito dominante que controla e produz a forma segundo uma compreensão detalhada de sua função.

Relacionado de maneira estreita ao binômio forma-função, o programa revelase, na acepção tradicional apresentada pelo autor, um procedimento limitado. Acredita-se que na contemporaneidade as relações que se traduzem em materialidade se expandiram para além das preocupações formalistas e funcionais e do determinismo de afirmações do tipo ação e reação, sugerindo uma necessidade de reforma deste conceito. Silva (2014) ainda afirma que “o Programa Ambiental ajuda-nos a refletir sobre os conflitos urbanos da cidade”, ampliando seu alcance e complexidade para além das restrições formais e funcionais recém descritas. Assim, verifica-se a possibilidade de se desenvolver um Programa Ambiental na arquitetura nos moldes de um programa arquitetônico alternativo, contagiado pela cidade e pela dimensão subjetiva de suas dinâmicas sem excluir preocupações formais e funcionais, mas tampouco atendo-se somente a elas. Acredita-se que um Programa Ambiental Arquitetônico, neste sentido, poderia fazer com que às funções de um programa funcional, por exemplo, correspondessem “ambiências”, em aplicação combinada a demais metodologias a fim de complementar os fazeres ampliando a atenção a suas diversas componentes. Alfonso Martinez reitera a importância de se dinamizar as estratégias projetuais salientando que, embora se reconheça a revolução da arquitetura do século XX, “é importante constatar a ausência de uma revolução metodológica semelhante no projetar" (MARTINEZ, 2000, p. 25). Sem a pretensão de revolucionar as metodologias, mas na tentativa de complementá-las, acredita-se que o Programa Ambiental é passível de formulação pormenorizada e aplicação experimental. Percebe-se, ao longo do estudo aqui realizado, que a obra de Hélio Oiticica se reinventa especialmente a partir do contato com o Morro da Mangueira, experiência por vezes apontada como a base de suas explorações ambientais. Em um contexto no qual se identifica uma abertura ao desenvolvimento de estratégias projetuais


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ambientais, reconhece-se a potência de se pensar fazeres arquitetônicos agenciados pela obra sensível e crítica do artista e, em especial, por sua vivência no morro. Seu Programa Ambiental “era composto por procedimentos que envolvem a participação do espectador, implicando o deslocamento de sentido de antigas proposições“ (SILVA, 2014). Tal deslocamento se revela especialmente importante quando se observa a desconexão de algumas das antigas proposições artísticas e arquitetônicas com realidades distintas da vida e da sociedade. É neste sentido que Paola Jacques resgata a figura da favela como potência de um novo fazer: Acreditamos que seja possível „urbanizar‟, no sentido de melhorar o urbano, preservando a alteridade das favelas, por meio de um outro tipo de metodologia de ação, sem projeto convencional, inspirada na própria estética da favela. E mais, essa outra forma de intervenção [...] pode e deve ser útil até mesmo para se atuar na própria cidade dita formal, principalmente nas áreas de contato [...] com os seus casos-limite, e a favela é só um deles. Aí, os métodos tradicionais da arquitetura e do urbanismo há muito tempo já não funcionam mais. (JACQUES, 2003, p. 153)

No caminho oposto de boa parte dos métodos tradicionais, verifica-se a possibilidade do Programa Ambiental firmar-se como alternativa que se esforça em reconhecer a alteridade ao vivenciá-la e agenciá-la em nome de sua preservação e valorização. Cabe salientar que, para Oiticica, o ambiental é “a reunião indivisível de todas as modalidades em posse do artista ao criar – as já conhecidas: cor, palavra, luz, ação, construção, etc., e as que a cada momento surgem na ânsia inventiva do mesmo ou do próprio participador ao tomar contato com a obra” (OITICICA, 1986, p. 78-79). Entende-se que esta ânsia pode se referir tanto a quem propõe a obra, quanto a quem dela participa, remetendo a necessidades nascidas do contato, da troca e do contágio. Uma vez que os procedimentos padrão de contato com o contexto podem não abarcar a complexidade e subjetividade implicadas na atitude ambiental, acredita-se que uma sistematização das preexistências em ambiências possa ser um dos caminhos para agenciar a transmutação de vivência em proposição. Sua elaboração pode inspirar-se na obra de Hélio que, segundo Wisnik (2017, p. 101), opera sempre no sentido de promover a experiência física do trabalho, trazendo o resultado da sua deambulação pela cidade e pelas vielas da imaginação, com seu mapeamento subjetivo, para a concretude de instalações


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espaciais, nas quais aquela cidade-mapa pode ser experimentada de outra forma: “um mapa no qual você entra”, toca, manipula, deita, dorme, devaneia.

Pensar em termos de ambiência a serem absorvidas e trabalhadas inspirandose em Oiticica não trata, portanto, de transferir passivamente sensações ou mesmo de reproduzir determinadas configurações espaciais, mas de referenciar suas subjetividades no intuito de compreender melhor o modo de vida e as necessidades locais e facilitar a identificação dos corpos com os espaços. É neste sentido que Silva (2014) afirma que “Oiticica não lidava com representações realistas da favela, mas com a materialização de determinadas qualidades que foram abstraídas desse modo de organização informal da cidade”. A leitura do contexto mediada pelo reconhecimento de ambiências é capaz, assim, de aportar referências a projetos e favorecê-los enquanto relações contextualizadas e cabíveis a seus propósitos e preexistências. Ao preocupar-se com o corpo e suas sensações, um Programa Ambiental Arquitetônico pode configurar-se de forma sensível visando à proposição de intervenções atentas a seus/suas experimentadores/as e suas relações. A definição mais clara do termo “ambiência” é um dos pontos de partida para a formulação do referido Programa. Arrisca-se dizer que elas insinuam sensações advindas da totalidade espacial – seus aspectos físicos, sensoriais, dimensões, cores, relações, etc. – e que podem favorecer uma aproximação com a identidade, a memória e a carga tanto objetiva quanto subjetiva dos lugares de intervenção. A partir deste reconhecimento, aliado a outras formas de contato com o lugar e seus habitantes, é possível abstrair características marcantes a serem inseridas em novas propostas, não de forma literal, mas capaz de remeter a imagens conhecidas a fim de favorecer a apropriação e o reconhecimento. Acredita-se que conceber um projeto a partir de um programa pautado em ambiências facilita a aderência da proposta – que pode ser tanto urbana, quanto arquitetônica, compreendendo desde novas proposições até pequenas reformas e alcançando tanto escalas mais ampliadas até alterações menores em interiores ou espaços mais restritos. É necessário, neste sentido, levar em conta as especificidades de cada escala e situação para formular e testar o Programa, adaptando-o a diversas possibilidades, além de trabalhar de forma mais detida o próprio conceito de “ambiência”, estudando-o a partir das teorias de Jean-Paul Thibaud, Edgar Graeff, alcançando, inclusive, aproximações com a noção de “atmosfera” teorizada por Peter Zumthor


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(2009). Em uma análise superficial, acredita-se que estas pertençam às ambiências, ou seja, que estejam contidas nelas como algumas de suas características. Entretanto, cabe um olhar mais aprofundado para esclarecer efetivamente os termos, melhorando sua compreensão e relacionando-os de forma mais clara. Aproximações com outras metodologias que já tratam destes termos e os aplicam diretamente em propostas reais também podem ser feitas dando prosseguimento a esta pesquisa no esboço mais concreto de um Programa Ambiental Arquitetônico. Indefinições à parte, o que se pode afirmar com maior contundência neste momento é a possibilidade deste Programa constituir-se como negação da rigidez compositiva e dos efeitos pré-determinados – que enunciam reações-padrão em vez de abrir-se à pluralidade dos corpos – em nome de ressignificações singulares e do “afastamento direto de qualquer modelo universal” (GUIZZO, 2018). O Programa Ambiental

ajuda

a

despertar,

assim,

o

reconhecimento

da

alteridade,

compreendendo a cidade como metáfora direta das necessidades e potencialidades de seus corpos e motivando a aproximação com o cotidiano. Ele pode auxiliar no agenciamento da desconstrução progressiva das estratégias de espetacularização, revelando no ordinário a fragilidade e organicidade que interessam a uma arquitetura ambiental. Este tópico afirma-se, neste sentido, como uma antecipação dos encaminhamentos desta pesquisa, sugerindo uma tentativa de elaboração e aplicação prática no intuito de atestar o alcance e a potência de um programa arquitetônico alternativo pensado nestes moldes. 6.2.2. Caráter e Gesto Encerrar a festa na Casa Ambiental, subir ao sótão para vislumbrar seus ecos com certa distância e voltar ao térreo reconectando-se com questões estruturais pode parecer, por um momento, desesperador: a bagunça, a sujeira e o incômodo dos vizinhos revelam todo o trabalho que ainda será necessário para organizar, limpar, polir, selecionar, adaptar e dialogar. Entretanto, a celebração não precisa cessar. Ela é, justamente, processo que permite intervalos para sistematização e reorganização, iniciando um movimento que pode ser finalizado ou aprofundado em estudos posteriores. Neste momento, é possível identificar de forma resumida uma ligação lógica e potente entre algumas das questões até então abordadas (Figura 82).


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Reiterando a importância de se pensar a arquitetura ambientalmente, transformando caráter em gesto – ação poética que engloba corpo e revolução – pode-se afirmar que ao criticar e resistir a aspectos problemáticos da arquitetura, o caráter “anti” se revela importante ponto de articulação de uma possível transformação. Uma antiarquitetura pode atuar questionando fazeres e provocando alternativas ambientais, ou seja, estratégias capazes de reconhecer as negações “anti” para transformá-las em novos gestos. O caráter ambiental pode ser entendido, neste sentido, enquanto derivação do caráter “anti” capaz de fomentar recriações nascidas do contágio e da abertura ao corpo, ao cotidiano, à vida, enfim. Atenta às formas de apropriação, às preexistências, às intenções, aos afetos e à fragilidade do que é transitório e temporário, a arquitetura ambiental se revela como ponto de chegada dos desdobramentos de caráter em gestos. Entende-se aqui que uma de suas inúmeras derivações possíveis é o Programa Arquitetônico Ambiental, entretanto, várias alternativas podem surgir. Aberto e mutante, o ambiental se apresenta inspirando e reconhecendo gestos.


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Figura 82 – Síntese gráfica relacionando arquitetura, caráter “anti” e caráter ambiental

Fonte: Produzido pela autora


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7. POÉTICAS DO GESTO: ARQUITETURAS AMBIENTAIS Casa é esse espaço onde a gente mora./Casa tem chão. Tem teto./Mas o que é chão quando habitamos um rio?/O que é teto quando podemos tocar o ar? Construir o morar é ter tempo para buscar tempo/de experimentar a casa, a cidade, o espaço./E encontrar, em cada um de nós,/o habitar que a gente quer viver. Construir uma casa é mais do que erguer paredes./Pode, inclusive, ser derrubar cada uma delas./ Construir o morar é mergulhar no que é fluxo,/com a coragem de não entender para compreender junto. Exercitar memórias e sonhos,/Despertar a nossa própria criação. É ouvir o sentir para fazer o sentido. (TERCEIRA MARGEM)

Na busca por uma materialização da teoria até então apresentada busca-se reconhecer,

neste

momento,

aproximações

com

algumas

manifestações

arquitetônicas contemporâneas nas quais se podem reconhecer traços ambientais inspiradores. Mesmo não tendo sido formuladas a partir de metodologias especificamente ambientais ou mesmo não aplicando de forma intencional – ou rotulada – o caráter ambiental, estas manifestações se destacam pela abertura ao corpo e ao não-programado e permitem vislumbrar algumas características importantes na compreensão de uma arquitetura ambiental. Elas foram escolhidas pela forma como atravessam a autora e a temática aqui tratada e pelas aproximações por vezes quase literais a algumas obras ambientais de Oiticica, revelando-se ora Ninhos, ora Parangolés, ora Penetráveis, ora Invenções, entre outras manifestações oiticiquianas. O intuito deste reconhecimento é aprofundar algumas questões já esboçadas nas aproximações que constam no Capítulo 4 do Bloco 1, realizadas de forma mais contida, antecipando relações. O diálogo entre as obras a serem apresentadas a seguir e as manifestações tanto artísticas quanto arquitetônicas já abordadas anteriormente é inevitável e se revela de forma mais enfática referenciando os Ninhos e os Penetráveis. Cabe ressaltar que a principal abordagem do caráter ambiental aplicado à arquitetura tratada neste trabalho referencia, a partir da obra de Hélio Oiticica, ações contínuas, transformáveis e abertas que dialogam diretamente com os preceitos de uma antiarte e com a consequente resistência às imagens fortes, às formas-cristal e ao afastamento do corpo e do cotidiano. Embora muitas outras interpretações possam ser feitas e muitas outras obras ainda possam ser referenciadas, estes preceitos

baseiam,

aqui,

a

aproximação

com

dois

gestos

arquitetônicos


223

contemporâneos: as Casas da Quinta Monroy, propostas pelo escritório Elemental, sob coordenação do arquiteto Alejandro Aravena e o Memorial do Holocausto, concebido por Peter Eisenman. Cada uma das obras pertence a um contexto físico diferenciado – Chile e Alemanha, respectivamente – mas esta distância física não se repete temporalmente, uma vez que elas foram inauguradas com menos de um ano de diferença. Demonstrando semelhanças que ultrapassam fronteiras e atravessam estilos a partir da busca comum por expressões mais próximas do corpo e do cotidiano, as obras variam em uso: enquanto a primeira corresponde a um programa residencial, a segunda caracteriza-se quase enquanto monumento com forte uso público. O Memorial poderia ser considerado como pertencente a um programa institucional, entretanto, suas articulações denotam tamanha desinstitucionalização que o termo foi suprimido de sua caracterização. O mapeamento das duas obras mescla experiências da autora – no caso do Memorial – com revisões críticas, relatos de vivências feitos por não-arquitetos/as e afirmações de seus próprios arquitetos, fundindo diversos sistemas, culturas, desígnios, sentidos, enfim, compondo uma narrativa fragmentária e afetiva. Inúmeras outras leituras sobre estas obras são possíveis, entretanto, apresenta-se aqui o manifesto de experiências pessoais respaldadas pelos agenciamentos de Hélio Oiticica e pelas impressões, desejos e construções de sentido de alguns de seus criadores – arquitetos/as e não-arquitetos/as. Busca-se evidenciar, assim, uma progressiva tomada de consciência a respeito do valor do corpo e da dimensão humana, subjetiva e múltipla, na arquitetura – teoria e prática – endossando o apelo prático das questões até aqui apresentadas. Acredita-se que estes apontamentos podem ajudar a desenvolver pesquisas futuras e esclarecer algumas derivações dos diálogos entre partes da arte de Hélio Oiticica e do contexto atual da arquitetura. Finalmente, cabe afirmar que as obras aqui apresentadas têm como principal ponto comum que as direciona ao ambiental a concretização de poéticas do gesto. Elas reúnem tanto o gesto criador tolerante e aberto, quanto os gestos surgidos da apropriação e da recriação constante e coletiva. Tanto um, quanto o outro, derivam da contaminação com a vida, caráter e programa tanto da Arquitetura-Ninho e da Arquitetura-Penetrável apresentadas a seguir, quanto de qualquer expressão ambiental.


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7.1. UMA ARQUITETURA-NINHO: AS CASAS DA QUINTA MONROY Pensar em uma expressão arquitetônica enquanto ninho evoca a figura da casa de forma quase imediata. Resgatando a imagem orgânica extraída dos arranjos naturais dos pássaros e passando pelas apropriações que a transferem a itens de mobiliário de forte apelo afetivo, o imaginário comum já permite inúmeras aproximações entre a arquitetura e os ninhos. Acredita-se, inclusive, que ele tenha influenciado diretamente a ação de apropriação do termo pelo próprio Oiticica, que o transferiu a obras capazes de simular moradias e motivar apropriações. Entretanto, o que o artista transportou a suas proposições assim batizadas extrapola os limites do abrigo que abraça sugerido por uma aproximação inicial com o termo. Os Ninhos de Hélio referenciam especialmente o caráter construtivo das habitações pacienciosamente erigidas pelos pássaros, adaptadas, construídas e reconstruídas como depósitos de cotidianos e afetos sedimentados, assentados em forma de paredes, pisos e coberturas que se reinventam, trocam de lugar e configuram um processo de construção lento e constante. A partir deste caráter construtivo que é ao mesmo tempo material e imaterial, Oiticica se aproxima de inúmeras outras questões, incluindo as que já foram discutidas anteriormente, como a vida em comunidade, a

transformabilidade,

a

conexão

direta

com os sujeitos, o

descondicionamento dos corpos e da obra, a relação entre diversas escalas, entre outras. Concebendo cápsulas justapostas e convidando seus ocupantes a apropriarse delas levando objetos pessoais e transformando-as conforme sua necessidade, Hélio propôs Ninhos dentro de universidades, museus e de seu próprio apartamento empregando estratégias e motivações bastante semelhantes às utilizadas pelo escritório Elemental na proposta para um espaço potente e plural: a Quinta Monroy, em Iquique no Chile. Coordenada pelo arquiteto mexicano Alejandro Aravena, a ação do Elemental neste contexto consistiu em um projeto de habitação social realizado com o intuito de melhorar a densa ocupação informal que se desenvolvia na área desde a década de 1970. Para compreender melhor o projeto e sua ligação direta com os Ninhos oiticiquianos – indo além do apelo residencial –, cabe resgatar um pouco de sua história e desafios: o terreno da Quinta Monroy tem cerca de cinco mil metros quadrados e remete a um espaço agrícola que havia sido explorado por uma cooperativa até o golpe militar de 1973, quando seus donos foram exilados


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(HICHE, 2016). A partir de então, as terras ficaram sob responsabilidade do Sr. Monroy que alugava pequenas casas ou mesmo parcelas do terreno para que famílias construíssem suas próprias moradias. Em apenas quinze anos esta área já era um dos assentamentos mais densos do Chile (HICHE, 2016), compondo um importante reduto de resistência à gentrificação urbana. Uma das principais intenções do projeto realizado pelo escritório chileno e inaugurado em 2004, neste sentido, foi evitar que as famílias residentes na Quinta Monroy se exilassem nas periferias da cidade em função da pressão crescente do mercado imobiliário sobre a área, que hoje faz parte da região central da cidade. Financiado pelo Estado, o projeto dispôs de um orçamento relativamente baixo frente ao déficit de moradias que necessitava suprir, exigindo construções compactas e soluções econômicas, capazes de otimizar área e custos. Entretanto, durante o processo de projeto – que foi desenvolvido com forte viés participativo –, descobriu-se que a população da Quinta Monroy queria manter, na medida do possível, sua configuração original (Figura 83), estruturada a partir de residências isoladas, rechaçando algumas das soluções usuais que poderiam otimizar mais facilmente o terreno e os recursos financeiros disponíveis. Neste sentido, o projeto para as Casas de Iquique motivou a “busca por respostas imaginativas e não necessariamente convencionais aos complexos problemas de uma realidade social e urbana tão estimulante quanto desigual” (HICHE, 2016). Os desafios com os quais o projeto teve que lidar foram inúmeros e acredita-se que boa parte deles surgiu, justamente, pelo contato direto tanto com as vontades e afetos dos moradores da Quinta, quanto com a herança histórica e social do país. Esta herança remete especialmente à construção dos programas de moradia no Chile, contexto no qual se destaca a Operación Sítio, idealizada na década de 1960, e a ditadura de Pinochet, que se desenvolveu entre 1973 e 1990. Enquanto no momento da ditadura, marcada pelo modelo neoliberal que “instalou a ideia da moradia como um bem de consumo e radicalizou a figura de um aparato estatal com atribuições limitadas no desenvolvimento urbano” (HICHE, 2016), realizou-se a cessão de inúmeros terrenos para a especulação imobiliária e agravou-se consideravelmente a problemática habitacional no país, a Operación Sítio se deu inspirando medidas mais promissoras na área. Idealizada como um plano de emergência para responder a uma situação caótica “diante de um cenário de escassez extrema e da necessidade de massificar o acesso à habitação”


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(HICHE, 2016) a Operación considerou que “era razoável substituir a entrega de casas pela de terrenos equipados e urbanizados a baixo custo, para deixar a construção nas mãos dos próprios habitantes” (HICHE, 2016). Assim, era mais fácil distribuir os recursos – e ampliar seu alcance – e depositava-se na própria população a responsabilidade sobre a construção de sua moradia. A Operación destaca-se, neste sentido, por descentralizar o domínio sobre o projeto e a execução e negar as replicações tipológicas características dos procedimentos-padrão na área da habitação popular. Figura 83 – Casas da Quinta Monroy antes da intervenção

Fonte: https://au.pini.com.br/2016/03/quinta-monroy-12-anosdepois-uma-analise-da-habitacao-social-de-alejandro-aravena/

Esta breve revisão contextual revela algumas das principais bases sobre as quais se assenta a intervenção do Elemental em Iquique: o forte caráter de comunidade, a busca por moradias isoladas e o prenúncio de propostas abertas a construções coletivas. Tais bases revelam uma potente conexão com as preexistências locais e inspiram soluções que aproximam a proposta para as Casas da Quinta Monroy dos Ninhos oiticiquianos. A primeira delas, o caráter comunitário, foi trabalhada a partir de um intenso processo participativo e da estratégia de organização do terreno, que foi dividido em pátios ao redor dos quais as casas foram distribuídas (Figura 84). Nas palavras da equipe de projeto, “ao agrupar as 100 famílias em 4 grupos menores de 20 famílias cada um, conseguimos uma escala urbana pequena o suficiente para permitir aos moradores estabelecerem acordos, mas não tão pequena a ponto de eliminar as redes sociais existentes” (ELEMENTAL, 2012), trabalhando com a transição entre áreas públicas, semipúblicas e privadas e alcançando diversas escalas. Esta estratégia de implantação que favorece a criação de micro-comunidades em uma comunidade maior serve,


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ainda, de metáfora à pluralidade de perfis e necessidades que dispensa procedimentos padronizadores. Nas palavras de Patricio Hiche (2016), “a moradia social é, segundo esse olhar, um domicílio urbano e a porta de entrada da família a uma rede de oportunidades e de serviços que excede os limites da propriedade privada” e das restrições espaciais e sociais, articulando moradias e sujeitos em uma rede urbana tanto física, quanto imaterial; de relações coletivas. Figura 84 – Implantação de um conjunto de casas da Quinta Monroy

Fonte: https://au.pini.com.br/2016/03/quinta-monroy-12-anos-depoisuma-analise-da-habitacao-social-de-alejandro-aravena/

A semelhança com os Ninhos oiticiquianos revela-se, aqui, de forma quase literal, organizando módulos justapostos segundo uma lógica que equilibra certo nível de rigidez compositiva com aberturas e tolerâncias a apropriações e formações comunitárias. A ocupação das residências e a distribuição de seus moradores se deram, neste sentido, explorando a participação da comunidade e exaltando “a correspondência entre redes sociais existentes e a ocupação espacial do conjunto” (HICHE, 2016), que visou preservar as relações já desenvolvidas e os laços já estreitados. Em análise posterior do projeto, a equipe chega a salientar que esta estratégia configurou vizinhanças bastante homogêneas e que poderia ter sido mais interessante para a vida comunitária ter estimulado uma maior heterogeneidade entre os grupos (ELEMENTAL, 2012) a fim de distribuir as lideranças e fortalecer todas as pequenas agrupações. Entretanto, esta não parece ser uma variável sob controle direto dos/as arquitetos/as e planejadores/as, motivo pelo qual a organização adotada se relaciona diretamente com as configurações preexistentes e nascidas da organização espontânea da comunidade. O respeito e a sensibilidade ao contexto físico, social, e histórico constituem, assim, uma primeira aproximação a


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um caráter ambiental na construção das casas. A aproximação entre arquitetos/as e a comunidade, a consideração de sua forma de vida anterior – e mesmo a vivência desta organização –, e a participação direta das famílias nas decisões projetuais transcendendo demagogias e fortalecendo uma efetiva aproximação, absorvendo interferências e reinventando o projeto, denotam forte abertura e desprogramação em alguns níveis do projeto. Entende-se esta atitude como uma das formas de aplicação prática da postura inspirada por Oiticica na arquitetura, referenciando especialmente o paralelismo com os Ninhos ao abrir-se às micro-comunidades que ressignificam sua apropriação no âmbito da comunidade maior. Uma aproximação ainda mais interessante, entretanto, pode ser feita quando se analisam os efeitos do desejo da população da Quinta Monroy por seguir vivendo em casas isoladas. Buscando aliar o orçamento disponível com a otimização da área do terreno e a demanda da comunidade, a equipe de projeto chegou a uma solução bastante interessante que pode ser considerada a principal característica deste projeto. Remetendo à estratégia da Operación Sítio, a ação coordenada por Alejandro Aravena, Tomás Cortese e outros/as arquitetos/as e não-arquitetos/as substituiu a entrega da moradia pronta pelo fornecimento de uma estrutura básica e de possibilidades abertas de expansão e alteração. Os recursos financeiros disponíveis permitiam que fossem construídas moradias de 30m², o que, na visão dos/as arquitetos/as envolvidos/as, correspondia à metade da metragem ideal para uma casa confortável. Frente a isso, optou-se por erigir metade de cada uma das casas – construindo a parte mais onerosa e tecnicamente mais problemática, como as áreas molhadas e circulações verticais – deixando a outra metade passível de ser construída a partir das ações e possibilidades de cada um em áreas previstas para expansão. O projeto foi entregue, assim, com um conjunto de casas geminadas a nível térreo e com espaços livres em metade do piso superior, para os quais as construções poderiam se estender com certo controle (Figura 85). Nas palavras do ELEMENTAL (2012), “por um lado queríamos demarcar (mais que controlar) a construção espontânea para evitar a deterioração do ambiente urbano no tempo e por outra parte facilitar o processo de ampliação de cada família”. Assim, a escolha material – que se vale de partes removíveis para a futura ampliação – e tipológica são justificadas, bem como a aproximação com uma arquitetura-Ninho. À semelhança das cápsulas oiticiquianas, passíveis de serem apropriadas e alteradas e realizando a pretensão do artista de compor comunidades


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expansíveis com seus Ninhos, as Casas da Quinta Monroy reúnem estratégias históricas do programa de moradias do país em que se inserem com necessidades específicas de uma comunidade expressando arranjo e estratégias – acidentalmente ou não – ambientais. As áreas de expansão das Casas expressam-se livremente, conforme as necessidades e possibilidades de cada morador (Figura 86) e compõem um todo diverso em constante processo de transformação. Conforme citado, entretanto, “a arquitetura do projeto assegurava certo controle sobre as volumetrias” (HICHE, 2016), definidas dentro uma matriz geométrica e regular. Esta atitude é aqui entendida não a partir do intuito de exercer certo domínio plástico sobre a composição das expansões, mas de restringir as áreas de influência de cada unidade, evitando conflitos e invasões tendo em vista as possibilidades estruturais do conjunto, sua situação urbana e comunitária. Ela se revela como uma forma cautelosa de viabilizar a liberdade e a autonomia no espaço urbano, buscando favorecer a harmonia e o convívio social de maneira justa, evitando distribuições desiguais, privatizações de espaços públicos e monopolização das áreas destinadas à expansão. Figura 85 – Alejandro Aravena/Elemental, Casas Quinta Monroy: Composição original

Fonte: http://arquitetesuasideias.com.br/2016/04/13/quinta-monroy-um-exemplo-de-habitacao-social/


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Figura 86 – Alejandro Aravena/Elemental, Casas Quinta Monroy: Composição original

Fonte: http://arquitetesuasideias.com.br/2016/04/ 3/quinta-monroy-um-exemplo-de-habitacao-social/

A abertura, mesmo que comedida, é, assim, um grande diferencial do projeto, apresentando-se em diversos momentos. A possibilidade de agenciamento de expansão pela própria comunidade é uma estratégia bastante inteligente que soluciona parte da problemática de escassez de recursos financeiros a partir de um exercício ambiental de tolerância – e até incentivo – de intervenções pessoais e ressignificações. Entretanto, apesar de seu potencial e de suas boas intenções, esta solução também apresenta problemáticas que devem ser consideradas. Segundo Patricio Hiche (2016), a estrutura “literalmente solidária e construída dentro de margens bem ajustadas, coloca hoje um dos pontos críticos para a evolução do projeto: unidades que funcionam com relativa autonomia em seu uso, mas que estruturalmente mantêm compromissos importantes”, uma vez que determinadas alterações podem afetar outras unidades. Além disso, nem todas as expansões realizadas limitam-se à área prevista pelo projeto (Figura 87), revelando que mesmo valendo-se de estratégias para delimitação e certo controle, a negociação urbana extrapola os domínios da arquitetura. Estas questões apontam para uma necessidade de acompanhamento constante tanto dos/as arquitetos/as, tendo em vista a possibilidade de comprometimento estrutural, quanto da própria comunidade, revelando a necessidade de uma gestão democrática e ativa do conjunto. Entendese, entretanto, que estes desafios são intrínsecos à dinâmica urbana e que não desmerecem o projeto aberto que não apresenta um estado final, expandindo-se e reinventando-se de forma constante. Assim, visando resguardar a integridade


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estrutural e a segurança dos moradores, além da convivência harmônica da comunidade, intervenções como esta da Quinta Monroy aludem à importância de processos de gestão constante e transdisciplinar dos espaços, facilitando negociações e reformas. Figura 87 – Expansões realizadas pelos moradores da Quinta Monroy

Fonte: https://au.pini.com.br/2016/03/quinta-monroy-12-anosdepois-uma-analise-da-habitacao-social-de-alejandro-aravena/

As Casas da Quinta sugerem, a partir desta leitura, que a atividade dos/as arquitetos/as não se restringe a momentos de concepção e entrega de projetos, mas se estende ao longo de toda a sua duração, ampliando a ação para além das etapas criativas e alcançando gestão de conflitos, acompanhamento pós-obra (conceito que se desintegra em um conjunto que está sempre se refazendo, mas que aqui referencia a primeira entrega da proposta mediada por arquitetos/as), pequenas reformas e assistência em adaptações posteriores. Neste sentido, a Quinta Monroy ainda agencia outro reconhecimento importante enquanto manifestação ambiental, remetendo tanto à desconstrução quanto à reinvenção da figura do/a arquiteto/a. Além de compartilhar sua atividade e despir-se da figura de gênio criativo, diluindose nas criações coletivas, o/a arquiteto/a amplia seu fazer para etapas que transcendem a primeira entrega das obras. O estreitamento dos vínculos com a comunidade e mesmo a vivência direta de suas necessidades e potencialidades pode incutir, nos profissionais, inquietações e saberes cada vez mais aderidos e pertinentes aos contextos sociais e físicos onde atuam, ampliando seu repertório e facilitando fazeres críticos e conscientes. Percebe-se, assim, que uma abordagem ambiental da arquitetura está profundamente ligada a uma mudança de postura dos/as arquitetos/as e de sua forma de relação com as comunidades nas quais


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intervêm, encontrando na vivência – na ativação de seu próprio corpo – e na abertura que compartilha as etapas de projeto e renuncia a imagens fortes e formascristal, possibilidades promissoras na aproximação com o cotidiano. A partir do exposto, pode-se afirmar que o exercício ambiental comunitário que teve lugar na Quinta Monroy revela potências interessantes e desafios que ainda podem ser pensados com maior cuidado. O exercício de uma imagem arquitetônica frágil, aberta a intervenções dos corpos na personalização do espaço e em sua adaptação às necessidades pessoais e em constante processo de transformação esbarra em inúmeras questões e amplia a complexidade da arquitetura. Entretanto, remete a afetos, subjetividades, identidades e construções pessoais que extrapolam os efeitos espetaculares, atravessando corpos e potencializando o alcance das arquiteturas, mesmo que em escala micro. Despidas de pretensões absolutistas, as Casas da Quinta revelam arquitetos/as que são catalisadores de relações e construções físicas e sociais, reinventando seus arranjos e reconfigurando sua paisagem. Aos poucos, elas apresentam novos materiais, cores e relações entre cheios e vazios, constituindo uma comunidade orgânica, em constante estado de reinvenção. Sua autoria (intencionalmente) compartilhada deposita na comunidade a responsabilidade de expressar sua própria identidade, favorecendo a autenticidade em oposição às alteridades fabricadas de forma romantizada e descontextualizada. Problemas e potências, assim, se revelam, levando o sistema criado pelo Elemental a ser prestigiado internacionalmente. Suas estratégias foram adaptadas a outros bairros e cidades e, recentemente, as plantas e detalhamentos técnicos da intervenção foram compartilhados no site do escritório18 para ampla adaptação e uso em outras propostas. Junto aos projetos técnicos disponibilizados em formatos editáveis, são apresentadas diretrizes básicas na criação das moradias em um texto que induz ao pensamento crítico e ao reconhecimento de necessidade de adaptação a cada contexto. Acredita-se que esta postura de compartilhamento dos projetos para que outras comunidades, órgãos públicos e arquitetos/as possam adaptá-los a outras realidades e necessidades denotam um reconhecimento da própria arquitetura como imagem frágil, ou seja, composta por estratégias, metodologias, materiais que não são estáticos, universais e eternos, mas transformáveis, abertos,

18

Disponível em: <http://www.elementalchile.cl/contacto/>. Acesso em 05 set. 2018.


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passíveis de reformas e reinvenções. Cabe destacar, ainda, a escolha do arquiteto chileno Alejandro Aravena como ganhador do Pritzker de 2016. Prêmio por tantas vezes concedido aos chamados star architects, responsáveis por boa parte da produção e popularização das imagens fortes de arquitetura, seu direcionamento a um arquiteto de imagens frágeis, orgânicas, conectado aos cotidianos e ao ordinário, aponta para uma valorização progressiva de um exercício mais crítico e social da profissão, afastando-a do exclusivismo de produções espetaculares e midiáticas. Acredita-se, então, que especialmente a partir do forte caráter comunitário, da busca por garantir a individualidade sem negar a coletividade e da abertura a construções coletivas e intervenções constantes, as casas da Quinta Monroy ilustram de forma muito clara a tolerância estética, a consideração da experiência humana e a sensibilidade no trato com a alteridade do corpo e suas subjetividades típicas do caráter ambiental. Dialogando com uma compreensão expandida do papel social do/a arquiteto/a, elas ensaiam uma abordagem antiarquitetônica, reformando ações e desconstruindo resultados ao afastar-se de padronizações e exercitar gestos coletivos e democráticos. A semelhança com os Ninhos de Oiticica, assim, revela-se de diversas formas, acessando desde o imaginário comum que os relaciona a um programa residencial, até parte das transcendências operadas por Hélio. Em suas obras assim intituladas, o artista criava lugares que demarcavam intimidades dentro de espaços normalmente públicos, permitindo ao corpo abrigarse e ressignificar. Este corpo é essencialmente um corpo diverso – tanto do corpo propositor, quanto dos corpos normatizados e normatizadores que, por vezes, regulamentavam o espaço maior nos quais os Ninhos se inseriam, em uma alusão direta aos poderes urbanos que regem a lógica construtiva dos ninhos da vida cotidiana. As Casas da Quinta denotam semelhanças com estas relações em diversos níveis, como que compondo Ninhos dentro de Ninhos, questionando autoridades e reconstruindo sentidos. É que cada cômodo pode ser Ninho em uma casa que, inserida na micro-comunidade instalada ao redor de um pátio também é Ninho, compondo um Ninho maior que caracteriza a Quinta no grande Ninho que é a comunidade dentro da cidade-Ninho e assim sucessivamente. Trata-se da progressiva ampliação de escalas referenciada anteriormente e da construção de individualidades coletivas que se torna visível desde o exterior das Casas. O interior das habitações transborda ambientalmente para os espaços intermediários, contendo sua expansão orgânica apenas a partir do contato com as


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paredes dos vizinhos. É como se a intimidade removesse as paredes (idealizadas para tal) e se expusesse no exterior, revelando a singularidade de cada morador em um espaço que é íntimo e, ao mesmo tempo, quase público. Este espaço é entendido como o êxtimo citado anteriormente e sua potência constitui uma metáfora à impossibilidade de contenção das vontades do corpo, especialmente no que se relaciona ao seu abrigo. As Casas da Quinta Monroy estruturam-se, assim, como pequenas casas ambientais que explodem suas vontades contidas expressando-se a partir da poética da extimidade que é, também, uma poética do gesto. Nas Casas em questão, este gesto é quase violento, dada a delicadeza da condição social que representa: apesar de não deixa de encerrar a intimidade, a escancara para os pátios e os vizinhos, parodiando o Bólide realizado por Oiticica em homenagem à Cara de Cavalo ao enunciar que “ali está e ali ficará”. As casas e seus corpos já não se contentam em resguardar um “silêncio heroico”, mas gritam os afetos e significados que não se formam em nome ou a partir da contemplação, mas do tato, da sinestesia, do inconformismo e das batalhas e potências da vida cotidiana. Cabe ressaltar que o conceito de extimidade referenciado neste texto é apresentado

intermediado

pela

leitura

que

Tania

Rivera

(2012)

faz

de

Jacques Lacan – psicanalista francês – estendendo-o à arquitetura e, em especial, ao que a autora considera uma arquitetura do sujeito. Para Tania, a obra de Oiticica agencia essa arquitetura tanto no sentido de (re)formar e/ou (re)construir o sujeito, como na alusão direta às espacializações, referenciando a construção do sujeito em conexão direta com a construção de seu lugar. Neste ponto, fundem-se sujeito e objeto, espaço público e privado, pátio interno (que é ao mesmo tempo externo) e abrigo, revelando uma arquitetura ambiental e sugerindo que manifestações deste tipo não restringem suas apropriações a divisões pré-determinadas, mas as expandem de forma labiríntica e em continuidade, fazendo dos Ninhos, Éden e de Ninhos e Éden, Barracão. As Casas da Quinta Monroy aludem, assim, tanto aos Ninhos de Oiticica, quanto às continuidades que eles insinuam, remetendo a diversas questões e escalas. Expandidas, elas referenciam, por exemplo, conjuntos distintos que configuram uma comunidade interligada por coletividades agregadoras e não-homogeneizantes, aproximando-se do Éden oiticiquiano. Esta microcomunidade observada dentro do contexto maior da cidade pode remeter, ainda, a um grande Barracão no qual todas as partes se ligam de forma orgânica e contínua. É possível perceber, então, que o caráter ambiental pode se manifestar a partir das


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Casas da Quinta Monroy em diversas escalas e a partir de inúmeras formas de apropriação, ressaltando sua pluralidade e alcance expandido na concretização de uma arquitetura ambiental. Podem-se vislumbrar, ainda, algumas aproximações mais literais entre as Casas e os Ninhos de Hélio, remetendo tanto à materialidade quanto ao papel dos corpos na constituição de ambos, além do processo de crescimento contínuo que caracteriza as duas expressões. Quanto à materialidade, cabe referenciar semelhanças entre a fluidez dos tecidos que compunham a expressão oiticiquiana e a leveza e efemeridade dos fechamentos removíveis que caracterizam partes da proposta arquitetônica de Aravena; quanto aos corpos, nos dois casos eles operam pelo sentido de transformação, e não por princípios de transferência, nos quais as obras são depositárias de corpos e os corpos são depositários dos sentidos atribuídos por estas. O que ocorre é exatamente o oposto: corpos e Casas se ressignificam e alteram seus sentidos constantemente a partir de trocas e influências mútuas, convertendo-se quase que em expressões distintas de uma mesma relação. No que diz respeito ao processo de crescimento, por fim, referencia-se especialmente o caráter orgânico, identificado por Oiticica como característico das comunidades. Os Ninhos também podiam expandir-se e replicarem-se a ponto de conformarem

expressões

agregadas

e

interconectadas

à

semelhança

da

estruturação de modos de vida coletivos e organizados em rede. É neste sentido que se destaca uma última aproximação, dentre tantas outras possíveis, entre a produção de Oiticica – em especial os Ninhos – e a dinâmica de crescimento das Casas da Quinta Monroy: o diálogo com lógicas de constituição urbana e a reforma de modos de planejamento afastados das manifestações espontâneas e cotidianas. Expandindo a compreensão dos Ninhos e das Casas enquanto objetos singulares para uma caracterização de comunidades que se transforma progressivamente, ou seja, envolve a dimensão temporal em sua constituição, pode-se vislumbrar a potência de fazeres urbanos menos preocupados em organizar espacial e formalmente agrupamentos de comunidades e mais conectados à necessidade de dar suporte para um crescimento agenciado por seus próprios corpos. Esta observação é aqui realizada no intuito de ressaltar que o viés urbano também pode ser trabalhado a nível ambiental, não só a partir dos casos extremos das favelas e das ocupações informais, mas compreendendo as limitações


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dos modelos de planejamento excessivamente rígidos e homogeneizantes e estendendo-se de forma mais atenta e aberta ao cotidiano das cidades. Entende-se que a tolerância e abertura exercitadas nos Ninhos e nas Casas da Quinta Monroy podem, portanto, inspirar fazeres tanto urbanos quanto arquitetônicos igualmente atentos aos corpos, suas necessidades cotidianas, suas potências e sua necessidade de reconhecimento e diálogo. Esta abordagem, entretanto, não fica sujeita a uma única estratégia, como a autoconstrução ilustrada nas Casas da Quinta e nos Ninhos, mas revela sua importância como exemplo de agenciamento prático de um entendimento ampliado do papel do corpo na elaboração de seu próprio abrigo. Diversas expressões antiarquitetônicas, estratégias ambientais e demais alternativas aos fazeres convencionais igualmente interessantes e potentes podem ser reconhecidas na análise de obras recentes de arquitetura. Elas podem se expressar, inclusive, a partir de outros tipos de programa, com durações diferentes – talvez as propostas efêmeras, por exemplo, encerrem uma potência ambiental ainda mais forte – em escalas variadas e em contextos físicos e sociais distintos deste que foi até então descrito. Basta refletir sobre as arquiteturas com as quais cotidianamente se depara, deixar-se atravessar por elas e abrir-se a sua experiência: mesmo variando em intensidade, o caráter ambiental é capaz de se manifestar. Ainda que reprimido ou não explorado de forma consciente, acredita-se que ele pode ser quase intrínseco à apropriação humana, revelando-se especialmente no uso – tantas vezes subversivo – das arquiteturas e dos espaços urbanos. É o que fica claro no Memorial do Holocausto, construído na Alemanha nos anos 2000, importante manifestação ambiental a ser discutida a seguir, em paralelo com as Casas da Quinta Monroy. 7.2. UMA ARQUITETURA-PENETRÁVEL: O MEMORIAL DO HOLOCAUSTO Aqui considerado uma possível versão arquitetônica dos Penetráveis oiticiquianos, o Memorial do Holocausto, nome popular do “Memorial aos Judeus assassinados na Europa”, foi concebido pelo arquiteto americano Peter Eisenman – inicialmente em parceria com Richard Serra, que abandonou o projeto em suas fases iniciais – e inaugurado em 2005 em Berlim. O Memorial é entendido como fazer alternativo não em função de sua materialidade ou de seu arranjo espacial,


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mas de uma atitude ao mesmo tempo delicada e incisiva de seu arquiteto 19, que realiza uma espécie de antiarquitetura ao exercitar aberturas essencialmente ambientais. Se os Penetráveis de Oiticica, conforme visto anteriormente, configuram labirintos dinâmicos que incitam à mobilidade, ao desvendamento e incutem nos corpos que os experienciam uma autonomia até então pouco explorada na arte, já se podem intuir semelhanças entre o Memorial e a obra ambiental de Oiticica. Início das explorações vivenciais de suas produções, os Penetráveis representam especialmente uma operação de deslocamento: seja do corpo para dentro da obra, seja do sistema de arte para proposições menos deterministas, seja de um mundo programado a uma vivência livre e autônoma. Entretanto, o desenho do Memorial articula, à primeira vista, uma contradição a estas afirmações. Ele consiste em um rígido arranjo em grelha de grandes blocos retangulares de concreto aparente e sua implantação se dá em um terreno de dezenove mil metros quadrados (Figura 88). Localizado na região central da cidade alemã e próximo de inúmeros edifícios administrativos, incluindo a sede do parlamento alemão (o Reichstag), o Memorial ocupa uma grande quadra historicamente caracterizada como um importante espaço aberto de Berlim. Segundo Yamamoto (2014), no século XVII ela consistia em um grande jardim, preservado ao longo dos anos como uma extensa área praticamente livre de construções. Há registros de uma instalação realizada no terreno no século XX com o objetivo de abrigar o escritório e um bunker particular para Joseph Goebbels, ministro da propaganda alemão, mas a edificação foi bombardeada e destruída durante a Guerra. A ironia desta breve ocupação, entretanto, não passa despercebida, uma vez que Joseph assumiu importante papel dentro do governo nazista. As duas principais ocupações edificadas do terreno ao longo da história, assim, conectam-se de forma direta, inquietante e igualmente contraditória. Percebe-se que a área na qual se implanta o Memorial encerra uma memória por vezes velada, mas bastante potente, caracterizando-se como uma importante região de Berlim tanto em seu testemunho, quanto no agenciamento de possíveis transformações. E é neste ponto que as contradições aparentes se dispersam, 19

Cabe ressaltar que, mesmo sendo um dos arquitetos que mais se faz celebridade no contexto atual, Peter Eisenman é abordado aqui como um propositor de gestos sensíveis e poéticos, ao menos na obra em questão. As relações despertadas por seu Memorial demonstram que mesmo um star-architect pode articular-se ambientalmente; o gesto ambiental revela-se, assim, latência imanente e escolha.


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revelando-se como importantes possibilidades de reinvenção. A rigidez compositiva do projeto e a carga histórica da área podem ser vistas, então, como oportunidades de ressignificação. Cabe ressaltar, ainda, que a área do Memorial se avizinhou tanto à muralha da cidade no século XVII, quanto ao muro erigido posteriormente, na década de 1960, esboçando um contato próximo, ainda que indireto, com aspectos marcantes da história da cidade e do próprio país. Estas heranças não são mencionadas de forma literal no projeto do Memorial – vencedor de um concurso internacional – e tampouco é claro se elas exerceram, de fato, influência direta em sua concepção. Identificar literalidades e referências precisas, entretanto, não é o objetivo desta análise, que cita estas aproximações a fim de referenciar parte das heranças do lugar, entendendo que elas não determinam uso, forma ou apropriação, mas compõem parte de seu repertório e da memória coletiva. Figura 88 – O Memorial do Holocausto e seu entorno, Eisenman Architects, 2005

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Ebertstrasse_with_ Reichstag,_Brandenburg_Gate_and_Holocaust_Memorial_in_2005.jpg

Em oposição à edificação relativamente pequena construída no terreno no século XX, o Memorial ocupa sua quase totalidade – liberando espaço para calçadas e arborização em uma de suas laterais – e estrutura-se em dois níveis: o nível da rua (Figura 89), no qual o extenso conjunto de blocos desenvolve uma espécie de praça pública, e o nível subterrâneo (Figura 90), cujo acesso se dá a partir da esquina sudeste da praça. Este nível, consideravelmente menor que o térreo e cuja arquitetura remete aos bunkers construídos durante a guerra tanto no terreno, quanto fora dele (YAMAMOTO, 2014, p. 198), abriga um centro de visitantes com espaços expositivos, disponibilizando informações sobre o Holocausto e o Memorial a partir de textos, arquivos e projeções multimídia. Na cobertura do subsolo é possível vislumbrar tanto a organicidade do terreno, que compõe um forro ondulante,


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quanto os vazios correspondentes aos blocos que emergem no nível superior. As projeções são realizadas no piso do espaço a partir destes negativos da cobertura, aludindo a uma presença etérea, incluindo a luz artificial como elemento de forte expressão em um ambiente bastante enclausurado e conectando os dois níveis que se apresentam de forma bastante contrastante. Figura 89 – Nível térreo do Memorial do Holocausto

Figura 90 – Nível subterrâneo do Memorial do Holocausto

Fonte: https://www.dicasdeberlim.com.br/2015/ 08/memorial-do-holocausto-em-berlim.html

Fonte: https://eisenmanarchitects.com/BerlinMemorial-to-the-Murdered-Jews-of-Europe-2005

Enquanto a parte externa do Memorial caracteriza uma paisagem “horizontal, vasta e dominada pelo céu” (YAMAMOTO, 2014, p. 185), ou seja, um grande vazio permeável e aberto, sua porção subterrânea revela um interior escuro, restrito, de pé-direito relativamente baixo e de expressão aparentemente mais limitada e limitadora. Apesar da harmonia no desenho dos níveis conectados física e simbolicamente, identifica-se uma certa reticência de Peter Eisenman na elaboração deste espaço, uma vez que o arquiteto foi bastante resistente à inclusão de um centro de visitantes no Memorial. Esta, entretanto, foi uma das exigências realizadas pelo governo alemão na revisão do projeto e corresponde a um dos motivos ao qual usualmente se atribui a saída de Richard Serra da parceria (YAMAMOTO, 2014, p.198), uma vez que contradiz as intenções iniciais do plano proposto. É que a idealização do Memorial se deu de forma distante dos simbolismos e das referências literais – algo pouco frequente em arquiteturas deste tipo, que por vezes incluem nomes, símbolos fragmentados das culturas que homenageiam, fotos, documentos, etc. A pretensão de Eisenman (e, acredita-se, de Serra também) era a de construir um lugar “onde a memória do Holocausto se realizasse na complexidade da mente e da memória de cada indivíduo” (YAMAMOTO, 2014, p. 195) e não a partir de um conceito expositivo convencional repleto de informações e imagens prontas. Nas


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palavras do arquiteto, “tudo o que temos nas nossas cabeças sobre o Holocausto é uma miscelânea de fotos e filmes. O Memorial tenta quebrar a força dessas imagens divulgadas pela mídia. Tenta superar a hegemonia do lado visual, buscando a experiência e as emoções físicas primárias” (EISENMAN, 2009, apud. YAMAMOTO, 2014, p. 195). A partir do corpo e de seus atravessamentos é que o arquiteto busca uma possível conexão com o Holocausto, suas reverberações e memórias, respeitando e motivando as construções pessoais. Entretanto, esta abstração parece ter sido julgada insuficiente pelo governo e pela própria opinião pública, gerando a demanda por uma maior clareza conceitual e informacional. O centro de visitantes, portanto, foi adicionado ao projeto, mas é aqui pouco abordado por ser um espaço mais convencional no qual o apelo ambiental bastante evidente na porção externa não aparece com tanta força. Ele é importante, de qualquer maneira, para refletir sobre a necessidade de equilibrar literalidades e abstrações e por revelar uma carência da população local acolhida no projeto. A análise mais detida da porção exterior do Memorial encontra especial interesse na afirmação de Eisenman sobre a superação da visualidade a partir da experiência, uma vez que enfatiza o uso, fazendo-o predominar sobre a contemplação. O imaginário comum, entretanto, costuma associar os memoriais a referências mais literais, revelando algumas resistências. Neste sentido, além da abstração insinuada no projeto e proferida de forma literal por seu arquiteto, o aparente isolamento da obra em relação a seu contexto físico também é bastante questionado, uma vez que sua dimensão e aparência pouco conectadas ao entorno em termos visuais são evidentes. Entende-se, entretanto, que sua integração é feita de forma mais sutil e menos literal e que tal diferenciação não se dá com o intuito de isolar a obra de seu contexto físico, social e histórico, mas de criar estranhamento e convidar à experiência. Acredita-se que o Memorial não se deseja monumento ou obra de arte convencional, como o isolamento poderia sugerir, pois ao contraste visual com o entorno, opõe uma integração delicada com a cidade, sua memória e, especialmente, seus corpos. O caráter aparentemente seriado de seus elementos, assim, se dilui no reconhecimento de sutis diferenças entre os blocos – propositalmente executados com pequenas variações dimensionais – e caracteriza uma expressão que não busca explorar padronizações ou homogeneizações sugeridas pelos contatos mais superficiais com a obra, mas atenção aos detalhes e variações que tornam cada elemento e cada experiência, únicos. Não há, assim, no


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extenso arranjo do Memorial, qualquer tipo de hierarquia espacial, sinalização de caminhos ou determinações de comportamento e apropriações, mas variações de percurso e sensações a partir do piso, do entorno, das canalizações de vento, da textura irregular do concreto, das características físicas e emocionais que diferenciam os corpos, etc. O estranhamento e os constantes contrastes revelados pela obra em suas distintas escalas sugerem que seu valor pode residir na experiência e no reconhecimento de detalhes e sutilezas capazes de tornar cada vivência única. Os gestos de Eisenman materializados a partir de uma clareza formal tão grande e de uma aparente simplicidade motivam, a partir disso, inúmeras controvérsias e polêmicas, das quais estas questões recém expostas são apenas uma pequena amostra. A abertura do Memorial a ressignificações e reinterpretações está no cerne destas questões, levando à percepção de que, talvez, a efervescência de opiniões e manifestações diversas seja, justamente, um dos principais e mais valiosos efeitos da obra. Sua arquitetura preza pelo diálogo com a alteridade e pela elaboração de leituras pessoais, assumindo uma postura extremamente respeitosa em relação aos corpos que a experienciam. Uma leitura da obra neste sentido sugere que a atitude frequentemente vista como negligência por evitar referenciar diretamente o Holocausto ou nomear suas vítimas, pode se revelar, ao contrário, uma potente homenagem ao colocá-los em conexão direta com cada corpo que visita o Memorial, ativando seus afetos, memórias e sensações. O que Peter Eisenman faz, portanto, é assumir uma postura menos determinista em relação à arquitetura, sua apropriação e adaptação no cotidiano e na atualidade, concebendo um projeto “sem qualquer referência ou instrução clara de uso e interpretação, e sem dizer claramente em nome de que foi construído, reservando assim, àquele que viria a experimentar o espaço, as associações possíveis feitas de acordo com cada repertório” (YAMAMOTO, 2014, p. 193). O arquiteto renuncia à função ou à pretensão de explicar o que foi o Holocausto, reproduzindo suas imagens e informações. Ele não busca gerar um entendimento sobre o Holocausto a partir do seu Memorial, mas incutir nas pessoas sentimentos e experiências marcantes. Segundo a equipe de projeto, A duração de uma experiencia no Memorial não garante um maior entendimento sobre o Holocausto, uma vez que entendê-lo é impossível. O tempo do monumento, sua duração do topo dos blocos ao piso, é


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desconectada do tempo da experiência. Neste contexto, não há nostalgia, memória do passado, somente a memória viva da experiencia individual. (EISENMAN ARCHITECTS, tradução nossa)

Além de evidenciar a temporalização da obra, caracterizando uma importante aproximação ambiental, esta afirmação também revela que a experimentação do espaço – em especial aquele que se configura no nível da rua, aqui tratado com maior ênfase – constitui uma condicionante de projeto tão importante quanto a topografia, os materiais e a expressão formal, relacionados diretamente entre si. Exemplo disso é a forma como a rígida organização dos blocos de concreto que possuem a mesma largura, o mesmo comprimento e a mesma distância entre si (noventa e cinco centímetros) configuram caminhos labirínticos induzindo a uma experiência essencialmente individual, dada a impossibilidade de se caminhar lado a lado nos estreitos corredores. É especialmente a partir destes gestos de Eisenman que motivam a experiência sem controlá-la ou ditar a ideal duração ou os melhores percursos que o Memorial se revela uma expressão arquitetônica aberta de grande interesse para este estudo. Suas imagens e enunciações iniciais, elaboradas segundo aproximações distantes e majoritariamente visuais, se desconstroem com grande potência a partir da vivência, capaz de implodir uma possível forma cristal e gerar fragmentos (ou blocos) que abrem a obra e manifestam sua fragilidade, organicidade e aproximação ao cotidiano. Cabe ressaltar que o Memorial não é entendido, portanto, como um objeto, mas como um espaço arquitetônico por excelência, onde cabe corpo, técnica, equipamentos urbanos, ideais, pressões, manifestações, vivências, enfim, onde cabe e se revela o ambiental como caráter, manifestação e experiência. Inúmeras constatações feitas de forma apressada, assim, se desconstroem gradualmente. As aparentes contradições e às oposições à falta de literalidade se diluem. Se, à primeira vista, a frieza do conjunto de blocos parece simular túmulos de um grande cemitério, uma experiência mais próxima revela a transcendência do caráter simbólico e monumental em nome de uma abordagem mais sensível da temática da qual ele trata e da própria arquitetura, por exemplo. Da mesma forma, a agressividade inicialmente aparente é desconstruída pelas sutilezas reveladas na vivência da obra, e sua inserção no tecido urbano, considerada problemática, revela referências não só históricas e afetivas, mas também físicas, relacionando sua grelha estruturadora a eixos urbanos preexistentes (EISENMAN ARCHITECTS).


243

Pouco a pouco, a obra vai revelando parte de suas influências e traçando, a partir tanto da forma, quanto do conceito; tanto da rigidez desconstruída, quanto da flexibilidade almejada, labirintos físicos e virtuais. Caráter que aproxima de forma mais enfática o Memorial dos Penetráveis oiticiquianos, o labirinto se evidencia oferecendo inúmeras possibilidades de percursos e significações. Materialmente, ele fica bastante claro em função do arranjo espacial; sua dimensão virtual, entretanto, se revela de forma um pouco mais complexa. Ela pode ser parcialmente compreendida – uma vez que somente a experiência direta pode, de fato, ativar sua apreensão total – a partir da estratégia de sobreposição entre duas topografias distintas empregada por Einseman na composição do Memorial: o terreno apresenta uma topografia acidentada e variável, ondulante, visualmente neutralizada pelos blocos. Estes, entretanto, são propostos em alturas variadas (entre zero e quatro metros e meio), compondo a partir de seu plano superior uma nova topografia não necessariamente correspondente às ondulações originais do terreno. Tem-se, então, uma sobreposição entre duas grelhas distintas e “ondulantes” (Figura 91) no plano superior e inferior dos blocos, a respeito da qual se afirma: A maneira como esses dois sistemas interagem descreve uma zona de instabilidade entre eles. Essas instabilidades, ou irregularidades, são sobrepostas tanto na topografia do local quanto no plano superior do campo de blocos de concreto. É assim criada uma divergência perceptiva e 20 conceitual entre a topografia do solo e o plano superior dos blocos . Isso denota uma diferença no tempo. O registro dessa diferença faz do monumento um lugar de perda e contemplação, elementos da memória. (EISENMAN ARCHITECTS, tradução nossa)

Em substituição à estratégia mais convencional de ativá-la a partir de inscrições e demais referências literais comumente empregadas em memoriais, Peter Eisenman a desperta a partir da virtualidade do labirinto – que também pode ser entendida como a tridimensionalidade citada. O arquiteto provoca sensações que evocam a memória de uma forma mais introspectiva e pessoal, sensível e experiencial, sem nomear ausências e vazios, mas sinalizando-os aos corpos que vivenciam sua labiríntica arquitetura. Assim, à simplicidade organizacional do 20

Cabe ressaltar que Eisenman se refere aos blocos de concreto tanto a partir do termo “slabs”, quanto a partir do termo “stelae”, referenciando as estelas, monolitos de pedra historicamente utilizados para sinalizar túmulos ou realizar outras referências/homenagens aos mortos (CRAVEN, 2018).


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Memorial

são

contrapostos

diversos

níveis

de

complexidade

que

geram

estranhamento e revelam uma obra multifacetada, aberta para ser experienciada e sentida. Em sua análise e em sua vivência, as contraposições tornam-se, então, frequentes e inevitáveis: assim como ao arranjo dos níveis das faces superiores dos blocos contrapõe-se uma topografia ondulante na base, à sugestão do Memorial enquanto monumento espetacular e estático contrapõe-se uma forte proposta vivencial; ao pelo visual da obra contrapõe-se uma rica experiência sensorial; ao tema e aos materiais frios e melancólicos, contrapõem-se leituras diversas, vitalidade urbana e atualizações; a uma região fortemente marcada pelo passado, são oferecidas ressignificações constantes; à rigidez espacial contrapõe-se uma flexibilidade temporal; e assim sucessivamente. Figura 91 – Relação entre a topografia do terreno e as alturas dos blocos

Fonte: https://eisenmanarchitects.com/Berlin-Memorial-to-the-Murdered-Jews-of-Europe-2005

Nesta sequência, é possível identificar aproximações igualmente dicotômicas entre Peter Eisenman e Oiticica, extrapolando os Penetráveis e alcançando outras posturas e produções do artista. Destaca-se, por exemplo, um paralelo com os Metaesquemas, exaltando o desenho estruturado em grelha do Memorial que ecoa o geometrismo e a racionalidade típicos das primeiras expressões desta ordem. As reverberações da obra de Eisenman, entretanto, transcendem a visão aérea e a mera análise formal e revelam características mais próximas das distorções operadas por Oiticica que superaram o concretismo e passaram a incluir a instabilidade e a tensão interna na pintura e, progressivamente, na arte como um todo. Além das sensações sugeridas pela dupla topografia ondulante do Memorial, por exemplo, esta instabilidade também pode ser evidenciada pela dimensão do projeto. É que os blocos que compõem o Memorial totalizam 2.711 (EISENMAN ARCHITECTS), caracterizando um sistema bastante vasto. Segundo o escritório responsável pelo projeto, esta operação de extensão espacial quase indefinida


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desestabiliza a rígida organização, sugerindo que quando um sistema racional e ordenado cresce exageradamente e de forma desproporcional, ele perde a conexão com a componente humana e revela progressivamente a potência do caos inerente a todos os sistemas regidos por uma aparente ordem (EISENMAN ARCHITECTS). É especialmente a partir desta noção que a aproximação com Oiticica passa do apelo visual a uma operação: o Memorial “manifesta a instabilidade inerente ao que parece ser um sistema, neste caso uma grelha racional, e seu potencial para diluir-se no tempo” (EISENMAN ARCHITECTS, tradução nossa). Assim como os Metaesquemas passaram a incorporar a instabilidade nas geometrias distorcidas que provocaram a extensão da arte para o espaço e, progressivamente, para o tempo, o vibrante caos que habita o sistema ordenado do Memorial também desconstrói sua rigidez formal a partir da experiência e de sua duração, diluindo a extensa grelha a partir da vivência incorporada (Figura 92 e Figura 93). Eisenman opera na arquitetura de memoriais algo semelhante ao que Hélio operou na arte intelectualizada e institucionalizada, prenunciando o ambiental a partir da experiência e, especialmente, das significações pessoais. O corpo com que trabalha o arquiteto do Memorial do Holocausto é, assim, o mesmo corpo com que trabalha HO, ou seja, o corpo ativo, imerso, inquieto e total em sua sensorialidade. E este corpo agencia, na obra de Eisenman, algo similar ao disparado pelos corpos nos Penetráveis, nos Parangolés, nas Cosmococas, nas Manifestações Ambientais, enfim: a ressignificação. Figura 92 – A vivência do Memorial do Holocausto

Fonte: https://eisenmanarchitects.com/BerlinMemorial-to-the-Murdered-Jews-of-Europe2005

Figura 93 – A vivência do Memorial do Holocausto

Fonte: https://eisenmanarchitects.com/BerlinMemorial-to-the-Murdered-Jews-of-Europe-2005


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A partir do princípio de extrema liberdade, os corpos do Memorial de Eisenman circulam entre os blocos, sentam-se sobre eles, fazem piqueniques, tiram fotos, realizam pequenas reuniões, depositam ali seu tempo de lazer e seus momentos de ócio, escalam, pulam, correm, deitam-se, enfim, apropriam-se da arquitetura pública disposta no espaço urbano e coletivo de forma democrática. É neste momento que cabe retomar a noção do Memorial como obra aberta uma vez que, apesar de sua força iconográfica e da gravidade de sua temática ele se manifesta especialmente a partir da indefinição, como expressão na qual não há objetivo, fim, entradas e saídas ou qualquer tipo de controle sobre os caminhos e atos de cada experienciador (EISENMAN ARCHITECTS). Não há, tampouco, menções literais, informações gritantes, placas de sinalização – com exceção de uma bastante discreta fixada no piso e contendo o nome do Memorial –, controle rígido, cordões de isolamento, mas tolerância e receptividade a interpretações e apropriações diversas. O Memorial revela-se, assim, um espaço ativador de corpos e experiências distintas em aparente contradição com sua fixidez material. Além dos percursos labirínticos e sinuosos que dificilmente serão experienciados a partir da mesma sequência lógica, as condições climáticas, as diferentes horas do dia, o momento histórico, enfim, também exercem grande influência na riqueza e pluralidade de apropriações. Fazer duas visitas ao Memorial no mesmo dia, uma no período diurno e outra no noturno, por exemplo, já desperta distintas leituras, sensações e experiências. Cabe ressaltar que, no caminho inverso desta abertura, foi aplicado sobre os blocos um tratamento para evitar a aderência de tintas e barrar graffitis e pixações. Peter Eisenman, entretanto, declarou-se contrário a esta restrição, por entender estas manifestações como registros do sentimento humano. Naturalmente, uma das principais preocupações que motivou a aplicação do tratamento pelo governo alemão direcionava-se à vandalização do Memorial por grupos neonazistas, subvertendo a intenção da obra entendida pela administração do país como uma homenagem e um alerta. Neste sentido, interrogado sobre a potência de ver marcações com este tipo de conteúdo sobre os blocos de concreto do Memorial, o arquiteto afirmou: “se uma suástica for pintada nele, este é um reflexo de como as pessoas se sentem. E se ela permanecesse lá, seria um reflexo de como o governo alemão se sente a respeito de pessoas pintando suásticas sobre monumentos. Isso é algo sobre o qual eu não tenho controle” (EISENMAN, 2005, tradução nossa). Não


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se trata de condenar ou aprovar determinados tipos de apropriações – nem de realizar qualquer tipo de apologia –, mas de entender as manifestações que se realizam no espaço público como sintomáticas da sociedade e relacionadas a afetos e sentimentos, pertencendo a uma dimensão humana e sensível que foge do controle da arquitetura e dos/as arquitetos/as. Tampouco se trata de abster-se da obra após sua entrega, ou de negligenciar sua duração, mas de exaltar a vivência e a

apropriação

como

atos

democráticos

e

pertencentes

a

manifestações

arquitetônicas – especialmente as que ocupam o espaço público. A postura do arquiteto frente a esta hipótese bastante polêmica expõe a radicalidade com a qual ele trata a abertura e a tolerância em suas expressões. Eisenman (2005, tradução nossa) afirma que Quando você entrega um projeto aos clientes, eles fazem o que eles querem – é deles e eles ocupam o seu trabalho. Você não pode dizer a eles o que fazer com isso. Se eles quiserem derrubar os blocos do Memorial amanhã, sinceramente, tudo bem. As pessoas vão fazer piqueniques no Memorial. Crianças vão brincar de esconde-esconde. Modelos desfilarão e filmes serão filmados lá […]. O que eu posso dizer? Não é um lugar sagrado.

Esta dessacralização (Figura 94 e Figura 95) ecoa a desinstitucionalização da arte operada por Oiticica e pela vanguarda neoconcreta e alimenta as fortes polêmicas que rondam a obra penetrável. Sua abertura a comportamentos por vezes controversos e à multiplicidade de leituras e manifestações também fica clara nos comentários que Eisenman tece a respeito das associações que as pessoas fazem entre o Memorial e referências pessoais de arquiteturas e lugares. O arquiteto afirma: “uma pessoa diz que ele se parece com um cemitério, a outra diz que ele se assemelha a uma cidade em ruínas e uma terceira comenta que ele parece pertencer a Marte – as pessoas precisam fazer o Memorial parecer com alguma coisa que conheçam” (EISENMAN, 2005, tradução nossa). Sua postura frente às interpretações e ao uso da obra, neste sentido, reflete uma grande tolerância à diversidade e uma postura de respeito às referências pessoais. O arquiteto não condena, assim, nenhuma leitura nem repreende qualquer uso ou apropriação, afirmando que não há um único sentido para a obra ou uma única maneira de utilizála. Como um Penetrável oiticiquiano cinzento e robusto, o Memorial opera agenciando alteridades como dispositivo ambiental, aberto de forma indefinida à vivência de cada corpo.


248

Algumas reações a comportamentos desenrolados no Memorial, entretanto, demonstram que esta postura tolerante e compreensiva não é compartilhada – ou sequer bem vista – entre toda a sociedade. Dentre uma das reações mais enfáticas a determinadas apropriações da obra, destaca-se o projeto Yolocaust21, uma série de colagens que resgata fotografias tiradas no Memorial (especialmente as que registram poses e reações festivas) e substitui a paisagem dos blocos de concreto por cenas de campos de concentração nazistas, de judeus torturados e/ou de registros de destruição e miséria causados pela Segunda Guerra Mundial. O projeto constitui uma crítica bastante intensa a comportamentos julgados desrespeitosos, “explorando a cultura comemorativa” (YOLOCAUST) atual e enfatizando o sofrimento e violência gerados pelo Holocausto. As imagens são bastante fortes e constituem um trabalho artístico de valor inegável, entretanto, entende-se que elas acabam por reforçar o repertório visual que Eisenman busca questionar não para negá-lo, mas para ressignificá-lo em experiência em vez de seguir reproduzindo-o de forma pronta e quase alienada. Acredita-se que os comportamentos ditos “comemorativos” no Memorial podem ser entendidos não como o festejar desrespeitoso de um dos maiores genocídios da história, mas a celebração de sua superação e da construção de futuros onde histórias como esta não voltem a se repetir. A leitura realizada pelo projeto Yolocaust, entretanto, é uma das inúmeras possíveis e reafirma um dos maiores valores do Memorial; o de, justamente, motivar o pensamento crítico, ativando os corpos não só em sua experiência, mas nos debates e reações, fomentando trocas, conversas, questionamentos, atualizações, enfim. Quando questionado sobre os efeitos que gostaria de gerar com o Memorial, Eisenman relata que há pouca intencionalidade para além da abertura. O arquiteto afirma que muitos dos comportamentos e sensações aparecem por acaso, como o estranhamento de ver as cabeças das pessoas que percorrem os caminhos do Memorial desaparecendo e reemergindo no meio de um conjunto aparentemente plano, ou o silêncio que acaba se instaurando entre os blocos – excelentes isolantes acústicos – em alguns pontos específicos. Entretanto, o arquiteto expõe como intenção, mais do que efeitos, uma necessidade de provocar deslocamentos. Nas palavras de Eisenman (2005, tradução nossa): “Eu queria que as pessoas tivessem 21

Maiores informações a respeito podem ser encontradas no site www.yolocaust.de. Acesso em: 07 mar. 2019.


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um sentimento de estarem no presente e uma experiência que elas nunca tivessem tido anteriormente. Uma que fosse diferente e levemente inquietante. O mundo é muito cheio de informações e este é um lugar sem informação”. O Memorial é configurado, então, como um espaço que se abre ao sentimento e à interpretação, sem

verdades

anunciadas,

polarizações

ou

dados facilmente

esquecidos,

atravessando os corpos a partir do estranhamento e depositando neles a decisão de acessar, questionar, revisitar informações a respeito tanto do Holocausto quanto de inúmeras outras questões que lhes possam ocorrer. Assim, o gesto de Eisenman é simultaneamente delicado e potente, atingindo uma expressão oiticiquiana, ambiental e próxima à estratégia empregada na proposta para as Casas da Quinta Monroy ao depositar em cada corpo a responsabilidade e a confiança na criação de sentidos e significados. Não há, assim, uma ideia universal, mas interpretações tão plurais quanto os corpos que se abrem na experiência do Memorial. Figura 94 – O uso do Memorial enquanto lugar de encontro e espaço de estar

Figura 95 – O uso do Memorial enquanto lugar de ócio e lazer

Fonte: http://www.osmeustrilhos.pt/2013/07/14/ memorial-do-holocausto/

Fonte: https://eisenmanarchitects.com/BerlinMemorial-to-the-Murdered-Jews-of-Europe2005

Percebe-se a partir disso que tanto as inúmeras aberturas provocadas pelo Memorial quanto casos isolados de tentativas de controle geram opiniões e comportamentos diversos.

A

tolerância

a

usos

diferentes da

experiência

convencional de percorrer os corredores entre os blocos de alturas variáveis gera tanto apoio, quanto repúdio; o tratamento do tema de forma subjetiva e abstrata suscita reações tanto favoráveis, quanto extremamente contrárias; a ausência de menções a nomes é encarada tanto de forma a acentuar a relação entre individualidade

e

coletividade

(encontrando

paralelo,

por

exemplo,

nas


250

particularidades de cada bloco que, mesmo sem portar referências escritas, manifesta-se de forma individual e diferenciada), quanto como estratégia para obliviar a memória coletiva. Embora defenda-se aqui que a tolerância, a abertura, o apelo subjetivo e a sutileza no tratamento da memória sejam estratégias bastante inteligentes e motivadoras de inúmeros processos necessários ao contexto da obra e da arquitetura na atualidade, acredita-se que mais importante do que escolher lados, condenar ou glorificar manifestações e apropriações, é motivá-las e absorvêlas enquanto propostas críticas. O Memorial atua como um agenciador de pensamento crítico capaz de tensionar não só questões sobre o Holocausto e a história européia, mas sobre a própria arquitetura, a postura de Peter Eisenman e o comportamento

humano,

revelando-se

como

potente

expressão

ambiental,

(anti)artística e (anti)arquitetônica. Ao contrário de um ambiente formal e sombrio que reforça sentimentos de culpa, revolta, compaixão, medo, enfim, o Memorial do Holocausto configura-se como um espaço de celebração do corpo, do momento presente e da potência de atualizar e ressignificar os contextos. Ele oferece a uma Berlim marcada por acontecimentos tensos, intervenções agressivas e segregatórias, monumentos repletos de informação e intenções e expressões densas e carregadas, um respiro, um espaço silencioso e aberto, pronto para ser reabsorvido, contestado, apropriado, vivido. E é a partir desta abertura que ele converte silêncio em polifonia, promove vitalidade urbana e se manifesta como importante expressão ambiental. Se as Casas da Quinta Monroy ajudam a compreender este caráter em espaços fechados, e esclarecem a aproximação entre arte e arquitetura a partir da figura da casa e dos Ninhos oiticiquianos, o Memorial revela-se potente nas discussões que se estendem ao espaço público e mostra que o caráter ambiental pode se manifestar não só em expressões passíveis de manipulação material e reconstrução física, mas também em locais que agenciam virtualidades labirínticas e ressignificações afetivas, à maneira de Penetráveis urbanos. Conforme visto, Hélio almejava que seus Penetráveis – especialmente os pertencentes à ordem denominada “Manifestações Ambientais”, como no caso dos Magic Squares – ganhassem uma dimensão pública, inserindo-se em espaços urbanos e cotidianos. É inevitável, assim, comparar a sucessão labiríntica dos blocos do Memorial, imersos no centro de Berlim, em um contexto urbano bastante efervescente, com as intenções reveladas pelos planos coloridos dos Magic Squares


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ou pelas paredes leves e esbeltas dos primeiros Penetráveis. É como se Eisenman expandisse os planos e a escala dos Penetráveis de Oiticica e compusesse, adaptando

ao

contexto

local,

uma

variação

ambiental

e

urbana

destas

manifestações. Agregando a complexidade da topografia e substituindo as vibrantes cores de Oiticica pelo cinza opaco e bruto do concreto que forma os blocos do Memorial, o arquiteto opera uma adaptação semelhante à realizada por HO na variação dos Parangolés realizados no Brasil e nos Estados Unidos. Revelando as heranças locais e conectando-se ao contexto físico, social e histórico, Eisenman compõe um Penetrável potente no qual os corpos entram completando a obra a partir de suas vontades e possibilidades. Esta abertura, frequentemente referida aqui, exalta o caráter ambiental do Memorial e insinua a desnormativização igualmente característica dos Penetráveis. Em ambas as manifestações, não há demanda por distanciamento e contemplação, mas convite à imersão e ao deslocamento a partir da experiência que transcende o objeto e converte o espaço estático e rígido em ambiente ativante e flexível. O corpo que visita o Memorial, assim, penetra em seu labirinto e supera a passividade caracterizando o hibridismo sujeito-objeto ou corpo-obra enunciado por Oiticica e concretizado também na expressão de Eisenman. Os gestos de artista e arquiteto, assim, coincidem como convite e abertura, fundindo o visual na sensorialidade total resultante da imersão e da entrega: obra entregue ao corpo e corpo entregue à obra. As palavras de Hélio Oiticica esclarecem de forma surpreendente esta aproximação: well: nas minhas iniciativas de apropriação / absorção / togethernassão de fragmentos q se estruturam em BLOCOS e PROPOSIÇÕES procuro a não-limitação em grupos homogêneos ou de casta: dirijo-me ao q me vem de encontro na cabeça: o q é aberto e não-contente com o „feito‟: um JOY de descobrir (-se) MUNDO erigindo MUNDO [...] (OITICICA, 1974, apud. RIVERA, 2012, p. 22 153-154)

As afirmações do artista (elaboradas em uma reflexão sobre as Cosmococas) referem-se à importância dos fragmentos na constituição do todo e das individualidades na construção do coletivo. Os blocos do Memorial de Eisenman são uma potente metáfora a esta noção. Mesmo sem nomeá-los, o arquiteto referencia 22

Tentou-se reproduzir aqui, com a maior fidelidade possível, a formatação original do poema.


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sua unicidade tanto intencionalmente, a partir das variações citadas anteriormente, quanto de forma acidental, em função das variações de cor e textura deixadas pelo processo de confecção dos blocos e pela própria ação do tempo sobre eles. Da mesma forma, os corpos que penetram tanto nas obras de Oiticica, quanto no Memorial do Holocausto também se manifestam como estas individualidades que são fontes heterogêneas capazes de caracterizar sistemas instáveis e não limitados (nem limitantes). Eles revelam tanto o joy dos/as propositores/as na concepção de suas obras abertas, quanto a própria entrega dos corpos na experimentação tantas vezes lúdica do espaço ressignificado e reconstruído ecoando fortemente e noção de pequenos mundos que erigem mundos, interpretações, relações, significações, afetos, comunidades, possibilidades, enfim, progressivamente maiores. O espaço trabalhado por Eisenman, assim, remete ao Espaço-HO especialmente revelado a partir dos Penetráveis, obras nas quais os Núcleos se espacializaram e os Projetos foram antecipados. Acredita-se que o Memorial do Holocausto constitui-se, igualmente, como uma transição entre a espacialização do monumento – e sua consequente fragilização, afastando-se do espetáculo estático e distante – e a exploração da arquitetura ambiental em expressões mais ligadas ao uso cotidiano. Embora aqui entendido enquanto espaço arquitetônico, o Memorial ainda carrega uma atmosfera monumental que o afasta em certos níveis de expressões arquitetônicas mais corriqueiras. Ele constitui, desta forma, um exemplo de ativação ambiental no espaço público, mas pode inspirar fazeres expandidos para outras expressões, carregando não sua gravidade, mas as insinuações de instabilidade, ativação de afetos, tolerância e conexão sensível com os contextos. Acredita-se que o Memorial provoca, assim, uma reflexão crítica a respeito de intervenções poéticas no espaço urbano, agenciando novas expressões penetráveis e ambientais. A partir desta aproximação mais detida com arquiteturas aqui consideradas ambientais – seja a partir da Arquitetura-Ninho das Casas da Quinta Monroy, ou da Arquitetura-Penetrável do Memorial do Holocausto – é possível perceber que mesmo de forma intuitiva ou não-formulada, o caráter ambiental se manifesta em expressões contemporâneas. Revelando-se tanto a partir de intenções mais abertas e mais compartilhadas, nas quais os/as arquitetos/as se entregam a indefinições e renunciam ao controle absoluto sobre suas propostas, quanto de propostas aderidas e atentas a seus contextos, elas são uma pequena amostra dos inúmeros fazeres


253

inspiradores que atuam reconhecendo as potências e ampliando as dimensões talvez menos convencionais da arquitetura e do urbanismo. Naturalmente, inúmeros desafios surgem quando as especulações teóricas alcançam a esfera prática, e adaptações sempre precisam ser feitas. O Memorial e as Casas aqui estudados exemplificam o caráter processual desta negociação e a necessidade de arriscar-se para reconhecer e testar possíveis transições de metodologias e intenções. Elas sugerem, assim, a importância e a possibilidade de se trabalhar na validação de abordagens antiarquitetônicas e de operações ambientais e apresentam potências e desafios que podem seguir sendo explorados de forma cada vez mais consciente e intencional, expandindo as arquiteturas ambientais para além dos Ninhos e Penetráveis ou mesmo dispensando estes títulos, reinventando-os e abrindo-se às poéticas e aos gestos.


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7.3. CASA AMBIENTAL: EPÍLOGO DO QUE É PRELÚDIO Figura 96 – Cartão postal 18: A casa-explosão

Fonte: Produzido pela autora

A potência de se agenciar arquiteturas a partir de gestos (criadores e fruidores) sensíveis e abertos revela a importância do corpo e da experiência em expressões menos espetaculares e mais conectadas ao cotidiano. As Casas da Quinta Monroy e o Memorial do Holocausto, expressões bastante diferenciadas tanto em seu contexto quanto no que comumente se conhece enquanto programa, são exemplos de fazeres ampliados que ensaiam, cada uma a seu modo, aproximações com o ambiental. Nestas breves enunciações é possível perceber algumas alternativas e estratégias de agenciamento ambiental tanto a nível privado, quanto público e de dimensões tanto domésticas, quanto coletivas, encerrando com reticências as discussões aqui pretendidas no intuito de expandi-las e incentivar sua


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complementação. O que se aproxima de ser um epílogo do neste trabalho, então, transforma-se em novo prelúdio ecoando a obra de Oiticica capaz de provocar, ainda hoje, inúmeros desdobramentos e importantes reverberações. Cessando, por ora, as discussões sobre a Casa Ambiental, prelúdio desta dissertação, tem-se um epílogo que configura um novo começo em um processo ambiental reinventado e contínuo. Este

processo

comum

às

obras

de

Oiticica,

aos

seus

ecos

na

contemporaneidade, a questões oriundas de alguns dos diálogos entre arte e arquitetura, aos exercícios focados tanto na figura do espaço público, quanto da casa, aos caminhos “anti”, e às arquiteturas aqui brevemente analisadas revela a continuidade como uma das características capazes de sintetizar com força considerável o caráter ambiental. Apesar de carregar certa simplicidade em sua enunciação, acredita-se que esta noção é capaz de inspirar ampliações na arquitetura e em seus processos. Ela sugere uma compreensão das obras não mais como proposições estáticas e rígidas, duráveis e completas, mas em constante reinvenção, adaptando-se a novas demandas e dinâmicas; ela pede por meios que facilitem a produção e gestão das arquiteturas com especial atenção ao que até então se considera pós-obra; ela atinge a própria figura do/a arquiteto/a e sua formação que, frente a isso, não pode ser considerada acabada após determinado período,

desenvolvendo-se

e

reinventando-se

constantemente

junto

das

necessidades e tecnologias que surgem com velocidade assombrosa. Compreender as obras não mais como objetos estáticos e rígidos, mas organismos em contínua mutação ambiental implica conceber a cidade como organismo vivo e seus corpos como elementos autônomos e diversos cuja força não pode ser subjugada ao domínio de um número restrito de arquitetos/as e de determinados modos de vida. Em um momento no qual as novas tecnologias, as lógicas de mercado, as novas estruturas econômicas e sociais, a competição e a inovação definem novos campos de atuação para os profissionais de diversas áreas e reinventam competências e profissões, este reconhecimento se revela especialmente importante. É neste contexto que a Casa Ambiental revela-se fenômeno vivo que se desenvolve em conexão direta com os corpos e a vida, podendo agenciar novas condutas e produções menos pautadas no individualismo e mais focadas na coletividade das ações e na humanização dos processos. Em nome da continuidade, ela compõe imagens frágeis e se manifesta como resistência à espetacularização,


256

renunciando à forma cristal em nome da organicidade, da vivência e da flexibilidade (em seus diversos níveis de manifestação). Ela se desenvolve absorvendo a sabedoria popular, testando processos, aliando postulados convencionais a máximas empíricas e alternando efemeridades com permanências, revelando em seu reinventar constante as potências de um corpo ativo, sensível e aberto. Abrindose também a ele, a Casa Ambiental passa a abrigar outras dimensões e materiais, somando às expressões físicas, virtualidades e afetos e agregando junto de componentes materiais, a imaterialidade inerente ao que compraz a sensibilidade a partir da qual o corpo também se expressa. Casa e corpo tornam-se metáforas um do outro: ambos compostos a partir de aspectos materiais e imateriais, ambos prescindindo de técnica e de afeto, ambos se expressando a partir do tangível e do intangível. Segundo referenciado, a Casa Ambiental é, assim, casca-ovo, abrigo, mundo erigido por mundo, mundo do homem e não mundo do mundo, útero, espaço temporalizado e tempo espacializado. A Casa Ambiental é, então, corpo que abriga corpo na continuidade ambiental da vida. E estes corpos situam-se em um processo de descoberta enquanto organismos não-segmentados, mas totais; não-normatizados, mas livres; nãopadronizados, mas diversos e plurais: corpos ambientais em resistência aos corpos esquartejados pelas estratégias de sistematização didática ou metodológica, de priorização mercadológica ou de apelo meramente visual. A Casa Ambiental e as demais arquiteturas ambientais podem ajudar a endossar, assim, o resgate do corpo que foi desconectado de algumas de suas dimensões, assumindo diversas estratégias e expressões. Elas podem ser tanto arquitetura-Ninho, como as Casas da Quinta Monroy, quanto expressão Penetrável, como o Memorial do Holocausto; podem ser Projetos, arquiteturas-Bólides, expressões tropicalistas, manifestações ambientais, arquiteturas-Parangolés e inúmeras outras figuras resultantes de aproximações com Hélio Oiticica, Lygia Clark, Louise de Bourgeois, Richard Serra, Lina Bo Bardi, Steven Holl, Juhani Pallasmaa, Iazana Guizzo, Paola Jacques, Celso Favaretto,

Paula

Braga,

Tania

Rivera,

entre

tantos/as

outros/as

artistas,

arquitetos/as, teóricos/as, corpos, enfim. A partir destes e de outros diálogos, do resgate do corpo, e da continuidade característica do ambiental, manifestada tanto no cotidiano em constante reinvenção, quanto nas discussões e procedimentos que, evoluindo do existente, ampliam suas agendas, percebe-se que a Casa Ambiental é, além de metáfora do corpo, metáfora da própria arquitetura, de seus agenciamentos


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e das manobras de seus corpos. A partir da poética do gesto, a arquitetura feita para abrigar corpo transforma-se em fazer abrigado neste: fazer ambiental. Figura 97 – Cartão postal 19: A casa-mundo

Fonte: Produzido pela autora

8. UM RELATO SOBRE A VISITA: CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao mesmo tempo labiríntico no lançamento de alguns fios soltos e piramidal na estrutura geral que conduz até aqui, este trabalho se realizou a partir de uma cartografia sensível de algumas produções de Oiticica nas quais foram reconhecidos conceitos, princípios e relações que permitem vislumbrar a obra do artista em paralelo com carências e potencialidades da arquitetura atual. O contexto-HO foi, então, compreendido em comparação com o momento corrente, ambos de forte efervescência política e com importantes demandas por reformas estruturais em


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diversas áreas; o corpo-HO e o corpo em HO foram investigados em função de seu tratamento enquanto totalidade sensorial e seu protagonismo na desconstrução de objetos, imagens fortes e formas-cristal, fundindo obras e corpos; o tempo-HO foi abordado de forma igualmente plural, revelando tanto a conexão com o momento vivido por Oiticica quanto as possibilidades de inclusão da dimensão temporal nas obras artísticas e arquitetônicas, importante estratégia revelada na duração da experiência; e, especialmente, a ação-HO foi analisada – ainda que parcialmente – esboçando uma compreensão do caráter ambiental e remetendo a aproximações entre arte e arquitetura. Foi possível esboçar, a partir disso, possibilidades e reconhecimentos de fazeres ambientais arquitetônicos tanto nas expressões que compreendem esferas mais privadas, quanto nas que se estendem a expressões mais públicas e urbanas, valendo-se da obra de Hélio Oiticica como importante ativadora de questões menos deterministas e mais abertas à alteridade de temas, falas, corpos, modos de vida, produções, etc. Entende-se que a postura ambiental é uma das possibilidades evocadas por Hélio Oiticica e que estudos semelhantes podem ser feitos ampliando as discussões tanto a partir do artista, quanto abarcando outras personalidades e abordagens. Levando-se em conta o tempo, o propósito e as questões implicadas no processo de construção de uma dissertação de mestrado, entretanto, acredita-se que esta caminhada seja válida especialmente no sentido de articular aberturas e delinear continuidades. Assim, a partir do exercício aqui realizado, é possível reconhecer a possibilidade, necessidade e potência da abertura de campos e corpos a partir de um entendimento ambiental. No caso especial da arquitetura, entende-se que esta abordagem demanda reflexão crítica a respeito do contexto atual, abrangendo desde a teoria arquitetônica até sua prática. Neste sentido, o ambiental segundo aqui entendido induz à discussão – e, talvez, à própria reforma – de diversas questões na área, repercutindo tanto na formação dos/as arquitetos/as e em suas metodologias de trabalho, quanto na gestão e nas intervenções sobre o espaço público. Acreditase que a abertura ambiental na arquitetura pode auxiliar na ampliação de fazeres em direções cada vez mais conectadas aos corpos, às subjetividades e ao cotidiano, alcançando, consequentemente, expressões mais frágeis, menos deterministas, de autoria compartilhada e democrática. Neste sentido, o ambiental desperta perspectivas direcionadas à formação vivencial de arquitetos/as que, mais do que propor novos objetos, podem mediar e


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articular interesses a partir da sensibilidade e consideração da alteridade no espaço, renunciando às imposições totalitárias da “arquitetura dos arquitetos” e tornando-se um/uma dos autores/autoras da arquitetura do cotidiano. Não se trata de excluir o exercício da técnica, da tecnologia, da representação ou das expressões da arquitetura tradicional e dos procedimentos costumeiramente utilizados, mas de direcioná-los a um fazer ampliado, mais responsável e aderido a seu contexto e mais próximo das necessidades cotidianas e da diversidade característica do espaço urbano. Cabe reafirmar, assim, que estas formulações são feitas no intuito de diversificar e não apontar um caminho excludente e pretensioso em substituição aos procedimentos estabelecidos historicamente. O ambiental insinua a abertura, a tolerância e a ampliação, posturas que são aqui adotadas de forma contínua. É necessário, ainda, exaltar a vastidão e complexidade da obra de Oiticica, incapaz de ser abordada em sua totalidade. Entretanto, o contágio promovido especialmente pelas obras aqui estudadas respalda o desenvolvimento de uma reflexão crítica a respeito da arquitetura e, especialmente, de sua situação atual, repleta de possibilidades de ampliação. Uma delas remete à antiarte e sugere uma (anti)arquitetura capaz de pautar fazeres dedicados menos a diagnosticar – termo sintomático que entende que as expressões não mediadas por arquitetos/as são doenças urbanas – e mais a se contagiar com as produções, intervenções e apropriações preexistentes na busca por superações de problemáticas/afastamentos e adaptações de procedimentos. Dentre estas problemáticas ressalta-se a espetacularização urbana que se revela um dos agentes de inúmeros outros distúrbios como a gentrificação, a segregação e a descaracterização cultural em nome de classes e discursos hegemônicos. O ambiental aponta, como um dos caminhos alternativos a isso, a reconexão entre arquitetura e corpo – tanto dos/as arquitetos/as, quanto dos/as não-arquitetos/as – reaproximado as dimensões humanas materiais e imateriais da arquitetura. Acredita-se que a restituição do valor ao corpo nas produções arquitetônicas remete a operações realizadas por Oiticica, reverberando na valorização da cultura, das preexistências e da identidade de comunidades. Esta abordagem, assim, inspira o reconhecimento e desenvolvimento de metodologias capazes de direcionar estas reverberações à prática arquitetônica, favorecendo a exequibilidade de projetos contextualizados, sensíveis e aderidos a sujeitos e gestos, como casas ambientais. A Casa Ambiental aqui referenciada foi utilizada, neste sentido, como metáfora a


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qualquer arquitetura apropriada, manifestada em uso e a partir da conexão direta com seus corpos. Assim, a Casa Ambiental remete à manifestação da arquitetura do cotidiano que, orgânica e flexível, se adapta e se reinventa sempre, atendendo às variações da vida. É por isso que ela não reúne princípios formais ou estéticos, nem se sujeita à classificação estilística, normatizando seu fazer; projetada tanto por arquitetos/as, quanto por não-arquitetos/as, erigida a partir de rígidos critérios formais ou de uma espontaneidade criativa, baseada em tecnologias complexas ou arcaicas, extremamente inovadora ou nostalgicamente conservadora, expressa por materiais nobres ou ordinários, a Casa Ambiental revela a pluralidade em sua constituição. Ela se compõe de forma ordinária, a partir de um projeto em constante atualização, levando em conta a dinamicidade da vida e demonstra que a “ambientabilidade” não se define a partir de critérios isolados, mas de sua pertinência e comunicação em um todo. Se há um corpo que a casa-arquitetura abriga, e se a esse corpo interessam suas formas, tecnologias, materiais, processos, enfim, o ambiental se manifesta; se há, na definição dos critérios, do projeto, dos programas uma indefinição; se há abertura, possibilidade de alteração, rejeição à estaticidade ou à fixidez, o ambiental se manifesta. Assim, não há um repertório formal, tecnológico ou material, um estilo ou um conjunto de regras e princípios capazes de rotular o caráter ambiental ou de transferir à arquitetura ambiental derivada da arte de Hélio Oiticica uma assinatura. Sua expressão é tão diversa quanto os corpos que as arquiteturas abrigam e é na individualidade que lhes fazem ao mesmo tempo exclusivas e ordinárias que seu valor se revela. Espacialização, vivência, temporalização, afetos e gestos coincidem, nas arquiteturas ambientais, promovendo expressões frágeis, orgânicas, cotidianas e corporais capazes de resistir à espetacularização e à dissonância entre espaço e corpo. Nesta ressignificação contínua, a arquitetura ambiental transcende, assim, o próprio Parangolé que lhe deu origem: se este é a arte do envelopamento, a arquitetura ambiental é a arte do atravessamento. Não mais membrana – ainda que flexível – que abriga, cobre, encerra, reunindo corpo, afeto e espaço, mas porosidade que os extrapola e faz perder os limites, fundindo elementos, princípios e produções em resultados que serão sempre processos de valor mutável e aparência cambiante. Mais do que arquitetura flexível, cânone, ou clássico, a arquitetura ambiental revela-se como potência de organismo mutante, ao mesmo tempo


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silencioso e polifônico, artístico e cotidiano, espacial, expressivo e ordinário, cotidiano, vívido, vivido e vivencial. Figura 98 – Poesia visual de Reynaldo Jardim

Fonte: http://www.antoniomiranda.com.br/ poesia_visual/reynaldo_jardim.html

8.1. LABIRINTOS FUTUROS: ENCAMINHAMENTOS A investigação aqui realizada revela que uma das possíveis leituras do ambiental na arquitetura implica características que não se definem rigidamente, mas a partir da abertura ao que faz sentido ao corpo, ao contexto e aos gestos que abriga ou abrigará. Ela sugere a revisão de diversas questões na área, ativando discussões sobre formação, estratégias e intenções, alcançando a necessidade de reinventar metodologias de ação mais próximas das subjetividades e preexistências e esboçando inúmeros encaminhamentos. A partir do princípio básico de ampliação, uma arquitetura ambiental contesta limites e procedimentos-padrão e abre diversos caminhos alternativos. Neste trabalho, dentre as diversas possibilidades de abertura citadas, exaltam-se questões relacionadas a investigações mais aprofundadas sobre o contexto atual da arquitetura, a alternativas metodológicas mais próximas do corpo e

da

sensibilidade

aos

contextos

preexistentes

e,

especialmente,

desenvolvimento e teste de um Programa Ambiental Arquitetônico.

ao


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A respeito do contexto atual da arquitetura, acredita-se na potência de se investigar uma possibilidade de crise. Amparada pela problemática das imagens aqui discutida, acredita-se que ela possa ser esboçada em função de três fatores principais: a representação, o ensino e a crise social. Enquanto a primeira pode ajudar a investigar de forma mais aprofundada a produção e manipulação gráfica na arquitetura, referenciando a criação de imagens fortes e frágeis a partir dos exercícios de representação, a questão do ensino pode ajudar a identificar os procedimentos que os favorecem e apontar possibilidades de ampliação. Entende-se que tanto a representação, quanto o ensino podem respaldar e carecer de uma investigação crítica a respeito da formação histórica da disciplina. A questão social, por sua vez, pode ajudar a vislumbrar os efeitos de uma cultura arquitetônica pautada na criação das imagens e em procedimentos por vezes distantes das expressões cotidianas e afastados da vivência direta dos contextos, estruturando junto dos outros dois fatores perspectivas alternativas para a arquitetura na atualidade. A noção de crise parece bastante potente na enunciação de um ponto de transição, a partir do qual ampliações e superações podem ser realizadas e a obra de Hélio Oiticica pode ajudar a abordar estas três questões principais, compondo o primeiro encaminhamento deste trabalho. No que se relaciona às alternativas metodológicas, também destacadas aqui, acredita-se na potência de se investigar novos fazeres, cartografando tanto procedimentos pouco usuais empregados por escritórios, arquitetos/as e coletivos em suas produções, quanto estratégias diferenciadas desenvolvidas em ateliês de projeto nas escolas de arquitetura e urbanismo. A busca por novas relações e imagens de arquitetura sugerida pelas expressões ambientais passa por estratégias alternativas de produção, reiterando a importância de reconhecê-las como forma de ampliar os repertórios. A partir disso, é possível expandir o alcance das ações adaptando os procedimentos a cada situação e fomentando a formação de metodologias

abertas,

flexíveis

e

singulares.

Dentre

uma

das

inúmeras

possibilidades a serem reconhecidas, encontra-se nos princípios e ações da Internacional Situacionista – questões sobre a psicogeografia incluídas – brevemente abordada aqui, interesse especial. Acredita-se que existam neste movimento que é contemporâneo de algumas importantes produções de Hélio Oiticica, vários pontos comuns a uma abordagem ambiental da vida urbana, esboçando a possibilidade de aportar criticamente algumas de suas estratégias ao


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contexto e a práticas atuais. Através de adaptações e ampliações de procedimentos já elaborados e do diálogo com movimentos nascidos de inquietações parecidas com as compreendidas pelo contexto atual – como a necessidade de resistência à espetacularização, de aproximação com o cotidiano e de investigações mais vivenciais – pode-se esboçar fazeres alternativos importantes na articulação da teoria e da prática ambiental. Entende-se que pode ser interessante, assim, revisar o situacionismo a partir da noção atual e verificar a possibilidade de reformar metodologias e estratégias a partir de algumas de suas ações e noções. Por fim, tem-se como último encaminhamento desta dissertação o desenvolvimento de um Programa Ambiental (PA) na arquitetura. Compondo parte do repertório de estratégias alternativas que podem favorecer fazeres ampliados e, consequentemente, expressões arquitetônicas e urbanas menos espetaculares, mais ligadas aos corpos e às subjetividades e mais abertas ao cotidiano, acredita-se na necessidade e potência de se esboçar o PA como um programa arquitetônico alternativo, segundo descrito anteriormente. Partindo das insinuações do próprio caráter ambiental, que pressupõe abertura e continuidade, e do Programa Ambiental exercitado por Hélio Oiticica em produções artísticas que substituíram as categorias convencionais pela contextualização das obras, manifesta-se aqui o interesse em formular e testar o PA em estudos futuros na área da arquitetura e do urbanismo. Método criativo que pode ser empregado tanto na prática profissional, quanto na formação de arquitetos/as visando desenvolver capacidades de abstração, reconhecimento de problemáticas sociais, agenciamento de potencialidades e familiarização com a aproximação a contextos reais, o Programa Ambiental Arquitetônico pode ser uma estratégia bastante potente. Entende-se que ele ainda motiva o esclarecimento sobre as ambiências e aproximações com outros teóricos da arquitetura, apresentando-se como campo de pesquisa bastante extenso e rico. A partir destes encaminhamentos e da pesquisa que os baseia, é possível perceber a importância da obra de Oiticica como agenciadora de questões alternativas e fazeres ampliados na atualidade – compreendendo seus diversos campos ampliados, dentre os quais se insere a arquitetura –, bem como a possibilidade de exploração de alguns de seus pontos problemáticos a partir da atitude ambiental. Este trabalho, assim, insinua perspectivas otimistas de ampliação e endossamento de bases direcionadas a fazeres arquitetônicos fiéis aos conceitos de vivência, pertinência social e ativação do corpo experimentados por Oiticica e


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passíveis de serem explorados na contemporaneidade inspirando produções afetivas, mutantes, em contato direto com os sujeitos e acompanhadas pela formação crítica de arquitetos/as sensíveis, atentos/as e responsáveis. Refletir, celebrar e exercitar criticamente a arquitetura, então, pode ecoar a abertura, a tolerância e a ampliação características de HO e do ambiental. Pode significar escancarar as portas e deixá-las bem abertas para fazer conhecer os interiores por vezes tão guardados das arquiteturas, suas teorias, os argumentos e as discussões que abrigam. Pode tratar até de remover as portas para fazer integrar áreas e correntes, jeitos e gestos em nome de aproximar corpo e casa, sujeito e ambiente, terminologias e intenções. Pode esbarrar, assim, em superar correntes estilísticas, lealdades corrompidas e anacronismos e simplesmente conceber Casas Ambientais. Sejam elas escolas, apartamentos, consultórios, praças, bibliotecas, parques urbanos, salas de aula, ruas ou intervenções efêmeras, teoria ou prática, interiores ou exteriores, criações originais ou reformas, abstrações ou as casas propriamente ditas, enfim, é necessário, urgente e potente celebrar e conceber Casas Ambientais.


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272

ANEXO A – Carta para Educação dos Arquitetos (UNESCO/UIA) (Versão de 2011) Introdução Nós, arquitetos, envolvidos com a evolução da qualidade do ambiente construído em um mundo em rápida mudança, acreditamos que tudo que tenha um impacto sobre a maneira em que o ambiente construído é planejado, projetado, fabricado, usado, equipado, configurado e mantido, pertence ao domínio da arquitetura. Nós nos sentimos responsáveis pela melhoria da formação teórica e prática dos futuros arquitetos de forma a lhes permitir responder às expectativas das sociedades do século XXI, em todo o mundo, sobre assentamentos humanos sustentáveis em cada contexto cultural. Estamos conscientes do fato de que, apesar do número impressionante de contribuições excepcionais, por vezes, espetaculares da nossa profissão, o percentual do ambiente construído atualmente, que foi projetado e construído por arquitetos e urbanistas, é surpreendentemente baixo. Há ainda oportunidades para desenvolver novas tarefas para a profissão, na medida em que os arquitetos se conscientizarem de necessidades identificadas de crescimento e oportunidades oferecidas em áreas que não têm sido, até agora, uma preocupação importante para a nossa profissão. Portanto, é necessária uma maior diversidade no exercício da profissão e, como consequência, na formação teórica e prática dos arquitetos. O objetivo fundamental da educação é formar o arquiteto como um “generalista”. Isso se aplica particularmente para aqueles que trabalham no contexto dos países em desenvolvimento, onde os arquitetos podem aceitar o papel de “facilitador” ao invés de “provedor” e onde a profissão pode ainda enfrentar novos desafios. Não há dúvida de que a capacidade dos arquitetos para resolver problemas pode contribuir muito para tarefas relacionadas ao desenvolvimento comunitário([2]) programas autofinanciados, equipamentos educacionais, etc. e, assim, garantir uma contribuição significativa para a melhoria da qualidade de vida daqueles que não exercem seus plenos direitos de cidadãos e que não estão entre os clientes tradicionais dos arquitetos. 0. OBJETIVOS Os objetivos desta carta são, em primeiro lugar, que ela seja usada para a criação de uma rede global de educação de arquitetos, no seio da qual, cada


273

progresso individual possa ser compartilhado por todos e que ela aumente a compreensão de que a formação dos arquitetos é um dos desafios ambientais e profissionais mais significativos do mundo contemporâneo. Nós, portanto, declaramos: I. CONSIDERAÇÕES GERAIS 1. Que os educadores devem preparar os arquitetos para desenvolver novas soluções para o presente e para o futuro, porque o novo tempo vai trazer com ele importantes e complexos desafios devido à degradação social e funcional em muitos assentamentos humanos. Estes desafios incluem urbanização global e um consequente esgotamento em ambientes já existentes, uma grave escassez de habitação, serviços urbanos e infraestrutura social, e a crescente exclusão de arquitetos em projetos relacionados com o ambiente construído. 2. Que a arquitetura, a qualidade das construções e sua integração harmoniosa no seu ambiente circundante, o respeito pelas paisagens naturais e urbanas, bem como o patrimônio cultural coletivo e individual são questões de interesse público. 3. Que é de interesse público, assegurar que os arquitetos sejam capazes de compreender as características regionais e traduzir as necessidades, expectativas e melhoramentos para a qualidade de vida dos indivíduos, grupos sociais, comunidades e assentamentos humanos. 4. Que os métodos de formação e aprendizagem([3]) para os arquitetos sejam diversificados, de forma a desenvolver uma riqueza cultural e permitir a flexibilidade no desenvolvimento dos programas de ensino para atender às mudanças nas demandas e nos requisitos do cliente (incluindo métodos de entrega de projeto([4])). dos usuários, da profissão de arquiteto e da indústria da construção, mantendo-se atenção sobre as motivações políticas e financeiras por trás de tais mudanças. 5. Que, condicionado ao reconhecimento da importância dos costumes e práticas, culturais e regionais e à necessidade de integrar essas variantes nos currículos, há um terreno comum entre os diferentes métodos de ensino usados e que, ao se estabelecer critérios([5]), se tornará possível a países, a


274

escolas de arquitetura e organizações profissionais avaliarem e melhorarem a formação dos futuros arquitetos. 6. Que a crescente mobilidade dos arquitetos entre os diferentes países requer um mútuo reconhecimento ou validação de diplomas, certificados e outras evidências de qualificação formal. 7. Que o reconhecimento mútuo de diplomas, certificados ou outros títulos de qualificação formal para exercício profissional no campo da arquitetura devem ser baseados em critérios objetivos, assegurando que os titulares de tais qualificações receberam e continuam a manter formação([6]) com as características enunciadas nesta carta. 8. Que a visão do mundo futuro, transmitida nas escolas de arquitetura, deve incluir as seguintes metas: o

Uma qualidade de vida decente para todos os habitantes dos assentamentos humanos([7]).

o

Uma aplicação tecnológica que respeite as necessidades sociais, culturais e estéticas dos homens com um conhecimento do uso adequado dos materiais na arquitetura, bem como seus custos iniciais e de manutenção.

o

Um desenvolvimento ecologicamente equilibrado e sustentável do ambiente construído e natural, incluindo o aproveitamento racional dos recursos disponíveis.

o

Uma arquitetura que é valorizada como sendo de propriedade e de responsabilidade de todos.

1. Que questões relativas à arquitetura e ao ambiente sejam introduzidas na formação geral ministrada no ensino fundamental e médio, porque a consciência antecipada do ambiente construído desde a mais tenra idade é importante para os futuros arquitetos, proprietários e usuários das construções. 2. Que devem ser criados sistemas de educação continuada para os arquitetos, porque a educação em arquitetura nunca deve ser considerada como um processo concluído, mas como um processo que deve continuar ao longo da vida. 3. Que a formação sobre o patrimônio arquitetônico é essencial para: o

Compreensão do desenvolvimento sustentável([8]), contexto social e sentido espacial na concepção de um edifício, e


275

o

Transformar a mentalidade arquitetônica dos profissionais de forma que o método de criação seja uma parte de um processo cultural contínuo e harmonioso (cf. anexo X, do Relatório da UIA em formação para o património arquitetônico da UIA Comissão, educação, reflexão grupo n ° 7 sobre a formação em património, Turim 2008).

1. Que a diversidade cultural, que é tão necessária para a humanidade como a biodiversidade é para a natureza, é a herança comum de toda a humanidade e deve ser reconhecida e entendida, para o benefício das gerações presentes e futuras. (Consulte a “UNESCO Declaration on Cultural Diversity” ([9])de Novembro de 2001). 2. Que a formação em arquitetura desenvolve a capacidade nos alunos para conceber, projetar, entender e realizar o ato de construção, no contexto da prática da arquitetura que equilibra as tensões entre a emoção, a razão e a intuição dando forma física às necessidades da sociedade e do indivíduo. 3. Que a arquitetura é uma disciplina que usa conhecimentos de ciências humanas, ciências sociais e naturais, tecnologia, ciências ambientais, artes e humanidades. 4. Que a educação que conduz à qualificação formal e que permite a prática profissional no campo da arquitetura tem que ser garantida como do ensino superior, de nível universitário, com a arquitetura como assunto principal das matérias, e ser oferecida por universidades, escolas politécnicas e cursos superiores. Essa formação deve manter equilíbrio entre teoria e prática. 5. Que a formação em arquitetura inclui os seguintes objetivos fundamentais: II. OBJETIVOS DA FORMAÇÃO 3.1.

Competência para criar projetos de arquitetura que satisfaçam tanto às

exigências estéticas quanto aos requisitos técnicos; 3.2.

Conhecimento adequado da história e das teorias da arquitetura assim como

das artes, tecnologias e ciências humanas correlatas; 3.3.

Conhecimento das artes plásticas como um fator que pode influenciar a

qualidade do projeto de arquitetura; 3.4.

Conhecimento adequado no que diz respeito ao urbanismo, planejamento

urbano e as competências([10]) necessárias ao processo de planejamento;


276

3.5.

Compreensão([11]) das relações que existem entre as pessoas e espaços

arquitetônicos e, entre estes e o seu ambiente (entorno) e, igualmente, a necessidade de harmonizar as criações arquitetônicas e os espaços que os cercam em função da escala e das necessidades humanas; 3.6.

Compreensão da profissão de arquiteto e de seu papel na sociedade, em

especial no desenvolvimento de diretrizes que levam em conta fatores sociais; 3.7.

Compreensão dos métodos de investigação e preparação de diretrizes para

a concepção de um projeto; 3.8.

Conhecimento([12]) de projeto estrutural, de construção e problemas de

engenharia relacionados com o projeto de edifícios; 3.9.

Conhecimento adequado dos problemas dos materiais, tecnologias e função

dos edifícios, de modo a proporcionar-lhes condições internas de conforto e proteção climática; 3.10.

Habilidade de projetar para atender aos requisitos dos usuários das

edificações dentro dos limites decorrentes de orçamentos e exigências de normas de construção; 3.11.

Conhecimento adequado das indústrias, organizações, regulamentações e

procedimentos envolvidos na transposição da concepção para a construção de edifícios bem como a integração dos planos na concepção geral. 3.12.

Consciência das responsabilidades face aos valores humanos, sociais,

culturais, urbanos, arquitetônicos e ambientais, bem como ao patrimônio arquitetônico; 3.13. Conhecimento adequado dos meios para alcançar um projeto ecologicamente responsável, e a conservação e a recuperação do meio ambiente; 3.14. Desenvolvimento de competência criativa em técnicas construtivas, baseada em um conhecimento abrangente([13])das disciplinas e métodos construtivos relacionados à arquitetura; 3.15. Conhecimento adequado de financiamento, gestão de projetos, controle de custos e métodos de contratação do projeto (project delivery)([14]); 3.16. Formação([15]) em técnicas de pesquisa como parte integrante da educação em arquitetura, tanto para estudantes quanto professores. 6. Que a formação do arquiteto envolve a aquisição das seguintes capacitações: 4.1.

CONCEPÇÃO([16])


277

o

Capacidade de ser criativo, inovar e assegurar a liderança da concepção.

o

Capacidade de reunir informações, identificar problemas, aplicar análise e julgamento crítico, bem como formular estratégias de ação.

o

Capacidade de pensar tridimensionalmente na busca de uma concepção.

o

Capacidade de conciliar fatores divergentes, integrar conhecimentos e usar essas competências na criação de uma solução de projeto.

4.2.

CONHECIMENTO

4.2.1. Estudos artísticos e culturais o

Capacidade de agir com pleno conhecimento dos precedentes históricos e culturais da arquitetura local e mundial.

o

Capacidade de agir com o conhecimento das artes plásticas, como uma influência na qualidade do projeto arquitetônico.

o

Compreensão das questões patrimoniais no ambiente construído.

o

Consciência das relações entre arquitetura e outras disciplinas relacionadas com a criatividade.

4.2.2. Estudos sociais o

Capacidade de agir com conhecimento da sociedade e trabalhar com os clientes e usuários que representam as necessidades da sociedade.

o

Capacidade de desenvolver diretrizes de projeto através de definição das necessidades sociais, de usuários e clientes; pesquisar e definir requisitos contextuais e funcionais para diversos tipos de ambientes construídos.

o

Compreensão do contexto social em que os ambientes construídos são criados, das exigências ergonômicas e espaciais e das questões de equidade e de acessibilidade.

o

Conhecimento dos códigos, regulamentos e normas relevantes para o planejamento, projeto, construção, salubridade, segurança e uso do ambiente construído.

o

Conhecimento em filosofia, política e ética relacionadas à arquitetura.

4.2.3. Estudos Ambientais o

Capacidade de agir com conhecimento dos sistemas naturais e dos ambientes construídos.


278

o

Compreensão de questões de conservação e manejo de resíduos.

o

Compreensão do ciclo de vida dos materiais, questões de sustentabilidade ecológica, impacto ambiental, projeto com vista ao uso reduzido de energia, bem como sistemas passivos e sua gestão.

o

Conhecimento da história e da prática do paisagismo, urbanismo, bem como planejamento em níveis regionais e nacionais e sua relação com a demografia e recursos locais e mundiais.

o

Consciência da gestão de sistemas naturais, tendo em conta os riscos de desastres naturais.

4.2.4. Estudos Técnicos o

Conhecimento técnico de estrutura, materiais e construção.

o

Capacidade de agir com competência técnica inovadora no uso de técnicas construtivas e a compreensão de sua evolução.

o

Compreensão dos processos de concepção técnica e a integração de estrutura, tecnologias construtivas e sistemas de instalações prediais em um todo funcionalmente eficaz.

o

Compreensão dos sistemas de instalações prediais, bem como dos sistemas de transporte, comunicação, manutenção e segurança.

o

Consciência do papel da documentação técnica e das especificações na realização do projeto, e nos processos de planejamento, custo e controle da construção.

4.2.5. Estudos de projeto o

Conhecimento da teoria e dos métodos de projeto.

o

Compreensão dos procedimentos e processos de projeto.

o

Conhecimento de precedentes de projeto e crítica de arquitetura.

4.2.6. Estudos Profissionais o

Capacidade de compreender as diferentes formas de contratação de serviços de arquitetura.

o

A compreensão dos mecanismos fundamentais da indústria de construção e de desenvolvimento([17]), tal como finanças, investimentos imobiliários e gerenciamento de recursos([18]).


279

o

Compreensão dos potenciais papéis dos arquitetos em áreas de atividades convencionais e novas e em um contexto internacional.

o

Compreensão

de

princípios

de

negócios

e

sua

aplicação

para

o

desenvolvimento de ambientes construídos, do gerenciamento de projetos e do funcionamento de uma consultoria profissional. o

Conhecimento([19]) de ética profissional e dos códigos de conduta aplicados prática da arquitetura e das responsabilidades legais do arquiteto no que concerne registro, exercício profissional e contratos de construção.

4.3. o

Habilidade Capacidade de trabalhar em colaboração com outros arquitetos e membros de equipes interdisciplinares.

o

Capacidade de agir e de comunicar ideias através da colaboração, falando, calculando, escrevendo, desenhando, modelando e avaliando.

o

Capacidade de utilizar habilidades manuais, eletrônicas, gráficas e de modelagem para explorar, desenvolver, definir e comunicar uma proposta de projeto.

o

Compreensão dos sistemas de avaliação, que utilizam meios manuais e / ou eletrônicos para as avaliações de desempenho dos ambientes construídos.

7. Que os indicadores quantitativos necessários são os seguintes: 5.1.

A aquisição equilibrada dos conhecimentos e capacitações citados nas

Seções II.3 e II.4 requer um período não inferior a cinco anos de estudos em tempo integral em um programa de estudos acreditado em universidade ou instituição equivalente. 5.2.

Além dos cinco anos de estudo, aos graduados em arquitetura será exigido

concluir ao menos dois anos (ainda que o recomendável seja três) de experiência prática/treinamento/estágio, antes do registro/licença/certificação para a prática como um profissional arquiteto. Com alguma flexibilidade para fins de equivalência, é aceitável que desse total, um ano de prática possa ser obtido antes da conclusão dos estudos acadêmicos. III. Condições e requisitos de uma escola credenciada


280

A fim de atingir os Objetivos acima mencionados, as seguintes condições e requisitos devem ser levados em conta: 1. As escolas de arquitetura devem ser equipadas adequadamente com estúdios, laboratórios, instalações para pesquisa, estudos avançados, bibliotecas e instalações para intercâmbio de informação sobre novas tecnologias. 2. Que a fim de promover um entendimento comum e elevar o nível de formação do arquiteto, a criação de uma rede global, para a intercâmbio de informações, professores e alunos seniores é tão necessária quanto a rede regional para promover uma compreensão de diversos climas, materiais, práticas culturais e locais. O uso de examinadores externos é um método reconhecido para atingir e manter padrões equivalentes aos níveis nacionais e globais. 3. Que cada instituição de ensino deve ajustar o número de alunos de acordo com a sua capacidade de ensinar e a seleção dos candidatos deve estar em conformidade com as competências necessárias para uma formação bem sucedida em arquitetura, e isso será obtido através de processo de seleção adequado implementado na entrada de cada programa acadêmico. 4. Que a relação professore/aluno deve refletir a metodologia de ensino de projeto em estúdio requerida para obter as competências acima, assim como o ensino no estúdio deve ser uma parte importante do processo de aprendizagem. 5. Que o trabalho individual de projeto com o diálogo direto professor/aluno deve formar a base do período de aprendizagem; a interação contínua entre a prática e o ensino de arquitetura deve ser incentivada e protegida e o trabalho de concepção do projeto deve ser uma síntese dos conhecimentos adquiridos e das respectivas habilidades. 6. Que o desenvolvimento de habilidades de desenho convencional ainda é uma exigência do programa de formação e a moderna tecnologia de informática e o desenvolvimento de softwares especializados tornam imperativo ensinar o uso de computadores em todos os aspectos da formação do arquiteto. 7. Que a pesquisa e publicação devem ser consideradas como atividades inerentes aos educadores de arquitetura e devem abranger métodos


281

aplicados e experiências no exercício profissional da arquitetura, na prática do projeto e nos métodos de construtivos, bem como nas disciplinas teóricas. 8. Que os estabelecimentos de ensino devem criar sistemas de auto avaliação e avaliação por terceiros, realizadas em intervalos regulares, incluindo na comissão de avaliação equipes compostas, entre outros, por educadores experientes de outras escolas ou outros países e profissionais arquitetos não vinculados à academia ou participar do sistema de validação aprovado pela UNESCO-UIA ou de um sistema reconhecido equivalente. 9. Que a educação deve ser formalizada através da demonstração individual das capacidades adquiridas, ao final do programa de estudos, sendo a parte principal constituída pela

apresentação de

um

projeto

arquitetônico

demonstrando os conhecimentos adquiridos e as competências([20]) correlatas. Para este fim, as bancas devem ser constituídos por uma equipe interdisciplinar, incluindo examinadores externos à escola, que podem ser profissionais ou acadêmicos de outras escolas ou países, mas que devem ter experiência e conhecimento no processo de avaliação nesse nível. 10. Que, a fim de beneficiar a grande variedade de métodos de ensino, incluindo o ensino à distância, são desejáveis programas de intercâmbio de professores e alunos de nível avançado. Projetos finais poderiam ser compartilhados entre as escolas de arquitetura como um meio de facilitar a comparação entre os resultados e auto avaliação dos estabelecimentos de ensino, através de um sistema de prêmios internacionais, exposições e publicações na internet. IV. CONCLUSÃO Esta Carta foi elaborada por iniciativa da UNESCO e da UIA, para ser aplicada internacionalmente para a formação do arquiteto e precisa da garantia de proteção, de desenvolvimento e ação urgente. A Carta constitui uma estrutura que proporciona direção e orientação aos alunos e professores de todas as instituições envolvidas na formação e na prática da arquitetura e urbanismo. É concebida como um “documento dinâmico” que será regularmente revisado, tendo assim em conta as novas orientações, exigências e desenvolvimentos na prática da profissão, bem como nos sistemas educacionais. Além de todos os aspectos estéticos, técnicos e financeiros, das responsabilidades profissionais, as principais preocupações, expressas pela Carta,


282

são relacionadas com o compromisso social da profissão, ou seja, a consciência do papel e da responsabilidade do arquiteto em sua respectiva sociedade, bem como a melhoria da qualidade de vida através de assentamentos humanos sustentáveis. A Carta UNESCO-UIA inicialmente escrita em 1996 foi elaborada por um grupo de dez especialistas, coordenada por Fernando Ramos Galino (Espanha), e incluindo: Lakhman Alwis (Sri Lanka), Balkrishna Doshi (Índia), Alexandre Koudryavtsev (Rússia), Jean -Pierre Elog Mbassi (Benin), Xavier Cortes Rocha (México), Ashraf Salama (Egito), Roland Schweitzer (França), Roberto Segre (Brasil), Vladimir Slapeta (República Checa), Paul Virilio (França). Esse texto foi revisado em 2004/2005 pelo Comitê de Validação de Educação Arquitetônica UNESCO-UIA, em colaboração com a Comissão de Educação da UIA. Os autores dessa revisão foram: Jaime Lerner (Brasil), representando UIA e Wolf Tochtermann (Alemanha), representando a UNESCO, co-presidentes, Fernando Ramos Galino (Espanha), repórter de Geral, Brigitte Colin (França), representando a UNESCO, Jean-Claude Riguet (França), UIA Secretário Geral e os seguintes membros regionais: Ambrose A. Adebayo (África do Sul), Louise Cox (Austrália), Nobuaki Furuya (Japão), Sara Maria Giraldo Mejia (Colômbia), Paul Hyett (Reino Unido) , Alexandre Koudryavtsev (Rússia), Said Mouliné (Marrocos), Alexandru Sandu (Romênia), James Scheeler (EUA), Roland Schweitzer (França), Zakia Shafie (Egito), Vladimir Slapeta (República Checa), Alain Viaro (Suíça), Enrique Vivanco Riofrio (Equador). Esse texto foi revisado em 2008-2011 pela Comissão Educação da UIA. Os autores dessa revisão são: Louise Cox (Austrália), Presidente da UIA, Fernando Ramos Galino (Espanha) e Sungjung Chough (R. da Coreia), co-diretores da Comissão Ensino da UIA, Wolf Tochtermann (Alemanha), Co-Presidente Conselho de Validação de educação arquitetônica da UNESCO-UIA representando UNESCO, Roland Schweitzer (França), Alain Viaro (Suíça) Alexandre Koudryavtsev (Rússia), Vladimir Slapeta (República Checa), Patricia Mora Morales (Costa Rica), Kate Schwennsen (EUA), Nobuaki Furuya (Japão), Rodney Harber (África do Sul), Zakia Shafie (Egito), em colaboração com os seguintes membros dos Grupos de Reflexão da Educação UIA Comissão: Jörg Joppien (Alemanha), Giorgio Cirilli (Itália), Nana Kutateladze (Georgia), James Scheeler (EUA), Hector Garcia Escorza (México), George Kunihiro (Japão), Magda Mostafa (Egito), Seif A. Alnaga (Egito).


283

Comentários sobre a tradução([1]) Durante anos, nos fixamos na ideia de que a formação do arquiteto baseia-se na aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de habilidades e competências. Habilidades e competências que não são dons, dádivas concedidas pela graça divina a alguns indivíduos. Elas podem ser desenvolvidas e aprimoradas na enorme maioria dos indivíduos. Na língua inglesa existe o vocábulo que traduz essa ideia “skills – learned power of doing something competently” – capacidade aprendida de fazer algo com competência Esse conceito nos guiou por 30 anos na educação de arquitetos. Na presente tradução sofremos uma forte tentação de reduzir seus termos a esse trinômio – aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de habilidades e competências. Mas isso seria criar outro documento. A Carta da Unesco/UIA tem um texto muitas vezes “trick”. Foi pensado em uma língua e traduzido para outra ou foi pensado em muitas línguas? Às vezes, na nossa percepção, o texto em francês difere sutilmente em sentido do texto em inglês. O texto em francês parece muitas vezes mais fácil de levar para nossa língua, mas em um ou outro momento, parece que perde uma precisão típica da objetividade da língua inglesa. Em vários trechos, parece haver uma liberdade de traduzir que vai além do contexto: “understanding” é “comprendre” e depois vira “connaissance”. Para nós, há diferença entre compreensão e conhecimento. Algumas dessas questões, as mais gritantes, que podem ter outro entendimento, estão apontadas em notas de rodapé. O objetivo da tradução é apenas tornar acessível, num momento em que a formação é duramente questionada, um documento de referência, importante e caro a todos nós.

[1]

Documento Traduzido por Luiz Augusto Contier, tendo por base os

documentos em inglês “UNESCO/UIA Charter For Architectural Education” e em francês “Charte UIA / UNESCO de la Formation des Architectes”. Nas notas seguintes, En refere-se ao texto original no documento em inglês e Fr refere-se ao texto original no documento em francês. [2]

En: community development; Fr: développement communautaire


284

[3]

Fr: Que les méthodes de formation et d’apprentissage; En: That methods of

education and training [4]

Métodos de entrega de projeto (project delivery) traduzido literalmente para

o francês, é um conceito parte da cultura profissional norte americana. Refere-se ao que entre nós, é conhecido como “entregáveis”, ou seja, está ligado ao contrato e refere-se aos produtos das diversas etapas de trabalho. [5]

Fr: établissant des critères; En: by establishing capabilities

[6]

Fr:…garantissant que les titulaires de telles qualifications ont bien reçu et

continuent à maintenir le type de formation demandée dans cette Charte.; En: …guaranteeing that holders of such qualifications have received and continue to maintain the kind of education and training called for in this Charter. [7]

Fr: une qualité de vie décente pour tous les habitants du monde; En:

inhabitants of human settlements. Foi mantida a versão literal do inglês porque entendemos que traz uma inferência à moradia em núcleos organizados com características urbanas, o que se perde no francês. [8]

Fr: le développement durable; En: sustentability

[9]

Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural – Texto

disponível nas línguas oficiais da Unesco: inglês, russo, espanhol, francês, chinês e árabe. http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160m.pdf [10]

Em inglês, o termo utilizado é skills – learned power of doing something

competently – capacidade aprendida de fazer algo com competência. [11]

Fr: Faculté de comprendre; En:understanding

[12]

Fr: Connaissance; En: Understanding

[13]

Fr: connaissance solide; En: comprehensive understanding

[14]

Idem nota 4

[15]

Fr: Formation en techniques de recherche; En: Training in research

[16]

Fr: Conception; En: Design

[17]

Fr: fonctionnement fondamental des modes de construction dans le

domaine de la construction et des industries de développement; En: fundamental workings of the construction and development industries [18]

Fr: gestion des équipements; En:facilities management

[19]

Fr: Connaissance; En: Understanding


285

[20]

Fr: qui dĂŠmontre les connaissances acquises et les compĂŠtences

concomitantes; En: demonstrating the acquired knowledge and concomitant skills


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