Artigo Publicado no V ENANPARQ

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ARQUITETURA, CORPO E CIDADE: RELATO DE EXPERIÊNCIAS EM UM ATELIÊ DE PROJETO ARQUITETÔNICO ARCHITECTURE, BODY AND CITY: REPORT OF EXPERIENCES IN AN ARCHITECTURAL DESIGN STUDIO ARQUITECTURA, CUERPO Y CIUDAD: INFORME DE EXPERIENCIAS EN UN TALLER DE PROYECTOS ARQUITECTÓNICOS EIXO TEMÁTICO: IDEÁRIOS, PROJETO E PRÁTICA

SANTOS, Rodrigo Gonçalves Arquiteto e urbanista, Doutor em Educação; Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo na UFSC e do PósARQ/UFSC rodgonca@gmail.com

RAMOS, Flávia Martini Mestranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Santa Catarina, PósARQ/UFSC flaviamartiniramos@gmail.com

NASCIMENTO, Elaine Cristina Maia Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Santa Catarina, PósARQ/UFSC elanascimentoarq@gmail.com


ARQUITETURA, CORPO E CIDADE: RELATO DE EXPERIÊNCIAS EM UM ATELIÊ DE PROJETO ARQUITETÔNICO ARCHITECTURE, BODY AND CITY: REPORT OF EXPERIENCES IN AN ARCHITECTURAL DESIGN STUDIO ARQUITECTURA, CUERPO Y CIUDAD: INFORME DE EXPERIENCIAS EN UN TALLER DE PROYECTOS ARQUITECTÓNICOS EIXO TEMÁTICO: IDEÁRIOS, PROJETO E PRÁTICA

RESUMO: A partir da noção de que arquitetura, corpo e cidade coexistem e relacionam-se cotidianamente, surge a possibilidade de identificar e trabalhar com práticas urbanas sob a perspectiva de experiências corporais da cidade. A oportunidade de investigar como a arquitetura pode aproximar-se do reconhecimento dessas práticas e catalisar a experiência do corpo (seja do arquiteto ou dos demais praticantes) na cidade fomentou a criação de um ateliê de projeto arquitetônico no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Baseado em um discurso contra hegemônico que trata da cidade vivida e não espetacularizada que sobrevive no corpo de seus praticantes, o ateliê explorou metodologias alternativas em todas as suas etapas, propondo derivas urbanas, experiências lúdicas e propostas de projeto baseadas na vivência de cada acadêmico. A partir desta abordagem foi possível discutir questões referentes ao papel do arquiteto contemporâneo, ao padrão de formação comumente explorado nas instituições de ensino de arquitetura e à importância de se considerar o corpo na produção e na experiência da cidade. PALAVRAS-CHAVE: corpografia urbana; ensino de arquitetura; experiência urbana; ateliê de projeto.

ABSTRACT: From the idea that architecture, body and city are concepts that co-exist and relate to each other, comes the possibility of identify and work with urban practices under perspectives of bodily experiences. The opportunity of approaching these practices and supporting (both architects and other citizens) bodily experiences through architecture, led to the creation of an architectural design studio in the faculty of Architecture and Urbanization at the Federal University of Santa Catarina. Supported by an non-hegemonic posture that understands the city as a system to be lived instead of consumed and that survives on the body of its citizens, the studio used alternative methodologies, as ”urban drift”, ludic practices and personalized exercises in order to explore individual perceptions. The development of the studio helped promote discussions about the role of the contemporary architect, the traditional patterns of teaching architecture and urban design and the importance of considering the body in the city. KEYWORDS: urban bodygraphy; architecture teaching; urban experience; design studio.

RESUMEN: A partir de la noción de que arquitectura, cuerpo y ciudad son conceptos que coexisten y están interrelacionados surge la posibilidad de identificar y trabajar con prácticas urbanas desde la perspectiva de experiencias corporales en la ciudad. La oportunidad de investigar como la arquitectura puede aproximarse, reconocer estas prácticas, y catalizar la experiencia del cuerpo (sea de los arquitectos o de los demás ciudadanos) en la ciudad, estimuló la creación de un taller de proyectos arquitectónicos en el curso de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad Federal de Santa Catarina. Basado en un discurso contra hegemónico sobre la ciudad vivida y no espectacularizada que sobrevive en el cuerpo de sus practicantes, el taller utilizó metodologías alternativas, como derivas urbanas, actividades lúdicas y


propuestas de proyectos basadas en la vivencia de cada alumno. Desde este enfoque, fue posible fomentar el debate sobre cuestiones como el papel del arquitecto contemporáneo, los métodos tradicionales de enseñanza de arquitectura y la importancia del cuerpo en la producción y experiencia de la ciudad. PALABRAS-CLAVE: cuerpografía urbana; enseñanza de arquitectura; experiencia urbana; taller de proyecto.


INTRODUÇÃO A arquitetura tem se revelado um campo em constante transformação no qual a transdisciplinaridade e a necessidade de adaptação aos fenômenos sociais parecem emergir com força considerável no contexto atual. Percebe-se uma abertura que sugere possibilidades de pensamento e produção ainda não normalizadas, expandindo a arquitetura para a observação dos fenômenos e abordando sua complexidade enquanto ação que envolve não apenas aspectos físicos, mas de construção de subjetividades. Ressalta-se, aqui, o entendimento de que as subjetividades são construídas através das relações, ou seja, do desenvolvimento de redes nas quais os sujeitos são perpassados pelo afeto, afetando e deixando-se afetar. Entende-se que essas redes podem ser constituídas tanto através do ato de se relacionar com outros indivíduos, como através do agenciamento entre sujeitos e espaços, quando estes assumem a potência de produtores de afetos ou, conforme sugerido por Izana Guizzo (2012), de “produtores parciais de subjetividades”. Considerando tais fatores, percebe-se a possibilidade de conceber o espaço não como algo dado e encerrado em sua concretude material, mas como uma virtualidade em constante processo de construção, dependente das relações e redes nele tecidas e capaz de influenciar a construção de subjetividades através de sua experiência (GUIZZO, 2010). Diante disso acredita-se que pensar a arquitetura contemporânea enquanto prática transdisciplinar que se envolve de modo direto com as questões sociais pode se traduzir no transporte da atenção ao objeto arquitetônico em si para a valorização das relações operadas com ele, endossando uma postura na qual os sujeitos – arquitetos ou não – “deixam de ver a arquitetura como a edificação pura e simples (o objeto em sua materialidade) e passam a abordá-la como o conjunto de interações que acontece entre os habitantes, mediados pela edificação” (FILHO, 2007, p.2). Assim, entende-se que as relações não são dadas a priori, não estão postas, e nem são formadas por elementos predeterminados uma vez que “são os elementos que são constituídos a partir delas.” (GUIZZO, 2010, p.2). Esta noção justifica o pensamento do espaço enquanto processo e permite abordá-lo a partir de sua capacidade de construir relações ao mesmo tempo em que é constituído por elas, em uma perspectiva que (...) não considera a existência de um sujeito e de um espaço prontos, individualmente distintos, que, possuem uma essência; ou seja, uma verdadeira forma, primeira e, portanto imutável como colocado no pensamento binário e racionalista. Ambos são entendidos como composições de forças dadas a partir de práticas sociais que produzem suas formas. (GUIZZO, 2010, p.2)

Essa seria uma abordagem possível da arquitetura enquanto elemento que constrói subjetividades ao mesmo tempo em que é construída por elas através da experiência dos sujeitos no espaço. Assim, entre as variações vislumbradas na contemporaneidade, identificam-se duas correntes antagônicas que tensionam o papel do arquiteto: uma que corresponde à exacerbação das investigações formais em objetos espetaculares, mercantilizando a produção que se converte em um instrumento mercadológico e outra que acolhe as demandas sociais em uma postura mediadora entre espaço e políticas urbanas. Acredita-se que a pluralidade da profissão permite a convivência democrática das diversas abordagens, e todas as posturas são aqui respeitadas, entretanto, julga-se necessário estimular o exercício crítico da arquitetura, atentando-se para o meio social, econômico e político no qual ela se insere como potente influenciadora. Sua capacidade de criação de relações, suas preexistências e sua potência na constituição


do ser e na mediação entre corpo e espaço parecem, portanto, centrais na proposição de um fazer alternativo capaz de auxiliar na ampliação do campo da arquitetura. Preocupações a este respeito considerando o caminho da ciência, as relações que compõem a sociedade atual e, consequentemente, a arquitetura, são constantes nos escritos atuais. Milton Santos atentou para a ênfase exagerada na técnica como uma problemática fortemente relacionada às dinâmicas da vida contemporânea, ao afirmar que “O mundo de hoje parece existir sob o signo da velocidade. O triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade na transmissão e recepção de palavras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a idéia de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua utilização constitua uma espécie de tentação permanente”. (SANTOS, 2001)

Segundo o autor, tal velocidade exacerbada é própria de uma minoria e induz a uma competitividade desmedida que relega os princípios sociais e morais aos interesses econômicos das forças que atuam sobre a sociedade e configuram o espaço urbano. Apesar da supremacia da velocidade e da técnica, Milton Santos atenta para o fato de que “a técnica nunca foi um absoluto” (SANTOS, 2001) e afirma que “não é certo que haja um imperativo técnico, o imperativo é político” (SANTOS, 2001). O autor enfatiza que a sociedade atual vive um processo baseado em valores problemáticos e em dicotomias extremistas e excludentes, afirmando que “o progresso técnico não constituía obstáculo ao progresso moral, quando havia, paralelamente, progressos políticos. Assim, o problema fundamental é o de retomar o curso dessa história, recolocando o homem em seu lugar central” (SANTOS, 2001). A partir disso entende-se que a resistência à espetacularização urbana teorizada por Guy Debord e resgatada por Paola Jacques em função do atual contexto das cidades encontra, no discurso de Milton Santos, uma saída possível: a valorização do ser humano na construção social do espaço. Acredita-se que uma maneira de direcionar o fazer arquitetônico para esta valorização em detrimento do emprego exclusivo da técnica é atentar para os corpos que transitam, se relacionam, compõem e são compostos na cidade. Paola Jacques e Fabiana Britto (2008) entendem que a relação entre corpo e ambiente se dá de forma coadaptativa, ou seja, a partir de uma codefinição, sendo praticamente impossível dissociar espaço e corpo ou dinâmicas urbanas e sociedade. A partir desta teoria as autoras esboçam o conceito de corpografia que, referenciando a cartografia social teorizada por Derrida e Guatarri, relacionase às cartografias da vida urbana inscritas nos corpos que experienciam a cidade, revelando o que o projeto urbano formal por vezes exclui: as micro práticas cotidianas do espaço vivido (BRITTO; JACQUES, 2008). As autoras acreditam que as corpografias podem ser desvendadas a partir dos padrões corporais de ação, revelando as experiências urbanas que estão em sua gênese. Entende-se que cabe ao arquiteto, então, reconhecer e incorporar tais experiências em suas intervenções caso sua postura seja a de resistir à mercantilização da cidade que serve às minorias que a controlam. Considera-se, também, que a esta mudança de atitude corresponde uma necessidade de evolução no exercício e no ensino da arquitetura no sentido de munir seus praticantes com experiências capazes de facilitar o acesso às subjetividades, em uma prática focada mais nos corpos e nos processos urbanos do que em objetos espetaculares. É neste contexto que a disciplina de Projeto Arquitetônico aqui referenciada se desenvolveu e que se reitera a importância de revisar criticamente os padrões acadêmicos tradicionais dos


ateliês de projeto, os quais, estruturados segundo os princípios do tecnicismo moderno, por vezes escapam à complexidade das emergências contemporâneas. No intuito de discutir formas de exercitar esta abordagem na formação de arquitetos, este artigo tem o objetivo de compartilhar a experimentação de instrumentos ligados aos conceitos de cartografia social e corpografias urbanas utilizados durante a disciplina de Projeto Arquitetônico VII, ministrada no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina no segundo semestre de 2017.

DAS CORPOGRAFIAS URBANAS AO PROJETO ARQUITETÔNICO: APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA Sob o marco teórico da resistência à espetacularização urbana, a disciplina aqui tratada estruturou-se com base nas discussões sobre a potência do corpo na formação e na compreensão da cidade, baseando-se na ideia de que arquitetura, corpo e cidade coexistem e relacionam-se cotidianamente. Paola Jacques e Fabiana Dultra Britto (BRITTO; JACQUES, 2008) colocam que “no momento em que a cidade – o corpo urbano – é experimentada, esta também se inscreve como ação perceptiva e, dessa forma, sobrevive no corpo de quem a pratica”. Entende-se, a partir desta afirmação, que a cidade vivida, não espetacularizada e resistente a um processo de dominação, revela-se e sobrevive no corpo de quem a experimenta, tornandose um laboratório vivo para experimentos arquitetônicos e urbanos. Neste laboratório surgem as corpografias urbanas, inscrições do espaço nos corpos e destes na cidade, seja em desenhos visíveis ou em subjetividades invisíveis – mas não menos presentes. Constroi-se, assim, um discurso contra hegemônico que é base para este artigo, para o ateliê do qual ele trata e, acredita-se, para um fazer arquitetônico crítico e consciente de um contexto de intervenção que não é só físico. Revela-se a possibilidade de encarar a cidade como extensão do corpo de quem a habita, entendendo processos urbanos contemporâneos que olham com mais profundidade a apropriação do espaço urbano que não foi planejada tecnicamente por arquitetos e urbanistas. Este pensamento, entretanto, exige uma postura que boa parte dos métodos tradicionais de ensino e prática da arquitetura não respalda, fazendo com que novos desafios acabem emergindo. Dentre eles destacam-se alguns que se revelaram objetivos do ateliê: compreender espaços urbanos através de configurações corporais, entender os modos de subjetivação do indivíduo contemporâneo na cidade e exercitar a composição arquitetônica tendo em vista referencias culturais, sociais e sígnicas, explorando vivências e memórias dos diversos sujeitos envolvidos no processo projetual da arquitetura. Para alcançá-los, a disciplina foi estruturada em três blocos: o primeiro foi denominado “Pensar a cidade”, e teve um caráter introdutório para as novas discussões e práticas pretendidas. Ele foi composto por três estratégias básicas: discussões de textos (complementadas por exposições audiovisuais, como filmes e documentários), laboratórios experimentais – comentados em breve – e análise crítica de projetos já propostos para a área estudada. O segundo bloco, por sua vez, caracterizou-se como “Sentir a cidade” e foi composto por uma experiência de deriva urbana complementada por estudos e discussões de textos, além de análise das corpografias cartografadas ao longo da deriva. O último bloco foi chamado “Agir na cidade” e consistiu na fase propositiva do ateliê, condensando a teoria e as vivências até então experenciadas valendo-se também de estudos de textos e dinâmicas de análises coletivas. A separação em blocos foi uma estratégia utilizada para demarcar simbolicamente três enfoques diferenciados, no sentido de tornar mais didática a experiência da disciplina. Entretanto, os exercícios realizados em cada etapa dialogavam diretamente com as outras, estabelecendo relações não-lineares ao longo do processo.


Além disso, alguns dispositivos foram utilizados na articulação do ateliê ao longo do semestre, como os diários e os cartões postais, a fim de lembrar a necessidade de se registrar as impressões ao longo de todo o trajeto da disciplina e de se afirmar a diversidade existente no âmbito do ateliê como metáfora às subjetividades que compõem a cidade. Os diários – que deveriam ser preenchidos com constância – foram explorados em duas categorias: foram desenvolvidos diários individuais (como cadernos nos quais os acadêmicos registravam suas anotações, dúvidas, questionamentos e/ou esboços de forma livre) e o diário coletivo. Em cada encontro um acadêmico ficava responsável por deixar algum registro no diário coletivo, exaltando a construção grupal da disciplina, das impressões sobre a área e da dinâmica da cidade em si. O diário coletivo configurou-se, portanto, como uma grande cartografia das experiências do ateliê, gerando o compartilhamento do processo criativo entre seus envolvidos. No final da disciplina foi interessante manusear o diário como uma narrativa não-linear e diversa do processo e foi possível verificar, em sua construção, diversas estratégias e inquietações exaltadas pelos acadêmicos. Os cartões, por sua vez, faziam alusão à cidade mercantilizada, que vende seus “cartões postais” – paisagens naturais ou construídas que são espetacularizadas – no intuito de atrair turistas e investimentos. Os cartões envolvidos na disciplina foram propostos enquanto forma de resistência a esta visão homogeneizante e hegemônica, abrindo a possibilidade de se acessar as micro práticas cotidianas desenvolvidas na cidade como elementos de grande valor no reconhecimento desta. Assim, os cartões postais também foram estratégias utilizadas no sentido de registrar sensações e impressões sobre o ateliê, a cidade, a área de intervenção, a arquitetura, enfim, sobre o que tocasse os acadêmicos. Distribuídos em branco no início da disciplina (e totalizando cinco por aluno), os cartões foram entregues ao professor no último dia do ateliê, quando foi possível observar o envolvimento sensível dos acadêmicos com a área de intervenção e com a prática humanizada da arquitetura. Cabe destacar que a área estudada pela disciplina foi estrategicamente selecionada para provocar o pensamento e a ação críticos. A área de intervenção escolhida (Figura 1) localiza-se na área central da cidade de Florianópolis, e limita-se entre a cabeceira insular da ponte Hercílio Luz e o Hospital de Caridade. Entende-se que a área é bastante diversa, possuindo um contexto urbano rico em potências de corpografias e tecidos sócio-temporais expressivos sem, entretanto, deixar de ser alvo de uma série de transformações urbanas espetacularizadoras da cidade, contribuindo para uma gentrificação do seu centro histórico. O espaço constitui-se, então, como uma zona de tensão urbana, na qual diversos interesses, usos e apropriações tem lugar, incluindo práticas insurgentes que fogem aos desenhos impostos, configurando resistências no espaço e facilitando o reconhecimento das subjetividades que o compõem. Também em função deste entendimento e da maturidade da turma, uma vez que a disciplina é a última da grade de projetos do curso, não se estabeleceu um programa específico ou uma escala de intervenção. A proposta do ateliê consistiu em exercitar a autonomia e o senso crítico dos acadêmicos, permitindo a livre eleição de locais potentes/problemáticos e equipamentos/intervenções/gestos cabíveis.


Figura 1: Delimitação da área de intervenção Fonte: Acervo dos autores

Nos subitens expostos a seguir são apresentadas as propostas e os resultados dos laboratórios experimentais que compuseram os blocos da disciplina. Primeiro Bloco: Pensar a Cidade O primeiro laboratório experimental da disciplina, proposto no intuito de endossar as discussões introdutórias realizadas denominou-se “Cartografia de um corpo-cidade”. Visando explorar as relações entre corpo e cidade e exercitar a visão de um corpo humano aderido ao corpo urbano, pediu-se para que cada acadêmico levasse para a aula um mapa da cidade de Florianópolis e uma foto sua de corpo inteiro impressos em A3. A comparação entre as imagens iniciou o cruzamento entre o mapa da cidade e o corpo dos acadêmicos, iniciando a reflexão a respeito de onde estariam as tatuagens, as cicatrizes, os medos, as zonas de tensão, os espaços públicos do corpo urbano e como eles dialogam, segundo a interpretação de cada um, com o corpo humano. Com base nisso, foi proposto um exercício de recortes e colagens identificando aproximações entre os usos, as características e os sentimentos inspirados pela cidade no corpo, configurando um novo mapa. Assim, relacionando áreas da cidade com partes do corpo, foi possível iniciar uma discussão sobre o contexto de intervenção da disciplina, entendido não só como meio físico, mas também como social, afetivo e humano. As relações apresentadas demonstraram-se bastante potentes, evidenciando a reflexão crítica dos alunos ao comparar a imagem da cidade com uma das imagens mais íntimas dos seres humanos: seu próprio corpo. Neste sentido, diversas analogias surgiram, apresentando-se, por exemplo, a locação da Universidade no Norte do mapa, como referência ao seu papel enquanto organizadora da vida dos estudantes. Foi bastante recorrente, também, a identificação das pernas e dos pés com as áreas de deslocamento – onde se concentram os terminais urbanos mais utilizados pelos acadêmicos, por exemplo – e a relação da cabeça com as áreas onde se concentram instituições de trabalho e ensino. As mãos e o peito, por sua vez, foram constantemente relacionados a áreas afetivas, referenciando “o primeiro contato”, ou seja, as áreas de origem enquanto as costas referenciaram, na maioria das vezes, locais


esquecidos, com dificuldades de acesso, pouco vistos, conhecidos ou explorados. Neste caso destaca-se a atitude de uma acadêmica que colou uma parte por ela desconhecida da cidade no verso da folha onde configurava o seu mapa. Com esta estratégia foi possível explorar a ideia do “diagnóstico”1 da área, uma vez que ela passou a ser entendida como um corpo pulsante e em constante transformação. Em tal levantamento, foi possível identificar e discutir, através de uma nova abordagem, algumas problemáticas e potencialidades da cidade como um todo, revelando a incorporação de uma dimensão afetiva em sua análise. A referência ao poder de organização da Universidade, por exemplo, levantou debates sobre a vida acadêmica; a menção às pernas como referência a deslocamento e lazer introduziu a discussão sobre a mobilidade urbana e as áreas de estar, contemplação e prática esportiva; as mãos e o peito introduziram o valor afetivo no estudo, permitindo que cada acadêmico compartilhasse suas memórias, lembranças, formação, dificuldades, enfim, aumentando a interação entre a turma; e as costas, por sua vez, permitiram que se discutisse com maior clareza os problemas da cidade, suas áreas marginalizadas e a negligência seletiva a determinados corpos que a compõem. Pode-se dizer que o exercício (Figura 2) foi uma crítica sutil às formas de análise da cidade e um recurso didático potente na ativação do diálogo entre os corpos urbano e humano, bem como na introdução à análise subjetiva da cidade.

Figura 2: “Cartografia de um corpo-cidade”: primeiro laboratório experimental da disciplina Fonte: Acervo dos autores

Outro laboratório realizado no primeiro bloco da disciplina foi chamado de “Encontros”. Referenciando a relação da cidade com o mar, uma vez que Florianópolis é uma ilha, e problematizando as áreas de encontro entre eles – como os aterros, as áreas de preservação ambiental, as regiões supervalorizadas, a relação entre paisagem natural e construída, etc – foi proposta uma atividade com aquarela, utilizando-se os pigmentos amarelo e azul (Figura 3). Com o papel molhado, sugeriu-se que os acadêmicos fizessem duas aguadas, uma de cada cor, iniciando nas extremidades da folha e deixando que o encontro entre elas acontecesse de forma natural, sem invadir com o pincel o espaço do outro pigmento. Ao permitir a 1

A palavra “diagnóstico” é destacada aqui por remeter criticamente à ideia higienista disseminada no período moderno, sugerindo uma noção da cidade como um corpo que precisa ser curado. Aqui, ao invés de “curá-lo”, busca-se entender sua pulsação, seus fluxos, suas potencialidades, seus afetos. Acredita-se que, a partir do momento em que se assume este corpo metafísico e que se busca entender seus processos, emerge a possibilidade de se realizar intervenções capazes de incorporar as potencialidades das pré-existências, ao invés de tratá-las como males a serem erradicados a partir de “higienizações”.


atualização da pintura pelo próprio pigmento, os acadêmicos se viram atuando sem total controle sobre seu trabalho, a exemplo do que acontece com o espaço urbano, o que estabelece uma das semelhanças do exercício com o processo de projeto. Além disso, o encontro entre os pigmentos estabelece uma zona de tensão, potente metáfora às áreas de encontro da cidade com o mar. Após consolidado o encontro, foi proposto que os acadêmicos intervissem na aquarela com giz pastel, consolidando o que o desenho então formado lhes sugeria. Na Figura 4 evidencia-se o processo, que culminou no desenho de um pássaro e na transformação do mar em um céu. O desenho tangencia questões como a liberdade no espaço público e a diversidade que lhe é inerente, expressa pelas linhas orgânicas de um lado e geométricas do outro. Além de ativar a memória-água da cidade, este exercício permitiu a discussão sobre o papel mediador do arquiteto contemporâneo capaz de sensibilizar-se com as tensões urbanas.

Figura 3: Formação dos encontros entre os pigmentos Fonte: Acervo dos autores

Figura 4: Exemplo de manipulação de encontro entre os pigmentos Fonte: Acervo dos autores

O terceiro laboratório proposto neste bloco foi o “Varal de Memórias” (Figura 5). A partir dos objetos de afeto – dentre os quais encontravam-se canecas, chaveiros, ímãs, terço, sapatilha e boneca – trazidos pelos acadêmicos, montou-se um varal expositivo na sala de aula, sem que nenhuma explanação sobre a escolha dos itens expostos fosse realizada. Foi proposto, então, que a partir da leitura que cada acadêmico fizesse dos objetos – deixou-se livre para eleger um objeto, um grupo ou todos eles –, fossem criadas maquetes formais individuais. Questões sobre identidade e sobre a dimensão humana e afetiva traduziram-se, então, em formas, abstraindo sentimentos e narrativas em conceitos como evolução (Figuras 6 e 7), memória, troca, enlace, comunhão e caos. Após a apresentação das maquetes individuais, a turma foi dividida em dois grupos, aos quais foi proposto que se conformasse uma nova maquete, desta vez coletiva. Enquanto um dos grupos optou por reunir todas as outras maquetes, envolvendo-as em uma envoltória transparente como alusão à reunião da diversidade por adição, o outro grupo desconstruiu as maquetes individuais e utilizou seus materiais para reconstruir uma nova maquete a partir de um consenso sobre um novo conceito (Figura 8). Acredita-se que tal exercício tenha sido relevante para ativar a intersubjetividade e as discussões a respeito da autoria na arquitetura, uma vez que, entendendo a criação/intervenção como um processo coletivo, a figura do arquiteto-autor se dilui.


Figura 5: Varal de Memórias Fonte: Acervo dos autores

Figura 6: Maquete formal elaborada no terceiro laboratório experimental, expressando o conceito de evolução Fonte: Acervo dos autores

Figura 7: Maquete formal elaborada no terceiro laboratório experimental, expressando o conceito de evolução Fonte: Acervo dos autores

Figura 8: Maquete coletiva desenvolvida a partir da fusão entre maquetes individuais Fonte: Acervo dos autores

Neste momento, o feedback dado pela turma foi que a abordagem, a discussão e a temática do último exercício foram interessantes, entretanto, surgia certa ansiedade pelo que se chamou de atividade “prática”, em detrimento de atividades ditas “lúdicas”. Tais afirmações levantam a reflexão sobre como os processos que envolvem o entendimento de subjetividades poderiam ser melhor explorado ao longo de toda a formação dos arquitetos, destacando a arquitetura em seu caráter relacional, ao invés de restringi-la a sua potencialidade material. Assim, a fim de retomar as discussões sobre o contexto de intervenção da disciplina para a qual os acadêmicos teriam que desenvolver uma proposta de intervenção (ou nãointervenção justificada) no final do semestre, foi proposto o quarto laboratório experimental, chamado “Arquitetura, corpo e cidade: o que há além de mim”. Para realização deste exercício, foram levadas fotos antigas de Florianópolis, e pediu-se para que os acadêmicos as atualizassem (Figura 9). Esta atualização, entretanto, não consistia em uma ação literal, mas em uma intervenção capaz de exaltar as relações atuais de cada espaço, sua memória, os corpos que lhe constituem e/ou os sentimentos por ele inspirados. Os acadêmicos realizaram, então, intervenções com desenho, recortes e colagens sobre as imagens, cujas estratégias de atualização foram expostas durante o ateliê. Após as discussões que tais gestos geraram, foi


proposto que a turma criasse em conjunto um mapa da cidade com as fotos. A estratégia utilizada pelos acadêmicos foi de identificar a antiga linha d’água da cidade (hoje modificada em função dos aterros) que guiou a conformação do mapa, sendo desenhada por cima das imagens. A discussão gerada por este exercício permitiu identificar as relações entre os espaços da cidade, sua memória, seus atuais usos e relações na montagem de uma narrativa composta por inúmeras sobreposições, a exemplo das fotos que se sobrepuseram para compor o novo mapa (Figura 10).

Figura 9: Fotos antigas em processo de atualização Fonte: Acervo dos autores

Figura 10: Mapa criado a partir das atualizações das fotos antigas Fonte: Acervo dos autores

Após a realização dos quatro laboratórios experimentais aqui expostos, encerrou-se o primeiro bloco da disciplina com o estudo de projetos já realizados para a área de intervenção. Solicitou-se aos acadêmicos que as análises fossem feitas não no sentido de apresentar o projeto, mas de identificar em cada proposta os corpos, as subjetividades, as memórias, as identidades, os sentimentos, as tentativas de suprir as problemáticas existentes e as estratégias de exploração das potencialidades da área. As análises, portanto, foram realizadas identificando quais corpos cada proposta acolhia ou negligenciava, apontando traços espetaculares ou subjetivadores dos desenhos estudados. Acredita-se que esta etapa tenha sido fundamental na transição dos conceitos abstratos para a materialização da arquitetura, assim como no exercício de uma visão crítica sobre as diversas práticas realizadas na área de estudo. Segundo Bloco: Sentir a Cidade Após a análise subjetiva do espaço e do estudo das propostas já realizadas na área de intervenção, realizouse uma deriva urbana no recorte estudado, inaugurando o segundo bloco da disciplina, dedicado a “sentir a cidade”. Após reunir a turma em determinado ponto de encontro, foi proposto que, dali a duas horas, todos se encontrassem no outro extremo da área de intervenção. O percurso até lá, entretanto, era livre, podendo ser percorrido em grupos ou individualmente. Para dinamizar a experiência foi criado um grupo


no aplicativo Whatsapp e, em determinados intervalos de tempo, algumas palavras eram enviadas pelo professor como disparadoras de situações. A ideia destas palavras era fazer com que a deriva fosse realizada de corpo presente, prestando atenção ao próprio caminhar pela cidade. As palavras eram norteadoras para um registro fotográfico e/ou videográfico individual acerca dos afetos que a própria palavra ativava em quem estava caminhando. Cada palavra evocava alguma narrativa do local, relacionando pessoas, lugares, práticas, monumentos, entre outros. As palavras disparadoras foram: “bom parto”, “agulha para desentupir”, “fogão a gás”, “brincadeira de criança”, “secos e molhados”, “fora...”, “memória-água”, “namoros e casórios”, “jogatina”, “devoção e cura” e “eu vejo”. As palavras foram enviadas aproximadamente em grupos de quatro, em intervalos variáveis de tempo, e os registros realizados pelos acadêmicos em resposta a elas eram compartilhados instantaneamente no grupo do Whatsapp. Ressalta-se a diversidade de registros relacionadas a um mesmo tema, identificando a pluralidade de visões que o pequeno grupo de pessoas de formação acadêmica semelhante que vivenciava uma determinada região da cidade no mesmo período de tempo apresentou. Este fato parece ressaltar a alteridade do espaço urbano, e reiterar a importância de se acessar suas inúmeras subjetividades. Além disso, em discussão posterior realizada no ateliê, foi possível identificar a importância do uso de disparadores durante a deriva. Alguns alunos narraram certa estranheza ao se deparar com algumas palavras, a exemplo de “secos e molhados”, que não compunha o repertório de alguns acadêmicos, ou de “fogão a gás”, que à primeira vista parecia ter pouca relação com a área vivenciada. O direcionamento do olhar para estes temas, entretanto, parece ter despertado uma conexão maior com os usos cotidianos da área, incentivando a conexão com as práticas urbanas e os diferentes corpos ali presentes. Destaca-se que também foi possível, com a atividade, transferir a capacidade de subjetivação à cidade e relacionar diretamente conceitos abstratos com preexistências físicas e sociais. A partir disso e das discussões geradas pela experiência, ressalta-se esta prática como importante estratégia de afetação, mediando e facilitando a inscrição tanto da cidade no corpo dos acadêmicos, como de seus corpos na cidade. Após a experiência da deriva, foi proposto que cada acadêmico escrevesse uma carta, de formato livre, a um colega da turma, relatando impressões, sentimentos, inquietações e/ou vontades que a experiência lhe causou. As cartas foram trocadas entre os acadêmicos e, após a leitura individual, foi proposta a confecção de uma carta coletiva. A partir de recortes das cartas originais (Figura 11), a turma criou uma carta coletiva, sintetizando as impressões provocadas pela experiência da deriva (Figura 12), destacando a mudança de velocidade que a vivência do espaço fora das atividades cotidianas nele desempenhadas pelos acadêmicos desencadeou. A palavra central da carta representa a essência da análise e da deriva, ressaltando a intersubjetividade urbana: coexistência.


Figura 11: Fragmentos de cartas geradas a partir da deriva urbana Fonte: Acervo dos autores

Figura 12: Carta coletiva gerada a partir da deriva urbana Fonte: Acervo dos autores

A turma dividiu-se, então, em grupos para realização de um segundo exercício baseado nas cartas trocadas: a partir das impressões que mais lhes tocaram, foi proposto que cada grupo elaborasse um gesto corporal, que seria apresentado – sem valer-se de nenhum comentário – ao restante da turma. Esta atividade desenvolveu-se em três momentos distintos: o gesto original de cada grupo, a réplica dos grupos levando em conta a interação com os outros (com ações de complementação e/ou aceitação e/ou mudança e/ou ruptura), e a tréplica, iniciando a construção de uma narrativa gestual. Após a experimentação das partituras corporais, o exercício foi discutido na turma, que revelou a dificuldade em dar resposta aos gestos que, por vezes, não se compreende. Entretanto, a própria turma observou que, por vezes, interpretar o espaço preexistente é interagir com o estranhamento, reconhecendo a importância de se exercitar tal postura. Outras reflexões surgidas diziam respeito a como tornar público (ou transformar em intervenção) um gesto que é tão pessoal, abarcando questões de identidade e reconhecimento da alteridade. Ressaltou-se, ainda, a necessidade de abertura a outros sentidos que não só a visão na percepção do espaço urbano, envolvendo todo o corpo na sua cartografia. Percebe-se, então, que o exercício revelou-se um dispositivo capaz de ativar questões inerentes à complexidade espacial das cidades, e de despertar a atenção ao fato de que o estudo da morfologia urbana não parece suficiente para desvendar todas as suas dimensões, abrindo espaço para a compreensão da necessidade de complementação dos processos de avaliação e intervenção atuais. Terceiro Bloco: Agir na Cidade A partir das ações até então desenvolvidas, foi possível construir um entendimento a respeito da existência de dissensos no espaço público e de uma abordagem não pacificadora, mas explicitadora destas tensões. Com base nisso iniciou-se o terceiro bloco da disciplina, introduzindo as possibilidades de intervenção no espaço estudado. As discussões de texto e as interações com documentários que exploram os espaços negligenciados das cidades, exaltando os corpos marginalizados que eles abrigam, fomentaram a reflexão a respeito da possibilidade de explicitar os dissensos no espaço urbano, reconhecendo a arte como potência neste sentido. Assim, o “agir na cidade” foi iniciado com propostas de intervenções artísticas na área,


elaborando-se maquetes esquemáticas de obras ativadoras dos dissensos urbanos (Figura 13). Para sua construção, os acadêmicos refletiram sobre as principais problemáticas que gostariam de abordar e os espaços que lhes parecia necessário potencializar. A confecção e apresentação das maquetes iniciou a última etapa do processo de projeto para a área, uma vez que a partir delas a maioria dos acadêmicos selecionou sua temática de ação. Destaca-se também neste exercício o entendimento de que, quanto maiores e mais espetaculares fossem as intervenções, menos perto do corpo elas estariam. Assim, verificou-se a proposição de obras intensamente relacionais, resultado de sensibilidades afloradas e consciência crítica sobre a sua atividade.

Figura 13: Maquetes das propostas de intervenções artísticas na área de estudo Fonte: Acervo dos autores

Após este processo, iniciou-se a produção dos trabalhos intermediários: intervenções pontuais no espaço capazes de tensionar as questões levantadas até então. Surgiram, neste momento, desde intervenções artísticas em casarões abandonados ocupados por moradores de rua, com a instalação de espelhos nas portas como forma de refletir no abandono a vitalidade urbana e as necessidades de seu entorno, até equipamentos de estar, em um dos casos construído com os resíduos das construções do entorno. Foram desenvolvidas, ainda, propostas de mobiliários de suporte para comerciantes locais, criticando a higienização ocorrida no mercado público da cidade e ensaios fotográficos sobre os usos marginais da área de intervenção. A partir de então desenvolveram-se os projetos finais, que foram evoluções destas propostas intermediárias: às intervenções artísticas nas fachadas dos casarões abandonados seguiu-se a proposta de reforma de uma casa para abrigar moradores de rua (Figura 14); como evolução dos dispositivos de estar foram desenvolvidos planos de revitalização de áreas pouco arborizadas com mobiliário flexível e dinamização de atividades, a fim de criar um revezamento de usos em diferentes horários e aumentar a sensação de segurança de determinados locais (Figura 15); seguindo a proposta de suporte para os comerciantes foi configurada uma praça coberta para feiras em local próximo à maior concentração de ambulantes e ao ensaio fotográfico dos usos marginais seguiu-se uma intervenção efêmera com coberturas tensionadas em uma rua da área, por exemplo. Além disso, foram propostos mirantes (Figura 16), centros culturais (Figura 17), entre outros.


Figura 14: Projeto final de um acadêmico Fonte: Produção de acadêmicos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC

Figura 15: Projeto final de um acadêmico Fonte: Produção de acadêmicos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC

Figura 16: Projeto final de um acadêmico Fonte: Produção de acadêmicos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC

Figura 17: Projeto final de um acadêmico Fonte: Produção de acadêmicos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC

No encerramento da disciplina, além da apresentação dos projetos finais, tão diversos em suas propostas como os usos, os corpos e a cidade em si pode ser, foram entregues os cartões postais (Figuras 18, 19 e 20). Configurados a partir de registros fotográficos, de aquarelas, de fotomontagens, de desenhos a mão livre, de textos, frases e de colagens, sua exposição denotou o processo de sensibilização à cidade e à área de estudo, a importância da construção da autonomia nos acadêmicos e a necessidade de dinamização das práticas de ensino (ou experimentação da arquitetura) para que outras subjetividades possam ser alcançadas em seu exercício.


Figura 18: Cartões postais entregues no final da disciplina Fonte: Acervo dos autores

Figura 19: Cartões postais entregues no final da disciplina Fonte: Acervo dos autores

Figura 20: Cartões postais entregues no final da disciplina Fonte: Acervo dos autores

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao final da disciplina, na discussão de encerramento, inúmeros feedbacks foram dados e sua relevância é grande no sentido de contribuir para a evolução de metodologias alternativas de ensino e para o aperfeiçoamento do ateliê proposto. Além de citarem a importância da nova experimentação explorada como forma de refletir criticamente sobre o exercício da arquitetura e de elencarem algumas dificuldades enfrentadas ao longo do semestre em função do padrão de formação que não prepara os jovens arquitetos para dialogar com questões de complexidade social, os acadêmicos colocaram a impaciência provocada pelo estender das fases de discussão e reflexão, que poderiam ter sido desenvolvidas com uma relação mais direta com intervenções físicas. Neste sentido, foi ainda colocada a possibilidade de se relegar um tempo maior para a concepção do trabalho final, que acabou se desenvolvendo mais rápido do que os acadêmicos esperavam. Em contrapartida, os estudos de texto foram referenciados como importante estratégia pouco utilizada nas disciplinas de projeto, enfatizando a relevância de se contar com uma base teórica no momento de projetar e compreender a área de intervenção, e criticou-se, no mesmo sentido, o fato de as avaliações convencionais atentarem-se mais ao produto plástico (e, por vezes, à representação) do que à reflexão crítica motivada pelo trabalho e às relações exploradas, mantidas, potencializadas e/ou descartadas no projeto. Apesar das inúmeras considerações relevantes na discussão sobre a disciplina e sua metodologia, a pressa em se trabalhar com a materialidade foi frequente e levanta alguns questionamentos nesta análise posterior. Sabe-se que a metodologia tradicional pressupõe produtos formais nas disciplinas de projeto, o que pauta a experiência dos estudantes, gerando certa ansiedade em processos que tentam evocar outras formas de produção de arquitetura. Os benefícios trazidos pelas etapas de reflexão teórica e experienciação ou vivência da área de intervenção levantam o questionamento a respeito da real necessidade de se trabalhar com produtos físicos em todos os ateliês de projeto. Embora entenda-se que uma das vertentes da profissão do arquiteto demanda a concepção de objetos físicos – sejam edifícios ou


equipamentos urbanos –, ressalta-se a necessidade igualmente importante de se preparar os profissionais para o reconhecimento das dinâmicas humanas que influenciam diretamente seus contextos de intervenção. Questiona-se, portanto, a possibilidade de concepção de disciplinas de projeto que não tenham a materialidade e as discussões técnicas como principal objetivo, mas que visem especialmente o desenvolvimento do pensamento crítico e da percepção de subjetividades. Acredita-se que o caráter relacional da arquitetura contemporânea e os bons resultados apontados na breve experiência aqui descrita podem motivar a discussão a respeito do projeto enquanto prática relacional e crítica, expandindo os exercícios para além de atividades de desenho e proposição de objetos, abrangendo a compreensão das subjetividades inerentes à cidade. É neste sentido que se ressalta a importância das disciplinas de cunho teórico na formação de arquitetos e urbanistas: acredita-se que elas auxiliam no pensamento crítico e na compreensão da dimensão humana presente na arquitetura. Desta forma, vislumbra-se a possibilidade de incorporar novas discussões na prática projetual abordando-a em toda a sua complexidade, ou seja, encarando o projeto não apenas em seu estágio de materialização, quando ideia e experiência viram desenho, mas especialmente em suas fases anteriores, que remetem à formação de um devir arquiteto urbanista, ou seja, do entendimento da prática arquitetônica na formação do próprio individuo enquanto arquiteto, assim como de seu posicionamento frente à questões relacionadas à percepção de práticas sociais. O compartilhamento desta experiência teve, portanto, o intuito de endossar a discussão sobre o papel do arquiteto contemporâneo e apresentar alternativas – mesmo que em processo constante de aperfeiçoamento – de exercícios que podem ser realizados em ateliê para ajudar a aflorar a sensibilidade às subjetividades urbanas. Acredita-se que elas sejam importantes na resistência à pasteurização da arquitetura e à produção de equipamentos espetaculares que, por vezes, desencadeiam processos de gentrificação em suas áreas de implantação e descartam as preexistências humanas que podem ser encaradas enquanto essência de uma arquitetura de forte cunho transformador.

REFERÊNCIAS: BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. “Cenografias e corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade”. Cadernos PPGAU/UFBA. Salvador: PPGAU/UFBA, Ano 6, número especial, pp. 79-86, 2008. FILHO, José Cabral dos Santos. Arquitetura irreversível: o corpo, o espaço e a flecha do tempo. In: Revista Arqtextos, ano 08, 2007. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.089/202>. Acesso em: 30 de abril de 2018. GUIZZO, Iazana. A urgência ética e política de incorporar às práticas urbanísticas a idade expressiva. 2012. Disponível em: <http://www.3margem.com.br/conteudo/2017/2/14/a-urgncia-tica-e-poltica-de-incorporar-s-prticas-urbansticasa-cidade-expressiva>. Acesso em: 09 de junho de 2018. JACQUES, Paola Berenstein. “Zonas de tensão: em busca de micro-resistências.” In: [JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (Org.)]. Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010. SANTOS, Milton. Elogio da Lentidão. Folha de São Paulo. São Paulo. 11 mar. 2001. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1103200109.htm>. Acesso em: 10 de maio de 2018.


JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias Urbanas. 2008. Ano 08. Disponível <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165>. Acesso em: 10 de maio de 2018.

em:

SANTOS, Milton. O tempo nas cidades. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 54, n. 2, out/dez, 2002. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252002000200020>. Acesso em: 10 de maio de 2018.


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