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Entrevista a Manuel Heitor: «O voluntariado per mite-nos compreender aquilo que ainda não conhecemos»

«O voluntariado permite-nos compreender aquilo que ainda não conhecemos»

Para o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, os desafios vividos com a pandemia da Covid-19 vieram reforçar a importância da solidariedade e do trabalho voluntário. Em conversa com a Forum, o ministro destaca os passos dados para o estímulo deste tipo de atividade, destacando os benefícios que resultam do trabalho voluntário realizado por um estudante: “O Ensino Superior é um momento particularmente oportuno para um jovem de 20 anos, quando tem uma energia incalculável, ter também outras experiências de vida e de relacionamento social”.

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Entrevista: Fábio Rodrigues | Fotografia: Samuel Rodrigues

No passado, já destacou a importância da realização de trabalho voluntário, nomeadamente por parte dos estudantes. Qual a razão para lhe atribuir essa importância?

Vivemos hoje tempos sem precedentes, em Portugal e no Mundo. Cada vez mais, a solidariedade e o respeito pelo próximo fazem parte de qualquer sistema educativo, em qualquer idade e ao longo da vida. Mais do que nunca, a responsabilidade daqueles que estão no ensino superior é particularmente importante. E o voluntariado estudantil é certamente mais um passo dado na educação para a cidadania. Uma dimensão para que a crise pandémica e a crise social e económica associada, nos vieram alertar de uma forma ser precedentes. Foi por isso que, em estreita colaboração com a Forum Estudante e usando o projeto piloto iniciado em 2020 pela Universidade de Coimbra, apoiámos o movimento Transforma Portugal. Achámos que era altura de reforçar a tradição de voluntariado no ensino superior, usando também a experiência que é bem conhecida da Forum Estudante, que tem um movimento particularmente importante em todo o ensino superior português, entre outras áreas. O Transforma Portugal vem apelar a todos os estudantes para participar, de uma forma ativa, naquilo que, cada vez mais, chamamos de ativismo estudantil. Com uma participação crescente dos estudantes que se apoiam entre si, mas que apoiam também a população e com isso adquirem outras capacidades e competências. Isto

não pode ser encarado como um mero serviço prestado pelos estudantes. Acima de tudo, é um processo próprio de aquisição de competências e de capacidade de resiliência social que fazem parte de um sistema educativo.

Pensando precisamente na experiência de um estudante, pensa que existe alguma especial afinidade entre esta experiência de voluntariado e o momento de frequência do ensino superior?

Infelizmente, em Portugal e sobretudo no sul da Europa, temos uma experiência de participação no Ensino Superior particularmente curta. Tipicamente, os portugueses entram cedo e saem cedo do Ensino Superior. A idade média de um estudante do Ensino Superior em Portugal d cerca de 25 anos. Em comparação, nos países nórdicos, por exemplo, é de cerca de 40 anos. Em Portugal, estamos a atuar cada vez mais numa lógica de prolongar os estudos – nos últimos anos triplicámos os estudantes em pós-graduação,

que é um processo importante, ao continuar e alargar a formação ao longo da vida. Em todo o caso, sabemos que a participação no Ensino Superior é relativamente curta e, por isso, tem de ser maximizada em todas as suas etapas. O Ensino Superior é um momento particularmente oportuno para um jovem de 20 anos, quando tem uma energia incalculável, se dedicar aos seus estudos – à dimensão académica ou científica —, mas para ter também outras experiências de vida e de relacionamento social. Quer seja entre os seus pares ou noutros movimentos de solidariedade. Não nos podemos esquecer que, apesar dos

enormes progressos feitos nos últimos anos, ainda só metade dos jovens de 20 anos participam no Ensino Superior atualmente em Portugal. Em 2015, eram 40%, há 20 anos, eram 30%. Portanto, o progresso é enorme, sendo que queremos chegar atingir a meta de 60%, até ao final desta década. Em todo o caso, ainda há, hoje, metade dos jovens que não têm oportunidade de entrar no ensino superior, sabemos que sobretudo por razões económicas e sociais. Por isso, este esforço de solidariedade dos jovens que estão no ensino superior é também um apelo para a sua solidariedade social com as partes da população em situação mais vulnerável.

O que é que acredita que um estudante de Ensino Superior pode ganhar, ao juntar a sua experiência no Ensino Superior uma experiência de voluntariado?

Ganha a vida real ou o conhecimento da vida real. Certamente, poderemos falar das competências sociais – aquilo que na gíria normalmente se apelida de soft skills. Mas é mais do que isso. O voluntariado permite-nos ganhar o conhecimento dos desafios que hoje fazem parte da vida, de compreender aquilo que ainda não conhecemos, nem a partir da nossa experiência passada nem dentro de uma sala de aula. Sabemos que o que aprendemos dentro da sala de aula é muito importante, mas sabemos também que a vida real tem muitas outras características que só se aprendem vivendo, fazendo, convivendo, interagindo. O voluntariado é isso. É abrir portas a uma realidade que é impossível ser experimentada, percebida ou compreendida dentro de uma sala de aula. Este processo de aprender, apreender e empreender que se realiza através da atividade científica, ganha muito se for realizado também em crescente interação social.

«Cada vez mais, a solidariedade e o respeito pelo próximo fazem parte de qualquer sistema educativo, em qualquer idade e ao longo da vida. [...] E o voluntariado estudantil é certamente mais um passo dado na educação para a cidadania»

Tendo em conta essa oportunidade que refere, de que forma é que o sistema de ensino superior acaba por fazer a ponte com a área do voluntariado?

Este é um tema que não pode ser imposto, quanto a mim. Penso que necessita de ser

«Sabemos que o que aprendemos dentro da sala de aula é muito importante, mas sabemos também que a vida real tem muitas outras características que só se aprendem vivendo, fazendo, convivendo, interagindo. O voluntariado é isso»

verdadeiramente um esforço de voluntariado e de mobilização coletiva. É por isso que é importante reforçar os movimentos numa lógica bottom-up, certamente com os estudantes, as associações e os núcleos que hoje caracterizam muito a vida estudantil. Há também um papel muito importante no movimento associativo – com clubes temáticos ou grupos orientados para outras áreas como o desporto. Sabemos que este processo pode ser apoiado e estimulado se existirem incentivos nos curricula. E, cada vez mais, há experiências implementadas nas instituições de ensino superior – que dependem da autonomia académica – que providenciam créditos a estas atividades. Mais uma vez, este é um movimento que não deve ser imposto e que deve vir das próprias instituições. Este cruzamento entre a mobilização dos estudantes e do voluntariado, com a combinação de algumas atividades que podem dar origem a créditos, é um processo a que temos assistido gradualmente. É um grande desafio a percorrer, mas cada vez temos mais experiências de casos onde muitas destas atividades de voluntariado possibilitam créditos, resultando num diploma que inclui também este tipo de certificação do trabalho voluntário. Sabemos que, hoje, praticamente todas as instituições de ensino superiores têm responsáveis associados a estas atividades, quer para a mobilização de ações de voluntariado quer para o envolvimento dos estudantes em ações do âmbito social e de contacto com a população.

Relativamente a essa questão do estímulo ao trabalho voluntário dos estudantes, uma das iniciativas mais recentes da Forum Estudante, onde o MCTES é um dos principais parceiros, é o movimento Transforma Portugal. De que forma é que pensa que esta iniciativa se enquadra neste esforço?

É mais um passo dado nesse sentido, utilizando um projeto piloto que foi iniciado pela Universidade de Coimbra em colaboração com o movimento Transforma Brasil e que depois se conseguiu ampliar a todo o Ensino Superior, contando também com mecenas públicos e privados externos. O projeto procura sobretudo apoiar microprojetos — sabemos que esse tipo de financiamento éum estímulo particularmente importante. Neste momento, já estão em curso alguns projetos, sendo que o objetivo é ter pelo menos 500 ações com microfinanciamento até 400€, valor que serve como incentivo e para cobrir as despesas envolvidas em equipamentos ou deslocações, por exemplo. Estes são projetos que são propostos pelos próprios estudantes, inseridos nos mais variados temas, desde o apoio social, o apoio clínico, entre outros, como a área científica, cultural ou desportiva. É um contributo para o movimento solidário – ter estudantes das mais variadas áreas, que reúnem competências diversas, a realizar e apoiar projetos concretos.

Referiu há pouco que a pandemia da Covid-19 poderá ter influência na redescoberta do voluntariado. Qual prevê que seja o impacto da pandemia no sistema educativo, a médio-longo prazo?

É certo que, quer no Ensino, quer em qualquer atividade do âmbito social, económico ou outra, a vida pós-Covid será diferente. Penso que não há qualquer dúvida sobre isso. No ensino, em particular, a mobilização que esteve associada ao ensino a distancia e à transição para o digital, veio demonstrar, contra todas as eventuais resistências, que era possível fazer muitas atividades no foro digital, desde que exista uma infraestrutura de comunicações que em Portugal existe. Ao mesmo tempo, a pandemia da Covid-19 veio evidenciar a necessidade intrínseca de entreajuda, para apoiar aqueles que têm menor

«A pandemia mostrou, cada vez mais, que a Ciência e o estudo criam empregos e empregos melhores. E que de facto as sociedades mais resilientes e menos vulneráveis ao risco, são aquelas com maior capacidade de formação»

capacidade para estar à frente de um ecrã sistematicamente, por exemplo, mas também no próprio processo de ensino-aprendizagem, quer do lado dos estudantes quer do lado dos docentes, ao existirem processos de ensino misto. Esta realidade implica a mobilização de todos, certamente do corpo docente, mas também do lado dos estudantes. Ficou claro que grande parte da transmissão teórica de conhecimento pode ser feita por vias digitais. Contudo, também ficou muito claro que há outros aspetos em que é requerida uma presença. Nos momentos de confinamento, esse foi um problema. Por isso, a entreajuda entre estudantes foi muito importante e, agora, no desconfinamento, continua a sê-lo, para antecipar quaisquer futuras evoluções menos positivas, bem como para ajudar a mobilização e a modernização do sistema de ensino. Naturalmente, conhecemos o papel crítico das instituições e dos docentes. Mas não há sistema de ensino-aprendizagem sem uma forte mobilização dos estudantes. Por isso, estou certo que estes movimentos que também são importantes no próprio diálogo com as instituições e com os docentes. Não nos podemos esquecer, contudo, que a pandemia é inédita em muitos aspetos em Portugal, sendo que há um aspeto que é crítico – nunca tinha havido um aumento tão grande de estudantes no Ensino Superior. Ultrapassámos, em 2020/2021, o recorde da taxa de adesão ao ensino superior, em democracia, quer de jovens, quer de adultos para pós-graduação. Agora, temos de garantir que este movimento continua e que aqueles que este ano de pandemia aderiram pela primeira vez ao Ensino Superior que não desistem e continuam a estudar. A pandemia trouxe também consequências sociais e económicas: sabemos que aumentou muito o desemprego sobretudo dentro das faixas da população com baixas qualificações. Essa fatia da população não teve oportunidade de ingressar no ensino superior e temos de garantir que continuam a estudar e que, estudando mais, têm melhores empregos. Temos muita incertezas perante o futuro, mas também temos uma certeza. A pandemia mostrou, cada vez mais, que a Ciência e o estudo criam empregos e empregos melhores. E que, de facto as sociedades mais resilientes e menos vulneráveis ao risco, são aquelas com maior capacidade de formação. Este é um processo importante e um desafio para os próximos anos.

O ministro Manuel Heitor teve experiências de voluntariado? E que papel acabaram por cumprir?

Foram muito importantes. Eu entrei no ensino superior um ano depois do 25 de abril, quando existia o segundo ano daquilo que, na altura, se chamava o serviço cívico. Lembro-me que estive a trabalhar num campo agrícola no Alentejo, numa propriedade em Évora, e foi uma experiência inesquecível. É uma experiência que ninguém esquece e foi muito importante, entre muitas outras ações.

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