alice martins
daniela dacorso - guatemala - josĂŠ bezerra - rafael vilela
fotografia et al conceito | arte | expressĂŁo
nÂş04 Novembro 2015
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Voltamos!
Nesta edição nosso foco é o fotojornalismo. Na capa, Alice Martins, uma fotógrafa da nova geração que em pouco tempo conquistou seu espaço no fotojornalismo internacional cobrindo conflitos no oriente médio, entre outros assuntos. Uma entrevista com Daniela Dacorso, fotojornalista do Rio de Janeiro que desenvolve um extenso e reconhecido trabalho autoral. Adriana Zehbrauskas, fotojornalista brasileira residente no México, traz um relato sobre sua viagem a Guatemala com imagens incríveis. Peraí...é uma edição sobre fotojornalismo ou sobre mulheres fotojornalistas? Foi coincidência, mas a verdade é que elas são muito talentosas e independentemente do gênero, garantiram seu espaço – de destaque – no fotojornalismo.
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fotografia et al Para quebrar o “Clube da Luluzinha” trazemos ainda José Bezerra e Rafael Vilela com trabalhos incríveis. O primeiro sobre os garimpeiros em Equador (RN) e o segundo expressando sua visão sobre o futuro do jornalismo e fotojornalismo. Temos ainda artigos sobre o Festival Hercule Florence de Fotografia de Campinas – o mais importante do interior de São Paulo – e novos lançamentos literários sobre a fotografia. Para fechar temos Armando Vernaglia Jr, Alex Villegas e Bruno Massao com suas já tradicionais colunas sobre Fotografia de Cinema, Médio e Grandes Formatos e Fotografia de Filme, respectivamente.
Muito obrigado a Daniela Dacorso e a Alice Martins que me atenderam pacientemente para a realização das entrevistas. Meu enorme agradecimento a Adriana Zehbrauskas, José Bezerra e Rafael Vilela que contribuíram significativamente para esta edição com artigos maravilhosos. Meus agradecimentos vão também para o Ricardo Lima, um dos idealizadores e realizadores do Festival Hercule Florence e para Magali Martucci que deu todo apoio para os artigos sobre a Coleção Ipsis e a Rev. Nacional, além de Marcela Zullo que, finalmente, fez sua estreia como colaboradora da revista. E mais uma vez, meu muito obrigado ao Vernaglia, Villegas e Massao por mais essa colaboração. E finalmente, depois de 14 meses de espera, a edição #4 da Fotografia et al!
Carlos Alexandre Pereira
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Fotografia et al nesta edição com
A Fotografia et al está sempre em busca de novos colaboradores. Entre em contato através do email contato@fotografiaetal.com se você possui alguma sugestão de artigo ou deseja colaborar com a revista.
Adriana Zehbrauskas é uma fotojornalista brasileira baseada no México. Seu trabalho foca principalmente problemas relacionados a imigração, religião e a violência resultante do narcotráfico mexicano, assim como o dia-a-dia das comunidades carentes.
Mande suas imagens para imagens@fotografiaetal.com para participar de nossa Galeria de Imagens.
Paulistano, Alex Villegas é fotógrafo dedicado ao retrato e fineart, sempre em PB. Leciona no Instituto Internacional de Fotografia e escreve livros técnicos nas horas vagas.
Revista Fotografia et al www.fotografiaetal.com Edição Carlos Alexandre Pereira Projeto Gráfico Carlos Alexandre Pereira Revisão Marcela Zullo Comercial comercial@fotografiaetal.com
Carlos Alexandre, fotógrafo de expedições e explorações urbanas, com uma paixão por fotografia P&B que se reflete no seu portfólio quase monocromático. Autor de artigos e palestrante de workshops sobre fotografia.
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Formada em Comunicação Social com Pós-Graduação em Fotografia como Instrumento de Pesquisa em Ciencias Sociais, Daniela Dacorso trabalha atualmente como fotógrafa free-lancer além de desenvolver projetos autorais.
Alice Martins é uma fotojornalista freelancer e cobre crises humanitárias e conflitos armados. Atualmente esta baseada no Oriente Médio cobrindo a guerra civil Síria desde 2012. Seu trabalho já foi publicado em diversos veículos de comunicação internacionais de grande prestígio.
Fotógrafo e diretor de fotografia, Armando Vernaglia Jr. Especializado em fotografia de arquitetura, ambientes, turismo e produtos, é também professor de fotografia e cinema, consultor de imagem e palestrante.
Potiguar de Mossoró, José Bezerra desenvolve um trabalho fotográfico documental. Seu trabalho tem forte ligação com pessoas, culturas e contextos. Costuma avaliar o psicológico dos fotografados, buscando por expressões que sintetizem os personagens a sua volta.
Fotógrafo de rua de São Paulo, Bruno Massao é um dos poucos que consegue lidar com o clima maluco desta cidade. Faça chuva ou faça sol, lá está ele, registrando cenas da capital paulistana.
Rafael Vilela, fotógrafo, fundador do Mídia NINJA e integrante do Fora do Eixo. Em 2014 teve três fotografias selecionadas para o Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM-SP. Em 2015 articula a fundação da rede “Jornalistas Livres” responsável pelo maior financiamento coletivo do jornalismo brasileiro.
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Engenheira Civil por formação e profissão. Fotógrafa e escritora por paixão. Busca retratar o belo na vida cotidiana. Tem interesse especial por viagens e arquitetura.
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10 Galeria de Imagens
78 Festival Hercule Florence
14 Daniela Dacorso
80 Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira
24 Alice Martins
88 Rev. Nacional
42 Sob os Vulcões da Antígua Guatemala
90 Fotografia de Cinema
54 Os Garimpeiros de Equador 92 Médio e Grandes Formatos 64 Do Mundo Para o Mundo
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94 Fotografia de Filme
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Kazuo Okubo “-”
Renan Tobbias “Solitude”
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André Rocha “Bruma”
James P S Conway “Guarda-Vidas”
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Daniela Dacorso por carlos alexandre pereira
Daniela
começou a trabalhar com fotografia nos anos 90 fotografando bandas de amigos. Foi a integração de duas paixões, música e fotografia. Após trabalhar para uma agência de notícias como fotojornalista e para uma revista holística como redatora, decidiu se aventurar como freelancer, primeiro para a revista Manchete e logo depois a revista Geográfica Universal. Seu tempo trabalhando para Geográfica Universal lhe rendeu muitas viagens. Foram diversas expedições pelo mundo afora, uma experiência incrível para uma fotógrafa iniciante. Após o fechamento da editora Bloch, que publicava ambas as revistas, voltou-se novamente para a música. Desta vez seu trabalho foi além e fez entre outras coisas fotos para capas e encartes de discos. Alguns dos seus trabalhos mais importantes nesta área foram as capas do primeiro disco tanto do Planet Hemp quanto do Marcelo D2 e uma capa para os Titãs. Permaneceu como freelancer por muito tempo, trabalhando em diversas áreas e desenvolvendo trabalhos pessoais em paralelo. Em 2009 voltou a trabalhar para uma publicação, desta vez a revista Isto é, onde ficou por dois anos. Atualmente trabalha no jornal O Globo, principalmente na área de suplementos (Segundo Caderno, Revista e matérias especiais para o editorial do Rio de Janeiro. Entre sua saída da revista Isto é e o início no jornal O Globo, esteve no Acre produzindo um livro sobre as florestas do estado. O livro foi patrocinado pelo governo do Acre e pelo Banco Mundial. 15
Em paralelo a tudo isso, Daniela desenvolve um extenso trabalho autoral. Ela acredita que as duas coisas – o fotojornalismo e o trabalho autoral – estejam ligadas. Segundo ela, o fotojornalismo permite passar a maior parte do tempo na rua, algo que preza muito, e serve de inspiração ao fazê-la pensar sobre a realidade que vivencia. Entre os temas mais recorrentes em seu trabalho pessoal estão o corpo e ritos, não por acaso temas centrais também na música. A entrevista que segue foi feita através de email, o que é uma pena, pois as conversas que tive com Daniela pelo chat me deram a impressão de ser uma pessoa interessantíssima para se ter uns dois dedos de prosa em pessoa. 1. Como você começou na fotografia? Minhas ambições profissionais oscilavam entre artes plásticas e medicina, mas o jornalismo me atraía pelo alcance e pelas possibilidades de viver novas experiências. Virei jornalista e, naturalmente, fui me direcionando para a linguagem visual. Fotografava bandas de amigos e um dia uma agência de notícias precisou de uma foto que eu tinha feito de um show. Eu escrevia e fotografava para essa agência e o espaço da fotografia foi crescendo.
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2. Qual a sua principal atividade fotográfica no momento? Atualmente trabalho como fotojornalista no Jornal O Globo. Nunca tinha trabalhado em jornal e, há dois anos atrás, quando me ofereceram essa oportunidade, aceitei. A prática diária te deixa ninja – no sentido de pensar rapidamente e criar soluções para as variáveis que compõem a foto: escolha da locação, iluminação, direção, etc. Meu foco principal são retratos, mas também clico hard news eventualmente, geralmente quando estou de plantão. É instigante a possiblidade de viver experiências inusitadas e de testemunhar fatos históricos. Costumo dizer que o jornalismo é uma cachaça! 3. Quais as suas motivações na realização do seu trabalho autoral? O trabalho autoral é algo que tenho que fazer. É como respirar. Não tenho escolha, é como se o próprio trabalho se impusesse. 4. Como surgiu a ideia de documentar o funk carioca? Sempre fui envolvida com música, dança e a cena cultural. No mundo da música, onde comecei a fotografar, criei várias amizades. Um amigo do hip-hop de São Paulo me apresentou o Catra, que hoje é bem conhecido no cenário musical. Um jornalista alemão veio fazer uma edição especial de uma revista de turismo no Brasil e queria uma matéria sobre baile funk. Sugeri que seguíssemos o Catra. Na primeira noite, tudo aconteceu: fomos a quatro bailes entre baile de playboy, periferia e favela – e acabamos a noite no Clube Emoções da Rocinha. Ali fiz algumas das fotos que mais gosto, em meu trabalho. Foi arrebatador. Na época, eu era freelancer, então resolvi dedicar tempo e finais de semana ao projeto. Acho muito louco quando me lembro disso, para mim é uma lição de que o que fazemos com amor, vinga. Hoje sou mais conhecida por esse trabalho que por qualquer outro. A gente tem que seguir o impulso criativo.
5. Esse trabalho tem início, meio e fiml ou é o trabalho de uma vida? Hoje eu já não frequento bailes com a câmera. Mas é trabalho de uma vida, na medida em que se desdobrou em outros temas. Aconteceu naturalmente e hoje percebo o quanto estou embebida dessa paixão, pela cidade, pela cultura de periferia e suas originalidades, pelo encanto por temas como corpo, movimento, dança, transe. E isso me levou, naturalmente, ao (sub)Urbanos, ensaio em que fotografo customizações de aparência pessoal no ambiente urbano da periferia carioca. Agora, estou iniciando um terceiro trabalho que é uma consequência dos dois primeiros (Totoma! e (Sub)Urbanos), fotoesculturas com corpos e objetos. É um pouco complexo em termos de realização, inscrevi em um edital – coisa que nunca havia feito, mas ganhando ou não, vou realiza-lo. Outro dia li um artigo que falava do amadurecimento na vida do artista. É muito gratificante o trabalho enquanto “amigo de longa data”, e algoz também, de certo modo. Acho que todo trabalho ao qual você se dedica de coração e de corpo inteiro - você se joga é um trabalho da vida. Porque ele te modifica, ou melhor, você se modifica com ele. De certo modo ele te leva ao autoconhecimento. Como diz o Mc Mascote, no funk do Mr M: “Bota o corpo inteiro, pra ficar muito maneiro”. 6. 6. O funk é uma forma de expressão cultural controversa, com admiradores e críticos. Você acredita que um trabalho documental sobre um determinado assunto controverso como o funk pode ser avaliado de forma imparcial, ou a opinião do observador sobre o assunto documentado afeta a impressão que ele tem do trabalho fotográfico? Pergunta incrível, essa é uma questão que fui percebendo com o tempo. A fotografia sempre teve essa pretensão de mostrar o mundo como ele é. Mas hoje sabemos que nenhum trabalho dito “documental” é neutro. Você está interferindo na percepção de 22
quem recebe a imagem, através de suas escolhas. Na fotografia, propriamente dita, você manipula os parâmetros que forma a imagem para enfatizar emoções e ideias, e na edição também. Tudo é escolha. Se uso uma teleobjetiva e comprimo os planos, crio ali uma relação entre eles. Ou, se uso uma grande angular, o objeto ou situação em primeiro plano ficará desproporcionalmente maior. Tipo foto de buraco de rua, que a gente faz para jornal, sabe? Eu sempre tive essa questão: Como me posiciono em relação ao assunto? Já aconteceu de jornalista tentar manipular a pergunta – em entrevista em época de exposição - colocando palavras na minha boca para carregar nas tintas, enfatizar o aspecto de violência e relação com o tráfico da cena funk. Eu sou jornalista também né, tô acostumada com esse tipo de coisa. Também já usei argumentos na hora de falar do trabalho que não uso mais - de que o funk é uma cultura neutra como qualquer outra, que a sociedade demoniza o ritmo etc. Creio que isso, embora tenha um fundo de verdade, não cabe a mim. Hoje vejo que as escolhas que fiz nesse trabalho são pessoais, de certo modo estou projetando conteúdos nesse trabalho. Eu não sou neutra. E também não preciso resolver as contradições da sociedade no meu trabalho. Isso não é função do artista. Hoje enxergo o Totoma! mais como um trabalho ‘documental imaginário’ do que como documental no sentido puro da palavra. Porque está embebido de subjetividade e desse meu fascínio pelo uso do corpo como expressão de poder. A escolha da sexualidade aparente, violenta. E a adoração. Agora, sobre como o trabalho será recebido pelo observador, não posso controlar isso. E isso é lindo, é uma questão central no fazer arte, eu acho. Vejo que algumas pessoas se identificam com o trabalho de um jeito parecido com o meu. Alguns entendem o humor, as piadas que faço com os títulos. Eu amo o humor, que é uma coisa que o funk tem muito! Outros ficam chocados. Já aconteceu de rolar polêmica numa exposição em que participei, em 23
Rotterdam - Brazil Contemporary. O cônsul brasileiro não gostou da minha foto em uma das versões do cartaz da exposição, porque aquilo para ele não representava o Brasil. Era uma imagem de uma menina dançando com um revólver de brinquedo. Agora, eu gosto de uma certa polêmica sim. Gosto de provocar, e isso para mim, está dentro da função do artista! E soltar o trabalho no mundo traz boas surpresas, também. No Ateliê da Imagem – uma escola de fotografia e galeria muito bacana que tem aqui no Rio, onde fiz minha primeira exposição – o pessoal comentou que o Ateliê nunca havia recebido um público tão diversificado quando em minha exposição. Um povo que não era habituê de galeria, que foi lá ver fotos de funk. Isso é muito legal! 7. O que você pode falar sobre seus projetos futuros? Nossa, tenho três trabalhos em processo. Tem esse das fotoesculturas, e outros dois sobre temas que não têm nada a ver com cultura urbana! Um chama-se “olho d’água”, e outro é feito de apropriações de frames de filmes, com uma elaboração interessante, relacionada ao fotojornalismo. E ao expressionismo. Parece cabecice, não dá para explicar assim falando. Falar é bom, faz a gente pensar sobre o trabalho, mas o mais importante é fazer. Haja tempo né? O sonho é ter mais tempo e recursos para me dedicar aos trabalhos autorais. Vamos construindo!
Desde quando fizemos esta entrevista até agora, data de publicação da revista, muita coisa aconteceu. Em março deste ano – 2015 – Daniela pediu demissão do jornal O Globo para dedicar-se mais a fotografia autoral. Em paralelo ela começou a dar aulas de fotografia e em breve irá iniciar um workshop de retratos em locação, sua especialidade enquanto fotojornalista. Este ano já realizou uma exposição individual, chamada “Autofocus”, com curadoria de Marco Antônio Teobaldo, além de ter participado de várias outras exposições coletivas inclusive durante o Foto Rio. Perguntei a Daniela um acontecimento marcante neste período que ela gostaria de citar. Essa foi sua resposta: “Fui à inaguração da exposição “Veias” - dos fotógrafos escandinavos Anders Petersen e Jacob Aue Sobol e me identifiquei com o conceito: a fotografia documental como ponto de partida para a fotografia de arte. Imagens onde a subjetividade do fotógrafo é assumida, chegando ao ponto de sugerir ficções. Que deixam o receptor aberto para projetar, também, seus conteúdos e subjetividades. Ficção e documentário, categorias aparentemente opostas, se confundem. Tem muito a ver com meu trabalho pessoal, que partiu do fotojornalismo e foi se “descolando” dele e da obrigação de ser espelho do real e de dar conta definir a coisa em si, essa obrigação de ser “documento”. Por uma feliz coincidência, eles queriam fechar a exposição com uma oficina no Rio e em Salvador. Então construí a oficina a partir da ideia do Philippe Dubois sobre as maneiras de pensar a “transparência” da imagem fotográfica: fotografia como espelho do real, fotografia como transformação do real e fotografia como traço de um real, apoiada em diversos textos de pesquisadores, como a Kátia Lombardi (que propôs a ideia do documentário imaginário) e a Evelyse Lins Horn, pra citar alguns.”
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Alice Martins por carlos alexandre pereira
Quando
“Ninguém da minha família é fotógrafo, nem meu pai, que me deu minha primeira câmera. Não lembro se foi eu que pedi ou se ele deu de presente, nem lembro de alguma relação especial com a fotografia antes de ganhar minha primeira câmera. É engraçado que desde o início usei a câmera para fotografar pessoas na rua. Nunca fiz fotos ‘pousadas’, sempre fui meio fotojornalista mesmo.”
- Vai ter que ser uma visita rápida por que viajo ainda hoje para Turquia.
- Não tem problema, já arrumei tudo. E eu só decidi mesmo ontem a noite quando comprei a passagem.
Alice nasceu em 1980 e cresceu no litoral sul do país. A câmera que ganhou do seu pai aos 9 anos de idade era uma Kodak Instamatic. Realizou seu primeiro projeto fotográfico em 2004 e desde então vem trabalhando como fotojornalista freelancer. Atualmente está em sua segunda temporada na Turquia, cobrindo os conflitos na Síria. Seu trabalho já apareceu em diversas publicações de peso como The Washington Post, TIME, Die Zeit, Al Jazeera, VICE, Newsweek e outras.
E durante a entrevista, enquanto ela falava sobre sua carreira de fotógrafa, ficou claro que essa impulsividade é uma marca pessoal. A Alice é uma mulher alegre, de conversa fácil que as vezes desvia um pouco do caminho, mas que não foge do assunto. Segura do seu trabalho e de suas atitudes. Conhece o mundo e se esforça para compreender as pessoas. A fotografia é uma extensão da forma como ela encara a vida. Talvez por isso, para ela seja tão natural.
Dinâmica e irrequieta, não teve paciência para seguir o rumo formal de anos de estudo antes de mergulhar de cabeça na vida adulta. Mas isso não quer dizer que ela já tinha tudo planejado com antecedência. Começou a viajar aos 19 anos e se entretinha contando histórias com imagens. Aos 22 decidiu que seria fotojornalista e um ano depois comprou sua primeira câmera profissional que aprendeu a usar sozinha.
a Alice chegou ao local combinado para a entrevista eram em torno de 7hrs da noite. Eu disse que tínhamos bastante tempo para conversar e depois visitar a exposição “Arqueologia de Ficções” de Gilvan Barreto na DOC Galeria no prédio em frente. E a conversa seguiu assim:
- Como assim!? Eu não sabia que você viajava ainda hoje! Não vai te atrapalhar?
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“Em minhas viagens fui conhecendo fotógrafos amadores e profissionais que me ajudaram muito e foram como professores informais.”
Levou mais de 6 anos para se engajar em um novo projeto e perguntei a ela sobre essa demora. Ela foi bastante sincera em admitir um momento de inexperiência e indecisão.
Seu desejo de conhecer a África e fotografar pessoas deu origem ao seu primeiro projeto. Sua estratégia foi se inscrever em um programa de trabalho voluntariado para disseminação de informações sobre a AIDS entre as populações carentes africanas. Foram doze meses de trabalho; seis meses na Namíbia, um mês na África do Sul e cinco meses em Moçambique. Desde o início sua forma de trabalhar teve essa característica mais pessoal, mais engajada, menos superficial.
“Entre uma coisa e outra eu fiquei muito distraída, sempre fotografando, mas distraída em relação a carreira. Eu ainda não tinha essa visão de carreira naquela época, apesar de já ter realizado meu primeiro projeto e estar sempre fotografando. Talvez por não conhecer outros profissionais da fotografia para me orientar no que fazer. Em 2007 voltei para o Brasil e tive esse insight de dar uma direção para minha carreira, e foi quando trabalhei com o Claudio Edinger. Fiquei seis meses trabalhando com ele para entender melhor como funciona o mercado de trabalho. Foi um período incrível.”
“Você tem um contato com as pessoas mais profundo, mais intenso. A maior parte do tempo eu passava visitando as pessoas nas casas delas, nos vilarejos onde moravam, não como fotojornalista, mas como voluntária da organização. Isso me deu um acesso as pessoas que a maioria dos fotojornalistas não costuma ter. Na verdade, na época, eu não sabia como um fotojornalista trabalhava. Enfim, fui aprendendo enquanto fazia, do meu jeito. Eu sabia que queria fotografar, mas não sabia ao certo o que fazer com as fotos depois.” Enquanto estava na África não viu nenhuma das imagens que fez porque usava filme e não tinha onde revelar. Quando voltou para Califórnia, onde morava antes de ir para África, revelou todos os filmes e mostrou para todo mundo que conhecia, além de fazer pequenas exposições em cafés e galerias. Descobriu que tão importante quanto capturar as imagens é compartilhar elas com todos. “Ano passado comecei a usar instagram e acho isso incrível. Para mim o mais importante é compartilhar a foto, não só a foto na página da revista, mas também aquela foto que o editor não selecionou, as histórias não contadas.”
Sempre engajada em causas sociais, Alice se envolveu então com uma ONG que visava levar o esporte aos jovens da Faixa de Gaza, no Oriente Médio. Em paralelo planejava seu segundo projeto seguindo a mesma estratégia do primeiro. Ainda no Brasil, ia a festivais de músicas para apresentar o projeto a artistas que possivelmente poderiam realizar shows beneficentes para a ONG. Ela admite que de certa forma ainda estava mais engajada com projetos humanitários do que com a fotografia profissional. A ONG levou alguns anos tentando levar as pranchas de surf para a região devido ao bloqueio na faixa de Gaza para evitar o contrabando de armas na região. Quando finalmente todas as permissões foram concedidas, Alice foi para Faixa de Gaza com visto de trabalhadora humanitária acompanhando o diretor da ONG. Enquanto esteve lá produziu muitas imagens para a organização do projeto e também para o seu portfólio pessoal.
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“Todas as fotos que fiz com filme eram um projeto pessoal para depois publicar. Aí eu entrei em contato com a Surfer que é a maior revista de surf do mundo porque achei que o material seria interessante para eles. E foi muito legal, a matéria ficou muito linda. E foi assim que comecei a fazer contatos com editores e pessoas da área.” A partir daí sua carreira fotográfica começou a tomar forma e ela embarcou em seu terceiro projeto, a Síria. Ainda em Gaza conheceu famílias de refugiados que vivem na região desde a criação do estado de Israel na década de 40. A história dos conflitos na região chamou sua atenção e, para pesquisar sobre o assunto foi até a Turquia. Lá conheceu um fotógrafo paquistanês que estava indo para Síria e a convidou para ir junto. “Quando o jornalista paquistanês me convidou para ir para Síria, a pergunta me pareceu inusitada, pois eu nem conhecia ele pessoalmente, éramos apenas parte de um grupo grande de fotógrafos a trabalho na região fazendo networking. Enfim, quando ele me convidou eu parei para pensar. Como é trabalhar em um conflito? Quais são as precauções que preciso tomar? O que preciso aprender? Quais equipamentos devo usar? Então eu levei mais de um mês descobrindo as respostas para essas perguntas. No fim, acabei nunca trabalhando com esse fotógrafo que me convidou.” Enquanto estava na fronteira entre a Síria e a Turquia hospedou-se no hotel preferido pela maioria dos jornalistas atuando na região. Nesse hotel conheceu vários fotógrafos e jornalistas, principalmente o pessoal da France Press, que tinham a sua disposição um carro que ia e voltava todo dia para Aleppo, na Síria. Devido a guerra, era uma viagem de 3hrs de duração. Sua proximidade com o grupo rendeu a ela várias caronas e, segundo ela, foi um curso intensivo, porque estava trabalhando com jornalistas com 10, 15, até 20 anos de experiência.
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“Eu sou muito observadora, então acompanhava tudo com atenção e além disso eles também davam muitas dicas.” Aproveitei o gancho e perguntei a Alice sobre suas referências, afinal em sua área de atuação sempre houve uma profusão de grandes nomes da fotografia. “Tem alguns fotógrafos que admiro, mas não posso dizer que tenho referências. Não tinha antes, e ainda não tenho. Eu acho importante não me concentrar muito no trabalho de outros fotógrafos, para que isso não influencie a maneira como eu fotografo de maneira negativa. Eu procuro sempre ver cada trabalho, cada imagem que faço e cada assunto que escolho da forma mais crua possível, de acordo com a minha visão no momento e a minha relação com os personagens da história.” Assim como nos dois primeiros projetos, Alice permaneceu na região trabalhando durante um longo período. Sua primeira estadia durou 1 ano e 2 meses, enquanto que a maioria dos jornalistas vão por apenas alguns dias. Sua base era no sul do Turquia, onde conviveu o tempo inteiro com refugiados Sírios. Mas o foco principal estava nas expedições que fazia ao norte da Síria, principalmente à cidade de Aleppo, cenário de conflitos incessantes. A característica marcante deste projeto foi, novamente, a aproximação e o convívio com as pessoas afetadas pelo conflito. “Eu me envolvi com as pessoas e acho que isso faz parte do meu trabalho. Não consigo me distanciar. Eu sou observadora, e eu conto as coisas do jeito que eu vejo. Eu não estou envolvida a ponto de influenciar a história, mas eu fico lá o tempo que achar necessário para entender melhor. Claro que o envolvimento foi diferente de quando trabalhei na África, porque lá eu estava trabalhando para a ONG e na Síria não.”
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Alice sempre se interessou por crises humanitárias, situações de conflito. Seu trabalho na Namíbia, na Faixa de Gaza e na Síria são sobre pessoas em situações extremas. Ela se considera uma pessoa muito otimista que gosta de procurar coisas positivas nestas situações, enquanto documenta e expõem os acontecimentos. “A muitos anos eu já tinha a ideia de fotografar conflitos. Não é que eu me sinta atraída pela situação. Eu odeio armas e me sinto super desconfortável ao lado de uma metralhadora. Mesmo assim, eu sempre achei que fosse um assunto muito importante, uma história que precisa ser contada. E eu achava que tinha o que era necessário para fazer esse trabalho e via isso quase como uma obrigação minha. Eu acho que as duas características mais importantes é conseguir manter a calma em situações de perigo e ter empatia com as pessoas para saber lidar com elas. Se tinha o que era necessário para fazer esse trabalho, então eu deveria fazer.” “E também não é uma coisa altruísta – claro que isso é importante – mas é uma coisa pessoal. É uma vontade de ver com meus próprios olhos. Em primeiro lugar eu quero ver, quero entender a guerra. E a guerra para mim é sobre seres humanos em situações extremas. Na guerra você vê a humanidade no seu melhor e no seu pior. Eu acho isso fascinante e ao mesmo tempo assustador. Então eu trabalho mais por questões pessoais, por querer entender, e depois para mostrar para o mundo de uma forma que as pessoas entendam isso.” Perguntei se esta era uma característica de sua personalidade ou surgiu com a fotografia, ao que ela respondeu:
“Não consigo separar as duas coisas na verdade. Comecei a fotografar aos nove anos e acho que isso foi parte da formação da minha personalidade. Sempre fui uma pessoa curiosa. Então acho que a fotografia me permite estudar pessoas de uma forma sutil. É uma troca, cada foto é uma pessoa que me olha e me dá alguma coisa dela. Eu vejo a fotografia como parte do meu relacionamento com pessoas. E a questão do conflito eu acho importante por ser uma situação extrema, e eu quero entender como os seres humanos se comportam em situações extremas.” Esta motivação molda sua forma de trabalhar e influencia até sua escolha por equipamentos. Fotógrafo especializado em conflitos geralmente carrega uma quantidade mínima de equipamento para facilitar sua mobilidade e a Alice não é diferente. No início usava uma lente 16-35mm que substituiu por duas lentes fixas, uma 35mm e outra 50mm. “Eu quero estar lá e entender a situação então me aproximo bastante para fotografar. Acho que nunca conseguiria usar uma tele nesse trabalho.” Trabalhou muitos anos com filme e somente quando foi para Síria que adotou um equipamento digital para melhorar sua agilidade. Ela conta que mesmo o seu trabalho sendo principalmente documental e não necessariamente instantâneo como as notícias, as vezes se vê em situações como um ataque que matou seis irmãos e irmãs e era a única fotógrafa naquela cidade. “Eu gosto de trabalhar sozinha, de ir aonde não tenha outros fotógrafos ou jornalistas. No começo eu trabalhei com o pessoal da France Press e foi uma experiência incrível, mas depois que adquiri experiência eu me afastei um pouco e comecei a trabalhar em outras cidades sozinha.”
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- Você é corajosa! - Sozinha, sozinha, nunca! Sempre acompanhada de guias e pessoas locais. Em uma situação de guerra você pode escolher o lado que você quer documentar e a qualquer momento decidir se aproximar do front ou não. Alice explica que na Síria isso não existe porque o front está em todo lado e a qualquer momento pode ocorrer um ataque aéreo. O governo ataca qualquer prédio, não importa se é uma igreja, escola ou hospital. O governo entende que quanto mais pessoas morrerem nas áreas controladas pelos rebeldes menos apoio elas darão aos rebeldes. “É uma coisa grotesca. Mas é claro que se você cobre o front é ainda mais arriscado porque além dos ataques aéreos tem também a troca de tiros.” Eu comentei com ela que no front não é viável realizar o trabalho de observação e estudo que ela prefere, e perguntei por que então ela se arriscava. Foi quando mais uma vez ela mostrou seu lado fotojornalista. “Eu acho que a guerra é muito mais do que a batalha, mas a batalha faz parte da história. E é uma parte importante da história então é preciso cobrir o front também. Quando eu vou para o front eu vou de colete e capacete.” Em uma situação de conflito as emoções ficam exacerbadas. É difícil manter a calma e a perspectiva, ainda mais para uma pessoa ainda inexperiente como ela. A Síria foi literalmente seu batismo de fogo. Quis saber como ela lidou com essa pressão.
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“Eu tive a oportunidade de viver várias situações. Quando os rebeldes estavam sendo atacados pelo governo ou quando estavam atacando outros grupos de milícias. Na maior parte do tempo o jornalista não tem toda a informação, todas as partes da história, porque se ele está cobrindo um lado o outro lado é o inimigo. Na Síria é muito difícil cobrir o lado do governo. Então a maioria cobre o lado dos rebeldes onde é mais perigoso e é apenas um lado da história. É muito fácil para o jornalista alimentar a ideia que ele está do lado ‘bonzinho’ enquanto o inimigo é o lado do ‘mal’.” “Teve uma vez que eu estava no norte da Síria em um conflito entre os rebeldes e os militantes curdos. Era uma guerra dentro de outra guerra. Foi quando eu tive a oportunidade de ver os dois lados. E aí deu um nó na minha cabeça. Porque enquanto eu estava com os rebeldes era tratada como uma irmã, eles cuidavam de mim, da minha proteção. E quando fui para o outro lado eu vi a mesma coisa. São todos jovens, tem famílias. A impressão é que são amigos que estão se matando. É muito louco viver os dois lados da história.” Mulher ocidental trabalhando sozinha em uma zona de conflito. Esta é uma situação que mesmo no ocidente ainda carrega um certo preconceito. Quando associamos ao mundo árabe então, nossa visão claramente tendenciosa, surge uma incerteza muito grande. Perguntei a ela como tem sido sua experiência nesse sentido. “No oriente médio, eles encaram qualquer estrangeiro como um espião da CIA ou do MOSSAD. Mas o meu trabalho é baseado em relacionamento humano. Eu preciso conhecer alguém e confiar nessa pessoa que é o meu guia local. Ele me apresentava para os comandantes rebeldes e como eles confiavam nele, automaticamente eles confiavam em mim.”
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“Ninguém trabalha sozinho em guerra. Eu trabalho sem outros jornalistas no grupo, mas nunca sem guia. Até por questões de segurança é melhor trabalhar sem outros jornalistas, porque chama menos atenção e você pode tomar decisões com mais rapidez.” “E como mulher, no mundo árabe, eu sou super respeitada. Em grande parte, porque me comporto de uma forma que impõem respeito. Eu entendo as regras do local. Os rebeldes sempre foram respeitosos e cuidadosos. Se preocupavam comigo realmente.” Ao contrário dos dois projetos anteriores, as imagens que produzia na Síria começaram a correr o mundo enquanto ela ainda estava trabalhando na região. Perguntei o que mudou na sua forma de divulgação do próprio trabalho. “Depois desse trabalho em Gaza eu fui para Síria e fiz contatos lá mesmo. Conheci jornalistas, verifiquei quais eram os jornais e revistas que estavam trabalhando lá, fiz contatos com editores, mandava emails, etc. No primeiro dia passei três horas em uma cidade na fronteira fotografando pessoas deslocadas dentro do próprio país. Não eram refugiados, estavam apenas deslocados internamente, dormindo em uma escola. Assim que voltei para Turquia, eu imediatamente mandei essas imagens para revista Time. Eles não conheciam ainda o meu trabalho, mas mesmo assim o editor respondeu. Ele não gostou das fotos, e não eram grandes imagens mesmo, mas ele respondeu. E apesar de não ter falado nada demais eu achei isso ótimo. Depois disso eu comecei a vender fotos para France Press.”
Falando em metas, perguntei sobre seus planos para o futuro. Ela admitiu que no momento ainda não tem uma ideia clara do que fazer com o material que está produzindo, mas com certeza pretende realizar exposições em breve no Brasil. Mas segundo ela seu trabalho na região está longe de acabar, pois pretende continuar trabalhando por muito tempo ainda na região, mesmo depois de encerrado o conflito. “Eu quero voltar agora para trabalhar de uma forma um pouco diferente. Eu entendi que a guerra é muito mais do que o front de batalha. Eu acho que já trabalhei muito no front. Tem luta, tem armas, tem ação, mas também tem muitas histórias paralelas acontecendo. Tem a vida que continua no meio do conflito.” “No início eu fiquei fascinada pelas mulheres, como elas vivem, como elas se vestem e o papel que elas têm dentro da guerra. Eu conheci mulheres que atuavam como soldados no front, mulheres que cuidavam da família, mulheres que perderam maridos ou filhos. São tantas situações diferentes e têm tantas mulheres fortes. A gente tem a ideia de que no mundo árabe as mulheres são oprimidas, e muitas são mesmo em lugares mais atrasados, mas muitas são muito fortes e lutadoras. Então eu quero voltar agora e me concentrar mais nas mulheres.” Para encerrar perguntei a Alice que lição marcou mais ela nesta primeira experiência de trabalho em uma zona de conflito ativa. Ela retornou a um dos assuntos que discutíamos antes mesmo da entrevista começar.
Uma de suas metas para sua próxima temporada na Síria é escrever mais. Até agora escreveu apenas um artigo na Síria, mas recebeu uma proposta para escrever mais e é algo que pretende fazer porque acha que tem tanta coisa para contar que as vezes a imagem não é suficiente.
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“Eu recebo muitas mensagens de pessoas que gostariam de ir para Síria ou outras áreas de conflito pedindo ajuda ou conselhos. Eu acho muito importante se preocupar com a segurança e se preparar bem, mas é fundamental se preocupar com as pessoas locais também. Como eu disse antes, ninguém trabalha sozinho, é muito importante você ter um guia local que você confia. E você deve se preocupar não apenas com a sua segurança pessoal, mas também com a segurança do seu guia e das pessoas locais para não criar situações que agravem o risco que todos estão correndo, não apenas você.”
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“É uma coisa muito humana, que vai além da batalha.”
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Sob os Vulcões da Antígua Guatemala por adriana zehbrauskas
A
vista é espetacular. Do terraço no topo do hotel de três andares vejo o sol nascer, um resto de lua, um vulcão meio coberto de nuvens e, outro do outro lado, uma fumaça escura sinaliza, que sim, aquele outro vulcão continua ativo e bem vivo, sim senhor. E assim começa mais um dia em Antígua, como todos os outros e que, nesta manhã de julho, anuncia-se será quente outra vez. A Antígua Guatemala, construída no dia de Santiago Apóstolo sobre terras maias, foi a terceira capital do país. Destruída em 1541 por um deslave do vulcão Água, a cidade foi reconstruída e por mais 200 anos serviu como a sede do Governo Espanhol da Guatemala, então uma enorme área constituída pelo que hoje é quase a totalidade da América Central e o estado mexicano de Chiapas, com o qual faz fronteira. Em 1776, devastada por dois terremotos, a Coroa Espanhola decidiu mudar a capital de lugar, de uma vez por todas. A “muy noble, my leal” - como foi chamada pelo Rei Felipe II - Antígua Guatemala deixou de ser então a sede oficial do governo, transferida política e geograficamente para Guatemala City.
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Minha viagem não foi de turismo e nem a primeira visita ao país, apesar de ter sido a primeira vez em Antígua. Há alguns anos fui contratada por uma revista para cobrir a incrível Rigoberta Menchú Tum, líder indígena guatemalteca defensora dos direitos humanos e ganhadora, aos 33 anos, do Prêmio Nobel da Paz. Durante uma semana viajei com ela e sua equipe pelas estradas do país, que ainda sofre, enormemente, as consequências de uma guerra civil onde milhares de pessoas, na sua maioria indígenas, foram torturadas e assassinadas. Embora desta vez mais leve, o motivo da viagem não foi menos nobre: Antígua foi escolhida como a sede anual do Foundry Photojournalism Workshop, do qual faço parte como instrutora há 7 anos. Itinerante, o workshop muda de sede a cada ano: México, Índia, Turquia, Argentina, Tailândia e Bósnia e Herzegovina foram os cenários dos anteriores. Sempre lugares com uma forte história e grande potencial jornalístico e documental. Nessas viagens, sempre levo meu equipamento completo, mas verdade seja dita, ele quase nunca sai do quarto do hotel. Os dias normalmente passam rápido demais e, invariavelmente, dentro de uma sala de aula. Não há tempo para dedicar-se a uma história – isso quem faz são os alunos. Mas a fotografia é um vício, uma obsessão. E quem a faz, me entende.
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“Minha coisa preferida é ir aonde eu nunca fui “, dizia Diane Arbus, frase com a qual me identifico e concordo plenamente. Poucas coisas na vida me interessam tanto quanto chegar a um lugar novo. Algumas pessoas se intimidam, outras preferem o conforto de uma viagem planejada, hotéis caros e bons restaurantes. Eu não preciso de muita coisa. Gosto de acordar cedo e me misturar na vida das pessoas, na igreja, nos cafés, nos parques. Nessas horas não gosto de levar minha câmera grande, gosto de caminhar leve, e sem chamar atenção. O telefone móvel virou minha câmera por opção nessas horas. Quero ser percebida como apenas mais uma pessoa na rua, não uma fotógrafa em busca de imagens - o que sempre serei, mas nem sempre querendo mostrar que sou. Gosto de sair sozinha. Tenho a impressão de que, ao sair com alguém, me distraio muito. Não presto atenção. A fotografia é um ato solitário, já disseram, com muita propriedade. Sinto que nessas horas, o diálogo tem que ser interno, muitas vezes essa busca não pode ser compartida. Apenas depois, mesmo que, em tempos de Instagram, esse tempo depois seja muito pouco. Em Antígua tive a sorte de estar justo na semana da comemoração do santo padroeiro, Santiago Apóstolo. Em cidades assim, tão religiosas, esse dia do calendário é um prato cheio para qualquer fotógrafo. Para mim, que tenho uma especial curiosidade e interesse pelo tema - como a fé permeia as mais distintas sociedades - e o venho desenvolvendo há muitos anos, foi mais que uma feliz coincidência.
“El principal instrumento de un fotógrafo son sus ojos. Por extraño que parezca, muchos fotógrafos eligen usar los ojos de otro fotógrafo, sea del pasado o del presente, en vez de los suyos. Estos fotógrafos están ciegos.” A cada ano, saio renovada do workshop, mentalmente, espiritualmente, fotograficamente. A riqueza e intensidade do que experimento nesses dias é difícil de colocar em palavras. Talvez por isso mesmo é que sinto a necessidade de fotografar. Fotos de desconhecidos, de amigos, de mim mesma. Através dessas imagens talvez busquemos afirmar que, num mundo de mudanças constantes e perdas inevitáveis, há coisas que o tempo não tem o direito de destruir. Talvez a nossa necessidade dessas imagens esteja enraizada em nossas crenças espirituais, na nossa convicção de que a vida não é simplesmente uma série de impulsos físicos que deixa de ter qualquer significado no momento em que deixe de existir. Uma pessoa fotografada atingiu um momento de redenção: a imagem capturada se tornou eterna, salva do destino de ser esquecida para sempre. De Antígua Guatemala vou guardar essas imagens, um retrato do lugar e seus habitantes visto por meu olhar estrangeiro, mas também um retrato de mim mesma, naquele momento, naquela paisagem, estrangeira também, quem sabe a mim mesma.
Entretanto, meu tempo era escasso. Dividida entre fotografar e ensinar, finalmente tive que me dedicar mais ao que de fato me trazia ali. Mas que, era e é sempre, tão inspirador quanto. Entre o trabalho dos meus alunos e de meus companheiros instrutores a quantidade de talento que me rodeava era abrumadora! Há uma frase do célebre fotógrafo mexicano Manuel Álvarez Bravo que gosto muito e trato de começar minhas classes sempre com ela:
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Imersão nos Garimpos de Equador por josé bezerra
Todos
os tipos de fotografia têm riscos. Todavia estilos específicos como o fotojornalismo, conseguem ser bem superiores em termos de imersão e riscos físicos tanto ao fotógrafo quanto o equipamento, do que a maioria dos trabalhos fotográficos. Este risco requer do fotógrafo maior empenho e foco naquilo que deseja retratar. O que lhe faz ter em mente a resposta para duas perguntas; até onde o fotógrafo irá por sua fotografia e qual o propósito deste olhar? Acredito que quanto mais cedo o fotógrafo conseguir focar nestas duas perguntas, melhor será sua experiência com a fotografia/ fotojornalismo. Recentemente, aceitei o convite para desenvolver trabalho em parceria com o jornalista, Me. Esdras Marchezan. A pauta; cotidiano dos garimpeiros na cidade de Equador, RN. Aceitei de imediato, principalmente por conhecer o trabalho deste grande profissional e seus ideais. Coadunando ao desejo de trabalhar e explorar esta temática dentro de um olhar mais intimista.
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Passei a refletir e pesquisar sobre o tema – o que é deveras importante para qualquer trabalho fotográfico documental –, algumas ideias surgiram, entre retratos e momentos específicos. É realmente importante ao desenvolver um olhar fotojornalístico o fotógrafo procurar entrar numa dada realidade. Se preenchendo de informações e cenas que simbolizem ritos, atos, ações. Assim alcançamos uma conexão com a realidade, retratando conforme nossas experiências e observância. Antes de irmos à primeira vez, não tinha conhecimento real de como eram as chamadas banquetas. Banquetas são localidades onde os garimpeiros fazem a extração do minério, nesse caso o caulim. Não posso afirmar que em momento algum senti medo ou receio. Entretanto nessas horas a fotografia nos serve de escudo que revida alguns medos de determinadas situações. Na cidade de Equador tive que descer em pelo menos duas dessas minas. Numa das que desci, tinha 13 metros de profundidade. Um túnel vertical não maior que 1,70x1,50cm. A descida é feita numa corda pouco espessa, mas que suporta uns 100kg. A corda é controlada pelo carretel que é operado manualmente. Há uma corda de segurança, mas você ao descer deve estar sempre segurando-a, já que não há nenhum equipamento que lhe prenda a esta corda auxiliar.
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Arrisco dizer que, se não fosse pela curiosidade e desejo de realizar este trabalho fotográfico, jamais teria interesse em passar por tal experiência. A câmera fotográfica nos transporta para uma realidade paralela onde é possível ter força e vencer barreiras criadas por nossa própria mente. Vencido a descida, foi hora de encarar túneis estreitos, claustrofóbicos e escuros. O calor é bem desconfortável também. Inalar a poeira presente nos túneis não é nada saudável. Após 10 minutos já sentia um gosto diferente em minha boca. Fruto da poeira inalada pela boca e narinas. O trabalho dos garimpeiros é duro. A remuneração é pouca. A coragem e condicionamento necessários para trabalhar nestas condições diariamente não são fáceis. Homens corajosos que buscam debaixo da terra o substrato para viver. Lá em baixo é silencioso. Os trabalhadores falam pouco. O que mais se houve é picaretadas, dadas contra a rocha onde está impregnado o caulim. É possível ver algumas faíscas do choque entre o metal e a rocha. Optei por levar um iluminador, já que não faço uso de flash. A fotometria é bem desafiadora, porque além de escuro os túneis são estreitos. O posicionamento dos equipamentos não deveria atrapalhar o fluxo contínuo do trabalho. Em alguns momentos desliguei todas as luzes e passei a ouvir e tentar acostumar a visão com a baixa luminosidade. Uma experiência surreal que me levou a um breve diálogo com os garimpeiros naquele momento. Falamos sobre religião e a luta para levar comida e sustento a família. Educação e conselhos para as gerações que nos sucederão. Além de algumas passagens divertidas que quebraram o gelo.
Acredito amigos e amigas, que fotojornalismo é antes de tudo informação sobre um dado contexto. Uma das melhores formas de se informar que conheço é justamente interagindo com os locais, os personagens da vida real. Em posse das informações certas o trabalho de documentar ações, trabalhos e sentimentos se torna além de prazerosa um exercício artístico. Todo bom trabalho fotográfico carece de tempo e dedicação. Se há tempo em dias para trabalhar a pauta, melhor sairá o material do que aqueles que investimos algumas horas. Neste trabalho especificamente tivemos alguns dias. O que nos permitiu fotografar diferentes banquetas e vários personagens para ampliar o contexto visual e humano. Outro fator importante é a procura pela intimidade. Certas histórias e contextos só nos são apresentado dado o grau de intimidade ou aproximação com os personagens. E quão real for o desejo e sentimento do fotógrafo, melhor e mais rico em detalhes será o trabalho. Por isso, quando parto para cumprir estas pautas procuro me hospedar na casa dos próprios fotografados. Às vezes a condição financeira dos mesmos nos faz ajudá-los, levando mantimentos e alguns utensílios de uso pessoal. Entretanto sempre busco levar pouca bagagem. Neste trabalho em Equador, já tínhamos intimidade suficiente para sair pela manhã para comprar pão, ovos, bolo, etc, atuando também como um personagem do cotidiano. O resultado não poderia ser outro, senão o de aceitação por parte dos garimpeiros, nos rendendo um ótimo trabalho, com boa profundidade no tema derivado das ricas interações com a comunidade.
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Percebamos que ao fotografar pessoas devemos levar em consideração vários detalhes. Pois todo cuidado é pouco quando se é visto inicialmente como forasteiro. No caso em Equador, tínhamos um contato, através do jornalista Esdras Marchezan. Entretanto já faziam pelo menos 4 anos do último contato. Estávamos então renovando um contato feito no passado. Ademais, a maior parte dos trabalhadores atua informalmente, quase sempre sem nenhum equipamento de proteção. Não há remuneração ou compensação em caso de acidente. A maior parte dos empresários não deseja regularizar a situação. Porém há aqueles que desejam ajudar, mas não possuem força suficiente. Não é um caso difícil de resolver. Mas a burocratização das instituições governamentais só atrasa o processo de melhora a estes trabalhadores. Além das duras condições há injustiças que nos levam a ter outro olhar. Um olhar com maior propriedade do que está ocorrendo. Com menos filtros, ouvindo vários lados diferentes. É quase impossível não ser tomado pelo sentimento de impotência e revolta, ao percebermos que enquanto centenas de garimpeiros trabalham em situação precária, com grandes riscos e com quase nenhum retorno, outros atores ganham bastante dinheiro com o beneficiamento e exportações para diferentes mercados. É um daqueles casos onde os que mais trabalham são os que menos ganham.
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Imagem Pag 54 - Mina antiga. Parte de sua estrutura está em desuso. Somente fornece acesso a outros pontos subterrâneos de extração. Imagem Pag 56 - Corda, carretel e força humana. Na hora da descida, todos ficam na mão do carreteiro. Um movimento errado pode custar a vida. Imagem Pag 57 - Garimpeiro não usa nenhum equipamento de proteção. Até sua visibilidade é mínima. Uns usam pequenas lanternas, outros apenas velas. Imagem Pag 58 - Carreteiro sobe bolsa com 90kg de caulim. Ele refaz isso pelo menos 100 vezes para completar o montante para encher uma caçamba. Imagem Pag 59 - Caçamba é o principal transporte para o escoamento da extração nas banquetas. A maior parte opera em difíceis condições. Imagem Pag 60 - Proseando numa manhã, momentos antes de irmos ao garimpo. A porta está sempre aberta para receber os amigos. Imagem Pag 61 - Olhar curioso e infantil do jovem garoto na área rural de Equador, RN.
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Do Mundo Para o Mundo A Revolução na Fotografia do Século XXI por rafael vilela
O
ano de 2013 viu eclodir no Brasil um amplo movimento de contestação política e social nas ruas. Movimentos sociais tradicionais, grupos culturais, partidos políticos, entidades de classe e artistas de diferentes campos foram para rua manifestar suas insatisfações. Marchas e outras formas de protesto viraram lugar comum e a rua reencarnou em seu posto de Ágora por excelência, colocando em cheque estruturas de poder hegemônicas no país.
Entre fotógrafos ‘profissionais’ e ‘estreantes’, um novo fazer fotográfico saiu das ruas, das periferias, para o centro. Em meio à revolução tecnológica onde os meios de produção são cada vez mais acessíveis à indivíduos em todos os cantos do mundo, o campo da fotografia revolve-se em busca de novos modelos de existência: o mercado da fotografia em seu atual formato não tem condições de absorver a fotografia emergente. Crise é oportunidade
Nesse contexto a fotografia brasileira, especialmente o campo do Fotojornalismo, se viu desafiado pela profusão de imagens geradas por indivíduos empunhando suas câmeras e celulares no meio da agitação política das ruas. Do dia para a noite, novos fotógrafos e jornalistas, organizados ou não, tornaram-se os “donos do furo”, com frequência fornecendo informações e imagens com qualidade muito superior à dos veículos de comunicação tradicionais, em tempo real, revelando-se uma linguagem central nesse novo contexto.
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O mercado tem sido um péssimo referencial da fotografia brasileira. A grande imprensa e as premiações influentes induzem os profissionais a reproduzir uma linguagem fechada e repetitiva. O fotógrafo vai a campo para adequar a imagem à uma ideia preconcebida pela linha editorial da publicação, e não para explorar, experimentar. A regra é reproduzir trabalhos clássicos anteriores ou representações idealizadas do cinema. Se fotógrafos com ampla experiência, fotos premiadas e veiculadas em todo o mundo são precarizados, o que sobra para os novos fotógrafos? Crescentemente frustrados com o espaço - ou a falta de espaço para criatividade e representação, os coletivos tem sido uma forma de escapar do sistema.
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A revolução tecnológica pela qual estamos passando tem feito com que seja cada vez mais acessível fotografar, colocando em crise o mercado tradicional da fotografia. Os novos coletivos partem desse contexto para enxergar oportunidades, entendendo que é na crise que a reinvenção se torna real. Enquanto fotógrafos estabelecidos reclamam de baixa remuneração, da questão dos direitos autorais e da concorrência de “amadores”, os movimentos emergentes têm radicalizado o debate buscando inverter os valores do sistema. Coloca-se um novo paradigma: Se o valor monetário da fotografia deixou de ser viável, deixemos o foco no dinheiro, e passemos à função social da imagem, a fotografia como instrumento de intervenção na realidade. A Mídia NINJA foi um dos movimentos que radicalizou o fazer fotográfico no Brasil, jogando por terra parâmetros que eram engessados, provocando uma mudança em valores estéticos hegemônicos no fotojornalismo. Criou-se uma lógica de distribuição gratuita, onde o que baliza a produção é o tesão, é acreditar que aquilo é importante, que se está fazendo aquilo porque gosta, e pela consequência social do que está sendo gerado. Partindo do entendimento que as mudanças em curso são irreversíveis, fotógrafos e coletivos, não só do Brasil como de outros países, hoje discutem alternativas possíveis que garantam a produção e distribuição de imagens. Se por um lado a formação de
redes de comunicação e linguagem não são novidade no campo das artes, a novidade vem da proposta de inversão da lógica do campo da produção e do consumo: a busca pela fotografia que seja da rua para rua, de constituir alternativas desmonetarizadas, sem custo, em Creative Commons e com autoria coletiva, enquanto forma de garantir o fazer fotográfico que não seja limitado a exigências engessadas de editores de grandes meios de comunicação. A ideia de que a fotografia tem um papel social e que deve circular o máximo possível acaba sendo central na discussão sobre os rumos da fotografia contemporânea, tendo como guia a percepção de que a fotografia vem do mundo e para ele deve voltar; que é produto de uma realidade que nunca é só do fotógrafo. Os novos movimentos e coletivos abusam de ferramentas como Tumblr, Facebook e Instagram para fazer com que suas imagens rodem o mundo, colocando em questão os modelos mais óbvios de distribuição de conteúdo. Na nova proposta, parte-se da compreensão que a crise existe, mas que ela está na indústria, e não na fotografia. Fazer e distribuir tornou-se fácil, acessível, potente. O que existe é uma crise em um mercado desmonetarizado: temos uma cena onde a fotografia cresce e se expande, e isso trouxe consigo um “não mercado”, uma incapacidade de sustentar o movimento emergente a partir do modelo atual.
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Como estruturar um sistema de sustentabilidade prévio que garanta a produção desse conteúdo e que permita a partir disso que ele seja distribuído de forma livre? Muitos dos novos coletivos já têm adotado como prática a distribuição Creative Commons. A versão mais recente permite inclusive o uso comercial das imagens. Essa prática permite que as imagens produzidas sejam utilizadas por outros indivíduos e redes para movimentar economias locais a partir do que foi produzido pelo fotógrafo. É comum inclusive que qualquer pessoa baixe e imprima fotos legalmente, gerando renda e capilarizando a distribuição. Se existe uma força motriz inicial, que consegue fazer essa produção de imagem acontecer, a distribuição pode – e deve – ser livre. E se isso acontecer em grande escala, com qualidade, estamos falando de uma nova e verdadeira revolução. A nova fotografia brasileira quer compartilhar, discutir a estética, discutir modelos de produção e distribuição. Mas acima de tudo queremos fazer uma reflexão crítica sobre o papel social da fotografia, provavelmente a linguagem mais representativa do novo jornalismo que também surge das ruas. O desafio é construir modelos de autonomia, sustentabilidade, de manutenção de organismos vivos de produção.
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Os eventos de formação e compartilhamento entre os coletivos são cada vez mais comuns. Esses eventos têm como uma de suas principais características a ausência de troca financeira, ou seja, ninguém paga para aprender e todo mundo aprende com todo mundo. Por um lado, troca-se conhecimento, por outro o foco na ampliação das redes e na construção de um modelo de sustentabilidade que seja democrático tanto no acesso quanto na produção. Esse novo olhar crê que se fazer conhecido, conhecer e trocar, é uma forma onde todos saem ganhando. Acreditamos que os movimentos sociais, que as pessoas que se vêm privadas de ‘consumir’ a fotografia, precisam acessá-la de maneira diferente. A experiência de uma distribuição radicalmente livre tem gerado inúmeros processos virtuosos de produção, circulação, troca e aprendizado. A revolução do modelo econômico da fotografia é parte da revolução mais ampla do século XXI. É entender que a redistribuição de tempo é tão importante quanto a de dinheiro. E talvez até mais, porque se tiramos o dinheiro como intermediador das relações o tempo passa a ser o senhor. O dinheiro é o que tenta limitar as nossas possibilidades temporais o tempo todo, e é contra essa ordem que lutamos.
Autores das Images: Mauro Guari, Jo達o Eduado Ferreira Neto e Ricardo Lima (2x)
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9o Festival Hercule Florence de Fotografia de Campinas por carlos alexandre pereira
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2015 ocorreu a 9º edição do Festival Hercule Florence de Fotografia de Campinas. O festival recebe seu nome em homenagem a Hercule Florence, um francês radicado em Campinas que desenvolveu a fotografia de forma independente na mesma época em que Niépce e Daguérre trabalhavam em sua versão, na França. Florence batizou sua criação de “Photographie”, seis anos antes da primeira menção a esta palavra na Europa, atribuída ao britânico John Herschel. O festival ocorre todo ano no mês de outubro, A exposição “Revele Campinas” abriu o festival no dia 1º de outubro. A exposição realizada na Estação Cultura contou com as imagens vencedoras do concurso fotográfico homônimo promovido pelo site www.campinas.com.br e ficou em cartaz até o dia 2 de novembro. Outras duas exposições de destaque foram “O Caminho do Corpo” e “Nyota – Mulheres de Turbantes” de Gustavo Olmos e Pola Fernandes respectivamente. O festival contou ainda com as já tradicionais exposições espalhadas pelos bares e restaurantes de autoria de fotógrafos profissionais e amadores da cidade. Este ano o festival ficou concentrado na Estação Cultura e grande parte de suas atividades ocorreram no final de semana entre os dias 15 e 17 de outubro. Foram dezenas de exposições, workshops, oficinas e palestras distribuídas pelos vários ambientes da antiga estação central de trem de Campinas. O grande destaque deste final de semana foi a palestra “115 Anos de Fotografia Cubana”,
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realizada pelo renomado fotógrafo cubano Mario Dias. Mario, que foi o convidado internacional de destaque desta edição do festival, fez uma série de retratos de moradores do centro de Campinas, posteriormente expostos nas janelas do Museu da Cidade. Entre os workshops, o destaque foi o fotógrafo brasiliense Kazuo Kubo com o tema “Nada Mais Normal que O Nu”. Uma atividade inusitada e original no festival foi a utilização da técnica pinhole para transformar os três vagões permanentemente estacionados na estação em máquinas fotográficas gigantes. A transformação foi realizada por cineastas, fotógrafos e artistas que depois usaram as grandes salas da estação para exposição dos resultados. O festival contou ainda com a participação dos ônibus da cidade que levaram em suas partes traseiras 30 imagens de Campinas clicadas por dez fotógrafos da cidade: Dominique Torquato, Marcos Peron, Carlos Bassan, Adriano Rosa, Rogério Capela, Kamá Ribeiro, Nelson Chinália, Gui Galembeck, Martinho Caíres e Touché, com curadoria do fotógrafo Ricardo Lima, organizador e idealizador do festival. Curta a fanpage do festival em www.facebook.com/ FestivalHerculeFlorence para acompanhar suas próximas edições. Além da fanpage, tem também o website www. festivalherculeflorence.com.br com a programação completa.
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Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira Cristiano Mascaro - Nelson Kon - Thomas Farkas por carlos alexandre pereira
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4 de dezembro de 2014 foram lançados os volumes 2 e 3 da Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira, Nelson Kon e Cristiano Mascaro, dois ícones da fotografia urbana. A coordenação da coleção e de cada volume individualmente é de responsabilidade de Eder Chiodetto, jornalista, pesquisador e renomado curador da área de fotografia. O trabalho de Nelson Kon, apresentado no volume 2, é fortemente baseado na arquitetura, na paisagem urbana e as vezes na paisagem rural. São fotos em PB ou a cores, mostrando detalhes arquitetônicos, formas geométricas, padrões de repetição ou paisagens impressionantes. Acho desnecessário reescrever uma descrição para este livro quando Eder Chiodetto já a fez de forma tão precisa: “No volume (2) Nelson Kon, a forma que fazemos a ocupação do espaço é mostrada em fotografias que “narram” o meio urbano, ora ilustrando ou documentando, traduzindo suas grandezas e detalhes, ora revelando a poética silenciosa oculta em uma obra arquitetônica. O livro mostra a tênue linha que separa o conflito e a harmonia mesclada em imagens de seu trabalho feito quase todo sob a encomenda de clientes onde, uma almejada precisão técnica se alia a sua sensível e sofisticada capacidade de narrar paisagens.”
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Cristiano Mascaro, tema do volume 3, assim como Nelson Kon, se formou em arquitetura e urbanismo pela FAUUSP. Mascaro, inclusive, era o coordenador do laboratório de fotografia da FAU quando Nelson se interessou por fotografia enquanto era ainda um estudante do curso. O que certamente contribuiu para aproximar a fotografia dos dois. Mas enquanto a fotografia de Nelson é quase toda ela fruto de trabalhos comerciais, Mascaro mostra uma experimentação e uma amplitude maior no seu trabalho. Sim, tem arquitetura, mas também tem muitos retratos. Mascaro trabalhou como jornalista, isso talvez seja a origem do perfil documentarista do seu trabalho. Nas palavras de Eder: “O volume (3), Cristiano Mascaro, apresenta um mágico acervo de retratos, quase todos inéditos, feitos com delicados estudos de luz e composição. Criados em uma atmosfera onde o tempo, subjetivamente alongado para este tipo de criação é um elemento marcante, pessoas, cidades e construções se entremeiam no livro em uma estrutura imagética que busca traduzir o esperado pelo autor: a simplicidade.”
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O quarto volume da coleção, lançado em 6 de outubro de 2015, traz Thomaz Farkas. Eder usou neste livro apenas imagens de Brasília, feitas por Farkas em dois momentos distintos, entre 1958 e 1960 e depois entre 1998 e 2000. O primeiro período retrata a construção e inauguração de Brasília e o segundo momento ocorre 40 anos depois quando Farkas voltou a Brasília a convite do jornal Correio Brasiliense. Podemos dizer que este é mais um volume da coleção com fotografias de arquitetura, mas é muito mais do que isso. É uma documentação independente e isenta do processo de construção de Brasília e a uma releitura da cidade 40 anos depois. Farkas não se preocupou apenas em registrar o processo de construção da cidade, mas sim os trabalhadores envolvidos neste processo e, claro, ao fundo a arquitetura monumental da nova capital brasileira. E foi justamente o fator humano que mais interessou a Farkas em sua volta 40 anos depois. Em tom crítico declara em sua entrevista ao jornal: “a cidade mudou nas aparências. Mas, para o povo, a vida continua praticamente a mesma.” Mais uma vez fecho com as palavras de Eder Chiodetto sobre o trabalho de Farkas:
A Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira (http://colecaoipsis.com. br) foi criada em 2013 com o propósito de homenagear a produção nacional com livros de alta qualidade e preço acessível. A coleção apresenta a produção de fotógrafos referenciais que pesquisam a brasilidade em suas diversas manifestações. Nelson Kon, Cristiano Mascaro e Thomaz Farkas se juntam a Araquém Alcântara (volume 1) e em breve ganharão a companhia dos paraenses Elza Lima e Guy Veloso. A coleção Ipsis é uma iniciativa da empresa Ipsis Gráfica e Editora. Imagem Pag 80 - Cristiano Mascaro - Bairro do Brás, SP, 1975 Imagem Pag 82 - Cristiano Mascaro - Sob o Minhocão, SP, 1986 Imagem Pag 83 - Nelson Kon - Paraisópolis, SP - 2003 Imagem Pag 84 - Nelson Kon - Metrô, Pátio Jabaquara, 2009 Imagem Pag 85 - Thomas Farkas - Congresso Nacional em construção visto do Palácio do Planalto, Brasília, 1959 Imagem Pag 87 - Thomas Farkas - Núcleo Bandeirante, Brasília, 1959
“A iniciativa de fotografar a construção de Brasília nasceu de uma sugestão do arquiteto Jorge Wilheim e do sociólogo Pedro Paulo Poppovic, amigos de Farkas e proponentes do concurso que resultou na edificação de Brasília. Ao contrário de fotógrafos como o francês Marcel Gautherot e o alemão Peter Scheier, contratados para registrar a construção, Thomaz Farkas realizou as fotografias por interesse pessoal, financiando-as também por conta própria.”
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Rev. Nacional por marcela zullo
Uma
curiosidade pessoal transformada em um projeto. Há 5 anos surgiu a Rev. Nacional: uma criação do fotógrafo J.R. Duran que reflete tão unicamente seu interesse pessoal em relação aos acontecimentos diários de nosso país. A partir da edição n° 6, em parceria com a Gráfica Ipsis, passa a ter circulação nacional. J.R. Duran conversa com seus retratados buscando entender um pouco de suas personalidades e suas lutas. Apresenta seus depoimentos, suas histórias e seus retratos. “Cada um tem seus sonhos, cada um vai atrás do que acredita que vale a pena lutar. E, seja qual for o tamanho deste sonho, cada um destes personagens tem alguma coisa a dizer. ” JR Duran Ele busca, através das histórias pessoais, conhecer o ser humano e talvez entender a situação atual em que vivemos. Opiniões, crenças e estilos de vida tão diferentes servem como referência, despertam pensamentos, mudam a nossa percepção sobre as pessoas e a vida.
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J.R. Duran como condutor de todo o processo, transforma esta percepção em imagem. Interpreta o que ele sente e vê e retrata seus personagens. Frutos de seus próprios desejos, nem sempre as imagens refletem a personalidade do fotografado, mas a imagem que ele quer passar. “Para mim a Rev. Nacional é uma forma privilegiada de poder mostrar o que os meus olhos veem, meu coração sente e minha alma pensa sem nenhum tipo de interferência. ” JR Duran Para nós, fotógrafos, a complementação do que vemos (imagem) com o que entendemos (relatos), nos permite uma melhor compreensão das pessoas. Desenvolver a capacidade de entender a fotografia muito mais como capital humano do que meramente uma imagem fará com que o nosso trabalho seja muito mais completo e relevante. Portanto, a revista é uma excelente fonte de referência e inspiração.
Georges Méliès fotografia de cinema, por armando vernaglia jr
Primeiro
veio a fotografia, pouco depois um tal de
Georges Méliès.
Permitam-me contar um pouco da longa história do cinema, da sétima arte, que nasceu das mesmas evoluções científicas que antes conduziram à fotografia. Os pioneiros da fotografia, como Niépce em 1826, Daguerre em 1839, ambos na França e Hercules Florence no Brasil em 1832, entre outros, começaram a pavimentar o caminho que com o tempo culminaria com o cinema. Ali, daqueles experimentos mais de química do que de arte, nascia o processo de registro da reflexão da luz e a fixação da imagem em suportes duráveis. A visão humana, antes efêmera, tornava-se durável. Algum tempo passa até que George Eastman, através da Eastman Kodak lança o filme em rolo, primeiro em papel, depois em celulose. Neste ponto falta tão pouco para o cinema. O processo fotográfico estava definido em termos de técnica e tecnologia, já sabíamos como expor, quais químicos usar para revelar e fixar, o homem então começou a buscar o registro do movimento.
Em 1878 Eadweard Muybridge fez séries de fotografias tanto de pessoas como de animais, e que vistas em sequência davam a impressão de movimento. Ainda não havia um equipamento para fotografar sequencialmente ou outro para projetar as imagens criando assim a ilusão do movimento, mas isto haveria de acontecer logo, era inevitável. Foi logo ali, em 1891 que Thomas Edison registrou a patente de um aparelho nomeado cinetoscópio, que só veio a público em 1893. Era um dispositivo com um visor no qual era possível observar uma sequência de imagens em um rolo de filme que passava ininterruptamente. Os primeiros filmes eram de bailarinas, animais treinados e homens trabalhando. Isso ainda estava longe daquilo que conhecemos como cinema, mas o processo se definia claramente. Na França os irmãos Auguste e Louis Lumière puderam observar o cineteoscópio de Edison, iniciando em seguida o desenvolvimento de um equipamento melhor e mais completo, que em 1895 viria a ser patenteado como “Cinematographe”, ou cinematógrafo, máquina capaz de filmar, revelar os filmes e projetar as imagens. Assim, como que por mágica, em 20 de dezembro de 1895 no Salon Indien do Grand Café, no Boulevard des Capucines em Paris, nasce o cinema.
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No público do Grand Café estava Georges Méliès, o homem que ajudaria a mudar o destino do cinema como meio de entretenimento, e que o afastaria de seu caráter documental, para levar a ficção, o sonho e a fantasia para as grandes telas. Se hoje vemos heróis voadores, cenários surrealistas, montagens mirabolantes entre atores humanos e simulacros digitais, se podemos ficar duas ou três horas sentados naquela sala escura e de forma quase imediata sermos retirados do nosso cotidiano para mergulharmos na fantasia, devemos muito disso a Méliès. A fotografia estática parece carregar até os dias de hoje uma dívida com o realismo, acreditamos na fotografia como se ela sempre carregasse fatos, já o cinema ignorou esse fardo, esteve sempre ligado ao sonho, à fantasia, mesmo quando conta alguma história real, ainda assim o cinema parece ficar acima do tangível, é como se fosse outro mundo que não o nosso. Esse flerte da imagem com a fantasia segue nos abrindo imensas portas para que na grande tela os geniais diretores de fotografia continuem projetando suas imagens espetaculares, nos fazendo rir, chorar, sonhar. Devemos boa parte desse sonho a Georges Méliès, por tudo isso quis aqui neste texto deixar minha homenagem, e meu sincero agradecimento. Veja todos os filmes de Méliès que conseguir ver, todos. Imagem: Desenho de Le Voyage Dans La Lune
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Sobre Homens e Máquinas médio & grande formatos, por alex villegas
Uma
reflexão sobre a busca pela companheira eterna… enquanto durar. A relação fotógrafo/equipamento é uma das - se não for a mais incompreendida das questões que o fotografar envolve. Câmeras são caixinhas cheias de personalidade, e podem fazer com que todos seus sonhos - ou pesadelos - se tornem realidade. E passar por essa fase da pesquisa de ferramentas é essencial ao fotógrafo, me parece. Contrariado, fiz minha peregrinação: comprei, testei e descartei inúmeras câmeras, até encontrar aquela que mais se ajustou à minha maneira de ver e construir imagens. Tive câmeras soberbas, mas que simplesmente não se encaixavam em minha visão; trabalho difícil, esse de escolher. O mundo do médio formato é complicado, as câmeras são incrivelmente variadas e cheias de idiossincrasias. A fotografia pode ser incrivelmente parecida com a vida. Médio formato, hoje em dia, gira todo em torno do filme 120 - uma tira de 6cm de largura por 80cm de comprimento, aproximadamente (a variante 220 possui o dobro do comprimento), na qual uma imensa variedade de câmeras produz uma imensa variedade de formatos: 6x4,5, 6x6, 6x7, 6x8, 6x9 e as panorâmicas 6x12, 6x17 e 6x24. Câmeras reflex, de visor direto, de fole, pequenas caixinhas, imensos monstros; fica muito difícil saber qual usar. Mas temos de começar de algum lugar, então as questões criativas vão aparecendo e sendo resolvidas, uma a uma, na busca por uma ferramenta adequada.
Proporção. Acho que é o fator principal - e o mais difícil de se resolver. Levou um bom tempo para que eu entendesse que cada proporção de imagem afeta profundamente os relacionamentos entre os objetos enquadrados. O que é equilibrado em 6x9 não fica bom em 6x6 e vice versa… como bom filhote do 24x36mm, passei por uma gradual evolução nas preferências da composição 6x4,5, 4x5 polegadas, 6x7 e finalmente 6x6. O retângulo tornou-se quadrado. Saber qual a sua preferência de composição é primordial para escolher uma boa câmera. O quadrado, típico das Rolleiflex, Hasselblad e outras câmeras 6x6, é daqueles que se ama ou odeia, para citar um exemplo. Panorâmicas idem. Facilidade de uso. Normalmente, se você passa mais tempo brigando com a câmera do que olhando para aquilo que você irá fotografar, não está com uma ferramenta adequada nas mãos. Gostei muito da ergonomia da Pentax 67 que tive - ela parece uma máquina 35mm gigante - mas ela era simplesmente grande e pesada demais, como praticamente todas as 6x7. E eu já preferia o visor “capuchão”, aquele que faz com que você use a câmera na altura da cintura; além de não ficar entre meus olhos e os do retratado, ainda há a inversão esquerda/direita da qual tanto gosto e tanto me ajuda a compor. A Pentax 67 tinha esse visor também, mas algo simplesmente não parecia certo ao usá-la assim - e é um malabarismo bizarro utilizar esse tipo de visor para fotos na vertical.
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Para quem precisa trocar o filme na metade - para trocar o ISO, usar sistema de zonas ou trocar PB por cor - é essencial usar uma câmera que possua backs removíveis. A maioria das câmeras não permite fazer isso. Mas isso não é uma necessidade para todos, vale pensar no assunto, porque isso influi muito no preço e variedade disponível de opções: algumas câmeras, como a Mamiya 645 e Pentax 645 trabalham com a tecnologia de inserts, ou peças de troca rápida. Uma vez que carregou o filme tem de usar até o final, mas a troca fica muito mais veloz. Câmeras como a Pentax 67 ou Rolleiflex podem ser muito lentas nisso. Qualidade de imagem. Essa era a menor das minhas preocupações, na verdade. Meu trabalho não está apoiado na nitidez extrema, mas sim na transição entre o que está nítido e o que não está - é mais uma questão de como o foco “vai embora” do que propriamente uma resolução altíssima e precisão de detalhes. Mesmo assim, encontrei um tipo muito específico de imagem que me agradou muito nas lentes alemãs - e essa preferência nasceu em uma pequena Kodak Retina IIc que tive anos atrás, e que usava objetivas Schneider. As transições eram incrivelmente suaves para um negativo daquele tamanho. Na minha opinião empírica - nunca fui de ligar muito para gráficos MTF ou resenhas - as lentes japonesas eram nítidas e contrastadas, enquanto as alemãs tinham uma suavidade muito particular, sem perder a nitidez. Ainda acho as lentes Nikon/Pentax maravilhosas, mas minha preferência pessoal recai nas Schneider/ Zeiss/Rodenstock. Um ligeiro “jenesequá”, como abrasileira um amigo; e falando em amigos, conheço dois que praticamente atravessaram o mundo - um para conseguir uma Zenza Bronica, uma simpática 6x6 que utiliza lentes Nikkor, e o outro para adquirir sua Contax 645, uma ágil 6x4,5 eletrônica que dispõe de objetivas Zeiss. Ambas as câmeras bastante raras no Brasil.
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Parecem decisões muito passionais - e são. Nunca são baseadas em verdades absolutas, apenas na sensação incrível de que aquele pedaço de metal e vidro parece entender exatamente o que você quer, e assim te ajuda a colocar a sua alma nos resultados. Se você encontrou uma assim, não meça esforços para tê-la. Vale a pena, porque enquanto durar, será eterno. Imagem: Nathalia e o peso do mundo, 2014. Hasselblad 500C
Por que você faz fotografia de rua com filme? fotografia de filme, por bruno massao
Certa
vez, fui indagado sobre fotografar com filme. “Mas como você sabe que a foto ficará boa?”, me perguntou um amigo. Oras, é difícil responder, mas não impossível. Um dos principais pontos, quando falamos sobre fotografia de rua, é o conhecimento de seu equipamento. Independentemente de ser digital ou analógico, é necessário que o fotógrafo entenda seu funcionamento em totalidade. Fotometria, foco, a disposição dos botões...Tudo é importante. Se já é de grande importância com equipamento digital, isso dobra ao falarmos de câmeras analógicas. Se for uma câmera eletrônica, é necessário verificar se todo o circuito está funcionando como deveria. Funções como autofoco (se houver), exposição automática, trava de exposição, entre outras funções. Numa câmera mecânica, é necessário verificar se o tempo não afetou nenhuma de suas funções principais, como as velocidades – que podem estar fora de sincronia–, ou mesmo haver peças oxidadas – considerando o tempo que essas câmeras ficaram paradas. Mais importante do que a câmera, em si, é a objetiva que você vai usar. Todos nós sabemos os efeitos que a falta de cuidados pode causar no conjunto ótico: fungos e arranhões são os primeiros pontos a serem procurados ao verificar seu “novo-velho” equipamento. Mais do que isso, é importante verificar a qualidade da objetiva que você está utilizando.
Por exemplo: o sistema OM, da Olympus, é considerado perfeito por muitos usuários de SLRs: é leve, compacto, possível de ser operado apenas com uma mão, possui um viewfinder grande e claro, fotometria bem precisa, entre outros pontos. Entretanto, o mesmo não pode ser dito a respeito de todas as suas objetivas. Boa parte de suas objetivas, a linha Zuiko, é considerada de boa para muito boa. Entretanto, sempre existem exceções: compare a G.Zuiko 50mm f/1.4 com a sua sucessora, a Zuiko 50mm f/1.4. São objetivas completamente diferentes, com a segunda sendo muito mais nítida do que a original. A original, apesar de ser muito boa, só consegue trazer resultados satisfatórios a partir do momento que o usuário a fecha em f/2.8, por exemplo. Outro bom exemplo de comparação é colocar, lado a lado, a Canon EF 50mm f/1.4 USM com sua irmã “mais pobre” , a Canon EF 50mm f/1.8 II. No papel, a Canon EF 50mm f/1.4 USM deveria ser muito melhor – ocorre, porém, que ela é praticamente inutilizável completamente aberta. Entretanto, é injusto dizer que ela não vale o preço: ao fecharmos em f/1.8, ela fica com uma resolução muito maior do que a Canon EF 50mm f/1.8 II. E, no caso dessa objetiva, precisamos considerar o motor de autofoco – o motor ultrassônico (USM) é muito mais rápido, preciso e silencioso que o motor comum da Canon, presente na cinquentinha.
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Tão importante quanto isso é também saber as características do filme que você utilizará. Alcance dinâmico e latitude variam de filme para filme, além de suas propriedades no geral. Quer um exemplo interessante? Pegue um Fuji Velvia 50 e um Fuji Provia 100. Ambos são diapositivos – também conhecidos como cromos -, mas não é por isso que ambos são hiper-saturados. Resumindo: Você precisa entender como sua câmera funciona, como sua objetiva funciona, seus pontos fortes e fracos. O filme escolhido vai agir de determinada forma ao ser puxado, vai ter uma característica em si. Por essas e outras, é essencial conhecer seu equipamento. Ao fazer isso, você não apenas passará a perder menos fotos, mas como aproveitará bem mais as que tira – além de ter uma ideia de como cada uma ficará.
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fotografia et al Conceito
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