Fotografia e arte pública: uma primeira análise (1998)

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Fotografia e arte pública: uma primeira análise Ricardo Mendes Palestra apresentada na UNESPInstituto de Artes em 28.09.1998. Ricardo Mendes é pesquisador em história da fotografia, coordenador da Equipe Técnica de Pesquisas em Fotografia e mestrando pela ECA-USP na linha de pesquisa Ação Cultural, em que desenvolve o projeto Vilém Flusser no Brasil, um programa de difusão da obra do filósofo.

Ao convite para falar sobre o tema arte pública e fotografia, duas reações se sucedem. Uma, de recusa, ao considerar que a fotografia, ao menos no quadro local, não participa do intenso debate sobre arte pública em andamento ao longo dos últimos cinco anos. O impulso contrário, o de aceitar, responde à oportunidade de reflexão, de uma primeira avaliação histórica sobre o tema e, a partir daí, pensar formas de atuação como agente cultural. No entanto, a aproximação destes termos – arte pública e fotografia – implica em alguns paradoxos que merecem algum comentário. Por um lado, o qualifiticativo pública parece ironizar com uma condição que a fotografia inaugura e que é característica das imagens técnicas: a condição de reprodutibilidade. A fotografia torna público, permite a circulação de imagens e a implantação de um sistema de comunicação baseado nas imagens, que desde seu início tem exigido permanente análise. De outro lado, a noção arte impõe a atenção no debate, considerando a relação, por vezes turbulenta, por vezes indiferente, entre arte e fotografia, em suas diferentes configurações nestes quase dois séculos desta mídia. Arte em espaço público Aqui tomaremos como parâmetros para este painel, considerando o breve comentário inicial, o foco sobre a arte pública entendida como arte em espaço público aberto e a análise da fotografia como um todo, propondo assim uma suspensão temporária do conceito de arte, relegando para um segundo momento o debate sobre arte e fotografia. O conceito espaço público merece igual atenção. Dele deriva as noções de livre acesso, associado à idéia de público, e de espaço aberto, em oposição ao espaço da galeria, do circuito de arte convencional. Em decorrência, a aproximação arte + pública visa a promoção do contato casual e eventual com a obra de arte, em nova situação. Uma dúvida poderia ser levantada sobre a inclusão nesta abordagem da “decoração” de espaços públicos como bancos ou exposições nestes locais e outros como shopping centers. Por essa razão fica em xeque a idéia de que o conceito espaço público aberto seja uma definição adequada, uma definição suficiente. Na verdade, o conceito é estritamente operacional para o desenvolvimento deste painel. É necessário confessar a indisposição pessoal perante o tema, considerando o quadro da fotografia no Brasil, em que outras questões parecem impor-se. Entre elas a necessidade premente de pensar o sistema de informação artística como um todo. Desde a relação com a imprensa (crítica especializada) e as instituições de memória (museus) ao mercado de arte (galerias) e o ensino. É neste terreno que a questão do público e do livre acesso deveria ter lugar.1 Além disso, a questão de inserção da fotografia no sistema de arte (e dos estudos sociais) acrescenta certas particularidades ao processo. Entre elas, a luta por espaços próprios em relação a 1

Veja adiante o bloco Arte pública para quê? 1


Fotografia e arte pública: uma primeira análise Ricardo Mendes arte, como foi o caso da adoção em todo o país do modelo do museu da imagem e do som, solução que não resolveu a contento o problema. Como também, a luta pela maior difusão da prática fotográfica (seja a aplicada ou artística) que gerou diferentes formas de difusão de cada segmento fotográfico. Neste aspecto, parece relevante ao debate lembrar como no quadro da fotografia paulistana é possível apontar exemplos do uso de mídias diversas para divulgação. Nos anos 30, o rádio; nos anos 70, a televisão, e finalmente nos anos 90 a internet, certamente a mídia efetivamente explorada no que toca à difusão2. Outras práticas foram adotadas paralelamente para intensificar a divulgação da fotografia nas últimas décadas como as exposições de rua, marcadamente por uma produção voltada para o ensaio social, as caminhadas e eventos e práticas artísticas (como a arte postal) que procuravam abordar centralmente a questão da arte pública. Um olhar sobre o dezenove. Considerando o quadro histórico da prática fotográfica na cidade de São Paulo é possível apontar manifestações em que os termos arte pública e fotografia se aproximam. Pode-se falar de forma geral que durante o século XIX registra-se uma ausência de uma prática expositiiva em todos os campos, seja nas artes visuais ou na fotografia 3, ou melhor a inexistência de espaços especializados nos moldes da galeria. Adotam-se então espaços alternativos como o próprio estabelecimento fotográfico ou lojas como a Casa Garraux, onde já em 1862 expunha Nuno Perestrello. Nesse período, surge a prática do uso da vitrine. Ocorrência que se tornaria cada vez mais regular, tanto nos estúdios fotográficos, como em outros locais de grande afluxo de pessoas. Esse uso ia além da função de mostruário, apresentando toda um leque de possibilidades de produtos, cujos registros remanescentes indicam ser mais variados do que a produção média 4. As vitrines tornam-se na segunda metade do século passado um novo elemento urbano, no início resultando da adaptações de janelas e portas do casario colonial. Em 1867, o estabelecimento fotográfico Carneiro & Gaspar expõe nas vitrinas da Casa Garraux. Por sua vez, dois anos após será a vitrina de Carneiro & Gaspar que abrigará pinturas em vidraça de Jules Martin. Em 1886, outro fotógrafo, G.Renouleau, inaugura mostra permanente em vitrine da empresa de Jules Martin, que desde 1876 apresentava exposições temporárias como a de vistas urbanas de W. S. Bradley. A prática expositiva em fotografia no século XX apresenta um marco na exposição realizada em 1905 por Valério Vieira no Salão Progredior. Aqui, Valério adota a mesma concepção das mostras de artes plásticas com paredes revestidas de tecidos e recobertas de telas em grande número. O desenvolvimento desta prática é plenamente irregular ao longo das três primeiras décadas, revelando a ocorrência maior de exposições comemorativas ou feira de produtos do que mostras artísticas. No início dos anos 40, o Foto Cine Clube Bandeirantes instala uma prática expositiva mais regular, seguindo o modelo do salão fotográfico. Apenas nos anos 50 surgem as primeiras inserções 2 O comentário é referência direta ao programa Instantâneos no ar de José Medina transmitido durante o ano de 1939 em rádios paulistanas e ao seriado exibido em 1970 pela TV Cultura destinado ao ensino da fotografia. 3 Sob este aspecto, veja: TARASANTCHI, Ruth Sprung. Pintores paisagistas em São Paulo (18901920). São Paulo: ECA-USP, 1986. 4 Casos excepcionais são as vitrines de Oreste Cilento, na sala de recepção do seu atelier no Brás, registrada em foto inclusa em Il Brasile e gli Italiani ([Firenze]: Publicazione del Fanfulla, 1906) ou ainda a vitrine do estabelecimento de Vincenzo Pastore. Neste caso, o registro remanescente, cuja reprodução integra o acervo do Instituto Moreira Salles, apresenta seu estúdio aberto na Itália após seu retorno à Europa nos anos 10. Outro exemplo é o mostruário de O. R. Quaas, na virada do século, registrado em anúncio no álbum Revista Industrial, pertecente ao acervo do Museu Paulista. 2


Fotografia e arte pública: uma primeira análise Ricardo Mendes de mostras fotográficas em museus como o MASP e o MAM. Na década de 70, no quadro do boom da fotografia que ocorre sob forte influência do modelo americano, surgem espaços expositivos dedicados à fotografia em caráter permanente em diversas cidades que adotam o modelo do museu da imagem e do som – MIS. Logo a seguir, surgem as galerias especializadas como a Álbum e a Fotogaleria Fotóptica. Embora este quadro retrate o panorama paulistano dentro de certos limites pode-se adotá-lo como similar para o sudeste brasileiro. Esse desenvolvimento da prática expositiva nestes dois séculos não deixou de refletir a questão da inserção arte e fotografia, gerando algumas particularidades. Entre elas, a criação de locais próprios para a fotografia, revelando uma deficiência na inserção da fotografia no sistema artístico local. Por outro lado, a adoção de espaços próprios e da criação de instituições específicas indicam a especialização exigida em certos segmentos como o de guarda com exigências próprias geradas pela natureza da mídia e o número de obras5. Por outro lado, ainda enfocando a inserção arte e fotografia, a fotografia torna-se nos anos 90 um elemento regular na produção de artes plásticas, prática de início sob forte influência internacional. Essa produção, de uma geração de artistas jovens, acaba aparentemente implodindo o debate sobre a fotografia como suporte artístico, sem estar resolvida porém a questão do status, digamos cultural, da fotografia aplicada como o jornalismo e a publicidade. A rua No quadro paulistano, a busca da rua como espaço direto de ação ocorre nas tentativas de difusão de história social. Em 1977, seguindo o projeto de Julio Abe Wakahara surge o Museu de Rua6, solução adotada para divulgação do acervo do Museu da Imagem Fotográfica da Cidade de São Paulo, setor do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura. A iniciativa é bem recebida pelo público e pela crítica. Entre as primeiras mostras, a dedicada ao Centro Histórico, busca introduzir imagens fotográficas realizadas no século XIX nos mesmos locais em que foram produzidas. A proposta teve ao longo dos anos uma difusão intensa, sempre destacando-se pela receptividade do público. Traço efetivo de atenção revelado também pela ocorrência de raros casos de depredação7. No entanto, estas mostras, em especial as geradas pela Secretaria Municipal de Cultura, revelaram uma decadência marcada pela falta de estrutura museológica efetiva e a ausência de uma curadoria de fotografia, à exceção da exposição sobre o bairro do Brás que contou com a presença do fotógrafo Michael Alves de Lima ao final dos anos 708. 5 Existe um choque operacional gerado pela presença de coleções fotográficas em museus de arte, considerando a demanda por serviços especializados e exigências de reserva técnica distintas, que põe em cheque os recursos financeiros e humanos dessas instituições em permanente crise financeira. 6 A Rioarte manteve na virada para os anos 80 o projeto Museu de rua, coordenado por Claudia Jaguaribe, destinado a trabalhar com a documentação dos bairros cariocas. 7 Segundo Julio Abe (em depoimento realizado em 03.10.1998) nunca houve depredação seja nas montagens realizadas pela SMC, seja nas realizadas por outras entidades ao longo de duas décadas. No Rio de Janeiro, tem-se notícia de que o evento de rua realizado por Claudia Jaguaribe em 1985 (c.) foi depredado, mas eram fotos de ensaio pessoal, não documental. Em São Paulo, exposição de Antonio Saggese, em 1998, na Galeria da Consolação, uma passagem de nível que abriga eventos artísticos, teve algumas fotos danificadas. 8 Adotando o mesmo modelo, organizamos em 1995 a mostra de rua Anúncios em listas telefônicas, montada no CCSP, na esplanada do Museu do Telefone, então à rua Martiniano de Carvalho e na 3


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A proposta dos museus de rua, adotada por várias entidades no estado de São Paulo, sempre teve como marca a difusão de foto documental e não da produção artística, mais experimental. Seria relevante lembrar que outros modelos de difusão da prática fotográfica foram tentados ao longo de várias iniciativas da comunidade fotográfica, igualmente merecedoras de atenção. É o caso dos Encontros Fotográficos realizados em 1978 e 1970 em Campos de Jordão, sob orientação de Stefania Bril. O modelo adotado é o mesmo dos encontros realizados anualmente em Arles, França. Na década seguinte, na cidade de São Paulo, por iniciativa da União dos Fotógrafos ocorrem regularmente as Semanas Paulistas de Fotografia, reunindo exposições, cursos e debates. Surgem aqui iniciativas para expandir os espaços de contato do público com a produção fotográfica, com intensa ocorrência de exposições de varal em parques e praças. É ainda o caso de propostas que adotam os populares “binoclinhos” como suporte. No período retoma-se a prática dos passeios fotográficos, no caso substituindo as excursões ao campo dos fotoclubistas dos anos 20 pela redescoberta da cidade9. A rua como espaço de difusão artística Enquanto as iniciativas do campo fotográfico centram atenção na difusão da prática como um todo, reservando pouco espaço para refletir sobre a questão da arte na rua, no segmento de artes visuais surgiram nos últimos vinte anos propostas de eventos de rua centrado sobre a difusão artística. Esses eventos coletivos contaram raramente com a presença de fotógrafos. Certamente, o evento que marca o início desses projetos foi realizado em 1979 o projeto Fim de década – Mitos Vadios, que ocupa a praça da Sé, incluindo manifestações nas mais diversas áreas, como teatro e cinema. No campo da fotografia as iniciativas são mais dispersas, cobrindo porém um amplo leque de opções: Galerias Curiosamente, ao lados das mostras do Museu de Rua e das diversas iniciativas associadas às Semanas Paulistas de Fotografia, é por parte de galerias que ocorre a tentativa mais antiga de ocupação do espaço da rua. Assim em 1983, a Galeria Fotóptica abre o Espaço Fotóptica, na Praça da Sé, onde instala painéis de 2 por 2 metros. No entanto, a ênfase das mostras ainda enfoca a produção documental. Apenas quinze anos depois, refletindo também o ocaso das galerias especializadas a partir da segunda metade dos anos 80, é aberta a Galeria Paparazzi, na rua Pedroso de Moraes, associada à revista paulista de mesmo nome. A iniciativa é muito recente para avaliar a importância do empreendimento. O projeto do arquiteto Siegbert Zanetini tira partido da localização estabelecendo um longa vitrine de quase vinte metros abrigada por uma marquise que garante proteção às imagens e aos usuários, ao mesmo tempo que tira proveito da calçada larga criando um espaço de recolhimento. As condições excepcionais de localização permitem ao mesmo tempo que pedestres e motoristas possam visualizar com adequação as imagens expostas. Exposições Nos anos 90 várias mostras são realizadas utilizando o modelo do Museu de Rua, como as expostas no Projeto CEF no espaço livre junto à filial da Caixa Econômica Federal na Av. Paulista, entre elas a exposição de Emidio Luisi em 1997. O mesmo ocorre em mostras organizadas pela BM&F na praça Antonio Prado, ambas voltadas para a fotografia documental. Outras iniciativas adotam modelos mais livres com grandes painéis sobre estruturas metálicas como a exposição de imagens de Sebastião Salgado em 1992 no Vale do Anhangabaú, onde o aspecto documental fica obscurecido pelas grandes dimensões da imagem e pela edição rua Conselheiro Crispiniano, tradicional ponto de concentração de comércio fotográfico. 9 Seria relevante lembrar que nesse mesmo contexto surgem propostas de cursos para formação básica adotando equipamento de baixo custo como as câmeras pinholes ou equipamentos populares, como o proposto por George Love. 4


Fotografia e arte pública: uma primeira análise Ricardo Mendes que valorizava a linguagem fotográfica. Soluções originais surgem como no caso da mostra Homem-Sanduíche (1993), quando ambulantes desfilam pela região do Teatro Municipal, portando painéis de 16 artistas. Ou ainda a mostra do fotógrafo carioca Hugo Denizart, realizada no vão livre do MASP em 1995, onde um painel mecânico exibe seu ensaio sobre travestis e prostituição. Seria possível incluir neste tópico as exposições realizadas em shopping centers, nas estações de metrô (entre elas o Projeto Brasil das Artes), em passagens de nível (como a Galeria da Consolação e Xavier de Toledo, mantida pela Eletropaulo) e espaços alternativos não regulares como o Mercado Mundo Mix. Projeção Embora o uso comercial de projeções ao ar livre seja conhecido desde os anos 50, permanecendo em pontos isolados como a Praça da Sé até a década de 60, este veículo nunca foi apropriado artisticamente. Nos anos 90, porém, com a tentativa de retomada do sistema, algumas empresas realizaram projeções de portfolios de fotógrafos na avenida Faria Lima e Praça Roosevelt. Em 1997, Emídio Luisi em sua exposição Ué Paesa, usa o mesmo recurso. Esse uso, porém, sempre esteve restrito à mera difusão de obras, sem maiores preocupações formais 10. O mesmo ocorre no Rio de Janeiro, em 1998, quando surge o projeto Fotorio Lagoa, com projeções de ensaios de fotojornalistas seguidas de apresentações musicais. No ano seguinte, por iniciativa da ARFOC, acontece evento similar na Praça Villaboim, em São Paulo. A apropriação artística do veículo é praticamente desconhecida, salvo raras exceções. Em 1996, em evento realizado no edificio da OAB-Sé dedicado à criança, a fachada do prédio é revestida de telas sobre as quais são projetadas imagens de crianças trabalhando, segundo projeto de João Spinelli. Outdoors Embora a apropriação do outdoor por parte de artistas plástico já apresente ocorrências desde os anos 70, é rara a presença de fotógrafos utilizando a mídia. Talvez o uso mais adequado tenha sido feita durante mostra da fotógrafa norte-americana Barbara Kruger no MAC-USP em 1992. Outras iniciativas são pouco freqüentes e muitas vezes associadas a projetos de eventos artísticos coletivos como a mostra Arte e Lixo em 1997 quando outdoors na Av. Nova Faria Lima foram ocupados com materiais encontrados no lixo. Na seleção de artistas estavam presentes o cineasta Carlos Reichenbach e o fotógrafo Cássio Vasconcellos que apresentavam colagens com fotografias. Os painéis foram veiculados também via internet, o que embora expandindo o potencial de divulgação, retira o caráter de contato ocasional que nos parece essencial nos projetos de arte pública. Deve-se destacar ainda a produção de Eva Saro, que introduz a questão de educação visual, em suas mostras (CCSP e MAC-USP, 1998) que utilizam material reciclado de anúncios de outdoor. Os painéis eletrônicos, disponíveis na cidade desde os anos 80, e que constituem uma versão contemporânea do clássico outdoor, foram apropriados estritamente em intervenções de artes visuais, embora as gerações recentes de alta definição permitam a reprodução adequada da imagem fotográfica. Coleções públicas/Política de aquisição Merece destaque especial a política de aquisição de obra por parte da Companhia Metropolitana de São Paulo, cujo espaço expositivo por excelência é extensão da rua, as estações do Metrô, iniciativa de grande vulto como revela o jardim de escultura da estação Sé. 10 É necessário lembrar que por iniciativa do projeto Arte Cidade, vários artistas estrangeiros têm realizado palestras em São Paulo a partir de 1998 destacando intervenções em espaços públicos utilizando projeções como Haans Haacke. 5


Fotografia e arte pública: uma primeira análise Ricardo Mendes No entanto, durante mais de uma década do programa de aquisições a única presença da fotografia entre as obras selecionadas refere-se ao projeto de Wesley Duke Lee para uma estação do ramal paulista que jamais foi implantado, embora praticamente finalizado. Na obra, Lee utiliza o recurso de imagens plotadas em montagem com backlites. Apenas em 1998, passa a integrar a coleção a obra de Alex Fleming, idealizada para a estação Sumaré, também no ramal paulista, que ocupa 160 metros lineares com grandes ampliações de fotos 3 x 4 aplicadas sobre os painéis de vidro temperado que se abrem para a avenida Sumaré. As imagens apresentam fotos de pessoas de diversas etnias, sobrepostas com textos de poetas brasileiros, enfocando a diversidade de origens nacionais da população. Eventos artísticos Como apontado anteriormente a presença da fotografia nos eventos coletivos que procuraram apropriar-se do espaço da rua é reduzida, com a rara presença da fotografia em obras em mídias “conexas” como o xerox. Nos anos 90, a série de eventos do Projeto Arte Cidade parece abrir espaço para novas experimentações em que a fotografia ganha espaço. Na montagem do Módulo I – Janelas – realizado no Matadouro, na Vila Mariana, ainda em espaço fechado, nota-se a presença de obras fotográficas que procuram novas soluções. O conjunto de obras apresentado, realizadas após longo período de discussões entre os participantes enfocando intervenções urbanas, busca um diálogo com a cidade que pode ser frutífero para a produção fotográfica. Antonio Saggese apresenta então ensaio sobre imagens da cidade refletida nos espelhos retrovisores de veículos; Cássio Vasconcellos produz grande painel sobre a paisagem urbana colado diretamente sobre a parede de tijolos. No Módulo II – A cidade e seus fluxos – realizado em 1995, em três edifícios da área central, inclui-se a presença de fotógrafos com obras apontando para vetores extremamente diversos. José Fujocka Neto apresenta o trabalho mais voltado para a busca de diálogo com o homem nas ruas, através de suas cabines de fotos polaroid onde os passantes podem tirar fotos 3 x 4 dando em troca qualquer objeto de valor. É esse painel de objetos que ocupa várias salas de um dos edifícios-sede do evento. Carlos Fadon Vicente, que apresenta um trabalho de interferência eletrônica sobre imagens com parceiros como Eduardo Kac, em Chicago, participa do CD-Rom do evento com portfolio de suas obras realizadas em imagem digital ou resultantes de intervenção digital. No entanto, é a obra de Rubens Mano – Detector de ausências – que metaforicamente remete à fotografia e a possibilidade de representação ao utilizar dois holofotes militares instalados no Viaduto do Chá que dissolvem os pedestres em luz, projetando sombras sobre os edificios. Na terceira edição do evento – A cidade e suas histórias – a presença de grande número de fotógrafos não se reflete na qualidade das obras que pouco ganham no diálogo com o ambiente. Aqui participam Arnaldo Pappalardo, Patrícia Azevedo, Rochelle Costi, Willy Biondani e Marcos Ribeiro. O projeto Arte Cidade desenvolve agora a proposta Brás/Mitte, que pretende realizar eventos paralelos no bairro paulistano do Brás e no bairro berlinense Mitte, ambos caracterizados por grandes áreas urbanas centrais em processo de alteração funcional. Nesse quadro, os organizadores têm promovido palestras de artistas estrangeiros como Krzystof Wodiczko, que trabalha com projeções de imagens sobre monumentos, discutindo temas associado à cidade e a exclusão social. A expectativa levantada por estes trabalhos preparatórios aponta para novas propostas de ocupação artística do espaço público em que a fotografia pode ter papel mais relevante.

Um pequeno balanço Nesse quadro irregular de atividades voltadas para a difusão da fotografia em novos espaços, bem como a apropriação artística do espaço público, é difícil apontar a presença de vetores consistentes, 6


Fotografia e arte pública: uma primeira análise Ricardo Mendes de linhas de pesquisas com alguma continuidade. Exceção, claro, aos projetos de difusão de fotografia voltada para a documentação social. Algumas propostas, porém, podem ser destacadas por tentarem analisar as novas condições de exposição da obra no espaço público, uma nova situação. Entre elas, a mostra Homem-sanduiche (1993), ao explorar um suporte publicitário comum até os anos 70, mas ainda presente em escala reduzida. Assim 16 artistas tiveram suas imagens inseridas em novo contexto. Esse diálogo em busca do potencial da nova situação ressurge novamente na obra de Fujocka para o Módulo II do Projeto Arte Cidade ao recorrer às cabines polaroid para retrato e propor aos passantes a troca de um retrato por um objeto qualquer. Outros artistas como Cristina Guerra, que já trabalhara anteriormente com Fujocka, usa outra estratégia para produção de suas obras que partem do público e embaralha a fronteira com o privado. Trabalhando com retratos 3 x 4 na produção de grandes polípticos, Cristina instala a partir de 1994 vários postos de coleta de fotos, com as quais realiza sua produção. Um dos destaques é o seu painel para a coletiva Identidade não identidade, realizada em 1997 no MAM-SP, com curadoria de Tadeu Chiarelli. É no entanto em seu painel realizado para o programa Metrópolis, da TV Cultura, em 1995, em que sua produção retorna efetivamente ao espaço público. No entanto, se esses artistas trabalham com a situação da rua, com o contato com o pedestre, quase não se conhecem propostas que reflitam sobre a condição atual da rua, abandonada pelo pedestre e tomada por carros que andam sob a luz dos grandes anúncios e painéis eletrônicos. Essa nova condição da rua exige reflexão. Ainda mais se lembrarmos que desde os anos 50 a presença da imagem fotográfica nos outdoors torna-se um aspecto característico do ambiente. Nos anos 90, com as novas possiblidades de produção, painéis fotográficos gigantescos flutuam sobre as grandes cidades. Embora possa ser dito que resuma-se à publicidade essa nova condição de imagem merece atenção. Quase sempre associada ao mundo da moda, esses painéis remetem a um nicho fundamental para o imaginário urbano contemporâneo, a fotografia de moda. Ainda que possa ser classificada como uma derivação da fotografia publicitária, a foto de moda e seus produtores – fotógrafos e modelos – tornaram-se icones modernos, modelos de comportamento. Nesse processo, a foto de moda parece impor estilemas próprios distintos do universo publicitário. Em tal contexto, é relevante lembrar o impacto local da obra de Olivero Toscani. As propostas artísticas de intervenção urbana, em fotografia, passam distante desse quadro. Em parte pelos custos de produção, embora a opção dos painéis eletrônicos de nova geração seja possível. A única exceção foi apresentada em 1998, na mostra Novíssimos 98, organizada pelo Panorama da Imagem no Paço das Artes, pela fotógrafa Beth Savioli. Sua obra, instalada fora do edifício apresenta um grande luminoso backlite que reproduz uma imagem da periferia de São Paulo, marcada pela presença de terrenos baldios em meio a construções isoladas. Essa mera reinserção da paisagem urbana no terreno em obras atrás do museu através do uso do painel luminoso aponta para um início de diálogo com a nova condição da imagem nas ruas dos anos 90. O que esperar? Arte pública para quê? O balanço apresentado é precário. E precário por dois aspectos. Um, pela produção artística com iniciativas isoladas, sem projetos de maior continuidade. Por outro lado, por revelar que o tema não foi objeto de atenção da crítica, do sistema de informação artística, que falha ao não refletir sobre uma questão que tem sido intensamente tratada em outros setores das artes visuais. Agora, porém, outra questão se impõe, no que toca à fotografia, a mais pública das mídias. O que 7


Fotografia e arte pública: uma primeira análise Ricardo Mendes devemos esperar das produções que abordem o tema arte pública e fotografia ? Certamente, um ganho que não se restrinja à difusão de imagem, mas um ganho plástico, uma ganho na mídia. Deste modo, é possível traçar alguns tópicos em que seriam desejáveis propostas de trabalho, sobre os quais os demais agentes do sistema artístico como a crítica, a imprensa e produtores devem colaborar no debate: (1).a grande imagem, em suas variações como os painéis plotados ou painéis eletrônicos; (2). a não-pureza das mídias, e sim o diálogo da fotografia com outros suportes como o do painel eletrônico11; (3). foco na casualidade/banalidade, na inserção casual como a produção de grafites de Alex Vallauri e, talvez, no próprio anonimato das propostas, características de certas intervenções urbanas, (4) explorar o conceito de sistema de produção e distribuição, como ocorre em certas obras de Fujocka, mas agora em novo contexto em que a cidade é analisada sob o impacto das novas tecnologias de comunicação, da nova arquitetura comercial, nas alterações da percepção da cidade12.

11 Seria relevante lembrar da importância para a representação urbana dos grandes panoramas realizados por Valério Vieira nas duas primeiras décadas do século XX, exemplar máximo da fotopintura. Mas não deveria escapar à inspiração os grandes painéis como o comemorativo dos 30 anos do Shopping Center Iguatemi, com foto de Bob Wolfenson, ocupando a fachada principal do edifício (1996), ou os grandes anúncios da Forum (1997) em grandes cidades do sudeste brasileiro. 12 Sob este aspecto, veja a palestra apresentada no seminário internacional Vilém Flusser no Brasil: uma apresentação pelo crítico de arquitetura inglês Martin Pawley, em 04.99, disponível no site homônimo http://www.fotoplus.com/flusser. 8


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