São Paulo e suas imagens Ricardo Mendes
1.versão
Texto original para publicação em:
MENDES, Ricardo. São Paulo e suas imagens. CADERNOS DA FOTOGRAFIA BRASILEIRA, IMS, n.2, p.381-487, 2004.
São Paulo na fotografia: abertura Pensar São Paulo através de suas imagens é um gesto temerário, por razões bem definidas. Primeiro, o fenômeno urbano que tem lugar ao longo de quase dois séculos, período que corresponde ao efetivo desenvolvimento da cidade, pela extensão e diversidade de São Paulo e conseqüentemente pelo conjunto de seus atores, em todos os níveis, com distintos pontos de vista. Segundo, por sua produção visual, diversa e extensa, mas com severas lacunas.
imagem [garoto jornaleiro] Hildegard Rosenthal década 1940 acervo ‘
O que se fará aqui se confunde em muitos aspectos com o desenvolvimento da fotografia na cidade de São Paulo (e no Brasil, a partir de certo momento), mas não é, ainda assim, uma história da fotografia paulistana. Ao mesmo tempo, procurou-se evitar ceder a uma tentação, quase natural, de estabelecer uma sociologia ou uma história da cidade através de imagens. O espaço exíguo e a ambição do projeto, associados com a oportunidade de olhar sob um arco tão longo de tempo o papel da Fotografia no campo da constituição da imagem urbana, permitirão com algum sucesso (e esforço) apontar os caminhos das relações entre homem e cidade, estabelecer distinções entre as diversidades de uso da fotografia como mídia, como registro visual, e rastrear então o impacto documental, sociológico e estético destes gestos, destas estampas. A imagem fotográfica ocupa um lugar especial como mediadora das relações entre homens e cidades. Não, porém, com exclusividade, nem com o mesmo impacto de outras modalidades como a música e, talvez, a crônica. A música, certamente, ocupa em muitos momentos de nossas experiências um local de destaque como reveladora de sentimentos, de inesperadas associações com a cidade, cenário e local das ações de seus habitantes. Música, invocadora de estranhas associações que remetem a elementos tão díspares, como barulhos, cheiros, burburinhos, elementos sensoriais como a chuva, o vento, o frio. O amor, o desespero. A cidade é ainda cenário simultâneo de nossas vidas e de outras. Tal condição une a todos, do pobre ao rico, esplêndido fenômeno social total, que através da fotografia (como da música, lembrada anteriormente), torna-se tema usual, recorrente, babélico. Pensar a cidade através da fotografia recorda-me duas associações especiais, que traduzem por um lado a força do local, por outro a força da fotografia. A primeira é uma lembrança esquecida, que remete a contos de Julio Cortazar, em que personagens, exilados em Paris, lembram de Buenos Aires. Estas narrativas reconstroem a cidade, lembrando de cada rua, cada loja, pequenas entradas; confundem-se com a Paris em que habitam seus atores, quase um presságio do momento em que essas imagens começarão a apagar-se. A segunda remete à descoberta da fotografia, à minha descoberta da fotografia. Curiosa lembrança, em parte reelaboração. Ela ocorre a partir da imagem do menino vendendo jornais com manchetes sobre a Segunda Guerra Mundial. Ele sorri. A descoberta é mais ampla ainda, pois pela primeira vez percebia a existência do Outro, externo à esfera familiar de um garoto de 10 anos, e de um autor, um fotógrafo, no caso, Hildegard Rosenthal (1913-1990). Sob esta dupla condição, desconfiado de qualquer apologia e comemoração, elaboro aqui uma crônica (e não uma história) do olhar, uma crônica da paisagem.
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