Ciencia, sociedade e tecnologia: ensaios sobre Michael Polanyi

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CIĂŠNCIA, SOCIEDADE E TECNOLOGIA: ENSAIOS SOBRE MICHAEL POLANYI Eduardo Beira Manuel V. Heitor (eds.)

IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy Inovatec (Portugal) 2015


Š 2015, Eduardo Beira e Manuel V. Heitor IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy, Inovatec, MIT Portugal Grafismo: Ana Prudente ISBN: 978-1517076306


EDUARDO BEIRA E MANUEL HEITOR (EDS.)

SOBRE OS AUTORES Carolina Bagattolli Graduada em Ciências Econômicas pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), especialista em Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina e em Gestão Estratégica Pública, mestre e doutora em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) é atualmente professora adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Programa de PósGraduação em Políticas Públicas (PPPP/UFPR). Membro do GAPI - Grupo de Análise de Políticas de Inovação (DPCT/IGE/UNICAMP) e do Grupo Tecnologias Emergentes, Sociedade e Desenvolvimento (UFPR), tem-se dedicado à analise de políticas públicas, com ênfase na Politica Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, ao estudo do comportamento inovativo por parte do empresariado brasileiro e ao campo da Tecnologia Social.

Eduardo Beira Docente e colaborador do programa MIT Portugal, desde 2008, atualmente também “senior research fellow” do IN+ Center for Innovation, Technology and Policy Research (IST, Lisboa), foi professor convidado na Universidade do Minho (equiparado a professor associado, 2008-2012; auxiliar, 2001-2008), onde foi responsável pelo curso sobre inovação para alunos dos vários programas doutorais da Escola de Engenharia (2009-2012). Engenheiro químico (FEUP, 1974), foi administrador de empresas industriais e de serviços durante mais de vinte anos, depois de uma primeira carreira académica na Universidade do Porto (FEUP: 1974-1982 e FCUP:1972-1973).

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CIÊNCIA, SOCIEDADE E TECNOLOGIA: ENSAIOS SOBRE MICHAEL POLANYI

Nos últimos anos tem vindo a publicar a tradução, em língua portuguesa, dos livros de Michael Polanyi.

Manuel Heitor Professor catedrático do Instituto Superior Técnico e diretor do IN+ Center for Innovation, Technology and Policy Research. Foi Secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior no governo português (2005-2011) e professor visitante na Universidade de Harvard (2011-12). Doutorou-se em 1985 no Imperial College (Londres). Desde 1995 é “research fellow” do IC2 Institute da Universidade do Texas em Austin. Miguel Panão Miguel R. Oliveira Panão é Professor Auxiliar na Universidade de Coimbra desde 2014 e doutorado em Engenharia Mecânica pelo Instituto Superior Técnico (2008). Desde 2011 que faz parte da Comissão Internacional da iniciativa cultural EcoOne dedicada ao pensamento filosófico em ecologia. Desde 2015 é membro da International Society for Environmental Ethics. A sua investigação em engenharia incide sobretudo na área da transferência de calor e mecânica dos fluidos. Porém, além de diversas publicações em engenharia, publicou também na área da filosofia, em particular, sobre ética ecológica, onde introduz os conceitos de “comuniocentrismo” e “Ecologia de Comunhão”.

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EDUARDO BEIRA E MANUEL HEITOR (EDS.)

Phill Mullins Professor Emeritus do Departamento de Filosofia e Religião, Missouri Western State University (EUA). Foi editor de Tradition and Discovery. The Polanyi Society Periodical, entre 1991 e 2012. Um dos principais autores sobre a obra filosófica de Michael Polanyi, publicou mais de oitenta ensaios em livros e periódicos académicos. Doutorou-se em teologia e arte, em 1976, precisamente com uma tese sobre o pensamento de Michael Polanyi. Tiago Brandão Licenciado em História, Mestre em História Contemporânea e Doutor em História Económica e Social pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (IHC, FCSH-UNL / Portugal). É investigador integrado do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHC, FCSH-UNL), bem como ‘Senior Research Fellow’ do Center for Innovation, Technology and Policy Research do Instituto Superior Técnico (IN+ / IST), dentre outras vinculações académicas ao Brasil (PPGTE-UTFPR) e Canada (INRS), mormente no âmbito de um projecto de pós-doutoramento sobre a “Política Científica em Democracia”. Tem-se focado na história das políticas científicas, dedicando-se ao estudo da história da organização da Ciência em Portugal e suas diversas instituições científicas, trabalhando igualmente sobre esta temática da construção e definição da política científica em quadros comparados.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO: POLÍTICAS DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA E O PENSAMENTO DE MICHAEL POLANYI Manuel V. Heitor página 9 MICHAEL POLANYI: PERSPETIVA E ATUALIDADE Eduardo Beira página 33 A VISÃO FILOSÓFICA E PÓS-CRÍTICA DE MICHAEL POLANYI: CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Phil Mullins página 71 SUBLINHAR POLANYI: COMENTÁRIO DE UM ENGENHEIRO Miguel Rosa Oliveira Panão página 95 CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO PENSAMENTO DE MICHAEL POLANYI: POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PARA A POLÍTICA CIENTÍFICA CONTEMPORÂNEA Tiago Brandão página 111 CONHECIMENTO PESSOAL E REPÚBLICA DA CIÊNCIA: UM ETERNO DEBATE A PARTIR DO PENSAMENTO DE MICHAEL POLANYI Carolina Bagattolli página 133



CIÊNCIA, SOCIEDADE E TECNOLOGIA: ENSAIOS SOBRE MICHAEL POLANYI Eduardo Beira Manuel V. Heitor (eds.)



INTRODUÇÃO: Políticas de ciência e tecnologia e o pensamento de Michael Polanyi Manuel V. Heitor



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GRANDES PENSADORES E PENSAMENTOS: CIÊNCIA, TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO

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á ninguém duvida que sem ciência e tecnologia não há progresso, nem uma vida melhor. E que sem ciência nem sequer seria possível separar a verdade da mentira. Mas também ninguém duvida que o nível de acumulação do conhecimento científico e tecnológico é muito diversificado nas nossas sociedades, que estão hoje expostas a níveis crescentes de desigualdade social. E, portanto, também afectadas por uma capacidade muito distinta de separar a verdade da mentira. É neste contexto que a reflexão sobre ciência e sociedade, assim como sobre ciência e desenvolvimento, tem evoluído nas ultimas décadas com base num quadro epistemológico próprio, muitas vezes demasiado afastado das práticas de ciência e tecnologia e dos seus praticantes, onde a questão da linguagem e dos modelos retóricos tem assumido um relevo considerável. Surgiu assim a ideia de organizar um ciclo de encontros de reflexão sobre grandes pensadores e pensamentos relevantes para o desenvolvimento da ciência moderna e da cultura cientifica das nossas sociedades. Este ciclo de encontros parte do princípio que essa reflexão é importante e útil para toda a comunidade envolvida na produção, difusão e gestão de ciência e tecnologia. O ciclo de encontros foi lançado no Porto em Outubro de 2013 no âmbito do XV Congresso da Associação Latino Ibero13


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-Americana de Gestão de Tecnologia, ALTEC 2013, tendo sido especialmente vocacionado para os espaços latino-americanos de línguas portuguesa e castelhana, para os quais os desafios do desenvolvimento científico continuam a ser enormes e efectivos1. Foi então seleccionado o pensamento de Michael Polanyi para esse encontro, no qual foi lançada e apresentada pela primeira vez a tradução em língua portuguesa da obra mais importante de Michael Polanyi (“O conhecimento pessoal”, publicado em 1958 com o título “Personal Knowledge”2), assim como uma selecção de ensaios (“Ciência e Tecnologia”) de Michael Polanyi, cobrindo mais de trinta anos de contribuições suas sobre ciência e tecnologia, desde 1936 a 19723. Ambas as obras foram traduzidas e organizadas por Eduardo Beira, que publica neste livro uma reflexão inédita sobre o legado de Polanyi, incluindo uma análise do impacto crescente da sua obra.

Sobre Michael Polanyi Filho de uma família numerosa de intelectuais brilhantes (o seu irmão Karl Polanyi foi um nome importante em economia), participante das famosas discussões dos tempos áureos da esVer, por exemplo, H. Horta, M. Heitor and J. Salmi (eds.), (2015), Building capacity in Latin America: trends and challenges in science and higher education, Series in Higher Education, Springer Verlag; assim como M. Heitor, H. Horta, R. Castañón, R. Sbragia and A. Jiménez (2014), “Can Latin America move forward after a lost decade in technical change?…looking at opportunities for knowledge-based change in times of increasing uncertainty”, Journal of Technology Management and Innovation, Vol 9 (4a). 2 Polanyi, M. (1958), Personal Knowledge. Towards a post-critical pilosophy, Routledge & K. Paul. 3 incluindo os textos “The value of the inexact”, Philosophy of Science, 1936; “The rigths and duties of Science”, Contempt of Freedom, 1939; “Basic and Applied Science”, Congress for Cultural Freedom, 1955; “The two cultures”, Encounter, 1959; “Science: academic and industrial”, J. Inst. Metals, 1960; “The Republic of Science”, Minerva, 1962; “Genius in Science”, Encounter, 1972. 1

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cola de Viena, Michael Polanyi (1891-1976) foi um dos pensadores mais importantes do século XX, sendo o seu pensamento largamente baseado e influenciado pela sua experiência pessoal sobre a prática da ciência, da vivência na comunidade científica e do desenvolvimento da tecnologia no século XX. Tendo sido um cientista reconhecido pelos seus pares e geração, com contribuições notáveis na química física - cristalografia dos raios X, teoria da adsorção e catálise heterogénea - viveu as atribulações dos finais do século na Europa oriental (Hungria, Austria, Alemanha) e depois os dramas das duas guerras mundiais (tendo-se exilado no Reino Unido depois do advento do nazismo, em 1933). Vários dos seus alunos de doutoramento viriam a receber prémios Nobel, incluindo o seu próprio filho. Perto dos seus cinquenta anos trocou a cátedra de química física por uma cátedra de ciências sociais e dedicou-se á construção de estudos filosóficos que, na sua ideia, fossem capaz de dar resposta às dilacerantes angústias do homem moderno perante os terríveis dramas dos totalitarismos (que identificou como mecanismos niilistas de “inversão moral”) e preservasse o papel da liberdade e dos valores individuais e comunitários. Ao longo deste processo reformula o papel das pessoas no conhecimento e reconstrói as bases da epistemologia - criando o conceito de “conhecimento pessoal”, que está para além do objetivo e do subjetivo, assim como os mecanismos de “conhecimento tácito” e o seu papel fundamental em todo o processo de produção e difusão do conhecimento (explícito ou não). O enorme impacto da força das suas ideias continua, cada vez mais, a fazer o seu percurso nos dias de hoje. O desenvolvimento da ciência e da comunidade científica foram sempre centrais na exploração de ideias por Michael Polanyi. A sua prática da realidade da investigação científica avançada sugeriu-lhe aliás muitas das linhas de exploração do pensamento que desenvolveu. As suas ideias haviam de ins15


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pirar e serem centrais a outros pensadores influentes da ciência e tecnologia - sendo Thomas Khun um caso paradigmático (como o próprio explicitamente reconheceu). A reflexão de Polanyi sobre o papel e os mecanismos da investigação em ciência e tecnologia continua importante e inspiradora, parecendo ser uma escolha oportuna para iniciar um ciclo sobre grandes pensadores e pensamentos em ciência, tecnologia e desenvolvimento. Sobre este livro Para além do texto de Eduardo Beira sobre o legado de Polanyi e o impacto crescente da sua obra, este livro incluiu ainda textos que resultaram de trabalhos apresentados e discutidos durante o encontro de Outubro de 2013. Phill Mullins, um dos autores mais importantes sobre a filosofia de Michael Polanyi, que foi até muito recentemente editor principal da revista “Tradition and Discovery” da sociedade “The Polanyi Society”, apresenta um texto biográfico e critico sobre o pensamento de Polanyi, incluindo novas reflexões sobre o papel da ciência na identificação da verdade. Miguel Panão, um jovem investigador português em ciências de engenharia, publica um texto sobre o legado de Michael Polanyi, explorando aspectos da “arte de ensinar” e reflectindo sobre ética no desenvolvimento de políticas científicas. Tiago Brandão, um jovem historiador português, enquadra o pensamento de Polanyi em termos históricos e reflecte sobre as possíveis implicações do seu pensamento, enquanto filósofo e sociólogo da ciência, para o desenvolvimento de políticas contemporâneas de ciência e tecnologia. Por fim, Carolina Bagattolli, uma jovem economista brasileira, problematiza a aplicação do pensamento de Polanyi sobre a autonomia e liberdade da “Républica da Ciên16


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cia” em países periféricos e de desenvolvimento tardio. O livro inclui assim contributos importantes sobre a actualidade do pensamento de Michael Polanyi, tendo por objectivo ultimo contribuir para o desenvolvimento conceptual de formas de pensar a ciência e a tecnologia e a sua relação com a sociedade, incluindo a formulação de politicas públicas de apoio ao conhecimento. É certo que ainda hoje devemos a Michael Polanyi a inspiração intelectual sobre a defesa da liberdade de fazer ciência, de um modo que só aqueles que detêm o conhecimento devem decidir sobre o que investigar. Pelo contrário, o planeamento abusivo da ciência e a sua visão utilitarista contraria a ideia central da coexistência entre ciência e democracia. Este livro reflecte ainda o legado de Michael Polanyi sobre a ideia de que Ciência são valores: os valores da ciência são valores de procura da verdade, de insatisfação crítica e de cultura do primado do saber, de organização de instituições e de programas dedicados ao exercício responsável da ciência, como valores de civilização, de liberdade e de igualdade, de cultura humanista e de progresso económico e social.

PORQUÊ INSISTIR NO PENSAMENTO DE POLANYI SOBRE CIÊNCIA E TECNOLOGIA E NA SUA RELAÇÃO COM A SOCIEDADE? A importância da reflexão sobre ciência, sociedade e tecnologia está crescentemente associada ao facto do desenvolvimento social e económico nas ultimas décadas ser sistematicamente explicado nos países desenvolvidos em função do nível de acumulação de conhecimento, medido em termos do investimento em actividades de investigação e desenvolvimento4. 4

Ver, por exemplo, UNESCO (2010), Science Report 2010, Unesco, Paris 17


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Esta observação tem levado a considerar a evolução da ciência e tecnologia como endógena ao desenvolvimento económico e social. Neste contexto, na literatura recente tem emergido a necessidade de considerar instituições e políticas para explicar a diferença entre países no seu nível de geração de conhecimento e rendimento per capita. É neste contexto que é hoje evidente o carácter inovador do pensamento de Michael Polanyi, sobretudo quando a partir dos anos de 1930 começou a identificar a natureza da dimensão tácita do conhecimento e a perceber a ciência como social e envolvida num sistema complexo de relações sociais5. A clareza do seu pensamento sobre a autonomia a dar á “República da Ciência” e á necessidade de perceber a separação entre ciência e tecnologia está ainda hoje associada ás melhores praticas internacionais na formulação de políticas de ciência. É importante relembrar que, a nível internacional, a coordenação sistemática de ciência, e tecnologia (“C&T”) e o consequente desenvolvimento de políticas públicas de apoio á produção e difusão de conhecimento é um resultado da segunda guerra mundial (e, em particular, do “Projecto Manhattan”, que havia levado à concretização da bomba atómica), que veio estimular a ciência feita nos laboratórios, universidades e academias, dando-lhe uma exposição social, sobretudo para desenvolver tecnologia militar de aplicação imediata, mas também sabendo-se que dos investimentos em ciência resultariam outras aplicações socialmente relevantes, mesmo que não fosse possível prever a priori quais seriam. A criação nos Estados Unidos da América, em 1950, da National Science Foundation, na sequência do influente relatório de Vanevar Bush6, lançado imediatamente após o fim da guerra, Ver, por exemplo, M. Polanyi (1939), The rigths and duties of Science, Contempt of Freedom; M. Polanyi (1962), The Republic of Science, Minerva; M. Polanyi (1966), The Tacit Dimension, Doubleday. 6 Vanevar Bush, conselheiro científico do Presidente Roosevelt, estava especialmente preocupado com a manutenção do esforço em I&D após a II 5

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vem marcar sobretudo o papel dos Estados no financiamento da investigação fundamental, executada tipicamente nas universidades. De facto, Bush notou que “Historical development has given the sanction of tradition to the prominent role played by universities in the progress of pure science.[...] Several factors combine to emphasize the appropriateness of universities for research”. Com a “guerra-fria”, este processo foi substancialmente engrandecido com a chamada “corrida ao espaço”, com os orçamentos nacionais para a ciência e tecnologia a atingirem valores bastante significativos, especialmente nos Estados Unidos, com programas de I&D governamentais em tecnologias variadas7. Conforme referiu Jean-Jacques Salomon (1989)8, após a Segunda Guerra Mundial, primeiro por razões estratégicas, e depois, em nome do crescimento económico e da competitividade, a ciência tornou-se, irreversivelmente, um assunto de Estado. Se as décadas de 50 e 60 se caracterizaram economicamente por um crescimento generalizado, que, aliás, permitiu o financiamento da expansão dos sistemas educativos e de C&T, assistiu-se na década de 70 a um forte abrandamento do nível de crescimento económico e, em especial, a uma diminuição do crescimento da produtividade9, designada muitas vezes por productivity slowdown. Este abrandamento teve, em conjunção com outros factores, profundas implicações no desenvolvimento dos sistemas de ciência e tecnologia e de educação, nomeadamente através de estudos que pareciam demonstrar não Guerra Mundial, como documentado em Bush, V. (1945), Science – The Endless Future, National Science Foundation. 7 David, P., Bronwyn, H.L., Toole, A.A., (1999), Is public R&D a complement or substitute for private R&D? A review of econometric evidence, NBER Working Paper No. w7373, http://papers.nber.org/papers/W7373. 8 Salomon, J., J. (1989), Critérios para uma Política de Ciência e Tecnologia – De um paradigma a outro, Colóquio Ciências, 4, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 90-98. 9 Nelson, R. (1990), “US Technological leadership: where did it come from and where did it go?”, Research Policy, 19, pp. 117-132. 19


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haver correlação directa entre os recursos afectos a actividades de I&D e os resultados da economia. No entanto, na década de 70 ocorreu uma rápida transformação científica e tecnológica, com a emergência de novas e importantes tecnologias, pelo que o desempenho da economia poderia até ter melhorado, acompanhando a regeneração das tecnologias obsoletas. A perplexidade que resultou desta aparente contradição foi denominada de paradoxo do abrandamento da produtividade10. Uma importante consequência do esforço de explicação deste paradoxo foi uma alteração profunda na percepção das relações entre a ciência e tecnologia e a economia. De facto, até ao início dos anos 70, o entendimento dominante encarava a tecnologia como sendo gerada num sistema externo à economia, que originava invenções, invenções estas que entravam posteriormente no sistema económico, correspondendo a uma inovação. Os mecanismos explicativos desses processos eram lineares, do tipo pipe-line, conduzindo aos modelos technology-push (em que uma nova tecnologia proporciona explorações comerciais) e market-pull (em que a percepção de necessidades de mercado conduz o esforço de I&D). Tratava-se dos modelos lineares da inovação. Assim, durante a década de 70 emergiu a consciência de que era necessário repensar o papel da C&T, o que teria que ser feito deixando de encarar a tecnologia como uma caixa fechada (black box, na terminologia de Nathan Rosenberg11) que constituía o motor do progresso. As implicações políticas destas percepções levaram a que, nos anos 70, se privilegiasse a gestão dos sistemas de C&T, uma vez que se tornava necessário escolher os investimentos científicos e tecnológicos, consubstanciados em projectos, que se adequassem à resolução concreta de problemas específicos. Consequentemente, 10 OECD (1991), Technology in a changing world, Paris, OECD, p. 73. 11 Rosenberg, N. (1982), Inside the Black Box: Technology and Economics, Cambridge, Cambridge University Press 20


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assiste-se à integração das políticas de C&T com as restantes políticas económicas, visando claramente a inovação e a promoção do desenvolvimento económico. Nos anos 80, a reflexão sobre a relação entre a tecnologia e o desenvolvimento económico e social apresenta novos desenvolvimentos. No âmbito das várias abordagens desenvolvidas merecem destaque, de acordo com o programa da OCDE destinado a esclarecer as relações entre a economia e a tecnologia12, as novas teorias do crescimento económico e as novas descrições da dinâmica da mudança tecnológica e da inovação. Ou seja, cerca de 40 anos após os trabalhos originais de Michael Polanyi sobre economia e trabalho13 e mais de 20 após os textos originais de Solow14, começa a considerar-se que a tecnologia é endógena à economia, sendo que a tecnologia é gerada e disseminada através das relações e interacções entre empresas, universidades e laboratórios, originando nesse complexo processo a inovação. Os modelos lineares dos anos 60 deram assim lugar ao entendimento da inovação como um processo complexo em que interagem instituições do sistema educativo, do sistema de C&T e empresas, e em que as actividades de I&D determinam e são determinadas pelo mercado, dando lugar á concepção interactiva da inovação15. 12 Ver TEP- The Technology/Economy Programme; OECD(1992), Technology and the Economy – The Key Relationships, OECD, Paris 13 ver, por exemplo, Polanyi, M. (1938), “An Outline Of The Working Of Money. Shown By A Diagrammatic Film.” Transactions of the Manchester Statistical Society, 1-19; Polanyi’s 1940 film, “Unemployment and Money”; Polanyi, M. (1945), Full Employment and Free Trade, Cambridge University Press; ver ainda o texto de E. Beira (2015), “Visual Presentation Of Social Matters” as a Foundational Text of Michael Polanyi’s Thought, Tradition and Discovery – The Polanyi Society Periodical, Volume XLI (2), pp. 6-12. 14 Solow, R. M.: A Contribution to the Theory of Economic Growth. Quarterly Journal of Economics, 70(1), 65–94 (1956); Solow, R. M.: Technical Change and the Aggregate Production Function. Review of Economics and Statistics, 39(August), 312–320 (1957). 15 Kline, S. J., Rosenberg, N. (1986), An Overview of Innovation, in R. Landau e N. Rosenberg (eds.), The Positive sum strategy: Harnessing Technology for Economic Growth, The National Academy Press, Washington 21


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A década de 90 caracteriza-se pelo aprofundar desta percepção, tendo exigido a consideração de outros aspectos marcantes desta década, nomeadamente a globalização e o imperativo da competitividade. Neste contexto, Gibbons et al16 mostrou que o debate sobre a evolução da ciência e tecnologia no final do século XX passa definitivamente pela compreensão dos processos de produção e difusão de conhecimento, e em particular pela necessidade de complementar a organização disciplinar tradicional, com actividades que promovam um novo conhecimento de natureza transdisciplinar. Mas é também desde o final da década de 80, e sobretudo na década de 90, que nas sociedades mais desenvolvidas se promovem acções sistemáticas de promoção da cultura científica, associadas à implementação de praticas em escolas, nomeadamente incluindo formas de colaboração com a Universidade, de que o Programa Ciência Viva em Portugal foi uma experiência de relevância internacional17. É neste contexto que a evolução e modernização do sistemas nacionais ou regionais de ciência e tecnologia não pode ser concebida num vácuo conceptual, nem sequer ignorando o arranjo complexo de valores que acarreta, para além dos factos que caracterizam a produção e difusão de ciência. Entre outros aspectos, tem emergido o debate entre filósofos contemporâneos sobre a repercussão entre a determinação de factos e o conhecimento de valores18.. Mas para a discussão que tem emergido a nível mundial sobre a controvérsia entre as ideias fundadoras de Michael Polanyi sobre a autonomia da “República da Ciência” e o eventual planeamento político de prioridades para o desenvolvimento 16 Gibbons, M, et al (1994), The New Production of Knowledge, SAGE publications 17 Miller, S., Caro, P., Koulaidis, V., Semir, V., Staveloz, W., Vargas, R. (2002), Report from the Expert Group Benchmarking the promotion of RTD culture and Public Understanding of Science, 2002. 18 H. Putnam (2002), The Collapse of the Fact/Value Dichotomy and Other Essays, Harvard University Press. 22


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científico, é particularmente oportuno referir o trabalho seminal de Robert Merton19, um sociólogo eminente (falecido em 2003) que já nos anos 50 nos demonstrava a “arte do acaso” (ou “serendipity” para Merton). Desde as histórias de Arquimedes, aos acidentes que estiveram na base descoberta da penicilina por Fleming, passando pelo desenvolvimento de novos materiais como o teflon, o “acidental” em ciência, mas sobretudo em inovação, é hoje um facto conhecido e bem documentado! Que fique bem claro que não nos referimos a qualquer ausência de valores científicos, mas pelo contrário, à prioridade bem clara de aumentar a dimensão dos sistemas de ciência e tecnologia, assim como o financiamento médio por investigador. É neste contexto que convém ainda relembrar o trabalho de Paulo Romer20, um conhecido economista norte-americano que, entre outros aspectos, mostrou que o papel das políticas públicas para a formação de cientistas e graduados é particularmente crítico para o crescimento económico a longo prazo, tendo estas políticas sido responsáveis pelo rápido crescimento do número de engenheiros e cientistas nos Estados Unidos da América desde o pós-guerra. Mas a intensidade da aceleração da criação e difusão do conhecimento exige uma caracterização mais pormenorizada, uma vez que o aspecto fundamental está associado a uma perspectiva dinâmica, como enquadrado conceptualmente por Lundvall e Johnson em 199421, que desafiaram os lugares-comuns através da ideia simples, mas poderosa de “aprendizagem”, revisitando algumas das ideias fundadoras de Michael Polanyi cerca de cinco décadas mais tarde. Lundvall e Johnson 19 R. K. Merton and E. Barber (2004), The Travels and Adventures of Serendipity: A Study in Sociological Semantics and the Sociology of Science, Princeton University Press. 20 Romer, P.M. (2000), Should the Government subsidize supply or demand in the market for scientists and engineers?, NBER, Working Paper 7723; http://www.nber.org/ papers/w7723. 21 Lundvall, B.-Å, and Johnson, B., (1994), “The learning economy”, Journal of Industry Studies, Vol. 1, 2, 23-42. 23


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referem-se a uma “economia da aprendizagem”, e não a uma “economia do conhecimento”. A diferença fundamental reside na perspectiva dinâmica. Segundo aqueles autores, há conhecimentos que se tornam realmente importantes, mas existem também conhecimentos que se tornam menos importantes. Existe não só criação de conhecimento mas também a destruição de conhecimento, o que nos força a olhar para o processo de aprendizagem com atenção, em vez de se registar apenas uma mera acumulação de conhecimento. Desta forma, Lundvall e Johnson acrescentaram á análise da formulação de politicas públicas para o conhecimento uma dimensão que torna a discussão mais complexa e mais incerta, mas também mais interessante e intelectualmente fértil, como aplicado ao contexto social europeu por Conceição, Heitor e Lundvall (2003)22. No centro das sociedades da aprendizagem estão instituições e indivíduos que aprendem e adquirem experiências ao longo do tempo. Isto implica que qualquer visão sobre um sistema científico deve ser entendida num contexto social e histórico, em que cada momento político e histórico influencia e contribui para explicar as decisões tomadas e os acontecimentos que ocorreram posteriormente. Em suma, a sustentabilidade da economia do conhecimento e da sociedade da aprendizagem em que vivemos, nomeadamente a nível global, é uma tarefa que vai para além dos desafios tradicionais23. E por isso também o interesse de revisitar o pensamento de Michael Polanyi e melhor perceber as suas ideias fundadoras. É hoje evidente que as mudanças na composição da mão-de-obra, juntamente com a crescente internacionalização da economia, os avanços constantes da 22 P. Conceição, M. V. Heitor and B.-A. Lundvall (eds.), (2003), Innovation, Competence Building, and Social Cohesion in Europe- Towards a Learning Society, London: Edward Elgar 23 Conceição, P., Gibson, D. V., Heitor, M.V. and Sirilli, G. (2001). “Knowledge for Inclusive Development: The Challenge of Globally Integrated and Learning Implications for Science and Technology Policy”, Technological Forecasting and Social Change, 66, pp. 1-29. 24


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tecnologia e a disseminação de novos modelos inovadores de organização do trabalho, requerem um investimento substancial em capital humano para que se atinjam os requisitos em termos de capacidades e qualificações dos futuros empregos24. Neste contexto, é importante realçar a crescente competição internacional por recursos humanos qualificados, assim como que num contexto de crescente e contínuas mutações sociais, económicas e tecnológicas, a reivindicação para a promoção da inovação deve ser compreendida sobretudo em termos do processo de aprendizagem, e não apenas num inventário de matérias ou de prioridades. Mais importante que especificar sectores de intervenção, interessa compreender como promover individualmente e socialmente a capacidade de aprender, sobretudo no que respeita à necessidade de conciliar o desenvolvimento de competências “nucleares” em matérias tradicionais, com competências em tecnologias de informação, competências sociais e com o estimular da capacidade de empreender. É ainda neste contexto que deve ser relembrado que à medida que se reforça a percepção nas nossas sociedades de que está a ocorrer uma transição para uma economia baseada no conhecimento, a análise tem mostrado que a complexidade do processo de inovação favorece as sociedades que se organizam em torno de uma cultura de rigor associada a rotinas de avaliação e abertura de critica, requerendo estruturas que se organizam formal e institucionalmente (e.g., escolas, empresas, universidades, laboratórios, organizações governamentais e não governamentais, nomeadamente para a promoção da cultura cientifica), em desfavor de cientistas ou inventores isolados. É por esta razão que é essencial que os Estados modernos viabilizem a autonomia das escolas e das instituições científicas (e, portanto, das “Repúblicas da Ciência” de Michael Polanyi), assim como o seu desenvolvimento sustentável independente 24 Conceição, P. and Heitor, M.V. (1999). “On the role of the university in the knowledge-based economy”, Science and Public Policy, 26 (1), pp. 37-51. 25


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de alterações externas ao próprio desenvolvimento da ciência. É também neste âmbito que o pensamento de Michael Polanyi é ainda particularmente actual e “moderno” para a formulação de políticas públicas de apoio ao conhecimento. Não poderemos esperar que a iniciativa privada, por si só, tratará de aumentar a actividade de I&D e resolver o problema da riqueza das nossas sociedades. A necessidade que emerge de diversificar formas de financiar o desenvolvimento dos sistemas de produção e difusão de conhecimento, incluindo naturalmente a sua ligação às empresas e ao tecido produtivo, exige políticas públicas que promovam a base social de apoio ao conhecimento e á actividade científica, assim como o emprego científico. As políticas públicas são ainda essenciais para mobilizar recursos públicos em ciência e tecnologia, permitindo que estejam disponíveis pessoas qualificadas e conhecimento para aplicar e difundir o conhecimento nas empresas.

CIÊNCIA, CULTURA CIENTIFICA E APRENDIZAGEM: OU “INDWELLING” DE MICHAEL POLANYI Nunca é tarde recordar o pensamento de Michael Polanyi sobre os princípios da ciência moderna e toda a sua conceptualização da construção do conhecimento científico como um sistema social complexo, aliado ao esforço de aprender e ensinar. A este propósito, Umberto Eco escreveu que “o saber não é culpado pelo orgulho demoníaco com o qual caminhamos para a possível destruição” e que “é a ciência a única alerta possível para os riscos” que emergem. Eco referia-se então, a titulo de exemplo, aos progressos da astrofísica moderna e, sobretudo, ás noticias sobre os erros então divulgados em 2004 pelo célebre cientista Stephen Hawkings sobre a sua própria teoria dos buracos negros dos anos 70, estando-se a preparar 26


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para se apresentar diante uma comissão cientifica para fazer as devidas correcções. Naturalmente que o processo não traz qualquer novidade para aqueles que praticam ciência, mas (como advoga Umberto Eco) “deveria ser levado ao conhecimento dos jovens de todas as escolas (não fundamentalistas e não confessionais) para que possam reflectir sobre os princípios da ciência moderna. Recorrendo ás interrogações de Michael Polanyi sobre ciência e tecnologia25, parece-nos de facto ser crítico facilitar a compreensão dos valores essenciais a uma sociedade mais justa e equilibrada, mas também os valores para os quais temos de compreender a forma de educar os nossos filhos e afirmar a competitividade das nossas empresas e instituições. Será que tem interesse desafiar os mais jovens a desenvolver e usar tecnologia? Qual o seu verdadeiro significado face aos desafios dos mercados que emergem, ou dos hábitos de consumo acelerados que invadem as nossas rotinas diárias, ou mesmo das imagens aterradoras com que nos defrontamos perante écrans de televisão que constantemente nos mostram as rotinas do “mal”? Mas..., será preferível relembrar apenas as vantagens do desenvolvimento tecnológico, por exemplo na saúde, mas também nos transportes, ou na construção do nosso habitat? É exactamente da necessidade de questionar a tecnologia e de provocar a capacidade de aprender a compreender as suas limitações que foi promovido nas sociedades mais desenvolvidas, sobretudo desde a segunda guerra mundial no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, o debate com pais e educadores sobre o desenvolvimento do ensino das ciências e da cultura científica e tecnológica26. Avanços recentes na análise de processos de aprendiza25 Ver, por exemplo, M Polanyi (1962), “The Republic of Science”, Minerva. 26 Ver, a este respeito, o trabalho e as ideias inéditas de José Mariano Gago, em Gago, J.M. (1990), Manifesto para a Ciência em Portugal, Gradiva; Gago, J.M. and Solomon, J. (1994), “Science in school and the future of scientific culture in Europe”, Lisbon, 14 to 15 December 1994. 27


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gem27 reclamam o desenvolvimento de novas metodologias para aprender e investigar, que requerem novos actores e formas de governança das instituições científicas (e de ensino) no contexto da crescente diversificação e desigualdade que emerge nas nossas sociedades28. Obrigam ainda a uma acção mais responsável e empreendedora do Estado29, através da formulação de novas políticas públicas. Neste sentido, emergem três questões fundamentais: i) como facilitar processos de aprendizagem num contexto de crescente diversidade sociocultural e incerteza?; ii) que politicas públicas podem estimular novas oportunidades de aprendizagem nesses contextos?; e iii) qual o papel das instituições cientificas e académicas na reconfiguração dessas políticas? A base conceptual para ainda hoje se tentar responder a estas perguntas está associada ao conceito de “interiorização” (i.e., “indwelling”), introduzida inicialmente por Polanyi em 196630 e recentemente explorada por Thomas e Brown31 e Wagner32, em termos de compreender o processo de aprendizagem através de processos de “conhecer, brincar e fazer” (i.e., “knowing, playing and making”). Neste contexto, os conceitos de Polanyi já tinham sido explorados por Piaget33 no âmbi27 OEDC (2010), The Nature of Learning: Using Research to Inspire Practice. http:// www.keepeek.com/Digital-Asset-Management/oecd/education/the-nature-oflearning_9789264086487-en#page1 28 Stilgoe, J.; Owen, R.; MaCnaghten, P. (2013), ‘Developing a Framework for Responsible Innovation’, Research Policy, 42, 1568-1580. 29 Ver, por exemplo, Callon M.; Lascoumes; P., Barthe Y., Acting in an Uncertain World, MIT Press, Cambridge, 2009; Mazzucato, M., The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths, Anthem Press, London, 2013. 30 M. Polanyi (1966), The Tacit Dimension, Doubleday. Ver também, M. Polanyi (1959), The Study of Man, Routledge & K. Paul. 31 Brown, J. S.; Thomas, D., A New Culture of Learning: Cultivating the Imagination for a World of Constant Change, CreateSpace, Scotts Valley, 2011. 32 Wagner, T. (2012). Creating Innovators – The making of young people who will change the world. New York: Scribner. 33 Piaget, J. (1973), To understand is to invent: the future of education, Grossman Publ., New York. 28


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to da pedagogia da construção do conhecimento, utilizando métodos activos que exigem que cada nova verdade a ser aprendida seja redescoberta ou, pelo menos, reconstruída pelo jovem aprendiz. O tema motivou ainda Seymour Papert34, que adicionou a ideia de que a construção do conhecimento acontece especialmente num contexto em que o aprendiz está conscientemente “engajado” na construção de uma “entidade pública”. Este ponto de vista “construcionista” facilita um “novo ambiente de descoberta, aprendizagem e partilha”35 e a literatura recente sugere que também facilita a expor os estudantes a experiências multidisciplinares, forçando as instituições de ensino a promover activamente comunidades de aprendizagem. Seguindo as práticas, as competências, as atitudes e os valores descritos por Horgen et al36, qualquer configuração pedagógica deve considerar que a aprendizagem de uma nova prática exige descoberta, invenção e produção, não uma única vez, mas muitas vezes, em diferentes contextos e diferentes combinações. Mas se é verdade que o pensamento de Michael Polanyi tem sido sistematicamente inspirador no âmbito da evolução da pedagogia e das ciências da aprendizagem, é também verdade que o conceito de “interiorização” tem tido uma aplicação crescente no domínio das políticas públicas de apoio á produção e difusão de conhecimento. É neste contexto que a Declaração de Roma, assinada em Novembro de 2014 pelos 34 Papert, S. (1991), “Situating Constructionism”, in Constructionism, Eds. I. Harel and S. Papert , Ablex Publ. Corp. Norwood, NJ. 35 ver, por exemplo , a análise de Ritchhart, R., Church, M. And Morrison, K. (2011), Making thinking visible – how to promote engagement, understanding, and independence for all learners, Jossey-Bass, A Wiley Imprint, San Francisco, CA, USA; ou de Martinez, S.L. and Stager, G. (2013), Invent to learn – Making, tinkering, and engineering the classroom, Construction Modern Knowledge Press, Torrance, CA, USA. 36 Horgen, T.H., Michel, L.J., Porter, W.L. and Schon, D.A. (1999). Excellence by Design – transforming workplace and work practice, John Wiley & Sons, Inc., New York. 29


MICHAEL POLANYI

Ministros responsáveis pela ciência na União Europeia, convida as instituições de ensino superior e de investigação de toda a Europa a incorporar a “investigação e a inovação responsáveis” como atitudes científicas. Embora a ideia de “ciência responsável” pareça relativamente consensual, exige repensar Michael Polanyi, designadamente em termos da tendência crescente dos ultimas décadas de valorizar a apropriação económica da actividade científica37. Exige ainda revisitar Michael Polanyi no que respeita á liberdade de aprender e investigar, assim como á instrumentalização política da ciência e, sobretudo, exige aprofundar o conhecimento actual sobre os “caminhos da excelência” científica e das actividades de ensino superior38. Sendo hoje bem conhecido que as ideias inicias de Polanyi sobre “o estudo do homem” requerem desenvolver o pensamento crítico39, a reflexão pessoal, as relações interpessoais e o sentido de participação cívica responsável dos aprendizes40, a experiência tem mostrado que os processos de aprendizagem em cooperação social ou comunitária são mútuos, ou seja, facilitam também processos de aprendizagem colectiva pelas próprias comunidades envolvidas. Essa interacção heurística pode facilitar a autonomia das comunidades na identificação e avaliação de novas oportunidades de desenvolvimento científico.

37 Owen, R.; MaCnaghten, P.; Stilgoe, J. (2012), ‘Responsible Research and Innovation: From science in society to science for society, with society, Science and Public Policy’, 39 751-760. 38 Ver, por exemplo, Stilgoe, J., ‘Against the Excelence’, The Guardian, 19 December 2014 http://www.theguardian.com/science/political-science/2014/dec/19/ against-excellence 39 Ver, por exemplo, Polanyi, M. (1958), “Personal Knowledge. Towards a postcritical pilosophy”, Routledge & K. Paul. 40 Felten, Peter; Clayton (2011), Patti H., ‘Service-Learning’, New Directions For Teaching and Learning, 128, Winter, 75-84. 30


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CONSTRUIR O FUTURO COM MICHAEL POLANYI: APRENDER MAIS, CONHECER MAIS O futuro só se constrói com mais conhecimento e, portanto, exige aprender mais e saber mais, envolvendo as pessoas e as instituições, e percorrendo os caminhos que a tolerância impõe, com um esforço colectivo crescente no combate á ignorância. Requer facilitar a construção social do conhecimento. Exige, portanto, alargar a base social e a cultura de todos nós. Mas aprender mais e saber mais requer, também, a especialização que o conhecimento nos exige. Implica, portanto, mais educação e formação, melhores instituições e mais conhecimento. É neste contexto que este livro e a reflexão sobre o pensamento de Michael Polanyi é oportuna, pois sugere a necessidade de reforçar a base conceptual de apoio á formulação de políticas públicas de apoio á produção, transferência e difusão conhecimento. Neste âmbito, a Ciência e a sua apropriação social e económica precisam de tempo. Aprofundar o debate sobre o papel das políticas públicas na competitividade da economia, dando prioridade ao conhecimento e aos processos de mudança tecnológica e, portanto, á capacidade científica e tecnológica e á “inovação”, no decurso de períodos de crescente incerteza a nível internacional é sem dúvida um enorme desafio, e requer a mobilização de todos. Porque será que não é trivial perceber que o investimento e a investigação de base académica gera emprego e é indispensável para o crescimento a longo prazo das economias e sociedades modernas? A análise desta questão deve-nos levar sempre a repensar Michael Polanyi e tem sido recorrente em todo o mundo. Por exemplo, Thomas Friedman, o conhecido colunista do New York Times, vencedor de muitos prémios Pulitzer, para quem “o mundo é plano”, argumentou sobre o perigo dos “lugares 31


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comuns”. Dizia ele que “as nações que não investem no futuro tendem a não ser bem sucedidas”! Desenvolvendo o argumento de Friedman, é o investimento nas nossas instituições e oportunidades colectivas, sobretudo através da investigação científica nas nossas universidades, a melhor forma de contrariar a desigualdade crescente num mundo aonde alguns empreendedores podem ficar milionários de um dia para o outro, enquanto as universidades e os centros de investigação que os formam vêm os seus recursos a diminuir continuamente. Sabemos hoje que para o aumento da despesa em investigação científica se traduzir em inovação tecnológica e crescimento económico, não é indiferente o tipo de financiamento que sustenta essas despesas adicionais, nem quem executa a investigação científica. É a investigação feita nas empresas que mais directamente se relaciona com o aparecimento de novos produtos e processos com possibilidade de serem exportados para mercados globais que mais contribui para o crescimento da produtividade e reforço da competitividade. Mas a questão essencial é que também já sabemos que a melhor estratégia para conseguir que se aumente a proporção da despesa executada e financiada pelas empresas, consiste num forte e sustentado aumento do financiamento público da investigação científica, designadamente nas universidades e instituições científicas. Esta afirmação é aparentemente contra-intuitiva. De facto, em geral, a despesa pública substitui a (i.e., faz o “crowding-out” da) despesa privada. Se o Estado construir uma estrada até à porta de uma nova fábrica, a empresa que investiu na fábrica não vai construir a estrada: há um “efeito de substituição”. Na despesa em investigação científica não há esse “efeito de substituição” como quando o Estado constrói uma estrada até à porta de uma nova fábrica e a empresa que investiu na fábrica não constrói então a estrada. A investigação em universidades e instituições científicas traduz-se não só na obtenção 32


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de novos resultados científicos e na preparação do corpo docente, mas também na formação de especialistas e de doutorados, e esta é uma das formas mais importantes através da qual contribui para reforçar a oferta desses especialistas, investigadores e técnicos para as empresas e o mercado de trabalho. A investigação de base académica dá também crescentemente lugar a novas empresas de tecnologia, geradoras de emprego e de exportações. A investigação nas universidades em parceria com empresas gera transferência de tecnologia que faz as empresas avançarem, desenvolverem novos produtos, novos mercados e, uma vez mais, exportar. Concluindo, o aumento da despesa em investigação científica efectuada nas universidades e nas empresas não é uma inevitabilidade, é uma escolha. Esta escolha terá que ser feita pelos povos e pelos seus governantes, sendo importante que se esteja consciente que se não continuarmos a crescer nessas áreas, se tornará difícil estimular a inovação tecnológica e a competitividade das nossas economias. E isso só se consegue se estimular simultaneamente a procura e a oferta da capacidade de executar actividades diversificadas de investigação científica. Mas este debate leva-nos ainda a revisitar Michael Polanyi, pois aprender e saber mais requer ainda, certamente, abertura no diálogo e nas relações individuais e colectivas. Exige, certamente, tempos e espaços de reflexão. E para isto, a velocidade nem sempre é boa companheira. Como nos lembrou José Mariano Gago para o caso Português no seu Manifesto para a Ciência de 1990, requer recordar a forma como Almada Negreiros nos ensinou que “a ciência, que não tem outro conhecimento que o das suas experiências, necessita de um espaço de tempo de que cada um não dispõe”. Esse tempo está hoje com certeza alargado à necessidade de compreender a mudança que todos queremos. Exige, portanto, estimular a nossa capacidade colectiva de 33


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aprendizagem e, portanto, compreender os “tempos” dos colectivos e combater diariamente o nosso isolamento cultural, social e económico no mundo, cooperando com os melhores e aceitando sempre as suas criticas, percorrendo caminhos. Exige ainda o envolvimento de todos, promovendo o debate informado entre cientistas e não cientistas, mulheres e homens de todas as religiões e origens. Requer a humildade necessária para agir com o esforço necessário para compreender a complexidade crescente dos processos de mudança, que com certeza são influenciados pelo “modo mutilador de organização do conhecimento, incapaz de reconhecer e aprender a complexidade do real”, como reconhecido sistematicamente por Edgar Morin. Exige, portanto, um esforço para a criação e difusão de novos conhecimentos e, sobretudo, para aceder a bases de conhecimento crescentemente distribuídas no espaço e no tempo. Exige, naturalmente, que a discussão dos direitos individuais de todos os cidadãos à aquisição e actualização de competências deve ser realizada num contexto alargado, compreendendo naturalmente esses direitos, mas também os deveres sociais e morais de aprender. Deste modo, o diálogo que hoje o pensamento de Michal Polanyi nos lança passa por encarar uma nova cidadania, para a qual a educação é naturalmente um direito, e aprender um dever moral.

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MICHAEL POLANYI: PERSPETIVA E ATUALIDADE Eduardo Beira



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1. UM PROJETO PESSOAL

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epois das traduções, para língua portuguesa, de The Tacit Dimension e The Study of Man, apresentamos agora a tradução de Personal Knowledge e de uma seleção de ensaios de Michael Polanyi, organizada e traduzida por nós, sobre ciência e tecnologia. Tomamos a liberdade de ousar propor mais estes dois contributos para a divulgação da obra de Michael Polanyi em língua portuguesa e para uma reflexão em torno das questões da ciência e da tecnologia. Retomamos aqui uma expressão que usamos nas notas iniciais para a nossa tradução de Personal Knowledge1, onde refereimos alguma do nosso envolvimento pessoal com a obra Michael Polanyi e do interesse que nos tem motivado,para a tradução das suas obras. Traduzir esta obra mais importante e volumosa de Polanyi terá sido um dos empreendimentos académicos mais arriscadas, complexos, estimulantes e recompensadores a que nos aventuramos. Foram oitenta e três dias a interiorizar e traduzir, traduzir e interiorizar a primeira versão, ainda não editada, as quatrocentas e dez páginas da versão original. Quando terminamos essa fase do processo, registamos numa nota pessoal: oitenta e três dias dominados pela intimação permanente para descobrir (encontrar a tradução certa), para resolver um problema - uma jornada intelectual irreversível. 1 Beira (2013a). Disponível em www.amazon.com 37


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O segundo livro que hoje apresentamos2 é uma seleção de textos de Polanyi centrados sobre os fundamentos, a organização e a validade da ciência e da tecnologia. Polanyi foi um defensor da liberdade da ciência para esta decidir sobre o que investigar e um adversário do planeamento da ciência e da sua visão utilitarista. Essa defesa foi mesmo um dos incentivos mais fortes para a reflexão inicial de Polanyi, nos anos 30 e 40 do século passado. Mas Polanyi tinha uma ideia muito clara das diferenças entre ciência e tecnologia, e das consequências dos objetivos necessariamente utilitários da tecnologia. Este é um tema onde, hoje em dia, continua a reinar uma grande confusão, não só na literatura popular como também em muita literatura académica. A ciência vale por si, independentemente da sua aplicação, como uma tentativa de explicação coerente da realidade, do mundo, e, em particular, da natureza. O cientista descobre algo preexistente, mas oculto, enquanto que na tecnologia inventa-se algo que até aí não existe - tal como na arte e nas matemáticas - mas com um significado utilitarista (criação de valor). Este conjunto de textos pretende ajudar a clarificar o pensamento polanyiano e ilustrar o seu desenvolvimento e evolução ao longo da vida de Polanyi. Na referida nota inicial à tradução de Personal Knowledge, consideramos Polanyi como um dos intelectuais mais fascinantes do século XX europeu, um renascentista moderno onde se misturam o indivíduo e o académico, o cientista e o filósofo, um humanista onde se cruzam os grandes dramas da humanidade no século XX, as grandes batalhas de ideias pela liberdade e pela verdade, e os dramas e tragédias de uma europa tragicamente dividida pelos totalitarismos. Neste texto procura-se contextualizar alguns destes pontos, assim como a relevância e o impacto atual da obra de Polanyi para o mundo da ciencia atual. 2 Beira (2013b). Disponível em www.amazon.com 38


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2. A HERANÇA DE UMA ÉPOCA: POLANYI E ZWEIG Num texto autobiográfico, escrito em 1966 e publicado alguns anos depois3, Polanyi recorda as suas origens: Nasci em Budapeste, numa família que durante algum tempo conheceu a prosperidade na indústria, proprietários de moagens e semelhantes. Na geração do meu pai entraram nas profissões (liberais) e, quando eu nasci, tinham mesmo começado uma casa com algumas ambições intelectuais. Quando eu tinha oito anos, o meu pai, que como engenheiro civil estava a construir linhas de caminho de ferro na Hungria, e a financiar a sua construção, perdeu a sua considerável fortuna. Uma fotografia da época reproduz o clima desses anos, ao dobrar do século XIX para o século XX (figura 1), vendo-se nela Polanyi, ainda jovem, com a sua mãe (Cecília) e as suas duas irmãs4. Sobre a mãe, Cecília, Polanyi escreveu que era “uma mulher de grande charme intelectual”, cuja casa se tinha tornado “o centro de amigos, incluindo jovens pintores, poetas, escritores e académicos da nova geração da Hungria”. E acrescentou: “Cresci nesse ambiente e nesse círculo, a sonhar 3 O manuscrito, dactilografado, encontra-se na RPC(38:8) e inclui a data (20 de julho de 1966) e o título “Contribution to “Midcentury authors”. Michael Polanyi (March 1, 1891-”. “Midcentury authors” referir-se-ia ao título do volume para onde inicialmente terá sido preparado, mas na realidade apenas foi publicado vários anos depois, num volume intitulado World Authors (Wakeman, 1975). O documento tem várias correções manuscritas, não por Polanyi (provavelmente alguém do secretariado), algumas das quais vale a pena assinalar. No início do segundo parágrafo do texto tal como publicado, Polanyi refere que “cresci neste círculo, a sonhar com grandes feitos”. Mas no manuscrito inicial aparece dactilografado “taking it for granted that I would do great things” [tendo como certo que eu faria grandes feitos], depois riscado e substituído, à mão, por “dreaming of great things” [sonhando com grandes feitos]. O fecho do texto, “for better for worse” [para o melhor e para o pior], foi manuscrito em adição ao texto inicialmente dactilografado. 4 A fotografia está em RPC(44a:3). 39


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com grandes coisas”5, sob “a influência da novela russa e da nova poesia francesa”6. Polanyi referiu-se várias vezes, nos seus escritos, ao clima cultural e social desses últimos anos do século XIX: “um grande período da humanidade”, “um grau de civilização nunca antes conhecido e inconcebível hoje em dia”, escrevia ele em 1966, ainda em plena guerra fria7. Mas esta ideia já aparecia muito antes nos escritos de Polanyi. Numa nota8 com o título “sobre os problemas contemporâneos”, de 1938, Polanyi já reconhecia o colapso da civilização que se tinha atingido nos finais do século XIX e que “é impossível ter esperança numa rápida restauração do respeito pela verdade e pela moral privada que as instituições do século passado mantinham nos seus territórios”, pois “o princípio da intransigência substituiu o principio da reconciliação”. 5 Ver Wakeman (1975). No seu livro Adventures of a bystander, Peter Drucker (1978) escreveu um capítulo colorido sobre a família Polanyi, baseada na sua relação próxima com Karl Polanyi, o economista que ele conhecera em 1927 em Viena e com quem conviveu de muito perto, mais tarde, quando Karl se exilou nos EUA, depois de uma passagem pelo Reino Unido (com a ajuda de Michael). Drucker reivindica mesmo ter estado na origem da oportunidade de emprego, na Universidade de Bennington, que permitiu que Karl escrevesse a sua obra The great transformation, com a ajuda de uma bolsa da Fundação Rockefeller. Infelizmente, muito do que ele escreveu sobre a família, para além de Karl, está cheio de erros e mesmo de fantasias inaceitáveis - a começar pelos membros da própria família Polanyi. Drucker ignora totalmente uma das irmãs de Polanyi (Sofia, que morreu num campo de concentração nazi, assim como o marido e filhos) e inventa um irmão mais velho (Otto) que nunca existiu, mas que Drucker associa a mecenas e inspirador de Mussolini. Judith Szapor (1997), biógrafa de Laura, a irmã mais velha de Michael Polanyi, interroga-se como é que essa história de Drucker nunca foi seriamente denunciada, e os factos devidamente esclarecidos pelo editor de Drucker - nada mais do que a respeitável Harper & Row. Mesmo tratando-se um livro de memórias pessoais, a indigência de Drucker é surpreendente. 6 Polanyi, M., “60 anos em universidades”, manuscrito não publicado, RPC(38:10). Notas para um discurso na Universidade de Toronto, Canadá, 26 de novembro de 1967. 7 Ver Wakeman (1975). 8 Polanyi, M., “Contemporary problems”, nota, manuscrito não publicado, RPC (25:16), 1938 40


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Figura 1 O ambiente da casa dos Polanyi, na viragem do século

Vale a pena confrontar esta opinião de Polanyi com o testemunho do escritor Stefan Zweig (1881-1942), outro intelectual e humanista da mesma geração e da mesma origem, o império austro húngaro. Na sua obra autobiográfica, Zweig (1943) fala de “uma idade de ouro de segurança”9 e de “dias de liberalis9 Zweig (1943), p. 13. Stefan Zweig definiu-se a si próprio como “um austríaco, um judeu, um autor, um humanista e um pacifista. Sempre estive nos pontos exactos onde os terramotos foram os mais violentos”, no prefácio da sua autobiografia, onde relata a sua tragédia pessoal e a tragédia da sua geração (p. 5). 41


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mo iluminado”10, onde, antes da primeira guerra, conhecera “o mais alto grau e forma de liberdade individual”11. Mas já antes, em junho de 1944, quando a guerra na Europa entrava na fase final de libertação pelos aliados (libertação de Roma e de Cherburgo), mas as primeiras bombas V1 germânicas começavam a cair sobre o Reino Unido, Polanyi fez uma alocução pela rádio (BBC), onde começou por dizer que “penso que muitos de nós ainda não compreenderam o que perdemos no continente da Europa”12. E recordou que nesse tempo se podia viajar “através da Europa sem um passaporte e podia ter-me estabelecido onde quisesse sem uma autorização de trabalho ou qualquer outro tipo de autorização. ... Sim, éramos muito livres e muito tolerantes”. Essa mesma ideia também aparece na abertura da revisão que Polanyi publicou, também em 1944, do livro de F. Hayeck, The road of serfdom13. Em 1951 Michael Polanyi publicou The Logic of Liberty14, um livro de transição, mas que teve um grande impacto, onde confluem as preocupações intelectuais de Polanyi consolidadas durante a década de quarenta, incluindo os anos da segunda guerra mundial, quer sobre a ciência e a sua organização (parte Zweig desistiu de lutar ainda antes da segunda guerra mundial terminar. Exilado no Brasil, “exausto por longos anos” de exílio, suicidou-se em 1942, juntamente com a sua mulher, quando a sorte da guerra parecia inclinar-se de forma decisiva para as forças do mal, as potências do Eixo. Assim acabou a tragédia de um homem de letras cuja vida pessoal esteve sempre intimamente ligada com a alta cultura de uma época e com as forças brutas resolvidas a aniquilar as obras da humanidade (ver Roshwald, 2002). Desconhecemos se Polanyi e Zweig se conheceram pessoalmente. Nos arquivos da RPC nada parece existir que os ligue. No entanto, achamos duvidoso que Polanyi não conhecesse algo sobre a obra de Zweig. 10 Zweig (1943), p. 33 11 Zweig (1943), p. 7 12 Polanyi, M., “Science and the decline of freedom”, Broadcast BBC, manuscrito não publicado, RPC(29:13), 11 junho 1944 13 Polanyi (1944). Tibor Frank (2001) também cita esta convergência de pontos de vista entre Polanyi e Zweig, acerca das fronteiras e passaportes na Europa de então. 14 Polanyi (1951) 42


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I), como sobre a liberdade social e económica (parte II). O capítulo 7 tem um título obscuro: “os perigos da inconsistência”15. Polanyi começa por anunciar aí que o capítulo é “sobre a liberdade intelectual” e adianta logo as conclusões: a doutrina da liberdade intelectual, tal como chega aos meados do século XX, é intrinsecamente inconsistente e a queda da liberdade no continente europeu é um resultado dessa inconsistência. Escreveu aí que “a liberdade de pensamento destrui-se a si própria quando uma concepção auto contraditória de liberdade foi levada até às suas últimas consequências”. Uma frase muito semelhante inicia a segunda secção do primeiro capítulo de Meaning16, um capítulo que pretende situar os objetivos da obra no contexto do pensamento e da sociedade ocidental, logo após a segunda guerra mundial. Na realidade a quase totalidade desse capítulo inicial da obra de Polanyi com Prosch recupera, mais de vinte anos depois, o texto anterior do capítulo 7 de The Logic of Liberty. O texto seguinte aparece em ambas as obras17: Recordo-me bem deste sentimento de triunfo. Olhávamos para os tempos anteriores como um período de escuridão, e com Lucrécio gritávamos com horror: Tantum religio potuit suadere malorum - mas que demónios foram inspirados pela religião! Rejubilávamos com o conhecimento superior do nosso tempo e com as suas liberdades garantidas. As promessas de paz e de liberdade, dadas ao mundo pelo iluminismo francês, tinham na realidade sido maravilhosamente cumpridas no fim do século dezanove. Podia-se viajar por toda a Europa e América sem um passaporte e instalar-se onde se quisesse. Com a excepção da Rússia, podia-se em toda a 15 Polanyi (1951), pp. 93-110 16 Polanyi e Prosch (1975) 17 Ver Polanyi (1951), p.96 e Polanyi e Prosch (1975), pp 8-9 43


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Europa imprimir fosse o que fosse sem censura prévia e podia-se, com impunidade, fazer oposição cerrada a qualquer governo ou credo. Na Alemanha - muito criticada na altura por ser autoritária - publicavam-se livremente caricaturas satíricas do imperador. Mesmo na Rússia, cujo regime era o mais opressivo, o Kapital de Marx apareceu traduzido, logo a seguir à sua primeira edição, e teve revisões favoráveis na imprensa. Em toda a Europa, não mais do que algumas centenas de pessoas foram forçadas ao exílio. Sob todo o planeta, todos os homens de origem europeia viviam numa livre comunicação pessoal e intelectual. Não será surpresa que, na mudança do século, a paz e a tolerância universal, estabelecidas pela vitória do iluminismo moderno, fossem esperadas com confiança por uma larga maioria das pessoas educadas do continente. Entrou-se pois no século vinte como numa idade de promessas infinitas. Zweig confirma-o: “Podíamos viver uma vida cosmopolita e o mundo estava aberto para todos nós. Podíamos viajar sem passaporte e sem vistos para onde quiséssemos. Ninguém nos interrogava sobre as nossas crenças, a nossa origem, raça ou religião”18. Noutra passagem escreveu que “os nossos pais estavam saturados com confiança no poder infalível e vinculativo da tolerância e da conciliação”19. Não foi propriamente a nostalgia de uma época porventura bela, mas passada, que despertou Polanyi para essa reflexão, que marcaria a sua vida. Foi antes o papel infeliz que ele reconhecia à sua querida ciência nessa transformação dramática, a pretensão de apenas reconhecer e valorizar o conhecimento objetivo, autonomo e positivista caraterístico da abordagem 18 Zweig (1943), p. 77. 19 Zweig (1943), p. 15 44


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científica. Na referida alocução radiofónica de 1944, Polanyi dizia que: A minha geração - a geração de intelectuais modernos a que pertenço - entrou na sua herança, no início deste século, com imensas esperanças no futuro. A ciência era a nossa estrela polar. Guiados pela ciência estávamos determinados a fazer uma limpeza geral de toda a estupidez antiga, de todas as obstruções estúpidas à felicidade humana e a rearranjar a vida através de formas racionais e científicas. Por sua vez, Stefan Zweig escreveu20: No seu idealismo liberal, o século dezanove estava honestamente convencido de que estava no caminho direto e infalível para o melhor dos mundos. As eras anteriores, com as suas guerras, fomes e revoltas, eram desprezadas como tempos em que a humanidade ainda era imatura e não esclarecida. Era então apenas uma questão de décadas até que os últimos vestígios do mal e da violência fossem finalmente conquistados, e esta fé no “progresso” ininterrupto e irresistível tinha a verdadeira força de uma religião, para aquela geração. Começava-se a acreditar mais no progresso do que na Bíblia, e a sua mensagem parecia ser final, dadas as novas maravilhas diárias da ciência e da tecnologia. Vinte anos depois, na Universidade de Toronto21, Polanyi recordaria que essas “nossas ideias do progresso inevitável” baseado na ciência, de um “progresso inevitável da verdade, da justiça e da liberdade”, tinham sido despedaçadas pelos 20 Zweig (1943), p. 14 21 Ver nota 6 45


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massacres da primeira guerra mundial. Zweig, por sua vez, reconheceu que então “nada se conhecia das realidades, serviu uma ilusão, o sonho de um mundo melhor, mais justo e pacífico”22 e que “o nosso idealismo comum, o nosso optimismo baseado no progresso, levaram-nos a menosprezar e desprezar o perigo comum”23. Polanyi dedicaria muito da sua vida a construir um novo quadro conceptual, uma nova mundividência que explicasse e ultrapassasse esses perigos e que oferecesse ao homem moderno um porto seguro de liberdade e de valores transcendentes, uma filosofia para além do racionalismo - uma filosofia pós-moderna e construtivista. Polanyi chamou-lhe uma filosofia pessoal e pós-crítica24.

3. À PROCURA DE UMA VOCAÇÃO (1933-1946) É sobre essas cinzas de uma cultura europeia que Polanyi recomeça a repensar a ciência, o conhecimento, a liberdade e a sociedade, um percurso que preencheria a segunda parte da sua vida, depois de ter chegado ao primeiro nível como cientista (física química). Em 1933 Polanyi emigra para Manchester, perante a afronta nazi à liberdade e à academia. Em Manchester é recebido como um triunfo britânico na guerra pela cativação dos grandes talentos europeus, face ao nazismo emergente. O jornal mais importante, o Manchester Guardian, titulava então: “Químico famoso para Manchester. Dr. Polanyi aceita uma cátedra na 22 Zweig (1943), p. 176 23 Zweig (1943), p. 156 24 Para uma discussão do pós modernismo construtivista de Polanyi, e para as diferenças entre o post modernismo tradicional (desconstrutivista) e a filosofia pós crítica de Polanyi, ver a obra de Jerry Gill (2000). 46


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Universidade”25. No texto escreve-se que Polanyi era “um dos mais proeminentes físico-químico” de então e, ainda, que “tinha resignado do seu lugar em Berlim (Maio de 1933) em protesto pelo tratamento nazi aos professores judeus e liberais”. No entanto, não foi já no Reino Unido que Polanyi despertou para as preocupações sobre as questões do enquadramento social da ciência e do funcionamento da economia. No início de 1930 já Polanyi tinha organizado em Berlim, a partir da sua base no Instituto Kaiser Wilhelm, uma série de 9 ou 10 encontros de cientistas (das ciências naturais) e economistas26. Na opinião de um outro químico, esse terá sido o momento em que Polanyi se começa a distanciar da química física. Uns bons anos depois, em princípios de 1949, Polanyi registava no seu diário que esse grupo de trabalho (arbeitsgemenschaft, em alemão, como Polanyi o designou) terá dado os seus frutos27: O grupo de trabalho [the Arbeitsgemeinschaft] mencionado em 17 de janeiro de 1929 deu todo o tipo de frutos. v(on)Newman escreveu um livro sobre jogos e teoria económica. Szilard e eu tornamo-nos professores de ciência social. Recordo outros desse círculo: F. London , Wigner, Marschack, the Stolpers. A tendência para outros interesses distantes da ciência natural foi geral. Já nessa altura a preocupação de Polanyi era fazer a análise crítica dos dados publicados na imprensa sobre investimento, rendimento e produtividade dos vários países. Há que ler isto no contexo da época: as estatísticas nacionais eram ainda muito incompletas e incipientes e estavam ainda a começar a estrutu25 “A famous chemist for Manchester. Dr. Polanyi accepts a University chair”, Manchester Guardian, 20 June 1933, p.10 26 Scott e Moleski (2005), p. 121 27 Manuscrito não publicado, em RPC(41,1). Scott e Moleski (2005) fazem citação semelhante do mesmo documento (p. 122) 47


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rar-se28. Polanyi tinha, no ano anterior (1929), começado a fazer uma exploração crítica das estatisticas soviéticas29. Ao mesmo tempo que desmontava uma cientismo baseado no objetivismo empírico e no positivismo, Polanyi propunha exploraração “científica” dos dados económicos, por “mentes treinadas cientificamente” em colaboração com economistas “nacionais”30. Entre 1933 e 1946 Polanyi vai-se envolver cada vez mais na reflexão sobre a organização da sociedade, as grandes batalhas das ideias, o funcionamento da economia e, simultaneamente, a organização da ciência e do conhecimento científico. Escreve abundantes notas de reflexão, planeia, faz e refaz planos para livros sobre economia e sociedade e sobre a organização da ciência e das ideias. Como exemplo, em 1942, Polanyi publicou num jornal um texto31 onde antecipa muito do argumento da sua obra Science, Faith and Society, que viria a publicar uns anos depois (em anexo, inclui-se a tradução desse texto)32. Os anos deste período terão sido particularmente ingratos para Polanyi, quer sob o ponto de vista profissional como pessoal - até porque entretanto a sua família conheceu de perto os dramas da guerra. Polanyi seria então uma mente brilhante e irrequieta à descoberta de um caminho próprio na batalha das ideias, mas era também um estrangeiro, vindo de um país inimigo e a viver num país em guerra. Polanyi viu inclusivé 28 Em Polanyi (1945) aparecem já citados os trabalhos percursores de Richard Stone (1913-1991) (ver p. 14). Stone viria a receber o prémio Nobel de economia, em 1984, quase quarenta anos depoi, precisamente pelos seus trabalhos sobre a construção de modelos macroeconomicos ao nível nacional e internacional. 29 Scott e Moleski (2005), p. 120. Mas só em 1936 é que Polanyi publicaria um pequena livro sobre as estatísticas soviéticas (Polanyi, 1936), com base no artigo que publicara na revista Manchester School (Polanyi, 1935) - e posteriormente como um dos capítulos de The Contempt of Freedom (Polanyi, 1940) 30 Scott e Moleski (2005), p. 121, referência à carta de Polanyi a Schrodinger. 31 “Revaluation of science”, carta de Michael Polanyi ao editor, Manchester Guardian, 7 de novembro de 1942. 32 Polanyi (1946). 48


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recusada a sua disponibilidade para o esforço de guerra britânico, dadas as suas fortes ligações anteriores com a Alemanha, embora lhe tivesse sido atribuída a nacionalidade britânica em setembro de 193933. Contratado como um cientista brilhante, para uma cátedra de química física, Polanyi envolve-se cada vez nos domínios da economia e da filosofia, mesmo dentro da própria Universidade de Manchester. Ainda em 1937, cerca de três anos depois de chegar a Manchester, Polanyi escreve um memorando a propor “uma nova secção de investigação” sobre os mecanismos da vida económica, erros e falácias associadas, e sobre a necessidade de encontrar novas vias (gráficas) para a educação das massas através do esclarecimento das ideias económicas34. Desse programa resultaria um filme, concluido em 1940, sobre a circulação monetária na economia de mercado e um modelo explicativo dos sucessivos ciclos depressivos e expansivos do capitalismo35. Como é óbvio, mesmo para um académico brilhante, essa deriva não podia ser fácil de enquadrar dentro de uma instituição universitário, ainda por cima em tempo de guerra. Em dezembro de 1944, Polanyi recebe uma das cartas que provavelmente mais terá apreciado na sua vida: a The Royal Society informa-o que tinha sido nomeado para o “Chemistry Sectional Committee” e esperava que ele aceitasse a nomeação36. No ano seguinte publica um livro sobre economia e políticas públicas37, baseado numa interpretação liberal das ideias de Keynes (e outros “keynesianos”) sobre emprego e 33 A carta de notificação está em RPC(4:1) 34 Ver Beira (2013b), onde se transcreve o memorando, e sua discussão em Beira (2013c). 35 Sobre o contexto do filme, ver Beira (2013c). O filme pode ser visionado na página https://sites.google.com/site/ebeira/pol1b, mantida por E. Beira, onde também se incluem vários recursos associados ao filme 36 Ver RPC(4:12) 37 Polanyi (1945). A segunda edição britanica é de 1948. A edição americana é também de 1948 (MacMillan Co.) 49


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circulação monetária. O livro conheceria uma nova edição, três anos depois, e uma outra edição nos Estados Unidos, mas hoje em dia será aobra de Polanyi menos conhecida e menos discutida na literatura. Talvez injustamente - na realidade as crises recentes do capitalismo, depois de 2008, têm recordado a atualidade das propostas de políticas públicas de gestão dos ciclos económicos adiantadas nessa altura por Polanyi. No ano seguinte, Polanyi (1946) publica outro livro, Science, Faith and Society, na sequência das Riddell Lectures na Universidade de Durham (Newcastle)38, uma obra que marcou a sua emergência como filósofo e que representou um ponto de viragem na sua vida, como ele próprio reconheceria mais tarde, no referido texto autobiográfico39 (itálico da nossa responsabilidade): Acredito que encontrei a minha própria vocação em 1946, quando decidi dedicar-me ao desenvolvimento de uma nova filosofia capaz de responder às necessidades dos nossos tempos. A forma como comecei, com pouca ou nenhuma preparação, foi aqui totalmente benéfica. Um sólido conhecimento da filosofia torna os avanços radicais necessários extremamente difíceis. Tem primeiro que se atirar e fazer depois as perguntas, tal como eu sempre fiz – para o melhor e para o pior. Os biógrafos de Polanyi assinalam que Polanyi terá então escrito a uma irmã dizendo que finalmente tinha resolvido a crise da sua vida, com que se debatera durante quarenta anos40. Finalmente via claramente qual era a sua vocação e seria agora uma questão de viver e realizar essa vocação. Esta 38 Polanyi (1946). Uma segunda edição (1964) inclui um importante prefacio adicionado por Polanyi. 39 Ver Wakeman (1975) 40 Scott e Moleski (2005), p. 200 50


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observação parece confirmar a nossa visão de um Polanyi de aparência calma, segura, cortês, mas interiormente dilacerado por múltiplas paixões intelectuais, com óbvias repercussões na carreira profissional, ainda por cima numa fase da sua vida onde precisava de esforços financeiros adicionais para ajudar familiares apanhados no vórtice da segunda grande guerra.

4. DA CIÊNCIA PARA A FILOSOFIA (1946-1976) Após grandes esforços intelectuais, onde mais do que uma vez esteve perto de soçobrar, Polanyi publicou finalmente Personal Knowledge, em 1958, doze anos depois de Science, Faith and Society (1946), e sete anos depois de The Logic of Liberty (1951), uma obra de transição onde se cruzam as suas reflexões sobre a organização da ciência, da economia e da sociedade. No ano seguinte publica The Study of Man (1959), que ele próprio qualificou como uma introdução sumária à sua filosofia, tal como exposta em Personal Knowledge, mas com uma extensão ao conhecimento do homem pela história. Em 1964 escreveu um novo prefácio para a segunda edição de Science, Faith and Society, que na realidade mais se pode considerar como um posfácio a essa obra: uma revisão crítica do que escrevera antes, mas agora contextualizada à luz da filosofia do conhecimento pessoal que entretanto tinha desenvolvido em Personal Knowledge. Em Science, Faith and Society Polanyi associara a luta pela liberdade com a luta pela verdade e usou a sua experiência pessoal de vida na comunidade científica como base “empírica” para discutir os fundamentos (a que chamou premissas) em que a ciência se baseia na procura pela verdade, e relevou aí o papel da tradição (e da sua permanente renovação) na ciência 51


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e na sociedade. Nesse novo prefácio assume as implicações do conhecimento pessoal sobre a ciência41: Se as regras explícitas apenas podem operar em virtude de coeficientes tácitos, então temos que abandonar a ideia de exatidão. Quando escrevera Science, Faith and Society, Polanyi não tinha ainda estruturado a sua teoria do conhecimento tácito e respetivas implicações. Em Personal Knowledge definiu o seu “programa”42: O objetivo deste livro é mostrar que a objetividade completa, que é habitualmente atribuída às ciências exatas, é uma ilusão e, na realidade, é um ideal falso. Mas não vou tentar repudiar o ideal de uma objetividade estrita sem oferecer uma alternativa, que acredito ser mais valiosa para uma submissão inteligente; chamei-lhe “conhecimento pessoal”. O conhecimento pessoal, tal como proposto por Polanyi, baseia-se nos mecanismos tácitos do conhecimento, cuja estrutura Polanyi desenvolve e aprofunda nos anos seguintes à publicação de Personal Knowledge. Um exemplo desse esforço de sistematização pode-se encontrar na figura 2, onde se propõe a tradução de uma nota manuscrita de Polanyi43, que ele intitulou “a gramática do conhecer tácito”. Tal como Polanyi várias vezes assinalara, uma descoberta é uma mina potencial para novas descobertas impossíveis de 41 Polanyi (1964), p. 10 42 Polanyi (1958), p. 18 43 Manuscrito em RPC(21:13), pasta com notas agrupadas sobre o tema “literatura” (Cash, 1996). Pressupomos ter sido escrito durante a década de sessenta, aquando da preparação das conferências que Polanyi fez nos Estados Unidos no final da década. 52


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Figura 2 Transcrição do manuscrito “The grammar of tacit knowing” (RPC21:13) A gramática do conhecimento tácito

casos

S F Dedo a apontar para um objeto Nomes que designam uma pessoa Características que são partes de uma fisionomia Movimentos que são partes de desempenhos hábeis Ferramentas usadas com uma finalidade Indícios sensoriais que conduzem à perceção Outros indícios que conduzem à descoberta Duas imagens estéreo vistas como uma imagem estéreo

São todos relações de para: S [subsidiário] ou Ss [subsidiários] suportam um F [foco]

Níveis de consciência Todos os Fs [entidades focais]: completamente conscientes, identificáveis Todos os Ss [entidades subsidiárias]: • variável, em todos os níveis, • desde subliminar até completamente consciente, • logo podem ser não especificáveis Dois tipos de apreensão: Estamos conscientes das Ss [entidades subsidiárias] para atender ao F [foco] que suportam. Isto é uma consciência subsidiária de S [entidade subsidiária], enquanto que uma consciência de F [entidade focal] é uma consciência focal. A integração de S [elementos subsidiários] em F [foco] é a estrutura básica do conhecimento tácito

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antecipar. A descoberta dos mecanismos e da estrutura do conhecer tácito mostrar-se-ia muito frutuosa - entre as quais uma potencial explicação do clássico paradoxo de Meno44, remetendo a sua justificação para mecanismos não críticos (para além da razão), e sublinhando o papel da imaginação e da intuição no processo de construção do conhecimento. No texto autobiográfico já antes citado45, Polanyi parece sugerir algum desencanto pela sua campanha intelectual solitária (itálico uma vez mais da nossa responsabilidade): Na escola comecei a produzir teorias científicas e ensaios literários, sobre assuntos de que pouco sabia. Tinha cerca de 18 anos quando George Polya, um companheiro de estudos mas alguns anos mais velho, e que viria a ser um grande matemático, avisou a minha mãe: “O Michael caminha sózinho, vai precisar de uma voz forte para se fazer ouvir”. Hoje, aos 75 anos, a minha voz ainda não se fez ouvir ao longe; morrerei como um homem velho que foi uma criança prodígio. Polanyi faleceu em 1976. Mas, apesar das suas apreensões e angústias, a sua obra permaneceria e far-se-ia ouvir como um dos contributos mais estimulantes e refrescantes do pensamento do século XX.

44 O paradoxo de Meno refere-se à contradição posta por Platão sobre o reconhecimento da solução de um problema, que por definição é desconhecida. Logo a solução de um problema é um absurdo – ou se conhece a solução e não há problema, ou não se sabe o que procurar e nesse caso não é de esperar que se encontre coisa alguma (Polanyi, 1966, p.22). Na introdução a The Tacit Dimension, Polanyi diz que demorou três anos a convencer-se de que a sua solução para o paradoxo, assente nos mecanismos tácitos de conhecer, estava correta (p. xvii). Note-se que em Science, Faith and Society (1946), Polanyi já formulara a questão (p.10). 45 Ver Wakeman (1975) 54


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5. IMPACTO DAS OBRAS DE POLANYI Nesta secção ilustra-se o impacto da obra de Polanyi através de resultados decorrentes da sua análise bibliométrica46 pela exploração do número de citações registadas por duas fontes diferentes - Web of Science (WoS) e Google Scholar (GS)47. Quais os livros mais populares de Polanyi? A figura 3 mostra o número de citações acumuladas até 2009 pelos vários livros publicados por Polanyi (só livros, não inclui artigos, quer científicos como de ciências sociais e filosofia)48. Os resultados obtidos, aliás na linha de outras análises na literatura, mostram um maior número de citações desses livros no GS do que no WoS - salvo no caso do único livro que Polanyi publicou sobre química (Atomic Reactions, 1932), em que o número de ciFigura 3 Numero total de citações (até 2009) dos livros de Michael Polanyi, a partir de Google Scholar (GS) e Web of Science (WoS)

46 Para uma exploração mais detalhada, ver Beira (2010a). 47 Para uma discussão mais detalhada das origens e diferenças entre estas duas fontes de dados bibliográficos, ver Beira (2010b). 48 Para uma lista e sumário dos livros de Polanyi, ver Beira (2010a), p. 4-10 55


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tações registadas pelo WoS é bastante superior às recuperadas pelo GS. Mas, seja qual for a origem, ambas as fontes mostram a importância e impacto dominante de dois dos livros de Polanyi: Personal Knowledge (1958) e The Tacit Dimension (1966). Como tem evoluido, ao longo do tempo, as citações das várias obras de Polanyi? A figura 4 mostra a evolução do número de citações anuais dos trabalhos de Michael Polanyi, quer dos agregados dos seus artigos publicados sobre química e sobre ciências sociais e filosofia (“estudos sociais”, foi a designação inicial de Polanyi para essa sua área de investigação), quer dos seus dois livros mais importantes atrás referidos, e ainda Atomic Reactions. Os dados apresentados neste gráfico foram colhidos pela exploração direta e indireta das citações em WoS49. Sendo bem conhecido o enviesamento negativo desta fonte em relação às contribuições fora das ciências exatas, mesmo assim reconhece-se facilmente que • os artigos de Polanyi enquanto cientista (químico) continuam a ser citados hoje em dia com assinalável frequência, mais de meio século depois, e sem mostrarem uma tendência decrescente, antes pelo contrário - um testemunho da perenidade da sua contribuição como químico e cientista; • o número de citações recuperadas no WoS para os livros de Polanyi é muito significativo, sendo mais do dobro do que os seus artigos científicos, apesar desta base de dados tradicionalmente subestimar o impacto de trabalhos publicados na forma de livros; mesmo assim reconhece-se a importância de Personal Knowledge (1958) e The Tacit Dimension (1966) como os livros com mais citações, sendo The Tacit Dimension a obra que parece conhecer um número de citações anuais, em rápido crescimento nos últimos vinte anos (pelo menos até 2009). A dinâmica dessa evolução não parece depender da 49 Para uma discussão da diferença entre citações diretas e indiretas no WoS, ver Beira (2010a) e Beira (2010b). Na realidade o numero total de citações referenciadas na bases de dados do WoS pode ser muito superior ao numero de citações (diretas) anunciadas pelo sistema. 56


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Figura 4 Número de citações anuais dos trabalhos de Michael Polanyi, por tipo de obra (artigos científicos, artigos sobre ciências sociais e filosofia, e quatro dos livros) e por ano, com base nos dados de Web of Science (WoS)

fonte dos dados, embora os números absolutos de citações sejam diferentes. A figura 5 volta a mostrar a evolução do impacto das obras de Polanyi, medido pelo número de citações, mas a partir de uma outra fonte de dados (GS): mostra o número de citações anuais de todos os livros de Polanyi, tal como reconstituídas a partir desses dados, até 200950 . O padrão de crescimento do numero de citações anuais é semelhante ao reconstituído a partir da fonte anterior (WoS), mas os valores absolutos são quatro a cinco vezes superiores. 50 A quebra de citações nos últimos anos é carateristica do GS, dado que a atualização dos dados é progressiva e pode não estar ainda completa para todas as publicações desse ano. Logo essa quebra no numero de citações pode não corresponder a uma quebra real, o que só o tempo esclarecerá. 57


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Figura 5 Numero de citações anuais dos livros de Michael Polanyi, por ano, com base nos dados Google Scholar (GS)

6. PARA ALÉM DA INEXATIDÃO E DA INCERTEZA DA EVIDÊNCIA No outro livro que se apresenta51, reunimos as traduções de sete ensaios de Polanyi sobre ciência e tecnologia, publicadas desde 1936 até 1972, ou seja, durante quase quarenta anos, a segunda metade da sua vida, após ter emigrado para o Reino Unido. A coletânea começa com um primeiro texto premoni51 Ver Beira (2013b). 58


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tório, de 193652, e termina numa grande síntese final, de 197253. Logo nos primeiros anos em Manchester, Polanyi publicou um pequeno texto numa prestigiada revista britânica de filosofia da ciência, entitulado “The value of the inexact”54, onde contradizia a visão, então corrente entre os filósofos, da ciência como algo puramente quantitativo e de alta precisão. Este texto define muito da sua agenda futura, que o levaria alguns anos depois a escrever o “programa” anteriormente referido55 e a relacionar o funcionamento da ciência com competências hábeis, aprendizagem e tradição. Nesse texto de 1936, Polanyi começa por duvidar do valor de qualquer afirmação científica totalmente exata, e argumenta que o valor ou validade das leis da ciência apenas pode fazer sentido quando combinado com os seus inseparáveis elementos de incerteza. Essa incerteza é sancionado pela convicção, “fundamento supremo da validade” das ideias: Parece-me por isso supremamente despropositado reivindicar que através de medições precisas e de tratamento matemático, ou seja, pela exatidão da física, se possa encontrar um conhecimento e um comando vital de objetos como os organismos vivos e como os corpos sociais. A força da ciência não resulta de uma pura objetividade de base empírica, mas sim da coerência do conjunto das suas ideias sobre a realidade, sendo uma progressiva construção humana, que não está isenta de erros e passos em falso, e para a qual contribui muito mais coisas do que medições precisas. A crítica dirige-se especialmente às ciências biológicas e sociais.Trinta e 52 “The value of the inexact”, Polanyi (1936) 53 “Genius in science”, Polanyi (1972). 54 “O valor do inexacto”, tradução em Beira (20113b), p. xx-xx 55 Ver nota 42. 59


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seis anos depois, Polanyi publica o ensaio “Genius in science”56. Este foi certamente um dos últimos ensaios que Polanyi escreveu, e constitui uma síntese do seu pensamento sobre as questões associadas à geração do conhecimento científico e à organização da ciência, escrito já depois da publicação de The Tacit Dimension (1966). É curioso constatar que, neste ensaio, Polanyi remete explicitamente para o referidos texto de 1936: Comecei muitos anos atrás esta linha de pensamento num pequeno artigo intitulado “The value of the inexact”. E deixa uma declaração (quase) final sobre a componente tácita, ou pessoal, do conhecimento e da vida (itálico da nossa responsabilidade): Não apresento desculpas para a inexatidão da ciência, nem para as nossas ações pessoais, que em última instância decidem o que aceitar como a verdade na ciência. Não vejo a nossa intervenção como uma necessidade lamentável, nem olho para este resultado como um tipo de conhecimento de segunda classe. Só pode parecer de segunda classe à luz de uma falácia que sistematicamente corrompe o nosso conceito de conhecimento e distorce por completo grandes zonas da nossa cultura. Joseph Agassi, o filósofo racionalista, aluno e discípulo de Karl Popper, dedicou um ensaio57 a este último texto de Polanyi. Agassi comenta aí que, apesar do ensaio ter então já sido publicado três vezes, em língua inglesa, mesmo assim mereceria ser publicado muitas mais vezes. Isto apesar das 56 Na realidade, Scott e Moleski (2005, p. 349) listam 4 publicações deste ensaio, uma das quais em 1971. Este ensaio foi inicialmente preparado para o ciclo de conferencias que Polanyi fez nos USA no final dos anos sessenta e princípio dos anos setenta. 57 Agassi (1975). Depois também publicado em livro (Agassi, 1981). 60


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diferenças bem conhecidas entre as suas visões filosóficas.

7. POLANYI E OS PROBLEMAS DA CIÊNCIA ATUAL Mais de meio século depois, a atualidade do pensamento de Polanyi pode-se avaliar não só pelos padrões das suas citações bibliográficas, mas também pela relevância das suas ideias para os problemas atuais da investigação científica. Propomos uma revisão rápida dessa questão a partir de uma análise recente sobre os problemas da ciência atual, publicada por uma conceituada revista internacional de opinião. Em outubro de 2013, a revista The Economist publicou um número com “How science goes wrong” [“O que vai mal na ciência”] na capa58, onde se identificam três grandes problemas na ciência contemporânea: 1. O problema da reprodutibilidade da evidência científica: a falta de publicação de dados completos, acessíveis e íntegros, assim como de informação sobre os procedimentos usados nas experiências, o que dificulta, ou impede mesmo, a replicação de experiências - uma prática fundamental para a validação científica. No texto assinala-se que a replicação de experiências (especialmente as experiências mais complexas) implica reconhecer “o papel do conhecimento tácito e do julgamento pessoal nas experiências”. Polanyi não é aqui citado, mas poderia (e deveria) ser. Na realidade, o artigo cita Harry Collins, um investigador importante do conhecimento tácito59. 58 Edição de 19 de outubro de 2013. O editorial tem por subtítulo “Problemas com a investigação científica. Como a ciência está a ir mal” e por subtítulo “a investigação científica mudou o mundo. Agora precisa de ser ela própria a mudar”. O ensaio associado, “Investigação pouco fiável. Problemas no laboratório”, por sua vez tem por subtítulo “os cientistas gostam de pensar a ciência como fazendo a sua própria auto correção. Mas não é, e num grau alarmante”. 59 Sociólogo da ciência, com obra sobre o conhecimento tácito. Ver Collins (2010). 61


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2. O problema da significância da evidência: as dificuldades

de “compreender a significância” e de avaliar o que é, ou não, evidência positiva, e mesmo negativa. Os resultados negativos são mais credíveis, mas as práticas da publicação científica preferem acentuar antes os resultados positivos e diferentes (inovadores), logo mais vulneráveis ao erro. Para além das questões de técnica e interpretação estatística (por exemplo, os efeitos sobre a significância dos resultados obtidos por aplicação de testes múltiplos e repetidos a conjuntos de dados cada vez mais vastos e complexos; ou a avaliação do poder discriminante dos testes aplicados), a avaliação da significância acaba sempre por envolver um julgamento pessoal pelo cientista. A crescente importância de conceitos ligados ao conceito de probabilidade na avaliação da evidência “pressupõe a nossa capacidade para compreender e reconhecer a aleatoriedade na natureza”, problema complexo a que Polanyi, por exemplo, dedica todo um capítulo em Personal Knowledge60. 3. O problema da autoridade e da gestão na ciência: o modelo de “peer review” é insatisfatório, assim como o sistema de atribuição de bolsas e apoios à investigação, ficando a dúvida sobre o que se pretende realmente financiar: se a novidade ou o conhecimento. O ensaio do The Economist faz eco da necessidade de um sistema de valores dentro da comunidade científica que não penalize o reconhecimento de erros pelos próprios (na realidade, atualmente a omissão desse reconhecimento salvaguarda a reputação dos cientistas e o seu eventual reconhecimento traduz-se numa potencial penalização). Polanyi sempre argumentou sobre o papel central dos valores na tradição científica e a capacidade desta em auto renovar-se. Mais de cinquenta anos depois, estes textos sugerem a 60 Polanyi (1958), cap. 2 62


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atualidade das questões que preocupavam Polanyi - e das suas propostas. O conceito de ciência como resultado de uma coordenação espontânea de iniciativas independentes através de ajuste mútuos, de que resulta um sistema de factos baseados na sua interpretação - e não uma simples coleção de factos, com uma capacidade intrínseca de auto correção, continua a ser um desafio atual, procurando ultrapassar as limitações do racionalismo, embora sem ignorar o contributo importante da razão e da crítica. Em Science, Faith and Society (1946), Polanyi começou a desenvolver o conceito de de ciência como um complexo social sistema, em que a dinâmica dos mecanismos de emergência está em ação permanente. Daí a definição proposta por Polanyi para um facto científico: um facto aceite como tal pela opinião científica, tanto com base na evidência a seu favor como pela sua plausibilidade considerando a conceção corrente da natureza das coisas61. Facto científico para o qual contribui o julgamento pessoal do cientista - para além das incertezas e ambiguidades das evidências.

61 Polanyi (1962) 63



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Polanyi, M., The Tacit Dimension, Doubleday, 1966. Tradução portuguesa (2010), por Eduardo Beira, disponível em www.amazon.com. Polanyi, M., “Genius in science”, Encounter, 38, Janeiro, 1972, 43-50. Versão portuguesa em Beira (2013b). Polanyi, M. e H. Prosch, Meaning, University of Chicago Press, 1975 Scott, W. e M. Moleski, Michael Polanyi. Scientist and Philosopher, Oxford University Press, 2005 Szapor, J., “Laura Polanyi 1882-1957: Narratives of a Life”, Polanyiana, vol. 6 (nº 2), 1997 Wakeman, J., World Authors 1950-1970, The H. W. Wilson Company, New York, 1975 Zweig, S., The World of Yesterday, Cassel & Company Ltd., 1943

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EDUARDO BEIRA

ANEXO Tradução da carta ao editor publicada no jornal Manchester Guardian, 7 de novembro de 1942

REAVALIAR A CIÊNCIA Michael Polanyi

Anda por aí um movimento forte em livros, artigos e organizações que exige que as responsabilidades sociais da ciência devem ser mais efetivamente reconhecidas. Rejeita a conceção tradicional de ciência como uma procura desinteressada pela verdade e na sua vez pede uma ciência ajustada às necessidades sociais. Os argumentos e sugestões parecem bem definidos. Assinala-se, em primeiro lugar, que a investigação moderna custa dinheiro público, muitas vezes grandes somas desse dinheiro. Porque é que o cidadão que paga impostos, os contribuintes, devem ser tributados para a elucidação de problemas distantes dos seus interesses e da sua compreensão? Porque é que um conjunto particular de indivíduos pode pretender que os seus jogos intelectuais sejam subsidiados com dinheiros públicos? Claro que se reconhece que a ciência muitas vezes pode produzir grandes benefícios práticos. Mas isso é agora considerado como sendo precisamente uma razão adicional para rever a posição da ciência. Os cientistas precisam de compreender melhor quanto de bem podem fazer, e também quanto perigosas podem ser algumas das suas descobertas para a humanidade e, portanto, devem ajustar adequada-

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mente as suas atividades às necessidades sociais. Espera-se que, uma vez bem compreendidas as suas reais responsabilidades sociais, os cientistas se sintam então muito satisfeitos por concentrarem os seus esforços no sucesso de objetivos úteis, racionalmente planeados. Mas esse movimento nunca produziu qualquer programa prático. Ouvem-se referências ao exemplo da Rússia, onde é dito ter sido feita a experiência de uma ciência socialmente planificada, mas de facto não se fazem sugestões específicas segundo essas linhas. Têm sido feitas reuniões de cientistas para discutir, sob o ponto de vista social, assuntos como a nutrição ou a agricultura. Mas como os aspectos sociais dessas questões são económicos e políticos, não técnicos, os cientistas poucos avanços podem aí fazer - pelo menos, com base no seu próprio conhecimento especializado. Isto explica porque é que, apesar da grande publicidade que a campanha pela reavaliação da ciência tem conhecido, na realidade pouco entusiasmo tem causado entre os cientistas. Muitos cientistas opõem-se definitivamente a esse movimento, mas pensam que não vale a pena protestar contra o que parece não ser mais do que uma moda intelectual sem conteúdo. Propõem-se continuar com o seu trabalho exatamente como antes - tão rápido quanto tenham acabado os trabalhos relacionados com o esforço de guerra com que atualmente estão envolvidos. Mas esta perspetiva parece ser muito curta. Se a campanha não tem um propósito imediato, isso apenas significa que a sua significância real fica para além disso, e que é um efeito lateral de um contexto mais geral, uma tese avançada apesar de ser bem patente o seu caracter não razoável, pois é uma tese compelida aos seus aderentes como parte de um movimento filosófico mais vasto, a que estão profundamente ligados. Este movimento mais vasto opõe o pensamento científico ao pensamento tradicional e a todas as outras realidades espirituais. Foi lançado segundo linhas modernas no inicio do século dezanove, por Augusto Comte, que pretendia erigir uma nova sociedade liberta da religião e das obscuridade metafísicas, uma sociedade que, governada por um conselho de cientistas, conseguiria chegar à satisfação completa de todas as suas vontades materiais. Cerca de vinte anos mais tarde, Marx com-

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EDUARDO BEIRA

preendeu que se os interesses materiais são o objetivo; então, são estes mesmos, e não a ciência, que devem ser soberanos sobre a sociedade. Os marxistas modernos precisaram melhor esta posição ao declararem que a própria ciência deve ser controlada socialmente de modo a produzir apenas resultados que sejam diretamente úteis (lucrativos) para a comunidade. Um outro ramo do materialismo social, incorporado nos modernos estados fascistas, embora num plano inferior, chegou a conclusões semelhantes. Exigiu a subserviência da ciência ao bem público, tal como determinado pelo governo do Estado. Creio que este é o pano de fundo contra o qual deve ser vista a controvérsia sobre a posição correta da ciência. Põe em questão a justificação de todo o pensamento não conforme com os objetivos concreto do Estado. Os cientistas não devem ser indiferentes a esta filosofia, mesmo que no imediato ela não represente uma ameaça à continuação da ciência. Deve fazer parte do ensino da ciência contestar esta doutrina através da descrição da forma como os trabalhadores científicos têm lutado com os problemas da saúde e da insegurança para perseguirem descobertas em domínios tão remotos quanto intrincados; mostrar também que, logo que essas descobertas emergiram de uma forma compreensiva, afetaram profundamente as perspetivas do público em geral, mesmo quando não tinham qualquer valor utilitário para apresentar; que, de facto, as descobertas de Newton e de Darwin foram irrelevantes sob o ponto de vista prático, mas remodelaram e iluminaram todas as partículas da mente popular. Como resposta ao desafio à sua própria posição, a ciência deve responder que é inteiramente adequado que a sociedade, mesmo que possa ser pobre e miserável, continue com os seus subsídios para as investigações puramente científicas. Esses testemunhos e declarações devem recordar todas as responsabilidades da sociedade pelas tarefas espirituais. Devem ser dados na convicção de que todos os ideais do homem se devem manter, ou cair, em conjunto, no seu conflito com o conceito materialista de sociedade, e que é dever da ciência defender todo o domínio espiritual, de que faz parte integrante.

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A VISÃO FILOSÓFICA E PÓS-CRÍTICA DE MICHAEL POLANYI: CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE Phil Mullins

Original em inglês. Tradução de Eduardo Beira.



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1. INTRODUÇÃO

P

ermitam-me que começe por assinalar que me parece muito adequada uma apresentação do pensamento filosófico de Michael Polanyi num congresso sobre políticas e gestão da ciência e da tecnologia. Ao longo da sua longa vida como cientista e como filosofo, Polanyi certamente teve muito que dizer sobre ciência e tecnologia e sobre as politicas para o seu desenvolvimento. O meu título (A visão filosófica e pós-crítica de Michael Polanyi: ciência, tecnologia e sociedade) pretende precisamente sugerir isso mesmo. Definindo a sua visão filosófica como “pós crítica”, Polanyi assinalava que a sua visão transformava de forma muito significativa alguns dos pontos mais enfáticos do pensamento filosófico emergente da revolução científica posterior ao século dezassete. As ideias desenvolvidas por Polanyi reformulam muito do pensamento filosófico sobre a ciência por si, mas muito mais importante é ainda o facto de Polanyi ser um pensador social de amplo alcance que oferece uma visão sobre a forma como a ciência, a tecnologia e o desenvolvimento social se harmonizam. As reflexões a seguir tentam transmitir esta visão através de comentários a uma selecção criteriosa de citações estimulantes dos escritos de Polanyi.

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2. UM ESBOÇO DA VIDA DE POLANYI Ainda antes das citações, uma visão sumária da vida de Polanyi pode ser útil, pois clarifica a forma como as ideias filosóficas de Polanyi estavam enraizadas na sua experiência de vida. Polanyi reconheceu uma vez que a sua carreira como filosofo era algo como uma adenda. Ou sejam tornou-se um filosofo quando estava no auge de uma carreira brilhante como investigador científico. Embrenhou-se na reflexão filosófica quando se aproximava da sua idade madura e fê-lo porque pensou que a filosofia poderia ajudar a realinhar o mundo turbulento em que vivia, durante a maior parte do século vinte. Michael Polanyi nasceu em Budapest, na Hungria, em 1892, sendo o quinto de seis filhos de uma próspera familia judia secular. Budapeste era então uma cidade em que os judeus estavam muito integrados, no período anterior à primeira guerra mundial. Recebeu uma primeira educação superba tanto nas humanidades como nas ciências. A prosperidade da familia decresceu depois da falência do seu pai, em 1900, e da sua morte, em 1905. Polanyi começou a estudar medicina na Universidade de Budapeste em 1908, embora se tenha começado a interessar profundamente pela química física enquanto estava ainda a treinar como médico. No verão de 1912, e novamente em alguns períodos de 1913 e 1914, polanyi estudou química física num instituto famoso em Karlsruhe, na Alemanha. Um dos primeiros ensaios que escreveu foi enviado para Einstein pelos seus professores em Budapeste, mereceu a aprovação deste e foi rapidamente publicado. Mais tarde Polanyi recordaria com humor esta sua experiência juvenil: “Bang! Estava criado um cientista”. Polanyi terminou a sua licenciatura em medicina em abril de 1913, mas continuou a sua investigação em química enquanto praticava medicina no exército austro-húngaro, durante a primeira guerra mundial. Como tinha uma saúde frágil, teve que ser hospitalizado durante a guerra 76


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e no resto desse período teve funções leves, o que lhe permitiu continuar com os seus projetos de física química, e publicar mesmo alguns trabalhos. Um desses trabalhos foi eventualmente transformado numa tese de doutoramento em química, cujo grau foi conferido em julho de 1919. Depois da guerra, Polanyi foi, durante um período breve, oficial do ministério da saúde da Húngria, no curto governo liberal após a guerra, o qual foi rapidamente suplantado por um governo comunista, em março de 1919. Polanyi deixou o seu posto governamental e, especialmente por causa do crescimento do anti semitismo, deixou a Hungria perto do fim desse ano e voltou para Karlsruhe, na Alemanha, e para os seus estudos de química física. A impressionante investigação inicial de Polanyi (focada principalmente sobre a adsorção e as velocidades das reações químicas) garantiram-lhe um lugar no Kaiser Wilhelm Institute for Fiber Chemistry, em Berlim, em 1920. Pouco depois passou para o prestigiado Kaiser Wilhelm Institute for Physical Chemistry and Electrochemistry. Os institutos Kaiser Wilhelm detinham uma das melhores instalações para investigação cientifica no mundo de então. Os treze anos que Polanyi passou nesse centro de investigação foram os mais felizes da sua vida, onde produziu investigação cientifica de excepcional valor e onde interagiu com alguns dos melhores cientistas europeus. Muitas das ideias filosóficas sobre a vida científica, que Polanyi desenvolveu posteriormente, basearam-se na sua experiência durantes esses primeiros anos como investigador em química em Berlim. Em 1933, com a formação do terceiro Reich, Polanyi reconheceu que tinha que abandonar a Alemanha. Foi com relutância que aceitou uma posição na Universidade de Manchester, no Reino Unido, onde continuou a fazer importantes investigações científicas em várias áreas da química, até 1948, quando trocou a sua cátedra em química por uma cátedra em estudos sociais, para se poder dedicar a estudos de economia e filosofia. Na realidade, e desde que deixara Berlim, e certamente de77


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pois da sua chegada a Manchester, Polanyi parece que estava já a considerar outros interesses de investigação fora da química. Ficara tremendamente perplexo pelas mudanças que transformaram o mundo com a primeira guerra mundial, e os seus escritos dos anos trinta, muitos dos quais ainda por publicar, mostram que Polanyi se debatia profundamente por entender o que é que tinha corrida mal na cultura posterior ao iluminismo e especialmente sobre na política e na economia modernas. Uma primeira tentativa para uma nova carreira como filosofo (como os trabalhos de Eduardo Beira mostraram1) aconteceram ainda nos anos trinta e inicio dos anos quarenta, quando pensou e eventualmente produziu mesmo um filme sobre economia, assim como notas, lições e ensaios onde se entrelaçam a política, a economia e a filosofia da ciência. Durante este período, Polanyi torna-se o porta voz do movimento de resistência contra o “planeamento da ciência” no Reino Unido. Depois de Polanyi ter trocado a cátedra de química pela cátedra de estudos sociais, tornou-se um académico muito ativo no Reino Unido e nos Estados Unidos da América. Em 1951 e 1952 lecionou as prestigiadas Gifford Lectures e a partír daí, alguns anos mais tarde, publicou a sua obra prima Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy. Em 1958 Polanyi reformou-se da Universidade de Manchester e aceitou uma nomeação por dois anos (1959-1962) como Senior Research Fellow no Merton College da Universidade de Oxford. Daí até aos princípios dos anos setenta, Polanyi envolveu-se em multiplos projetos académicos, tendo sido investigador residente em várias universidades, onde lecionou cursos, e escreveu um numero surpreendente de ensaios e ainda vários livros. Os escritos filosóficos e económicos de Polanyi são tão impressionantes como os seus estudos científicos. 1 Ver “Rediscovering the Economic Film by Michael Polanyi (1940)”, por Eduardo Beira. Este e outros recursos relevantes sobre o pensamento político e económico de Polanyi na sua fase inicial são proporcionados por Beira em https://sites. google.com/site/ebeira/pol1b. 78


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Concluo este esboço biografico dando algum ênfase, uma vez mais, ao facto de Polanyi ter sido um cientistas de primeira água, assim como filósofo. Publicou mais de 200 trabalhos, para além dos seus múltiplos escritos como filosofo. William T. Scott, um dos biógrafos de Polanyi, era um físico e na sua biografia discute as múltiplas contribuições de Polanyi como cientista. O título dessa biografia Michael Polanyi, Scientist and Philosopher (Scott and Moleski, 2005) pretende chamar a atenção para esse duplo papel de Polanyi. É um livro que vale a pena ler, e que recomendo a qualquer pessoas interessada em Michael Polanyi2. 3. A PROCURA INDEPENDENTE PELA VERADE, A LIBERDADE POLÍTICA E A CONTROVÉRSIA BEM FUNDAMENTADA Tal como assinalei na minha introdução, neste ensaio apresentarei e comentarei um conjunto de citações estimulantes de Polanyi que identificam as “grande ideias” de Polanyi sobre ciência, tecnologia e desenvolvimento social. As primeiras duas citações enquadram as ideias fundamentais sobre as exigências sociais e culturais que Polanyi acreditava ser fundacionais para que os empreedimentos científicos e a cultura moderna possam florescer (e em que a cultura moderna muito deve à ciência): Destrói-se a ciência e, em geral, a busca independente da verdade, quando se perde a liberdade política... Pela sua própria natureza, esses pensamentos [religiosos, políticos e científicos] reclamam uma superioridade sobre o poder temporal... (Polanyi, 1937: 710)

2 A minha breve discussão biográfica baseia-se livremente em Scott e Moleski, 2005, especialmente nos seus primeiros sete capítulos (1-209). 79


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... a ligação entre ciência e liberdade é totalmente recíproca: enquanto que professar a verdade precisa da proteção da instituição livre da democracia, essas mesmas instituições entrarão em decadência e colapsarão se as pessoas deixarem de confiar na razão. A ideia de liberdade deriva a sua força de múltiplas raízes, mas há uma que é vital: a convicção de que os homens podem chegar a um entendimento superior através da discussão livre, de que a sociedade pode, de facto, ser continuamente melhorada se a vida pública for constantemente guiada por controvérsias bem fundamentadas. (Polanyi, 1937: 710).

Estes comentários apareceram numa carte de Polanyi publicada pela revista Nature em 1937. A carta de Polanyi foi escrita logo após o seu regresso de um congresso internacional em Paris, uma reunião em que os presentes estavam conscientes acerca das múltiplas formas em que os trabalhos da investigação cientifica estavam suspensos ou dependentes do eventual domínio da Europa pelo terceiro Reich. Esta citação clarifica várias convicções de Polanyi: 1. A ciência e uma sociedade guiada pela ciência precisam de acreditar na verdade. 2. A ciência e uma sociedade guiada pea ciência devem-se comprometer com uma procura independente da verdade. 3. Essa procura independente pela verdade exige a liberdade social. 4. A procura independente da verdade conduz, ou pelo menos deverá conduzir, aquilo que Polanyi chama “controvérsia fundamentada”, que é o veículo através do qual cresce o conhecimento e faz avançar a sociedade. Na sociedade acontece sempre uma controvérsia permanente e pública - uma discussão viva e fundamentada - que exige liberdade política. 80


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4. ORGANIZAÇÃO SOCIAL: PLANEAMENTO VERSUS SUPERVISÃO. O segundo grupo de temas de Polanyi, que eu acredito serem importantes, referem-se às ideias de Polanyi acerca da ordem social e da natureza problemática de muito do pensamento moderno acerca da ordem. Polanyi várias vezes contrastou aquilo que chamava planeamento e supervisão: ... a essência do planeamento é a absorção das ações executadas sob controlo de um único esquema compreensivo imposto por cima. É a coordenação destas ações por meio de linhas verticais de autoridade que impõe uma tarefa específica a cada unidade subordinada. (Polanyi, 1940: 35).

A supervisão pressupõe atividades humanas iniciadas por uma grande multitude de centros, e os seus fins regulam estes impulsos múltiplos de acordo com o seu interesse inerente... [Numa sociedade sã] o culto de múltiplas fontes dispersas de iniciativa é essencial e... as comunicações mentais abrem-se através de toda a comunidade. Os poderes de supervisão pública são de facto as salvaguardas vitais das forças independentes promotoras de iniciativas na sociedade, cuja integridade precisam de proteger contra a corrupção privada assim como contra a opressão pelas tendências coletivistas do estado. (Polanyi, 1940: 36).

Nos anos vinte, trinta e quarenta do último século, os cientistas, tecnólogos e muitos cidadãos estavam atentos ao que se passava na União Soviética e, embora um pouco mais tarde, também na Alemanha e na Itália. Polanyi argumentou que 81


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apesar das diferenças entre comunismo e fascismo, ambos têm muito em comum na forma como organizam a atividade humana. Polanyi considerava ambos como advogados de formas totalitárias de governo e também acreditava que muitos no Reino Unido, assim como os comunistas e fascistas na Europa, se tinham apaixonado por aquilo a que chamavam “planeamento”, termo que usava para assinalar uma forma de organizar a sociedade que presume que os seres humanos - e particularmente os governos - podem antecipar e controlar compreensivamente o futuro num ambiente complexo e dinâmico. Nalguns casos o planeamento envolveu a centralização da economia; noutros casos, o planeamento envolveu esforços para centralizar a investigação cientifica, o que Polanyi considerava ser um sopro de morte para a ciência. Polanyi distinguia cuidadosamente entre a investigação científica pura e a investigação aplicada, que procura produzir dispositivos ou processos tecnologicos particulares e que está diretamente ligada a factores económicos. Polanyi argumentou contra o movimento que nesse tempo pretendia eliminar a investigação pura a favor de uma investigação aplicada destinada a resolver objetivos particulares motivados por razões políticas. A promoção do desenvolvimento através da investigação pura e aplicada fazem parte do sistema científico moderno, em sentido amplo, e são importantes na criação da cultura moderna e da visão moderna do mundo. Mas Polanyi argumentou que era imperativo reconhecer as diferenças entre ciência pura e tecnologia. Polanyi contrapôs o ênfase filosófico e económico sobre o planeamento na sociedade desse tempo assinalando a importância do que chamou “supervisão” como uma estrategia social de longo prazo para cultivar as competências tradicionais, assim como a inovação e a mudança. Polanyi argumentou que uma sociedade sã deve cultivar diversas fontes dispersas de iniciativa através daquilo que ele chamou “poderes públicos de supervisão”, mais do que através do planeamento. A su82


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pervisão pública não é uma estratégia descendente, dirigida verticalmente, mas sim uma estratégia que funciona horizontal ou lateralmente. A supervisão pública assenta na comunicação aberta e defende tanto aquilo a que Polanyi chamou corrupção privada como as tendências do Estado para o excesso de regulação e controlo, mais do que permite que a evolução das tradições reconfigurem as práticas através das conversação pública dos praticantes.

5. ORDEM ESPONTÂNEA Quando se atinge a ordem entre os seres humanos, facilitando a interacção mútua das suas próprias iniciativas - sujeitas apenas às leis que se lhes aplicam de modo uniforme - temos um sistema de ordem espontânea na sociedade.... Esta auto-coordenação justifica a sua liberdade com fundamentos públicos. (Polanyi, 1951: 195).

Polanyi foi um pensador que realçou a importância de muitos sistemas de ordem dinâmica ou espontânea na sociedade, os quais dependem da chamada auto coordenação. Muitas tarefas sociais são executadas por pessoas que atuam num contexto de redes sociais relativamente autónomas e dinâmicas, ou seja, ou seja, dentro de redes de pessoas com competências e que interatuam entre si com um certo grau de independência e discrição. As atividades de muitos dos membros de uma ordem dinâmica são coordenados sem qualquer compulsão externa porque seguem os mesmos princípios orientadores e valores que promovem uma permanente conversação pública e uma auto transformação dessa ordem. As redes ou sistemas intelectuais, profissionais e culturais de ordem espontânea são os mais 83


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significativos na sociedade moderna, de acordo com Polanyi. A ciência e a operação do sistema legal são duas ordens dinâmicas que Polanyi cita como fundamentais para a configuração da sociedade moderna. A ciência investiga o mundo natural e social e procura compreendê-lo cada vez melhor através da investigação de pessoas treinadas e competentes, os membros da comunidade cientifica, que se envolvem permanentemente em controvérsias fundamentadas acerca da natureza das coisas. A ciência influencia de muitas maneiras a a visão do homem moderno. O sistema legal é também muito importante (e pode ligar-se com muitas outras ordens), sendo uma ordem espontânea que assegura a revisão cuidada e a extensão da lei que a sociedade usa para promover o ideal de justiça. Os participantes em ordens dinâmicas, como a ciência ou o sistema jurídico e legal, servem o que Polanyi classificou como ideais transcendentes, na sua primeira fase filosófica, como acreditar na verdade, num ideal ou num princípio orientador chave da comunidade científica. Polanyi também considerou a ordem económica como uma ordem dinâmica ou espontânea. Quando comparada com as ordens intelectual, profissional ou cultural, como a ciência ou a lei, a ordem económica é, no entanto, uma ordem competitiva mais simples, embora de ambito muito mais vasto, que se baseia na operação dos mecanismos de preços para fazer os ajustes dentro da ordem. O dinheiro permite a operação do mecanismo de preços através dos quais os mercados se reajustam por si mesmo, para o equilíbrio.

6. LIBERDADES PRIVADAS E PÚBLICAS Há muitas tarefas independentes que não têm qualquer relação entre si. Seja o que for que Robinson Crusoe tenha feito, isso em nada afetou os colonos solitários de 84


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outras ilhas. As tarefas independentes são necessariamente não-coordenadas, a menos que exista um mediador adequado dos ajustes mútuos que as relacione. Essas tarefas são atividades privadas, por contraposição com as atividades públicas independentes. O totalitarismo não objeta em princípio á liberdade privada, mas fundamentalmente nega todo o tipo de liberdade pública. (Polanyi, 1956: 237).

Esta citação clarifica as implicações da ênfase de Polanyi sobre as interações auto coordenadas em ordens espontâneas. Polanyi distinguia aquilo que chamava tarefas independentes, ou ações humanas sem relação mútua, e as ações humanas que se relacionam entre si. As ações humanas independentes incluem o que Polanyi designou de mediação, que as liga e que permite o seu ajuste mútuo. Os preços avaliados em termos monetários são um mediador na ordem económica espontânea do mercado. Numa ordem espontânea intelectual, como a ciência, o mediador é o interesse comum na natureza das coisas, o que permite que os resultados de investigação conduzidas por um individuo ou por grupos de cientistas possam ser refinados e reformulados através de controvérsias fundamentadas, como Polanyi lhes chamou. A ação independente de cientistas no trabalho de investigação, e a sua participação em conferências e publicações - nas conversações públicas entre si - constituem o que Polanyi designou como uma atividade pública independente. Para Polanyi as atividades privadas podem florescer mesmo nos regimes totalitários, mas as atividades públicas independentes são sempre controladas pelos governos totalitarios. Polanyi distinguia liberdades privadas e liberdades públicas. As liberdades privadas asseguram o livre envolvimento dos indivíduos em atividades privadas. No entanto as liberdades públicas asseguram ações individuais que promovem assuntos públicos. As liberdades públicas re85


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ferem-se ao direito e à responsabilidade que os indivíduos têm como cientistas para participarem nas conversações públicas sobre as questões cientificas e constituem um veículo para promover o bem comum. O exercício das liberdades públicas por pessoas que participam em ordens espontâneas particulares, como a ciência, promove tanto a estabilidade social como a transformação da sociedade.

7. OS PROBLEMAS DA MENTE MODERNA: CETICISMO, PAIXÃO MORAL E INVERSÃO MORAL. A filosofia pós critica de Polanyi tanto analisa como também procura reformar as inclinações da mente moderna que ele considerava serem a fonte de muitos dos problemas da cultura moderna. Polanyi identificou o que chamou “inversão moral” como uma tendência persistente da visão dos povos modernos. ... Um novo ceticismo destrutivo está ligado... [no mundo moderno] a uma nova consciência social apaixonada, a uma verdadeira descrença no espírito humano associada a exigências morais extravagantes.... [Muitas das desgraças do mundo moderno têm sido criadas pelo] cinzel do ceticismo guiado pelo martelo da paixão social. (Polanyi, 1951: 4).

[Porque é que] as grandes paixões morais do nosso tempo... se converteram em canais para uma violência tão destrutiva? A resposta pode apenas ser que não havia outro canal disponível. Um ceticismo radical tinha destruído a confiança na justiça e na razão. Rotulou essas ideias como meras super-estruturas, como ideologias 86


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ultrapassadas dos tempos da burguesia, como ecrãs de interesses egoístas por trás delas. E, sem dúvida, como fontes de confusão e de fraqueza para todos os que acreditassem nelas. (Polanyi, 1951: 5)

Polanyi argumentou que muita gente no ocidente sofre do que ele considerou ser um excesso de paixão moral, uma paixão moral que emergiu com a revolução da esperança representada pela revolução francesa. Devido à forma como a ciência moderna emergiu no ocidente, no século dezassete, e depois se desenvolveu, a visão do homem moderno incorpora um temperamento excessivamente crítico. Sentimo-nos hoje em dia ufanos de quão céticos somos na procura da verdade. Mas Polanyi argumentava que é acreditar, e não o ceticismo universal, que é a chave para o desenvolvimento do conhecimento e do progresso. Polanyi argumenta que a visão do mundo de muitas pessoas na moderna sociedade ocidental junta um ceticismo generalizado com uma grande paixão moral, numa ânsia irrealista por um futuro perfeito. É uma combinação envenenada. Polanyi sugeriu que o cinzel do ceticismo, dirigido pelo martelo das excessivas paixões morais, ajudou a criar o pesadelo da violência que assolou uma boa parte do século vinte. O ceticismo e a paixão moral erodiram o acreditar na realidade de valores sociais essenciais, como a existência de uma verdade independente, a importância da controvérsia fundamentada e a aceitação de ideais como a compaixão e a justiça. Estes valores sociais tradicionais,que ampararam a sociedade anterior, foram repudiados a favor de outros valores. Os povos modernos tendem a localizar a realidade última em forças como o poder, o interesse económico e os desejos subconscientes. Polanyi recomendou que devemos arrefecer e curar a mente moderna, a qual passou a valorizar em excesso as coisas tangí87


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veis. Insistiu que precisamos de ultrapassar a nossa tendência para deixar o cínzel do ceticismo ser martelado pelas nossas paixões morais de uma maneira que destrói o tecido da vida pública e privada.

8. REPENSAR O CONHECER, O CONHECIMENTO CIENTÍFICO E A OBRA DA CIÊNCIA A aceitação tácita e as paixões intelectuais, a partilha de um idioma e de uma herança cultural, a afiliação com uma comunidade de pessoas semelhantes, são os impulsos que configuram a nossa visão da natureza das coisas, na qual nos baseamos para a dominar. Nenhuma inteligência, por mais crítica ou original que seja, pode operar fora de um tal quadro fiduciário. (Polanyi, 1958: 266).

Vejo o conhecimento como uma compreensão ativa das coisas conhecidas, uma ação levada a cabo pela subordinação de um conjunto de particulares, como indícios ou como ferramentas, para conformar um resultado hábil, seja ele prático ou teórico. Podemos então dizer que nos tornamos “subsidiariamente conscientes” destes particulares dentro da nossa “apreensão focal” da entidade coerente que atingimos (Polanyi, 1958: xiii)

... o conhecimento humano é de dois tipos. Aquilo que se descreve usualmente como conhecimento, tal como se exibe em palavras escritas ou em mapas, ou em fórmulas matemáticas, é apenas um dos tipos de conhecimento; enquanto que o conhecimento não formulado, como 88


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o que temos no ato de fazer alguma coisa, é outra forma de conhecimento.... Chamamos ao primeiro conhecimento explícito e conhecimento tácito ao segundo... Podemos distinguir entre o que é pessoal, que entra ativamente nos nossos compromissos, e os nossos estados subjetivos, em que apenas refletimos os nossos sentimentos. Esta diferença estabelece o conceito de pessoal, que não é nem objetivo nem subjetivo. Na medida em que o pessoal se submete a exigências independentes reconhecidas por si mesmas, não é subjetivo; mas na medida em que é uma ação guiada por paixões individuais, também não é objetivo. Transcende a disjunção entre o subjetivo e o objetivo. (Polanyi, 1958: 300)

Como estas citações sugerem, os interesses filosóficos de Polanyi, nos anos quarenta, deslocaram-se em parte das questões sobre a organização da sociedade para questões mais amplas sobre a natureza da ciência e do conhecimento científico, o processo da descoberta científica e, de uma forma mais geral, a natureza do conhecimento. O que levou Polanyi a explorar estas questões filsóficas mais vastas está em parte sugerido nas últimas citações. Polanyi acreditava que muita da explicação habitual sobre ciência e conhecimento científico é profundamente enganadora. Os estilhaços culturais desta história corrente sobre a ciência acabou por configurar a mente moderna. Essa história tem dado uma importância excessiva à dúvida e ao impessoal. O filosofar construtivo de Polanyi virou-se assim para o projeto de repensar a ciência e o conhecer humano, pois pensava que uma melhor compreensão da ciência - e particularmente da descoberta científica, que ele considerava ser o coração da ciência - permitiria reformar ideais populares, mas enganadoras, acerca da ciência e do conhecimento na modernidade, quer de muitos cientistas como do público em geral. 89


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Mais do que focar-se na chamada objetividade e na impessoalidade do conhecimento cientifico, Polanyi enfatisou a natureza da inquirição científica como uma competência hábil e as habilidades extraordinárias de um cientista senior (habituado a formular e resolver um problema) ao fazer descobertas importantes. Polanyi argumentou que o cientista é a pessoa que cultiva, numa comunidade especializada, certas competências hábeis e ferramentas conceptuais que lhe permitem desenvolver uma percepção especializada. Assim Polanyi desenvolveu uma continuidade entre a percepção ordinária e a percepção especializada do cientista, que primeiro vê e depois resolve problemas científicos. Polanyi também deu ênfase a que a aplicação prática das competências sofisticadas de um cientista significa que muito do conhecimento científico e, de facto, muito de qualquer tipo de conhecimento, fica sempre por especificar. Polanyi retratou a ciência como um vasto domínio em que o trabalho dos cientistas numa vizinhança particular é uma inquirição disciplinada para compreender novas dimensões da realidade. Esta inquirição não é impessoal mas foi infundida com paixões intelectuais, que por sua vez a informam. Polanyi chamou “filosofia fiduciária” a essa nova visão da ciência e, mais geralmente, do conhecer humano articulado. Com isso significava que os cientistas são seres humanos envolvidos numa comunidade de pesquisa cujos membros estão apaixonadamente comprometidos com aquilo em que acreditam, sendo que muito daquilo em que acreditam não é especificável. Tudo o que conhece baseia-se no que Polanyi chamou elementos subsidiários ou incorporados - os elementos tácitos - que são usados para focar naquilo que é de interesse, ou seja, naquilo que está perante dos olhos da mente. Esse conhecimento tácito é aquele A PARTIR DO QUAL nós atendemos PARA aquilo que é do nosso interesse direto. O conhecimento científico - e na realidade todo o conhecimento, tem uma estrutura DE - PARA, no modelo de Polanyi. Uma pessoa adquire o seu 90


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reportório de elementos potencialmente subsidiários pela interação confiante com outras pessoas de uma comunidade de interesses semelhantes. Os cientistas e todos os seres humanos são criaturas que têm aquilo que Polanyi apelidou de “conhecimento pessoal”, embora tal conhecimento não seja caprichosamente subjetivo. O “conhecimento pessoal” é suportado pelo compromisso de uma pessoa com uma intenção universal - ou seja, é tal que uma pessoa acredita que outros investigadores que cheguem ao contacto com a realidade chegarão à mesma conclusão.

9. A VISÃO COMPREENSIVA DE POLANYI SOBRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE A tradição científica deriva a sua capacidade para a auto-renovação a partir da sua convicção na presença de uma realidade oculta, de que a ciência atual é um aspeto, enquanto que outros aspetos serão revelado s por descobertas futuras. Qualquer tradição que promova o progresso deve ter esta intenção: ensinar as suas ideias atuais como etapas que conduzem a verdades desconhecidas que, quando descobertas, podem divergir dos ensinamentos que estiveram na sua origem. Uma tal tradição assegura a independência dos seus seguidores ao transmitir a convicção de que o pensamento tem poderes intrínsecos, evocados no espírito dos homens pelas intimações das verdades ocultas. (Polanyi, 1966: 82)

De algum modo precisamos de aprender a compreender e assim tolerar - não destruir - a sociedade livre. É o único motor político até agora encontrado para nos li91


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berta na direção de significados cada vez mais ricos e completos, ou seja, para expandir sem limites o firmamento de valores sob os quais habitamos e que, por si só, dão um sentido à nossa breve existência moral, através da busca de tudo o que se relaciona com a eternidade. (Polanyi and Prosch, 1974: 216).

Toda o propósito da sociedade está em permitir aos seus membros prosseguir as suas obrigações transcendentes, em particular a verdade, a justiça e a caridade.... O avanço do bem estar [económico] parece não ser o verdadeiro propósito da sociedade, mas sim uma tarefa secundária que lhe é atribuída para satisfação das suas verdadeiras finalidades no domínio espiritual. (Polanyi, 1946: 83).

É a imagem de uma humanidade imersa em pensamento potencial que eu acho mais reveladora para os problemas dos nossos dias. Livra-nos do absurdo da auto-determinação absoluta, e oferece a cada um de nós uma originalidade criativa, dentro da área fragmentária que circunscreve a nossa vocação. Dá-nos os fundamentos metafísicos e os princípios organizativos de uma Sociedade de Exploradores. (Polanyi, 1966: 91).

Polanyi argumentava que os cientistas fazem contacto com a realidade, mas também sugere que a realidade mantém-se sempre parcialmente oculta. Apesar disso, componentes da realidade são revelados pelo trabalho de inquirição científica, o qual assenta sempre na tradição. As descobertas científicas correntes apelam a futuras descobertas que mostrarão uma realidade ainda mais rica, que os agora cientistas apenas podem reconhecer vagamente. A tradição é ensinada com o pro92


PHIL MULLINS

pósito de inspirar os mais novos, que acabam de entrar na comunidade científica, a reformar essa tradição, pois podem ver a natureza da realidade com mais profundidade. É por esta dinâmica curiosa de auto renovação, produzida pela confiança no respeito pela tradição e pelo acreditar na riqueza imensa da realidade, que o pensamento de Polanyi é tão importante para quem está envolvido nas profissões científicas. Para Polanyi a ciência é uma atividade com propósitos assentes na eternidade. A sociedade faz progressos através do trabalho dos cientistas, tecnólogos e outros que continuam a acreditar e a serem guiados por ideais transcendentes, como a verdade, a justiça e a compaixão. Apesar do seu optimismo acerca das perspetivas do homem, e em particular das perspectivas da ciência, Polanyi é um pensador que avisou que muitas correntes da cultura moderna poderiam vir a dar frutos amargos ainda durante a sua própria vida. A violência e a destruição foram notáveis durante o século passado. Para Polanyi o nosso potencial para a violência e para a destruição apenas pode ser corrigido pela reforma da imagem de nós próprios e das nossas atividades, como criaturas que conhecem e reconfiguram o mundo à nossa volta. Recomendava que devemos ter expectativas modestas sobre a nossa habilidade para transformar a sociedade e para criar um mundo melhor. Mas a imagem que nos deixou, na última citação, parece-me um sumário apropriado da sua esperança na humanidade, quando devidamente configurada pela ciência. Polanyi chama-lhe uma Sociedade de Exploradores, e numa tal sociedade o pensamento cresce pelos esforços criativos de pessoas que desenvolvem o seu potencial para inquirir sobre a vida e sobre o mundo.

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PHIL MULLINS

REFERÊNCIAS Polanyi, Michael, 1937. “Congès du Palais de la Découverte”, Nature, 140 (October 23, 1937): 710. _____. 1951. The Logic of Liberty, Reflections and Rejoinders. Chicago: University of Chicago Press. _____. 1958. Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy. Chicago: University of Chicago Press. _____. 1956. “Pure and Applied Science and Their Appropriate Forms of Organization”. Dialectica, vol. 10, no.3: 231-241. _____. 1964 [1946]. Science, Faith and Society. Chicago: University of Chicago Press. _____. 1966. The Tacit Dimension. Chicago: University of Chicago Press. Polanyi, Michael and Harry Prosch. 1975. Meaning. Chicago: University of Chicago Press. Scott, William Tausig and Martin X. Moleski, S.J. 2005. Michael Polanyi, Scientist and Philosopher. Oxford: Oxford University Press.

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SUBLINHAR POLANYI: COMENTÁRIO DE UM ENGENHEIRO Miguel Rosa Oliveira Panão



MIGUEL ROSA OLIVEIRA PANÃO

O

enquadramento providenciado pela filosofia da ciência de Michael Polanyi pode servir de orientação em relação ao modo como se faz Investigação Científica, recuperando o seu sentido original, isto é, o de uma experiência pessoal de procura da verdade sobre a Realidade. Neste breve comentário, baseado no meu sublinhar o trabalho de Polanyi, irei partilhar duas experiências acerca da importância do pensamento de Polanyi para o desenvolvimento da investigação científica (valor científico e metáfora do puzzle), explorar sucintamente o que poderia ser designado como a ‘arte de ensinar’, baseada na minha experiência em engenharia, e, finalmente, irei fazer algumas breves considerações acerca da Ética como condição fronteira no delinear de Políticas em Ciência e Tecnologia.

VALOR CIENTÍFICO Qual é (pode ser? deveria ser?) o principal impulsionador da investigação científica? Polanyi reconhece o estado geral de alerta nos animais, que não está direcionado para a satisfação de uma necessidade específica, mas meramente dirigido para a exploração do que está ao nosso alcance, algo que nos impele a atingir um controlo intelectual sobre o mundo que nos rodeia (Conhecimento Pessoal1, 2013, p. 135). Esse impulso e desejo de conhecer alimenta a paixão intelectual do investigador científico, e a partir dessa paixão emergem as teorias que exprimem como descrevemos e percecionamos a realidade. De 1 Doravante referido por CP 99


MICHAEL POLANYI

facto, de acordo com Polanyi, “a afirmação de uma grande teoria científica é, em parte, uma expressão de prazer. A teoria tem uma componente não articulada que aclama a sua beleza, isso é essencial para a convicção de que a teoria é verdadeira” (CP, p. 136). Isto evidencia a importância da experiência e compromisso pessoais em relação à teoria desenvolvida a partir da investigação realizada, e expressa pela associação da palavra ‘beleza’ com a paixão intelectual impulsionadora do empreendimento científico. Podemos ser levados a pensar que tal impulso ou motivação é meramente um sub-produto psicológico, mas não. Polanyi argumenta pela função lógica das paixões científicas como um “elemento indispensável para a ciência” (CP, p. 138). Uma função que permite averiguar o maior ou menor interesse de um argumento científico. Em última análise, essa apreciação depende do sentido de beleza intelectual (CP, p. 138) das teorias desenvolvidas, e a resposta emocional despertada no cientista, bem como na comunidade científica, que pode ser comparada à resposta obtida ao contemplar uma obra de arte. Isto aponta para a relação entre descoberta científica e visão da realidade. Enquanto que uma descoberta científica providencia uma resposta a uma lacuna no conhecimento sobre um determinado aspeto da realidade, produzindo, assim, conhecimento novo, por sua vez, informa também a nossa visão da realidade, dando-nos o enquadramento apropriado para interpretar todas as futuras experiências acerca dessa realidade. De facto, Polanyi argumenta que “a descoberta científica revela um conhecimento novo, mas a nova visão que a acompanha não é conhecimento. É menos do que conhecimento, pois é uma conjetura; mas é mais do que conhecimento, pois é uma antecipação de coisas ainda desconhecidas, e que no presente são, porventura, ainda inconcebíveis” (CP, p. 138). Por isso, é mais a “visão” que permite ao investigador avaliar a razoabilidade, e interesse, que certas questões têm de ser exploradas em ciência. Isso informa o sentido de valor em ciência que temos, quando apreendemos a beleza científica que subjaz 100


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à evidência que nos é apresentada e nos conduz a uma resposta sobre a mesma. Esta perceção do valor científico aponta para a necessidade de ter fatores concretos, ou critérios, que permitem a um investigador aferir esse valor. Considero este como um contributo interessante e importante de Polanyi. Ele apresenta três fatores que caracterizam o conceito de valor científico: 1. Certeza (precisão) 2. Relevância ou importância sistemática 3. Interesse intrínseco Como engenheiro, estes três fatores são essenciais para aferir a investigação científica e tecnológica, bem como o valor científico associado ao equilíbrio entre estes fatores. Por exemplo, se compararmos a investigação em física com a que é feita em biologia, verificamos que o interesse intrínseco em medir a trajetória das partículas é menor do que o de estudar os seres vivos. Porém, o primeiro tema implica maior precisão ou certeza do que o último, enquanto que ambos podem estar equilibrados quanto à sua relevância sistemática. Da minha experiência pessoal, medir o tamanho e velocidade de gotas em sprays não é particularmente interessante, mas a precisão com que essa medida é feita permite desenvolver as ferramentas necessárias para otimizar o design dos atomizadores e, subsequentemente, a eficiência dos sistemas que dependem de um processo de atomização apropriado e controlado (e.g. em motores de combustão interna, gestão térmica de equipamentos eletrónicos, aparelhos médicos). Para além disso, contribui para a relevância sistemática deste tipo de informação e inteleção física que desses resultados se pode tirar para a comunidade científica dedicada à investigação em atomização e sprays. Ainda, se considerarmos o que é pedido na revisão por pares de um artigo científico, ou na avaliação individual de um projeto de investigação, este três fatores são precisamen101


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te os critérios sugeridos por Revistas da especialidade ou Fundações de Ciência. Editoras como a Elsevier, Springer, Wiley&Sons, ou a Taylor & Francis, bem conhecidas na área da engenharia, pedem-nos para rever os artigos de acordo com a sua originalidade, estrutura e investigação anterior, sendo estes, precisamente, os três fatores sugeridos por Polanyi, embora com nomes diferentes nos termos: Originalidade Interesse intrínseco Estrutura Certeza ou precisão Investigação anterior Relevância sistemática Pode encontrar-se uma abordagem semelhante nos critérios de avaliação definidos para projetos científicos: Qualidade científica/técnica da proposta de projeto Relevância sistemática Implementação do projeto Certeza ou precisão Impacte socio-económico Interesse intrínseco Mesmo se não é explícito, isto evidencia como a caracterização que Polanyi faz do valor científico está embebida no modo como a investigação científica é avaliada no interior da comunidade de investigadores científicos. Para além disso, nos exemplos supramencionados de investigação em física e biologia, a certeza é compensada pelo interesse intrínseco, e vice-versa, de modo a que os fatores que caracterizam o valor científico de uma determinada investigação estejam sempre em equilíbrio2. Poder-se-ia argumentar que uma avaliação correta do valor científico em investigação assegura o progresso em ciência. Contudo, em Dimensão Tácita (DT, 2010, p. 87), Polanyi afirma que “o paradigma de todo o progresso na ciência: [é o de 2 ‹‹Os três critérios aplicam-se em conjunto, de modo que uma deficiência num deles é largamente compensada pela excelência nos outros.›› (CP, 139). 102


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que] as descobertas são feitas explorando as possibilidades sugeridas pelo conhecimento já existente”, implicando o desenvolvimento de uma metáfora interessante que vale a pena explorar, por complementar bem o motor principal da investigação científica (ou aquilo que devia ser esse motor).

METÁFORA DO PUZZLE Na coletânea de trabalhos intitulada Knowing and Being (KB, 1969, p. 51), Polanyi afirma que “a eficiência de um grupo de auxiliares excederá a de um membro isolado, na medida em que algum membro do grupo irá sempre descobrir uma nova oportunidade de adicionar uma peça do puzzle mais rapidamente do que qualquer pessoa, isoladamente, o fará por si mesma”. Este aspeto é importante para substanciar o que deveria ser - mesmo se estamos numa época de rankings, fatores de impacte das revistas com revisão por pares e número de publicações, - o principal impulsionador da investigação científica: a busca da verdade acerca da realidade. Se tomarmos a metáfora em consideração, a nossa compreensão da realidade é como um puzzle feito de pequenas peças do conhecimento descoberto através da investigação científica. De facto, quando uma observação é feita, produzindo novo conhecimento a partir do estudo dessa observação, seria como procurar o lugar onde se encaixa uma determinada peça no puzzle inteiro. Para fazê-lo é necessário olhar cuidadosamente para todas as outras peças de conhecimento que fazem parte do puzzle, de modo a colocar a nossa peça no lugar certo. A questão é: devo fazê-lo por mim próprio ou dentro de um grupo de investigação? Polanyi argumenta claramente a favor de uma abordagem relacional da investigação científica. Isto significa literalmente que o conhecimento é produzido mais 103


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rapidamente se for desenvolvido por uma comunidade de investigadores (ou grupo de investigação). Mas uma outra possibilidade é a de seguir uma abordagem histórica, isto é, a de que o conhecimento é produzido com maior eficiência se tomarmos em consideração o que outros investigadores fizeram no passado, procurando através das peças do puzzle que esses colocaram (pensando metaforicamente), em ordem a encontrar o lugar apropriado onde encaixar a nossa peça. O verdadeiro potencial desta metáfora reside em criar uma ponte entre tradição e inovação, enquadrando nova investigação dentro de outra realizada no passado, de um modo dinâmico e evolucionário. De facto, esta ponte informa o conhecimento do cientista e a sua prática, de tal modo que os desenvolvimentos científicos são encarados mais como uma forma de “arte exercida pessoal e intuitivamente por praticante especializados”3. Pode ser argumentado que esta compreensão da ciência como forma de “arte”, devolve ao cientista a sua verdadeira motivação para fazer investigação - a procura da verdade acerca da realidade - e não restringindo-a ao seu valor económico e financeiro. Esta relação entre ciência e arte não só influencia como é realizada a investigação, como também o modo dos cientistas e engenheiros serem educados. Inclusive, poderíamos considerar esta relação como a “arte de ensinar”.

ARTE de ENSINAR Polanyi afirma que “uma arte que não pode ser especificada em detalhe não pode ser transmitida por prescrição, pois não existe prescrição para isso. Pode apenas ser passada de mestre para aprendiz, através de exemplos.” (CP, p. 55). Esta percepção centrada no 3 Jacobs, S., “Michael Polanyi on the Education and Knowledge of Scientists”, Science and Education, vol. 9 (2000) pp. 309-320. 104


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“exemplo” evidencia o, anteriormente mencionado, carácter relacional da abordagem de Polanyi e levanta dois pensamentos relativamente à experiência de ensino quanto: i) à relação entre Professor e Estudantes; ii) e à relação entre Estudantes e a Disciplina lecionada. Com base na minha experiência pessoal, e na dos meus colegas docentes, gostaria de argumentar que a relação que um Professor estabelece com os seus Alunos define a relação que esses Alunos irão ter com a Disciplina ensinada. De facto, quando Polanyi afirma que “uma experiência de aprendizagem é uma experiência de ensino” (CP, p. 380), poderíamos interpretá-la como uma relação intrínseca entre ambas as experiências. Quando ensinamos, particularmente se somos chamados a ensinar uma disciplina pela primeira vez, a experiência mostra que temos de aprender a matéria em ordem a ensiná-la. Para além disso, pode ocorrer que, enquanto ensinamos essa matéria, clarificamos ainda mais a nossa compreensão daquilo que ensinamos. Por outro lado, sempre que é pedido aos estudantes que se envolvam no ensino de uma certa parte da matéria aos seus colegas - por exemplo, através de alguma experiência ou apresentação -, a não ser que façam uma experiência de aprendizagem, não estarão habilitados a ensinar como se pretende. Por isso, a perceção de Polanyi da relação intrínseca entre a aprendizagem e o ensino pode-se constituir uma linha orientadora essencial para a educação. Porém, podemos pensar sobre qual o tipo de processo cognitivo inerente a esta forte relação entre aprender e ensinar. Assim como argumenta Polanyi, se o conhecimento é pessoal, fundado sobre a experiência pessoal, o processo cognitivo interior é essencial para a abordagem que cada um tem de desenvolver conhecimento. É aquilo que Polanyi se refere como um processo de “interiorização”. “Interiorizar é identificarmo-nos com os ensinamentos em questão ... Confiar numa teoria para a compreensão da natureza é interiorizá-la” (DT, p. 30). É precisa105


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mente este “interiorizar” que assegura o sucesso de um estudante relativamente a uma certa disciplina. Contudo, Polanyi vai mais além e afirma que “ir de uma coisa para o seu significado é interiorizá-la, e ... ao invés, olhar para essa coisa é exteriorizá-la ou aliená-la ... nós conferimos significado a uma coisa interiorizando-a e destruímos o seu significado alienando-a” (KB, 146). Isto implica o envolvimento pessoal de um Professor no seu ensino, e dos estudantes na sua aprendizagem, de modo a que interiorizar seja “fazer-se um” com o outro, reciprocamente. “Fazer-se um” implica frequentemente o esvaziamento das nossas ideias porque as damos ao outro, logo, “criando espaço” interiormente para acolher também as suas ideias. Na reciprocidade, também o outro se desapega das suas ideias, de modo a acolher as nossas. Esta dinâmica expressa, claramente, o carácter relacional da compreensão de Polanyi sobre o processo de interiorização. Ainda, para assegurar a melhor experiência de aprendizagem através de um processo de interiorização, de novo, requer que os estudantes compreendam melhor o que implica ensinar. Isto apela a formas novas e inovadoras de aprender através do ensinar, o que está ainda para ser, criativamente, explorado nas universidades, particularmente quando se lida com turmas de mais de 50 ou 200 estudantes.

FAZER POLÍTICA em CIÊNCIA e ÉTICA Finalmente, gostaria de delinear algumas considerações acerca da Política em Ciência desenvolvida para progredir a Ciência. De acordo com Polanyi, este progresso é feito “explorando as possibilidades sugeridas pelo conhecimento já existente”. Logo, é razoável pensar que o desenvolvimento de políticas em ciência procure assegurar um elevado grau de plausibilidade dos empreen106


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dimentos científicos em direcção ao progresso da sociedade. Porém, a política em ciência opera numa fronteira delicada: a Ética. Será a Ética uma condição fronteira para fazer política em ciência? Quer isto dizer: será que estamos a usar a Ética para impor restrições ao desenvolvimento de políticas em ciência, de modo a observar como essa progride sob a égide dos seus valores? Ou será que a própria Ética é o terreno sobre o qual flui o desenvolvimento da política em ciência, de modo a apreender o seu progresso? Ou será antes que estes dois tipos de compreensão da Ética como condição fronteira não são mutuamente exclusivos, mas relacionados, providenciando espaço para que um terceiro tipo de compreensão possa emergir como a síntese dos anteriores. Em simples palavras, a Ética como fronteira pode ser vista na perspetiva de uma limitação ao desenvolvimento de políticas, ou na perspetiva da base sobre a qual essas se desenvolvem, ou ainda como condições de possibilidade, expressão que traduz tanto limitação como base. Poder-se-ia argumentar que, como limitação, a Ética assume uma postura topo-baixo (top-bottom), impondo. Enquanto que, como base, a Ética teria uma estrutura de condição fronteira que assume uma postura baixo-topo (bottom-top), apreendendo os valores no interior da política em ciência ao serviço do seu progresso4. Porém, se usarmos a metáfora de Polanyi do campo morfogenético, o desafio está em discernir qual é a chave hermenêutica de leitura de uma Ética assim concebida, isto é, como fronteira no sentido de condições de possibilidade. Relativamente à biologia, Polanyi afirma que “a teoria das condições fronteira reconhece os níveis de vida mais elevados como formando uma hierarquia, onde cada operação a um nível conta com os princípios dos níveis abaixo desse, mesmo quando o próprio é irredutível a esses princípios mais baixos” (KB, 233). No entanto, estes níveis estão inter-relacionados de uma forma hierárqui4 Estas ideas foram desenvolvidas a partir de Polanyi, “Life’s irreducible structure” em Knowing and Being, 1969, pp. 225-239. 107


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ca. Polanyi explora este aspeto para inferir sobre a evolução e a emergência dos seres vivos, afirmando que “os seres vivos compreendem toda uma sequência de níveis que formam essa hierarquia. Processos ao nível mais baixo são causados por forças da natureza inanimada, e os níveis mais elevados controlam-nos através de condições fronteira deixadas abertas pela natureza inanimada” (KB, 233-234). Por isso, as relações entre níveis são estabelecidas através de condições fronteira. De facto, assim como argumentado por Polanyi, “uma condição fronteira que apreende os princípios de um nível mais baixo ao serviço do novo e mais elevado nível, estabelece uma relação semântica entre os dois níveis. O mais elevado compreende as operações do mais baixo e, por isso, forma o seu significado” (KB, 236, meus negritos). Se considerarmos que a Ética possui a estrutura de uma condição fronteira como condição de possibilidade, e usarmos este aspeto como chave hermenêutica para ler o seu papel no desenvolvimento de política em ciência, a Ética não seria um fim em si mesma, ou o ponto de partida de qualquer política, mas a base, o processo, a relação semântica, o que forma o significado entre empreendimento científico e a política delineada para promover o seu progresso, considerando os diversos níveis de compreensão da realidade. Neste sentido, a Ética não determinaria, ou seria determinada pela política, mas providenciaria o campo morfogenético sobre o qual a política em ciência pode evoluir. Assumindo este raciocínio como razoável, a questão que daí emerge seria: qual o princípio central de tal Ética? A Ética assenta em valores. E os valores não podem ser medidos porque são “pessoa-culturalmente” dependentes5. 5 A pertinência deste aspecto reside no facto de estarmos a viver um tempo de sobrequantificação em ciência. Poderia-se argumentar que os valores não podem ser medidos, mas seguidos, e que o trabalho científico corre o risco de ser aferido de acordo com valores não partilhados entre revisores e “revistos”. Contudo, atualmente, esta é a melhor forma de avaliar os resultados científicos e como são produzidos. Isto poderá sugerir que os processos de revisão por pares combinados com alguma quantificação são adequados para suportar avaliações e processos em ciência, mas poder-se-ia questionar se essa quantificação deveria estar no centro desses (um agradecimento ao Hugo Horta por este comentário). 108


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E cada pessoa detém os seus valores na expectativa do seu conteúdo universal. Por isso, esse desejo de universalidade evidencia que, mais do que serem subjetivos ou objetivos, os valores são inter-subjetivos dadas as relações entre cientistas. De facto, ‹‹cada cientista que seja membro de um grupo de competências sobrepostas será também membro de outros grupos do mesmo tipo, de modo a que o todo da ciência seja coberto de cadeias e redes de vizinhanças sobrepostas.›› Michael Polanyi, Knowing and Being, 1969, p. 55

Subsequentemente, isto permite propor a relacionalidade como princípio central de uma Ética que impulsionasse o progresso da investigação científica através do desenvolvimento

de políticas. De facto, se o carácter relacional da ética aponta para uma universalidade, então, essa depende da relação entre as pessoas e de como experimentam os valores através dos relacionamentos, num fluxo dinâmico que vai da pessoa à comunidade de cientistas, e à sociedade, numa teia complexa de relacionamentos. O desafio consiste em saber quais as implicações de uma tal Ética centrada na relacionalidade em termos práticos, mas esse tópico está para além do objetivos do presente e breve comentário, sendo deixado para futuras reflexões.

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MIGUEL ROSA OLIVEIRA PANÃO

REFERÊNCIAS: CP: Polanyi, M., Conhecimento pessoal: por uma filosofia pós-crítica. Traduzido por Eduardo Beira. Lisboa: MIT Portugal / IN+ / Inovatec, 2013b. DT: Polanyi, M., A dimensão tácita. Traduzido por Eduardo Beira. Braga: MIT Portugal / U. Minho / Inovatec, 2010

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CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO PENSAMENTO DE MICHAEL POLANYI: POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PARA A POLÍTICA CIENTÍFICA CONTEMPORÂNEA Tiago Brandão



TIAGO BRANDÃO

«A ciência pura funda-se num tipo de poesia própria, que traz um tipo especial de satisfação intelectual. O técnico tem outros fins. Penso que é preciso dizer isso. Acredito que a nossa ciência europeia, o corpo clássico do conhecimento científico com que estamos familiarizados, nada tem a ganhar com a confusão entre ciência pura e aplicada.» [Clément Courty, comentário ao ensaio de Michael Polanyi, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização», 19551]

«The pursuit of science can be organized, therefore, in no other manner than by granting complete independence to all mature scientists. They will then distribute themselves over the whole field of possible discoveries, each applying his own special ability to the task that appears most profitable to him. Thus as many trails as possible will be covered, and science will penetrate most rapidly in every direction towards that kind of hidden knowledge which is unsuspected by all but its discoverer, the kind of new knowledge on which the progress of science truly depends. The function of public authorities is not to plan research, but only to provide opportunities for its pursuit. All that they have to do is to provide facilities for every good scientist to follow his own interests in science. To do less is to neglect the progress of science; to do more is to cultivate mediocrity and waste public money. Such principles have in fact essentially guided all well-conducted universities throughout the modern age.» [Michael Polanyi, The Logic of Liberty, 19512] 1 Michael Polanyi, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), p. 69. 2 Michael Polanyi, The Logic of Liberty. Reflections and Rejoinders, Liberty Fund, 115


MICHAEL POLANYI

Michael Polanyi3 foi químico proeminente, importante filósofo e sociólogo da ciência na história do pensamento ocidental – embora algo esquecido nos tempos que correm e até pouco lido em Portugal. Vem aliás já noutro contexto histórico e cultural a tradução da sua obra (Eduardo Beira, 20134), mas antes tarde que nunca e, por isso, só nos devemos congratular pelo empenho em divulgar em Portugal o seu pensamento. As circunstâncias do seu pensamento são diferentes ontem e hoje. No passado o peso da história teve sem dúvida uma influência assinalável nas suas posições. Tanto o contexto histórico como o cultural alteraram-se dramaticamente. A onda neoliberal, cavalgando as últimas reminiscências da identidade europeia, bem como a assunção generalizada dos pressupostos e princípios de uma globalização anglo-saxónica, vem ameaçar o edifício da ciência ocidental na sua matriz cultural europeia.Na história da ciência, Polanyi é sobretudo referido pelos historiadores como individualidade que polemizou com John Desmond Bernal5, deixando crítica contra o planeamento Indianopolis, 1998 (1.ª ed. 1951), p. 110 e s.. 3 Michael Polanyi (1891-1976) – Nasceu judeu húngaro, numa família de classe alta, formando-se pela Universidade de Budapest. Passará à Alemanha (Karlsruhe e Berlim), acabando por emigrar para a Grã-Bretanha devido à ascensão de Hitler. Figura que deixou contribuições em várias áreas, da física e química à economia e à filosofia. Fará carreira na Universidade de Manchester e será professor visitante em diversas universidades (eg Chicago, Stanford, Oxford). Conhecido pelos seus contributos para a filosofia da ciência, nomeadamente por ter teorizado sobre o conceito de conhecimento (tácito, explícito ou codificado, nomeadamente em Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy (1958). Foi também protagonista num debate importante sobre a liberdade da comunidade científica, polemizando com J. D. Bernal durante os anos 30 e 40, contra as lógicas de organização da ciência, publicando inclusive uma série de artigos em The Contempt of Freedom (1940) e em The Logic of Liberty (1951). Irmão de Karl Polanyi, autor do célebre estudo The Great Transformation. The Political and Economic Origins of Our Time (1944). 4 Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy, Innovatec (Portugal), MIT Portugal, 2013. 5 John Desmond Bernal (1901-1971) – Cientista e historiador da ciência britânico de assumida inclinação marxista. Desenvolveu trabalho na área da biologia molecular (cristalografia de raios X). De origem judia, formou-se na Universidade 116


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/ ‘planificação’ central de todo o género6, incluindo a área da investigação científica e tecnológica – Polanyi, aliás, opunha-se à visão científica do materialismo dialéctico7 e do regime soviético. Destacou-se no debate público por se posicionar como um defensor da liberdade científica, esse espírito livre de inquirição8, e do auto-governo da ciência, essa capacidade de auto-regulação que os mecanismos da República da Ciênde Cambridge, em 1922. Segue pesquisas sob orientação de Sir William Bragg no Davy Faraday Laboratory da Royal Institution em Londres. Em 1927 é apontado como lecturer em Cambridge, tornando-se director assistente do Cavendish Laboratory em 1934. Em 1937 torna-se professor de física no Birkbeck College, Universidade de Londres. Com a conflagração, Bernal entra para o Ministry of Home Security, apesar de se ter sempre assumido como um pacifista. Estará no centro de um debate sobre se a ciência devia ou não participar no esforço de guerra. Participou então no planeamento de diversas operações de guerra (eg D-Day). Escreveu alguns livros de história importantes, sobretudo para a história da ciência e da organização da ciência – eg The Social Function of Science (1939), tido como um dos primeiros textos de sociologia da ciência, e a obra Science in History (1954-, 4 vols.). Bernal é de facto conhecido como simpatizante socialista, tendo entrado para o CPGB, o Partido Comunista da Grã-Bretanha, em 1923. Nessa qualidade surge em 1931 num famoso encontro de história da ciência que contou com a presença de Nikolai Bukharin e Boris Hessen. Diz-se que Bernal terá mantido simpatias para com a União Soviética e mesmo por Estaline. O envolvimento terá chegado ao ponto de Bernal e alguns sectores da esquerda britânica terem apoiado a teoria de Trofim Lysenko, o que, posteriormente, terá prejudicado a sua reputação política. A BAAS – British Association for the Advancement of Science (1831, Grã-Bretanha) recusou mesmo a sua filiação. Bernal todavia manteve sempre uma postura de activismo político ao longo da sua vida profissional. Viria ainda a ser presidente do Conselho Mundial para a Paz (19591965). 6 Com todas as limitações que o planeamento soviético terá tido, sobretudo no sector da investigação científica, Polanyi desconfiava do carácter benévolo de semelhantes mecanismos de controle, não deixando inclusive de alertar para o impacto de um “regime intelectual draconiano”, das perseguições ideológicas e das purgas, ambiente que marcou a comunidade científica na Rússia. Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 40. 7 Polanyi observava: «O marxismo não admite uma distinção entre ciência pura, que procura encontrar a verdade por si própria, e a aplicação da ciência para fins práticos, porque todos os processos intelectuais são considerados igualmente determinados pelo modo de produção dos meios materiais de vida.». Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 15. 8 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 14. 117


MICHAEL POLANYI

cia proporcionariam, nomeadamente por via de uma avaliação entre pares assente no critério do interesse científico. Polanyi veio então, no significativo contexto dos anos 30 e depois no segundo pós-guerra, alertar senão mesmo denunciar uma mudança na opinião pública relativamente à visão que prevalecia sobre a ciência e o conhecimento de uma maneira geral. Assume então uma posição pelo amor ao conhecimento per si, pela busca da verdade, e denunciando a postura de utilidade perante o conhecimento, defendendo que as considerações “utilitaristas” não cabiam nas preocupações do verdadeiro cientista – veja-se que a Ciência para Polanyi não depende do seu uso, tem um valor em si, intrínseco. Perante os embates dos autoritarismos e do totalitarismo na Europa, com repercussões históricas em termos de industrialização (eg complexos técnico-industriais9) como da própria politização10 da ciência contemporânea, Polanyi acreditava que a preocupação dos cientistas deveria ser “restaurar os ideais científicos” (liberdade, verdade, originalidade, etc.) que vinham sendo desacreditados, em virtude também de certo anquilosamento a que tende a instituição universitária e respectivo corpo docente, como igualmente sob influência das sucessivas conjunturas bélicas que vieram despertar o paradigma tecnocientífico de organização da ciência. É aliás no quadro de cumplicidade de científicos com o poder político e o establishment militar – coniventes no terror da guerra total –, e igualmente perante a ansiedade e a histeria inspirada pela era atómica e pelos sucessivos desenvolvimen9

É vasta a bibliografia sobre a construção destes vastos complexos ‘militarindustriais-académicos’, sob impacto das conjunturas bélicas mundiais. Por exemplo, Thomas Hughes, American Genesis: A Century of Invention and Technological Enthusiasm 1870-1970, Penguin Books, [s. l.], 1990. 10 Lembre-se o exemplo do caso Lysenko, em que ficou patente a influência persistente dos dogmas marxistas na ciência soviética, em particular na evolução da genética. Loren R. Graham, Science in Russia and the Soviet Union. A Short History, Cambridge History of Science, Cambridge University Press, Cambridge, 2004 (1.ª ed. 1993). 118


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tos científicos e tecnológicos da Guerra Fria - tanto deslumbraram como alarmaram a opinião pública –, é neste cenário que devemos situar Michael Polanyi e em toda uma geração de cientistas que viveu não só a era dos fascismos e dos totalitarismos na Europa, que viu a reemergência do Ocidente no pós-guerra sob o paradigma da ‘civilização da alta técnica’ e da Big Science – cujo modelo de organização da ciência e da política científica se difundiu nos anos 50 e 60. Para toda esta geração, os novos ventos vieram colocar em causa os alicerces da ciência pura, vieram abalar a vida científica e os seus ideais e inclusive, no final de contas, ameaçar o cerne cultural de toda a civilização ocidental. Não esqueçamos ainda que no centro do clima de competição bipolar da Guerra Fria era claramente central a capacidade tecnocientífica dos dois blocos, uma luta que envolvia um debate quanto aos princípios e pressupostos da própria Ciência e da vida científica. Nestas linhas, enquanto historiador trabalhando sobre história da ciência e, muito particularmente, sobre a história das instituições e políticas científicas, gostaria de neste âmbito reflectir sobre as possíveis implicações, históricas e futuras do pensamento de Polanyi enquanto filósofo e sociólogo da ciência. Em concreto, gostaria que o leitor reflectisse e acompanhasse estas linhas tendo presente a seguinte questão: Quais foram e quais são – ou poderiam ser – as implicações do pensamento de Michael Polanyi nas práticas de política científica? Isto porque, apesar do ideário de autonomia da República da Ciência, desenganem-se aqueles que possam depreender que Polanyi estava contra a utilidade da política científica para o desenvolvimento da investigação. Polanyi chamou a atenção que qualquer dinâmica institucional, mormente de organização da ciência, teria de ter presente o papel proeminente dos valores e das crenças, surgindo a ciência aqui enquanto um sistema complexo de ideais; Polanyi porém nunca recusou a utilidade do papel do Estado, por mais liberal que fosse. 119


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Evidentemente, e ironias à parte, até à data não se conhecem, de partida, simpatias dos círculos políticos, ao menos em Portugal, para com o legado intelectual de Polanyi, seus pressupostos e preocupações no plano da economia política da organização da ciência contemporânea. Para alguns estudiosos da ciência e das políticas científicas na história, certamente Polanyi é bem conhecido enquanto membro da comunidade científica que argumentara em torno de vários pressupostos e suposições das políticas de organização da ciência – e muito em particular relativamente aos pressupostos marxistas-leninistas e mesmo socialistas de política científica, não obstante o tom mais moderado destes últimos, contrapondo então, por seu lado, uma visão que tinha como de essencialmente liberal. Como já mencionado, em torno de Polanyi é bem conhecido o seu debate com J. D. Bernal, autor do livro The Social Function of Science, individualidade que representa, numa dada geração, aqueles que assumiram posição pública mais inclinada e a favor de uma (re)orientação social para a ciência moderna e, no fundo, se entusiasmaram com as potencialidades que uma assunção do papel do Estado na área da investigação poderia trazer para o desenvolvimento da ciência. Em Polanyi, por seu lado, encontramos uma posição preocupada, e alarmada mesmo, perante as consequências que essa nova orientação poderia implicar. Assim, não sendo de facto contrário à necessidade e utilidade de uma “política de ciência”, em Polanyi o parâmetro da organização da ciência era, acima de tudo, o da liberdade: «the pursuit of science by independent self-coordinated initiatives assures the most efficient possible organization of scientific progress»11. Esta posição, podemos hoje retrospectivamente afirmar, estava já na altura em contraciclo com a tendência histórica de organização da ciência e dos processos nacionais de política científica, respectiva filosofia fundacional e racionalidades tecnocratas 11 Michael Polanyi, «The Republic of Science: Its Political and Economic Theory», Minerva, 38:1, 2000, p. 3. 120


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que foram acompanhando as experiências nacionais de formulação de políticas científicas – sobretudo a ‘geração’ de políticas que assumiram corpo a partir dos anos 50 60. Sobre essa tendência histórica da institucionalização e organização da ciência moderna, encontramos em Polanyi uma explicação. Tal fenómeno de organização central da ciência devia-se a dois factores: 1) a crescente confusão entre ciência e tecnologia, colocando mesmo em questão a divisão, no que as conjunturas bélicas vieram a aprofundar uma tendência que a Revolução Industrial já em menor medida anunciava; e, na mesma medida, 2) temos também a assunção pelo Estado de um papel mais amplo na governação da sociedade, vindo o poder estatal a mostrar-se crescentemente preocupado com a melhoria do padrão e qualidade de vida das populações.12 Significou este processo histórico um crescimento exponencial do aparato administrativo e governativo do poder central e, portanto, aquilo que também se pode referir como uma “governamentalização do Estado”, confirmando-se aquilo que já vinha sendo visível desde século XVIII, essa era de “governamentalidade” que a superação da crise de 1929 só veio confirmar, fortalecendo-se a prerrogativas de intervenção estatal.13 Polanyi vinha porém relembrar os princípios fundacionais da ciência moderna, posicionando-se no seio de uma disputa acesa sobre a visão de ciência na sociedade contemporânea, uma questão que nunca deixou de estar presente nos debates ideológicos do século XX. Em particular, Polanyi – um liberal, 12 Michael Polanyi, «Ciência: Académica e Industrial» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1961), p. 100. 13 Michel Foucault, «Governmentality», Lecture given at the Collège de France in February 1978, first transcribed and edited by Pasquale Pasquino, and published in 1978, pp. 87-104. Lectures at the College de France, 1977-78: Security, Territory, Population, Edited by Michel Senelart, General Editor Francois Ewald, translated by Graham Burchell, Palgrave Macmillan, Basingstoke, 2007, pp. 87104. Encontra-se igualmente na edição In Michel Foucault: The Essential Works, Volume 3, Edited by James D. Faubion, 2000, The Penguin Press, London & Harmondsworth, 201-222. 121


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atente-se14 – vinha recusar a “mão invisível” do mercado como ‘mantra’ orientador para a organização científica15, e ao invés propunha uma espécie de “mão invisível” enquanto ethos intrínseco à comunidade científica. Esse ethos era a verdade, a liberdade, a autoridade do conhecimento acumulado, combinado com a busca pela originalidade, e o auto-ajustamento dos cientistas aos trabalhos dos pares. Deste encadeamento 14 Neste ponto do pensamento liberal de Polanyi encontramos hoje, inclusive, uma dissonância com os pressupostos e influências de partida que se observam actualmente no tom supostamente neoliberal da política científica em Portugal, patente na base ideológica dos seus mais recentes actores e opinion-makers e na trilha que a política científica parece querer seguir nesta (semi)periferia europeia. Estas contradições decorrem igualmente das tensões entre o liberalismo clássico e o contemporâneo, como decorre igualmente das contradições entre liberalismo económico, liberalismo político e liberalismo cultural. É aliás curioso como a posição liberal de Polanyi surge formulada: «Para um liberal, a ciência representa, em primeiro lugar, um corpo de ideias válidas. (...)»; portanto, no seio da República da Ciência polaniana, as leis do mercado não precedem as ideias... Por exemplo, o liberalismo de Polanyi esclarecia, ainda, que «o apelo directo de um assunto [de âmbito técnico e ou ciência aplicada], por mais forte que seja, nunca por si só significa interesse científico»... A posição do liberalismo clássico relativamente à ciência na sociedade era então diametralmente oposta aquela que hoje encontramos nos novos arautos do liberalismo económico: «A sociedade cultiva a ciência como um organismo de ideias, capaz de atrair fortemente as mentes de pessoas inteligentes. A ciência como um todo, bem como os vários ramos da ciência, são avaliados por dois motivos combinados – o apelo intrínseco do sujeito objecto e o poder da interpretação teórica.». Assim, a sociedade cultiva a ciência para aumentar o repositório dos conhecimentos, pelo interesse científico dos problemas e só então «para aumentar o inventário de conhecimento disponível para aplicação prática.». Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 16, 18 e 23; Idem, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), p. 62. Sobre liberalismo e neoliberalismo veja-se: José Guilherme Merquior, O Liberalismo Antigo e Moderno, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1991 e AA.VV, The Road from Mont Pèlerin. The Making of the Neoliberal Thought Collective, Edited by Philip Mirowski & Dieter Plehwe, Harvard University Press, 2009. 15 Polanyi adverte mesmo quanto à dimensão “elusiva” que a “mão invisível” enquanto princípio organizativo da sociedade, tida inclusive como um dos maiores factores de risco “para a manutenção de uma sociedade livre”, um mantra, autêntica fórmula mística e ritual que vem justificando quer aspirações de controlo quer aspirações de desregulamentação criminosa. Michael Polanyi, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), p. 52. 122


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tomava forma a coordenação espontânea entre cientistas, que não resultaria assim de imposições de actores ou exigências externas. Dizia Polanyi: «Para serem eficientes no avanço da ciência como um todo, as tarefas de investigação individual independente devem ser coordenadas, e considerando o carácter independente das tarefas, a coordenação deve ser espontânea, e ocorrer através de um meio de suporte comum, que preencherá aqui as mesmas funções que o mercado faz num sistema livre de empresas. Este meio consiste na publicidade imediata dada aos resultados da investigação em combinação com a avaliação pública do seu valor científico por um consenso de opiniões científicas.»16 Portanto, o mecanismo de auto-coordenação assentava na avaliação feita entre pares, e não numa mera referência a valores imanentes; temos aqui parâmetros e critérios definidos no plano estritamente científico, a essência dessa “opinião científica”, que actuava durante a etapa de “divulgação”: «O agregado das actividades de investigação independentes guiadas pelo mesmo meio de divulgação e de opinião científica pode portanto ser vista como representando um sistema policêntrico de coordenação mútua que, como tal, não é possível que possa ser dirigido por uma única autoridade central.»17 16 Michael Polanyi, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), p. 57. 17 Polanyi relembrava ainda, para os mais receosos, e que porventura pensem que a vida científica não envolve rituais de avaliação: «Os subsídios públicos não são oferecidos aos cientistas individuais como tal, mas sim a cientistas como membros de um sistema de operação coordenada sob o controlo da opinião científica. O uso deste quadro para a distribuição de subsídios oferece salvaguardas tanto para os contribuintes, de que o seu dinheiro será gasto da melhor maneira, como para o cientista, de que a sua independência não terá interferências com a forma como os subsídios são alocados.» Michael Polanyi, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 123


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Para Polanyi devia ser claro que, a partir desta descrição da ciência enquanto sistema de ideais, «a investigação científica (...) não [poderia] ser desviada das suas necessidades internas pelas perspectivas de aplicações úteis – não mais do que a pesquisa empírica de uma vantagem prática se pode desviar para ter em consideração o possível interesse da ciência no resultado.»18 Portanto, se a ideia é “fazer” ciência, e não outra coisa, por mais engenhosa que seja em termos de manipulação dos conhecimentos (ie tecnologia)19, as regras de organização científica devem compreender a importância da liberdade criativa, o valor da opinião como do interesse científico e a forma como o conhecimento científico se constrói – para Polanyi, «o progresso é inteiramente derivado da liberdade» 20... Os perigos desta tentação de intervenção, direccionamento e, no final de contas, de controle por parte do Estado – ou da elite burocrata da área de C&T, como se diria modernamente –, tão característico de um certo modelo de política científica, já perfeitamente consolidado durante o período áureo da Big Science, fica bem patente no seguinte trecho de Polanyi: (texto de 1955), p. 58. 18 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 21. 19 A compreensão da distinção entre Ciência e Tecnologia é aliás um ponto central no pensamento de Polanyi. Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 19. Veja-se ainda, e sobretudo, o texto de Polanyi «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), pp. 45-62. Diga-se ainda que nem a percepção e consequente definição e delimitação que Polanyi elabora sobre “ciência tecnicamente justificada” o fez mudar de ideia quanto à indispensabilidade da política científica dever promover a ciência pura, desinteressada das aplicações e outras utilidades socialmente legitimas. (pág. 49) Para Polanyi, a tecnologia é e será sempre um “empreendimento comercial”; a ciência é essencialmente outra coisa completamente diferente. (pág. 55) Aliás, Polanyi argumenta mesmo ser “simplesmente impossível” adivinhar quais virão a ser as futuras aplicações técnicas de uma descoberta científica. Vide Michael Polanyi, «Ciência: Académica e Industrial» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1961), p. 101. 20 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 23. 124


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«A relutância em aceitar este facto, levando a tentativas de direccionar a investigação para resultados de possível aplicação prática, não pode senão levar a um crescimento de uma ciência sem grande valor. Uma política coerente conduzida sobre estas linhas conduziria na realidade a uma paragem no desenvolvimento de toda a ciência, e transformaria, de facto, os esforços agora dedicados à investigação científica em tentativas de descobrir soluções empíricas para problemas práticos.»21 E mais: «(...) Se uma política de dotar a investigação para fins práticos fosse universalmente adoptada, eliminaria o benefício que qualquer tarefa prática específica deriva agora do progresso geral da ciência. A ciência imediatamente chegaria a um impasse e as suas aplicações práticas esgotar-se-iam gradualmente.»22 Com efeito, verificou-se em vários países, entre os fins da década de 50 e os princípios da década de 60, uma demanda de maior coordenação, resultado da maior visibilidade do potencial de aplicação dos conhecimentos científicos e técnicos ao desenvolvimento das economias nacionais, o que forçou a mão do Estado no sentido de uma maior intervenção na condução directa de uma política científica integrada. Essa necessidade de maior coordenação, com evidentes intuitos de rendibilidade económica e social, apontou mesmo, na maioria dos casos, para a criação de organismos que procuravam gerir os recursos científicos, orientar a investigação e conseguir aplicá-la ao desenvolvimento económico e social.23 Com a afirmação das 21 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 22. 22 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 23. 23 Em Portugal, tivemos por exemplo, já no final deste ciclo, sob impulso do Eng.º Francisco de Paula Leite Pinto, a criação em 1967, do antepassado da Fundação 125


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novas agências de política científica, coincidindo com a afirmação de cliques tecnocráticas dentro dos aparelhos estatais, a organização científica pretendia ser colocada entre as primeiras prioridades nacionais – o que daria garantia de continuidade e empenho político, em termos estratégicos e de prioridade nacional, com repercussões, evidentemente, ao nível do fluxo de financiamento à investigação. De facto, parece claro que a questão da coordenação não era um assunto de mera organização administrativa, um mero assunto técnico e circunscrito a uma esfera tecnocrática. Recuperando uma reflexão que já expusemos24, podemos sistematizar a ideia estilizada de coordenação nos seguintes postulados: i) premissa da inovação; id est, a utilidade, simultaneamente de consumo e de produção, da investigação científica; ii) a introdução de novas práticas de gestão e administração (eg de um modo casuístico de administrar a ciência e a investigação para um modo planeado); no essencial significaria sobretudo a gestão dos recursos científicos; iii) no fim coloca-se então a geometriza institucional, pensada em termos de “sistema científico e tecnológico”. Compreende assim a coordenação, em ordem inversa à enunciada atrás, as lógicas da gestão, planeamento e inovação. Apontava a coordenação então para afirmar uma tentação anterior inclusive aos anos 50 e 60, a tentação de formular não só uma “política para a ciência” mas igualmente beneficiar de uma “política através da ciência”.25 para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a então designada Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT). 24 Tiago Brandão, A Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (1967-1974). Organização da Ciência e política científica em Portugal, Tese de Doutoramento sob orientação científica da Prof.ª Doutora Maria Fernanda Rollo, Instituto de História Contemporânea (IHC, FCSH-UNL), Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2012. 25 Tenha-se presente uma concepção moderna de política científica, em que devem estar, na realidade, presentes duas dimensões, segundo Jean-Jacques Salomon (autor de uma das definições de política científica mais abrangente), duas políticas na verdade, uma “política para a ciência”, cujo imperativo é fornecer o ambiente ideal às actividades, e uma “política através da ciência”, 126


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Todavia, em Polanyi, a utilidade da política científica, bem como da intervenção do Estado, não está em causa – até porque isso, bem entendido, significaria colocar em causa o financiamento da actividade científica. A questão conduz-nos aos contornos e orientação dessa intervenção. A reacção é contra os propósitos de «desviar [o investimento em investigação] para canais puramente utilitaristas»26, um curso que a gestão tecnocrata do pós-guerra persistentemente tem promovido, procurando, ao menos retoricamente, emparelhar a ciência com a evolução do “bem-estar” geral da sociedade. Para Polanyi essa intervenção deve ser no sentido de criar condições para a sociedade «cultivar o pensamento e não tentar dominá-lo»; o Estado «deve conceder aos seus cidadãos a licuja inclinação é explorar as descobertas. A dimensão da “política para a ciência” pretende criar um ambiente para as actividades de investigação, enquanto a da “política através da ciência” pretende explorar as descobertas e inovações em vários sectores que ao governo preocupam. Assim, podem identificar-se dois objectivos primordiais numa política científica, sem prejuízo da forma como foram seguidos: em primeiro lugar, permitir aos cientistas aumentarem os seus conhecimentos – pôr em prática uma “política para a ciência” –, e, em segundo lugar, permitir às autoridades públicas e privadas assegurarem a utilização dos conhecimentos científicos ou, de outra forma, orientar as investigações segundo critérios ideológicos, económicos ou políticos – pôr em prática uma “política através da ciência”. Neste aspecto, o convívio com os objectivos militares veio dar um importante impulso a esta dimensão da política científica. Jean-Jacques Salomon, «Science policy studies and the development of science policy» in Science, Technology and Society, Edited by Ina Spiegel-Rosing & Derek de Solla Price, 1977, p. 45 e ss.. 26 Polanyi intuía inclusive, como alguns estudiosos vieram confirmar, que o regime soviético, ao fazer sobretudo alarde de uma doutrina, teve depois de a fazer cumprir, auxiliando-se de um aparato propagandístico e seguindo ansiosamente uma política que permitisse provar que «os modos de produção determinassem os processos da vida intelectual» (Polanyi, 1939), explicando-se inclusive a tendência para um certo “gigantismo” na Big Science soviética. Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 31 e 35. Alguns historiadores têm já estudado a política científica soviética. Por exemplo, Paul R. Josephson, «Soviet Scientists and the State: Politics, Ideology, and Fundamental Research from Stalin to Gorbachev» in The Politics of Western Science, 1640-1990, Edited by Margaret C. Jacob, Humanities Press, 1992, pp. 103-128; ou Nikolai Krementson, «Russian Science in the Twentieth Century» in Companion to Science in the Twentieth Century, Edited by John Krige & Dominique Pestre, Routledge, 2003 (1st ed. 1997), pp. 777-794. 127


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berdade de se dedicarem à esfera das ideias (...)»27, referia ainda. O problema é que o próprio caldo democrático, a influência do marxismo e dos fascismos vieram legitimar o “menosprezo irónico”28 e a “desdenhosa rejeição”29 do ideal de ciência pura – a opinião pública continua aliás a alinhar facilmente com estas teses, manifestação particularmente visível em conjunturas de crise ou em sociedades em que predominem não só gritantes assimetrias e desigualdades sociais mas em que, igualmente, a própria comunidade científica se tem comprometido com o poder político.30 O resultado é o crescente sentimento de recusa do contribuinte em que o sistema económico pague cientistas “apenas pela procura da verdade”31. Nestas circunstâncias, temos então, por um lado, o discurso histórico marxista e, por outro, o discurso tecnocrata da coordenação32, das racionalidades economicistas, ambos contribuindo para erodir a autonomia da ciência pura, cada vez mais pressionada, ora para filiar o estudo dos problemas às questões sociais e políticas, ora para emparelhar-se a investigação científica com a ciência aplicada e subsequente desenvolvimento tecnológico, tendo em vista o aperfeiçoamento dos produtos e processos das empresas. 27 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 25. 28 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 23. 29 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 29. 30 Polanyi alude a estas situações: «(...) Nas partes do mundo onde não prevalece uma opinião científica sadia, a pesquisa estagna por falta do estímulo, enquanto que as reputações doentias crescem, baseadas em feitos comuns ou mera prosápia sem conteúdo. A política e o negócio jogam com a confusão das nomeações e das concessões de subsídios para a investigação. Os jornais tornam-se ilegíveis, incluindo demasiado lixo.» Michael Polanyi, «Ciência: Académica e Industrial» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1961), p. 110. 31 Michael Polanyi, «Direitos e Deveres da Ciência» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1939), p. 28. 32 É um discurso que, diga-se, antecede a onda neoliberal e neoconservadora e cuja sobreposição mais contemporânea está longe de ser linear. 128


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De facto, Polanyi alertara-nos já: se em situações de excepção a ciência poderia ser orientada para ramos justificados tecnologicamente, ou em termos de externalidades comerciais e sociais, será «preciso cuidado para não permitir que uma apropriação adequada da ciência pura, tal como cultivada pelos seus próprios fundamentos, possa ser posta em causa por reivindicações rivais de estudos com um maior valor prático.»33... Para alguns, esta posição tem sido identificada com a ideia de que “a investigação deve ser conduzida por si mesma como um fim em si mesmo”34... A questão, como se já vai depreendendo, não é porém tão simples assim, e creio que neste ponto é já evidente a percepção claramente reducionista do pensamento de Polanyi.35 Acrescente-se ainda como Polanyi oferece uma interessante e actual perspectiva analítica sobre a promoção da inovação tecnológica e do progresso científico: de facto, muito longe de se configurar como uma mera reacção de um científico isolado da sociedade, assente no mero idealismo, Polanyi reflectiu e teve em consideração os aspectos internos que caracterizam a relação entre Ciência e Tecnologia, entre ciência pura, ciência aplicada e tecnologias – mostrando inclusive a não linearidade do próprio processo de inovação, entendido como um processo sociocultural.36 33 Michael Polanyi, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), p. 59. 34 Id est: «research must be conducted for itself as an end in itself». Michael Polanyi, «The Republic of Science: Its Political and Economic Theory», Minerva, 38:1, 2000, p. 9. 35 A argumentação de Polanyi explora ainda o seguinte ponto, sobre as consequências que uma orientação de política poderia ter para estabilidade do progresso, tanto o científico como o tecnológico: «o valor científico da tecnologia sistemática é muito menos estável do que o da ciência pura, cuja apreciação não pode ser profundamente afectada por flutuações económicas. O nosso interesse justificável em tecnologia sistemática nunca nos deve deixar perder de vista o maior nível de universalidade do sistema de ciência pura.» Michael Polanyi, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), p. 60. 36 Michael Polanyi, Conhecimento Pessoal. Por uma filosofia pós-crítica, tradução de Eduardo Beira, IN+ Center for Innovation, Technology and Policy Research, IST 129


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Temos então que, por um lado, ao ler Polanyi nos nossos dias, tal como notou John Ziman, fica a sensação de estarmos sem dúvida a receber “uma carta de um mundo já perdido” 37 – esta observação, note-se, foi precisamente um comentário ao artigo de Polanyi “A República da Ciência”, texto originalmente publicado na revista Minerva (1962) – reeditado em 2000. Todavia, por outro lado, se para alguns as reflexões de Polanyi parecem datadas, e até equivocas em alguns aspectos, acreditamos que as suas premeditações e previsões sobre a organização da ciência deveriam ser revisitadas por muitos académicos, administradores de ciência, tecnólogos e até cidadãos de forma geral. Parece, portanto, pertinente questionarmo-nos sobre o que será interessante revisitar no seu pensamento para o estudo e compreensão das políticas de ciência, tecnologia e inovação, que perspectivas merecem ser revisitadas ou mesmo recuperadas para o conhecimento contemporâneo? Descontando “certas tonalidades platónicas” 38, podemos então enunciar alguns pontos interessantes. Em primeiro lugar, o valor intrínseco do progresso científico; mas também essa noção de que o respeito da sociedade perante o conhecimento não é algo garantido a priori. O “senso-comum” não é uma categoria estável; e neste aspecto urge pedagogia para uma melhor compreensão social do que é a Ciência. Reformulando, isto ainda nos relembra a dimensão cultural da ciência, transversal aos diversos domínios do conhecimento científico, das ciências puras e exactas às ciências sociais e humanas, que torna a Ciência uma marca indelével da civilização ocidental, não só pelo progresso material que proporciona, mas, muito (Lisboa), Inovatec (Portugal), MIT Portugal, 2013, p. 179 e ss.. 37 Id est: «a letter from a world we have lost». Michael Polanyi, «The Republic of Science: Its Political and Economic Theory», Minerva, 38:1, 2000, p. 21. 38 Expressão irónica de Sidney Hook, no comentário ao ensaio de Michael Polanyi intitulado «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), p. 63. 130


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antes inclusive, por causa dessa dimensão formadora, intelectual e cultural que eleva o homem à esfera do pensamento, aos grandes problemas do sentido do devir, da inteligibilidade da natureza e da própria sociedade, no passado como no presente. O legado intelectual de Polanyi alerta-nos pois para essa sensibilidade, não apenas para uma fixação com o output tecnológico. A Ciência deve ser fomentada desde a sua base, sob pena de se criarem constrangimentos a jusante e assimetrias comprometedoras; a ciência lida com a ignorância 39, grande flagelo social e das próprias políticas públicas.40 Em segundo lugar – sistematizando aquilo que devíamos reter do seu legado intelectual –, Polanyi aponta a capacidade de coordenação espontânea inerente à actividade científica. Isto é hoje particularmente interessante, nomeadamente quando histórica e contemporaneamente estivemos e continuamos obcecadamente a tentar criar mecanismos para o avanço da ciência... É aliás curiosa a ideia de que escolhas e medidas de estilo “top-down”, relativamente a domínios científicos, podem redundar em desequilíbrios estruturais, acabando por contrariar as lógicas intrínsecas do avanço / progresso científico. Para aqueles mais inclinados para intervenções “top-down”, há que relembrar que a mudança ocorre quando o capital humano é verdadeiramente investido de responsabilidade, autonomia ou poder de actuação. Para Polanyi, a realidade incontornável é que nenhum órgão de política científica, nenhuma “autoridade central” poderá “eficazmente” melhorar a “emergência espontânea de focos crescentes em ciência” 41. 39 Friedrich A. Hayeck em comentário ao ensaio de Michael Polanyi, «Ciência pura e aplicada e formas apropriadas de organização» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1955), p. 73. 40 Não quer dizer que não existam vícios ou se encontrem falhas numa “política para a ciência / política de ciência”; e não se pretendia, como referiu o próprio Polanyi, legitimar a subvenção dos “prazeres privados dos cientistas”. Michael Polanyi, «Ciência: Académica e Industrial» in Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, 2013 (texto de 1961), p. 111. 41 Id est: «central authority can effectively improve the spontaneous emergence of growing 131


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Terceiro ponto, e no final de contas transversal, é a necessidade, e dir-se-ia mesmo a urgência dos decisores responsáveis encontrarem forma de avaliar a economia política da ciência não apenas por via do prisma utilitário. Aqui está mesmo um ponto interessante, inclusive para se pensar em face da própria natureza da Democracia. Para Polanyi, a investigação científica não pode ser avaliada apenas em termos de “servir interesses puramente colectivos” 42, até porque essa valorização acaba sempre por acontecer em “termos de dinheiro” 43... Cremos mesmo encontrar aqui um desafio para as democracias, um desafio de repensar a despesa pública em ciência e inovação não apenas em termos de prestação de contas. Acredita-se mesmo que aqui está a lição central da filosofia de Polanyi, que, pelo menos, administradores e gestores de ciência bem como outros conselheiros devem ter bem presente.44 Quarto ponto, contribuindo o pensamento de Polanyi directamente para sublinhar a importância incontornável da infraestrutura científica, lembramos que a “escolha de objectivos estratégicos” sem consequente correspondência com massa crítica, escola científica, tal inconsciência ou orientação será o receituário de uma política científica fadada ao fracasso... De facto, uma formulação correcta de política científica, como tecnológica aliás, exige que se tenha em conta as opiniões e a experiência dos sujeitos que compõem a infraestrutura cientípoints in science» Michael Polanyi, «The Republic of Science: Its Political and Economic Theory», Minerva, 38:1, 2000, p. 12. 42 Michael Polanyi, «The Republic of Science: Its Political and Economic Theory», Minerva, 38:1, 2000, p. 13. 43 Michael Polanyi, «The Republic of Science: Its Political and Economic Theory», Minerva, 38:1, 2000, p. 4. 44 Eduardo Beira sintetiza mesmo o problema e a proposta de Polanyi: «(...) o grande aumento das exigências financeiras da ciência contemporânea gerou um problema de preservação da liberdade académica, mas cuja gestão poderia ser assegurada por um bom sistema de autorregulação da própria ciência, pelo menos relativamente aos financiamentos públicos à ciência.» Ciência e Tecnologia: textos de Michael Polanyi, tradução de Eduardo Beira, IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy, Innovatec (Portugal), MIT Portugal, 2013, p. vi. 132


TIAGO BRANDÃO

fica. Não chega “capacidade empresarial”, como não chegava uma “República da Ciência” alheada nas relações com restantes vértices – Governo e estrutura produtiva; há necessidade porém de capacidade criadora 45, bem como de discernimento crítico e qualitativo para que as decisões políticas em torno do processo inovativo sejam amplas e virtuosas... E, adiante-se mesmo: não há capacidade criadora sem contacto e compreensão do que é a prática científica – essa dimensão cultural da ciência que o nosso Augusto Celestino da Costa46, um dos primeiros administradores de ciência em Portugal, também bem compreendeu, captando o valor simultaneamente científico e pedagógico, essa faceta formadora da prática científica.47 Cremos então que, se, por um lado, se torna claro que não há pensamento estratégico sem essa capacidade de discernimento de que, no âmbito do “sistema científico”, todos os actores têm um papel, por outro, já sem infraestrutura científica não é de todo possível, como diria Celestino da Costa, regenerar a mentalidade das elites empresariais e políticas na sensibilidade para com o ethos da prática científica, num método 45 Jorge Sabato & Natálio Botana, «La ciencia y la tecnología en el desarrollo futuro de América Latina», Revista de la Integración, n.º 3, 1968, p. 8. 46 Augusto Pires Celestino da Costa (1884-1956) – Formado em Medicina pela Escola Médica de Lisboa em 1905, dedicou-se à investigação científica, sendo acompanhado e orientado por Marck Athias. Completou a formação em Berlim, entre 1906 e 1908, assumindo depois a cadeira de Histologia e Embriologia, por altura da criação da Faculdade de Medicina de Lisboa. Em 1929, assumiu a vicepresidência da secção de Ciências da JEN e, em 1934, foi nomeado presidente da Comissão Executiva da JEN, tendo sido ainda o primeiro presidente do Instituto para a Alta Cultura, em 1936. Em 1947 foi temporariamente afastado do ensino, em sequência da vaga de depurações académicas levadas a cabo pelo Estado Novo. A partir dessa altura dedicou quase toda a sua atenção à actividade científica, mantendo-se afastado de funções públicas de maior relevo. No início da década de 50 dirigiu ainda o Instituto de Investigações Endocrinológicas do IAC. Desde cedo se envolveu numa autêntica ‘cruzada’ pela organização da ciência em Portugal, nomeadamente defendendo a criação de uma entidade que promovesse e apoiasse a investigação científica em Portugal. 47 Augusto Celestino da Costa, A universidade portuguesa e o problema da sua reforma, Conferências feitas em 19 e 22 de Abril de 1918 a convite da “Federação Académica de Lisboa”, Tip. “Renascença Portuguesa”, Porto, [s. d.], p. 9. 133


MICHAEL POLANYI

como num pensamento tanto crítico como criativo; e sem isto a sociedade tenderá a diminuir a sua capacidade de resposta em face dos problemas e desafios do próprio devir histórico. Enfim, se alguns aspectos serão provavelmente melhor compreendidos hoje (eg alguns mecanismos de promoção da inovação, aspectos de geometria organizacional e funcionamento institucional, os próprios ‘pecados’ do meio científico – ‘endogamia e mandarinatos’ –, etc., etc.), há que não negligenciar aspectos que são estruturantes, esteios primordiais de qualquer “sistema científico”: não só a capacidade de formação e renovação do capital humano, mas igualmente a liberdade de pensamento como de actuação, pressupostos incontornáveis da capacidade criativa. Parece-nos claro que a sociedade que se preocupa com as gerações futuras deve apoiar a actividade científica. Por fim, a partir desta renovada sensibilidade para com o pensamento de Polanyi, seria sem dúvida de reclamar maior atenção para com personalidades que, igualmente, na história das políticas científicas ou até, estritamente, da filosofia da ciência, no deixaram interessantes reflexões sobre a organização da ciência e, afinal de contas, sobre política científica e tecnológica em diferentes realidades sociopolíticas e espaços histórico-geográficos. Seria ainda interessante ouvir a experiência de países, incluindo respectivas trajectórias históricas, como por exemplo Portugal e o Brasil, com diferentes experiências, económica e culturalmente falando e tendo em mente as respectivas identidades (semi)periféricas.48

48 Existe de facto um conjunto de individualidades, para muitos ainda desconhecidas, mas já identificadas e estando a ser estudadas pelos historiadores e filósofos das ciências, um trabalho que poderia ser de grande utilidade e para diversos propósitos, contribuindo para moldar a percepção dos decisores, afastando a tentação tecnocrática e burocrática e, deste modo até, contribuir para relembrar – sempre oportuno nos tempos que correm – como os modelos são resultado da experiência histórica, das ideias, e são sempre uma imagem simplificada, podendo apenas servir para mero auxílio à interpretação e formulação inicial das políticas públicas. 134


CONHECIMENTO PESSOAL E REPÚBLICA DA CIÊNCIA: UM ETERNO DEBATE A PARTIR DO PENSAMENTO DE MICHAEL POLANYI Carolina Bagattolli



CAROLINA BAGATTOLLI

1. INTRODUÇÃO

E

ste breve ensaio se dá em torno de dois pontos centrais da obra de Michael Polanyi: o conceito de Conhecimento Pessoal e a noção de República da Ciência. Partindo das contribuições contemporâneas de outros autores ligados aos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT), nos atrevemos a dizer que, embora Polanyi tenha identificado de maneira brilhante a existência de elementos de juízo pessoal na ação dos cientistas ao longo das atividades de investigação (desde a escolha do problema de pesquisa até a abordagem analítico-conceitual utilizada para a análise das evidências – o Conhecimento Pessoal) a sua defesa da República da Ciência como mecanismo de controle do desenvolvimento científico parece ser cada vez mais problemática na atualidade, principalmente em países periféricos e de desenvolvimento tardio.

2. O PAPEL DO CONHECIMENTO PESSOAL NO FAZER CIÊNCIA A partir do resgate de uma série de episódios históricos, como a experiência de Dayton C. Miller que contradizia princípios da Teoria da Relatividade de Albert Einstein, Polanyi demons137


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trou de maneira clara em seu livro Conhecimento Pessoal: por uma Filosofia Pós-Crítica (originalmente publicado em 1958) – assim como em outros trabalhos relacionados, de menor porte – como é falsa a ideia de que a ciência se baseia fundamentalmente em experiências metódicas passíveis de reaplicação por qualquer outro indivíduo. O seu argumento, de suma importância – embora ainda hoje pouco reconhecido, era de que a tão advogada objetividade científica, tal como comumente se atribui às ciências exatas, é uma ilusão (POLANYI 2013b). A sua rejeição do ideal do objetivismo científico fica expressa já no prefácio do referido livro, ao afirmar que a manutenção desse corolário acaba por exercer “uma influência destrutiva” em vários campos científicos e “falsifica a nossa visão global”. Polanyi mostra categoricamente como as decisões em todas as etapas da pesquisa científica são também atos pessoais, permeadas por juízos de valor do cientista. O que coloca como necessário o reconhecimento da existência de um viés pessoal que influencia a leitura da realidade e o posicionamento dos cientistas. Afirmava que “...há sempre alguns possíveis escrúpulos que os cientistas habitualmente põem de lado no processo de verificação de uma teoria exata. [e que] Tais atos de julgamento pessoal formam uma parte essencial da ciência” (Polanyi 2013b, 21). Polanyi questionava a definição objetivista da ciência, entendendo-a como sendo também expressão do conhecimento pessoal. Fundamentada na paixão e em crenças individuais, a ciência estava mais para um sistema de práticas sociais do que para um sistema racional de ideias. Ao conceber a ciência como um sistema de crenças, identificando o papel do conhecimento pessoal, desvelou a natureza das práticas científicas mostrando a não existência de regras estritas em torno da atividade científica – seja sobre como encontrar uma boa ideia para iniciar uma investigação, seja para “descobrir as coisas que aparecem juntas na natureza”, quais devem ser os melho138


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res testes de verificação ou, ainda, quando se deve “rejeitar uma aparente coerência como um facto”. Em cada uma das atividades inerentes à pesquisa científica, há uma parcela de juízo próprio do cientista que se compromete de maneira apaixonada (Polanyi 2013a; 2013b). A escolha de quais evidências devem ser utilizadas para justificar um argumento e quais são (consideradas) irrelevantes e devem ser descartadas é um julgamento de cunho pessoal do investigador, que ao fim seleciona para sua análise e argumentação os indícios que lhe façam sentido e não estritamente o que prediz uma determinada teoria ou referencial conceitual. Ademais, e ainda mais importante, nem sempre suas convicções em uma determinada leitura da realidade se baseiam em evidências empíricas específicas. Acreditar que a defesa de determinadas hipóteses por um pesquisador, (suspostamente) eleitas aleatoriamente, se dá linearmente a partir da acumulação de um conjunto de evidências que a respaldem é travestir o método científico de uma suposta objetividade que, a bem da verdade, não existe para além da intenção. Na visão de Polanyi, o que define se algo é científico ou não são, primeiramente, as convicções pessoais do cientista – no que se conta os ‘ideais’ e a paixão pela perseguição desses ideais, a busca pelo ‘rigor’, ‘verdade’, ‘universalismo’, etc. –, seguidas do aval da comunidade de pesquisa. O cientista seria, simultaneamente, juiz e júri e, embora siga uma série de critérios específicos, será o seu sistema de crenças que orientará sua decisão e posicionamento a respeito de quais são as variáveis centrais e o que é irrelevante acerca do problema ou fenômeno em questão. Isso significa que qualquer afirmação implica uma avaliação pessoal, e em certa medida subjetiva, “da nossa própria arte de conhecer”, e que qualquer alegação em termos de ‘verdade científica’ é diretamente dependente de um conjunto de critérios pessoais impossível de ser formalmente definido. 139


MICHAEL POLANYI

Desta forma, Polanyi enfatizava a necessidade de se reinterpretar o falso ideário de verdade impessoal, e independente da ciência, de forma a admitir e incorporar o caráter eminentemente pessoal a partir do qual se declara qualquer verdade científica (Polanyi 2013b). É importante destacar, mesmo que pontualmente, que essa defesa do papel do conhecimento pessoal na produção de ciência, marcante na obra de Polanyi, foi apropriada e ressaltada por economistas dedicados à análise do progresso técnico e da inovação, que a estendem para o caso da inovação tecnológica, apontando a importância do conhecimento tácito também neste processo. Embora a concepção de que teorias incapazes de serem provadas a partir de análises empíricas não possam ser consideradas teorias científicas de fato venha sendo há muito criticada, ela tem predominado no imaginário social a respeito da ciência desde o século XX, gerando uma série de implicações para diferentes disciplinas científicas. Mas embora este ideal do objetivismo seja de fato um absurdo, como bem destacava Polanyi (2013b), a crença em um suposto ‘desprendimento científico’ permanece na visão dominante de ciência, prejudicando o real entendimento do grau de complexidade das relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) (Bagattolli 2013).

3. REPÚBLICA DA CIÊNCIA: AUTONOMIA COMO PRINCÍPIO IDEAL MAS IRREAL Liberal e grande cético a respeito das mudanças políticas e econômicas que estavam ocorrendo na Rússia, desde a revolução bolchevique de 1917(AA.VV 2008), Polanyi deixa expressa ao longo de sua obra uma clara preocupação acerca do controle externo sobre a República da Ciência. Postura bastante com140


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preensível dado o momento histórico (pós-guerra) e o lugar do mundo (Europa/EUA) onde ele se insere. Neste contexto, no qual a preocupação central da comunidade de pesquisa era, em grande medida, manter a estrutura de fomento público ao desenvolvimento científico-tecnológico criada no período de guerra, mas sem a grande intervenção estatal na atuação dos cientistas característica do período. Esta análise contextual é central para uma leitura adequada das suas reflexões. Sua preocupação sobre os riscos a respeito da orientação da agenda de pesquisa orientada fundamentalmente pelos interesses do Estado, a exemplo do que ocorria na então União Soviética, foi expressa em diversos momentos da sua obra. Era um ferrenho defensor da liberdade acadêmica, do direito dos cientistas poderem escolher os seus próprios problemas de pesquisa sem intervenções externas. A liberdade era, a seu ver, a mais eficiente forma de organização da atividade científica uma vez que a ciência seria naturalmente conduzida de maneira organizada a partir dos esforços individuais e coordenados dos cientistas, desde que estes fossem livres para seguir suas próprias inclinações (Polanyi 1998). É a partir desta leitura que Polanyi propunha a organização dos cientistas em torno da República da Ciência, uma proposta em defesa da ciência liberal frente ao projeto soviético de uma ciência utilitarista e socialmente orientada à resolução dos problemas socioeconômicos. Proposição esta que tinha como uma de suas figuras mais proeminentes, com a qual dialoga ao longo de sua argumentação, John Desmond Bernal, com a sua obra The Social Function of Science. Polanyi reconhecia que o grau de complexidade que a ciência atingiu desde o período das guerras, e o consequente aumento dos recursos financeiros envolvidos, configurava-se como um risco à liberdade acadêmica. No entanto, acreditava que a organização dos cientistas em torno da República da Ciência, sem qualquer interferência subjetiva ou social, era 141


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suficiente para garantir a racionalidade do desenvolvimento científico. A seu ver, a gestão da ciência moderna “...poderia ser assegurada por um bom sistema de auto-regulação da própria ciência, pelo menos relativamente aos financiamentos públicos à ciência” (Polanyi 2013a, vi). E, assim sendo, qualquer questionamento ao desenvolvimento da ciência – processo que seria guiado, de maneira apaixonada, pela busca contínua por conhecimento e sabedoria – seria condenável. Sua concepção da República da Ciência era análoga à metáfora da ‘mão invisível’ que regula o mercado. Para Polanyi, assim como o mercado se autorregula desde que não haja intervenções externas – nomeadamente, do Estado –, existiria um sistema de coordenação espontânea entre a comunidade de pesquisa através do qual as tarefas de investigação individual independentes seriam coordenadas, auto ajustando-se, sendo o seu valor científico avaliado pela opinião científica. A opinião científica seria a grande responsável pela orientação e controle da atuação de todos os cientistas: “Enquanto a escolha do assunto e da condução da investigação é inteiramente da responsabilidade do cientista individual, o reconhecimento das suas reivindicações sobre uma descoberta está sujeito à jurisdição da opinião dos cientistas, como um corpo...” (Polanyi 2013a, 107-108). Polanyi acreditava que só por meio da manutenção de uma ciência livre, garantida sua autonomia para perseguir os seus objetivos espirituais, a ciência conseguiria distribuir generosamente os resultados do avanço científico por todos os homens (Polanyi 2013a). O Estado deveria atuar neste processo única e exclusivamente via concessão de recursos financeiros e criação da infraestrutura necessária. Em sua leitura, era vital que a ciência não fosse desviada do seu funcionamento natural por tentativas de orientação com vista a aplicações úteis. Estes esforços acabariam resultando na criação de uma “ciência sem grande valor”, refreando o desenvolvimento científico 142


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ao transformar “os esforços agora dedicados à investigação científica em tentativas de descobrir soluções empíricas para problemas práticos” (idem, p. 22). Essa dinâmica garantiria a boa conduta dos cientistas já que, embora os recursos públicos fossem acessados pelos cientistas de forma individual, este sistema coordenado sob o aval da opinião científica criaria uma salvaguarda importante para todos: por um lado, a sociedade em geral teria a garantia do bom uso do recursos público; por outro, os cientistas – cujas motivações estavam fundamentalmente na “atração peculiar exercida pela beleza da descoberta científica” – teriam respeitada a manutenção das suas atividades sem interferências (Polanyi 2013a). Embora, como já mencionado, a obra de Polanyi deva ser compreendida a partir do contexto histórico no qual se insere – marcado pela polarização entre o capitalismo no pós-guerra e as experiências comunistas –, é importante destacar o questionamento, que embora não seja recente vem ganhando força nas últimas décadas, de que as benesses do desenvolvimento científico não se distribuem de maneira igualitária entre a sociedade como um todo, principalmente entre as classes mais baixas. Uma situação que é ainda mais marcante em países periféricos e de desenvolvimento tardio como os latino-americanos. Estas, embora sejam as menos favorecidas, contribuem significativamente para o apoio público à ciência. Não se trata, é importante clarificar, de se advogar a favor do direcionamento da ciência ao atendimento das necessidades ou solicitações do Estado – preocupação expressa por Polanyi em passagens como “...As mesmas razões que paralisam a ciência por qualquer imposição da autoridade secular fazem com que toda a riqueza destes domínios se transforme em pó a partir do momento em que estão sujeitos às necessidades ou solicitações do Estado” (Polanyi 2013a, 24) –, e sim das necessidades de parcelas mais amplas da sociedade. 143


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É importante destacar que Polanyi reconhecia a possibilidade da opinião científica, por vezes, estar errada. O que acabaria, em consequência, por desencorajar trabalhos menos ortodoxos, mas marcados por grande originalidade e mérito. Embora afirmasse que estes riscos deveriam sempre ser tidos em consideração, acreditava que a República da Ciência era ainda a melhor forma de organização da atividade científica (Polanyi 2013a). Muito embora, em sua percepção, coubesse à opinião científica estabelecer os padrões dentro dos quais cada cientista levaria a cabo a sua vocação, não era seu dever controlar as promessas de nenhuma investigação ou cientista em particular. Todavia, desde os anos 1960 – período no qual a obra de Polanyi se insere – ganha corpo uma corrente crítica a esta concepção objetivista da ciência da qual Polanyi é nitidamente partidário. Diferentes autores inserem-se neste debate sobre as relações entre ciência, valores, interesses e poder. Dentre seus expoentes está Jürgen Habermas que, em seu famoso Técnica e Ciência como Ideologia, discorre sobre a relação entre conhecimento e interesse, apontando a existência de relações específicas entre as orientações lógico-metodológicas e os interesses que orientam a pesquisa (Habermas, 1968; Mattedi, 2006). O aumento da complexidade das atividades científicas, que vem desde o período de guerras, o consequente aumento dos recursos financeiros demandados para tais atividades, bem como o caráter cada vez mais especializado dos recursos humanos envolvidos, leva a uma politização cada vez maior do complexo científico-tecnológico. Na leitura de Habermas, “... as formas de dominação política contemporâneas encontram na ciência e na técnica, convertidas em consciência tecnocrática, uma nova forma de legitimação; afinal, é sempre em nome do conhecimento científico e da adequação técnica que as decisões são tomadas” (Mattedi 2006, 121). Ao configurar-se como a forma de conhecimento de autoridade legitima144


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da a ciência acaba assumindo também o papel de ideologia (Habermas 1968). As reflexões de Michel Foucault (1987) também ajudam a qualificar esta reflexão. Ao correlacionar saber e poder, Foucault explicita o caráter assimétrico das relações entre conhecimento e contexto social, relações que são mediadas por mecanismos de dominação e de controle inerentes a cada forma de saber e que moldam a percepção dos indivíduos e da sociedade (Mattedi 2006). Pierre Bourdieu vai além, desconstruindo o ideário de autonomia e liberdade acadêmica a partir da sua análise dos campos científicos, entendendo estes como sendo um “sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores)”. Tratam-se de espaços de disputa acerca do monopólio da autoridade científica – vista como sendo produto indissociável da capacidade técnica e do poder social –, de legitimidade socialmente outorgada. O próprio funcionamento do campo científico supõe, produz e reproduz uma forma específica de interesse por parte dos cientistas (Bourdieu 1983). Para Bourdieu, estando todas as práticas científicas orientadas à aquisição de autoridade científica, expressa no prestígio e reconhecimento que um indivíduo possui dentro da comunidade, o interesse de um cientista em determinada atividade científica, bem como suas estratégias para alcançar seus objetivos, teriam sempre duas faces sendo praticamente impossível distinguir entre as determinações ‘científicas’ e ‘sociais’ das práticas científicas. Como reconhece Polanyi ao discorrer sobre o conhecimento pessoal, um cientista dedica-se à pesquisa em temas que ele próprio considere importante. Todavia, como destaca Bourdieu, ‘satisfação intrínseca’ não é sua única motivação, tampouco parece que “…o progresso da ciência se pode basear unicamente na atração peculiar exercida, em certas pessoas, pela beleza da descoberta científica...” (Polanyi 2013a, 103). “O 145


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que é percebido como importante e interessante é o que tem chances de ser reconhecido como importante e interessante pelos outros; portanto, aquilo que tem a possibilidade de fazer aparecer aquele que o produz como importante e interessante aos olhos dos outros” (Bourdieu 1983, 125). Isso porque um avanço em campos considerados mais importantes pela opinião científica geram um lucro simbólico mais importante do que descobertas em áreas de menor prestígio. Embora, como bem apontava Polanyi, o conhecimento científico não perca sua validade em decorrência de possíveis mudanças no valor relativo das coisas – “Se os diamantes se tornarem tão baratos como o sal é hoje em dia, e o sal se tornar tão precioso como os diamantes agora são, isso pode afetar o interesse do seu estudo, mas não invalidaria qualquer parte da física e da química dos diamantes ou do sal...” (Polanyi 2013a, 116) – é o campo científico, no jogo pela disputa política pela dominação científica, ‘que distribuí’ os problemas de pesquisa a cada investigar, consoante a sua posição e prestígio. Contrariando Polanyi, para quem a definição dos temas de pesquisa se daria basicamente a partir do interesse e curiosidade pessoal por determinadas áreas de conhecimento, Bourdieu é categórico ao afirmar que “não há “escolha” científica – do campo da pesquisa, dos métodos empregados, do lugar de publicação... que não seja uma estratégia política de investimento objetivamente orientada para a maximização do lucro propriamente científico, isto é, a obtenção do reconhecimento dos pares-concorrentes” (Bourdieu 1983, 126-127). O exemplo dado por Polanyi – das consequências de um possível barateamento no preço dos diamantes – mostra, na verdade, como os valores (dos mais diferentes tipos como econômico e social) influenciam de fato na orientação da agenda de pesquisa. Os campos científicos organizam-se a partir de uma certa hierarquia, que influencia diretamente as “escolhas de vocação”, os objetos de pesquisa e os métodos empregados. Es146


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tando a definição dos critérios de julgamento e os princípios de hierarquização em jogo “ninguém é bom juiz”, já que os cientistas acabam configurando-se simultaneamente como juiz e parte interessada. A autoridade científica, o que está em causa no jogo dentro dos campos científicos, é uma espécie de capital que pode ser acumulado, transmitido e até reconvertido em outros tipos de capital. Todo cientista depende diretamente da sua reputação no seio da comunidade de pesquisa para a obtenção de recursos, subvenções e bolsas; formar uma de equipe de pesquisa de excelência; ser convidado para atuar como consultor e receber todos os tipos de prêmios e distinções, como o próprio Prêmio Nobel. “O mercado dos bens científicos tem suas leis que nada têm a ver com a moral” (Bourdieu 1983, 133). Sendo desigual a distribuição do capital científico dentre os pesquisadores, a apropriação dos frutos da atividade de pesquisa por parte dos investigadores também não se dá de maneira igualitária. É a distribuição do capital científico em um campo científico que determinará, em última instância, os cientistas dominantes – que ocupam as mais altas e prestigiadas posições – e os dominados – invariavelmente, os novatos ou dedicados às áreas de conhecimento menos prestigiadas. Para Polanyi, a garantia da liberdade acadêmica garantiria de maneira tão eficaz a exploração das oportunidades de descobertas a tal ponto que muitas vezes uma mesma descoberta científica é feita em simultâneo por dois ou mais cientistas diferentes (Polanyi 2013a, 180). Mas situações como essa, que para Polanyi são indicativas de eficácia, são, na verdade, encaradas por outros autores como desperdício de esforços: “Aquele que chega a uma descoberta algumas semanas ou meses depois do outro despendeu seus esforços em pura perda, seus trabalhos se reduzindo ao estatuto de duplicação sem interesse de um trabalho já conhecido” (Bourdieu 1983, 131). A solução de compromisso proposta por Bourdieu (2004) 147


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é de que abandonemos as linhas de interpretação extremistas, evitando tanto as correntes internalistas, que se reportam à dinâmica interna da produção do conhecimento, quanto as externalistas, que subordinam a produção científica exclusivamente ao contexto. Tratar-se-ia, portanto, de evitar a adoção de posturas reducionistas – sejam as que avaliam a ciência como uma atividade plenamente livre e independente de qualquer necessidade pessoal, sejam as que a consideram como uma atividade exclusivamente a serviço de demandas econômicas e políticas. Entre estes dois extremos há uma série de orientações possíveis, nas quais haveria uma autonomia parcial, mais ou menos marcada, garantida aos agentes e instituições dedicados ao desenvolvimento da ciência. Dominique Pestre (2005) posiciona-se de maneira bastante próxima à de Bourdieu. A seu ver, estas críticas em relação à sua independência e seriedade levam a comunidade de pesquisa a sentir-se atacada e ameaçada, crente de que qualquer tentativa de direcionamento irá comprometer a neutralidade intrínseca da ciência, suas virtudes e seus potenciais. Em situações como esta é comum ouvir-se lamentos saudosistas com relação à idade de ouro que já se foi, quando a ciência (supostamente ao menos) tinha reconhecido o seu lugar enquanto promotora do domínio racional da natureza e do desenvolvimento humano. Embora o período ao qual esse passado de ouro se refere seja sempre algo indefinido, as narrativas comumente remetem aos anos 1930 – momento em que o estímulo ao desenvolvimento científico alcançou um patamar até então nunca visto, com grande liberdade de escolha da agenda de pesquisa por parte dos próprios cientistas. Todavia, para Pestre, embora haja uma parcela de verdade nesta narrativa, este episódio histórico envolve também outra situação, bem menos lembrada: o fato de que a maior parte do financiamento vinha dos setores militar e industrial. E, ademais, “se os cientistas dispunham então de tal liberdade, é precisamente porque eles sabiam ser capazes 148


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de ajudar a ganhar as guerras e que eram, em consequência, uma “espécie” a mimar e proteger!” (Pestre 2005). Para Pestre, mais do que nunca, é necessário que os cientistas compreendam a importância de se abandonar esta falsa ideia de isolamento natural da ciência, esta convicção na suposta neutralidade científica, na sua superioridade enquanto atividade humana – que a colocaria acima de qualquer contingência política e social, fazendo com que qualquer demanda por prestação de contas seja considerada uma heresia uma vez que os cientistas trabalham pelo bem da humanidade. Reforça a influência e o caráter eminentemente político que a ciência possui ao declarar que “...A ciência é deste mundo, o é mais do que nunca, participa nas escolhas da sociedade, enclausura algumas possíveis e pode impor outras, e não resulta surpreendente, em termos de princípios, que a sociedade intervenha para promover alguns desenvolvimentos que jugue essenciais ou evitar outros que julgue perigosos...” (Pestre 2005, 127). A concepção de que é de suma importância manter a independência dos cientistas é amplamente aceita, não apenas entre a comunidade de pesquisa como também entre a sociedade de maneira geral – o que fica evidente, por exemplo, nas grandes pesquisas de percepção pública da ciência (Bagattolli 2013). Todavia, como ressalta Pestre, embora a autonomia seja, enquanto intenção, um princípio ideal ela é, na realidade, inaplicável. Para que os cientistas fossem plenamente independentes eles precisariam estar totalmente isolados da sociedade, o que, no extremo, os levaria inclusive a perder contato com seus temas de pesquisa. Jean-Jacques Salomon (1974) sintetiza esta discussão ao afirmar que o ideário da existência de uma “ciência pura”, “isolada em sua torre de marfim”, vem sendo cada vez mais questionado nas últimas décadas pelo desvelamento das relações entre saber e poder, onde a inexistência de fronteiras rígidas, entre estas esferas, é cada vez mais evidente. 149


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Como afirmam autores como Daniel Sarewitz (1996), Renato Dagnino (2008) e Heather Douglas (2009), embora questionamentos nesse sentido não sejam recentes – fortalecendo-se significativamente no período mais recente – o ideário da autonomia científica se encontra ainda bastante arreigado. O problema é que, ao se preservar essa racionalidade, acaba-se permitindo a manutenção de uma dinâmica que preserva as estruturas de poder existentes no sistema científico, onde a comunidade de pesquisa desempenha um papel central – chegando mesmo a ser dominante e hegemônico em alguns países, principalmente nos periféricos –, dificultando ainda mais o entendimento da real complexidade das relações entre CTS. Essa racionalidade prevalece também na formação de novos pesquisadores, uma vez que o conteúdo da educação científica é decidido pela própria comunidade de pesquisa, que também orienta os seus cânones e trâmites. Novamente, um problema ainda mais significativo no casos dos países periféricos como os latinoamericanos. Onde, como colocam Rafael Dias & Dagnino (2006), a gravidade dos problemas sociais exige justamente uma postura mais crítica por parte da comunidade de pesquisa sobre a adequação dos conhecimentos localmente produzidos para a superação das mazelas sociais. Por fim, mas não menos importante, vale salientar que a prevalência do ideário da autonomia também serve como mecanismo de legitimação, permitindo à comunidade de pesquisa manter sua boa imagem perante a sociedade – sempre associada a valores como honestidade, desinteresse, ética e qualidade (asseguradas pelo rigoroso processo de avaliação por pares), humildade e coragem para defender teorias e seus achados científicos, como destaca Hugh Lacey (1999). Além disso, ao difundir os imperativos da ciência, via educação científica, e garantir que apenas aqueles que os aceitem possam integrar o complexo de ensino e pesquisa, o mito da autonomia possibilita a manutenção da crença na neutralidade e na impar150


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cialidade da Ciência e da Tecnologia (C&T) (Dagnino, 2008a).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora a análise de Polanyi acerca da ciência enquanto um sistema de crenças seja de grande importância e continue sendo explorada por outros autores mais contemporâneos, ela parece ainda pouco considerada nos dias de hoje. Ao discorrer sobre o etos científico e o processo de conformação da agenda de pesquisa, Polanyi sublinha o papel proeminente que a comunidade de pesquisa possui neste processo ao destacar como os cientistas definem sua agenda de trabalho em consonância com seus valores e interesses, de forma coordenada e cooperativa com os demais membros da comunidade – o chamado ‘princípio de coordenação espontânea de iniciativas independentes’. Meio século depois, embora a discussão sobre o papel da comunidade científica na conformação da agenda de pesquisa se tenha ampliado e aprofundado, esta análise parece ser ainda negligenciada não apenas por uma parcela significativa dos fazedores de política – resultando em uma série de medidas de política ineficientes – como também por um número não desprezível de analistas de política, que acabam reduzindo a análise sobre a ineficiência de determinadas medidas e orientações de política a ‘problemas de implementação’. Mas, embora a sua análise sobre o papel do conhecimento pessoal nas atividades científicas seja de grande relevância e atualidade, a avaliação de Polanyi acerca das motivações dos cientistas, que restringir-se-iam fundamentalmente à curiosidade e simpatia com determinadas áreas, e de que, assim sendo, a República da Ciência figura como a melhor forma de organização possível da atividade científica, parece ser cada vez mais frágil. 151


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Por trás do ideário da autonomia está a crença de que qualquer linha de pesquisa, desde que conduzida com ética e seguindo as regras de qualidade a partir do julgamento por pares, gerará benefícios para a humanidade. A manutenção desta perspectiva acaba blindando a Política Científica e Tecnológica de uma participação efetiva dos demais atores sociais. Se a autonomia das instituições orientadas à produção científica e tecnológica é uma condição necessária para garantir a neutralidade e a imparcialidade da C&T com relação a interesses específicos e influências políticas, então os demais atores sociais não deveriam intervir no seu funcionamento. Dinâmica que acaba preservando o papel dominante da comunidade de pesquisa no processo da política e impossibilitando que a sociedade, ao fundo o grande financiador destas atividades, intervenha no intuito de promover os desenvolvimentos que julgue essenciais ou evitar outros que julgue perigosos. Situação ainda mais marcante na periferia do capitalismo, onde a gravidade dos problemas sociais exige justamente uma postura mais crítica com relação ao desenvolvimento científico e tecnológico e a adequação dos conhecimentos localmente produzidos para a superação das grandes mazelas sociais.

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