coordenação Eduardo Beira 1
PROJETO FOZTUA coordenadores ANNE MCCANTS (MIT, EUA) EDUARDO BEIRA (IN+, Portugal) JOSÉ M. CORDEIRO (U. Minho, Portugal) PAULO B. LOURENÇO (U. Minho, Portugal) www.foztua.com
ISBN: 978-989-98659-4-5 Design gráfico e paginação, incluindo capa, por Ana Prudente Editado e impresso por Inovatec (Portugal) Lda, V. N. Gaia, Portugal Encadernação e produção da capa por Minerva - Artes Gráficas (Vila do Conde, Portugal)
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A LINHA DO TUA, 1887, E AS FOTOGRAFIAS DE E. BIEL Eduardo Beira, coordenação
PARTE I AS FOTOS DE E. BIEL 011 Coleção de fotografias do livro original (reprodução fac símile) PARTE II ENSAIOS COMPLEMENTARES 037 Emilio Biel : o homem e o empresário (por J. M. Lopes Cordeiro) 045 As fotografias de Biel sobre a linha do Tua: uma análise critica (por Leonel de Castro) 051 As fotos de Biel e os desenhos de Bordalo Pinheiro sobre a inauguração da linha do Tua (por Otília Lage) 065 A luz e as sombras no vale do Tua (por Gilberto Gomes) 081 Linha do Tua: dos desenhos de engenharia às fotografias de E. Biel (1887) (por Mª Lurdes Martins, Graça Vasconcelos e Paulo Lourenço)
PARTE III MAIS DE UM SÉCULO DEPOIS … 115 Mais de um século depois, revisitar os mesmos locais (notas e fotos por Eduardo Beira)
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Viaducto das Prezas
Tunel das Prezas
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Fragas-Más
Tuneis e Viaducto das Fragas-Más
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Vista Geral do Amieiro
Pulpito do Diabo
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Gavião Estação de S. Lourenço
Ponte da Cabreira
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Ponte do Vieiro
Ponte d’Abreiro
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Ponte de Estação Meirelles de e Estação Mirandella do Cachão
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Tunel e Viaducto das Prezas
Estação de Tralhariz e Tunel d’Alvella
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Ponte de Os Moinhos do Paradella Castanheiro
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Caldas de S. Lourenço
Estação e Caldas de S. Lourenço
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Pedra Longa
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Fragas do Piado
Pucha-Preto
Mirandella
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Pontes do Vieiro e Abreiro
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MIRANDELA
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RIO TUA 13 11
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VILA FLOR
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RIO DOURO
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Photo Antiga Casa Fritz
Lith. Emilio Biel & CÂŞ - Porto
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PARTE II ENSAIOS COMPLEMENTARES
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EMÍLIO BIEL: O EMPRESÁRIO QUE FOTOGRAFAVA OBRAS DE ENGENHARIA José Manuel Lopes Cordeiro
Carl Emil Biel nasceu em Annaberg, uma pequena cidade do estado da Saxónia, na Alemanha, em 18 de Setembro de 1838, e veio a falecer no Porto com quase 77 anos de idade, em 14 de Dezembro de 1915. Em 1857 veio para Portugal, como representante da empresa alemã de botões de metal “Schalk”1, tendo-se estabelecido em Lisboa. Decidido a permanecer em Portugal, terá sido por esta altura que aportuguesou o seu nome para Carlos Emílio Biel, embora viesse a utilizar apenas a versão mais abreviada de Emílio Biel, pela qual ficou conhecido. Em Lisboa, Emílio Biel depressa se integrou na comunidade alemã aí residente, que então englobava cerca de 400 naturais dos diferentes Estados alemães, o que lhe terá proporcionado o conhecimento do Rei Consorte D. Fernando II, igualmente de origem alemã. Contudo, não permanecerá muito tempo na capital do reino pois em 1860 já o encontramos no Porto, como representante da casa Schalk. Na Cidade Invicta Emílio Biel irá encetar uma nova actividade, decidido a singrar por conta própria. Em 1864 estabeleceu-se como negociante, e no ano seguinte – o ano da Exposição Internacional do Porto, que inaugurou o antigo Palácio de Cristal – fundou uma fábrica de botões de seda, duraque, metal, metal e vidro, e fivelas de metal, na Rua do Moreira, 5, no Bonfim. Passados cerca de dois anos a fábrica será transferida para 1 Paulo Heitlinger (2013), “Der Schatten des Emílio Biel”, Kulturas 3, das Magazin für Natur, Kultur und Geschichte, Spanien und Portugal, 3: 15.
novas instalações, na Rua da Alegria, 373, tendo para o efeito Emílio Biel adquirido uma propriedade a José Joaquim Pereira Lima, na Travessa do Luciano à Rua da Alegria, no Porto2. Simultaneamente, estabeleceu-se como representante de diversas firmas alemãs, desenvolvendo também contactos junto dos meios comerciais da cidade e participando nas actividades da Associação Comercial no Porto e do Centro Comercial do Porto. Será, contudo, a arte fotográfica a actividade que apaixonará Emílio Biel e à qual irá dedicar o melhor do seu talento. Em 1866 já se encontrava ligado ao estabelecimento de fotografia de Joachim Friedrich Martin Fritz, a “Photographia Fritz” – um dos primeiros ateliers fotográficos do Porto, fundado em 1854 –, que virá a dirigir e, mais tarde, a adquirir, possivelmente em 1873. A partir de então inicia aquele que foi considerado como o mais importante trabalho de levantamento e documentação fotográfica do país durante o século XIX. A sua atenção está agora inteiramente concentrada à actividade que desenvolverá no seu estúdio fotográfico, tendo em 1871 abandonado a sua participação na sociedade proprietária da fábrica de botões3. Em 22 de Agosto de 1876, juntamente com Fernando Joan Martin Niels Brütt, um alemão de origem dinamarquesa, estabeleceu a sociedade “Emílio Biel & Cª”, a qual irá constituir uma das maiores e mais importantes casas fotográficas do país. Inicialmente, a sociedade ficará instalada no estabelecimento de fotografia que 2 Arquivo Distrital do Porto, Fundo Notarial, PO 2º - Liv. 503, fl. 122 v., apud António Faria e Ângela Camila Castelo-Branco (2007), “Os ‘Olhares fotográficos’ dos estrangeiros”. Disponível para consulta em URL: apphotographia.blogspot. pt/2007/07/os-olhares-fotogrficos-dos-estrangeiros.html (acesso a 14 de Junho de 2014). 3 Arquivo Distrital do Porto, Fundo Notarial, Passagem de sociedade, fábrica de botões, em 4 de Agosto de 1871, PT/ADPRT/NOT/CNPRT06/001/4363/00436, fl. 101.
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Emílio Biel tinha adquirido, a antiga “Photographia Fritz”, na Rua do Almada, 1224. Nesta altura Emílio Biel era já uma personalidade reconhecida na sociedade portuense, tendo sido convidado, em 1877, a integrar a comissão encarregada de preparar a participação do Porto na Exposição Universal de Paris de 1878. Em 1880, casou com Edith Caroline Elisabeth Katzenstein, filha do banqueiro portuense e cônsul do Império Alemão nesta cidade, e será também por esta altura que, em virtude do bom relacionamento que mantinha com D. Fernando desde a sua passagem por Lisboa, este lhe concederá o título de “Photographo da Casa Real”. Infelizmente, o seu casamento com Edith Katzenstein será de curta duração, devido a esta ter falecido abruptamente em 17 de Outubro de 1882, deixando órfã a filha de ambos, Else Sophie August Biel, nascida no ano anterior. No entanto, Emílio Biel já tinha um outro filho, Júlio Emílio Biel, nascido em 1870 e fruto do seu relacionamento com Margarida Angélica Baptista de Freitas, que foi por ele perfilhado em 1898. Quanto aos seus descendentes directos, estes mantiveram-se até hoje na cidade do Porto, sendo o actual presidente da Câmara, Rui Moreira, seu tetraneto.
A par com a sua actividade no estúdio, que lhe granjearia um enorme prestígio pela qualidade dos retratos que efectuava, Emílio Biel dedicou-se também à edição fotográfica com base na técnica da fototipia, um processo de impressão fotomecânica feita por contacto com o negativo fotográfico, que permitia realizar um amplo conjunto de cópias (até cerca de 500) – que terá aprendido com Carlos Relvas, o seu introdutor em Portugal – o qual industrializou, a partir do início de 1882. Aquando da realização do Inquérito Industrial de 1881 só existia no Porto um estabelecimento de fototipia, precisamente o de Emílio Biel, embora quatro anos mais tarde já existissem três. A sua actividade no domínio da fototipia tinha-se iniciado com a edição crítica de Os Lusíadas, em 1880, por ocasião das comemorações do tricentenário da morte de Camões, editada no Porto mas impressa em Leipzig pela tipografia Giesecke & Devrient, ainda hoje existente, a qual constitui uma autêntica jóia bibliográfica, com lombada em pele e pastas com decorada com um pórtico manuelino e figuras mitológicas gravadas a ouro e a seco. Os exemplares desta obra majestosa atingem actualmente valores elevadíssimos no mercado livreiro antiquário, tanto mais que a edição foi apenas de 112 exemplares. Segundo Sebastião de Magalhães Lima, que integrou a comissão executiva da imprensa das comemorações do tricentenário da morte de Camões, esta edição ” – correntemente denominada “de Emílio Biel” – foi “a melhor, a mais completa, a mais nítida, a mais notável” que até então se tinha publicado, uma apreciação que seguramente se prolonga até aos nossos dias. Para a edição desta obra, nomeadamente para a produção das respectivas ilustrações, Emílio Biel constituiu, em 22 de Maio de 1880, uma sociedade específica5, iniciativa que repetiu no ano seguinte, com o objectivo de efectuar idêntica edição no Brasil6, a qual, contudo, parece não ter ido avante. Para além da sua actividade de retratista, desenvolvida essencialmente no atelier da sua empresa, e do interesse que manteve pela fototipia, Emílio Biel dedicou-se ainda à fotografia paisa-
4 Arquivo Distrital do Porto, Fundo Notarial, PO 2º - Liv. 518, fls. 41v-43v., apud António Faria e Ângela Camila Castelo-Branco (2007), Op. cit.
5 ADP, Fundo Notarial, Constituição de sociedade para ilustrações de Os Lusíadas, em 22 de Maio de 1880, PT/ADPRT/NOT/CNPRT08/001/0573/00814, fl. 5v. 6 ADP, Fundo Notarial, Constituição de sociedade de edição de Os Lusíadas no Brasil, em 5 de Outubro de 1881, PT/ADPRT/NOT/CNPRT08/001/0584/00866, fl. 96v.
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gística e à das grandes obras de engenharia que então estavam em curso em Portugal. Em 1882, com o apoio e a influência do engenheiro Cândido Celestino Xavier Cordeiro – inspector das obras públicas e engenheiro consultor da Companhia dos Caminhos-de-ferro –, Emílio Biel iniciou um importante trabalho de documentação fotográfica das várias fases de construção da rede ferroviária – já anteriormente, em 1876-77, tinha acompanhado as diferentes fases da construção da Ponte Maria Pia, sobre o Douro –, tendo documentado, no âmbito desse trabalho, a construção da ponte Luís I (1883-86), do porto de Leixões (1884-92) assim como de várias linhas ferroviárias (a do Minho e a do Douro), o qual constituiu também uma iniciativa pioneira no domínio do registo fotográfico de obras de engenharia e de arquitectura. Em 1879, a empresa belga Société Anonyme
Internationale de Construction e d’Enterprise de Travaux Publics Braine Le-Comte publicara um Álbum dos caminhos de ferro de Salamanca à fronteira de Portugal, com fotografias da “antiga Casa Fritz”, já então propriedade de Emílio Biel, em 1883, por ocasião da Exposição Distrital de Aveiro, o próprio Biel editou o Álbum da Exposição Distrital de Aveiro de 1882, com fotografias suas e texto da autoria do historiador Joaquim de Vasconcelos. Conhecem-se ainda dois outros álbuns com fotografias de Emílio Biel consagrados à temática ferroviária, o Álbum [do] caminho de ferro do Douro, editado provavelmente em 1887, e o álbum da Linha de Foz-Tua a Mirandella, editado em 1887 pela Companhia Nacional de Caminhos de Ferro para comemorar e publicitar o notável empreendimento que constituiu a construção daquela linha pela engenharia portuguesa, uma obra raríssima da qual apenas se conhece a existência de um exemplar na Biblioteca Municipal Sarmento Pimentel em Mirandela, e da qual o leitor tem nas suas mãos esta edição fac-similada. Em 1908, a Compagnie Française pour la Construction et l’Exploitation de Chemins de Fer à l’ Etranger publicou o álbum Inauguração do Caminho de Ferro do Valle do Vouga. Espinho-Viseu-Aveiro, com 25 fototipias da “Emílio Biel & C.ª”, que constitui também uma raridade, existindo apenas um exemplar no Centro Português de Fotografia.
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A década de 1890 registará uma nova etapa da actividade empresarial de Emílio Biel. A 4 de Outubro desse ano inaugurará as novas instalações da “Emílio Biel & C.ª”, no palacete do conde do Bolhão, à Rua Formosa n.º 3427. Procederá, também, a uma divisão das áreas de actividade da empresa, criando duas grandes secções. A “Emílio Biel & C.ª – Editores”, consagrada às indústrias gráficas (fotografia, fototipia e litografia), da qual fazia parte o sócio Fernando Brütt, a qual era a única no país, para além da Secção Fotográfica da Direcção Geral dos Trabalhos Geodésicos, a utilizar geradores eléctricos. A este facto, não era alheia a representação de geradores e material eléctrico da acreditada fábrica “Schuckert & C.ª”, que Emílio Biel detinha em exclusivo. Nesta época, a actividade da sua oficina litográfica e fotográfica encontrava-se em plena ascensão, chegando a produzir uma média diária de cinquenta clichés, por vezes oitenta, empregando sessenta operários em fotografia, fototipia e fotogravura. A segunda secção em que a empresa se dividiu, era a das publicações, para a qual Emílio Biel fez sociedade com José Augusto da Cunha Morais, considerado o maior fotógrafo da África Portuguesa, que depois ter regressado definitivamente de Angola em 1897 dirigira um estúdio fotográfico em Lisboa, e com quem já tinha trabalhado em 1885 na edição da sua obra África Occidental: album photographico e descriptivo. Finalmente, será também nesta década que Emílio Biel desenvolverá uma actividade empresarial para além da que até então tinha consagrado à indústria fotográfica, investindo nas áreas da produção de electricidade e dos transportes urbanos. Na reestruturação efectuada na empresa, com a criação da “Emílio Biel & C.ª – Editores”, da qual J. A. da Cunha Morais, ficara como responsável, nascerá a primeira obra desta sociedade, resultante de um ambicioso projecto que contemplava o levantamento fotográfico dos principais motivos artísticos, etnográficos e paisagísticos de todo o território continental português, dirigido conjuntamente com Fernando Brütt. O projecto estreou-se em 1900, ano a partir do qual Emílio Biel, juntamente com o fotógrafo Cunha Morais, iniciou a publicação na 7 O Primeiro de Janeiro, Porto, 22º ano, n.º 275, de 5 de Outubro de 1890.
revista O Ocidente das primeiras gravuras desse levantamento fotográfico. Estas, virão a ser agrupadas e publicadas naquela que constituirá uma das suas mais importantes obras, A Arte e a Natureza em Portugal: album de photografias com descripções, clichés originaes, copias em phottypia, monumentos, obras d’arte, costumes e paisagens, uma antologia de imagens de grande formato publicada por incentivo de Joaquim de Vasconcelos, entre 1902 e 1908, em 8 volumes, numa edição bilingue em português e francês, que foi impressa na tipografia de António José da Silva Teixeira, uma das mais conceituadas então existentes na cidade do Porto. No que respeita à fotografia paisagística Emílio Biel editou obras igualmente notáveis, como o Album phototypico de vistas da cidade do Porto (1889) ou Album phototypico de vistas e costumes do Norte de Portugal (ca. 1900). Em 1911 editará a obra O Douro: principaes quintas, navegação, culturas, paisagens e costumes, de Manuel Monteiro, inicialmente publicada em fascículos, que o transformará num dos maiores conhecedores da região do Douro e, seguramente, o seu maior fotógrafo até às primeiras décadas do século XX. Nos últimos anos da sua vida Emílio Biel trabalhou na preparação da edição de um outro álbum fotográfico, sobre Arte Religiosa em Portugal, em dois volumes, que incluía um estudo das principais obras existentes nos museus e tesouros das Sés, da autoria de Joaquim de Vas-
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concelos, também publicado inicialmente em fascículos, mas que ficaria inacabado em virtude do seu falecimento em 1915, sendo no entanto o primeiro volume publicado no ano anterior pela “Emílio Biel & C.ª”. Para além da edição destes álbuns e da sua actividade como fotógrafo, no domínio da utilização industrial da fototipia Emílio Biel consagrou-se ainda à edição de bilhetes postais ilustrados, uma área que vivia então a sua época de ouro em Portugal, tendo produzido cerca de 500 postais diferentes, dos quais cerca de metade registavam motivos e paisagens da cidade do Porto. Com foi referido, a partir da década de 1890 Emílio Biel diversificou os seus negócios investido em novas áreas, como a produção de electricidade e os transportes urbanos. Refira-se, no entanto, que já há alguns anos que era o representante de várias empresas industriais em Portugal, nomeadamente alemãs, uma actividade que manteve até ao final da sua vida. Entre as empresas mais conhecidas das quais Emílio Biel foi o seu representante contam-se a já referida Schuckert & C.ª, de Nuremberga, especializada na construção de máquinas eléctricas, a Gasmotoren-Fabrik Deutz AG, de Colónia, fabricante de motores a gás, a fábrica de automóveis Benz & C.ª, de Mannheim, ou a Companhia Coats & Clark, de Paisley, Escócia.
Uma das actividades mais importantes desenvolvidas por Emílio Biel para além da fotografia foi, precisamente, a da divulgação e introdução em Portugal das primeiras instalações de produção de energia eléctrica. É à sua casa comercial que se deve a instalação dos equipamentos da primeira central hidroeléctrica para fornecimento de luz eléctrica a uma povoação em Portugal, no caso, Vila Real, em 1894. O projecto para a construção do aproveitamento hidroeléctrico destinado à iluminação pública de Vila Real iniciou-se em 1890, por iniciativa do empresário portuense Leopoldo Augusto das Neves que o apresentou à Câmara Municipal, tendo sido por esta aprovado. Na sequência desta aprovação foi celebrado o respectivo contrato, em 26 de Junho de 1890, e constituída a Companhia Eléctrica e Industrial de Vila Real, para a qual foi transferida a concessão. Os equipamentos para a central hidroeléctrica foram encomendados a Emílio Biel, que era o representante da Schuckert & C.ª, o qual se deslocou a Vila Real em 1892, acompanhado de um engenheiro da empresa e de um fotógrafo, tendo aproveitado para tirar algumas fotografias do local onde seria instalada a central, no Agueirinho. Contudo, quando os equipamentos chegaram, a Companhia Eléctrica e Industrial de Vila Real não dispunha de meios económicos para efectuar o respectivo pagamento, pelo que a concessão e as obras já iniciadas foram vendidas a Emílio Biel, por 5 250$000 reis, que assim se dispôs a viabilizar o empreendimento, através da criação de uma nova sociedade8. Finalmente, em 13 de Junho de 1894, a luz eléctrica foi inaugurada em Vila Real, que passou a constituir a primeira localidade portuguesa a ser iluminada por energia eléctrica e Emílio Biel consagrou-se como um dos pioneiros da electricidade em Portugal. Não foi este, contudo, o primeiro equipamento da Schuckert & C.ª vendido por Emílio Biel, tendo equipado, igualmente, inúmeras fábricas e algumas residências com dínamos para a produção de energia eléctrica, as quais foram as primeiras a utilizar aquele tipo de iluminação. Em 1895 já tinha instalado dínamos para a produção de energia eléctrica fabricados por aquela firma em cerca de trinta empresas industriais e casas de habitação, principalmente no Porto (dezassete) – incluindo na 8 ADP, Fundo Notarial, Constituição de sociedade de instalação eléctrica em Vila Real, em 13 de Fevereiro de 1893, PT/ADPRT/NOT/CNPRT08/001/0677/01290, fl. 20v.
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sua própria residência e na “Emílio Biel & C.ª”, o que lhe permitia tirar as fotografias com iluminação eléctrica –, mas também em Vila Nova de Gaia (três), em Lisboa (na estação de Santa Apolónia), no Entroncamento (na estação ferroviária) ou em Portalegre (na Fábrica de Lanifícios). Em 1897 efectuará a instalação de electricidade no Palácio da Junqueira, em Lisboa, pertencente ao conde de Burnay9. Foi no entanto a exploração dos transportes urbanos o sector empresarial a que Emílio Biel mais se dedicou nos últimos anos da sua vida, a par, é claro, da actividade e dos projectos relacionados com a fotografia. A inauguração da ponte Luís I, no Porto, em 1886, oferecera uma oportunidade para o estabelecimento de uma linha de transporte urbano, ligando a nova avenida superior esquerda da ponte – uma zona recentemente desbravada e ainda escassamente urbanizada – a Vendas de Grijó e à ponte de Tabuaços, passando pela estação ferroviária das Devesas, em Vila Nova de Gaia. Emílio Biel obtivera a concessão governamental dessa linha por Alvará de 10 de Outubro de 1895, e tencionava construir e explorar uma linha de caminho de ferro americano para estabelecer a respectiva ligação, através do ramal da estrada real n.º 10, do Porto a Coimbra. O processo para o estabelecimento dessa linha foi relativamente atribulado, envolvendo vários protagonistas e concessões sucessivamente trespassadas. Em 25 de Setembro de 1894, José Leão e João César Pinto Guimarães, este último um conhecido jornalista portuense, manifestam o seu interesse em assentar carris na ponte Luís I para veículos de caminho de ferro americano10, uma vez que tinham obtido a concessão de uma linha férrea de carros americanos entre a estação ferroviária das Devesas e a nova avenida para a ponte Luís I. Por razões que não foi possível apurar, mas que devem estar relacionadas com a falta de capacidade financeira, em 10 de Outubro de 1895 a concessão será trespassada a favor de António de Pádua Mene9 ANTT, Arquivo Burnay, Administração patrimonial, Propriedades urbanas, cx. 79. 10 ADP, Fundo da Companhia Carris de Ferro do Porto, Carris americanos na ponte D. Luís I, em ofício de 25 de Setembro de 1894, PT/ADPRT/EMP/CCFP/ SG/015/00002, cota actual B/4/2/4 - 24.6.
zes Russel e João Baptista de Carvalho, associados na empresa João Baptista de Carvalho & C.ª, da qual eram os únicos sócios. Não será contudo esta empresa a concretizar aquele projecto. Em 20 de Fevereiro de 1897, por escritura pública, o alvará e demais licenças foram cedidas a António de Pádua Menezes Russel, que nesse mesmo dia se associou a Emilio Biel e António Joaquim de Moraes, na constituição de uma sociedade para exploração da linha de carril de caminho de ferro americano da ponte Luís I à estação das Devesas, em Vila Nova de Gaia11. Nesta nova sociedade, Menezes Russel entrava com o alvará e demais licenças, e Biel e Moraes com o capital necessário para a instalação e exploração da linha, mantendo-se a concessão sujeita a trespasse para a Companhia Carris de Ferro do Porto tal como já estava estabelecido no Alvará de 1895. Será, no entanto, concedido um novo alvará à sociedade “Biel, Moraes & C.ª”, em 16 de Novembro de 1898, “para a construção e exploração de uma linha férrea americana assente sobre o ramal para a estação de Vila Nova de Gaia da estrada real n.º 10, Coimbra ao Porto, entre a avenida esquerda superior da ponte D. Luís I e a referida estação”. No entanto, a sociedade “Biel, Moraes & C.ª” irá conhecer em breve várias alterações, primeiro com a “cessão gratuita de direito e acção”, por António de Pádua Menezes Russel, da sua parte na empresa, efectuada em Março de 190012, e em 31 de Dezembro desse mesmo ano a sua própria dissolução, passando a propriedade do alvará – avaliado em duzentos mil réis – e todo o activo da empresa para a posse exclusiva de Emílio Biel13. Logo de seguida, em 19 de Janeiro de 1901, Biel celebrou um contrato de arrendamento, incluindo a promessa de venda da concessão, com a Companhia Carris de Ferro do Porto14. Nesse mesmo dia Emílio Biel cederá a Clemente Joaquim da Fonseca Guimarães Meneres, e a seu filho Alfredo da Fonseca Meneres, metade dos direitos do contrato que acabava de efectuar, pela 11 ADP, Fundo Notarial, Constituição de sociedade de transportes de americano, em 20 de Fevereiro de 1897, PT/ADPRT/NOT/CNPRT06/001/4421/01039, fl. 49. 12 ADP, Fundo Notarial, Escritura de cessão de direitos, em Março de 1900, PT/ ADPRT/EMP/CCFP/SG/014/14.096. 13 ADP, Fundo Notarial, Dissolução da sociedade comercial Biel, Moraes & C.ª de caminho de ferro americano, em 31 de Dezembro de 1900, PT/ADPRT/NOT/ CNPRT07/001/0765/00835, fl. 37v. 14 ADP, Fundo Notarial, Contrato de arrendamento entre a Companhia Carris de Ferro do Porto e Emílio Biel, em 19 de Janeiro de 1901, PT/ADPRT/EMP/CCFP/ SG/001/01.065.
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quantia de seis contos e trezentos mil réis15. O contrato firmado com a Companhia Carris de Ferro do Porto estipulava que Emílio Biel receberia, como renda anual, 7% da receita bruta que as linhas que exploravam aquele percurso produzissem, incluindo a extensão até Santo Ovídio, independentemente do “agente de tracção empregado”. Para efeitos de selo fiscal de escritura a renda era computada em quinhentos mil réis. A Companhia Carris de Ferro tinha a opção de em qualquer momento comprar os direitos arrendados. Em 1910 Emílio Biel vendeu à Companhia Carris de Ferro do Porto a sua parte nos direitos sobre as concessões e licenças na linha da Batalha às Devesas por vinte e oito contos de reis, livre para ele de todas as despesas. Emílio Biel falecerá em 14 de Setembro de 1915, no Porto. Em Março do ano seguinte, com a declaração do estado de guerra entre Portugal e a Alemanha, o Estado Português decretará um conjunto de providências relativamente às pessoas e bens dos súbditos inimigos residentes em Portugal. Entre estes foram incluídos os bens de Emílio Biel, então na posse dos seus herdeiros, os quais foram confiscados e vendidos em hasta pública. Alguns desses bens, como as oficinas de fotografia, fototipia e litografia da “Emílio Biel & C.ª” foram arrematadas por Fernando Brütt – que alterou a denominação da empresa para “Photografia do Bolhão” embora, segundo se crê, por pouco tempo –, outros foram comprados por Cunha Moraes e Marques de Abreu, e também pela “Companhia Portuguesa Editora, Lda”, de José Augusto da Costa, do qual foram herdeiras Maria Eugénia Samaritana Pedrosa da Costa Simões e Margarida Madalena Macedo Costa Soares. Em 1982, após negociações com o então Instituto Português do Património Cultural, que foram infrutíferas, a parte que tinha cabido a Eugénia da Costa Simões (cerca de 400 chapas, fototipias e outros documentos em papel), foi vendida em leilão, pelas Galerias Vandoma16. Contudo, foi possível salvaguardar uma pequena parte do seu espólio que se encontra actualmente depositada no Arquivo Histórico Mu15 ADP, Fundo Notarial, Escritura de cedência de direitos de Emílio Biel a Clemente Joaquim da Fonseca Guimarães Meneres, em 19 de Janeiro de 1901, PT/ADPRT/ EMP/CCFP/SG/014/14.096. 16 Disponível para consulta em URL: digitarq.cpf.dgarq.gov.pt/details?id=39711 (acesso a 14 de Junho de 2014).
nicipal do Porto e no Centro Português de Fotografia, também no Porto. Emílio Biel foi uma daquelas personagens da segunda metade do século XIX que testemunhou e acompanhou de uma forma intensa os progressos tecnológicos que então se verificaram. Daí o seu interesse por tudo o que se relacionasse com tecnologia e as inovações que esta então registou, as quais tentou aprender, uma atitude da qual o seu interesse pela fotografia é parte integrante. Os seus interesses científicos eram muito variados. Por exemplo, Emílio Biel, juntamente com o médico portuense Araújo e Castro, esteve associado a uma das primeiras aplicações dos raios X, em medicina, para a obtenção de radiografias. Mas também constituiu uma notável colecção de insectos (sobretudo borboletas), a qual, felizmente e ao contrário do que aconteceu com grande parte do seu espólio foi atempadamente incorporada no Museu de Zoologia da Universidade do Porto. Foi ainda administrador da empresa “Águas do Gerês” e colaborador fotográfico nas revistas Illustração Portugueza (18841890) e Branco e Negro (1896-1898). A actividade de Emílio Biel, como fotógrafo, foi também reconhecida no estrangeiro, tendo sido premiado em várias Exposições internacionais, como na de Filadélfia em 1976, na de Paris em 1878, na do Rio de Janeiro em 1879 – onde obteve a Medalha de Ouro –, na de Fotografia, no Porto em 1886, na de Viena de Áustria em 1888 – tendo-lhe sido atribuída a Medalha de Prata –, na de Berlim em 1888, e nacionais, como a Exposição Industrial Portuguesa de 1892.
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AS FOTOGRAFIAS DE BIEL SOBRE A LINHA DO TUA: UMA ANÁLISE CRITICA Leonel de Castro
O alemão Karl Emil Biel (1838-1915), que fez de Portugal a sua segunda pátria, documentou a expansão do caminho-de-ferro no Centro e Norte do nosso país, registando imagens poderosas que opõem o caos da natureza, com a sua aparente face indómita, à ação industrial do homem. A arrogância do progresso imitava, então, deliberadamente, a arrogância de Prometeu. Biel acrescenta a uma defesa entusiasmada progresso oitocentista e industrial do homem, uma indelével admiração pela Natureza.
1. EMIL BIEL, FOTÓGRAFO PIONEIRO E EMPREENDEDOR VISIONÁRIO As suas imagens fotográficas que respondem a encomendas sobre o lançamento do caminho-de-ferro, parecem sintetizar estas duas vertentes, o progresso das comunicações e um respeito profundo pelo desafio da Natureza. E tão decisivas e fortes são as suas imagens que se tornarão modelo para um dos seus aprendizes e operadores, Domingos Alvão. As fotografias da construção do primeiro troço da Linha do Tua (Foz-Tua a Mirandela), organizadas num álbum produzido na Casa Fritz, estabelecimento que adquirira em 1874 e onde iniciou a sua carreira como fotógrafo documentalista, fazendo da paisagem tema de eleição, serão a temática da nossa investigação. O seu espírito empreendedor e visionário, sempre ligado à indústria de ponta, leva-o a abraçar grandes projetos em distintas áreas. Para Portugal importou o primeiro motor a diesel, apare-
lhos de Raio X e de cinematografia. Era dele o primeiro automóvel que circulou no Porto, assinou os projetos de eletrificação das estações ferroviárias de Campanhã e de Santa Apolónia e levou a corrente elétrica a dezenas de fábricas, instituições e mesmo cidades, por exemplo, a Vila Real, onde fez sediar a sua firma de eletrificação. No campo da fotografia, desde cedo, esteve ligado às artes de impressão e tipográficas, chegando a possuir, em 1885, uma tipografia e litografia a vapor, onde produzia postais e os seus diversos álbuns fotográficos com imagens fototípicas aprendidas na estúdio de Carlos Relvas na Golegã. Valorizando o novo processo encarregou-se uma inovadora publicidade para a fábrica de chapéus de Costa Braga, Porto. No jornalismo também deixou a sua marca. Enquanto fotógrafo documentalista, na Revista “O Ocidente”, publicou fotografias nos projetos “Douro Ilustrado” (1976) e “ Caminhos-de-ferro no Norte Ilustrado (1878 e 1899)”. Os anos oitenta de oitocentos, em Portugal, tornaram-se decisivos para a edição fotográfica, com o desenvolvimento da fototipia, vantajosa para a divulgação impressa e fiel da fotografia das grandes obras de arquitetura e engenharia do país. Nesta época, já pródiga em debates sobre a relação fotografia/artes, foi criado o Centro Artístico Portuense (finais de 1879), em que participaram, além de Emílio Biel, outros grandes vultos da fotografia, como Aurélio da Paz dos Reis e Carlos Relvas, e onde se fizeram as primeiras conferências sobre a história de arte nacional suportadas por documentos fotográficos. Parece indiscutível que a sua não adesão á fotografia naturalista e, por fim,
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pictorialista, se deve á sua convicção do valor do documento e da Natureza tal como ela se apresenta. Biel gosta de sublinhar a grandeza dos acidentes naturais e da ação do homem ao explorá-la. Nos dois casos é o conceito de sublime kanteano que parece orientá-lo. A Casa Emílio Biel, que possuía então as melhores máquinas, equipamentos e operadores encarregados de grande número das primeiras páginas de “Ocidente”, era, nestes anos 1880, a par da Fotografia Moderna, um dos estúdios mais importantes da cidade do Porto, que registava um relativo desenvolvimento comercial e cultural. Em 1886 teria lugar no Porto uma Exposição Internacional de Fotografia, a primeira e única realizada em Portugal, dessa natureza, para a qual foram convidados “fabricantes de aparelhos e produtos e editores de obras fotográficas de todos os países” (Sena, 1998: 113). A prática da fotografia que à época era ainda morosa, complexa e dispendiosa, exigindo conhecimentos rudimentares de Física e Química e disponibilidade financeira pessoal, instalou-se por isso mesmo, como hobby das classes favorecidas e das elites privilegiadas, nos seus quotidianos sociais, sendo objeto de reconhecimento, embora relativamente silencioso e afastado dos interesses estéticos dos meios intelectuais nacionais institucionalizados, se bem que a ciência e o exército a tenham utilizado desde cedo. Mas é essencialmente para mostra nas grandes feiras internacionais que são feitas as grandes encomendas, como as de Biel.
portuguesa, que terminaria mais tarde na cidade de Bragança. Uma publicação pouco conhecida de capas vermelhas e “infólio oblongo com frontispício”, de que podemos consultar o único exemplar conhecido na Biblioteca Municipal de Mirandela, foi editada para comemorar a inauguração da Linha, a 27 de Setembro de 1887, com a presença da família real – o Rei D. Luís I e D. Maria Pia –, ministros e vários convidados, entre os quais, naturalmente, o fotógrafo alemão Emílo Biel. Ao longo desta viagem, o autor oferece-nos composições impressionantes, uma abordagem fotográfica inovadora, com imagens que revelam um domínio técnico (captação e laboratório a avaliar pela riqueza tonal) e enquadramentos já de carácter cinematográfico, panorâmica que ajuda a traduzir toda a beleza rude e inóspita do vale do Tua, o leito do rio cavado pela força da natureza, depois sujeito a intervenção do braço do homem. Os planos são bastante ricos pela informação que oferecem ao leitor, dentro da perspetiva do olhar de Deus, permitindo relevar etapas e locais de maior dificuldade da obra. Mas a paisagem do Tua e do Douro, que Biel, entre tantas outras,
Tunel das Prezas Pag. 11
2. ANÁLISE TÉCNICA E SEMIÓTICA DO ÁLBUM LINHA DE FOZ-TUA A MIRANDELLA O álbum fotográfico da construção da linha do Tua, Linha de Foz-Tua a Mirandella, uma encomenda da Companhia Nacional de Caminhos-de-ferro ao fotógrafo germânico Karl Emil Biel, residente em Portugal e conhecido entre nós por Emílio Biel, apresenta-nos 23 fototipias que documentam a construção do primeiro troço da linha férrea, uma obra prima de engenharia
fotografou, é uma construção do homem, e esse conhecimento, essa descoberta da sua beleza deve-se essencialmente à fotografia pioneira, como a de Emil Biel. Surge-nos, na sua característica mais marcante, como representativa do “século de Prometeu”, o demiurgo grego que roubou o fogo aos deuses para o ceder ao homem, iniciando o progresso da civilização: uma homenagem aos grandes empresários e aos engenheiros da Revolução Industrial, figuras carismáticas e virtuosas desse progresso técnico
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de que o caminho-de-ferro é um dos símbolos mais marcantes. Nas composições em análise verificamos sempre uma relação entre a natureza e a técnica. Os ideais do Fontismo, a expansão do progresso técnico, devido à revolução industrial oitocentista, estão bem vincados ao longo das 23 imagens que o autor nos apresenta em toda a obra, como o ferro usado nas pontes ferroviárias, os viadutos, os túneis que atravessam montanhas, as estações da Linha do Tua, assim como o grande símbolo da revolução industrial, a locomotiva a vapor, contracenando, ao longo do Vale do Tua, com o leito do rio e toda a vegetação predominante. Nos primórdios da fotografia, toda a técnica necessária para obter uma imagem, desde os equipamentos de captação aos processos de revelação a que era obrigada, não era propriamente simples. Tudo era bastante dispendioso e complexo, e havia necessidade de um poder de síntese muito grande na preparação das tomadas de vista. A quantidade de imagens produzidas era pequena, daí termos apenas 23 fotografias, embora acreditemos que ainda tenham sido excluídas algumas em edição. No entanto, a narrativa construída pelo autor dá-nos a ilusão de estarmos a acompanhar uma viagem de comboio pelo caminho-de-ferro da Linha do Tua. Este comboio conduz o leitor numa visita, ao longo da ferrovia, às obras pelo homem criadas, às penedias destruídas facilitando a penetração do comboio entre paisagens naturais recheadas de flora e fauna, em perspetivas que as vão revelando.
imediatamente após a captação da imagem, o laboratório de Biel ocupava toda uma carruagem. Esse vagão pessoal seguia acoplado à máquina a vapor dos comboios, e que o fotógrafo teve o cuidado de integrar nas paisagens, que são não apenas documentos, mas abruptas sensações.
Ponte de Paradella Pag. 18
Biel foca e enquadra nas paisagens agrestes de montanha ou planas do vale, colhidas numa envolvente natural em rutura, porém imbuídas de grande expressividade e beleza estética, personagens masculinas do mundo do trabalho técnico ou rural, captando o pormenor dos trajes locais e certas posturas, como colocar por cima do ombro o casaco.
Ponte do Vieiro Pag. 27 Pulpito do Diabo Pag. 19
Indício dessa atitude de amor ao Progresso e, também, necessidade da urgência de processar as chapas de colódio húmido
Quando falamos da presença humana nas fotografias, não se trata apenas de pessoas que por ali passavam ou viviam, mas de trabalhadores da obra, ou, então, operadores que acompanhavam Biel no levantamento fotográfico encomendado. Os
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figurantes aqui retratados permitem ao fotógrafo, através da linguagem de composição, colocar o ser humano do enquadramento, assim como a “pequena” locomotiva com as respetivas carruagens, para melhor entender a perceção da dimensão da obra e a sua relação com a enormidade das montanhas e da obra. Assim se obtém a noção de escala. Por vezes, só um olhar muito atento percebe a presença do homem na imagem, assim como o comboio perdido na imensidão das montanhas.
(uma panorâmica da cidade de Mirandela). Estas aparentes exceções acentuam o cunho monográfico do álbum.
Ponte de Meirelles e Estação do Cachão Pag. 31
Ponte da Cabreira Pag. 23
Nestas suas imagens – com a presença frequente do homem –, é denunciada a quase incongruência do esforço humano para dominar os elementos, sem nunca esquecer a veneração pelo extraordinário da paisagem.
Há composições muito cuidadas, linhas fortes e geometrizantes, picados e contra picados realçando a sinuosidade das escarpas que acompanham o leito do rio. A utilização de planos gerais no enquadramento destas fototipias é constante. O fotógrafo mostra a obra por inteiro, em toda a sua plenitude. Torna-se até interessante pensar sobre o local onde estaria Biel colocado para conseguir obter algumas tomadas de vista, nomeadamente em planos picados, o que nos leva a crer que o equipamento e o seu operador estariam suspensos em guindastes, para obterem uma perspetiva vista do céu sobre a terra (Estação e Caldas de S. Lourenço).
Em segundo ou terceiro plano aparecem também, por vezes, imagens de casas rurais, enquanto, em primeiro plano, as árvores e encostas servem de moldura ou enquadramento estético das fotografias, em que o movimento de pessoas quase sempre presentes é, em geral, pequeno. Ao longo do álbum documental, todas as fototipias estão identificadas com uma legenda em que podemos ver o local e a referência à obra. Ao contrário dos álbuns “Douro Ilustrado” (1876) e “Caminhos de Ferro no Norte Ilustrado” (1878 e 1899), as tomadas de vista, aqui, não são apresentadas, uma vez que o fotógrafo fez toda a captação das imagens ao longo da via férrea, à excepção da imagem que abre o álbum (a tomada de vista é feita na margem oeste do rio Tua onde podemos ver o viaduto das Prezas, em ferro, que dá acesso ao túnel) e da que o encerra
Estação e Caldas de S. Lourenço Pag. 21
Esta observação pressupõe uma reflexão e preparação prévia, pelo que não se trata de um registo mecânico, desprovido de sensibilidade artística. Os padrões oferecidos pela natureza são marcados
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pela diversidade de flora que brota entre os penhascos, criando sucessivos planos em que acentua a perspetiva e aumenta a volumetria entre os elementos apresentados nos quadros ao longo da narrativa. A profundidade também é marcada em algumas imagens pelos leitos do rio Tua, ou pela linha do comboio. Em primeiro plano, temos os carris em paralelo, vão afunilando, criando uma diagonal numa linguagem ocidental, quase sempre da esquerda para a direita. À época, a espontaneidade não era muito vincada, se tivermos em conta que se trata de uma altura em que o equipamento não era fácil de manusear ou transportar, como foi referido anteriormente. As composições valem pela sensibilidade e pelo “know-how” de Emílio Biel. Apesar das composições nos parecerem estáticas, o que de alguma forma provoca conforto no leitor, todas elas não deixam de ser bastante ritmadas, graças aos vários elementos distribuídos ao longo da tela nos sucessivos planos, com um formato retangular e sempre na horizontal.
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CONCLUSÃO Emílio Biel morreu um ano antes de que o país neutro que Portugal se afirmava na Primeira Guerra, tivesse tido Moçambique ocupado pelos alemães. Com apoio da Inglaterra, o país iniciou as habituais retaliações à Alemanha, incluindo a apropriação dos bens dos alemães residentes. Também o espólio da sua casa fotográfica no Bolhão e da sua residência foram vendidos em hasta pública. Das chapas de vidro vendidas a fábricas cerâmicas poucas restaram, como as retidas pela Casa Alvão, do tempo em que este era seu operador. Conhecemos hoje a vasta obra fotográfica de Biel através de raras imagens fotográficas, os postais e, essencialmente, as fototipias dos seus álbuns. Por isso mesmo é importante levantar e estudar os álbuns menos conhecidos. A Linha do Tua tornar-se-ia das mais relevantes obras da engenharia portuguesa, um verdadeiro monumento dos progressos do lançamento dos caminhos-de-ferro. O rasgar dos trilhos nas montanhas, as inúmeras pontes e, fundamentalmente os incríveis túneis, de longa extensão, que atravessam a rocha e eram comentados na imprensa nacional e internacional. Emílio Biel mostra-nos, neste álbum, o início desses trabalhos demiúrgicos, como o verdadeiro monumento nacional que a Linha representa.
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ARTE E TÉCNICA: A FOTOGRAFIA DE E.BIEL E A CARICATURA DE RAFAEL BORDALO PINHEIRO SOBRE A INAUGURAÇÃO DA LINHA DO TUA Maria Otilia Pereira Lage
1.
3.
Ensaia-se uma abordagem comparativa de duas célebres representações visuais da Linha do Tua, no final de oitocentos, reflectindo sobre os processos de criação artística icónica, cultura e linguagem visual de seus autores, duas notáveis figuras históricas nos meios de comunicação portugueses, à época: o fotógrafo Emílio Biel (1838-1915), um dos precursores da fotografia em Portugal, e o artista plástico Rafael Bordalo Pinheiro (1846 - 1905), caricaturista pioneiro do cartaz artístico e jornalista crítico da sociedade portuguesa de seu tempo.
À época, o comprometimento politico e social dos artistas, designadamente através do jornalismo em expansão, ligava, cada vez mais, estas duas importantes personagens da fotografia e artes plásticas do meio cultural, artístico, empresarial e político português da segunda metade do séc XIX, ao contacto com os públicos em formação.
2. Contextualiza-se este estudo com a apresentação prévia do percurso de cada um dos artistas e delimita-se através da relação da obra criativa de ambos com a construção e inauguração da Linha do Tua (1º troço até Mirandela) – dois trabalhos (fotografia e desenho/caricatura) de sentido “documental” (que remete para si próprio) e “artístico” (que evoca outras “áreas”) os quais, resistentes ao tempo, são, simultaneamente, fontes únicas para a história desta ferrovia de via estreita do Nordeste Transmontano (1885-1887) e prefiguração pioneira do modernismo português que se iria afirmar no campo das artes e da literatura, no início do séc XX.
Assim, a problemática central do presente estudo relaciona-se com o que se designa de significado e potenciação de materiais de memória e fontes iconográficas que operando um desvio inovador de enraizamento cultural, utilizam a fotografia e a caricatura então emergentes como documentos públicos que se não reduziam a uma mera actuação social e política. A leitura dessa produção intelectual serve à revivificação das facetas criativas marcadas por aspectos artísticos das obras de E. Biel e Rafael Bordalo Pinheiro dois artistas radicais modernos do mundo português oitocentista que extravasaram do mundo artístico para o domínio público.
4. Comecemos então por evocar sucintamente as duas produções artísticas em apreciação, ambas de elevada qualidade técnica e artística.
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O Álbum fotográfico da construção da Linha do Tua de E. Biel (Fig.1 a 5) e a reportagem em banda desenhada de Rafael Bordalo Pinheiro (Fig.6 a 11) são dois notáveis exemplares de fotodocumentalismo, então, nos seus primórdios em Portugal, e vão muito para além dos interesses específicos do transporte ferroviário, por toda a informação histórica, sociológica e antropológica que encerram ao nível das paisagens, de tipos humanos, obras de engenharia e arquitectura interior decorativa, e mesmo trajes, objectos e costumes.
5. Em ambos os casos se indiciam a ocasião e os processos diferenciados de grande impacto e significado social, em que foram efectuados e os modos como o foram: quer o Álbum Fotográfico, alusivo aos trabalhos de construção do 1º troço desta Linha férrea, documentalmente ilustrativo desta obra mestra da engenharia portuguesa, e sua dificuldade de realização; quer o conjunto das caricaturas e desenhos da reportagem ilustrativa do momento inaugural festivo da Linha do Tua a Mirandela. Presume-se que os dois autores terão realizado diversas viagens, ao longo desta linha, podendo E. Biel ter feito paragens para a “tomada de vistas” e R.Bordalo Pinheiro observado e “retratado” pessoas de todas as classes sociais que acompanhavam a viagem da locomotiva real, encenando outras figuras a partir dos populares que se encontravam em cada lugar de paragem durante um ainda longo e determinado espaço de tempo, dos engenheiros que orientaram a construção da Linha ou das personagens destacadas que participaram no banquete real em Mirandela. Constituem, assim, no seu conjunto, impressionantes e diferenciadas viagens no tempo ainda áureo dos comboios em Por-
tugal e especialmente, da então inaugural Linha do Tua. “Algumas das imagens do álbum de Biel mostram grandes semelhanças com alguns dos famosos desenhos de Bordalo Pinheiro sobre a inauguração da linha do Tua, sugerindo que este se terá inspirado nalgumas das fotos de Biel.”1 Pode afirmar-se que estes dois trabalhos encomendados para assinalar as comemorações da abertura oficial desta Linha se bem que exemplares notáveis de géneros artísticos diferentes sugerem fortemente um claro e impressivo “espirito da época” captado de modo objectivo e crítico e evidenciam alguma semelhança ao nível de traços formais e estéticos. A beleza das imagens, os percursos ao longo do rio Tua, pela linha em construção ou já no comboio inaugural da mesma, os aspectos históricos e etnográficos, o carácter da região e a alusão a tradições da época, as paisagens, a sua transformação e o impacto ambiental provocado pela construção ferroviária, fazem desta hoje quase esquecida colecção fotográfica de E. Biel2 e da crónica caricatural altamente sugestiva e informacionalmente densa de Rafael Bordalo Pinheiro, dois documentos únicos, sobre a história da Linha do Tua, tornados logo então acessíveis ao grande público através da sua edição, respectivamente em livro e jornal, numa época em que as revistas e jornais atingiram quantitativos impressionantes, começando alguns a abrir-se à fotografia, sobretudo retrato, e reservando-se o desenho para as reportagens.
6. Passemos agora a uma breve introdução destas duas grandes figuras da história portuguesa das artes, que se destacaram no contexto cultural de seu tempo, movimentando-se um, Borda1 Eduardo Beira – Acerca da fotografia da capa. In Hugo Silveira Pereira – Debates parlamentares sobre a Linha do Tua (1851-1906) . FOZTUA, MIT Portugal, EDP, 2012, p. vii e viii. 2 O exemplar consultado e a partir do qual se reproduzem algumas imagens, encontra-se na Biblioteca Sarmento Pimentel em Mirandela e faz parte de um fundo doado pelo bibliófilo e alfarrabista Nuno Canavez da Livraria Académica do Porto, natural de Mirandela que nos referiu ter tido ainda em sua posse um outro exemplar deste álbum, em melhor estado físico, desconhecendo-se no entanto a sua actual localização.
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lo Pinheiro, entre ateliers e redacções de jornalismo, e o outro, E. Biel, entre estúdios e tipografias. Os seus percursos, os contextos de sua produção, condicionantes de representação, técnicas utilizadas, sensibilidade artística, cultura, tendências e leituras iconográficas, são directrizes de análise a ter em atenção. Também a sua formação e forma de estar, os seus interesses profissionais, sociais e políticos influenciam os registos valorativos de seus trabalhos que influem naturalmente na interpretação. Procura-se assim, delinear um contexto que permita alcançar uma certa sistematização de olhares e um ponto de observação/”posição” do fotógrafo e do artista plástico com um ângulo de visão de grande abertura e compreensão dos seus dois trabalhos, adiante em apreciação mais pormenorizada. Ambos foram produtores de imagens diferenciadas da construção e inauguração da linha do Tua, com enorme inventividade técnica e revolucionariamente, deslocalizadora da arte da academia, as quais se constituíram pela história em materiais de memória iconográfica hoje verdadeiramente inultrapassáveis. Outras características comuns dos seus percursos permitem-nos, como veremos, aproximá-los em vertentes como o rigor e apreço da técnica, o forte sentido de empreendedorismo industrial, a intensa actividade ligada à edição, e a ambivalência social de ambos enquanto simultaneamente “patrões e operários” de um certo modo de capitalismo industrial em Portugal.
7. EMÍLIO BIEL [1838-1915], A FOTOGRAFIA COMO “INVENÇÃO CIVILIZADORA” “No documentalismo paisagístico e etnográfico do final do século XIX e princípios do século XX virão a
distinguir-se o alemão Emílio Biel (que até fotografa a construção da linha férrea do Douro) [e também a da Linha do Tua], Domingos Alvão (1872-1946) e Marques de Abreu (1879-1958), cuja obra fotográfica e editorial é uma das últimas manifestações portuguesas do pictoralismo - naturalismo de que Alvão [discípulo de E. Biel] foi o expoente.”3 Karl Emil Biel, entre nós mais conhecido por Emílio Biel, vem para Lisboa, em 1857, como funcionário da casa Henrique Shalck, mantendo contactos estreitos com artistas da comunidade alemã, e com o rei Fernando de Saxe Coburgo mecenas desse grupo. Pouco depois vai trabalhar para o Porto numa filial da mesma casa, tornando-se mais tarde cônsul, na cidade, do Imperio Alemão, empresário de sucesso, e figura de grande destaque, sempre aprofundando as suas relações com a colónia alemã.4 Emílio Biel nasceu em Amberg, na Baviera, Alemanha e morreu no Porto, onde, depois de uma curta passagem por Lisboa, se estabeleceu, em 1860 como comerciante e editor, tendo sido um dos introdutores da fototipia ou fotogravura em Portugal. Em 1874 comprou a casa comercial Fritz, depois conhecida como casa Biel, dedicada à fotografia onde inicia a sua carreira como fotógrafo paisagista e de grandes obras de engenharia, designadamente da construção do caminho-de-ferro, cujo levantamento documental e fotográfico iniciou em 1885. Com o inicio da I Grande Guerra, em 1914, Biel tem de ausentar-se para o estrangeiro e os seus bens são confiscados pelo estado em 1916, pouco depois da sua morte, no Porto, em 1915. Cunha Moraes e Marques de Abreu terão comprado parte desses bens em hasta-pública (1920). A outra parte, segundo as herdeiras, foi comprada pela “Companhia Portuguesa Editora, Lda” (sucessora de antigas livrarias do Porto), de José Augusto da Costa. 3 SOUSA, Jorge Pedro – Uma História crítica do fotojornalismo ocidental. Porto, [UFP], 1998. Disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-pedro-historia_ fotojorn1.html consultado em 7/1/2014. Capítulo XIII - Fotografia e fotojornalismo em Portugal. 4 Sobre a biografia de Emilio Biel ver também os sites do Centro Português de Fotografia e do Arquivo Histórico do Porto ( Casa do Infante), para além de várias obras incontornáveis sobre a História da fotografia em Portugal, como as de António Sena, textos de Maria do Carmo Seren e Teresa Siza e estudos académicos que tem vindo a ser defendidos e publicados, como por exemplo a recente tese de mestrado em Ciências da Comunicação de Mariana Marin Barbosa Gaspar – Uma leitura dos Encontros de Fotografia de Coimbra .F CSH, Universidade Nova de Lisboa, 2013.
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Fez de Portugal a sua segunda pátria, para onde o seu sentido empreendedor e estreita ligação à então indústria de ponta, o levou a importar recentes invenções, maquinaria e melhorias técnicas aqui ainda inexistentes. Tinha uma sólida e actualizada formação científica, prática e activa, numa altura em que a Europa fervilhava de descobertas e debates científicos. Notabilizou-se em Portugal e no estrangeiro como fotógrafo que chegou a ser da Casa Real em 1876, aplicando técnicas inovadoras recém introduzidas em Portugal e tornando-se proprietário, para além da antiga Casa Fritz, da “Photografia da Casa Real de Emílio Biel&Cª”, então o mais importante estabelecimento do país. A sua acção como fotógrafo esteve intimamente ligada às artes tipográficas e de impressão, chegando a possuir, em 1885, uma tipografia e litografia a vapor onde imprimia os célebres cartões de visita5, cujo uso passou a ser hábito das elites burguesa e aristocrática portuenses, vindo a possuir, 5 anos mais tarde, um estúdio electrificado no Porto. Documentou, como se disse, a expansão do caminho-de-ferro no centro e norte de Portugal, e publicou entre outros, “Caminhos de Ferro no Norte Ilustrado”, entre 1878 e 1899, colaborou com fotografias dos caminhos-de-ferro na Revista “Ocidente” e, a partir de 1882, publicou vários álbuns fotográficos de paisagens, património e costumes, tendo sido premiado, em 1878/1879, com medalhas, em Filadélfia e no Rio de Janeiro. A fotografia era, à época, sobretudo mostrada nas Exposições Industriais que então se generalizam, ainda que, sob a influência de espíritos mais progressistas, relações próximas se tenham estabelecido entre alguns fotógrafos, inovadores e ilustrados, e pintores, ou mesmo artistas plásticos, como se pode deduzir da citação seguinte:
5 “carte de visite” patenteada por Eugène Disdéri (1819–1889) que se considera marcar o inicio de uma industria do retrato fotográfico. Ver TAVARES Emilia – ob cit.
“É um facto que a fotografia foi sendo «vendida» como uma «invenção civilizadora», um meio de propaganda dos tempos modernos, movimento que em Portugal parecia encontrar-se, no final do século XIX, «digno e levantado», já que «numerosos photographos profissionaes, executam a arte em todas as cidades, villas e aldeias mais recônditas. (...) O photographo amador louvando-o e applaudindo os profissionaes distinctos, faz-se uma gloria do exercício voluntario e familiar da arte pelo amor d’ella (...)»O termo «arte» acompanhava este libelo em prol duma divulgação ainda mais eloquente e eficaz da fotografia, e a iniciativa de exposição fotográfica pelos signatários da fundação da Academia [ que durou apenas 1 ano] seria objecto da pena caricatural de Rafael Bordalo Pinheiro, com direito a notícia ilustrada, publicada nas páginas de Os Pontos nos iiis em 1887, e louvores de «verdadeiro merecimento e gosto artístico».6 Essa visão progressista de Rafael Bordalo Pinheiro espirito aberto e participante activo da então moderna civilização com novos códigos e instrumentos visuais dominados pela imagem tecnológica, concorrerá para a implosão de cânones estéticos, sociais e comportamentais antigos. A sua posição de vanguarda perante as controvérsias teóricas entre fotografia e arte, não era então consentânea com a mentalidade dominante na cultura visual oitocentista e na sociedade portuguesa, em transição, mas com grandes resistências e dicotomias em relação à fotografia representativa do novo e mais conotada com a indústria e o comércio do que com a arte.
8. RAFAEL BORDALO PINHEIRO [LISBOA, 18461905], A SÁTIRA COMO ÉTICA SOCIAL E POLÍTICA “Rafael Bordalo Pinheiro deve ser considerado um dos 6 TAVARES, Emília – O retrato entre pose e posses, entre a fotografia e a pintura, p.84. Disponivel em www.emiliatavares.com/.../emlia_tavares__ensaio_retrato_ fotogrfico.pdf/, consultado em 10/172014.
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primeiros e mais radicais artistas modernos portugueses. (…) ” Artista por temperamento que, na juventude auto-didacta, abordou a pintura e o teatro, ele optaria por uma prática cultural particularmente moderna: o jornalismo e, no seu vasto espectro, o jornalismo ilustrado em que o texto é apenas uma das componentes da mensagem, mais imediatamente proposta e apreendida através da ilustração que, nos jornais de Bordalo, foi sempre humorística e caricatural” 7
Pavilhão Português, trabalho reconhecido e elogiado nacional e internacionalmente por todo o género de públicos.
Nesta altura, os jornais e revistas cresceram exponencialmente e Bordalo Pinheiro foi nesse campo inovador determinante, um dos raros interventores, sabendo concitar à sua volta grandes nomes da literatura portuguesa da época que com ele colaboraram proficuamente, com a produção de textos escritos. Contou nos seus jornais com a colaboração de Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e outros escritores, o que lhes conferia uma harmonia textual e icónica e uma notável versatilidade polifónica.
Criador pioneiro da Banda Desenhada em Portugal e seu mentor também no Brasil, destacou-se a nível mundial9 como mestre da caricatura e da sátira social e política, dedicou-se à criação de “cartoons” em jornais e revistas, em que colaborou e criou alguns títulos de jornais10 imaginativos e pautados por uma grande liberdade intelectual e de crítica descomprometida com os poderes tendo-se tornado figura reconhecidamente destacada e importante na história da imprensa nacional.
Pode dizer-se que Bordalo Pinheiro, pioneiro em Arts and Crafts8, artista multifacetado e de genial sensibilidade designadamente expressa nas artes plásticas e artes gráficas, com uma vocação individualizada para o investimento criativo, viveu ao mesmo tempo e intensamente uma tardia e “sui generis” revolução industrial em Portugal. Dotado de uma imaginação metódica e enorme criatividade bem visíveis nos seus trabalhos gráficos e ainda de excepcional ceramista, cuja decoração entre a exuberância do barroco e o decorativismo, se inspira na fauna e flora locais e nos objectos domésticos populares, a sua obra diversificada e vasta pauta-se ainda por um elevado sentido prático, grande rigor técnico e espírito empreendedor. Fundou, em 1885, nas Caldas da Rainha uma fábrica de louça artística que se expandiu e tornou célebre até hoje e dirigiu magistralmente, na Exposição de Paris de 1889, a construção do 7 SILVA, Raquel Henriques da – O Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro: uma iconologia de ambivalência. Ver também sobre Bordalo as seguintes obras incontornáveis: José Augusto França –Rafael Bordalo Pinheiro. 2ª edição. Lisboa: Bertrand, 1980 e João Paulo Cotrim - Rafael Bordalo Pinheiro: Fotobiografia. Lisboa: Museu Rafael Bordalo Pinheiro e Assírio &Alvim, 2005 8 Ibidem
No último quartel do século XIX a ilustração - principalmente o retrato - invade a imprensa, frequentemente por intermédio de artistas como Rafael Bordalo Pinheiro, um dos maiores criadores artísticos portugueses que iniciara, ainda jovem, o gosto e o estudo do desenho e das artes em geral, influenciado desde cedo por seu pai, também pintor.
“Rafael Bordalo Pinheiro, conhecido de todos os portugueses por ser o criador do ‘Zé Povinho’, foi um caricaturista exímio, com um tipo de traço que o distinguiu de todos os caricaturistas nacionais e internacionais. Fez teatro, frequentou o curso superior de Letras, a Academia de Belas Artes e trabalhou como amanuense na secretaria da Câmara dos Pares. Foi como desenhador, litógrafo, gravador, ceramista e caricaturista que se viria a destacar no seio da sociedade lisboeta de oitocentos. Rafael Bordalo Pinheiro levou a sua arte além-fronteiras: foi colaborador em vários periódicos estrangeiros, como o El Mundo Cómico, Ilustración Espanõla y Americana, Ilustrated London News ou El Bazar . No Brasil, desenvolveu as suas técnicas de litógrafo e editou jornais (o Mosquito, o Psit e o Besouro).”11 9 Bandas desenhadas de Rafael Bordalo Pinheiro, 1892-1904 : histórias em quadrosinhos d’O Comércio do Porto Ilustrado e Diário de Notícias Ilustrado / org. e introd. de Carlos Bandeiras Pinheiro. Lisboa: Aventura Gráfica, 1996. 10 “A Paródia”, “ O Antonio Maria”, “ A Lanterna Mágica” “Pontos nos iis” “ A Lanterna Mágica”, para além de outros periódicos ilustrados alguns de existência efémera. 11 ROCHA, Luzia – Bandas militares na Ópera: apontamentos históricos de Rafael Bordalo Pinheiro. ” Boletim da Banda do Exército”. Disponivel em www.academia. edu/.../Bandas_Militares_na_Opera_apontamentos_histor. Consultado em 20 /1/2014.
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No domínio das artes foi membro singular do conhecido “Grupo de Leão”, associação lisboeta de pintores e artistas dirigida por Silva Porto em que se envolveu também a literatura, a filosofia, a música e a arquitectura e se distinguiram, para além dos irmãos Bordalo Pinheiro, Rafael e Columbano, Ramalho Ortigão e José Malhoa que propuseram e defenderam em Exposições anuais de quadros modernos uma estética naturalista de renovação da paisagem nacional e representação de populares que nela se movimentavam, originando ambiências iconográficas exuberantes e específicas de critica etnograficamente enraizada e reflexão de matriz romântica, do que era ser português, nos finais do séc XIX. Essa problemática do ser português evidenciou-se com o desenvolvimento económico-social gerado em Portugal pela política de fomento das vias de comunicação e renovação urbanística a qual se viu acompanhada de uma certa animação urbana e renovação de práticas culturais e artísticas, coexistentes, contraditoriamente, com um exasperado pessimismo sociocultural. Artista por temperamento, Bordalo Pinheiro, com sua sátira humorística e caricatural de forte empenhamento ético, soube aliar, de modo inovador, arte e técnica – topos da modernidade – sendo considerado, em seu apego à modernidade, excepção nesse ambiente pessimista de crítica da sociedade portuguesa protagonizado pelo grupo de intelectuais da Geração de 70 (Antero de Quental, Oliveira Martins e Eça de Queiroz) conhecidos, mais tarde, por “Vencidos da Vida”.
9. DA PERCEPÇÃO DOS OLHARES À CONSTRUÇÃO FOTOGRÁFICA E ARTÍSTICA DE TIPOS E ESPAÇOS ENVOLVENTES: ANÁLISE APROXIMATIVA. Atentos os dois percursos biográficos atrás esboçados, em que é nítido como ambos se cruzam com as inovações tecnológicas, a ciência aplicada e as actividades artísticas, o que, do nosso ponto de vista, perpassa as diversas abordagens implícitas ao objecto – Linha do Tua - mecânica e artisticamente representado, adopta-se uma metodologia de análise das diferentes representações iconográficas dos primórdios da Linha, - a óptica fotográfica e a perspectiva das artes visuais -, assente
na comparação e cruzamento de olhares dos seus produtores, e no confronto com a percepção histórica. Tenta-se apreender o olhar inovador destes dois grandes nomes da produção e cultura visual portuguesa, Biel e Bordalo Pinheiro, com afinidades entre si, como vimos, e os registos expressivos que cada um deles fez de momentos marcantes da história da Linha do Tua, em finais do século XIX. Recortamos assim, dois instrumentos do olhar então pioneiros, com diferentes enfoques e processos mas susceptíveis de comparabilidade: a fotografia e as artes plásticas. Procurar-se-á surpreender os olhares criativos dos autores, as suas posturas artísticas e as sensibilidades estéticas com que percepcionaram e representaram a Linha do Tua e o que ela, como espaço de trabalho tecnologizado, comemoração festiva e manifestação social, cultural e política, terá significado, sem ignorar uma atenção especial às impressões históricas que nesses dois artistas se repercutem, em função das condições sociais e quotidianas de vida em que esta sua produção teve lugar. 9.1. Álbum Fotográfico da construção da Linha do Tua São mais de vinte fotografias assinadas por E. Biel de que se aqui se apresentam e analisam cinco consideradas representativas do conjunto. Este álbum, de capas vermelhas e “in-fólio oblongo com frontispício e 23 fotografias” documenta pontes, túneis, viadutos e estações da Linha do Tua em construção, para além de locomotivas, paisagens e figuras humanas. Trata-se de uma publicação, pouco conhecida, editada pela Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, concessionária da linha do Tua e que foi impressa na antiga Casa Fritz (comprada por E. Biel, em 1874), para comemorar a inauguração da Linha, realizada a 27 de Setembro de 1887 e a que assistiu a família real, o Rei D. Luís I e D. Maria Pia, que um comboio especial transportou para Mirandela, bem como alguns ministros e vários convidados, entre os quais, se contava Rafael Bordalo Pinheiro.
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O conjunto dessas fotografias de exterior com enfoques e perspectivas diversas cria, numa espécie de escrita, uma representação mecânica da “realidade” com diferentes leituras, da fase de construção do 1º troço da Linha do Tua até Mirandela permitindo relevar etapas e locais de maior dificuldade da obra. Foca e enquadra nas paisagens agrestes de montanha ou planas do vale, colhidas numa envolvente natural em ruptura, porém imbuídas de grande expressividade e beleza estética, personagens masculinas do mundo do trabalho técnico ou rural, captando o pormenor dos trajes locais e certas posturas e mesmo hábitos de colocar por cima do ombro o casaco, sempre figuras do povo em situação de grande naturalidade e descontracção.
[fig. 3] Fragas Más - Túnel da Cruz (com figuras humanas) • Pag. 17
[fig. 4] “Pucha Preto” - Figuras humanas Pag. 29
Em segundo ou terceiro plano aparecem também por vezes imagens de casas rurais, enquanto que, em primeiro plano, as árvores e encostas servem de moldura ou enquadramento estético das fotografias, onde o movimento de pessoas quase sempre presentes, é em geral, pequeno. [A Construção da Linha do Tua, por E.Biel. (Figs 1 a 5)] [fig. 5] Mirandela ao fundo. Envolvente paisagística e figura humana Pag. 33
[fig. 1] Vale do Tua: Pontes do Vieiro e Abreiro • Pag. 26
[fig. 2] Linha paralela ao rio. Tunel das Prezas • Pag. 11
Estas fotografias históricas da construção da Linha do Tua, organizadas em álbum, são uma abordagem fotográfica inovadora, com imagens que revelam um domínio técnico (captação e laboratório a avaliar pela riqueza tonal) e enquadramentos já de carácter cinematográfico, panorâmica que ajuda a traduzir toda a beleza rude e inóspita do vale do Tua. O leito do rio
cavado pela força da natureza é depois sujeito à intervenção do braço do homem. Os vários planos e a sua meticulosa e pormenorizada composição, em destaque pelo recurso hábil à perspectiva, são bastante ricos pela informação diversificada que proporcionam. Desprende-se das fotografias representativas dos momentos captados pelo fotógrafo uma espécie de carácter definitivo, resultante talvez dos seus conhecimentos aprofundados, e dos cuidados dispensados à composição e produção da fotografia, exigidos, quiçá, pelo grau ainda rudimentar das técnicas fotográficas, à época. No entanto, as vantagens técnicas dos melhores equipamentos de que E. Biel dispunha ter-lhe-ão permitido usar ângulos diferentes e colher diversas e complementares perspectivas do objecto fotografado na sua multiplicidade e variedade de focos, em diferentes momentos e locais: a linha
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férrea com seus túneis e viadutos, entre ravinas onde o caudal do rio se estreita, ou o vale espraiado e habitado, por onde serpenteia, calmo, o rio Tua É evidente que nesta altura a fotografia em Portugal se encontra já numa fase relativamente avançada do seu trajecto inicial ao mesmo tempo que emerge o processo da edição fotográfica. Segundo António Sena, um terceiro momento da história da imagem fotográfica em Portugal, terá decorrido, de 1880 a 1898, desde o estabelecimento de Emílio Biel no Porto e o arranque da edição fotográfica, com a utilização da fototipia por Biel e Carlos Relvas. Devido às suas características (os meios tons e a reprodução dos pormenores) a Fototipia será: “o processo ideal para o levantamento de um país, viagem que Emílio Biel fez no campo da engenharia e da arquitectura, que Carlos Relvas faria na paisagem e nas obras de arte, e Cunha Moraes na África Ocidental.”12 Assim, nas imagens de Biel - imagens de um pais concreto e real, mas quase sempre humanizadas - está patenteado o esforço e trabalho humano para dominar ou aproveitar-se dos recursos naturais (terra e rio) sem esquecer a veneração pela natureza e pela paisagem que nos são exibidas com um domínio de detalhe, nitidez, leque de tons, contrastes e a sucessão de planos rio-vale-casas- pessoas- linha férrea – túneis-escarpas, num jogo de equilíbrio entre o ver ao longe e o ver ao perto. A paisagem, do Tua como do Douro, que Biel, entre tantas outras, fotografou, é uma construção do homem, e esse conhecimento, essa descoberta da sua beleza deve-se essencialmente à fotografia pioneira, como a de Emilio Biel.13 Numa perspectiva de avaliação estética destas fotografias, em seu móbil inicial, de natureza comercial, são objecto de realce 12 Citado a partir de BARROCAS, Antonio José de Brito Costa - A Arte da Luz dita. Revistas e Boletins. Teoria e prática da fotografia em Portugal (1880-1900). 13 “O estudo das primeiras imagens fotográficas dos caminhos-de-ferro portugueses é uma área aliciante, pela forma como os temas ferroviários começaram a preocupar os fotógrafos amadores ou profissionais da época que foram os pioneiros da fixação dos primeiros monumentos dos caminhos-de-ferro (estações e obras de arte) e primeiras imagens da circulação ferroviária (locomotivas, carruagens, comboios, chegadas, partidas, descarrilamentos). …. Se o interesse artístico foi relegado para um segundo plano, por motivo da reportagem sobre os principais acontecimentos vividos pela sociedade ferroviária oitocentista, este interesse voltou a manifestar-se, entre 1920 e 1960, quer por via de fotógrafos independentes, quer pela promoção de concursos de fotografia, promovidos pela Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses (como aconteceu em 1956, por altura do centenário). “ In Fundação Museu Nacional Ferroviário –Armando Ginestal Machado - “Os caminhos de ferro na fotografia”.
os seus notórios traços artísticos designadamente visíveis na elegância e sensibilidade do recorte de meio tom das figuras, das casas e das árvores que pontuam e dão vida a paisagens e encostas pedregosas revolvidas pelas máquinas abrindo a linha. Há uma aliança perfeita entre a inspiração do instantâneo e a composição pictórica. Em síntese, no seu conjunto, este Álbum configura uma autêntica reportagem fotográfica e documental de grande intensidade de quem sabe que está a fixar imagens para a posteridade. Podemos daqui depreender que a fotografia que à época nos aparecia implicitamente relacionada com o “realismo”, pode ter sido um importante auxiliar para o trabalho criativo, como a análise seguinte melhor no-lo poderá evidenciar. 9.2. Reportagem jornalística em BD: desenhos e caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro Começando por observar, numa aproximação comparativa, as figuras da banda desenhada ilustrativa das personagens que se deslocam de ou a par do comboio inaugural da Linha do Tua, percebem-se de imediato os seus semblantes e fisionomias de grande expressividade em que se pode considerar estarem implícitos conceitos de natureza interpretativa como “capacidade de captação ou flagrante, termos que não podiam ser mais contemporâneos e devedores da linguagem fotográfica”14. O que sugere a presença da ideia fotográfica de E. Biel, e das pessoas “caricaturadas” pela câmara, em segundo plano, na paisagem, com uma “individualidade” que se impõe nesta paleta de desenhos e caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro com idêntica verosimilhança e fidelidade ao “real”. Exemplo evidente dessa semelhança pode observar-se na vinheta do lado esquerdo do fundo da 2ª prancha (fig.7), desenho de Bordalo que representa uma imagem da linha férrea entre as encostas abruptas de montes e que faz de imediato lembrar a segunda fotografia da Linha acima apresentada (lado esquerdo) ( fig. 2) realizada por E. Biel. 14 TAVARES, Emilia, ob cit.,p.80
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Ainda em idêntico sentido interpretativo que pode sugerir, por parte de Rafael Bordalo Pinheiro um conhecimento directo do Álbum Fotográfico, de Biel, observe-se, na 4ª prancha – composição alegórica da inauguração simbólica da linha do Tua, em Mirandela – (fig.8), desenhos de fundo representativos da Linha férrea que funcionam como separador central da composição, os quais parecem simular a reprodução de fotografias do Album de Biel, como por exemplo e mais concretamente, o estético enquadramento das Pontes do Vieiro e Abreiro objecto de respectiva fotografia de Biel ( fig.1). 15 Mas aqui, neste trabalho de Bordalo Pinheiro, onde as imagens se combinam com as palavras, em quase todas as caricaturas e desenhos recortados num certo fundo antropológico, ao contrário do que sucede nas fotografias de Biel, são as figuras humanas de vários tipos sociais, sempre em grupos e mesmo pequenos aglomerados que surgem em primeiro plano, mesmo na prancha final da BD. Nesta, que representa a sala do banquete oferecido aos convidados, destacam-se figuras humanas em dois planos. Também na alegoria maior (fig. 8) alusiva directamente à comemoração da Linha, onde do lado esquerdo se evidenciam as figuras dos engenheiros mais importantes da obra, enquanto, em pano de fundo, se localiza, em movimento, uma locomotiva e, do lado direito, alguns monumentos típicos de Mirandela, como a ponte sobre o rio Tua e a imponente estação de Caminho-de-ferro, recém construída, também representada num outro ângulo, em fotografia, no Album de Biel, mas aqui, noutra perspectiva, em desenho engalanado com bandeiras festivas. Aliás, toda a composição deste quadro alegórico no que se refere em especial à representação de Mirandela, em lugar central, ao fundo, sugere, de imediato os registos fotográficos da mesma vila que E. Biel nos apresenta. O que nos leva a perguntar: Trata-se aqui de um “efeito de época” ou de inspiração que o desenho artístico vai buscar à fotografia?! O que nos remete para a problemática tão discutida à época sobre arte e técnica, enunciada no título deste ensaio. 15 Tendo tido lugar as cerimónias públicas de inauguração da Linha a 29 de Setembro de 1887 e datando a publicação da respectiva reportagem ilustrada de Rafael Bordalo Pinheiro, um dos convidados, de 14 de Outubro do mesmo ano, cerca de 15 dias depois, poderá perguntar-se se o mesmo terá tido acesso ao Album Fotográfico de Biel, presumivelmente distribuído aos convidados de honra, como era então prática com este tipo de trabalhos por encomenda, vindo a encontrar nele uma fonte de inspiração para alguns dos seus desenhos da Linha incluídos nesta reportagem artístico- jornalística que faz do acontecimento.
Atravessa todas estas figuras de Bordalo Pinheiro, de múltiplos e enredados sentidos, não só uma intensa e explicita narratividade dos momentos mais simbólicos e vivos da efeméride comemorativa de inauguração da Linha do Tua, e sua repercussão local, como ainda a representação implícita da reportagem fidedigna e o gesto de ir directamente à fonte, ao acontecimento, colher em directo a informação, atitude imanente à actividade do jornalista mas também do fotógrafo, recriada em modelos criativos das artes visuais e gráficas. As figuras do povo que acorrem para ver passar o comboio real, figurantes deste evento festivo, tratadas com simpatia, não deixam de fazer lembrar o lado trágico-cómico, dramático da “História do Progresso”, e o magnífico desenho da sua figura mais célebre o “Zé Povinho”, metáfora do povo português genialmente construída. Delas se podem depreender também traços definidores da obra de Bordalo que viveu sempre entre a pulsão do desenho16, os desafios do jornalismo e da crónica diarística e a curiosidade pela indústria e tecnologia esta, comum a E.Biel. Estes desenhos, de linhas minuciosamente descritivas espelham bem os grupos sociais ligados à construção da Linha do Tua e aos diferentes trabalhos do caminho-de-ferro, os numerosos populares que aderiram às comemorações, festejando a passagem do comboio e ainda as elites privilegiadas convidadas para as cerimónias de inauguração da linha, retratando e caricaturando por condensação o conjunto da sociedade da época, em seu melhor e seu pior como foi sempre traço peculiar temperamental, mordaz e ético da extraordinária produção de Rafael Bordalo Pinheiro. Assomam ainda nesta interessantíssima banda desenhada de notável elegância mas também de um certo excesso e exuberância festiva, elementos de sátira, riso e liberdade descomprometida com o poder, para além de sinais indeléveis de uma postura tranquila e objectiva própria do fazer da crónica jornalística assumida numa atitude militante que se desprende igualmente do conjunto desta reportagem artística. 16 Raquel Henriques da Silva, ob cit, p.242.
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[INAUGURAÇÃO DA LINHA DO TUA (1887) DE RAFAEL BORDALO PINHEIRO (FIGS 6 A 9)]
(Reportagem em banda desenhada publicada em “Pontos nos iis”, 14 de Out. 1887)
Fig. 6 – 1ª Prancha - desenhos e caricaturas narrativa da euforia festiva colectiva
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Fig. 7 – 2ª Prancha - Linha e comboio
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Fig. 8 – 3ª Prancha - Alegoria da inauguração do caminho-de-ferro em Mirandela
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Fig.9 – 4ª Prancha - Sala do banquete1
1 Alusão ao lauto jantar com duzentos talheres no barracão do cais das mercadorias, pintado por Manini e decorado por Marques da Silva que a companhia construtora ofereceu aos convidados ilustres.
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10. Em suma, estamos em presença de dois exemplares pouco conhecidos e ainda menos estudados, das obras destes dois grandes vultos da vida artística e cultura visual portuguesa de oitocentos, personalidades multifacetadas e expoentes da modernidade dessa época. Através destes seus trabalhos, e dos seus efeitos diversos de realidade, bem como dos modos como se vêem e guardam, pode reconstruir-se toda uma memória visual e histórica da linha do Tua e da sua inauguração oficial. O seu pensamento pressupõe que se reconstitua, na medida do possível, com base numa cultura artística e respectiva história, que formalizou estruturalmente na longa duração toda uma série de conceitos estéticos e “modos de ver” em que se suportam as práticas dos que produzem discursos visuais: fotógrafos, artistas plásticos e/ou outros e que legitima e justifica campos semânticos (paisagens e elementos humanos) e certos modos de os representar em mimesis nas vertentes de imitar e retratar. Tal pressupõe também um entendimento das práticas fotográficas e artístico-visuais como espaços de intertextualidade, o que se sugeriu na aproximação comparativa em particular de algumas fotografias do Álbum da Linha do Tua de E.Biel e de certos desenhos da reportagem ilustrada da inauguração da mesma, de Bordalo Pinheiro. A construção dos sentidos das imagens fotográficas e artístico-visuais (imagens documentais no caso presente) e a realidade e textos com que se correlacionam só se poderá esclarecer mediante uma contextualização histórica e sociológica interrogando os discursos que as antecipam, promovem ou lhes dão continuidade, e que nos permita investigar essas imagens como dispositivo enunciativo de sua produção e recepção/leitura. 17 Pode dizer-se que a esse novo olhar em vias de democratização 17 Reflexões enunciadas a partir de BARROCAS, Antonio José de Brito Costa - A Arte da Luz dita. Revistas e Boletins. Teoria e prática da fotografia em Portugal (1880-1900). Vol 1,p.16 e segs ( Dissertação apresentada à Faculdade de Belas Artes, Univ. de Lisboa.) Disponivel em www.academia.edu/.../ARTE_DA_LUZ_DITA , consultada em 23 de janeiro de 2014.
não são alheias as imagens fotográficas e artístico-visuais que podemos perceber como uma janela aberta para a história da Linha do Tua e que analisámos em seu léxico estético e textura documental. Estas imagens estruturaram-se, no seu conjunto, na utilização da óptica, perspectiva e articulação de sucessivos planos, no uso expressivo da tonalidade claro-escuro, na procura e consecução eficaz do pormenor, do detalhe e da nitidez mas também do enquadramento do particular no geral: a natureza em transformação pela tecnologia e a indústria e a sociedade rural oitocentista representada através de seus principais tipos sociais e marcantes eventos públicos. Para finalizar, importa ainda salientar que julgamos ter deixado perceptível, que a dimensão criativa enquanto intenção documental e/ou artística, se encontra bem presente e igualmente patente quer no acto de fotografar de E. Biel, quer no acto da produção do desenho e caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro, duas figuras pioneiras em Portugal, nos finais do século XIX.
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A LUZ E AS SOMBRAS NO VALE DO TUA Gilberto Gomes
O presente texto constitui uma reflexão sobre a linha do Tua entre finais do séc. XIX e os anos 40 do século XX, que se inicia com o «negócio» da concessão. Contém algumas notas caracterizadoras da construção e do sistema de exploração ferroviário, seguindo-se os contornos do conjunto ferroviário de Mirandela e da sua comunidade, em 1947. Num último ponto, identificam-se alguns elementos que preanunciavam as alterações estruturais para o sector dos transportes, no período de 1927 a 1947. A chegada do comboio à região veio alterar a rede de mobilidade assente na tracção animal e na sua articulação com o transporte fluvial. O «canal» ferroviário alargou a sua influência ao território periférico à linha férrea num raio de 20 quilómetros. A partir dos anos 20, em especial com a criação da Junta Autónoma de Estradas (JAE) em 1927, uma nova rede de mobilidade instalou-se paulatina e progressivamente. O transporte de passageiros e mercadorias deixou de ser detido em exclusivo pelas estações ferroviárias. A construção de novas estradas, com pisos e geometrias adequadas a veículos motorizados, alterou radicalmente os conceitos de mobilidade do interior. Importa ainda uma breve alusão ao «território» em que a linha operava. Uma linha de montanha, cujo traçado corria do alto planalto de Bragança para o vale do Tua, confluente no Douro. Rarefeito de gentes, logo com poucos centros urbanos de registo, destacando-se Mirandela, no cruzamento de caminhos ancestrais. A exploração iniciou-se numa conjuntura de contra-ciclo, com o Alto Douro a ser uma das zonas mais devastadas pela filoxera1, com a destruição das suas vinhas, dando origem à replan1 O Relatório da CN, de 1887, revela o estado de catástrofe da região, devastada pela
tação de uma nova paisagem vinhateira, com a recomposição e o emparcelamento das propriedades.2 Se juntarmos a esta conjuntura regional, a bancarrota de 1891/92, que aprofundou a crise da região, entenderemos facilmente o colapso financeiro da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro (CN). 1. O «NEGÓCIO» DO TUA Nos anos 80 do séc. XIX decorreu a segunda fase do investimento ferroviário em Portugal. Após a crise financeira de 1876, na qual desaparecera metade da banca comercial portuguesa, os grandes negócios que se perfilavam continuavam a ser os tradicionais: os tabacos, a construção de portos, caminho-de-ferro, estradas e trabalhos de regularização nos grandes rios, bem como, o financiamento do Estado. Por outro lado, a forte emigração em especial para o Brasil, ajudava a manter um clima de aparente crescimento económico, com as remessas dos emigrantes, que alimentavam os depósitos bancários, em especial dos bancos da praça do Porto. Neste período, assiste-se à recomposição de dois grandes grupos financeiros, com fortes ramificações políticas, à volta das figuras do Conde de Burnay e do Marquês da Foz. De realçar a consolidação do grupo «Foz», com um conjunto de figuras políticas notáveis, das quais se desfiloxera «havendo de mais a mais a lamentar o mau estado sanitário de Mirandela…. lembrando que, no ano de 1887 foi ali vítima quase a décima parte da população, tendo-se produzido 140 óbitos por 100 nascimentos». Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, 1887. Lisboa, pp 5. 2 Rebelo, Vasco. A revolução pós-filoxérica e os anos oitenta: dois períodos de grandes transformações na viticultura duriense in O Voo do Arado. Museu Nacional de Etnologia. Lisboa. 1996. pp. 398-411. Fauvrelle, Natália. As quintas vinhateiras de D. Antónia – um legado para o Douro in Dona Antónia. Museu do Douro. Régua. 2012, pp 43 e segs.
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tacava Mariano de Carvalho. A atribulada concessão da Linha da Beira Baixa à Companhia Real (CR) 3 acabou por ser a fronteira de interesses dos dois grupos, culminando com substituição do Conselho de Administração da CR. A concessão da linha de Mirandela foi atribuída ao Marquês da Foz pelo contrato definitivo de 30/06/1884. Entre o contrato provisório e o definitivo, foi introduzido um novo parágrafo «no qual se preceitua que o trespasse desta empresa não poderá ser feito a companhia ou sociedade em cujos estatutos se não inclua expressamente a cláusula de ser composta de cidadãos portugueses domiciliados em Portugal a maioria da sua direcção ou conselho de administração…». 4 Esta alteração legislativa extensiva a todas as novas concessões, incluindo a linha da Beira Baixa, foi o ponto de partida para o «grupo Foz» alavancar a contestação aos accionistas franceses, detentores da maioria do capital da CR. Do contrato de concessão interessa reter como relevante, o facto de o investimento ser realizado pelo concessionário ou por uma empresa à qual o mesmo fizesse o trespasse. O contrato garantia à empresa um «rendimento líquido anual de 5,5% em relação ao custo do cada quilómetro que se construir, compreendendo o juro e a amortização do capital», 5 e estabelecia o preço quilómetro de construção em 19.162$300 réis. Concedia, ainda, a isenção nos primeiros 20 anos, de contribuições gerais ou municipais, excepto os direitos de trânsito, lançados sobre o preço de transporte de passageiros e mercadorias, assim como, a isenção de direitos de importação, durante 5 anos, dos materiais necessários para a construção e exploração. O modelo de financiamento do caminho-de-ferro em Portugal6 incluía, perante a tradicional falta de recursos do Estado, a atribuição de concessões de construção e exploração de linhas a particulares, num quadro fiscal propício e com apoios directos à construção, quer através de subsídios ao quilómetro, quer asse3 Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses. 4 Contrato definitivo para a construção e exploração do caminho de ferro de Foz Tua a Mirandela. CNCF. Lisboa. 1886, p 2. 5 Idem, pp 12 6 O modelo não era exclusivo a Portugal. Vingou em diversos estados europeus a começar pelo país vizinho – a Espanha.
gurando uma taxa de juro ao capital investido. O concessionário era, na generalidade, o empreiteiro geral da obra e o fundador da sociedade anónima criada para executar a exploração. O negócio centrava-se sempre na construção, «esmagando» os preços das subempreitadas, pelas comissões obtidas na compra de materiais e equipamentos, pelas percentagens dos financiamentos, pelo «trespasse» da concessão à sociedade e, ainda, pelos lugares nos conselhos de administração das sociedades. 7 No relatório de 1886 a CN apresentou um capital accionista de 600 contos, inscrevendo no mesmo ano um capital obrigacionista de 1.100 contos de réis. Em 1891, o problema agravara-se, mantendo-se o capital accionista de 600 contos e o obrigacionista em 3.720 contos, atingindo o investimento de 1º Estabelecimento (construção das linhas) a soma de 3.766 contos. O modelo que conferia ao concessionário o papel de financiador do projecto ruiu na CN, tal como acontecera noutras concessões. Perante a insuficiência de capital e a necessidade do mesmo para a conclusão da construção, as empresas pediam autorização ao Governo para procederem a emissões obrigacionistas. E, com este procedimento, «amarravam» o Estado concedente ao desfecho do negócio. Pela Portaria de 27/06/1889 o Governo autorizou a CN a emitir 29.400 acções a 90.000$00 réis por título tendo por finalidade a «conversão das obrigações do tipo de 5% e à conclusão da construção da linha de Viseu». Ou seja, pedia-se mais para pagar o atrasado e avançava-se com nova construção. Como informação complementar inserta no próprio título explanava-se que «O Governo Português autorizou a companhia pela portaria acima indicada a garantir o pagamento dos coupons e a amortização das obrigações com todos os seus haveres tanto móveis como imóveis com as receitas líquidas da exploração e com os complementos que o governo haja de pagar…».8 Os títulos emitidos eram assinados por dois administradores, 7 A CN (155 km de rede) em 1991 tinha sete administradores, a CR (1.500 km de rede) tinha mais de trinta, entre administradores portugueses e franceses. 8 Título de Obrigação ao Portador, de 90$000 Rs, da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Autorizada por portaria de 27 de Junho de 1889.
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o Marquês da Foz9 e por Fontes Ganhado10, companheiros e parceiros de outros negócios, como a partilha do poder na CR. Perante a opinião pública e os mercados, o Estado autorizara e sancionara a emissão. Obviamente, não se esperava é que o próprio Estado estivesse falido. A CN era uma sociedade anónima maioritariamente detida por elementos proeminentes do «grupo» Foz.11 A começar pelo Marquês da Foz, que em 1893 detinha 9.122 acções12 e foi o seu primeiro presidente até à crise de 1991. Nesse ano, tomou posse o novo conselho que detinha credibilidade para negociar com os credores perante a insolvência da companhia. Apesar dos termos contidos do relatório anual da CN de 1891, perante a emergência que o momento exigia, levaram o relator a sintetizar a realidade equívoca do investimento ferroviário em Portugal ao escrever «As circunstâncias financeiras da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro eram desde há muito embaraçosas, porque as despesas de construção das linhas excederam consideravelmente os recursos obtidos e as receitas de exploração ficaram abaixo do que se tinha previsto». Assim, com um capital insuficiente para o objecto da concessão e a promiscuidade legalmente consentida da figura do concessio9 Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco (1849 – 1917). 2º conde e 1º marquês da Foz. Foi director do Banco de Portugal e participou em múltiplas sociedades de diversificados negócios. Fez parte da elite financeira da Lisboa de oitocentos, até à crise de 1891. Eram célebres as suas festas no Palácio Foz em Lisboa. Foi preso na bancarrota de 1891, tal como, alguns dos seus correligionários e amigos, a começar por Mendonça Cortez, presidente do Banco Lusitano. V/ Dicionário Biográfico Parlamentar. 1834-1910. Vol. I. Coord. de M. F. Mónica. Imprensa das Ciências Sociais – Assembleia da República. Lisboa. 2004 e Reis, Jaime. Uma Elite Financeira. Os Corpos Sociais do Banco de Portugal. 1846-1914. Banco de Portugal. Lisboa. 2011, pp107-108. 10 António Maria Fontes Pereira de Melo Ganhado (1849 – 1906). 2º Marquês de Fontes Pereira de Melo. Era sobrinho do estadista da Regeneração. Entrou para a CR em 1884, com o Marquês da Foz, e saiu com ele na crise de 1891, tal como na CN, in Dicionário Biográfico Parlamentar. 1834-1910. Vol. II. Coord.de M. F. Mónica. Imprensa das Ciências Sociais – Assembleia da República. Lisboa. 2005. 11 Na CN detinham posições accionistas e obrigacionistas correligionários dos negócios e de afinidades políticas afins como: Adrião Seixas, Fernando Pereira Palha e Frederico Pereira Palha, Jorge O’Neill, José Nogueira Pinto, Manuel António Seixas, o Visconde de Barreiros e o Visconde Moreira Rey. Para além destes, marcavam presença figuras políticas respeitáveis como o Conselheiro Júlio Marques de Vilhena e destacadas personalidades como o Conselheiro Henrique Mateus dos Santos do Banco de Portugal, António Xavier de Almeida Pinheiro, engenheiro e Director de Exploração da linha, Pedro Inácio Lopes, Director da CR, ou ainda, o Marquês Fontes Pereira de Melo Ganhado, Administrador Delegado da CR, no período em que a mesma foi dominada pelo Marquês da Foz. No Norte destacavamse personalidades da região como Clemente Menéres ou influentes elementos das elites financeiras da praça do Porto como o Conde de Lumbrales. 12 Lista dos Srs. Accionistas in Relatório Apresentado à Assembleia Geral Ordinária de 22 de Fevereiro de 1893.
nário-empreiteiro-fundador da sociedade, a realidade apresentava-se bem diferente das ilusórias expectativas de tráfegos. Perante a situação a que se chegara, era necessário em termos contabilísticos arranjar uma panóplia de soluções que acertassem os balanços. Na generalidade optou-se pela incorporação das dívidas no capital com novas emissões, privilegiadas ou não, de acordo com o estatuto do credor, mas que não resolviam o que era premente, ou seja, não traziam capital. Em Março de 1892 foi requerido em Viseu o arresto ao rendimento bruto do transporte de passageiros e mercadorias da Linha da CN de Santa Comba Dão a Viseu. O requerente, invocando a sua condição de credor referia «o justo receio de que a Companhia se tornasse insolvente». O arresto foi decretado, tal como pedido, ficando as receitas das estações à guarda dos chefes das mesmas, como fiéis depositários da decisão judicial. Nas alegações desenvolvidas pela empresa, invoca-se a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que estabelecera, numa situação análoga contra a CR, como verdadeira jurisprudência a decisão de «só estão sujeitas a penhora as receitas a vencer, que não forem julgadas necessárias à conservação e exploração das linhas férreas».13 Tal como já acontecera com a «suspensão de pagamentos» da CR, em 1867, uma vez mais, as empresas ferroviárias invocavam o seu estatuto especial de sociedades ao abrigo de um direito público nacional, e não um simples direito privado, alegando a natureza do caminho-de-ferro pertencer à esfera do domínio público.
13 Representação entregue ao Governo de Sua Majestade. Em 27 de Junho de 1892. Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Lisboa. 1892.
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2. NOTAS SOBRE A CONSTRUÇÃO E A EXPLORAÇÃO DA LINHA DE FOZ TUA A MIRANDELA
Problema, aliás, que se manteve sempre na exploração, com a queda de rochas, originando diversos desastres e consequentes interrupções do tráfego.
Quando chegamos à década de 80 do séc. XIX, havia uma experiência acumulada de trinta anos de trabalhos ferroviários em Portugal. A geração de engenheiros militares acantonados no MOPCI14 estava tecnicamente preparada para desenvolver todo o trabalho de projecto, execução, exploração e fiscalização do sector. A primeira fase da construção da linha, 15 que partia da estação do Tua na linha do Douro, corria ao longo da margem esquerda do Tua, em zonas despovoadas e de difícil acesso, atingindo Mirandela após um percurso de aproximadamente 54 km. O traçado em planta apresentava curvas superiores a 150 metros de raio e, em perfil atingiam-se rampas máximas de 18%, que se traduzia em boas condições para a tracção dos comboios.
Uma vez aprovado o traçado, era necessário proceder às expropriações dos terrenos, operação bem complexa na época, perante a inexistência do cadastro da propriedade. A avaliação dos prédios rústicos e urbanos, dos tipos de benfeitorias existentes e dos cultivos dos mesmos, originava todo um vasto processo, amigável ou judicial, que alimentava cartórios, tribunais e dava trabalho a procuradores, avaliadores e bacharéis. Claro que os grandes proprietários, como a Sociedade Clemente Menéres, na construção de Tua a Bragança, tinham uma capacidade negocial diferente dos proprietários de pequenas parcelas.
A implantação do canal ferroviário na margem do Tua, muitas vezes abrupta, obrigou à construção de múltiplas obras de arte (pontes, túneis, muros de suporte), em condições de péssimo acesso. Foi, pois, neste contexto orográfico da região que se encontrou a dificuldade e os custos acrescidos da construção.16 A complicar este quadro juntava-se a inexistência de acessos à plataforma a construir, a começar pela instalação dos estaleiros da construção e do transporte de materiais e equipamentos. Da documentação conhecida da época, não se pode inferir que a construção se tenha debatido com problemas imprevistos na transposição crítica de bacias hidrográficas. Nesta primeira fase, não se colocaram problemas de traçados alternativos. Na elaboração dos orçamentos foram contemplados jornais de trabalho em rocha dura e a necessidade recorrente da utilização a explosivos. Um dos problemas presentes na construção foi a necessidade de muros de suporte para conter as derrocadas.17 14 MOPCI – Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. 15 Foz Tua a Mirandela, aberta à circulação pública a 30 de Setembro de 1887. 16 O traçado ferroviário atingiu percursos particularmente difíceis, como na zona das Fragas Más, onde foi necessário romper em túnel alguns esporões de rocha, como o Túnel das Fragas Más I, ao Km 5,606, com o comprimento de 99 metros e as entradas de abóbadas em cantaria e ao centro em rocha, seguindo-se ao km 5,863, o Túnel das Fragas Más II, de 38 metros de comprimento e de abóbada revestida a cantaria. 17 Os muros, concretamente 10.049,41 metros de muros, serviram para sustentação e
O contrato de concessão autorizava a subcontratação de trabalhos a terceiros,18 sendo a companhia ferroviária a entidade cedente e primeira responsável pela execução dos mesmos. Através dos contratos,19 é possível reconstituir a cadeia processual de tramitação dos processos, bem como, as soluções encontradas e os valores de execução. Assim, a Companhia contratualizou com o empreiteiro Barnabé da Costa Roxo os trabalhos de fundações das instalações projectadas para a estação de Mirandela20 (edifício de passageiros, plataforma de passageiros, instalações sanitárias, cais coberto e descoberto, depósito de carvão, depósito de carruagens, oficina de reparação, depósito de máquinas, cinzeiro 21 e o desvio da estrada de Mirandela a Vila Flor). Igualmente, os cadernos de encargos definiam com rigor o objecto dos concursos, como o «Caderno de encargos suporte da plataforma da linha, em especial nos primeiros quilómetros. 18 Art. 1º, par. 1º do contrato de 28/09/1883. 19 Outros contratos: Contrato provisório para o fornecimento de 30 milheiros de tijolo, com Manuel Vicente, de 23/06/86; Contrato para fornecimento de cal, com Manuel Martins «caleiro», de 1/07/86; Contrato com Alexandre Sales, mestre-deobras de Mirandela, para o fornecimento de madeiras para os sobrados e telhados da estação de Mirandela, de 5/09/86; Contrato para o fornecimento de portas, janelas e madeiramentos para o edifício da estação de Mirandela e cais, com José Barbosa Marques, com estabelecimento de carpintaria no Porto, de19/10/86; Contrato para o fornecimento de 1.350 postes telegráficos com Ferreira e Cª de Albergaria-a-Velha, de 8/02/1886 e o Contrato para o fornecimento de 21.000 travessas de carvalho, com Clemente Menéres, de 11/12/85. REFER., DP, Linha do Tua (Antigo), Generalidades. 20 Contrato de empreitada à forfait, de 12 de Fevereiro de 1886, pela importância de 3.748$200 réis. 21 Os cinzeiros localizavam-se junto aos «depósitos», tinham por função acumular as cinzas removidas das locomotivas.
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para a construção do edifício de passageiros da estação de Mirandela, latrinas e cais coberto», de 15/04/1866. Um dos muitos problemas que foi necessário resolver prendeu-se com a logística da construção. Os materiais necessários eram adquiridos preferencialmente na região (pedra, cal do «Vale da Porca», tijolo, telhas, madeiras, ferragens), por outro lado, o desmonte das trincheiras fornecia o material para os aterros. A construção socorria-se dos trabalhadores da região para os trabalhos indiferenciados da movimentação de terras, bem como, dos artífices especializados, (carpinteiros, pedreiros, trolhas, ajudantes), auferiam os jornais mais remunerados. Posteriormente, alguns dos trabalhadores utilizados na construção integravam os quadros da empresa, em especial, nas funções de conservação da Via e Obras, como capatazes e assentadores. Os trabalhos de construção iniciavam-se na generalidade em múltiplas frentes, por secções e lanços, de acordo com a gestão das subempreitadas. No caso da linha do Tua, tudo aponta para duas grandes frentes de trabalhos: uma a partir da estação do Tua, em sentido ascendente e uma segunda a partir de Mirandela, em sentido descendente. A empresa em 1/11/86, assinou um contrato de empreitada22 para o transporte de 25 km de via, mudanças de via, cruzamentos e materiais acessórios, bem como, uma locomotiva e seis vagões. O material chegou pela linha do Douro, sendo descarregado no Pinhão, cabendo aos empreiteiros contratados o seu transporte até ao local da estação de Mirandela. Como o contrato cobria metade do equipamento necessário para a construção, deduz-se a existência de uma segunda frente. A 1/02/1886 a CN contratou com Joaquim Augusto Pinto Soares e Comp. a execução de terraplanagens e obras de arte na estação de Foz Tua.23 As companhias ferroviárias eram empresas densamente or22 Os empreiteiros responsáveis pelo transporte foram António Joaquim Ribeiro e Manuel da Cruz Mendes, do Pinhão. O prazo concedido foi de cinco meses, sendo de registar que decorreu durante o inverno transmontano. Os preços praticados eram os usuais na região, destacando-se no transporte, a enorme tonelagem, em especial a locomotiva, que mesmo desmontada, tinha peças de um volume e peso muito grandes, como, a caldeira, rodados e órgão da máquina. 23 REFER, DP, Linha do Douro (Antigo). Tua, km 139,825. Exp. 37.
ganizadas, onde tudo carecia de aprovação da tutela, desde a abertura da exploração ao público, às tarifas a praticar e aos regulamentos. A regulamentação interna, geralmente sob a designação de «ordens de serviço», definia a estrutura da empresa, as funções e os quadros de pessoal.24 Com o início do serviço de exploração a CN publicou um conjunto de normativos através dos quais organizava o serviço ferroviário nas suas múltiplas vertentes. A «Organização geral dos serviços da linha do Tua» 25 definia em traços gerais o organograma da empresa, com o Conselho de Administração (em Lisboa), com os seus serviços administrativos e uma Direcção de Exploração (em Mirandela), com toda a componente técnica da empresa. Esta detinha um conjunto de serviços de staff (Contabilidade, Fiscalização e Estatística; Secretaria; Armazéns e Serviços de Saúde) e três grandes serviços que absorviam a maioria dos ferroviários: o Movimento e Tráfego, que organizava e geria o serviço de comboios e estações, o Material e Tracção, que tinha a seu cargo a condução, conservação e reparação do material circulante, e o Serviço de Via e Obras com a conservação da via, edifícios, instalações, túneis, aquedutos e estruturas metálicas. O serviço apresentava composições de comboios mistos (passageiros e mercadorias), correios e mercadorias. Os horários previam a realização de comboios suplementares. A estação do Tua do Caminho de Ferro do Minho e Douro era comum à estação de Foz Tua da CN. Os «serviços de transmissão» eram objecto de uma contabilidade própria, que as administrações acertavam com regularidade.26 24 Das Ordens da Direcção destacamos: CNCF. Exploração. Ordem da Direcção Nº 1- Regulamento de circulação sobre via única. Lisboa. 1907; CNCF. Exploração. Ordem da Direcção nº 4. Regulamento do Serviço de Estações. Lisboa. 1907; CNCF. Exploração. Ordem de serviço nº 5. Regulamento dos Condutores, Revisores e Guarda-Freios. Lisboa. 1890;CNCF. Exploração. Ordem da Direcção nº 6. Regulamento dos Maquinistas e fogueiros. CNCF. Exploração. Ordem da Direcção nº 8. Regulamento de Capatazes e assentadores de Via. Lisboa. 1890; CNCF. Exploração. Ordem da Direcção nº 9. Regulamento de Uniformes. Lisboa s/d; 25 Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Linha de Foz Tua a Mirandela. Exploração. Ordem da Direcção nº 4.Organização Geral dos Serviços da Linha. Lisboa. 1887 26 Contrato celebrado entre a Direcção dos Caminhos de Ferro do Minho e Douro e a Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, exploradora da Linha de Foz-Tua a Mirandela, para a execução do serviço comum e combinado da exploração dos dois
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As oficinas da CN estavam montadas em Viseu e em Mirandela. Em 1915, as de Mirandela detinham um conjunto de máquinas ferramentas que lhe permitiam executar com grande autonomia os trabalhos de conservação do material circulante, mas também, executar trabalhos de construção de vagões e a montagem Caminhos de Ferro. Lisboa. 8/06/1910.
de veículos adquiridos no exterior. O material era periodicamente submetido a revisões, de acordo com o número de quilómetros efectuados. As grandes reparações das locomotivas, que incluíam as caldeiras, caixas de fogo, chapas tubulares, tubos de fumos, substituição de escoras e de chapas das fornalhas, enchimentos de eixos e rectificação de moentes e bielas, eram
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os que se executavam nas «oficinas gerais». Um outro trabalho que absorvia muitas horas de máquina, era as rectificações dos rodados e dos aros das locomotivas, em tornos de rodas de grandes dimensões, recorrendo-se depois ao endurecimento das superfícies trabalhadas, através de técnicas de cementação. As pequenas reparações faziam-se no «depósito» de locomotivas.
O conjunto do equipamento era movido por um grupo de vapor fixo (tipo Pantin), que transmitia o movimento através de tambores montados em eixos, dos quais partiam as correias de transmissão para as máquinas ferramentas.27 As grandes repa27 Direcção Fiscal dos Caminhos de Ferro. Relatório dos Serviços. Divisão Fiscal de Material e Tracção em 1915.
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rações de locomotivas exigiam provas de experiência na via, conduzida pelo pessoal da oficina. Após a reparação de uma caldeira, esta era submetida a provas hidráulicas, na presença de um fiscal da Repartição de Caminhos de Ferro. Na secção de Ferraria, existiam quatro forjas, das quais duas eram accionadas por foles de mão, estando as restantes ligadas a um sistema de ventilação. O material circulante apresentava um total de vinte e oito carruagens, das quais três estavam equipadas com «bogies».28 Existiam treze carruagens de 3ª classe, das quais cinco estavam equipadas com guarita e sistema de frenagem manual com o recurso a um guarda-freio.29 Em relação aos furgões e vagões havia um total de cento e cinco veículos, de diversos tipos,30 estando estacionados em Mirandela dois vagões socorro e um vagão-guindaste.31 Quanto ao material motor registavam-se dez locomotivas-tender, com três rodados conjugados e uma roda livre à frente, para o serviço entre Foz Tua e Bragança, havendo máquinas de reserva nas estações do Tua, Mirandela e Bragança com o pessoal titular das mesmas.32
Em finais dos anos 40, a maior parte das locomotivas a vapor nas redes portuguesas tinha mais de 40 anos de actividade e uma percentagem significativa tinha mais de 50 anos. O material da CN não fugia à regra, com todas as restrições e custos consequentes.34 As locomotivas tomavam água35 em nove estações, sendo na estação do Tua fornecida pelos Caminhos de Ferro do Minho e Douro. As águas provinham de poços, nascentes e do próprio rio Tua, armazenando-se em reservatório cilíndricos de ferro através de diversos sistemas (bombas manuais, pulsómetros, grupos moto-bomba e por gravidade). Os problemas surgiam no Verão e geralmente nos meses de maiores percursos. O abastecimento de água às locomotivas sempre foi um motivo de preocupação. Em Mirandela, com a insuficiência das águas do primitivo poço, começou a recorrer-se às águas turbulentas do Tua, com os inevitáveis problemas de impurezas e incrustações nas caldeiras, elevando o seu aquecimento e exigindo lavagens periódicas das mesmas.
Em 1915, com os problemas da guerra o preço do carvão inglês disparou, levando a CN a adoptar a mistura do mesmo com antracites de São Pedro da Cova e mais tarde, com o recurso à queima de lenha.33
Nos anos 30, a CN, perante a conjuntura adversa da concorrência da camionagem, dos preços do carvão e da alta de preços dos materiais, ensaiou as primeiras medidas de «exploração económica»36. A partir de 1935 fizeram-se cortes no pessoal dos «partidos» da conservação, o que na prática significou que esta passou a responder a reparações parciais e imprevistas.37 Com o sistema de balastragem adoptado (em «banqueta», rasando
28 «Bogie» conjunto de quatro rodados, solidários entre si, onde a carruagem descarregava o seu peso e que equipavam o material mais moderno, permitindo uma maior extensão do veículo, uma melhor inscrição nas curvas e um transporte mais suave, devido ao sistema de molas com que estavam dotados. Uma carruagem de «bogies» era portadora de dois conjuntos. 29 As carruagens repartiam-se por um salão; uma de 1ª classe com «coupé» leito; duas de 1ª classe; quatro de 1ª e 2ª classes, sendo três com «bogies»; cinco de 2ª classe; duas ambulâncias para os correios e treze de 3ª classe. 30 Vagões fechados, de bordas baixas, de bordas altas, seis furgões e dois vagões J (fechados) de socorro. Aproximadamente metade destes veículos possuía freios de vácuo. 31 Nos finais dos anos 20, mais de metade das carruagens em serviço nas linhas portuguesas, eram iluminadas a óleo. 32 No material a vapor as equipas de condução (maquinista e fogueiro) estavam distribuídas por locomotiva, sendo titulares da mesma. Esta situação terminou com a dieselização. 33 A partir de 1917, quando se vulgarizou o emprego da lenha, só na linha ascendente se utilizava lenha misturada com algum carvão inglês. v/ Relatório Fiscalização de 1917. Em 1920 o carvão inglês só era utilizado nos trabalhos oficinais (forja e fundição), consumindo a tracção lenha de pinho. De igual modo, agravando ainda mais os preços do carvão, era a situação de carga e descarga no Douro, anteriores à construção do porto de Leixões. Na Alfândega do Porto, perante a inexistência de
instalações, o carvão era armazenado em barcaças no Douro. 34 Nos anos 40, a situação do parque motor ferroviário era de tal modo dramática que, apesar de se firmarem encomendas de material diesel nos Estados Unidos e Suécia, foi necessário adquirir locomotivas a vapor para as redes de via larga. A CN possuía uma locomotiva diesel desde os anos 30, que não tinha impacto na exploração. Em 31/12/44, a empresa detinha nas suas linhas16 locomotivas a vapor: 12 com mais de 50 anos, 2 entre 30 e 40 e outras 2, entre 30 e os 40 anos. AHTT. DGCF. Elementos diversos, sobrantes dos concursos organizados para a aquisição de material circulante de via larga e via estreita. Peças escritas. 1945/47. 35 O abastecimento de água às locomotivas e às estações era um problema de complexa solução. Para as locomotivas a água não podia faltar e tinha de deter uma composição que não afectasse as caldeiras. Para as estações e habitação dos ferroviários a solução foi colocar contadores por utilizador, porque para além do uso doméstico, havia enormes consumos na rega das hortas e quintais dos ferroviários. A partir dos anos 40/50 generalizou-se o abastecimento de águas às estações através das redes municipais. 36 A «exploração económica» foi uma solução ensaiada em linhas de fraco tráfego, que passava por medidas que incluíam a simplificação dos regulamentos, a alteração da gestão do tráfego cujo avanço do comboio era dado pelo condutor em vez de pelo chefe da estação, bem como, pelo desguarnecimento de estações. 37 Na ocorrência de trabalhos imprevistos recorria-se à contratação de tarefeiros.
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a cabeça do carril), agravava-se o ataque do balastro (terra e saibro) aos materiais metálicos da via, incluindo carris, material de ligação («eclisses»), tirefonds e os respectivos parafusos de fixação. 38 Outro dos problemas que se colocava era a necessidade de substituição periódica de travessas. Na generalidade as travessas de pinho eram utilizadas nos alinhamentos rectos, reservando-se as travessas de carvalho e eucalipto para as curvas, cruzamentos e pontes. Todas elas tinham de ser creosotadas.39 Nos anos 40, os relatórios da Via e Obras referem sistematicamente a necessidade de substituição de carris nas curvas, nos cruzamentos e nos resguardos das estações. Até finais dos anos 40, nunca a linha de Tua a Bragança fora objecto de trabalhos de renovação sistemática, sendo normal que os carris apresentassem desgaste apreciável passados quase 60 anos de utilização.40 Os trabalhos de conservação da via eram na generalidade executados duas vezes por ano, em especial a pregação dos carris às travessas, que decorria no início do tempo quente e nas primeiras chuvas, de modo a anular os problemas das dilatações. A partir do período das chuvas, a atenção da Via e Obras concentrava-se na vigilância das trincheiras, na consolidação dos muros de suporte, na instabilidade das grandes massas de pedra que ladeavam a linha, em especial nos primeiros quilómetros. Os frequentes desabamentos tornavam necessário a existência em depósito de dinamite, para poder acorrer a acções preventivas de desmonte e à movimentação das rochas nos desabamentos. A companhia construiu junto à linha, no sentido de Bragança, um paiol para guardar a dinamite, mechas e rastilhos para as operações de emergência. 38 Relatório sobre o estado geral da linha. Obras e plano geral das obras e realizar para 1947. REFER, DP, Linha do Tua. Generalidades. Proc. 6. 39 Colocadas em estufas onde eram impregnadas de creosote, de modo a aguentarem as intempéries. Em 1946 existia uma instalação de creosotagem em Mirandela, ainda que deteriorada. 40 Na linha de Tua a Mirandela os carris tinham 20 kg/metro, com um comprimento de 6metros, tendo sido fornecidos pela empresa B. Y. Bochum (1886). Na secção de Mirandela a Bragança os carris pesavam 20 kg /metro, com um comprimento de 8 metros, sendo fornecidos pela empresa J. Cockrill. REFER, DP, Linha do Tua. Generalidades. Proc. 6.
3. A ESTAÇÃO DE MIRANDELA EM 1947 O território da estação, ou o que dele hoje resta, é constituído pelo conjunto de equipamentos e edifícios do período em que foi suspensa a circulação. Há que ter presente numa empresa ferroviária que o modo de tracção configura a morfologia das instalações, bem como, o conjunto ferroviário cresce de forma gradual, de modo a responder a solicitações concretas da exploração. Algumas das características dos conjuntos ferroviários passam pelo seu crescimento lento e orgânico, provisoriamente duradouro e são detentores de um grau de reaproveitamento intenso. A abertura à exploração é sempre provisória, como provisórias são, durante muitos anos, as milhentas barracas de madeira que polvilham as estações. Numa empresa ferroviária tudo se reaproveita, desde os carris que são reutilizados como postes, às travessas de madeira reaplicadas na construção de barracas ou aos «tubos de fumo» das caldeiras que uma vez substituídos servem para vedações. O território da estação é um espaço funcionalmente amadurecido e onde coabitam tipos de utilizadores de perfis diversos, daí que a sua utilização seja conflitual e tenha que ser permanentemente regulado.41 A estação é um espaço centrípeto do tecido urbano (a rua da estação), na localização de serviços de apoio (casas de pasto e hospedarias), bem como, na geração de uma primitiva rede logística que se instalou no seu perímetro, da qual, são exemplo em Mirandela, a Companhia União Fabril e a Vacuum Oil. Observe-se o lay out do espaço ferroviário de Mirandela em 1947. A estação delimita-se pelos seus «discos»: o Disco 1, do lado de Tua (km 53,724,50) e o Disco 2, na saída para Bragança (ao km 54,500,0),42 numa faixa de terreno ao longo aproximadamente de 770 metros de comprimento, e com uma largura máxima de 150 a 170 metros. A linha (em via única) que entra na estação (linha I), vinda do Tua corta a estada nacional nº 213 (EN 213), e atravessa todo o conjunto da estação, constituindo o principal eixo de circu41 Gomes, Gilberto. Ao longo dos rios, a caminho do mar. Notas sobre a estação ferroviária da Covilhã na Linha da Beira Baixa. in Monumentos. Cidades. Património. Reabilitação, nº 29, Julho de 2009. IHRU. 42 Os «discos» funcionavam como as «portas» de segurança de entrada/saída da estação.
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lação (linha designada por «directa») do conjunto ferroviário. Socorramo-nos do edifício de passageiros (EP) para ordenar o conjunto e as suas instalações. O alçado da estação virado para a EN 213 é o alçado sul, ficando o alçado norte, virado para a linha férrea e para o núcleo antigo da povoação. À esquerda do EP apresentava-se um pequeno jardim contíguo às instalações sanitárias, seguido das instalações da Divisão de Abastecimentos43 e casas de habitação de pessoal. À esquerda deste conjunto, até à passagem de nível (PN), existia um terreno desobstruído, com um reservatório de água em ferro, de 100 m3 de capacidade, para abastecimento das máquinas, e que primitivamente foi abastecido a partir do rio Tua.44 Junto à linha I, do lado esquerdo do EP, ficava a toma de água (ou grua) para abastecimento das locomotivas das composições com destino ao Douro. O feixe de linhas ramificava-se num total de vinte, com funções diversas. A linha I corria ao longo do cais de passageiros. As linhas II, III e IV, designadas por linhas de «resguardo», situavam-se paralelas à linha principal. A linha II funcionava como alternativa ao cruzamento de comboios, reservando-se as linhas III e IV para parqueamento de composições e formação de comboios.45 Entre as linhas II e III existia um cais de passageiros. À direita da estação existiam diversas instalações (cozinha, sanitários e uma casa de habitação), seguindo-se a zona reservada às mercadorias (grande e pequena velocidade) com os seus cais descoberto e coberto, onde existia uma balança de 2.000 kg. O conjunto do cais era servido pela linha nº V, designada por «linha de cais», com capacidade para onze vagões e equipada com uma báscula de 20 toneladas e um gabarit fixo.46 Do lado esquerdo do conjunto, a norte da linha I, derivavam duas «linhas saco» (linhas VI e VII) que vinham morrer junto ao muro 43 Antiga «cocheira» de carruagens. 44 Com duas bombas (pulsómetros), movidos com o vapor fornecido pela locomotiva de reserva na estação. 45 Não esqueçamos a importância de Mirandela como estação geradora e receptora de tráfego, logo, com uma grande necessidade de linhas para a organização dos comboios de mercadorias. As linhas III e IV tinham um comprimento útil de 213 metros, permitindo resguardar vinte e seis vagões, respectivamente. 46 O gabarit definia para os vagões de caixa aberta o volume admissível de carga que podia circular no «canal ferroviário».
de vedação que contornava a EN 213, junto à PN (Km. 53,955) no sentido do Douro. Na linha VI resguardavam-se os vagões cisternas da Vacuum Oil que abasteciam o reservatório47 localizado na berma da estrada, frente às instalações da Divisão de Abastecimentos. Do lado direito da estação, junto à linha I, localizava-se uma nova toma de água, para as composições ascendentes. À direita do cais coberto, no sentido de Bragança, encontravam-se as oficinas do Material e Tracção, servidas por onze linhas (nºs VIII a linha XVIII), que davam acesso ao «depósito»48 de planta rectangular, bem como, a uma placa manual, de seis metros de diâmetro, para inversão e encaminhamento do material.49 Tanto as oficinas como o depósito tinham diques para as inspecções («visitas») aos rodados e leitos do material circulante. Entre as linhas VIII e IX, à entrada do depósito, localizava-se uma terceira toma de água. A norte do feixe principal das linhas I a IV, frente ao edifício de passageiros, ficavam as oficinas de Via e Obras (escritório, ferramentaria, cozinha do pessoal e dormitório da secção), capoeiras e hortas dos ferroviários, Viveiro da Via e Obras, de plantas, arbustos e espécies arbóreas, necessárias à consolidação de terrenos.50 Perto do depósito situavam-se duas carvoeiras para abastecimento das locomotivas e, entre elas, uma antiga torre de reservatório de água. Múltiplas guaritas em madeira, junto às agulhas (em número de quinze), serviam de apoio e resguardo aos agulheiros. A estação tinha um vagão-guindaste que podia elevar pesos até 5 toneladas. 47 A Socony – Vauum Oil Company, Inc. fazia a distribuição de petróleo, gasolina e gasóleo a partir das suas instalações. 48 Antiga «cocheira» de locomotivas. 49 Oficinas de Carpintaria, Forjas, Montagem, Fundição, Revisão do Material e Pintura. 50 Foi necessário chegar ao final do séc. XX para a moderna engenharia civil encontrar soluções de consolidação de barreiras. Na linha do Tua, as abruptas encostas graníticas sobre a linha provocavam periodicamente acidentes, com a queda de enormes pedras sobre a linha e sobre os comboios, chegando a provocar a queda de composições ao rio.
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Todo o conjunto da estação era guarnecido por um muro com grades de cimento, de modo a proteger os equipamentos e as mercadorias, chegadas ou a aguardar remessa. Do lado de Bragança acedia-se às linhas XIX e XX, do ramal particular da Companhia União Fabril (CUF), que davam acesso ao armazém de adubos e à Fábrica de Azeite e Extracção de Óleos. Nas suas linhas podiam resguardar-se vinte e três veículos que recebiam os produtos das fábricas do Barreiro, Lisboa, Alferrarede, Canas de Senhorim, Soure, Porto ou de Gaia e, pelas quais se expedia, em vagão - completo, a produção da fábrica de Mirandela.51 Após a II Guerra Mundial, a comunidade ferroviária de Mirandela diversificava-se em múltiplas funções. Havia um grupo ligado ao tráfego da estação: chefe de estação, factores, telegrafista, fiéis de armazém, guarda, agulheiros, guarda-freios e carregadores. Um segundo grupo dizia respeito aos serviços administrativos da Direcção de Exploração, instalada no 1º andar do EP – amanuenses, escriturários, tesoureiro e pagador. Seguiam-se os agentes e operários da Via e Obras e do Material e Tracção. O Serviço de Saúde estava instalado no r/c do EP, onde funcionou também uma cooperativa do pessoal. Em Mirandela, entre agentes e operários dos diversos serviços, o seu total andaria pelos setenta e cinco (desde o pessoal braçal, ao graduado e ao pessoal superior – inspectores 52 e subchefes). Se multiplicarmos os agregados familiares por três, ou quatro, poderemos obter, com alguma margem de erro, os contornos da comunidade ferroviária neste local.53 Um problema que sempre se arrastou nos centros ferroviários foi o da habitação que as empresas deviam fornecer ao pessoal ligado à Exploração. Em 1947, notava-se a falta de dez habi51 O ramal «Mirandela-CUF» foi objecto de um contrato em 21/08/1925, assinado por parte da CUF, pelo seu Administrador Gerente, Alfredo da Silva. Com o desaparecimento da CN o contrato foi renovado com a CP em 17/09/48 (Contrato nº 1.417). 52 A figura do «inspector» correspondia a uma categoria profissional prestigiada, a que um ferroviário sem estudos académicos podia aspirar após um percurso profissional com provas dadas. A partir dos anos 50, as suas funções foram sendo ocupadas por agentes técnicos e engenheiros. 53 Em Mirandela, em 1949, a Exploração tinha 20 agentes ao serviço, a Via e Obras detinha 14, enquanto a Tracção (operários, maquinistas e fogueiros) apresentava 41. A comunidade ferroviária deveria andar aproximadamente por 200 a 250 pessoas.
tações, para acabar com a situação do pessoal braçal a dormir pelas dependências dos cais. Naquela data existiam oito casas e «residências» de alvenaria, distribuídas por diversos agentes. Paralelamente, contavam-se dois dormitórios, um para o pessoal de «Trens e Revisão» e outro para o pessoal braçal.54 O edifício de passageiros era onde se albergavam muitos dos agentes da empresa. O 1º andar do lado sul e águas furtadas, tinha sido a residência do Inspector Rocha.55 O 2º andar do corpo central era habitado pelo Inspector Quita, da Fiscalização. No 3º andar do corpo central habitava o Factor José Augusto Troca. Ainda no rés-do-chão do corpo central existiam dois quartos para pessoal graduado (solteiro ou destacado). No 1º andar e águas - furtadas do lado norte, vivia o Chefe Pinto, titular da estação. Posteriormente, no cais coberto, instalou-se mais um dormitório e uma residência. A partir dos anos 40/50, a par dos problemas da falta de habitações, juntava-se a necessidade de ligar as estações às redes de água, de saneamento e de energia eléctrica, que a vila disponibilizou.
4. OS ANOS 30/40: PERSISTÊNCIAS E RUPTURAS Chegados aos anos 30, as empresas ferroviárias europeias conheceram a sobreposição da crise da economia ocidental com um novo e avassalador problema – a concorrência automóvel. Entre nós, no sector dos transportes, dois acontecimentos marcaram a gestão do poder saído do golpe militar de 28 de Maio de 1926: o arrendamento dos Caminhos de Ferro do Estado e a criação da Junta Autónoma de Estradas, ambos de 1927. A fuga do tráfego do caminho-de-ferro, de mercadorias e passageiros, tem de ser confrontada com esta nova realidade. As breves retomas do tráfego ferroviário, durante os anos 30/40 foram sempre consequência de situações conjunturais (Guerra Civil de Espanha, II Guerra Mundial, falta de combustíveis…) e, jamais de estratégias que invertessem a situação. Foi neste contexto de crise, com flutuações das receitas e das despesas, com agravamentos sucessivos dos deficits, que chegamos ao fim da 54 O primeiro tinha quatro quartos e uma cozinha, enquanto o segundo tinha um único quarto e uma cozinha. REFER, DP, Linha do Tua, Mirandela, Proc.17. 55 Aníbal Rocha foi Inspector da CN, do Serviço de Movimento em Mirandela. Idem.
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II Guerra Mundial, em que os tráfegos voltaram a cair para os patamares de meados dos anos 30. É no número de veículos automóveis registados anualmente, em especial a partir de 1927, que se tem a percepção da profunda alteração que se iria sentir no quadro da mobilidade.56 Em 1931, Mirandela detinha 38 automóveis, mas já apresentava 28 veículos pesados. Em 1938, existiam carreiras regulares entre Mirandela e Murça (e de Murça para Vila Real e Alijó), entre o Cachão e a estação do Tua, entre Mirandela e Torre de D. Chama e entre Mirandela e Chaves.57 E, foi nesta malha de crescimento exponencial, que os transportes rodoviários, de passageiros e mistos, independentes ou afluentes do caminho-de-ferro, (o designado «serviço combinado») apresentavam novas soluções de transporte, mais rápido, mais cómodo, mais democrático.58 Mesmo assim, convém reter, a vantagem comparativa da CN a operar num território com uma baixa densidade de infra-estrutura rodoviária.59 A partir dos anos 20 começam a detectar-se no tecido empresarial de Mirandela uma gama de novos serviços e de empresas que preanunciavam o futuro. Em 1920, Mirandela já apresentava uma «praça» de automóveis de aluguer,60 enquanto na região, muitas das ligações ainda se faziam por diligência.61 Em 1930, já existiam carreiras diárias de automóveis para Chaves, Vale de Passos e Torre de D. Chama, tendo crescido o contingente da
56 Estavam registados 7.617 veículos automóveis em 1920 e 37.564 em 1930. Conselho Superior de Viação. Relatório de 1931,pp. 20. 57 Carreiras de Automóveis. Serviços Públicos. Guia. Edição do Grémio dos Industriais de Transportes em Automóveis. Lisboa. 1938, pp. 253-279. 58 As velocidades comerciais dos comboios rapidamente foram ultrapassadas a partir do momento que a JAE começou a construir estradas adequadas aos novos veículos, preparadas para novas cargas e com o recurso a soluções de pavimentação durável. O material circulante que chegou até aos anos 40 era na sua maioria, inadequado, pouco cómodo e fiável (a começar pelas carruagens cujas caixas eram em madeira). A camionagem, para além da enorme vantagem de ir ao centro das povoações, não tinha classes. Se juntarmos a estes predicados as tarifas praticadas, percebe-se a fuga do tráfego. 59 No início da exploração da linha Tua a Mirandela, só detectamos a existência de uma passagem de nível com guarda. A explicação só pode ser uma – a inexistência de estradas. 60 Automóveis de aluguer de Augusto César Ribeiro, Clemente de Sá Pinto e José Maria Teixeira. Anuário Comercial de Portugal. Ano de 1920. Vol. III, pp. 2686. 61 Em 1920. Mirandela tinha carreiras diárias de diligência para Chaves, Vale Passos e Torre de D. Chama. Idem.
«praça» de carros de aluguer.62 Na mesma data, a vila já possuía um estabelecimento de venda e reparações de automóveis,63 dois postos fixos de venda de gasolina64 e, na freguesia de Torre de D. Chama operava uma empresa de transportes.65 Em 1940, registavam-se no concelho, empresas de camionagem em Avidágos,66 Lamas de Orelhão67 e Torre de D. Chama.68 Feiras, mercados e romarias da região eram o pretexto para a oferta de transportes de passageiros e mercadorias por parte da CN em concorrência com as empresas de camionagem.69 Em meados dos anos 30, a CN apresentava uma situação «pouco satisfatória…diremos mesmo um tanto crítica».70 A situação que o seu Conselho atribuía ao nefasto contrato de subarrendamento das linhas do Estado71 levava a empresa a acumular deficits, apesar da aplicação de sobretaxas nas tarifas. A partir de 1937 foi a vez da «rede própria» (linhas de Viseu e de Bragança) apresentarem deficits de exploração consecutivos, apesar da forte compressão da despesa que, numa empresa de transportes significou sempre cortar na conservação, manutenção, na redução de pessoal e inexistência de investimento. Tudo isto num quadro, em que se elegeu o Estado como responsável pelas condições do «arrendamento» da sua rede e, simultaneamente, se atribuía 62 Em 1930 a «praça» já apresentava um contingente de sete alvarás (António Joaquim Mota, António Pereira, Artur Pereira, Clemente de Sá Pinto, Empresa de Transportes Mecânicos, João Alves e Álvaro Moreno & Cª.). Idem, 1930 63 A empresa Álvaro Moreno & Cª. acumulava a venda, com a reparação e o aluguer. Idem, 1930. 64 Em 1930, em Mirandela, existiam dois representantes de duas empresas do sector: A Shell tinha como agente a firma Simão Costa & Filho e a Vacuum Oil tinha como seu revendedor a firma comercial Rocha & Almeida. Idem, 1930 65 A Auto Viação com a Gerência de António Gonçalves. Idem, 1930. 66 Camioneta de aluguer de João Pedro Rafael & Irmão. 67 Camionetas de Passageiros de Agostinho Rafael (Herd.). 68 Com duas garagens de automóveis (Alberto Piloto e a Auto Viação Transmontana Limitada), venda de combustíveis (António Gonçalves) e transportadores de mercadorias (Alberto Piloto, António C. Pinheiro, Francisco A. Pinheiro, João B. Miranda e Júlio C. Miranda). Idem, 1940. 69 Tanto os horários dos comboios como das empresas de camionagem anunciavam serviços para as feiras de gado de Mirandela a 3, 14 e 25 de cada mês, como para os mercados às quartas e domingos, assim como, para a grande romaria de N. S. do Amparo no primeiro domingo de Agosto. A oferta destes serviços repercutia-se a nível das freguesias do concelho. 70 Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório de 1935. Lisboa. 1936, pp. 5. 71 Em 1928, perante a «falta de vocação» da CP, arrendatária dos Caminhos de Ferro do Estado, para a exploração da via estreita a CN subarrendou a linha do Vale do Corgo e do Vale do Sabor. v/ Termo de contrato de trespasse para a Companhia Nacional de Caminho de Ferro das linhas do Vale do Corgo (Régua a Chaves), do Vale do Sabor (Pocinho a Miranda) e de Régua a Vila Franca das Naves em construção. 27 de Janeiro de 1928.
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ao transporte rodoviário os problemas do sector.72 Foi neste contexto, de redução da actividade económica e na intensa concorrência de um polvilhar de minúsculas empresas73 que as companhias ferroviárias tiveram que arranjar, ou não, soluções para os problemas que enfrentavam. A contenção de custos, com as medidas já enunciadas, amenizou logicamente os números dos balancetes, mas provocou a degradação das condições de exploração e, a médio prazo, acarretou o agravamento dos custos de conservação, tanto na Via e Obras como na Tracção. Da panóplia de propostas inventariadas, a redução das despesas e a utilização de automotoras, acabaram por gerar efeitos de sinal contrário. A não renovação da via, com cortes no pessoal, remeteu os trabalhos de conservação para situações de emergência. A adopção de automotoras, cujo processo transitou para a CP, acabou por ter penalizações de velocidade, devido ao estado decrépito da via. Desde finais dos anos 30, a CN, tal como as restantes empresas ferroviárias portuguesas, aguardavam as soluções, que segundo o Relatório de 1940 «só o Estado pode pôr em acção».74 Em 1945, com a Lei 2008 – Coordenação dos Transportes Terrestre, desenhou-se uma solução para «o problema ferroviário português», adoptando-se a concentração de todas empresas ferroviária numa única empresa – A CP, que a partir de Janeiro de 1947 iniciou a exploração conjunta da rede, sendo-lhe atribuído o contrato da Concessão Única em 1951.75 Colocava-se à CN, como às restantes empresas, a opção de um resgate das linhas feito pelo Estado, em alternativa, à venda das suas concessões a uma entidade ferroviária ou à entrada da Companhia numa nova entidade a constituir, em cujo capital participaria com os seus activos e passivos. 72 O transporte rodoviário apresentava-se nesta fase inicial muito desregulado, ferozmente concorrencial, sedeado em pequenas empresas familiares, logo de custos fixos muito reduzidos e, não tinha a seu cargo a responsabilidade da infra-estrutura, nem as obrigações do transporte ferroviário. 73 As empresas de camionagem criaram o seu espaço próprio e a sua força de pressão através do Grémio dos Industriais de Transportes em Automóveis. V/ os debates da Assembleia da República na discussão da Lei 2008. 74 Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, Relatório de 1940. Lisboa. 1941, pp. 6. 75 A única excepção foi a Sociedade Estoril, onde pontificava a figura incontornável de Fausto Cardoso de Figueiredo.
A CN partiu para esta negociação demasiado fragilizada pela dívida acumulada do serviço combinada com a CP.76 A solução encontrada, de venda das suas concessões à CP, cujo protocolo foi assinado em 15 de Maio de 1946, fixou na sua Base II, o valor da transacção em 19.000 contos, assumindo a CP os encargos de amortização e pagamento de juros das obrigações em circulação da CN, 77 num total de 23.385 contos. Com esta solução, mais barata do que o desembolso a que obrigaria o resgate das linhas, calculado em 24.449 contos, a CP fez o encontro de contas pelo remanescente de 8.385 contos.78
5. CONCLUSÃO Aproximadamente vinte e cinco anos após a «suspensão de pagamentos» da CR em 1867, após as dificuldades do Estado Português em negociar o empréstimo de 1869,79 obrigado a contemplar as reivindicações das empresas ferroviárias de capital estrangeiro, chegamos à crise de 1891 com a persistência de erros e aplicação de modelos de financiamento que desde meados do século XIX mostravam a evidência do seu insucesso. A década de oitenta, do período oitocentista, é o exemplo da prática da partilha dos negócios pelas elites financeiras dominantes, como notava Eça de Queirós, ao identificar os que se sentavam «à mesa do Orçamento». Para além da evidência do «negócio» ferroviário se circunscrever à construção, é importante compreender que o sistema de emissão de obrigações empurrava subtilmente o Estado para uma responsabilidade que formalmente era dos accionistas. Claro que, ontem tal como hoje, as situações são bem diferentes, consoante os credores são nacionais ou estrangeiros. Interessa ainda registar, para além do «cerco» montado pelas empresas concessionárias, o sentido das alterações legislativas 76 Em 31/12/1945 a dívida do «serviço combinado» da CN com a CP era cerca de 15.000 contos. 77 Em 30/06/1946 os encargos das obrigações em circulação totalizavam 4.385 contos. 78 Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Relatório da Comissão de Accionistas nomeada pela Assembleia Geral Extraordinária em sessão de 17 de Julho de 1946. 79 Negociado pelo Ministro da Fazenda, Conde de Samodães com a Casa Stern.
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que conferiam às empresas ferroviárias um estatuto de excepção, pela prestação de um serviço público, ao abrigo do qual, ficavam salvaguardadas da simples acção de uma penhora. Assim, afigura-se-nos importante o estudo comparativo dos custos de transporte regionais, entre a tracção animal articulada ao tráfego do Douro, com a introdução do caminho-de-ferro, cujas tarifas na generalidade eram caras e, posteriormente, o comportamento do mercado com o aparecimento da camionagem. Associado a cada modo de transporte há uma morfologia de instalações e equipamentos cujo inventário é de primordial importância para a interpretação do território. A construção da linha do Tua, provavelmente a mais expressiva linha de montanha em Portugal, apresentou problemas construtivos complexos. Contudo, no período da sua construção, o país já detinha o «saber fazer» da cadeia do transporte ferroviário. A CN era uma pequena empresa ferroviária a operar em linhas de via métrica, geograficamente separadas e afluentes da rede principal. Utilizou basicamente a tracção a vapor e manteve, no caso do Tua, uma matriz de exploração tipo vaivém («navete»), estabelecendo correspondência na estação do Tua, com os comboios da linha do Douro. Se comparamos os itinerários dos comboios de início da exploração, com o final dos anos 20, ou o final dos anos 40, rapidamente constatamos que não houve inovação no sistema de exploração. No itinerário de 1946, alguns comboios acabam por ser mais rápidos, apresentando-se o paradigma da velocidade totalmente desintegrado das restantes variáveis da exploração. Sem capacidade de investimento a empresa cortou na despesa e aguardou pela solução do Estado. As estações de transmissão, em especial as que agregavam vias de bitola diferente, caso da estação do Tua, jamais conseguiram resolver os problemas base da sua operacionalidade. Mesmo após a integração na CP, nunca as estações de transmissão foram dotadas de equipamentos que permitissem o transbordo fácil, não onerado das mercadorias.80 80 Nos anos 80 do séc. XX, a inexistência de batata nos mercados de Lisboa e Porto, enquanto a mesma apodrecia em Trás- os -Montes é o exemplo da falta equipamentos nas estações. Em sentido contrário, nas linhas ascendentes, as empresas adubeiras que davam os primeiros passos na paletização dos adubos, viam-se confrontadas com problemas acrescidos no transbordo das cargas.
A CN, sempre se bateu por um projecto através do qual fosse possível estabelecer uma ligação da sua rede (caso de Viseu ao Tua), de modo a beneficiar das economias de escala. Só que a partir de finais dos anos vinte a «revolução da estrada» veio comprometer os projectos de expansão da rede portuguesa.81 A 1 de Janeiro de 1947, a CP iniciou a exploração conjunta de toda a rede portuguesa. A linha do Tua, tal como as restantes, foi integrada numa empresa, que vinte anos antes tinha abdicado de explorar a via estreita. Independentemente das carências do estado da via e do material circulante envelhecido, conviria aprofundar o processo de transferência para a CP, a começar pela integração do pessoal da CN. Como se processou? Em que condições? De que forma? De igual modo, convinha fazer um balanço dos problemas pendentes da CN e tentar compreender como foram solucionados, ou não, pela nova concessionária. Decorrente das bases estabelecidas na lei 2008, a solução a adoptar poderia ter sido diferente, aliás, como aconteceu noutros países europeus. A integração numa única e grande empresa, como a Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, era simultaneamente, uma aposta e um risco. Sabemos hoje que o risco se sobrepôs. Desde os anos 60, que a CP começou a elaborar estudos de mercado que justificassem o encerramento de uma boa parte da sua rede, de ramais e linhas secundárias.
GILBERTO GOMES
Investigador na área de história dos transportes.
81 Em 1933, o Plano Ferroviário de 1927 foi simplesmente suspenso. Só avançou o que foi pago directamente pelo Estado, o que não deixa de ser curioso, perante as motivações do «arrendamento» longamente justificadas pelo Eng. Fernando de Sousa.
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BIBLIOGRAFIA Carneiro, Adolfo Cirilo de Sousa, A Bancocracia. Informações selectas a respeito dos bancos e suas gerências em Portugal, Porto, Imprensa Comercial, 1907. Conde de Paço Vieira. Caminhos de Ferro Portugueses. Subsídios para a sua história, Lisboa, 1905. Cordeiro, J. A. da Silva, A crise em seus aspectos morais; introdução a uma biblioteca de psicologia e colectiva, Coimbra, França Amado, 1896. Guia de Portugal, Vol. V, Trás-os-Montes e Alto-Douro. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2ª edição, 1988. Pimentel, Frederico, Apontamentos para a história dos caminhos-de-ferro portugueses, Lisboa, Tipografia Universal, 1892. Sequeira, Vítor Duro, Guia do Maquinista e do Fogueiro de Locomotivas. Caminhos de Ferro do Estado, Direcção do Minho e Douro, Lisboa, 1923. Trigo, Mário Dias, Subsídios para a história dos caminhos-de-ferro em Portugal (1926 – 1934), Lisboa, 1935. Publicações periódicas Anuário Comercial de Portugal. Lisboa, (Diversos anos) Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Itinerário dos comboios. Lisboa, (Diversos anos). Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatórios apresentado à Assembleia Geral Ordinária. Lisboa, (Diversos anos). Gazeta dos Caminhos de Ferro, (Artigos e números diversos). Relatório dos Serviços da Direcção Fiscal de Exploração de Caminhos de Ferro. Lisboa, (Diversos anos). Revista de Obras Públicas e Minas, Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, Lisboa, (Diversos anos) Arquivos Arquivo da CP, (Documentação diversa). Arquivo Histórico dos Transportes Terrestres. IMT, (Documentação e bibliografia diversa). Arquivos da REFER, Arquivo Técnico e do Património, (Documentação diversa). Créditos fotográficos Título de obrigação da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Col. Part. Lay out da estação de Mirandela em 1947. REFER. Arquivo Técnico.
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LINHA DO TUA: DOS DESENHOS DE ENGENHARIA ÀS FOTOGRAFIAS DE E. BIEL (1887) Mª Lurdes Martins, Graça Vasconcelos e Paulo Lourenço
O Governo Português começou a criar legislação referente à construção de ferrovias quando foi construída a primeira ligação férrea em Portugal, entre Lisboa e o Carregado. Esta medida tinha como objetivo auxiliar os engenheiros, nomeadamente os projetistas da linha do Tua, para a definição do projeto da linha do Tua com base em determinadas especificações técnicas. O Governo Português impôs condições técnicas para o projeto da linha do Tua entre Foz Tua e Mirandela relativas: ao tipo de bitola, declive do traçado, o raio da curva e da velocidade do comboio. Essas especificações foram publicadas em Abril de 1883 e consistem nos seguintes parâmetros (Coleção Oficial de Legislação Portuguesa do Ano de 1884): • Tipo de bitola: bitola métrica (largura da via de 1m); • Limite máximo das inclinações: 0,018m por metro linear (18%o); • Limite mínimo do intervalo reto entre uma curva e uma contracurva: 50m; • Raio mínimo das curvas: 150m; • Peso dos carris: 20Kg por metro linear; • Velocidade máxima de circulação: 50Km/h. A região do Tua apresenta aspetos paisagísticos e geotécnicos peculiares que dotam este local de uma beleza natural única, com apreciáveis encostas, desfiladeiros, precipícios, cascatas de água que rompem ao longo de penhascos de montanha. As margens do rio Tua são premiadas com a sombra de amieiros e salgueiros. O Tua é um dos poucos locais onde se pode ver o aspeto que Portugal tinha na pré-história, em termos de cobertura vegetal. A diferença de altitude é tão extrema que em Foz-Tua pode estar enublado, aos 300m um nevoeiro denso com 5m de visibilidade, e aos 650m um sol radiante. O rele-
vo é constituído por inúmeros vales onde se encaixam linhas de água que se ramificam conferindo uma morfologia peculiar representada por uma série de cabeços e de vales apertados. O troço de Foz Tua a Brunheda, de aproximadamente 20Km de extensão, apresenta-se como um vale encaixado, de aspeto agreste, ladeado por escarpas que chegam aos 676m. A Brunheda representa a transição entre um relevo íngreme para um relevo menos acidentado e mais suave. O traçado da linha férrea de Foz Tua a Mirandela não foi fácil de estabelecer, dadas as circunstâncias próprias do terreno, com a necessidade de atravessamento de maciços rochosos de montanha através de túneis, e falta ou inexistência mesmo, de acessos aos locais de construção. Em certas locais os acessos eram primitivos com um vasto terreno de vegetação densa com necessidade de desbastação. Como consequência da dificuldade das condições de relevo e acessos, o projeto de construção foi marcado por imensas alterações ao anteprojeto e ao projeto. Foram nos primeiros 21Km que as dificuldades construtivas foram inimagináveis, com a necessidade de transpor escarpas íngremes e desfiladeiros, cujas acessibilidades ao local de obra eram inexistentes, tendo sido necessário desbravar caminho por percursos sinuosos, e de executar de uma vasto número de muros de suporte para contenção. No parecer dos melhores técnicos, essa obra não é em nada inferior, a algumas vias helvéticas ou francesas dos Alpes. De acordo com os documentos em arquivo no Centro Nacional de Documentação Ferroviária, os primeiros 21Km da linha foram quase totalmente sustentados por uma muralha, em cuja extensão constam 118 muros de suporte, todos de pedra de junta seca, formando um volume
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de 170.000m3 de alvenaria. O trabalho quer em planta quer em perfil foi extraordinariamente difícil, demonstrado pelo desenvolvimento em curva que atinge nesta parte metade da extensão do traçado, isto é 10.500m, sendo o restante percurso constituído por alinhamentos retos, o maior dos quais não chega a 500m. Acrescenta-se ainda que existia em toda a extensão dos 21Km de troço apenas um único caminho, que descia de Castanheiro do Norte a Barca do Tua, para que se pudesse aceder à futura linha férrea. Este caminho estava destinado à circulação de peões e cavaleiros, pelo que foi necessário remodelá-lo para o adequar à circulação de veículos de duas rodas puxados por tração animal, com declives acentuados, tendo os mais suaves inclinações de 0,50m/m (Coelho,1887). O transporte dos materiais para o local da obra revelou-se portanto bastante difícil e moroso. O aço para os viadutos das Prezas, Fragas Más e Paradela, pesava cerca de 260 toneladas, havendo peças que pesavam mais de uma tonelada, e foram conduzidos pelo caminho referido, que hoje desemboca no quilómetro 9 da linha, perto de uma casa de guarda. Para que os carros pudessem descer à linha por essa ladeira sem se despenharem no Tua, era necessário que o transporte fosse sustentando por um forte grupo de trabalhadores, um dos quais o que orientava o trajeto ficou numa dessas descidas num estado miserável, ficando também feridos os engenheiros que pessoalmente dirigiam este trabalho tão penoso. A partir dos 20-30km as caraterísticas morfológicas alteram-se e o terreno passa a ser mais retilíneo e plano até Mirandela e posteriormente até Bragança, sem grandes desfiladeiros e precipícios, reduzindo o grau de dificuldade construtiva. A região das Fragas Más localiza-se entre o quilómetro 5 e 6 e é uma zona com maciços rochosos de elevada envergadura, escarpas íngremes, e o precipício mais sério da linha. Sem base de suporte para a construção da ferrovia, foi necessária a construção de um viaduto. Esta condição, aliada às dificuldades existentes no terreno, conduziu a alguns dissabores construtivos, devido à quase inexistência de estudos relativos ao traçado neste local. O viaduto das Presas tal como o das Fragas Más parece uma varanda a sustentar a linha entre dois precipí-
cios. Para realizarem os trabalhos nestes locais, os operários tinham que descer através de cordas sustentadas superiormente, ou através de pranchas que eram rapidamente guindadas quando se acendiam os rastilhos. Esta precaução durava até terem recortado na rocha um caminho que, devido às suas reduzidas dimensões o seu atravessamento, era evitado pelos menos ágeis em termos físicos. Após o término dos estudos prévios surgiu o anteprojeto da Linha do Tua a 29 de Agosto de 1883, decorrente dos estudos elaborados em 1880 e em 9 de Agosto de 1884 foi apresentado o projeto para a linha férrea, com a planta geral e os perfis longitudinais e transversais, sob a direção do Eng.º. Diniz Moreira da Mota. No entanto, em 30 de Junho de 1885 surge uma retificação a este projeto, aprovada em portaria de 28 de Novembro de 1885, efetuada sob a direção do Eng.º Diretor Almeida Pinheiro.
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BIBLIOGRAFIA Arquivo do Centro Nacional de Documentação Ferroviária (REFER), Lisboa. Coelho, E. (27/09/1887). O caminho de ferro de Foz Tua a Miirandela. Diário de Notícias, p.1. Colecção Oficial de Legislação Portuguesa, Ano de 1884. (1885). Lisboa: Imprensa Nacional.
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[fig. 1] Viaducto das Prezas Pag. 10
Logo à saída de Foz Tua surge o viaduto das Presas situado ao k1.46km, com 86m de extensão encaixado na falésia, seguido pelo túnel das Presas, com 138m de comprimento, escavado na encosta íngreme. Este viaduto foi construído não devido ao caudal do Ribeiro da Fisga, mas para evitar um aterro com cota máxima de 21,5m que exigiria um muro de suporte considerável. A sua construção foi apenas decida quando os trabalhos foram iniciados no local. O troço é retilineo e atravessa o viaduto com um declive ascendente e entra no túnel com um declive nulo (troço horizontal). Este viaduto é o maior da linha e foi construido no ano de 1887 e consiste numa estrutura metálica com dois vãos de 42,53m cada um. Os encontros e o pilar central são em cantaria de granito e xisto. O tunel das Presas envolve a execução de uma abertura totalmente envolvida pelo maciço rochoso e não tem revestimento interior.
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[fig. 1] Viaducto das Prezas Pag. 10
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[fig. 2] Tunel das Prezas Pag. 11
[fig. 3] Tunel e Viaducto das Prezas Pag. 12
Saída do túnel das Presas ao k.1,529. O atravessamento do túnel é efetuado por um alinhamento reto, com troço horizontal à saída do túnel, começando posteriormente a subir com um declive de 10%o em 234m de extensão.
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[fig. 4] Estação de Tralhariz e Tunel d’Alvella • Pag. 13
Apeadeiro de Tralhariz ao k.4,3 perdido nas encostas, onde o Tua corre em baixo num leito pedregoso de xisto, seguido do tunel de Tralhariz ao k.4,4 medindo 45m. A linha contorce-se, talhada à custa de intrépidos trabalhos em que os engenheiros e os operários tentaram vencer as dificuldades das curvas e contracurvas que compõem o traçado. Exemplos disso são os inúmeros muros de suporte existente ao longo da linha.
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[fig. 5] Os Moinhos do Castanheiro Pag. 14
[fig. 6] Tuneis e Viaducto das Fragas-Más Pag. 16
Viaduto das Fragas Más ao k.5,6 É na região das Fragas Más que fica encaixado entre dois túneis, e se encontra uma das zonas mais emblemáticas da linha do Tua, foi construído para evitar um muro de suporte com mais de 30m de com obras de arte dignas de registo. Este local localiza-se altura com as fundações no rio Tua. O viaduto original foi construído entre o quilómetro 5 e 6 e é uma em 1887 e era uma estrutura mista zona com maciços rochosos de formada por duas secções metálielevada envergadura, escarpas cas com 22,50 m de vão cada uma íngremes, e o precipício mais sée um pilar de alvenaria no centro, rio da linha, sem base de suporte com uma extensão de 50,7m. No para a construção da ferrovia, o dia 14 de Maio de 1962 o viaduto que motivou a construção de um viaduto. Esta condição, aliada às foi parcialmente destruído devido à dificuldades existentes no terre- queda de um bloco rochoso. Este foi reconstruido em betão armado. no, conduziu a alguns dissabores O túnel I ao k.5,5 com uma extenconstrutivos, devido à quase são de 99m não apresenta revesinexistência de estudos relativos timento interior, ao contrário do ao traçado neste local túnel II ao k.5,7 (extensão de 38m), cujo revestimento das paredes foi executado em alvenaria de pedra e o revestimento da abóbada em blocos de cimento. Para ambos os túneis foi adotado o raio mínimo de 150m, visto tratar-se de um contraforte considerável, e a utilização do raio mínimo diminui os trabalhos de movimentação de terras e de escavações integrais do maciço. A linha neste troço é ascendente com uma inclinação de 4%o em 1199m.
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[fig. 7] Fragas-Más Pag. 17
Viaduto das Fragas Más ao k.5,6 fica encaixado entre dois túneis, e foi construído para evitar um muro de suporte com mais de 30m de altura com as fundações no rio Tua. O viaduto original foi construído em 1887 e era uma estrutura mista formada por duas secções metálicas com 22,50 m de vão cada uma e um pilar de alvenaria no centro, com uma extensão de 50,7m. No dia 14
de Maio de 1962 o viaduto foi parcialmente destruído devido à queda de um bloco rochoso. Este foi reconstruido em betão armado. O túnel I ao k.5,5 com uma extensão de 99m não apresenta revestimento interior, ao contrário do túnel II ao k.5,7 (extensão de 38m), cujo revestimento das paredes foi executado em alvenaria de pedra e o revestimento da
abóbada em blocos de cimento. Para ambos os túneis foi adotado o raio mínimo de 150m, visto tratar-se de um contraforte considerável, e a utilização do raio mínimo diminui os trabalhos de movimentação de terras e de escavações integrais do maciço. A linha neste troço é ascendente com uma inclinação de 4%o em 1199m.
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[fig. 8] Ponte de Paradella Pag. 18
Ribeiro de Barrabás (Ribeiro da Paradela), que é transposto pela ponte de Paradela, situada ao k.11,4. Esta ponte trata-se de um estrutura metálica com um único vão e uma extensão total de 27m. Foi construída no ano de 1887. O troço da linha neste local é retilíneo e horizontal (sem declive).
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[fig. 9] Pulpito do Diabo Pag. 19
A região do Pulpito do Diabo localiza-se entre o k.14 e o k.15. Neste troço a linha sobe com uma ascensão de 10%o em 754m. Os maciços rochosos neste local têm centenas de metros de diâmetro, com evidência de altos penhascos rochosos que ladeiam a via-férrea de um dos lados, e os desfiladeiros íngremes do outro lado, com a necessidade de execução de um vasto número de muros de suporte para contenção.
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[fig. 10] Caldas de S. Lourenço Pag. 20
[fig. 11] Estação e Caldas de S. Lourenço Pag. 21
Apeadeiro de S.Lourenço ao k.15,6 que outrora servia as pessoas que procuravam as Termas de São Lourenço. A partir daqui a paisagem torna-se menos montanhosa ainda surge, porém, um ou outro trecho de encostas íngremes e rochosas. Nas estações ferroviárias o traçado é horizontal, para que os comboios quando estão parados não necessitarem de impor uma maior pressão no arranque dos veículos para mante-los em movimentação.
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[fig. 12] Garvão - Estação de S. Lourenço Pag. 22
A região do Pulpito do Diabo localiza-se entre o k.14 e o k.15. Neste troço a linha sobe com uma ascensão de 10%o em 754m. Os maciços rochosos neste local têm centenas de metros de diâmetro, com evidência de altos penhascos rochosos que ladeiam a via-férrea de um dos lados, e os desfiladeiros íngremes do outro lado, com a necessidade de execução de um vasto número de muros de suporte para contenção.
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[fig. 13] Ponte da Cabreira Pag. 23
Ponte da Cabreira ao k.26,6. Trata-se de um estrutura metálica com um único vão e encontros em cantaria e 21m de comprimento. Foi construída em 1887. A linha neste tramo é ascendente com 10%o de inclinação em 725m, voltando novamente a declive nulo.
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[fig. 14] Pedra Longa Pag. 24
Local da Pedra Longa (entre Codeçais e o Abreiro). O troço neste local é praticamente retilíneo com declive nulo.
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[fig. 15] Pontes do Vieiro e Abreiro Pag. 26
[fig. 16] Ponte do Vieiro Pag. 27
Ponte do Vieiro (antigo Abreiro) ao k. 29. Ponte metálica com 35m de vão.
Ao k.29 podemos encontrar a ponte ferroviária de nome Vieiro ou Abreiro com alusão à população que lhe cede o nome. Esta ponte é metálica com um único vão e encontros em cantaria, com um comprimento de 35m. Foi construída em 1887.
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[fig. 17] Ponte d’Abreiro Pag. 28
Ponte rodoviária do Abreiro ou “Diabo”, que liga o Abreiro a Vila Flor. Esta ponte desapareceu com a grande cheia que ocorreu em 1909. Seria constituída por um tabuleiro horizontal ou de cavalete assente sobre três arcos em alvenaria de pedra.
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[fig. 18] Fragas do Piado Pag. 30
Fragas do Piado entre Vilarinho e Caixão. O troço consite num alinhamento reto seguido de uma curva circular, com um declive ligeiramente descendente.
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[fig. 19] Ponte de Meirelles e Estação do Cachão • Pag. 31
Ponte de Meireles/Cachão ao k.41,7 é a ponte com menor vão (15,20m). É uma estrutura metálica com encontros em cantaria e aplicação de muretes em alvenaria com uma altura de 0,90 metros. Foi construída em 1887. O traçado é horizontal e retilíneo em 249m.
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[fig. 20] Estação de Mirandella Pag. 32
Estação de Mirandela ao k.54,1 situada no centro da Cidade de Mirandela, construída em 1887. O seu edifício impressiona pela grandiosidade e pelo tamanho pouco usual para uma linha de via estreita, apresentando quatro pisos e um telhado com águas bastante inclinadas. Apresenta duas plataformas, três linhas para cruzamentos, seis linhas para resguardos e ainda outras linhas para serventia das oficinas. Esta estação tinha como pretensão ser o centro de embarque/ desembarque da linha do Tua, bem como para a ligação que se ambicionava como ligação à rede espanhola Macedo de Cavaleiros - Miranda do Douro.
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Ponte rodoviária medieval na Cidade de Mirandela. Situa-se sobre o rio Tua. Foi construída nos finais do século XV inícios do século XVI. Ao longo do tempo ocorreram muitas modificações na ponte por força de várias reparações e reconstrução. A Ponte [fig. 21] Mirandella Pag. 33
apresenta, nos dias de hoje, 238,5 metros de comprimento, assente em dezassete arcos. O tabuleiro é plano, inicialmente lajeado, encontrando-se hoje alcatroado, e serve presentemente apenas para uso pedonal.Considerada monumento nacional em 1910.
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REVISITAR E REINTERPRETAR AS FOTOS DE BIEL SOBRE A LINHA DO TUA A MIRANDELA (1887) Eduardo Beira, IN+ (Técnico, Lisboa)
Revisitar, quase cento e vinte anos depois, os locais onde Emile Biel tirou, em 1887, as suas fotografias para o album da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro publicado em celebração da construção da linha ferroviária entre Foz Tua e Mirandela é um exercício de imaginação. O tempo passou, o ambiente modificou-se, a urbanização alargou-se, a vegetação e a arborização cresceram, e hoje a paisagem é simultaneamente igual e diferente. Igual na rudeza das fragas e das encostas rochosas, no rio lá no fundo entre calhaus e rochedos, resultado da natureza e da construção da linha, dos declives alucinantes das encostas na zona de Foz Tua à Brunheda, dos extraordinários socalcos de altitude, que começam a ser preenchidas pela invasão das manchas arbóreas. Diferente porque muita dessa rudeza se amaciou por uma muito mais densidade da cobertura vegetal, uma maior densificação da arborização, uma urbanização dos grandes aglomerados populacionais, de que Mirandela é o paradigma, e uma desertificação crescente das zonas menos povoadas.
Tentar reproduzir as fotografias centenárias de Biel é reviver as emoções que o viajante desse tempo, e em particular esse grande fotografo desse tempo - uma personagem avançada na adopção das novas tecnologias da imagem e um empreendedor vocacionado para o progresso - experimentaram perante a novidade que o progresso lhes oferecia. Essa novidade era por um lado a supremacia do homem a vencer a natureza hostil, mas também a força estranha e sideral de uma natureza e de um ambiente capaz de impressionar o mais positivista dos fotógrafos. Reproduzir as fotografias originais foi, nalguns casos, impraticável. As diferenças de objetivas, profundidades de campo, aberturas focais, etc. tornam o exercício porventura inútil. Mas é no acolhimento e no desafio que as emoções dos locais despertam no viajante que se mantém o essencial do fascínio que Biel conheceu, quando revisitados e revividos mais de cem anos depois.
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[fig. 1] Viaducto das Prezas Pag. 10
1. VIADUTO DAS PREZAS A primeira fotografia do álbum de Biel mostra o viaduto das Prezas ao fundo, logo seguido pela entrada para o túnel das Prezas, obras emblemáticas da linha em Foz Tua. Para quem tinha iniciado pouco antes a viagem em Foz Tua, era a entrada simbólica no reino das fragas e dos precipícios característicos da primeira parte da linha do Tua. Para quem finalmente chegava a Foz Tua, era a saída do reino perigoso, tenebroso e rochoso do vale do Tua para entrar nos domínios mais suaves, meigos, luminosos e acolhedores do vale do Douro. Era o sinal de que o porto de abrigo, a estação de Foz Tua, estava logo ali á frente e que, porventura, a próxima etapa da viagem, na linha do Douro, estava próxima. A fotografia foi tirada da margem direita do rio Tua, na estrada (de terra batida, claro!) que então conduzia á barca de Foz Tua, onde se podia atravessar para a margem esquerda do Tua e chegar depois á estação de Foz Tua por um caminho que contornava o cotovelo
do relevo e seguia pela marginal do Douro. No período da estiagem, a barca atravessava o rio em frente ao viaduto ferroviário das Prezas, mais ou menos onde está atualmente a ponte rodoviária mais tarde projetada por Edgar Cardoso (1). A imagem mostra um açude no rio Tua, escassos centena de metros antes da foz com o rio Douro e da ponte ferroviária (linha do Douro), que o tempo fez desaparecer, mas que certamente ajudava a criar uma zona de espelho de água que facilitava a travessia pela barca. Atualmente as obras do aproveitamento hidroelétrico de Foz Tua dominam a paisagem (foto 1). A antiga estrada de terra batida, que
vinha de Alijó por São Mamede de Riba Tua, deu origem á estrada N 212, um pouco mais acima. Numa das curvas de aproximação á ponte rodoviária sobre o rio Tua é possível identificar o ponto onde Biel terá tirado a sua fotografia. Os restos da construção em primeiro plano ainda são visíveis. A ponte rodoviária, aberta em 1940, uma obra emblemática do Estado Novo (2), passou a dominar a paisagem (ver também foto 2) a partir da rodovia envolvente (3). Atualmente os obras de construção da futura central e barragem, assim como os estaleiros das obras associadas distraem do viaduto e túnel das Prezas, que no entanto continuam a marcar a paisagem, na continua-
ção da linha ferroviária e antes das obras em curso para construção do muro da barragem. Pouco antes do inicio dos trabalhos da nova barragem, a panorâmica era menos agressiva - esperando-se que depois da conclusão dos trabalhos de construção da central e da barragem regressam a um estado muito próximo do que se pode apreciar na foto 3 (4). Uma outra imagem de Emilio Biel da ponte ferroviária sobre o Tua, na confluência do rio Douro com o rio Tua, aparece publicada no livro de Manuel Monteiro sobre o Douro (5) (ver foto 4), editado pela empresa editora de Emílio Biel. Trata-se de uma fotografia posterior, porventura cerca de vin-
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te anos depois da publicação da coleção de imagens sobre a linha da Companhia Nacional - o livro de Manuel Monteiro foi publicado em 1911. Mas a visão que nos oferece complementa a imagem de 1887, com a ponto ferroviária em primeiro plano, e o viaduto e entrada do túnel das Prezas em segundo plano. A foto foi tirada da margem esquerda do rio Douro, a margem oposta á estação de Foz Tua. A foto atual (foto 5, a preto e branco), tirada em altura de caudal mais intenso do rio, evidencia as alterações ocorridas, em especial a ponte rodoviária e as construções novas na atual Quinta do Tua, antes conhecida por Quinta dos ingleses. O açude parece no Tua
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continuar lá. O nível do rio é agora muito superior, fruto das barragens do Douro. Uma visão alternativa (foto 6, a cores) mostra uma moderna composição ferroviária da linha do Douro a cruzar a ponte e o impacto da cor. O efeito conjugado das várias pontes, do viaduto e da entrada do tunel na penedia da escarpa na margem esquerda do rio Tua continuam hoje em dia proporcionar ao viajante uma imagem de rara força (foto 7).
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[fig. 2] Tunel das Prezas Pag. 11
TÚNEL DAS PREZAS
Esta é uma fotografia agora impossível de reproduzir: a construção do muro da nova barragem do Tua cortou a vista.O rochedo visível em segundo plano na sua fotografia, pouco antes da entrada do túnel (depois da composição ferroviária) é exatamente onde assenta o muro da nova barragem. A presença de duas personagens junto do rochedo em primeiro plano dá um traço humano á paisagem. Uma fotografia tirada em Janeiro de
2011 (foto 8) permitia ainda recuperar uma boa parte da vista (comparar por o pormenor estilizado da fotografia de Biel). Em primeiro plano vê-se ainda o canal ferroviário, mas já sem os carris e as travessas. Ao fundo, á direita, a ponte rodoviária quase oculta a ponte ferroviária da linha do Douro, sobre a foz to Tua com o Douro. Na margem direita do rio Tua vê-se um caminho aberto junto ao nível de água para efeitos de prospeções
geológicas e preparação da construção do muro da barragem, que naturalmente não aparecia na fotografia de Biel. Uma fotografia alguns metros adiante (foto 9) permite ver a entrada (ou saída, conforme o sentido da composição ferroviária fosse descendente ou ascendente) do Túnel das Prezas, já depois de retirados os carris e as travessas.
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DETALHE [fig. 2] Tunel das Prezas Pag. 11
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[fig. 3] Tunel e Viaducto das Prezas Pag. 12
TÚNEL E VIADUTO DAS PREZAS Outra fotografia que já não é possível reproduzir, com o muro da barragem em construção a obstruir a vista sobre o vale e a linha. As obras em curso dificultam também o acesso ao local de onde a Biel fez a sua foto, a montante da barragem. A foto atual (foto 10) foi tirada do outro lado do túnel, a jusante da barragem, da “curva do violão”, na linha do Tua, antes do viaduto das prezas e mostra o troço da linha que aparece na foto de Biel. A entrada para o túnel das Prezas é bem visível. O viaduto das Prezas vê-se com alguma dificuldade, logo antes do túnel. Do lado esquerdo da imagem, a ponte rodoviária sobre o rio Tua, da autoria do Engº Edgar Cardoso. Fotografia feita em Janeiro de 2011, quando os trabalhos de construção da barragem estavam ainda numa fase preliminar.
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[fig. 4] Estação de Tralhariz e Tunel d’Alvella • Pag. 13
ESTAÇÃO DE TRALHARIZ E TÚNEL D’ALVELLA Na foto de Biel podem-se identificar um imponente muro de suporte antes da entrada no túnel da Alvela (agora mais conhecido por túnel de Tralhariz) e um pequeno agregado habitacional a nível inferior, junto á crista do relevo, inclusive com um caminho de acesso paralelo á linha, embora a cota muito mais baixa. A estação de Tralhariz é visível, embora com alguma dificuldade, antes do muro de suporte. Uma imagem desta pequena e perdida estação da linha do Tua foi por nós usada para capa da antologia literária que publicamos anteriormente (X). Apesar do nome da estação, a povoação de Tralhariz fica a uma cota muito superior e de acessos muito difíceis. Não é por acaso que sempre foi das estações com menos trafego da linha do Tua, mesmo nas primeiras décadas de exploração (X), apesar de Tralhariz sempre ter sido uma aldeia significativa a nível local embora mais “virada” para o vale do Douro do que para o vale do
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Tua. A cavalo a estação, perdida no meio das fragas e do nada, ficaria a cerca de uma hora de distância da povoação. A fotografia atual proposta (foto XX) mostra bem a reta em que se
situa a estação de Tralhariz e o muro de suporte referido. Na foto seguinte (foto XX) são claramente visíveis as ruínas do agregado populacional referido, há muito abandonado. Por cima das ruínas,
no meio da penedia da encosta, é visível a parte superior da entrada no túnel. Esta foto foi tirada da margem direita do rio Tua, das terras baixas de São Mamede de Riba Tua.
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TÚNEL E VIADUTO DAS PREZAS
[fig. 5] Fragas-Más Pag. 14 12
A fotografia de Biel foi tirada logo à saída do primeiro viaduto das Fragas Más, imediatamente antes da entrada no segundo túnel (viaduto da Cruz), no sentido ascendente. As personagens visíveis, provavelmente trabalhadores da Companhia Nacional ou ainda ao serviço dos empreiteiros da construção da linha, ilustram o
vestuário característico da época. Fragas Más é o nome dado ao conjunto de dois tuneis muito próximos e um viaduto entre ambos, sendo um dos locais mais míticos da linha do Tua, dado o caracter agreste da paisagem e o facto dos passageiros do combóio terem a sensação de ficarem no “ar” na passagem pelo viaduto, logo a seguir a um túnel, a um nível elevado sobre o rio e as fragas. Foi também uma zona de di-
fíceis trabalho de construção. Num primeiro plano, quer da fotografia original como da atual, é possível reconhecer as guardas do viaduto - que se modificaram. Na realidade o viaduto foi reconstruído em 19XX. Inicialmente um viaduto metálico, passou a um viaduto em cimento armado, como se reconhece numa das fotografias seguintes.
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[fig. 6] Tuneis e Viaducto das Fragas-Más • Pag. 15
TUNEIS E VIADUCTO DAS FRAGAS-MÁS Biel terá tirado esta segunda fotografia sobre o conjunto das Fragas Más ao nível da linha de caminho de ferro, umas centenas de metros depois da saída do segundo túnel das Fragas Más (tunel da Cruz). No seu contraponto atual optou-se por uma vista de uma cota superior. Inclui-se também uma imagem “reversa” da original, ou seja, uma foto que mostra (ao fundo) o local de onde Biel fez a sua imagem. Nesta foto atual vê-se o viaduto (agora em cimento armado) e a entrada no túnel da Cruz, o segundo túnel em sentido ascendente. Ao fundo e á esquerda, ao nível da linha, distingue-se um muro importante - local da foto de Biel.
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[fig. 7] Os Moinhos do Castanheiro Pag. 16
OS MOÍNHOS DO CASTANHEIRO Esta foto foi tirada cerca de cem metros depois da estação de Castanheiro (do Norte). O pequeno edifício branco da estação é visível ao fundo, do lado esquerdo, a espreitar entre as escarpas da trincheira que a antecede (em sentido descendente). Uma foto feita do mesmo local mostra a predominância da vegetação, que impede a vista do rio. Uma foto panorâmica, um pouco antes, ao km 11.8, reconstrói melhor a vista original. Também aqui a pequena estação se pode descortinar, embora parcialmente obstruída pela vegetação. No rio, do lado direito, é fácil de reconhecer as pedras de uma represa. Na realidade a foto de Biel inclui um pormenor relevante: uma observação cuidada mostra a construção referente aos “moinhos” de dão o nome á fotografia no álbum original, na sequência das pedras da represa, em frente á estação, mas ao nível do rio
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DETALHE [fig. 8] Os Moinhos do Castanheiro Pag. 16
(ver o detalhe ampliado da foto original). Esses moinhos já não existem, mas uma observação das pedras á cota do rio mostra a existência de uma plataforma de pedras por baixo das quais passa a água do rio, e que constituíam a base onde assentavam os referidos moinhos. No local ainda se encontram várias mós de moinhos, de dimensões apreciáveis. Dss construções visíveis na foto de Biel não se encontram traços. Na realidade deveriam ser mais telheiros suportados em vigas de madeira, um tipo de construção apropriado para facilmente se montar e desmontar, num local onde os efeitos das cheias se fazia sentir facilmente. Uma panorâmica atual ao nível da linha, em frente á estação, mostra a zona da represa e em primeiro plano os restos de um edifício, com paredes em madeira, mas a uma cota intermédia entre o rio e a linha. Esta construção não parece visível na foto de Biel, mas admite-se que fosse uma construção de apoio ás operações da moagem.
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[fig. 9] Ponte de Paradella Pag. 17
PONTE DE PARADELA A ponte de Paradela pode-se ver do lado direito da foto original de Biel, antes de um imponente muro de suporte, no sentido ascendente da linha. A imagem atual mostra um aumento da vegetação, assim como o imponente rochedo á saída da ponte, resultado de uma trincheira. Num local de acesso muito difícil, custa imaginar como as peças metálicas foram transportadas até ao local, desde Castanheiro do Norte. Pela descrição de um jornal da época, sabemos que as peças foram transportadas de Foz Tua até Castanheiro do Norte pela estrada ainda em construção, e daí desceram com grandes dificuldades para o local de edificação por uma pista ainda hoje existente, mas muito primitiva.
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[fig. 10] Vista Geral do Amieiro Pag. 18
VISTA GERAL DO AMIEIRO A povoação do Amieiro é uma das aldeias mais belas e características do vale do Tua, alcantilada sobre a garganta estreita e rochosa do rio e também sobre a linha ferroviária. A aldeia fica na margem direita do rio, no concelho de Alijó, e a linha na margem esquerda, no concelho de Carrazeda de Ansiães. A freguesia de Amieiro era uma das mais pequenas freguesias antes da última reforma, um indicador do seu isolamento. Muitas das vinhas das encostas da margem esquerda, na freguesia de Pombal de Ansiães, são cultivadas por habitantes do Amieiro. A travessia do rio fazia-se tradicionalmente por barca, para acesso ás propriedades da outra margem e também para acesso á estação de Santa Lúzia, na linha do Tua, estabelecida precisamente para servir a povoação do Amieiro. Aliás esse era o seu primeiro nome, posteriormente alterado para evitar confusões com uma estação quase homónima no espaço alentejano. A fotografia de Biel terá sido tira-
da ao nível da linha férrea, numa zona especialmente estreita da garganta do rio. A fotografia atual da aldeia foi feita da margem esquerda do rio, das proximidades do loca chamado Barrabás, no caminho antigo que conduzia á estação de Santa Luzia e também á ponte metálica construída no século XX e que uma cheia “levou” (os restos mortais são ainda bem visíveis uma centena de metros a jusante da aldeia. A perda da ponte levou á construção e operação de uma cadeira de vai e vem, operada manualmente, para os habitantes atravessarem o rio e acederem á margem oposta e á estação de Santa Lúzia.
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[fig. 11] Pulpito do Diabo Pag. 19
PÚLPITO DO DIABO Este magnifico conjunto rochoso resultou da construção de uma trincheira para passagem do canal ferroviário, entre as estações de Santa Luzia e São Lourenço )mais perto desta do que daquela). Biel tirou a fotografia olhando para a linha no sentido descendente. A fotografia atual ilustra o nível mais elevado de vegetação na encosta esquerda do rio, mas permanece a singeleza estranha do conjunto. O enquadramento com a linha e o rio é mais claro numa foto panorâmica. A última fotografia mostra a vista “reversa” do conjunto, quando visto do lado ascendente da linha.
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CALDAS DE S. LOURENÇO
[fig. 12] Caldas de S. Lourenço Pag. 20
A fotografia original de Biel é uma das poucas imagens na colecção que não mostra a linha. Trata-se na realidade de uma excelente e rara fotografia das caldas de S. Lourenço no último quartel do século XIX, tirada a uma cota alta, quase seguramente da curva que o caminho de acesso fazia perto da pequena capela (que não é visível na imagem) existente no início da descida. A linha ferroviária passava muito abaixo, junto ao rio. A fotografia panoramica tirada agora do mesmo ponto mostra que as construções da foto de Biel permanecem. Embora com algumas alterações, os dois “hotéis” das
termas continuam ainda hoje nas suas funções, mesmo que precárias. Um deles, quase em frente ao tanque das caldas, tem em parte um piso superior no lado esquerdo do edifício, estando do lado direito em ruínas. No outro, a um nível inferior, continuam quartos e cozinhas, entretanto melhorados, para alugar a quem ainda procura os banhos de forma residente. O estranho edifício do tanque, onde os banhos eram coletivos (homens e mulheres em horas separadas), continua operacional, rodeado agora de ruínas de anteriores balneários. Banhistas do “tanque antigo” continuam a esperar pacientemente pela sua vez durante os meses de verão..
Um novo balneário está provisoriamente instalado na construção no largo, em parte uma construção prefabricada, em madeira, mas agora dotado de equipamentos modernos e de pessoal treinado. Nos meses de verão a sua capacidade de atendimento esgota. O município de Carrazeda tem em projeto um novo balneário, a uma cota mais alta, que não alterará a vista única que o lugar proporciona na sua zona antiga. A casa “nova” da foto de Biel, que tinha sido então recentemente construída, ao nível superior, continua lá ainda hoje, mas em ruínas. Uma pedra do edifício assinala a sua construção em 1883, pouco antes da construção da linha.
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ESTAÇÃO E CALDAS DE S. LOURENÇO
[fig. 13] Estação e Caldas de S. Lourenço Pag. 21
Biel tirou a fotografia umas centenas de metros depois da estação de São Lourenço, no sentido ascendente, ao nível da linha férrea. É visível um conjunto de carruagens estacionadas na estação, por sua vez composta de um edifício (casa de habitação e bilheteira) e de um armazém de mercadorias. O prédio visível por cima da estação é um “hotel” antigo das termas, que não é visível na foto anterior e Biel, mas cujas ruínas ainda hoje permanecem no local. A fotografia atual mostra uma estação completamente diferente da original, com um edifício surpreendentemente moderno, sem qualquer traça ou relação com as
outras estações da linha. Na realidade trata-se de uma estação construída nos anos 80 ou 90 do século XX, depois de uma “trapalhada” da CP em que as construções antigas foram destruídas e se viu depois obrigado a construir uma nova. São Lourenço há muitos anos que não tem qualquer habitante permanente todo o ano, conhecendo apenas algum movimento nos meses das termas, em especial no mês de agosto. Continuam umas caldas muito locais, em que os banhistas são de proximidade e que hoje em dia chegam e saiem diariamente por via rodoviária, incluindo uma carrinha do município que assegura a ligação a Carrazeda várias vezes ao dia. Uma vista do lugar, a partir de uma cota mais alta, na estrada que liga
S. Lourenço a Pombal de Ansiães, permite enquadrar o aglomerado populacional com o rio e a linha, assim como a estação. As pedras do “púlpito do diabo” (uma das fotografias anteriores de Biel) são visíveis, umas centenas de metros depois da estação, no sentido descendente. Ao fundo, depois da dobra do relevo e da curva do rio, podem-se ver as primeiras casas da aldeia do Amieiro, na margem direita do rio. Uma vez mais, é bem claro o aumento da vegetação entre a imagem atual e a situação original. A total dissonância entre o estilo da nova estação e a original é patente na ultima fotografia, que também mostra o isolamento da estação, instalada no “buraco” deixado na escarpa pela extração de pedra para a construção da linha.
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[fig. 14] Gavião, Estação de S. Lourenço Pag. 22
GAVIÃO (Estação de S. Lourenço) Biel tirá feito esta fotografia a uma cota alta, cerca de cem metros depois do ponto onde fez a imagem anterior das caldas de São Lourenço, no caminho (agora estrada) de S. Lourenço para Pombal. Junto ao local da estação vêm-se vários materiais depositados, associados á construção da linha. A vegetação oculta a parte da estação na fotografia atual. As trincheiras na recta a seguir á curva da linha após a estação de São Lourenço, no sentido ascendente, são bem visíveis na fotografia seguinte.
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[fig. 15] Ponte da Cabreira Pag. 23
PONTE DA CABREIRA Esta ponte ferroviária passa por cima da ribeira da Cabreira, linha de água ao longo do vale que se forma na chamada serra da Cabreira, ainda antes do vale aprazivel e fértil junto a Freixiel. A ribeira desagua no rio Tua, daí a necesidade da ponte. A foto de Biel foi tirada próximo nível do rio, das pedras do leito da ribeira. Hoje em dia é difícil reproduzir completamente a imagem atual, em consequência da vegetação forte que preenche as margens da ribeira, e mesmo parte do seu leito rochoso.
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PEDRA LONGA
[fig. 16] Pedra Longa Pag. 24
Biel tirou esta foto a poucos metros da foto anterior, mas na direção ascendente da linha, para montante do rio, junto á foz da ribeira da Cabreira. Pedra Longa é a formação rochosa visível ao fundo, a seguir ao muro da linha férrea, sobre a curva do rio sobre a direita, no sentido ascendente.
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PONTES DO VIEIRO E DO ABREIRO
[fig. 17] Pontes do Vieiro e Abreiro Pag. 25
DETALHE [fig. 17] Pontes do Vieiro e Abreiro Pag. 25
A ponte do Vieiro é a ponte ferroviária na linha do Tua, á esquerda, sobre uma linha de água afluente do rio Tua. A ponte do Abreiro era a ponte rodoviária ao fundo, sobre o rio Tua, também conhecida por ponte do Diabo, e que foi arrastada pelas cheias de 1909 e 1910. O Estado Novo construiu depois uma nova e elegante ponte rodoviária, mais próxima da ponte ferroviária, desenhada pelo Eng Edgar
Cardoso e inaugurada em 195X. Biel terá tirado a sua fotografia da linha ferroviária, poucas centenas de metros antes de chegar á ponte ferroviária do Vieiro. A vegetação dificulta agora uma imagem com a mesma visibilidade ampla que Biel conseguiu. A fotografia atual mostra apenas partes da moderna ponte rodoviária por entre o arvoredo. Uma foto a nível mais baixo permite recuperar o palco da imagem de Biel. Como é óbvio, os sinais da antiga ponte do Diabo quase desapa-
recem e a nova ponte rodoviária, que passa por cima da linha, domina a paisagem. Do lado direito, a seguir á ponte ferroviária do Vieiro, é agora clara a presença da estação de Abreiro, algo que faltava na imagem de Biel - assim chamada apesar de estar na margem esquerda do rio Tua que fica do lado de Vieiro. Na realidade a margem direita do rio Tua é que fica do lado de Abreiro, a povoação a cerca de um quilometro da ponte rodoviária, á sua esquerda na imagem.
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PONTE DE VIEIRO A fotografia de Biel terá sido feita da margem alta da ribeira que corre para o rio Tua, do lado de Vieiro (margem esquerda do rio Tua), onde agora fica o acesso a atual estação de Abreiro. [fig. 18] Ponte do Vieiro Pag. 26
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[fig. 19] Ponte d’Abreiro Pag. 27
PONTE DO ABREIRO A antiga ponte do Diabo ligava as duas margens do rio Tua, as margens do lado do Abreiro (lado esquerdo na imagem) e do lado do Vieiro (lado direito da imagem). Esta ponte assegurava a ligação na estrada que então ligava Vila Real a Mirandela. Como referido, foi destruída pelas cheias de 1910. Hoje em dia ainda restam os pilares dessa ponte (ver foto panorâmica tirada de local próximo do de Biel, abaixo do muro de suporte da linha), que são bem visíveis
no meio e nas margens do rio, poucas centenas de metros depois da ponte ferroviária do Vieiro, no sentido ascendente. Também facilmente se reconhece a estrada que conduzia á ponte, na margem do lado de Abreiro (margem direita do rio Tua). Quando Biel fez a sua fotografia, a estação ferroviária não era
no mesmo local da atual, mas era imediatamente á saída dessa ponte do Abreiro, em local onde hoje quase nada resta, estando aí instalado um olival. Foi mais tarde, e depois da construção da nova ponte rodoviária, que a estação passou para junto da ponte ferroviária (do Vieiro), quase por baixo da nova ponte rodoviária.
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FRAGAS DO PIADO
[fig. 20] Fragas do Piado Pag. 28
Estas fragas ficam na margem direita do rio Tua, entre Vilarinho das Azenhas e o Cachão, na encosta e correspondem a uma formação rochosa que forma um estrato geológico com várias centenas de metros de comprimento. A fotografia de Biel terá sido ti-
rada do caminho entre as duas povoações, que nesta zona segue aproximadamente paralelo á linha, mas a uma cota superior. O troço de linha visível na imagem fica entre as estações referidas, no sentido ascendente. A maior arborização e utilização dos solos na região dificulta a reprodução da imagem original.
Uma fotografia ao nível da linha mostra as fragas ao fundo, sobre a direita, na encosta. E mostra também o roubo recente de carris na linha, durante centena de metros nas proximidades de uma passagem de nível a poucas centenas de metros a estrada - um padrão que infelizmente parece repetir-se nessa prática criminosa.
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PUCHA PRETO
[fig. 21] Pucha-Preto Pag. 29
Pucha Preto é o nome dado a uma elevação rochosa na margem esquerda do rio Tua, a pequena distancia do linha. Biel terá tirado a sua fotografia ao nível da linha, algumas centenas de metros depois da foto anterior, na direção descendente da linha. A fotografia atual mostra uma vez mais a maior densidade da vegetação.
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[fig. 22] Ponte de Meirelles e Estação do Cachão • Pag. 30
PONTE DE MEIRELES E ESTAÇÃO DO CACHÃO A ponte de Meireles passa sobre a ribeira do mesmo nome, que desagua no rio Tua junto á povoação do Cachão e nas proximidades da estação ferroviária. A foto de Biel foi tirada de terrenos próximos, do lado direito da linha quando no sentido ascendente. A ponte aparece em primeiro plano e o armazém da estação aparece em segundo plano, mais ao fundo sobre a direita. No espaço próximo da ponte e da estação não parecem existir outras construções. A fotografia é difícil de reproduzir atualmente pois os terrenos de onde Biel fez a sua imagem estão agora vedados (parque industrial do Cachão). Mas a imagem obtida mostra as alterações importantes que a zona teve. Do lado esquerdo da linha aparece o esqueleto de um edifício de grandes dimensões que nunca chegou a ser concluído e a vegetação á agora muito mais densa. Por outro lado aumentou
muito o número de construções na zona. Também a estação de Cachão se modificou, no primeiro quartel do século XX, e mudou mesmo de lugar, passando do lado direito para o lado esquerdo da linha, quando no sentido ascendente. A estação fica logo a seguir á curva da linha, sobre a esquerda, em frente ao casario que se vê na imagem. A terceira imagem mostra a ponte na atualidade, fotografada no sentido descendente. Do lado esquerdo podem-se ver construções do antigo Complexo do Cachão, agora zona industrial. Do lado direito, e por trás da vegetação, fica uma grande unidade de tratamento de efluentes que nunca foi completada nem posta em funcionamento. O que parece ser caricato: a ribeira de Meireles oferece agora um aspeto deprimente de lixo e detritos com um horroroso cheiro nauseabundo e pestilento. Mais ao fundo pode-se ver o crescimento da vegetação na linha, consequência da não utilização depois da estação do Cachão, no sentido descendente (entre as estações do Cachão e de Mirandela a linha é operada pela empresa do Metro de Mirandela).
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esquerdo podem-se reconhecer as instalações do novo terminal rodoviário, na zona onde antigamente ficavam as oficinas de manutenção ferroviária.
[fig. 23] Estação de Mirandella Pag. 31
ESTAÇÃO DE MIRANDELA A estação de Mirandela ficava, na altura, fora de portas do aglomerado urbano de Mirandela, em terrenos descampados num vale á entrada da (então) vila. Biel tirou a fotografia a partir da colina em frente da estação, do outro lado da linha de água, colina onde atualmente se encontra o cemitério da (agora) cidade de Mirandela. O belo e emblemático edifício da estação e o perímetro ferroviário envolvente são quase totalmente abarcados na imagem de Biel. A imagem atual, tirada das proximidades do muro traseiro do cemitério, mostra bem como se alteraram as envolventes da estação ferroviária. O armazém da estação desapareceu, embora ainda seja bem visível a sua plataforma. A estação, ao longe, continua bela e emblemática, apesar de ao perto serem infelizmente bem visíveis os sinais da sua progressiva degradação. A foto panorâmica enquadra o perímetro da estação num ângulo mais aberto. Do lado
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MIRANDELA
[fig. 24] Mirandella Pag. 32
A fotografia original de Biel terá sido tirada de uma das colinas sobranceiras á (então) vila de Mirandela, e mostra como o agregado habitacional se concentrava na margem esquerda do rio Tua. A imponente ponte “antiga” marcava a ligação com uma margem direita quase desabitada. A fotografia atual mostra bem a
diferença, sendo quase impossível reproduzir a imagem original de Biel. Tirada do atual Bairro da Boavista, na zona de Golfeiras da (atual) cidade de Mirandela, a explosão habitacional que entretanto ocorreu margem direita do Tua é bem visível. A zona da estação, que aparece quase deserta no detalhe da fotografia de Biel, reúne agora equipamentos importantes da cidade,
incluindo o novo hospital privado, sobranceiro á zona da estação. Uma última fotografia panorâmica oferece uma vista da cidade a partir da colina onde se situa a linda igreja de São Bento e mostra o extraordinário crescimento urbano de Mirandela, a nova centralidade da terra quente transmontana.
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DETALHE [fig. 24] Mirandella Pag. 32