Significar

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SIGNIFICAR MICHAEL POLANYI

Tradução de

Eduardo Beira

Escola de Engenharia, Universidade do Minho EDAM Professor, MIT Portugal Program

Inovatec (Portugal) 2015


EQUIPA DO PROJETO Eduardo Beira (www.dsi.uminho.pt/ebeira)

Senior Research Fellow, IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy (IST, Lisboa). Professor

associado (convidado) da Escola de Engenharia da Universidade do Minho (2000-2012) e Professor EDAM (Engineering Design and Advanced Manufacturing) do programa MIT Portugal (2008- 2012).

Engenheiro químico (1974, FEUP), foi gestor e administrador de empresas industriais e de serviços durante mais de vinte anos, depois de uma primeira carreira académica na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.

Interesses académicos pelas questões de inovação, desenvolvimento, engenharia e tecnologia, indústrias “tradicionais”.

Ana Prudente

Designer de comunicação (Escola Superior de Arte e Design, 1999)

Responsável pela imagem e design gráfico na Inovatec, Lda. (Portugal).

Junho 2015

ISBN: 978-989-97134-0-6

MEANING

Licensed by The University of Chicago Press, Chicago, Illinois, U.S.A. © 1975 by The University of Chicago. All rights reserved.


Mapa das palavras mais importantes de Significar,

construĂ­do com Wordle (Feinberg, J., www.wordle.net).



MICHAEL POLANYI

UMA OBRA IMPORTANTE, POLÉMICA E TERMINAL Eduardo Beira

Mas o público também tem um contributo nessa seleção. Neste caso estabelece-se uma comunicação entre domínios aparentemente alheios. É claro que estamos familiarizados com os inputs do mercado, mas aqui também temos pedidos ou exigências para novas funções e para alterações no

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MICHAEL POLANYI E HARRY PROSCH: COLABORAÇÃO E DISCUSSÃO ACADÉMICA * Phil Mullins

1. A DISCUSSÃO E OS ANTECEDENTES Harry Prosch foi coautor do último livro de Polanyi, Meaning (1), publicado em 1975, escassos meses antes da morte de Polanyi em 1976. O livro baseia-se nas conferências que Polanyi deu nos Estados Unidos entre 19689 e 1971: “alargou o âmbito” (2) das publicações anteriores de Polanyi incluindo agora a análise do significado em arte, ritual e religião. No principio dos anos setenta Polanyi estava cada vez mais frágil e demasiado enfraquecido mentalmente para dar ás ideias das suas últimas conferências a forma de um ultimo grande livro. Prosch foi convidado por Polanyi em 1972 para o ajudar a preparar esses materiais das conferências com vista a uma publicação. Com o progressivo declínio de Polanyi, Prosch tornou-se “mais ... um colaborador do que ... um editor ou um assistente” (3) . É certo que a correspondência entre Prosch e Polanyi que se encontra nos arquivos da Universidade de Chicago deixa bem claro que Meaning nunca teria sido publicado sem o trabalho diligente de Prosch e a sua relação compassiva com um Polanyi decadente (4). Prosch e Polanyi acabaram por assinar o contrato que Prosch conseguira com a Universidade de Chicago e que levou à publicação de Meaning como um livro de autoria partilhada. No entanto, Prosch é muito claro ao dizer que “fez todos os esforços para aderir o mais possível às palavras de Polanyi nas conferências não publicadas e noutras publicações suas na medida permitida pela continuidade, coerência e desenvolvimento de um livro com a sua própria integridade interna”. Prosch enfatizou que, apesar da “versão final do livro ser trabalho meu”, certamente que “a origem última de tudo foi Michael Polanyi” (5). Apesar dos comentários de Prosch acerca de Meaning, o livro foi recebido, depois da sua publicação, com uma certa perplexidade pelos académicos interessados por Polanyi . Não era em geral claro como é que este novo livro se ajustava com a perspetiva tão cuidadosamente elaborada em Personal Knowledge e nos

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livros mais curtos e artigos de Polanyi na década depois da publicação do seu magnum opus. As ideias de Polanyi, como as de qualquer filosofo, desenvolveram-se ao longo da sua vida e aconteceram desenvolvimentos particularmente importantes (muitas vezes aludidos pelo próprio Polanyi) nas publicações dos dez anos depois de Personal Knowledge. De alguma forma a ligação entre Personal Knowledge, as publicações subsequentes e Meaning era clara, mas por outro lado parecia haver uma disjunção. A disjunção aparente foi talvez complementada por vários factores históricos. Pelo menos alguns académicos interessados na filosofia de Polanyi sabiam que as capacidades mentais de Polanyi estavam em declinio no iníciio dos anos setenta. Também circulavam, entre académicos, algumas cópias dos rascunhos de algumas das conferências de Polanyi nos Estados Unidos, entre 1969 e 1971. Numa palavra, pouco depois da sua publicação estavam a ser levantadas questões sobre quanto de Meaning é que poderia refletir a mão de Harry Prosch. O próprio Prosch contribuiu para alguma da discussão emergente acerca de Meaning ao escrever, em 1979, uma longa revisão crítica do livro The Way of Discovery, de Gelwick, para o jornal Ethics (6). Esta revisão crítica foi o princípio de uma discussão entre Gelwick e Prosch acerca da interpretação de certos elementos da filosofia de Polanyi e, muito em especial, como interpretar Meaning. Nos anos seguintes, um certo número de académicos interessados em Polanyi discutiram o conteúdo e o estatuto de Meaning, o que por sua vez passou para revisões críticas, artigos e réplicas ao longo de vários anos nos jornais próximos dos grupos interessados em Polanyi nos Estados Unidos e no Reino Unido (7). Um conjunto de artigos foi publicado na Zygon, em 1972, tratando da questão da ciência e da religião em Polanyi (8). Gelwick e Prosch acentuaram a questão da interpretação com os seus artigos diametralmente opostos para esse volume (9). A seguir, quando Drusilla Scott publicou Everyman Revived, em 1985, Prosch escreveu uma revisão crítica em geral muito positiva, mas em que volta a levantar as mesmas questões acerca do tratamento de Scott acerca dos pontos de vista sobre arte e religião, que já tinha levantado na sua revisão do livro de Gelwick (10). Sumariamente, Prosch argumentou que Gelwick, Scott e outros académicos interessados no pensamento de Polanyi tinham apresentado mal, nos seus escritos, as afirmações de Polanyi acerca do estatuto metafísico das entidades reais conhecidas na arte e na religião (Deus, por exemplo). Prosch insistiu que Polanyi pretendia enfatizar a descontinuidade ontológica entre o natural e aquilo que ele chamou entidades “transnaturais”, em Meaning. Essas entidades transnaturais, compreensivas e reais, não existem independentes do sistema articulado de inquirição numa comunidade cultural em particular, o que acontece com o objetos

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naturais conhecidos na ciência. Ou seja, a ciência assenta sobre realidades, empiricamente confirmaveis, que existem de forma independente, enquanto que o significado religioso, como os significados artístico ou matemático, assentam em realidades que não existem de forma independente do sistema articulado que os projeta pela imaginação. Gelwick, Scott e vários outros académicos argumentaram (especialmente com base em artigos publicados antes de Meaning) que Polanyi afirmava não existir uma diferença ontológica fundamental entre as realidades conhecidas na ciência, arte e religião. A filosofia de Polanyi é uma perspetiva heurística com uma conceção estratificada da realidade que apela a quem conhece, em qualquer campo de inquirição, a aceitar a responsabilidade pela procura pela verdade. Polanyi deu ênfase às diferenças entre níveis ou tipos de participação envolvidas em áreas diferentes da inquirição, mas pretendia deixar claro a continuidade e valor de todos os tipos de inquirição através de um espetro, desde a física à religião. Polanyi apreciava a realidade das entidades compreensivas de todos os tipos, as conhecidas na ciência e as conhecidas na teologia, embora descrevesse o envolvimento de quem conhece em diferentes áreas de inquirição (atendendo aos diferentes tipos de realidades) através de formas também algo diferentes (11). Em suma, embora Prosch tivesse em alta consideração as obras de Gelwick e de Scott à filosofia de Polanyi, o seu próprio livro representava para ele uma correção acerca da forma como interpretar certos aspetos do pensamento de Polanyi. Em particular, os pontos de vista acerca de arte,l ritual e religião, tópicos que são centrais em Meaning (12), e que Prosch acreditava estarem a ser desvirtuados nas várias obras de introdução.

2. A RELIGIÃO, MITOS E RITUAIS EM POLANYI, SEGUNDO PROSCH Prosch discute o tratamento de Polanyi para os ritos, mitos e religião, três tópicos que de alguma maneira aparecem associados da mesma forma que o tratamento de símbolos, metáforas e obras de arte também aparecem associados, no capítulo 13 da sua obra sobre Polanyi. Ritos ou rituais têm um carater artificial que os separam da vida quotidiana. Embora a índole moderna não nos induza a ter confiança na importância dos ritos e das cerimonias, podemos aprender a vivê-las profundamente nessas suas formas artificiais e a integrar os seus elementos incompatíveis. O que descobrimos é uma visão comovente e compreensiva das nossas próprias vidas. Prosch assinala que Polanyi pretendia reivindicar que, num certo sentido, os mitos onde os rituais e as cerimonias encontram as suas raízes são verdadeiros. A cultura moderna, cientista, desencoraja qualquer discussão da

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verdade relacionada com os ritos, cerimonias e mitos, mas Polanyi fez um esforço sério para lidar com este assunto. Prosch passa em revista algumas das discussões de Polanyi, fortemente baseadas nas noções de Eliade acerca do sagrado, sumariando assim a sua compreensão da posição de Polanyi: Assim Polanyi manteve que os mitos também nos podem afetar, mas só se nos puderem separar da nossa experiência corrente no mundo. Isso pode ser feito, segundo Polanyi, porque os acontecimentos descritos ou retratados são totalmente diferentes da realidade da experiência humana. Acreditar no mito e vivê-lo através dos seus ritos é por isso levarmos para uma integração transnatural, como também existe na arte e na poesia, em que incompatíveis (que permanecem incompatíveis), se combinam numa integração significante por um feito da nossa imaginação (13). A longa análise de Prosch sobre a discussão do mito revê o esforço de Polanyi para identificar as diferenças entre a mente arcaica e a mente moderna. As mentes arcaicas, que eram capazes de viver confortavelmente no mito, trabalhavam como as mentes modernas que integram elementos subsidiários, mas tinham um quadro de plausibilidade diferente: “O homem moderno difere do homem arcaico apenas pelo seu juízo sobre se certos tipos de contiguidades espaciais e temporais que se observam devem ser vistas como coincidentes ou causais” (14). O homem arcaico, ao invocar a magia, trabalhava para eliminar as incertezas representadas por coincidências temporais no seu mundo. As mentes arcaicas parecem terem sido mais impressionadas pela “qualidade sensorial das relações significantes, e a imaginação exagerou muito (na nossa opinião) as interações entre os elementos subsidiários e o seu foco, especialmente quando o objeto é uma pessoa humana” (15). Isto permitia que as mentes arcaicas olhassem para o seu mundo tangível muito mais holisticamente do que é possível na perspetiva analítica e crítica da modernidade. Polanyi pensava que a mente arcaica tendia a exagerar coerências até ao ponto do absurdo, mas reconhecia “a interiorização como um meio próprio para compreender as coisas vivas (ao contrário de muitas mentes modernas reducionistas) (16). Os mitos dos povos arcaicos eram formas significantes que suportavam a vida, porque os povos arcaicos compreendiam que esses mitos eram “frutos do trabalho da imaginação, como as obras de arte. E, como as obras de arte, a sua verdade consiste apenas no seu poder para evocar uma experiência em nós que nós acreditamos ser genuína” (17). A análise de Prosch acerca do material em Meaning, e particularmente o seu tratamento do mito, aprofunda os detalhes e tenta apresentar aquilo que Prosch considerava ser a força da sua convicção acerca da perspetiva de Polanyi.

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Prosch sumaria a compreensão da religião por Polanyi como incorporando todos os elementos encontrados nos mitos e nas obras de arte: A religião ...também é um trabalho da imaginação. É um trabalho que se alastra, porque incorpora mitos, ritos e cerimonias ... assim como doutrinas e culto. Uma integração transnatural é, para Polanyi, uma integração de incompatíveis. Mais, está separado da nossa vida vida corrente por uma “moldura” - tal como as obras de arte (18). Polanyi acreditava que as integrações transnaturais feitas pela imaginação para produzir significados religiosos eram extraordinariamente compreensivas. Para aqueles que conseguem fazer essas integrações, “é a totalidade da vida que finalmente se integra na presença de Deus” (19). Polanyi defendia que a chave para a plausibilidade das integrações religiosas reside em os seres humanos terem, ou não, um sentido profundo de que o mundo é fundamentalmente significante. Esta é a “hipótese religiosa” básica e, embora muito da nossa cultura contemporânea desencoraje as pessoas em fazerem essa hipótese, não há “razão científica para que não possamos acreditar na hipotese religiosa segundo a qual o mundo é significante” (20). A reformulação pós crítica da epistemologia e da filosofia da ciência, na explicação de Polanyi por Prosch, abriu portanto o caminho para “restaurar a possibilidade de acreditarmos naquelas entidades compreensivas intangíveis e transnaturais que nos permitem adquirir personalidades mais integradas e significantes” (21). NOTAS (*) Adaptado de partes do ensaio “On Reading Polanyi and Reading about Polanyi’s Philosophical Perspective: Notes on Secundary Sources”, publicado pelo autor em The Political Science Reviewer, vol. 37 (2008) 158-240, em particular das páginas 203-206 e 214-216 e notas associadas. Agradecese a autorização do editor. Adaptação e tradução por Eduardo Beira. (1) Michael Polanyi and Harry Prosch, Meaning (Chicago: University of Chicago Press, 1975). (2) Prosch, Michael Polamji: A Critical Exposition (Albany, NY: SUNY State University of New York Press, 1986), p. 2. (3) Ibid., p. 1. Embora os comentários a Meaning que eu cito tenham origem primariamente na introdução do livro de Prosch, Michael Polanyi: A Critical Exposition, a mesma explicação pode-se encontrar no material da introdução a Meaning e na correspondencia entre Prosch e Polanyi, depositada nos arquivos Polanyi. (4) Ver a extensa análise análise da correspondência entre Prosch e Polanyi que Martin Moleski and eu incluimos em “Harry Prosch: A Memorial Re-Appraisal of the Meaning Controversy,” Tradition & Discovery, 32, no. 2 (2005-6): 8-24. Alguns dos comentários referidos são explorados com mais profundidade neste ensaio. (5) Prosch, Michael Polanyi: A Critical Exposition, p. 2.

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(6) Ethics, 82 (Janeiro 1979), 211-16. (7) A minha introdução ao conjunto de artigos na Zygon, referidos a seguir, tentou fazer um esforço para rever a história inicial da discussão académica. Ver Phil Mullins, “The Spectrum of Meaning— Polanyian Perspectives on Science and Religion,” Zygon, 17, no. 1 (Março 1982), 3-8. O artigo que Moleski e eu escrevemos sobre a controversia acerca de Meaning, referido acima (“Harry Prosch: A Memorial Re-Appraisal of the Meaning Controversy”) atualiza os registos dessa história. (8) Ver os artigos por Ronald Hall, Bruce Haddox, Richard Gelwick, Harry Prosch, John Apczynski, Durwood Foster, and William Scott in Zygon 17, no. 1 (Março 1982). (9) Richard Gelwick, “Science and Reality, Religion and God: A Reply to Harry Prosch”, Zygon 17, no. 1 (Março 1982), 25-40. Harry Prosch, “Polanyi’s View of Religion in Personal Knowledge: A Response to Richard Gelwick”, Zygon, 17, no. 1 (Março1982), 41-48. (10) Harry Prosch, review of Everyman Revived, Tradition & Discovery, 13, no. 2 (1985-86): 20-22. (11) Não penso que Prosch tivesse disputado muitos dos pontos aqui disputados nesta minha tentativa para sumariar cuidadosa e sucintamente os pontos de vista de Gelwick e de Scott. No entanto, Gelwick e outros diriam, em última instância, que a interpretação de Prosch sobre a visão de Polanyi sobre assuntos como a realidade de Deus minam esta área da inquirição. Prosch não pensava que esse fosse o caso. Estava convencido daquilo que ele insistia ser o modo de pensar de Polanyi acerca da religião. A interpretação de Prosch é tratada a seguir, com base num dos capítulos do livro de Prosch. Mas Gelwick e outros argumentam que tornar a “existência” de realidades compreensivas como Deus dependente do sistema articulado de uma comunidade ou grupo religioso é um passo para além de Polanyi e não está de acordo com o tratamento anterior de Polanyi sobre o âmbito da inquirição humana, em Personal Knowledge e em The Study of Man. Este debate académico, de fins dos anos setenta e depois nos anos oitenta, levou eventualmente às discussões sobre o “realismo” em Polanyi, que deu origem a um conjunto de ensaios num número especial de Tradition & Discovery, 26, no. 3 (1999- 2000). (12) Para mais detalhes acerca da história do livro, com base na correspondencia, ver Mullins and Moleski, “Harry Prosch: A Memorial Re-Appraisal of the Meaning Controversy,” citado anteriormente. (13) Prosch, Michael Polanyi: A Critical Exposition, p. 167 (14) Ibid., p. 169 (15) Ibid. (16) Ibid., p. 171 (17) Ibid., p. 172 (18) Ibid., p. 173 (19) Ibid. (20) Ibid., p. 175 (21) Ibid.

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ESSES “OBJETOS” PERDIDOS (*) Harry Prosch

1. Não penso que Polanyi não atribuísse realidade aos “objetos” das “artes, religião e humanidades”. E porque não incluir também os “objetos” da matemática nesta lista, pois Polanyi também os incluiu com os das artes e da religião (como realidades não empíricas) no seu Personal Knowledge? No entanto, preciso de admitir que temos dificuldade em dizer precisamente o que é que o termo “objetos” significa neste quadro articulado de pensamento, que Polanyi incluiu entre os muitos que ele descobriu que habitam a nossa noosfera. Mas seja o que for que se localize nessas áreas (por exemplo, o teorema de Pitágoras ou Deus) eu penso que Polanyi certamente que teria reivindicado que são reais, de acordo, é claro, com aquilo que ele expressamente disse que significava por “realidade”. 2. Não penso que Polanyi tenha desenvolvido a sua nova epistemologia primária para tratar do problema da indução. É verdade que mostrou que pode lidar com este problema de uma forma mais hábil do que os outros foram capazes - tal como deveria ser, se é uma epistemologia adequada. No entanto devo também adicionar, relacionado com isto, que a sua inferência tácita era por ele compreendida como um sendo lógica, não meramente psicológica. Escreveu especificamente sobre a “lógica da inferência tácita”, e eu ouvi-o uma vez rejeitar um cumprimento de um admirador do seu pensamento, um psicólogo, segundo o qual o seu trabalho sobre a dimensão tácita era uma forma muito boa para mostrar as componentes psicológicas do nosso conhecimento. Polanyi negou explicitamente isto, nessa ocasião, insistindo que ele não explicava a nossa aquisição do conhecimento pela via psicológica, mas logicamente. 3. Não penso que Polanyi pensasse que o seu conhecimento pessoal estivesse si-

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tuado a meio caminho entre a subjetividade e a objetividade. Dizer que fecha o hiato entre as duas é simplesmente dizer que inclui ambas em si e que lhes dá um um significado mais adequado, não que seja uma coisa nova separada e “situada” entre eles. O seu pensamento é dialético, não em série [serialistic]. Sem dúvida, penso que Polanyi defendeu que não existe um conhecimento puramente objetivo (ou seja, um conhecimento desligado de uma pessoa em particular, e portanto sem qualquer dimensão tácita). Mas isto não quer dizer que eu pense que ele defendesse que não existe uma coisa como conhecimento objetivo. O que ele entende ser conhecimento objetivo é o conhecimento que obtemos com uma intenção universal - e assim precisa de incluir os nossos melhores esforços em ética, arte, religião e matemáticas. 4. Logo, eu não equaciono simplesmente conhecimento explicito com objetividade. Polanyi pensava que estava a lutar com os que pensavam desse modo. Polanyi pensava que era um equívoco pensar que o conhecimento objetivo tivesse que ser um conhecimento puramente explícito, ou seja, um conhecimento não baseado tacitamente em indícios - o que é um conhecimento impossível. Logo ele rejeitava a noção que o conhecimento objetivo tivesse que ser aquele que existe “extra-pessoalmente”. Aquilo por que nos esforçamos por fazer o nosso conhecimento pessoal adequado na evidência empírica (e portanto nas nossas ciências empíricas) existe extra-pessoalmente, ou seja, tem uma existência própria fora do nosso pensamente sobre isso. Mas o nosso conhecimento disso nunca pode existir extra-pessoalmente, já que Polanyi firmemente manteve que deve incluir o conhecimento tácito em que apenas podemos viver (habitar), não conhecer explicitamente. Defendeu que o nosso conhecimento pode estar errado num determinado ponto, ou seja, pode não ser adequado ao ser da realidade externa que procura conhecer. A verificação empírica é por isso necessária para todo o nosso conhecimento em ciência, embora o que conte para a verificação seja apenas um juízo pessoal - com intenção universal. 5. Não penso que Polanyi tenha feito as “realidades das humanidades” contingentes de algo mais como, por exemplo, uma mente humana. Mas se ele supusesse que os “objectos” da arte, religião, ética e matemáticas existem independentemente de nós, mesmo ainda antes de as descobrirmos, da mesma maneira que as realidades empíricas, também teria de supor que eram algumas coisas empíricas entre as coisas empíricas, e portanto todas os quadros do pensamento teriam que colapsar nos das ciências empíricas. A sua oposição a esse reducionismo para todos

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os quadros articulados do pensamento é bem conhecida. Seria necessária uma espécie de realidade diferente da empírica para que não se atribuísse a esses objetos uma existência prévia à sua descoberta por nós. É óbvio que era intelectualmente perspicaz para ver isso, quando escreveu Personal Knowledge. Tudo isto leva-me a pensar que todos ficariam mais satisfeitos com os meus pontos de vista sobre o pensamento de Polanyi se eu dissesse que algo falta no pensamento de Polanyi que possa eventualmente ser encontrado na filosofia de Platão - ou talvez de Hegel. Michael Polanyi admitiu uma vez que era “uma espécie” de platonista; mas que rejeitava as Ideias platónicas. No entanto, penso que, na realidade, ele precisa dessas Ideias - ou das Begriff [conceito, noção] de Hegel - como “objetos” capazes de servir como pólos de controlo para o nosso pensamento, em particular para aqueles sobre os quais as “humanidades” se esforçam por ser adequados, tal como as realidades empíricas são as aquelas pelas quais as ciências se esforçam por sere adequadas. Talvez devesse ter incluído um reconhecimento dessa necessidade nas minhas críticas aos seus pontos de vista. Certo ou errado, eu tentei descobrir uma forma de compreender todas as suas afirmações, se possível sem adições ou subtrações. Mas confesso ter sempre tido dificuldade em dar sentido à sua noção de “progresso”, que ele diz ter ocorrido historicamente na ética, lei, arte, religião e matemática, se não existisse qualquer coisa (nem que fosse uma coisa nunca vista,m como as Ideias de Platão) pela qual se avaliasse se as mudanças que aí tiveram lugar foram ou não melhoramentos. Pareceu-me, talvez a a partir de alguns comentários seus mais ou menos crípticos, que ele poderá ter pensado que, bem lá no fundo destas atividades deverá existir uma espécie de “núcleo” que, por assim dizer, as guiava nas mentes dos seus inquisidores mais sérios e responsáveis (ou participantes ou servidores criativos) e que conduzia esses devotos para criações cada vez maiores e mais ricas, que lhes pareciam ser principalmente “descobertas”, tal como em Platão nós descobrimos cada vez mais o significado da Ideia através do nosso diálogo contínuo acerca dela. Seja como for, parece bastante claro que ele pensava que estes “núcleos” não empíricos (se é que ele pensou neles como “núcleos”) mostravam cada vez mais de si próprios apenas em desenvolvimentos futuros de si mesmo, estabelecidos na história por aqueles que são seus participantes em (ou servos de) (talvez por isso também pudesse ser chamado um hegeliano - sem a Begriff de Hegel). Logo ele evitava providenciar-lhes um “lugar” onde estar, anteriormente ao seus desenvolvimentos concretos.

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Deixei assim o problema em aberto, tal como me parecia que ele o tinha deixado. Polanyi fez notar, por diversas vezes, que ele tinha aprendido algumas coisas com Heidegger, embora, tanto quanto eu saiba, nunca tenha dito quais eram essas coisas. Estaria preparado para aceitar como os verdadeiros “objetos” das humanidades (e das matemáticas) tudo quanto se estabelece existencialmente por si próprio no tempo (ou seja, tudo o que for um ser revelado) tornando-se mais ascendente e poderoso nas mentes dos membros destas várias comunidades de “especialistas”? De algum modo, eu duvidava que ele estivesse completamente preparado para o fazer, pois não o tinha feito na sua própria ciência, a química. Tenho medo, quando se chega aos “objetos” da religião, que alguém dentro de um quadro concetual religioso me acuse de estar engtre aqueles que “me levaram o meu Deus e não sei onde O deixaram”. Na realidade, fui acusado disso. Mas a verdade é que eu não tenho a certeza de saber onde é que Polanyi O colocou - se é que se pode dizer que O tenha colocado em sítio algum. Por isso não o tentei dizer. Deixei isso como ele deixou, tanto quanto eu possa dizer que ele tenha deixado. Mas isto seguramente não significa que eu pense que Polanyi pensasse que Deus não seja real. É verdade que em Personal Knowledge disse que Deus existe “no sentido em que é adorado e obedecido, mas não de outra forma; não como um facto - não mais do que a verdade, a beleza e a justiça existem como factos. E estes, tal como Deus, são coisas que só podemos apreciar quando as servimos” (279). O que é que ele queria dizer com isto? Pela maneira como lidou com estes tipos de “objetos” ao longo da sua obra, parece-me que não poderia querer dizer que fossem apenas projeções das nossas necessidades psicológicas e subjetivas, com as suas raízes apenas nas nossas mentes. Mas as palavras também não podiam, por si mesmas, significar que Deus é uma realidade empírica - um “facto”. Para além disso, se ele queria realmente significar que ele é um facto (apesar das palavras claras que usou) então estaria a transformar Deus numa mera coisa entre as coisas, e teria que compreender que era um idólatra. O que resta, parece-me, é que a autêntica posição de Polanyi sobre a realidade de Deus é um item do conhecimento pessoal (com intenção universal e portanto com objetividade) estabelecida pela nossa imaginação criativa no quadro religioso de pensamento - ou seja, a partir da riqueza de indícios subsidiários dados pela história, mitos, culto, doutrina, ritos, etc. da nossa religião, em que Ele existe “para ser adorado e obedecido”. Deus não se estabelece nos quadros conceptuais da ciência, arte, ética ou matemáticas. Cada um tem o seu próprio “núcleo”, ou trajetória do seu significado. E nenhum dos quadros do pensamento nos dá um mero conhecimento de segunda qualidade. Nem as suas realidade são de segunda qua-

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lidade. A realidade de Deus, tal como fundamentada unicamente na religião, apenas pode ser desvalorizada como sendo de segunda qualidade por aqueles cuja atitude mental os faz olhar para as realidades empíricas como as únicas “reais”, as de verdadeira primeira qualidade. Nem Polanyi nem eu (nem Plato), proponho eu, pensaram alguma vez em tal coisa. Se pensássemos que podem existir tipos de realidades de uma qualidade inferior, tenho a certeza que os três pensaríamos que essa “honra” deveria pertencer às realidades do tipo empírico. Convido todos os que aceitam esta porta aberta que Polanyi nos mostrou girar em todas as direções em que o nosso pensamento com intenção universal possa levar. Platão sugeriu que é melhor chamar Ideias a todas as realidades eternas, entre as quais se debem sem dúvida incluir as realidades não empíricas da ética, religião, arte e matemática, que existem pós si próprias e que se assemelham muito às ideias que temos na nossa cabeça, mas que não são simplesmente isso. Se estas Ideias fossem apenas as ideias que temos nas nossas próprias mentes, então não poderiam ser usadas como pedras de toque da verdade ou da adequação das ideias que existem na nossa mente (veja-se o seu Parmenides e a sua Sétima Epístola). Propôs que devem ter uma existência extra-pessoal de um tipo vital e real - tal como Hegel também nos propôs para a sua Begriff - embora até mesmo para esses filósofos estas “existências”, estas realidades, não existissem como coisas ao lado das outras coisas. Como universais, só têm uma existência concreta tal como dada pela sua suposta incorporação (ou “imitações”) em coisas e ações concretas no nosso mundo. É óbvio que Hegel pensava assim. Defendeu especificamente que apenas o concreto universal existia, não o abstrato universal (apesar de ser real), e que o concreto universal existente ficava sempre aquém daquilo que era “na” Begriff universal. Esta posição nem sempre é reconhecida como sendo também verdade para Platão. No entanto, Platão rejeitou explicitamente, no seu Sofista, a noção de que as Ideias ou Formas apenas existissem numa ridícula inatividade congelada, excluídas da vida e do espírito. A necessária coesão com o mundo que vai ser e o espírito também se exprime miticamente no seu Timeu. Assim - se eu suponho que Polanyi não atribui uma existência separada, do tipo coisa, a estes “objectos”, como simples coisas para além das outras coisas no nosso mundo empírico, no nosso cosmos, penso que estará em boa companhia. Também não penso que tenha “mudado as suas ideias” acerca destes assuntos durante a parte final da sua vida. No meu livro mostrei com todo o cuidado que esse ponto de vista já estava no seu Personal Knowledge. Portanto, ao esposar pontos de vista dialéticos semelhantes aos de Platão e de

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Hegel, para procurar dar sentido a todas as afirmações de Polanyi, penso ter mostrado claramente como as minhas ideias podem estar longe de tudo o que se possa chamar “modernismo”. Nenhum modernista me reivindicaria, tenho a certeza disso.

(*) Traduzido de Prosch, H., “Those missing “objects” “, Tradition and Discovery: The Polanyi Society Periodical, vol. 17, nº 1 e 2 (1991-1992), 21. Feitas pequenas adaptações para tornar o texto mais independente do contexto de réplica a um ensaio anterior, que foi na altura o argumento para Prosch fazer esta réplica sobre a discussão em geral.

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Publicação original: Polanyi, M., “Meaning”, Editora, ano (1ª ed.), ano (2ª ed.)



Para Charner Perry, que nos reuniu

(*) Charner Marquis Perry (1902-1985) foi professor emĂŠrito de filosofia na Universidade de Chicago, onde dirigiu o departamento de filosofia de 1939 a 1949, tendo depois sido seu presidente atĂŠ 1960. Foi editor do Journal of Ethics durante 35 anos. [nota do tradutor]



INDICE xxx PREFÁCIO xx AGRADECIMENTOS xx 1 O ECLIPSE DO PENSAMENTO x 2 CONHECIMENTO PESSOAL xx 3 RECONSTRUÇÃO xx 4 DA PERCEPÇÃO À METÁFORA xx 5 OBRAS DE ARTE xx 6 VALIDADE DA ARTE xx 7 ARTE VISIONÁRIA xxx 8 A ESTRUTURA DO MITO


xxx 9 VERDADE DOS MITOS Xxx 10 ACEITAÇÃO DA RELIGIÃO xxx 11 ORDEM xxx 12 AUTORIDADE MORAL xxx 13 A SOCIEDADE LIVRE xxx NOTAS xxx NOTA BIBLIOGRÁFICA xxx


O ECLIPSE DO PENSAMENTO

PREFÁCIO Na primavera de 1969 Michael Polanyi apresentou uma série de conferências na Universidade do Texas e na Universidade de Chicago, intituladas “Significado: um projeto, por Michael Polanyi”. Eu tinha estado com ele, em Oxford, num período sabático em 1968-69, quando ele estava a preparar essas conferências, e li-as antes de serem apresentadas. Fiquei impressionado, não só pela sequência do seu desenvolvimento, mas também porque abriam novas visões sobre o pensamento de Polanyi. No ano seguinte, 1970, Polanyi apresentou outra série de conferências na Universidade de Chicago. Tive a feliz oportunidade de também estar aí presente, tendo partilhado com ele uma Willett Visiting Professorship no Committee on Social Thought. Fez ainda uma terceira serie de conferências em 1971, na Universidade do Texas. Algumas das lições dessas três séries de conferências foram publicadas como artigos, mas muitas delas, que abriam novos caminhos no pensamento de Polanyi, nunca foram publicadas. Essas conferências, mais do que outras anteriores, tratam da aplicação do seu pensamento aos tipos de significados conseguidos em metáforas, poesia, arte, rituais, mitos e religião. Muitas das lições que tratam desses temas vieram das séries apresentadas no Texas e em Chicago, em 1969. Na primavera de 1972, o Professor Polanyi perguntou-me se eu o poderia ajudar a preparar essas lições para publicação. A sua idade já então era tal que ele sentia que precisava de ajuda para as publicar. O essencial do livro, disse ele, devia basear-se nas lições que tratavam dos tipos de signficados acima referidos. Estas lições deviam ser introduzidas, pensava ele, adaptando alguns dos seus artigos entretanto publicados, que mostrariam ao leitor como é que a mente moderna tinha destruído o significado, e como o seu trabalho pessoal para reformular a epistemologia e a filosofia da ciência tinha preparado o caminho para uma possível restauração do significado através do desenvolvimento da noção de conhecimento pessoal, tal como estruturado pela distinção entre apreensão subsidiária e focal. A conclusão do livro deveria pois mostrar como os significados estabelecidos pela ciência e os significados obtidos pelas humanidades (discutidos no corpo principal do livro) se podiam harmonizar, sob o ponto de vista existencial, através do reconhecimento de uma ordem significante no mundo. Esta síntese, em

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conjunto com o reconhecimento adicional da vida da autoridade mútua, deveria então mostrar o caminho da restauração do sentido ou significado na vida do homem contemporâneo. A estrutura geral do livro, desde a destruição do significado até à sua restauração, baseia-se na estrutura das suas lições na série de 1969, no Texas e em Chicago. Fiquei excitado e honrado pela oportunidade de o ajudar a apresentar estas ideias ao mundo, assim como satisfeito com o convite. Uma licença do Skidmore College e uma Senior Fellowship da National Endowment for the Humanities permitiu-me aceitar o convite e começar a trabalhar com ele em Inglaterra, em Fevereiro de 1973. Completei um esboço do livro em Outubro de 1973. O Professor Polanyi estudou-o até Agosto de 1974, quando regressei a Inglaterra para se tomar uma decisão final acerca da sua publicação, e sob que forma. Logo, substantivamente, esta é uma obra de Michael Polanyi. Estas são as suas ideias, expressas na sua maior parte na sua própria linguagem. No trabalho que fiz sobre as suas lições não alterei conscientemente qualquer das ideias por si expressas nos seus numerosos trabalhos, publicados ou por publicar. O leitor poderá encontrar, na nota bibliográfica no fim do livro, uma listagem detalhada de quais os trabalhos de Polanyi que foram adaptados em cada capítulo. Sou o principal responsável pela divisão desta obra em capítulos; pela sua continuidade através da escrita de vários sumários e secções suplementares e de ligação; e pelo trabalho editorial necessário - a linguagem final, as fraseologia e as notas. Provavelmente devo aqui explicar que sempre que, no texto, uso o pronome “eu”, é sempre Michael Polanyi que fala, seja pelo relato de uma anedota pessoal, de um sentimento, ou de um julgamento que, pela natureza do caso, apenas pode ser seu. Gostaria de expressar a minha profunda gratidão a todos que me ajudaram de alguma forma a completar este trabalho com Michael Polanyi. Acima de tudo devo agradecer ao próprio Michael Polanyi pela oportunidade que me ofereceu para trabalhar em associação muito próxima com ele, um homem cuja profundidade e extensão da mente nos deixa um sentimento de respeito que se aproxima da reverência e cujo trabalho está certamente destinado a deixar uma marca indelével sobre a direção que o pensamento irá tomar, à medida que nos aproximamos do século vinte e um. Harry Prosch

10 Outubro 1974 Saratoga Springs, Nova Iorque.

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AGRADECIMENTOS Os capítulos 1 e 3 foram em parte adaptados de Michael Polanyi, The Logic of Liberty (1951) e de Personal Knowledge (1958), ambos publicados pela The University of Chicago Press. Os capítulos 2 e 3 foram em parte adaptados dos artigos de Michael Polanyi, “On the Modern Mind”, Encounter 24 (Maio 1965): 12-20, e “Logic and Psychology” American Psychologist 23 (Janeiro 1968): 27-43. O capítulo 2 foi também em parte adaptado de Michael Polanyi, “The Study of Man,” Quest (Bombay), No. 29 (Abril-Junho 1961) 26-35. O capítulo 12 foi adaptado das páginas 63-79 de Michael Polanyi, The Tacit Dimension (Garden City: Doubleday and Company, Inc., 1966). Os restantes capítulos 4-11, o corpo central deste texto, baseiam-se numa série de lições que Michael Polanyi apresentou nas Universidades do Texas e de Chicago em 1969, 1970 e 1971. Agradecemos a Encounter, Quest, The American Psychologist, The University of Chicago Press, e Doubleday and Company, Inc., por permitirem a adaptação de alguns dos materiais originalmente publicados por eles. Agradecemos também ao Professor Richard Gelwick, pelas numerosas discussões para que encontrou tempo com o Professor Michael Polanyi, relevantes para o tema deste livro, durante a sua estadia em Inglaterra. E a John Brennan pelo seu criticismo do livro. Devo ainda agradecer a Doris Prosch pelas horas atrozes que passou a rever as provas do texto manuscrito e por apontar muitos dos pontos em que a nossa escolha inicial da linguagem teria necessitado da sabedoria de Salomão para esclarecer o seu significado; e agradecer também a Magda Polanyi por ter levantado muitas das questões práticas acerca da publicação, de que meros filósofos nunca se lembrariam e, acima de tudo, por ter mantido o projeto em movimento. Queremos ainda agradecer ao National Endowment for the Humanities pela bolsa Senior Fellowship ao Professor Prosch para lhe permitir trabalhar neste livro em conjunto com o Professor Polanyi, na primavera de 1973. Os nossos agradecimentos também ao presidente Joseph C. Palamountain, Jr., e ao reitor Edwwin M. Moseley do Skidmore Colledge por terem conseguido uma licença para o Professor Prosch se ausentar, assim como a eles e ao Skidmore College Faculty Research

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Committee pela ajuda com as despesas da visita do Professor Prosch a Inglaterra para concluir o trabalho com Michael Polanyi, no verão de 1974, assim como o apoio nas despesas envolvidas na preparação deste manuscrito para publicação.

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um certo sentido, pode-se dizer que este livro é sobre a liberdade intelectual. Mesmo assim o seu título, Significar, não será enganador pois, como veremos, não se pode propriamente divorciar a conquista do significado e a liberdade intelectual. Talvez se pudesse continuar sem ter que dizer que a liberdade intelectual está hoje em dia ameaçada, a partir de várias direções. É claro que as ideologias da esquerda e da direita não têm qualquer uso para isso. Em cada uma dessas ideologias há sempre alguém, algum grupo, um partido (por outras palavras, uma elite) que é suposto conhecer melhor do que ninguém o que é melhor para nós; e assume-se nestas ideologias que a função do resto de nós - sejam doutores, advogados ou chefes índios - é suportar essas “sábias” decisões. Os exemplo do fascismo e do comunismo marxista, especialmente como foi desenvolvido por Estaline, continua presente de forma muito dolorosa na consciência do homem do século vinte; para além disso, os trabalhos de escritores como Milovan Djilas mostram que mesmo os regimes comunistas mais anti estalinistas e liberais também se envolvem na repressão da liberdade intelectual. Nós, no chamado mundo ocidental, temos feito oposição a essas tiranias totalitárias. Mas nós próprios também temos ameaçado a liberdade intelectual. Certamente que não nos afogamos em sangue, como Hitler e Estaline. As nossas ameaças foram muito mais tortuosas. Abafamo-las com algodão e asfixiamo-las debaixo de vários cobertores. Ocultamos a nossa própria afirmação do valor e da liberdade do nosso intelecto sob princípios explicativos avulsos, como o princípio do prazer e da dor, a noção de restabelecimento da atividade frustada, o princípio do condicionamento - e até mesmo o próprio conceito de livre escolha! Por estas vias sinuosas denegrimos o pensamento e todas as suas obras, rebaixando-as para posições subordinadas, em que o pensamento é concebido como só funcionando corretamente quando serve como um meio para a satisfação de necessidades ou de vontades consideradas mais básicas, ou seja, mais materiais, mais biológicas, mais instintivas, mais reconfortantes. O utilitarismo e o pragmatismo têm ambos, de maneiras diferentes, declarado que o pensamento apenas possui uma função legítima, ou significante, na sua relação com o bem estar social - uma prosperidade largamente concebida em termos de satisfação física e material. Os behavioristas, culminando em B. F. Skinner, reduziram o pensamento a várias formas de comportamento condicionado e dirigiram o nosso olhar “para além da liberdade e da dignidade” - para além da

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vida de auto controlo e de auto direção - para a aprendizagem manipulada de um conjunto de truques que era suposto serem, em ultima análise, bom que nós os aprendêssemos. Esta aprendizagem precisaria que fossemos colocados (por quem?) numa gaiola de Skinner mais bem organizada do que a formada pela nossa sociedade presente1. O velho Protágoras, se confiarmos na sua interpretação por Platão, ter-se-ia sentido em casa com estas ideias. A única escola de filosofia moderna que parece mostrar respeito pela liberdade intelectual é o existencialismo, mas como consegue asfixiar a parte intelectual da liberdade intelectual debaixo de uma noção mais genérica de liberdade por si, tende a enfraquecer, no fim, o nosso respeito pela liberdade intelectual ao reduzi -la, na prática, para o nível de uma aposta no lançamento de um dado. Pois estes filósofos afirmam que não existem fundamentos para as nossas escolhas excepto os fundamentos que damos a nós próprios, ou seja, excepto aqueles que nós escolhemos. Como disse Sartre, o valor resulta simplesmente das nossas escolhas. O que escolhemos, valorizamos simplesmente porque o escolhemos (e aparentemente continuamos impunes para, a qualquer momento, as desvalorizar deixando simplesmente de as escolher). Por outras palavras, não escolhemos (na sua visão) porque vemos o valor de alguma coisa. Portanto, para Sartre, cada escolha deve ser, ao fim e ao cabo, não racional, porque diz que toda a escolha racional baseiase, em última instância, numa escolha “pré racional”. Esta posição diz-nos portanto que não podem existir razões para as nossas escolhas básicas. O pensamento acaba por só ter valor utilitário - e mesmo assim só quando acontece que tem esse valor. Que esta visão possa facilmente vacilar no seu respeito pela liberdade intelectual, isso pode-se ver nos exemplos que tanto Sartre como Simone de Beauvoir nos deram com a sua aceitação esporádica das várias supressões comunistas de artistas e pensadores “burgueses”. Apesar de tudo (como Sartre e de Beauvoir dizem- às vezes) ninguém governa inocentemente. Todos os governos interferem com o exercício de alguns tipos de liberdade. Como estes filósofos recusam (de forma consistente) fazer qualquer distinção baseada na filosofia entre o valor dos diferentes tipos de liberdades - ou mesmo entre os usos diferentes dessas liberdades diferentes - parecem estar a fazer eco da antiga afirmação de Bentham: “Um alfinete é tão bom como a poesia”. Reprimir alguém não é melhor nem pior do que reprimir um outro. No entanto, veremos que os existencialistas estão mais próximos da verdade do que qualquer outra filosofia ocidental popular nos meios académicos, porque há um sentido em que é verdade que não podem ser dadas razões determinantes para cada escolha - na realidade, para qualquer escolha. Mas a forma como os exis1 B. F. Skinner, Beyond Freedom and Dignity (New York: Alfred A. Knopf, Inc., 1971).

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tencialistas conceberam este facto criou atitudes anti-intelectuais desnecessárias, com consequências desastrosas para essa mesma liberdade a que davam um valor tão fundamental ou que, nos seus próprios termos, “escolheram” de modo tão fundamental. Pode-se pensar que a nossa inquirição deve agora averiguar se estas erosões do respeito pela liberdade intelectual, nos nossos dias, são ou não justificáveis. Mas o simples facto de se levantar esta questão é já dar uma resposta pela negativa. Porque a tentativa de julgar, seja que assunto for, implica tentar pensar seriamente sobre o assunto, e esse pensamento não pode ser feito seriamente sem uma aceitação tácita do poder do pensamento para chegar a conclusões válidas. Logo, a nossa tentativa para descobrir se um direito à liberdade intelectual, ou seja, à liberdade para perseguir intelectualmente assuntos ou problemas, é ou não justificada, está já a assumir tacitamente que é justificada. Admitindo portanto que o eclipse do nosso respeito pela liberdade de pensamento não se pode justificar, pois implicaria liberdade de pensamento para o poder justificar, percebemos que nada pode ter destruído o respeito pela liberdade de pensamento senão o seu mau uso; pois só o pensamento livre pode pôr seriamente em questão a validade de qualquer coisa, incluindo o próprio pensamento. Vejamos pois se podemos descobrir como é que aconteceu esta autodestruição do pensamento. Com base num estudo cuidadoso da história do pensamento no nosso tempo é possível ver que a liberdade de pensamento se destruiu a si própria quando o pensamento perseguiu, até às ultimas consequências, uma concepção auto contraditória da sua própria liberdade. O pensamento moderno, no seu sentido mais lato, emergiu com a emancipação da mente humana relativamente à interpretação mitológica e mágica do universo. Sabemos quando é que isso aconteceu, onde e como. Devemos este ato de libertação aos filósofos ionianos, que floresceram no século sexto antes de Cristo, e a outros filósofos da Grécia, que continuaram o seu trabalho nos mil anos seguintes. Estes pensadores antigos tiveram uma grande liberdade para especular mas nunca levantaram, de forma decisiva, as questões da liberdade intelectual. O milénio da filosofia antiga conclui-se com Santo Agostinho. Seguiu-se uma longa dominação, pela teologia cristã e pela igreja romana, sobre todas as áreas do pensamento. O domínio da autoridade eclesiástica começou a enfraquecer durante o século doze, devido a um certo número de acontecimentos esporádicos. Depois, quando a renascença italiana floresceu, os principais artistas e pensadores do tempo começaram a negligenciar cada vez mais a religião. A própria igreja italiana parece ter-se vergado aos novos interesses seculares. Se a totalidade da Eu-

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ropa tivesse, nessa altura, sido como a italiana, o humanismo renascentista poderia ter estabelecido a liberdade de pensamento por toda a parte, por simples falta de oposição. A Europa poderia ter voltado - ou, se se preferir, poderia ter recaído - para um liberalismo semelhante ao da antiguidade pré cristã. Seja o que for que tivesse acontecido depois disso, os nossos desastres atuais não teriam ocorrido. No entanto, num certo número de países europeus - na Alemanha, Suíça, Espanha - deu-se uma viva renovação religiosa, acompanhada por um cisma da igreja cristã, que haveria de dominar as mentes das pessoas durante mais de duzentos anos. A igreja católica reafirmou vivamente a sua autoridade sobre toda a esfera intelectual. Os pensamentos dos homens alteraram-se, e as políticas foram influenciadas pelas lutas entre o protestantismo e o catolicismo, para as quais todas as questões contemporâneas contribuíram, pela sua aliança com um ou outro dos lados. No princípio do século XX as guerras entre católicos e protestantes já tinham acabado há muito, embora a formulação do pensamento liberal continuasse largamente determinada pela reação das gerações anteriores contra as antigas guerras religiosas. Para começar, o liberalismo foi motivado por uma repulsa pelo fanatismo religioso. Apelou à razão para cessar o conflito religioso. Este desejo por refrear a violência religiosa foi o principal motivo do liberalismo, quer nas zonas anglo americana como continental; embora, desde o princípio, a reação contra o fanatismo religioso tenha sido algo diferente nestas duas zonas, e esta diferença se tenha vindo a acentuar desde aí, o resultado foi que a liberdade se aguentou até aos nossos dias na área ocidental, mas sofreu um eclipse na Europa central e oriental. O liberalismo anglo americano foi formulado, em primeiro lugar, por Milton e por Locke. O seu argumento para a liberdade de pensamento era duplo. Na primeira parte (de que podemos citar a Areopagitica) pedia-se a liberdade relativamente à autoridade para que se pudesse descobrir a verdade. A principal inspiração para este movimento nasceu da luta emergente das ciências da natureza contra a autoridade de Aristóteles. O seu programa era deixar que toda a gente apresentasse as suas convicções e permitir que os outros ouvissem e formassem a sua própria opinião; as ideias que prevalecessem numa batalha de inteligências livres e abertas poderiam ser uma aproximação da verdade, tanto quanto esta fosse humanamente possível de atingir. Podemos chamar-lhe a fórmula antiautoritária de liberdade. A segunda parte do argumento pela liberdade está relacionado muito de perto com a parte anterior e baseia-se na dúvida filosófica. Embora as suas origens sejam remotas (até aos filósofos da antiguidade), este argumento foi primeiro formulado, como uma doutrina política, por Locke. Diz simplesmente que nunca poderemos estar tão certos da verdade em assuntos religiosos que se

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possa justificar a imposição da nossa vontade aos outros. Os dois argumentos pela liberdade do pensamento foram avançados e aceites em Inglaterra, numa altura em que as crenças religiosas estavam seguras e eram mesmo dominantes em toda a nação. A nova tolerância pretendia acima de tudo a reconciliação das diferentes comunidades ao serviço de Deus. Locke recusava a tolerância para com os ateístas, com o fundamento de que eram socialmente duvidosos. No continente a teoria dual do pensamento livre - o antiautoritarismo e a dúvida filosófica - ganharam ascendente um pouco mais tarde do que na Inglaterra e passaram logo para posições mais extremas. Esta posição foi efetivamente formulada, em primeiro lugar, no século dezoito, pela filosofia do iluminismo, e era acima de tudo um ataque à autoridade religiosa, particularmente à autoridade da igreja católica. Professava um ceticismo radical. Os livros de Voltaire e dos enciclopedistas franceses, que expunham a sua doutrina, foram avidamente lidos em França, enquanto que, no estrangeiro, as suas ideias se espalhavam na Alemanha e na Europa oriental. Frederico, o Grande, e Catarina da Rússia estavam entre os seus correspondentes e discípulos. O tipo de aristocrata vitoriano, representado pelo príncipe Bolkonski em Guerra e Paz, seria depois encontrado nas cortes e nas residências feudais de muitas partes da Europa continental, nos finais do século dezoito. A profundidade com que os filósofos influenciaram o pensamento político, no seu próprio país. havia de se revelar na revolução francesa. Por consequência, o ânimo do iluminismo francês, embora muita vezes furioso, foi sempre de uma convicção extrema. Os seus seguidores prometiam a resolução de todos os problemas sociais da humanidade. Uma das figuras centrais do movimento, o Barão de Holbach, declarou em 1770 que o homem é miserável simplesmente porque é ignorante. A mente humana está tão infetada com preconceitos que se pode pensar que está eternamente condenado a errar. É o erro, dizia ele, que evocou os medos religiosos que aterrorizaram o homem ou que fez com que se matassem uns aos outros por causa de quimeras. “Errar deve ser atribuído a esses ódios inveterados, a essas perseguições bárbaras, a esses massacres numerosos, a essas tragédias terríveis de que a terra tem sido teatro, com demasiada frequência, sob o pretexto de servir os interesses do céu”2. Esta explicação das misérias humanas, e do remédio prometido, continuaram com convicção entre as elites europeias, depois da revolução francesa. Continuou a ser um axioma, entre a gente progressiva do continente, que para chegar à luz e à liberdade seria preciso quebrar em primeiro lugar o poder do clero e eliminar a influência do dogma religioso. Travaram-se batalhas sobre batalhas nessa campanha. Talvez o combate mais feroz tenha sido o caso Dreyfus no final do século XIX, 2 Baron d’Holbach, The System of Nature, trad. B. D. Robinson {Boston: J. P. Mendum, 1853), pp. 153, ix-x.

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em que o clericalismo foi finalmente derrotado em França e ficou enfraquecido em toda a Europa. Foi por essa altura que W. E. H. Lecky escreveu: “Por toda a Europa o sacerdócio está agora associado a uma política conservadora, da reação, ou de obstrução. Por toda a Europa os órgãos que representam os interesses dogmáticos estão em oposição permanente às tendências progressivas à sua volta, e estão a afundar-se rapidamente no desprezo”3. Recordo-me bem deste sentimento de triunfo. Olhávamos para os tempos anteriores como um período de escuridão, e com Lucrécio gritávamos com horror: Tantum religio potuit suadere malorum - mas que demónios foram inspirados pela religião! Rejubilávamos com o conhecimento superior do nosso tempo e com as suas liberdades garantidas. As promessas de paz e de liberdade, dadas ao mundo pelo iluminismo francês, tinham na realidade sido maravilhosamente cumpridas no fim do século dezanove. Podia-se viajar por toda a Europa e América sem um passaporte e instalar-se onde se quisesse. Com a excepção da Rússia, podia-se em toda a Europa imprimir fosse o que fosse sem censura prévia e podia-se, com impunidade, fazer oposição cerrada a qualquer governo ou credo. Na Alemanha - muito criticada na altura por ser autoritária - publicavam-se livremente caricaturas satíricas do imperador. Mesmo na Rússia, cujo regime era o mais opressivo, o Capital de Marx apareceu traduzido, logo a seguir à sua primeira edição, e teve revisões favoráveis na imprensa. Em toda a Europa, não mais do que algumas centenas de pessoas foram forçadas ao exílio. Sob todo o planeta, todos os homens de origem europeia viviam numa livre comunicação pessoal e intelectual. Não será surpresa que, na mudança do século, a paz e a tolerância universal, estabelecidas pela vitória do iluminismo moderno, fossem esperadas com confiança por uma larga maioria das pessoas educadas do continente. Entrou-se pois no século XX como se fosse uma idade de promessas infinitas. Poucos se aperceberam de que estávamos a caminhar sob um campo de minas, embora as minas tivessem sido preparadas e cuidadosamente postas à luz do dia por pensadores bem conhecidos do nosso próprio tempo. Sabemos hoje como eram falsas essas expectativas. Todos aprendemos a encontrar o rastro do colapso da liberdade, durante o século vinte, nos escritos de certos filósofos, particularmente Marx, Nietzche, e os seus antecessores comuns, Fitche e Hegel. Mas ainda terá que ser escrita a história sobre como é que aclamamos como libertadoras as filosofias que iriam destruir a liberdade. Dissemos que consideramos o colapso da liberdade, na Europa central e oriental, como o resultado de uma contradição interna na doutrina da liberdade. Mas porque é que isso destruiu a liberdade, em grande parte da Europa continental, 3 W. E. H. Lecky, History of the Rise and Influence of the Spirit of Rationalism in Europe, 2 vols. (New York: Appleton, 1878), 1:128

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sem ter produzidos uns efeitos semelhantes nas zonas ocidental ou anglo americana da nossa civilização? Onde reside esta inconsistência? O argumento da dúvida, formulado por Locke a favor da tolerância, diz que devemos admitir todas as religiões, pois é impossível demonstrar qual delas é verdadeira. Isto implica que não devemos impor convicções que não sejam demonstráveis. Aplique-se esta doutrina aos princípios éticos. Logo, a menos que os princípios éticos possam ser demonstrados com toda a certeza, devemo-nos abster de os impor, e devemos tolerar a sua negação completa. Mas é claro que os princípios éticos não podem ser demonstrados, num sentido estrito: não se pode provar a obrigação de dizer a verdade, de apoiar a justiça e a compaixão. Assim, um sistema de mentira, ilegalidade e crueldade, deveria ser aceite como alternativa aos princípios éticos, e em termos de igualdade. Mas uma sociedade em que prevaleçam a propaganda sem escrúpulos, a violência e o terror, não oferece espaço para a tolerância. É aqui que a inconsistência de um liberalismo baseado na dúvida filosófica se torna evidente: a liberdade de pensamento é destruída pela extensão da dúvida ao campo dos ideais tradicionais, que incluem as bases da liberdade de pensamento. A consumação deste processo destrutivo foi evitado, na região anglo- americana, por uma relutância instintiva em levar as premissas filosóficas aceites até às suas ultimas consequências. Uma forma de o evitar foi pretender que os princípios éticos podiam na realidade ser demonstrados cientificamente. O próprio Locke iniciou esta linha de pensamento ao asseverar que o bem e o mal podem ser identificados com o prazer e a dor, e sugerindo que todos os ideais de bom comportamento são meras máximas da prudência. No entanto, o cálculo utilitário não pode, de facto, demonstrar o nosso compromisso com ideais que nos exijam sacrifícios sérios. A sinceridade de um homem ao professar os seus ideais deve ser medida antes pela falta de prudência que mostra, ao perseguir esses ideais. A confirmação utilitarista de altruísmo não é mais do que uma máscara pela qual os ideais tradicionais se tornam aceitáveis para uma idade filosoficamente cética. Camuflado como altruísmo a longo prazo, ou “interesse pessoal inteligente”, o ceticismo protege os ideais tradicionais da destruição. Poderia portanto parecer que a preservação da civilização ocidental até aos nossos dias, dentro da tradição anglo americana de liberdade, foi devida a uma limitação especulativa, correspondente a uma verdadeira suspensão da lógica dentro da filosofia empirista britânica. Bastava prestar vassalagem à supremacia do princípio do prazer. Os padrões éticos não foram na realidade substituídos por novos propósitos; ainda menos havia uma inclinação para abandonar, na prática, esses padrões. As massas e os seus líderes na vida pública podiam na realidade

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ignorar a filosofia aceite, quer ao decidir sobre a sua conduta pessoal como na construção das instituições politicas. Todo o grande avanço das aspirações morais a que a idade da razão abriu as portas - a revolução inglesa, a revolução americana, a revolução francesa, a primeira libertação de escravos no império britânico, a fundação da Liga das Nações, a posição britânica contra Hitler, a oferta em “Lend-Lease”, a U.N.R.R.A. [United Nations Relief and Rehabilitation Administration] e a ajuda do plano Marshall, o envio de milhões de embalagens com alimentos por americanos para beneficiários desconhecidos na Europa - em todas estas ações decisivas, a opinião pública foi seduzida por forças morais, pela caridade, por um desejo de justiça e por uma repulsa dos males sociais, apesar destas forças morais não terem uma verdadeira justificação na filosofia prevalecente na altura. O utilitarismo e outras formulações materialistas semelhantes dos ideais tradicionais, permaneceram meramente verbais. A sua rejeição filosófica dos padrões morais universais apenas levou a uma subsitituição que era uma farsa; ou, falando tecnicamente, conduziu a uma “pseudo substituição” dos propósitos utilitários por princípios morais. As limitações especulativas e práticas que salvaram o liberalismo da auto-destruição na área anglo americana foram devidos, em primeiro lugar, ao carácter distintamente religioso desse liberalismo. Na medida em que a dúvida filosófica foi aplicada apenas para garantir direitos iguais a todas as religiões, e foi proibida de pedir iguais direitos para a irreligião, a mesma limitação deveria aplicar-se automaticamente às convicções morais. Um ceticismo mantido em rédea curta, para poder preservar as crenças religiosas, dificilmente seria uma ameaça para os princípios morais fundamentais. Uma segunda limitação do ceticismo, relacionada muito de perto com a primeira, reside no estabelecimento de instituições democráticas numa altura em que as convicções religiosas ainda eram fortes. Estas instituições (por exemplo, a constituição americana) deu origem aos princípios morais subjacentes a uma sociedade livre. A tradição de democracia incorporada nestas instituições mostrou-se suficientemente forte para, na prática, não deixar cair os princípios morais de uma sociedade livre contra qualquer crítica que questionasse a sua validade. No entanto estas duas limitações protetoras estiveram ausentes nas partes da Europa em que o liberalismo se baseou no iluminismo francês. Este movimento, sendo anti religioso, não impôs qualquer limitação às especulações céticas, nem os padrões de moralidade foram incorporados nas instituições democráticas. Quando uma sociedade feudal, dominada por uma autoridade religiosa, foi atacada por um ceticismo radical, emergiu um liberalismo que não foi protegido da destruição pelo ceticismo filosófico que esteve na sua origem, nem por uma tradição religiosa, nem por uma tradição cívica.

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Em traços breves, foi o que aconteceu. Desde meados do século dezoito, o pensamento continental enfrentou seriamente o facto dos padrões universais da razão não poderem ser filosoficamente justificados à luz da atitude cética que o movimento racionalista tinha iniciado. O grande tumulto filosófico, que começou na segunda metade do século dezoito, no continente europeu, e que finalmente levou aos desastres filosóficos dos nossos próprios dias, representa uma preocupação incessante com o colapso dos fundamentos filosóficos do racionalismo. Tendo os padrões universais do comportamento humano caído no descrédito filosófico, vários substitutos foram propostos em seu lugar. Um desses padrões substitutos foi derivado da contemplação da individualidade. O caso da unicidade do indivíduo é posto como se segue, nas palavras iniciais das Confissões de Rousseau: “Só eu sózinho... Não há ninguém que se pareça comigo... Veremos se a natureza estava correta ao partir o molde em que me conformou”. A individualidade desafiou aqui o mundo a julgá-la, se o puder fazer, por padrões universais. O génio criativo alegou ser o renovador de todos os valores, e portanto incomensurável. Alargado a nações inteiras, esta reivindicação deu a cada nação o seu conjunto específico de valores, que não podiam ser criticados à luz da razão universal. A única obrigação da nação era, tal como a de um indivíduo único, realizar os seus poderes. Seguindo a vocação do seu destino, uma nação não devia permitir que outra nação se atravessasse no seu destino. Se se aplicar esta afirmação da supremacia do único sobre as pessoas individuais - a que podemos chamar romantismo - acabamos por chegar a uma hostilidade geral para com a sociedade, tal como exemplificada pela atitude anti convencional e extra territorial da bohème continental. Aplicado às nações, resulta, pelo contrário, na concepção de um destino nacional único, que reclama a submissão de todos os seus cidadãos. O líder nacional combina as vantagens de ambas. Pode ficar em transe na admiração da sua singularidade, enquanto que identifica as suas ambições pessoais com o destino da nação aos seus pés. O romantismo foi um movimento literário e uma mudança de sentimentos, mais do que uma filosofia. O seu correspondente no pensamento sistemático foi construído pela dialética hegeliana. Hegel tomou conta da razão universal, emagrecida até ao esqueleto pelo tratamento às mãos de Kant, e vestiu-a com a carne ainda quente da história. Declarada incompetente para julgar a ação histórica, à razão foi-lhe dada a posição confortável de ser imanente na história. Uma solução ideal: “caras perdes tu, coroa ganho eu”. Identificada com batalhões cada vez mais fortes, a razão tornou-se invencível - mas infelizmente também redundante. O passo seguinte foi, muita naturalmente, o completo desmantelamento da razão. Marx e Engels decidiram virar do avesso a dialética hegeliana. A cauda não devia continuar a fingir que abanava o cão (l). Os batalhões mais fortes deviam ser

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reconhecidos, por direito próprio, como os construtores da história, com a razão como mero defensor para justificar as suas conquistas. A história deste último desenvolvimento é bem conhecida. Marx reinterpretou a história como o resultado de conflitos de classes, consequência da necessidade de ajustar “as relações de produção” às “forças da produção”. Expresso em linguagem corrente, isto quer dizer que, à medida que novo equipamento técnico fica disponível, de tempos a tempos, é necessário mudar a ordem da propriedade a favor de uma nova classe; esta mudança é invariavelmente conseguida derrubando a classe até aí favorecida. O socialismo, foi dito, acaba com essas violentas mudanças ao estabelecer uma sociedade sem classes. A partir da sua primeira formulação no Manifesto Comunista, esta doutrina coloca as “verdades eternas, tais como a liberdade, a justiça, etc.” - que são mencionadas nestes termos - numa posição muito dúbia. Como se supõe sempre que essas ideias são apenas usadas para acalmar as consciências dos governantes e para confundir as suspeições dos explorados, não lhes fica um lugar claro numa sociedade sem classes. Hoje em dia tornou-se bem claro que, na realidade, não existe mesmo nada no domínio das ideias, da lei e da religião à poesia e à ciência, das regras do futebol à composição da música, que não seja imediatamente interpretado pelos marxistas como um mero produto dos interesses de classe. Entretanto o legado do nacionalismo romântico, que se desenvolveu por linhas paralelas, também foi gradualmente transposto para os termos materialistas. Wagner e Wallalla sem dúvida que afetaram a imagem nazi; Mussolini glorificava-se com a recordação da Roma imperial. Mas a ideia realmente eficaz de Hitler e de Mussolini foi classificar as nações em os que têm e os que não têm, num modelo marxista de guerra de classes. Nesta visão, as ações das nações não estavam determinadas, ou capazes de serem julgadas, pelo certo ou pelo errado: as que têm, pregavam a paz e o carácter sagrado da lei internacional, pois a lei sancionava as suas ações, mas este código era inaceitável para as nações vigorosas que não têm. Estas últimas deviam erguer-se e derrubar as democracias capitalistas, que se tinham tornado joguetes da sua própria ideologia pacifista, originalmente destinada a confundir os oprimidos. Assim continuava o texto da política externa fascista ou nacional socialista, exatamente nas mesmas linhas de um marxismo aplicado à guerra de classes entre nações. Na realidade, já nos inícios do século XX, influentes escritores alemães tinham reformulado completamente o nacionalismo de Fitche e Hegel, segundo as linhas de uma interpretação da história como poder político. O romantismo foi brutalizado, e brutalmente romantizado, até que o produto ficou tão duro como o próprio materialismo histórico de Marx. Temos aqui o resultado final do ciclo do pensamento continental. A autodestruição do liberalismo, que se manteve num estado de lógica suspensa no campo

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anglo americano da civilização ocidental, foi aqui levado até à sua conclusão final. O processo de substituição dos ideais morais por objetivos filosoficamente menos vulneráveis foi feito com toda a seriedade. Não é uma mera pseudo substituição mas sim uma substituição real de apetites humanos e paixões humanas pela razão e pelos ideais do homem. O que nos leva diretamente para a cena das revoluções do século XX. Podemos agora ver como as filosofias que guiaram estas revoluções - e que destruíram a liberdade onde ela antes prevalecia - foram originalmente justificadas pelo antiautoritarismo e por fórmulas céticas da liberdade. Eram, na realidade, antiautoritárias e céticas em extremo. Até libertaram o homem das suas obrigações perante a justiça e a verdade, reduzindo a razão a uma caricatura de si própria: a uma mera racionalização de posições, que na realidade são pré determinadas pelo desejo e mantidas - ou garantidas - apenas pela força. Essa foi a medida final desta libertação: o homem devia ser reconhecido, daí para a frente, como construtor e senhor, não mais como servo, daquilo que antes tinham sido os seus ideais. Esta libertação, no entanto, destruiu os próprios fundamentos da liberdade. Se o pensamento e a razão não são nada por si mesmos, não faz sentido pedir que o pensamento seja livre. As esperanças sem limites, que o iluminismo do século XVIII associou ao derrube da autoridade e à procura da dúvida, eram esperanças associadas à libertação da razão. Os seus seguidores acreditaram firmemente - para usar o vocabulário majestático de Jefferson - em “verdades que são evidentes por si próprias”, que podem proteger “a vida, a liberdade e a procura da felicidade” sob governos “cujos poderes derivam do consentimento dos governados”. Basearam-se em verdades, que acreditaram estarem escritas no coração dos homens, para estabelecer a paz e a liberdade entre os homens, seja onde for. A suposição de padrões universais da razão estava implícita nas esperanças do iluminismo, e as filosofias que negavam a existência de tais padrões negavam portanto os fundamentos de todas essas esperanças. Mas não basta mostrar como um processo lógico, a começar por uma formulação inadequada da liberdade, levou a conclusões filosóficas que contradiziam a liberdade. Temos ainda que mostrar que esta contradição foi realmente posta em operação, de modo que estas conclusões não foram meramente cogitadas e acreditadas como sendo verdadeiras, mas que encontraram gente preparada para atuar com base nelas. Se as ideias causam revoluções, apenas o podem fazer através de pessoas que atuam com base nelas. Para esta descrição da queda da liberdade na Europa ser satisfatória, precisa de mostrar que houve gente que na realidade transformou o erro filosófico numa ação humana destrutiva. Temos ampla evidência documental de tais pessoas entre os intelectuais da Europa central e oriental. São os niilistas.

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Há uma interessante ambiguidade nas conotações da palavra “niilismo”, que pode parecer confusa à primeira vista, mas que na realidade é esclarecedora. Como o título do livro de Rauschning mostra - The Revolution of Nihilism [A Revolução do Niilismo] - ele interpretou a sublevação do nacional socialismo como uma revolução4. Ao contrário disto, os relatos vindos da Europa central falavam habitualmente de um niilismo generalizado, significando uma falta de espírito público, a apatia das pessoas que não acreditam em nada. Esta curiosa dualidade do niilismo, tanto um epíteto para a completa auto centralidade como para a ação revolucionária violenta, pode ser reconstituída até às sua primeiras origens. A palavra foi popularizada por Turgenev no seu Pais e Filhos, escrito em 1862. O seu protótipo de niilismo, o estudante Bazarov, é um individualista extremo sem qualquer interesse pela política. Também a figura seguinte semelhante da literatura russa, Raskolnikov em Crime e Castigo, de Dostoievski (1865), não mostra qualquer inclinação política. O que Raskolnikov tenta descobrir é porque é que não devia matar uma velha senhora, se quisesse o seu dinheiro. Tanto Bazarov com Raskolnikov estão a experimentar privadamente uma vida de completa incredulidade. Mas, poucos anos depois, vemos o niilista transformado em conspirador político. Aparece a organização terrorista de Narodniki, os populistas. Dostoievski retrata mais tarde este novo tipo na sua novela O Possesso. O niilista aparece agora como um frio conspirador, tipo homem de negócios, prefigurando completamente a figura do bolchevique ideal, tal como eu a vi representada nos palcos de Moscovo, em peças didáticas do período inicial do estalinismo. Não é uma semelhança acidental. Todo o código da ação conspiratória - as células, o segredo, a disciplina e a crueldade - conhecidas hoje em dia no método comunista foram obtidas por Lenine a partir dos populistas. A prova disso pode ser encontrada em artigos publicadas por ele em 1901 e 19025. Os ingleses e os americanos acham difícil de compreender o niilismo, pois muitas das doutrinas professadas pelos niilistas foram já correntes entre eles próprios durante algum tempo, sem que isso tivesse tornado aqueles que as defendiam em niilistas. O grande e sólido Bentham não teria discordado de nenhum dos pontos de vista expostos no protótipo de Turgenev para o niilismo, o estudante Bazarov. Mas enquanto que Bentham e outros ingleses de ideais céticas podem usar tais filosofias como uma mera explicação errada das suas próprias condutas - que, de facto,eram determinadas pelas suas convicções tradicionais - o niilista Bazarov e os niilistas desse tipo tomam tais filosofias seriamente e tentam viver à sua luz. 4 Hermann Rauschning, The Revolution of Nihilism, trad. Ernest W. Dickes {New York: Longmans, Green, 1939). 5 V. I. Lenin, ‘Where to Begin?” (1901) e “What Is to Be Done?” (1902) in Collected Works, ed. Victor Jerome, trad. Joe Fineberg e George Hanna (Moscovo: Foreign Language Publishing House, 1961), 5:23-24, 473-84, and 514-18.

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O niilista que tenta viver sem qualquer convicção, obrigação ou restrição, pertence ao primeiro estádio do niilismo, o privado. É representado na Rússia pelo tipo inicial de intelectual descrito por Turgenev e pelo jovem Dostoevski. Na Alemanha encontramos um número crescente de niilistas deste tipo sob a influência de Nietzsche e Stirner; mais tarde, entre 1910 e 1930, vemos emergir, em linha direta de sucessão, o poderoso Movimento da Juventude Alemã, com o seu desprezo radical por todas as ligações sociais existentes. Mas o niilista solitário é instável. Esfomeado por responsabilidade social, pode entrar na política se encontrar um movimento com fundamentos niilistas. Logo, quando se envolve em assuntos públicos, adopta um credo de violência política. Os cafés de Munique, Berlim, Viena, Praga e Budapeste, em que escritores, pintores, advogados e médicos passavam muitas horas em especulações e bisbilhotices, tornaram-se, em 1918, no terreno fértil de recrutamento dos “boémios armados”, que Heiden no seu livro sobre Hitler descreveu como os agentes da revolução europeia6. De forma semelhante, os Bloomsbury dos desenfreados anos vinte recrutaram inesperadamente numerosos marxistas disciplinados, por volta de 1930. A conversão do niilista, do individualismo extremo para o serviço de um credo político feroz e limitado, é o ponto de viragem da revolução europeia. A queda da liberdade na Europa consistiu numa série de tais conversões individuais. O seu mecanismo merece mais atenção. Seja em primeiro lugar a conversão ao marxismo. O materialismo histórico - e dialético - tinha todos os atrativos para um segundo iluminismo; partindo daí e dando continuidade ao primeiro iluminismo anti religioso, oferecia a mesma intensidade de satisfação intelectual. Aqueles que aceitaram a sua orientação sentiram-se subitamente iniciados num conhecimento das forças reais a atuarem sobre os homem e a operar na história, uma compreensão da realidade que até aí lhes tinha estado escondida - e que continuava escondida para os não iluminados - por um véu de enganos e de auto enganos. Marx, e todo o movimento materialista de que ele fazia parte, virou o mundo do avesso, diante dos seus próprios olhos, e revelou-lhes as verdadeiras fontes do comportamento humano. O marxismo também lhes oferecia um futuro de promessas ilimitadas para a humanidade. Previa que a necessidade histórica destruiria uma forma antiquada de sociedade e a substituiria por uma nova, em que as misérias e as injustiças existentes seriam eliminadas. Embora isto fosse adiantado como uma observação puramente científica, dava àqueles que a aceitavam um irresistível sentimento de superioridade moral. Adquiriam o sentimento da retidão e isso, de uma forma paradoxal, era ferozmente ampliado pelo quadro mecânico em que se inseria. O seu niilismo tinha impedido que pedissem justiça em nome da justiça, ou humani6 Konrad Heiden, Der Fuehrer, trad. Ralph Manheim (Boston: Houghton Mifflin, 1944), pp. 145-50.

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dade em nome da humanidade; estas palavras foram banidas do seu vocabulário e e os seus espíritos fecharam-se a esses conceitos. Mas as suas aspirações morais, então silenciadas e reprimidas, encontraram um escape na previsão científica de uma sociedade perfeita. Estava formada uma utopia científica, contando apenas com a violência para a sua concretização. Os niilistas podiam aceitar, e abraçariam alegremente, uma tal profecia, que não exigia dos seus discípulos qualquer convicção para além da crença na força dos apetites corporais e que, ao mesmo tempo, ainda satisfazia as suas expectativas morais mais extravagantes. O seu sentido de retidão era portanto reforçado por uma brutalidade calculada, nascida da sua autoconfiança científica. Daí emergiu o fanatismo moderno, armado de um cepticismo impenetrável. O poder do marxismo sobre a mente baseia-se aqui num processo exatamente inverso da sublimação freudiana. As necessidades morais do homem, negada a expressão em termos de ideais, são injetadas num sistema de poder sem disfarces, aos quais dão a força de uma paixão moral cega. Com alguma qualificação, a mesma coisa é verdade para o apelo nacional socialista nas mentes das juventudes germânicas. Ao oferecer-lhes uma interpretação da história segundo os termos materialistas de uma guerra internacional de classes, Hitler mobilizou o seu sentido de obrigação cívica, que não responderia a ideais humanos. Não foi um erro considerar um nazi como um selvagem por ensinar. A sua bestialidade foi cuidadosamente alimentada por especulações que refletiam muito da influência marxista. O seu desprezo pelos ideais humanitários tinha um século de escola filosófica por trás. Os nazis não acreditavam na moralidade pública, da mesma maneira que nós não acreditamos na feitiçaria. Não é que não tenham ouvido falar dela; simplesmente consideravam que tinham fundamentos válidos para considerar que uma tal coisa não podia existir. Se lhe dissessem o contrário, pensariam que estávamos peculiarmente antiquados ou éramos simplesmente desonestos. Em tais homens, as formas tradicionais para assegurar os padrões morais foram despedaçadas e as suas paixões morais desviadas para os únicos canais que uma conceção estritamente mecanicista do homem e da sociedade lhes deixava em aberto. Podemos descrever este processo como uma inversão moral. Uma pessoa moralmente invertida não só fez uma substituição filosófica dos objetivos morais por propósitos materiais, mas atua com toda a força das suas paixões morais vagabundas num quadro puramente materialista de propósitos. Falta descrever a verdadeira batalha que se travou no conflito que levou à queda da liberdade na Europa. Aproximemo-nos da cena pelo lado ocidental. Por alturas do final da primeira guerra mundial, os europeus ouviam através do atlântico a voz de Wilson a apelar por uma nova Europa, em termos das ideias mais puras do século dezoito. “O que desejamos é um reino da lei, baseado no

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consentimento dos governados e apoiado pela opinião organizada da humanidade”, disse ele na declaração do 4 de julho de 1918. Uns meses depois Wilson aterrava na Europa e uma onda de esperança sem limites varreu esses territórios. Eram as falsas esperanças dos séculos dezoito e dezanove, mas ainda mais brilhantes do que dantes. O apelo de Wilson, e a resposta que evocou, marcaram o ponto alto da maré de aspirações morais do iluminismo original. Este acontecimento mostra agora como, apesar das dificuldades filosóficas que dificultavam os fundamentos de declarações morais abertas, tais declarações podiam ainda ser feitas de forma vigorosa nas regiões de influência anglo americana. Mas as grandes esperanças espraiadas pelas margens do atlântico foram rejeitadas com desdém pela intelectualidade niilista, ou moralmente invertida, da Europa oriental. Para Lenine, a linguagem de Wilson era uma anedota; em Mussolini ou Goebbels terá provocado um sarcasmo irritado. E as teorias políticas que estes homens, e o seu pequeno circulo de seguidores, andavam a debater por essa altura iriam em breve derrotar o apelo de Wilson, e dos ideais democráticos em geral. Em cerca de vinte anos iriam estabelecer um sistema compreensivo de governos totalitários na Europa, com uma boa perspetiva de conseguirem submeter todo o mundo a um tal governo. O sucesso fulminante dos opositores de Wilson deveu-se ao maior encanto que as suas ideias tinham para uma parte considerável das multidões, nas nações da Europa central e oriental. Reconhecidamente a sua ascensão final ao poder foi conseguida pela violência, mas não antes de terem ganho suficiente apoio em todas as camadas da população, de modo que podiam usar a violência com eficiência. As doutrinas de Wilson foram primeiro derrotadas pelo poder convincente superior das filosofias contrárias, e é este iluminismo novo e mais feroz que continuou desde então a atacar implacavelmente cada princípio humano e racional com raízes nos solo europeu. A queda da liberdade, que em cada caso se seguiu a ataques bem sucedidos deste tipo, demonstra, por factos concretos, aquilo que se disse antes: que a liberdade de pensamento fica sem sentido e precisa de desaparecer sempre que a razão e a moralidade são despojadas do seu estatuto como uma força, tal como nós as conhecemos; quando na vida pública deixa de haver princípios morais que mereçam o respeito; quando se nega qualquer substância às revelações da religião e da arte; quando não ficam fundamentos sobre os quais um indivíduo possa fazer uma oposição justa contra os tiranos da época. Esta é a lógica simples do totalitarismo. Um regime niilista tem que assegurar a direção do dia a dia de todas as atividades, que de outro modo seriam dirigidas pelos princípios intelectuais e morais que o niilismo declara como vazios e inúteis. Os princípios devem então

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ser substituídos por decretos de uma linha partidária, que abrange tudo. É por isto que o totalitarismo moderno, baseado numa conceção puramente mecânica do homem, é necessariamente mais opressivo do que um autoritarismo que aplique um credo moral, mesmo que rígido. Considere-se a igreja medieval, no seu pior. A autoridade de certos textos que impôs permaneceu fixa durante longos períodos de tempo e a sua interpretação foi feita por sistemas de teologia e de filosofia desenvolvidos durante mais do que um milénio, desde São Paulo a Aquino. Mas um bom católico não era obrigado a alterar as suas convicções, e a inverter as suas crenças, a intervalos frequentes, por deferência para com as decisões secretas de um grupo restrito de altos oficiais. Para além disso, e como a autoridade da igreja era espiritual, reconhecia outros princípios independentes, fora dela própria. Embora impusesse numerosos regulamentos sobre a conduta individual, muitas partes da vida permaneciam intocáveis, e eram governadas por outras autoridades, rivais da igreja, tais como reis, nobres, corporações e sociedades. Mais importante, o poder de todos eles era transcendido pela crescente força da lei, e eram também permitidas iniciativas especulativas e artísticas, que pulsavam livremente através deste sistema multi facetado. O carácter opressivo e sem precedentes do totalitarismo moderno é, hoje em dia, bem reconhecido no continente europeu, e de certo modo tem vindo a dissipar a contenda entre os campeões da liberdade e os defensores da religião, que continuava desde o principio do iluminismo. O anticlericalismo não está morto, mas muitos que reconhecem as obrigações transcendentes, e estão determinados a preservar uma sociedade construída sobre a convicção de que tais obrigações são reais, descobriram agora que estão muito mais próximos dos crentes na bíblia e na revelação cristã do que dos regimes niilistas, baseados na incredulidade radical. A história virá talvez a registar as eleições italianas de 1946 como um ponto de viragem. A derrota então infligida sobre os comunistas, por uma larga maioria católica, foi saudada com imenso alívio pelos defensores da liberdade em todo o mundo, muitos dos quais tinham crescido sob a divisa de Voltaire “Ecrasez l’infame!” [Esmagai o infame!] e tinham, em tempos anteriores, expresso todas as suas esperanças naquele grito de guerra. A instabilidade do liberalismo moderno mostra um contraste curioso com a contínua existência pacífica da liberdade intelectual durante dez mil anos de antiguidade. Porque é que a contradição entre liberdade e ceticismo nunca mergulhou o mundo antigo numa revolução totalitária, como a do século vinte? Podemos dizer que uma tal crise se desenvolveu pelo menos uma vez, quando um certo número de jovens brilhantes, que Sócrates tinha introduzido numa inquirição sem restrições, floresceram como líderes dos Trinta Tiranos. Homens como Charmides e Critias eram niilistas, que adotavam conscientemente uma fi-

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losofia política, derivada da sua educação socrática; e, como reação a isso, Sócrates foi julgado e executado. Mas mesmo assim, sejam quais forem as dificuldades deste tipo que tenham tido lugar no mundo antigo, nunca foram tão cruéis e tão amplas como as revoluções do século XX. O que faltava na antiguidade era a paixão profética do messianismo cristão. A fome e a sede sempre insaciáveis pela retidão, que a nossa civilização tem no seu sangue como uma herança da cristandade, não nos permite assentar no modo estóico da antiguidade. O pensamento moderno é uma mistura de convicções cristãs e de dúvidas gregas. As convicções cristãs e as dúvidas gregas são logicamente incompatíveis; e se o conflito entre os dois manteve vivo o pensamento ocidental, com uma criatividade sem precedentes, também o tornou instável. O totalitarismo moderno é uma consumação do conflito entre a religião e o ceticismo. Resolve o conflito pela incorporação da nossa herança de paixões morais, num quadro de propósitos materialistas modernos. As condições para um tal resultado não estavam presentes na antiguidade, quando a cristandade ainda não tinha incendiado novas e vastas esperanças morais no coração da humanidade.

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Parte deste capítulo foi adaptado de Michael Polanyi, “Logic and Psychology”, The American Psychologist, 23 (janeiro 1968) 30-34. Copyright (C) 1968 pela American Psychological Society. Reimpresso com autorização.

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a esfera anglo americana temos escapado, até agora, ao pesadelo dos totalitarismos da direita e da esquerda. Mas continuamos longe de estar salvos disso. Porque temos feito pouco, na nossa vida intelectual livre, para apoiar o pensamento como uma força independente e auto governada. Depois da primeira guerra mundial, os nossos historiadores abandonaram a visão do iluminismo, que tinha evocado o sonho de um progresso moral ilimitado. Mesmo antes da guerra, alguns movimentos do pensamento académico dirigiram-se nessa direção. O positivismo tinha tentado eliminar todas as pretensões metafísicas do conhecimento. O behaviourismo tinha iniciado o caminho que havia de levar à cibernética, que afirma representar todo o pensamento humano pelo funcionamento de uma máquina. A revolução de Sigmund Freud tinha também começado, reduzindo os princípios morais do homem a meras racionalizações do desejo. A sociologia tinha desenvolvido um programa para explicar os assuntos humanos sem ter que distinguir entre o bem e o mal. As nossas verdadeiras convicções estavam a ficar sem fundações teóricas. Na realidade, podemos dizer que também nós renunciamos aos ideais do século dezanove. Alan Bullock escreveu que Hitler era aterradoramente literal, o que também era verdade para Lenine. A nossa sabedoria académica, pelo contrário, tem-se ficado por nunca significar aquilo que diz; a nossa versão dos desastres da Europa foi um sussurro inofensivo sobre os seus ensinamentos. A história não celebrará esta performance, mas continuará a reconhecer que se manteve fiel aos ideais do século dezanove. Os nossos métodos mecanicistas de inquirição não mataram, no entanto, os sentimentos generosos dos nossos estudantes. No verão de 1964 centenas de estudantes americanos enfrentaram perigos ameaçadores para ajudar os negros do Mississipi. Nem nós, os seus professores, perdemos totalmente de vista as questões morais do nosso tempo. Mas os nossos

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métodos mecanicistas divorciaram as nossas carreiras académicas dessas questões morais, que se tornaram meramente “académicas”. Logo, em geral, as nossas explicações moralmente neutras dos assuntos humanos fizeram com que a nossa juventude e, em geral, as nossas pessoas instruídas, olhassem para todas as declarações morais como meros enganos - ou no melhor das hipóteses como auto enganoss. Uma vez que nos persuadimos a nós próprios para considerar como meras convenções todas as regras estabelecidas de conduta moral, devemos suspeitar dos nossos próprios motivos morais e, então, os nossos melhores impulsos são silenciados e tornam-se clandestinos. Uma tal auto suspeição atormenta os nossos tempos, e particularmente muita da nossa juventude, seduzindo-a para formas destrutivas de expressão moral, pois apenas estas parecem ser à prova da dúvida sobre si próprios. “Só estou interessado na revolta, na desordem, no caos, especialmente atividades sem sentido. Parece-me ser a via para a liberdade”. Um tal programa (de um popular autor de canções) apela à consciência dos nossos jovens, porque é à prova da suspeição de hipocrisia, enquanto que os programas positivos e construtivos podem ser todos suspeitos de hipocrisia. Por outras palavras, também temos estado ativamente empenhados em lançar os fundamentos do niilismo. Temos razões para pensar, no entanto, que esses efeitos de uma falsa filosofia não debilitam, de forma permanente, e que, mesmo quando ensinada com todos os poderes compulsivos de um governo totalitário, esta filosofia pode ser impotente para destruir o poder das nossas convicções morais. Ao concluir as suas memór,ias dez anos depois da morte de Estaline, o escritor soviético Ilya Ehrenburg falava de “todas as coisas que estão como uma pedra nos corações das pessoas da nossa geração”. Tais corações pesados fazem parte de um grande movimento, o movimento do “revisionismo”, que procura redimir os ideais do século dezanove. Vem da própria Europa, onde as pessoas experimentaram em cheio o que significa ser subjugado por um regime que nega a realidade do pensamento livre e da justiça independente, que define a verdade como a verdade do partido e que reduz as artes ao serviço da propaganda. É a partir destas partes da Europa, muitas vezes profundamente perdidas para os nossos ideais durante os últimos cinquenta anos, que uma redenção das ideias do século dezanove está uma vez mais a amanhecer sobre nós. No 20º congresso do Partido Comunista, na Rússia, em Fevereiro de 1956, Khrushchev denunciou os crimes de Estaline num discurso secreto. Alguns meses depois, os escritores polacos e húngaros estavam a pedir abertamente a liberdade de pensamento. Estes homens eram líderes intelectuais comunistas a recuar de uma teoria em que a moralidade, a justiça, a arte, e a verdade se identificavam com o interesse do partido. Os escritores comunistas húngaros repudiaram so-

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lenemente os ensinamentos segundo os quais o expediente político pode ser um critério de verdade e “depois de dolorosas lutas mentais”, prometeram “que em circunstância alguma voltaremos a escrever mentiras”. Algumas semanas depois, o povo húngaro, liderado por estes intelectuais, derrubou o regime estalinista estabelecido por Rakosi. Esta revolução, assim como o caso mais recente e mal fadado da Checoslováquia, foi uma luta pelo reconhecimento da realidade das coisas intangíveis: a verdade, a justiça e a integridade moral e artística. As tentativas bolcheviques para estabelecer um império que negava essas realidades, embora feitas em nome de altos ideais e à luz de uma teoria sofisticada, falharam. Mostraram-se insuportáveis. O reconhecimento apaixonado de uma realidade metafísica, irredutível a elementos materiais, pode bem marcar um ponto de viragem: pode servir como um axioma para qualquer pensamento político futuro. Os escritores polacos, húngaros e checos tentavam encontrar um lugar para o indivíduo moralmente responsável, dentro da conceção marxista da história. Os primeiros manuscritos de Marx, por publicar até muito recentemente, oferecem alguma substância para isso, mas o reviver de algumas ideias hegelianas no pensamento do jovem Marx não nos vai levar longe. Precisamos de uma teoria do conhecimento que mostre as falácias do ceticismo positivista e que suporte a possibilidade de um conhecimento de entidades governadas por princípios superiores. O ceticismo positivista é uma de entre as falácias que estão na origem da ciência moderna. Quando controlava todo o conhecimento, o dogma religioso era fonte de muitos erros. Agora que a perspetiva científica exerce um controlo predominante sobre todo o conhecimento, a ciência tornou-se a principal fonte individual de falácias populares. Isto não é denegrir a ciência. O génio científico tem alargado o controlo intelectual do homem sobre a natureza, muito para além dos nossos horizontes anteriores. Ao secularizar as paixões morais do homem, o racionalismo científico evocou um movimento de reforma que nos últimos cento e cinquenta anos tem melhorado quase todas as relações humanas, tanto públicas como privadas. Uma preocupação racionalista com o bem-estar e com uma cidadania instruída e responsável criou uma preocupação ativa e mútua entre milhões de indivíduos anteriormente submersos e isolados. O racionalismo científico foi, sem dúvida, o principal guia para o progresso intelectual, moral e social, desde que a ideia de progresso ganhou aceitação em primeiro lugar, há cerca de cento e cinquenta anos atrás. Infelizmente, os ideais objetivos da ciência são absurdos. A biologia atual baseia-se na suposição de que se podem explicar os processos da vida em termos da química e da física; é óbvio que a física e a química são representadas, em última análise, em termos de forças a atuarem entre partículas atómicas. Logo, toda a

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vida, todos os seres humanos e todas as obras do homem, incluindo os sonetos de Shakespeare e a Crítica da Razão Pura, de Kant, também devem ser assim representados. O ideal da ciência continua a ser aquilo que era no tempo de Laplace: substituir todo o conhecimento humano por um conhecimento completo dos átomos em movimento. Apesar de tudo o que se diz em contrário, a mecânica quântica não faz qualquer diferença a este respeito. Uma teoria da mecânica quântica do universo é tão vazia de significado como uma teoria mecânica laplaciana. É este tipo de reducionismo mecânico que está no centro do nosso assunto. É isto que é a origem de todo o sistema de obscurantismo científico, sob o qual estamos hoje a sofrer. Esta é a causa da nossa corrupção da concepção do homem, reduzindo-o tanto a um autómato sem sentiência como a um conjunto de desejos. É por isso que a ciência nos nega a possibilidade de reconhecermos a responsabilidade pessoal. É por isso que a ciência pode ser invocada com tanta facilidade para apoiar a violência totalitária e, por isso, se tornou hoje em dia na principal fonte de perigosas falácias. Vejamos alguns exemplos dos absurdos impostos pela moderna visão científica. Ouçamos três vozes importantes na negação da existência da consciência humana: (1) “... a existência de algo chamado consciência é uma hipótese venerável: não um ponto de partida, não diretamente observável...”; (2) “... embora não possamos passar sem o conceito de consciência; mas, na realidade, tal coisa não existe”; (3) “uma entidade conhecedora é um postulado desnecessário”. Estas três afirmações foram feitas, respetivamente, por Hebb, Kubie e Lashley num simpósio sobre os mecanismos do cérebro e a consciência, em 19541. Não se trata de que estes distintos cientistas acreditem realmente que a consciência não exista. Sabem, por exemplo, que a dor existe. Mas sentem-se obrigados a negar a existência da consciência, porque ela ilude as explicações em termos da ciência. Encontra-se a mesma situação no que diz respeito à sociedade. Os antropólogos devem tentar descrever os grupos sociais em termos estritamente científicos. Muitos insistem por isso em fazer as suas análises sem mencionar o bem e o mal. Um distinto antropólogo representou o indescritível e cruel assassinato de uma suposta bruxa como um sucesso cultural. Escreveu: “Alguns sistemas sociais são muito mais eficientes do que outros para dirigirem a agressão para canais oblíquos e não disruptivos. Mas não há dúvidas que a feitiçaria é a principal resposta da cultura Navajo para o problema que qualquer sociedade enfrenta: como satisfazer o ódio e conseguir manter o cerne da sociedade sólido”2. Um outro antro1 D. O. Hebb, ‘The Problem of Consciousness and Introspection”, Brain Mechanisms and Consciousness, ed. J. F, Delafresnaye (Oxford: Basil Blackwell, 1954), p. 404; L. S. Kubie, ‘”Psychiatric and Psychoanalytic Considerations of the Problem of Consciousness”, ibid.., p. 446; K. S. Lashley, “Dynamic Processes in Perception”, ibid., p. 424. 2 Clyde Kluckhohn e Dorothea Leighton, The Navaho (Cambridge. Mass.: Harvard University Press,

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pólogo descreveu a caça às cabeças como preenchendo uma função essencial nas sociedades onde é praticada. Gordon Guide escreveu que “a religião dos ilhéus de Eddystone proporciona um motivo para viver e para manter o sistema económico a funcionar”. Mas a cultura dos Eddystones só se mostrou errada, na sua perspetiva, quando a caça às cabeças, ao manter a população baixa, tornou o progresso técnico supérfluo e deixou os ilhéus como uma presa fácil dos conquistadores britânicos3. Para este tipo de antropologia social, a estabilidade é o único valor aceite e torna-se, portanto, o supremo valor social. No entanto, nós sabemos sempre, e os antropólogos sabem-no tão bem como toda a outra gente, que a estabilidade do mal é o pior dos males. Apenas ignoram este facto vital por causa do distanciamento científico. Quanto mais absurda for esta atitude, mais contribui para a sua reputação de rigor científico. Os incidentes seguintes mostram quão difícil é, para este tipo de “objetividade” distante, ver uma luta moral. O professor Pipes diz-nos que, quando em 1960 escreveu um ensaio sobre a intelectualidade russa para a Daedalus, queria concluir com uma breve afirmação acerca do efeito dos modernos intelectuais russos terem uma missão muito especial a cumprir: “lutar pela verdade”; mas, por conselho dos amigos, omitiu a passagem porque lhe parecia “ingénua” e “anticientífica”. Quatro anos mais tarde, decidiu que não era nem ingénuo nem anticientífico atribuir aos intelectuais russos um “desejo pela verdade”. Mas, mesmo assim, ele pode definir um “direito à verdade” (que obviamente estes homens - e os húngaros e os polacos e os checos - desejam ter) apenas como o “direito a renderem-se às impressões dos outros sem serem compelidos, por razões estranhas, a interpretar e a distorcer essas impressões”4. Vemos que o Professor Pipes foi obrigado a criar um labirinto de subterfúgios para dizer (“cientificamente”) que um grupo de pessoas acha que a procura da verdade é o seu direito e dever; também vemos que as palavras involutas com que substituiu o seu compromisso começam por não exprimir aquilo que, na realidade, estava a acontecer na Europa oriental. As raízes desta perversão são profundas. A revolta do racionalismo científico contra a autoridade religiosa baseou-se na atração dos factos contra o dogma. O positivismo simplesmente continuou este movimento até às suas conclusões lógicas, ao repudiar a metafisica em conjunto com o dogma. A escola vienense de filosofia cumpriu este programa ao rejeitar como metafísica qualquer afirmação acerca do mundo que não fosse verificável pela experiência ou que não seja falI960), p. 177. 3 Gordon Guide, What Happened in History (Baltimore: Penguin Books 1961), p. 16. 4 R. Pipes, “Russia’s Intellectuals,” Encounter 22 (1964): 79-84.

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sificável pela experiência - de acordo com os aperfeiçoamentos de Karl Popper. Esta visão, na realidade, desacredita todas as afirmações éticas. Porque se alguém diz que é errado basear-se em testemunhas falsas, então está a dizer algo que não pode ser provado, ou reprovado, por factos experimentais. Nenhuma ocorrência concebível, nenhuma medida ou observação, pode decidir se uma ação é moral ou imoral, justa ou injusta, boa ou má. Logo, nesta visão positivista do empirismo, chamar alguma coisa imoral, injusta, ou má, é falar sem qualquer significado empírico; e parece então duvidoso que uma tal expressão possa ter qualquer sentido, para além do tipo de exclamação que se tem quando se dá uma dentada numa maçã com uma minhoca ou quando se grita para que outros deixem de fazer alguma coisa que achamos doloroso. Reconheço que se sente-se que esta conceção de juízo moral é insatisfatória; porque todas sempre que pronunciamos uma condenação ou uma aprovação moral, ou procuramos orientação sobre um dilema moral, referimo-nos sempre a padrões morais que assumimos como geralmente válidos, e reverenciamos os homens, como Sócrates ou como Gandhi, que enfrentam a morte para defender tais padrões. Daí que os descendentes dos positivistas estejam agora tão empenhados em salvar os padrões morais do seu repúdio como totalmente infundados. Mas tais esforços são em vão. Enquanto a ciência continuar a ser o ideal do conhecimento, e o distanciamento continuar a ser o ideal da ciência, a ética não poderá continuar a estar protegida da destruição completa através da dúvida cética. Nos primeiros tempos, os filósofos podiam guardar as dúvidas mais sérias apenas entre si. Hume pôs a dúvida de lado como sendo um jogo de gamão. O seu grande sucessor Kant ainda continuava a pensar que não havia o perigo do ceticismo científico poder algum dia vir a ganhar alguma influência popular. A filosofia nunca poderia ter grande efeito sobre as massas. Mas o nosso tempo é um tempo de movimentos filosóficos de massas. Uma vista de olhos pelos livros correntes, ou pelos jornais diários, continua a revelar uma mesma paixão corrosiva pela destruição da imagem moral do próprio homem. Dois pequenos livros ingleses foram escritos simultaneamente em 1942, um intitulado The Abolition of Man e o outro The Annihilation of Man; o primeiro foi escrito por C. S. Lewis; o segundo, por Leslie Paul. C. S. Lewis pegou num livro escolar sobre o inglês como um exemplar para desacreditar os sentimentos morais e estéticos pelos ensinamentos do nosso tempo. Lewis, depois de reconhecer que esta destruição tinha começado após a primeira guerra mundial, com o propósito louvável de salvar os homens da sedução da propaganda nacionalista, avisou que a desonra dos ideais tradicionais teria simplesmente por efeito desviar as paixões morais do homem para direções mais básicas5. O livro de Leslie Paul explicitou esta visão. Cita os versos 5 C. S. Lewis, The Abolition of Man (New York: Macmillan, 1947), pp. 28-33.

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com que Oswald Spengler aclamou Hitler em 1934: “O homem é uma animal de rapina...; Os pretensos moralistas... são apenas animais de rapina com os dentes partidos...; lembrem-se que os enormes animais de rapina são criaturas nobres... e sem a hipocrisia da fraqueza das morais humanas”6. Atente-se ao argumento: (1) o homem é um animal, uma besta (2) as suas morais são hipócritas (3) a hipocrisia é revoltante. Logo, apenas o nível animal da besta é honesto e nobre. Muitos pensarão que esta aprovação moral da brutalidade é apenas um vício germânico, mas Simone de Beauvoir saúda a glorificação do crime e do desejo, pelo Marquês de Sade, como um grande pronunciamento moral, e depois identifica esses ensinamentos do crime e do desejo com a denúncia das ideologias burguesas pelo materialismo histórico. Logo, a escritora marxista francesa transmuta a bestialidade numa rebelião moral, o que nem os historiadores nazis fizeram. Tornamos a ver aqui a inversão moral, em que o ceticismo conduz os sentimentos morais do homem para subterrâneos de onde emergem, combinados com o sadismo, como um credo de salvação pela violência. O fascismo depois converteu o patriotismo num culto da brutalidade, tal como Marx tinha convertido o utopismo numa ciência. O nosso tempo está atormentado pelos fanatismos dos incrédulos. É isto que C. S. Lewis quis dizer ao afirmar que a ciência é hoje em dia a maior fonte de falácias perigosas. A questão é outra: será que nos podemos ver livres destas excrescências malignas da perspetiva científica sem, ao mesmo tempo, deitar fora os benefícios que ainda nos podem vir a dar, quer mental como materialmente? Isto parece ser ambicioso. Mas podemos começar a remendar esta suposta ligação partida entre a ciência e a compreensão de nós próprios, como seres sentientes e responsáveis, através da clarificação da nossa conceção de conhecimento científico. Façamos então algo de radical, algo proibido pelas nossas visões atuais da ciência. Vamos incorporar, na nossa conceção de conhecimento científico, aquela parte de nós próprios que necessariamente contribui para a conformação desse tal conhecimento. Comecemos uma crítica das ciências exatas substituindo, de uma forma bastante geral, o ideal corrente da observação independente pela conceção de conhecimento pessoal. O ideal de Laplace, de incorporar todo o conhecimento do universo numa topografia exata de todos os seus átomos, continua no centro das falácias da ciência, que continuam a fluir hoje em dia. Laplace afirmou que se, num determinado momento do tempo, conhecêssemos as posições e as velocidades exatas de todas as partículas do universo, assim como todas as forças entre as partículas, poderíamos então calcular as posições e as velocidades de todas as partículas num outro instante qualquer do tempo, tanto passado como futuro. Para uma mente 6 Leslie Paul, The Annihilation of Man (New York: Harcourt, Brace, 1945), p. 143.

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assim equipada, todas as coisas do futuro, ou todas as coisas do passado, seriam igualmente reveladas. Esse é o conhecimento completo do universo, tal como concebido por Laplace. Esta ideia de conhecimento universal poderia ser, hoje em dia, transposta para os termos da mecânica quântica, mas isso é imaterial. O verdadeiro erro nesse tipo de conhecimento universal, tal como definido por Laplace, é que não nos diria absolutamente nada acerca daquilo que nos interessa. Tome-se uma questão para a qual se pretende a resposta. Por exemplo, tendo hoje plantado algumas prímulas, pretendo saber se vão ter flores na próxima primavera. Esta questão não tem resposta através de uma lista de posições e velocidades atómicas num certo momento futuro, a um de maio do próximo ano. As prímulas, como tais, perdem-se na topografia de todos os átomos. A pergunta pode apenas ter resposta em termos de prímulas. A mente universal é completamente inútil para este propósito, a menos que possa ir para além da previsão dos dados atómicos e nos possa dizer se implicam a futura floração, ou não, das prímulas hoje plantadas. Mas deixemos de lado, por uns momentos, a questão se podemos ou não inferir alguma coisa acerca das prímulas, ou acerca de qualquer outra coisa em que estejamos interessados, a partir das posições e das velocidades atómicas. Basta perceber em primeiro lugar que, tal como está, a representação do universo por Laplace ignora todas as nossas experiências correntes e não pode responder a perguntas acerca delas. Mostraremos que esta limitação do esquema laplaciano é devida a uma interpretação errada da própria natureza da ciência experimental. Consideremos o uso dos mapas geográficos. Um mapa representa uma parte da superfície da terra, no mesmo sentido em que a ciência experimental representa uma grande variedade de experiências. Para descobrir o nosso caminho num mapa, precisamos de ser capazes de fazer três coisas. Primeiro, precisamos de identificar a nossa posição atual no terreno com um ponto no mapa; depois, precisamos de encontrar no mapa um itinerário para o nosso destino e, finalmente, temos que identificar este itinerário a partir de várias marcas no terreno à nossa volta. Logo, a leitura de um mapa depende do conhecimento tácito e das competências da pessoa que usa o mapa. Nenhum mapa se pode ler a si próprio. A identificação bem sucedida das localizações atuais dos pontos num mapa depende do bom julgamento de um leitor competente de mapas. Passemos agora para as ciências exatas, que Laplace tinha em mente quando definiu o conhecimento universal. O mapa é aqui substituído por fórmulas, como as leis do movimento planetário. Também estas se aplicam em três estádios. Primeiro, fazemos medidas que resultam num conjunto de números que representam a nossa experiência inicial; a partir destes números, calculamos depois um acontecimento futuro, através do uso de fórmulas; finalmente, vamos observar a experiência pre-

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vista pelos cálculos. Tanto no princípio como no fim, identificamos números com acontecimentos observados, e isto é também uma forma de leitura de um mapa, para o qual dependemos, uma vez mais, das nossas competências pessoais. Os números, por si próprios, não apontam para os acontecimentos. As pessoas esquecem este ponto quando falam de previsões exatas feitas pelas ciências matemáticas. Seja, por exemplo, a astronomia, que aliás estava muito na mente de Laplace quando formulou o seu ideal de conhecimento universal. Pode-se pensar que as leis de Newton podem prever a posição exata dos planetas, em qualquer momento futuro no tempo. Mas isso é que nunca podem fazer. Os astrónomos podem apenas calcular a partir de um certo conjunto de dados, que identificam com a posição de um planeta num tempo em particular, um outro conjunto de números, que representará a sua posição em momentos futuros do tempo. Mas nenhuma fórmula pode na realidade antecipar as leituras atuais dos nossos instrumentos. Estas leituras raramente, se é que alguma vez, coincidem com os números previstos pelos cálculos baseados nas leis de Newton, e não há qualquer regra - e não pode haver qualquer regra - em que nos possamos basear para decidir se as discrepâncias entre a teoria e a observação devem ser tomadas como erros de observação ou se devem ser antes reconhecidas, pelo contrário, como desvios reais relativamente à teoria. A avaliação de cada caso é um juízo pessoal. Mesmos os instrumentos mais modernos são afetados por esta incerteza. Há abundante evidência de que, mesmo usando registadores altamente automatizados, não podemos excluir um enviesamento pessoal que pode afetar uma série de leituras. Mesmo as ciências mais exatas precisam portanto de se basear na nossa confiança pessoal sobre possuirmos o grau de competência pessoal e o julgamento pessoal necessários para estabelecer uma correspondência válida com factos da experiência, ou então um desvio real. Podemos concluir, de uma forma bastante geral, que nenhuma ciência pode prever factos observados a não ser que se baseie confiadamente sobre uma arte: a arte de estabelecer, pelo treino delicado da vista, ouvido e tacto, uma correspondência entre as previsões explícitas da ciência e a experiência atual dos nossos sentidos, a que essas previsões se devem aplicar. Pode-se sentir que estamos a dar demasiada significado a um coeficiente menor na estrutura da ciência, e porventura totalmente desprezável, mas isso equivaleria a desculpar um filho ilegítimo de uma empregada apenas porque é, apesar de tudo, uma pequena criança. É o principio que interessa: e, de facto, a mais pequena diferença entre a teoria e as leituras dos instrumentos acaba por apenas ser escasso da mesma maneira que a aresta de um cunho é fina - um cunho suficientemente largo, na sua base, para separar completamente entre “conhecimento” e “objetividade imparcial”. São precisas avaliações pessoais e tácitas, como

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vimos, em cada passo da aquisição do conhecimento - mesmo do conhecimento “científico”. Olhemos para os edifícios que compõem a escola de medicina de uma universidade moderna. Vemos laboratórios e salas de dissecação, uns a seguir aos outros, e todo um conjunto de hospitais escolares. Estudantes de química, biologia e medicina passam uma boa parte do seu tempo nesses locais, onde procuram ultrapassar o hiato entre o texto impresso dos seus livros e os factos da experiência. Estão a treinar os seus olhos, os seus ouvidos e o seu sentido do tacto para reconhecer as coisas a que se referem os seus livros e as suas teorias. Mas não o estão a fazer pelo simples estudo dos melhores livros de texto. Estão a adquirir essas competências através do teste dos seus próprios sentidos corporais com os objetos de que falam os livros de texto. Não se pode aqui pôr mais a questão de ignorar, como um fator marginal, os juízos puramente pessoais pelos quais o corpo teórico da ciência se encontra com a experiência. Os livros de texto da química, da biologia e da medicina são conversa fiada na ausência de conhecimento pessoal, tácito, sobre o seu assunto. A excelência de um distinto consultor ou cirurgião médico não se deve à sua leitura mais diligente dos livros de texto, mas sim à sua habilidade para o diagnóstico e para o tratamento - uma competência pessoal adquirida pela experiência prática. A sua distinção profissional reside portanto no seu corpo pesado de conhecimento pessoal. Recorde-se também que os conceitos fundamentais das ciências biológicas são tirados da experiência quotidiana, onde as medidas exatas não têm lugar. A existência de animais não foi descoberta pelos zoólogos, muito menos pelos físicos ou pelos químicos atómicos; nem a existência das plantas foi descoberta pelos botânicos. Aprendemos a distinguir os seres vivos da matéria inanimada muito antes de se estudar biologia e, quando a estudamos, continuamos a usar os nossos conceitos originais sobre a vida. Os psicólogos devem saber o que é a inteligência a partir da experiência corrente, antes de desenharem testes para a medir cientificamente. São as pessoas ordinárias, que conhecem os sofrimentos da doença e a alegria da recuperação, que definem as trabalhos da ciência médica. É verdade que o progresso da ciência consiste em moldar e modificar constantemente as nossas conceções do quotidiano. Mas, descontando isso, continua a ser verdade que existe um vasto domínio do conhecimento do quotidiano, incluindo conceitos complexos e delicados, que funcionam como guias da biologia, da medicina, da psicologia e das múltiplas disciplinas que estudam o homem e a sociedade. E este conhecimento transmite-se dos adultos para as crianças, à medida que vão crescendo, na forma de artes práticas, da mesma forma que se ensinam aos estudantes as competências científicas e o conhecimento de especialistas, na cabeceira da cama e no laboratório.

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Tudo isto leva-nos diretamente ao princípio geral que limita o âmbito das ciências exatas, de que a visão laplaciana é a idealização extrema. Muitas das questões em que estamos interessados são do mesmo tipo que as questões acerca da floração futura das prímulas recentemente plantadas. As respostas a tais questões precisam de ser dadas em termos do conhecimento pessoal disponível para um leigo, corrigido e ampliado pelas ciências - que por sua vez se baseia no conhecimento pessoal adicional dos especialistas. As previsões laplacianas não incluiriam qualquer destes conhecimentos pessoais. Afirmar que uma topografia dos átomos no mundo representa o conhecimento universal é contradizer o próprio princípio da identificação, o qual precisa de ser usado mesmo numa teoria matemática que se baseia na experiência. Logo, se a visão laplaciana, ou um ideal semelhante das ciências exatas, tivesse sucesso e se conseguisse estabelecer como o conhecimento total do homem, isso acabaria por impor uma completa ignorância sobre nós. Devemos portanto corrigir o nosso ideal de ciência com a acreditação das competências e do conhecimento prático dos peritos como formas válidas, indispensáveis e definitivas de conhecimento. Esta correção, como veremos, abrirá o caminho para reduzir a tensão entre a ciência e as preocupações não científicas do homem. Vejamos como isto é assim, através de uma inquirição sobre a estrutura essencial do conhecer como uma arte. Uma característica surpreendente de conhecer uma competência é a presença de dois tipos diferentes de consciência das coisas com que se lida de forma hábil. Quando uso um martelo para pregar um prego, estou a atender a ambos, mas de uma maneira muito diferente. Eu observo os efeitos das minhas pancadas no prego, quando empunho o martelo. Não sinto que tenha batido na minha mão, mas sim no prego. Noutro sentido, é claro, estou em alerta total relativamente aquilo que sinto na minha palma e nos dedos que seguram o martelo. Os dedos guiam com eficiência o meu manuseamento do martelo, e o grau de atenção que eu dou ao prego é dado, numa certa medida, por esse sentir, mas de uma forma diferente. A diferença pode ser expressa dizendo que aquilo que se sente é sentido por si próprio, mas que observo qualquer outra coisa mantendo a sua apreensão. Percebo o que sinto na palma da minha mão baseando-me nisso para atender ao martelo a bater no prego. Posso dizer que tenho uma consciência subsidiária do que sinto na minha mão, que se mistura na minha consciência focal de bater no prego. Pensemos agora numa sonda, em vez de um martelo. Uma sonda pode ser usada para explorar o interior de uma cavidade inacessível. Pense-se como uma homem cego sente o seu caminho através do uso de uma vara, fazendo a transposição dos choques transmitidos para a mão e para os seus músculos, que seguram a vara, para uma apreensão das coisas tocadas pela ponta desse objeto. Na transição do martelo para a vara temos a transição do conhecimento prático para

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o descritivo, e podemos ver como as estruturas dos dois são semelhantes. Em ambos os casos conhecemos algo focalmente, confiando subsidiariamente na nossa consciência de algo mais. Esta é também a forma como conhecemos na perceção. Há inúmeros itens que contribuem para eu ver a minha mão à minha frente. Conheço-os principalmente pela observação das várias deficiências criadas pela eliminação desses vários itens. Posso eliminar os meus indícios marginais se olhar para a minha mão através de um tubo negro. Posso então observar que quando aproximo a mão dos meus olhos, enquanto continuo a ver através do tubo, a minha mão parece maior. A ausência de indícios marginais, cortados pelo tubo, impede-me de ver que a mão está mais próxima. Em vez disso vejo que ela cresceu. Podemos observar que a ação dos músculos dos olhos contribui com indícios para a nossa visão se aplicarmos drogas nesses músculos, que aumentem o esforço necessário para os contrair. Como nós precisamos regularmente de um esforço adicional para ver os objetos mais pequenos, a nossa consciência subsidiária desse esforço adicional torna-se uma pista para a perceção de um objeto pequeno; e o maior esforço que precisamos de fazer para ver, devido ao efeito das drogas sobre os nossos músculos, projeta-se na perceção focal de um objeto mais pequeno do que seria conhecido de outro modo. Verificamos também que sofrimentos no ouvido interno fazem que todo o cenário perante nós perca estabilidade e pareça deslizar. Finalmente, existe uma ampla evidência de experiências anteriores, que dificilmente recordamos, e que afetam a maneira como vemos as coisas. A perceção constitui portanto uma observação de factos externos, sem recurso a argumentos formais e até mesmo sem qualquer afirmação explícita do resultado. Veremos em breve como a ciência, em particular, também se baseia num conhecer não explícito, mas primeiro temos que evidenciar a estrutura geral de um tal conhecimento e expor as indeterminações que introduz no conhecimento empírico. Considere-se a visão de imagens estereoscópicas, na sua forma habitual, com cada um dos olhos para cada uma das imagens. A sua imagem conjunta pode ser considerada como um todo, composto por duas imagens que são as suas duas partes. Mas podemos compreender melhor o que está a acontecer se notarmos que, quando se olha através de um visor estéreo, vemos uma imagem estéreo como o foco da nossa atenção e estamos também conscientes das duas imagens estéreo numa forma não focal peculiar. Parece que vemos através dessas duas imagens, ou para além delas, quando olhamos diretamente para a sua imagem conjunta. Estamos, na realidade, conscientes delas apenas como guias para a imagem em que focamos a nossa atenção. Podemos descrever esta relação entre essas duas imagens e a imagem estéreo dizendo que as duas imagens funcionam como subsidiárias da

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nossa visão da sua imagem conjunta, que constitui o seu significado conjunto. Esta é a estrutura típica do conhecer tácito, que iremos passar a descrever com algum detalhe. Os fundamentos de todo o conhecimento tácito são os itens ou particulares, como as imagens estéreo, de que temos consciência no ato de focar a nossa atenção em algo mais, distante deles. Esta é a relação funcional dos subsidiários com o alvo focal, e podemos também chamar-lhe uma relação de-para. Podemos ainda dizer que esta relação estabelece um conhecimento de-para dos subsidiários - um conhecimento seu tal como aparecem funcionalmente ao estabelecerem o objeto da nossa atenção focal. O conhecimento tácito é um conhecer de-para. Às vezes também pode ser chamado um conhecer de-por. Não será difícil mostrar as indeterminações inerentes ao conhecimento de-para, mas primeiro vamos acrescentar algumas caraterísticas à estrutura desse conhecimento. Um aspeto caraterístico do conhecimento de-para é exemplificado pala mudança de aparência que ocorre na visão de um par de imagens estéreo, que as transforma numa imagem estéreo. Uma imagem estéreo tem uma profundidade bem marcada e também apresenta os objetos como “sólidos”, com formas claramente definidas, que não estão presentes, como tal, no par original de imagens. Logo, envolve-nos numa nova experiência sensorial, que obviamente foi criada pelo conhecer tácito. Uma tal transformação fenomenal é uma característica do conhecer de-para. Desta forma a coerência do que vemos na natureza tem, na realidade, uma nova qualidade sensorial, que não existe nas percepções sensoriais a partir das quais foi tacitamente criada. Há momentos, antecipamos uma outra característica do conhecer de-para, quando dissemos que a imagem estéreo é o significado conjunto das duas gravuras estéreo. Os subsidiários do conhecer de-para suportam um alvo focal e aquilo em que uma coisa se baseia pode-se chamar-se o seu significado. Logo, o alvo focal em que se apoiam é o significado dos subsidiários. Podemos chamar a este ato um ato de criação de sentido (ou significado) e reconhecê-lo como o aspeto semântico do conhecer de-para. Alguns exemplos ajudarão a familiarizar com estes três aspectos do conhecer tácito: o funcional, o fenomenal e o semântico. Poderíamos discutir neste ponto tanto a percepção visual como a descoberta científica, que são os principais interesses desta exposição, mas que têm complicações que é preferível deixar para mais adiante. Como caso mais simples, consideremos a estrutura de-para do ato de ler uma frase impressa. A vista das palavras impressas guia a nossa atenção focal, desde o tipo tipográfico para o alvo focal que é o seu significado. Temos aqui tanto a função do conhecer de-para como o seu aspecto semântico. O seu aspeto fenomenal é tam-

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bém fácil de reconhecer: reside no facto de uma palavra em uso parecer diferente do que aparece a alguém que a encontra como palavra estrangeira totalmente desconhecida. O uso familiar de uma palavra, que constitui a nossa consciência subsidiária dessa palavra, torna-a de certo modo incorpórea, ou, como por vezes se diz, transparente. Um outro exemplo é o caso, mais familiar, da cognição tátil: usar uma sonda para explorar uma cavidade, ou uma vara para sentir o caminho na escuridão. Uma tal exploração é um conhecer de-para, pois atendemos subsidiariamente ao sentir de segurar a sonda na mão, enquanto que o foco da nossa atenção se fixa na sua extremidade, onde toca num obstáculo do caminho. Esta percepção é a função do conhecer tácito e é acompanhada por uma transformação fenomenal particularmente interessante. Perde-se a sensação da sonda a pressionar os dados e a palma da mão, e dos músculos a guiar a sonda, e, na sua vez, sentimos a ponta da sonda, à medida que ela toca num objeto. E, para além dos aspetos funcional e fenomenal, a sonda tem, como é óbvio, um aspeto semântico, pois a informação que obtemos, por sentir a ponta do instrumento, é o significado das nossas experiências táteis com a sonda: diz-nos o que é que estamos a observar, através do seu uso. Este uso das sondas recorda-nos que toda a sensação é assistida por algum (mesmo que muito ligeiro) desempenho hábil, cujos movimentos se executam com a nossa atenção focada na ação desejada, de modo que a nossa consciência dos movimentos é subsidiária para o desempenho. A estrutura de-para inclui todas os desempenhos hábeis, desde o caminhar ao longo de uma rua até caminhar sobre uma corda esticada, desde fazer um nó até tocar piano. Confrontemos agora estes factos com o facto adicional que existe uma coisa no mundo que normalmente só conhecemos pela nossa consciência dela enquanto que atendemos a outras coisas. O nosso próprio corpo é essa única coisa. Atendemos aos objetos estranhos estando subsidiariamente conscientes de coisas que acontecem dentro do nosso corpo. A localização de um objeto no espaço baseia-se numa pequena diferença entre duas imagens lançadas nas nossas retinas, na acomodação dos nossos olhos e no controlo dos nossos movimentos dos olhos, suplementados pelos impulsos recebidos do ouvido interno, que variam de acordo com a posição da cabeça no espaço. Temos consciência de todas essas coisas apenas nos termos da nossa localização dos objetos que estamos a vislumbrar, e nesse sentido podemos dizer que só estamos subsidiariamente conscientes deles. Podemos, de facto, dizer que conhecer algo, com base na nossa consciência disso, para atender a algo mais, é ter o mesmo tipo de conhecimento que temos do nosso corpo, ao viver nele, ou habitando nele. É uma maneira de ser ou existir. A nossa consciência subsidiária de ferramentas e de sondas pode, portanto, ser vista como uma condição em que fazem parte do nosso corpo. A maneira como

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usamos um martelo, ou como um homem cego usa uma vara, mostra que em ambos os casos nos movemos para fora dos pontos em que estabelecemos contacto com as coisas exteriores a nós próprios. Quando nos baseamos numa ferramenta ou numa sonda, estes instrumentos não estão a ser usados ou escrutlinados como objetos exteriores. Em vez disso, nós fluimos [pour] a nós próprios sobre eles e assimilamo-los como partes de nós próprios. Podemos generalizar e incluir a aceitação e o uso das ferramentas intelectuais, oferecidas por um quadro interpretativo, em particular pelos livros de texto da ciência. Quando nos baseamos num texto científico, o texto não é um objeto sob escrutínio, mas sim uma ferramenta de observação. Por enquanto, identificamo-nos a nós próprios com ele; e desde que as nossas faculdades críticas se exerçam de uma forma de-para, com base no texto, continuaremos a reforçar a nossa aceitação acrítica dele. Não há qualquer mistério acerca disto. Não podemos usar os nossos óculos para escrutinar os nossos próprios óculos. Uma teoria é como um par de óculos: examinam-se as coisas através deles, e o nosso conhecimento deles reside no uso que fazemos deles. Vive-se neles tal como vivemos no nosso corpo e nas ferramentas pelas quais ampliamos os poderes do nosso corpo. Deve ficar claro que alguém que diz que está a “testar” uma teoria está de facto a basear-se, nesta forma subsidiária e muito acrítica, sobre outras teorias aceites tacitamente e suposições, das quais não pode estar focalmente consciente nesta ação. Esta concepção do conhecimento como vivência interior [indwelling} ajudará a formar o elo final entre as ciências e as humanidades. Antes de tratar este ponto, precisamos de alargar o nosso esquema do conhecimento pessoal para incluir tanto o tipo de conhecimento que temos hoje em dia dos animais e das plantas, da vida e da morte, da saúde e da doença, assim como o tipo de conhecimento hábil que os estudantes de biologia e de medicina adquirem no laboratório e na clínica. Chegaremos aí observando que os dois tipos diferentes de consciência, que já encontramos entrelaçados no uso do martelo e da sonda, estão também presentes, da mesma forma, na nossa apreensão de qualquer conjunto de particulares percebidos como um todo. Consideremos uma competência prática. Consiste na capacidade de efetuar um certo número de movimentos, com vista a atingir um resultado compreensivo. O mesmo aplica-se ao conhecimento hábil, como um diagnóstico médico; também ele compreende um grande número de detalhes em termos de uma unidade significante. Em ambos os tipos de conhecimento hábil estamos conscientes de uma multidão de partes, em termos de um todo, ao viver essas partes. Os dois tipos de conhecimento hábil estão, na realidade, sempre interligados: a manipulação hábil de algo precisa de se basear na nossa compreensão disso; e, por outro

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lado, a compreensão intelectual só se pode atingir pelo escrutínio hábil de uma situação. A relação entre o processo de uso de ferramentas e o processo de perceber um todo tem, de facto, sido bem estabelecida pela psicologia das formas (gestalt), pelo que a podemos tomar aqui como já bem definida, sem mais argumentos. Logo, a estrutura do conhecer tácito, como vimos, inclui um pa de constituintes. Os elementos subsidiários existem como tal, com base no foco para que estamos a atender a partir desses elementos subsidiário Por outras palavras, a estrutura funcional do conhecer de-para inclui conjuntamente um “a partir de” subsidiário e um “para” focal (ou um “em” ou “onde”). Mas este par não está unido por sua vontade própria. A relação de um subsidiário com um foco forma-se por um ato de uma pessoa que os integra a ambos. A relação de-para dura apenas enquanto a pessoa que conhece mantem essa integração. Isto não é dizer meramente que se não voltarmos a olhar para uma coisa, então deixaremos de a ver. Há uma ação específica envolvida na dissolução da integração do conhecer tácito. Vamos descrever essa ação. Vimos que existem três centros do conhecer tácito: primeiro, os particulares subsidiários; segundo, o alvo focal; e, terceiro, quem conhece, que está a unir o primeiro e o segundo. Podemos colocar estas três coisas nos três vértices de um triângulo. Podemos considerar que formam uma tríada, controlada por uma pessoa, quem conhece, que faz com que os elementos subsidiários suportem o foco da sua atenção. Podemos portanto dizer que quem conhece integra os subsidiários num alvo focal, e podemos dizer que, para quem conhece, os elementos subsidiários têm um significado que preenche o centro da sua atenção focal. Logo, quem conhece pode dissolver a tríade por uma ação específica da sua parte: olhando meramente para os subsidiários de uma forma diferente. A tríade desaparecerá se quem conhece desviar a sua atenção focal do foco da tríade, e a fixar nos subsidiários. Por exemplo, se em vez de olhar para as imagens estéreo através do visor, olharmos diretamente para cada uma delas, perdemos de vista a sua aparência conjunta sobre a qual estávamos anteriormente focados. Ou se focarmos a nossa atenção numa palavra falada como uma sequência de sons, a palavra perde o significado com que a estávamos anteriormente a atender. Ou, uma vez mais, podemos paralisar o desempenho de uma competência hábil desviando a nossa atenção da sua performance e concentrando-a antes nos vários movimentos que compõem esse desempenho. Estes factos são do conhecimento comum, mas as suas consequências para a teoria do conhecer tácito são notáveis. Pois estes factos confirmam o nosso ponto de vista segundo podemos estar conscientes de algumas coisas de uma forma que é muito diferente de focar nelas a nossa atenção. Provam a existência de dois tipos

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de apreensão, que são mutuamente exclusivas, uma apreensão a partir de e uma apreensão focal. Também confirma que, na nossa apreensão a partir de uma coisa, vemos essa coisa como tendo um significado, um significado que desaparece quando focamos a nossa atenção na coisa de que temos apenas uma consciência a partir de. Essa coisa vai depois aparecer-nos, por si própria, na sua crua natureza corporal. A natureza dual da apreensão manifesta-se aqui pela perda dos sentidos envolvidos na substituição da consciência focal por uma consciência a partir de. Convém notar que esta consciência dual não se deve ao facto de não podermos estar focalmente conscientes de todos os indícios subsidiários que entram na integração de um significado. Suponha-se que era possível, pelo menos em princípio, identificar todos os elementos subsidiários envolvidos numa integração focal em particular. Encontraríamos ainda que tudo o que servia como elemento subsidiário deixaria de o ser quando dirigíssemos para ele a nossa atenção focal. Torna-se noutra coisa, despojada do significado que tinha enquanto servia como um elemento subsidiário. Logo, os elementos subsidiários são essencialmente não especificáveis - por esta razão e não porque os não possamos encontrar. Temos portanto que distinguir entre dois tipos de não especificabilidade dos elementos subsidiários. Um tipo é devido à dificuldade de rastrear os subsidiários - uma condição que é generalizada mas não universal; o outro tipo é devido à privação sensorial que é logicamente necessária e absoluta, em principio. Se esta análise nos convencer da presença de dois tipos muito diferentes de apreensão no conhecer tácito, também nos deve impedir de os identificar com a apreensão consciente e inconsciente. A apreensão focal, como é óbvio, é sempre totalmente consciente, mas a apreensão subsidiária, a apreensão a partir de, pode existir a qualquer nível de consciência, podendo ir desde o subliminar até ao completamente consciente. O que faz uma apreensão subsidiária é o seu caráter funcional, e devemos portanto falar da presença de apreensão subsidiária mesmo para as funções interiores do nosso corpo, a níveis que nos são inacessíveis através da experiência direta. Como vimos, os elementos subsidiários funcionam como tal ao serem integrados num foco, que suportam. Esta integração, porque é um ato tácito de uma pessoa, tanto pode ser válida como pode estar errada. A percepção pode estar certa ou errada - ou seja, podemos ser capazes de posteriormente a julgar de uma ou outra forma - e, portanto, também os nossos juízos de coerência podem estar certos ou errados, quer ao decidir sobre os factos de um caso legal ou quando procuramos perceber a coerência na natureza. Chegar a tais conclusões pode portanto legitimar os chamados atos de inferência tácita. Mas, no entanto, tais inferências diferem claramente das conclusões obtidas por uma dedução explícita. Piaget descreveu o contraste entre um ato motor e sensorial, como a perceção,

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e um processo de inferência explícita. A inferência explícita é reversível: podemos voltar para as premissas e depois tornar a voltar outra vez para as conclusões, e podemos reverter o processo sempre que se queira. Mas isto não é verdade para a perceção. Por exemplo, uma vez vista a solução de um puzzle visual, não podemos voltar a ignorar a sua solução. Isto mantem-se, com poucas variantes, para todos os atos de conhecer tácito. Podemos voltar para as nossas duas fotografias de uma imagem estéreo, retirando-as do leitor e olhando diretamente para elas, mas isto destrói completamente a imagem estéreo. Quando começaram os primeiros voos de aviões, os traços de antigas construções revelaram-se em terrenos sobre os quais muitas gerações de pessoas do campo tinham caminhado sem, no entanto, darem conta deles. Mas, uma vez em terra, os pilotos já não os conseguiam ver. Nalguns casos a privação sensorial não é permanente. Logo, podemos concentrar-nos no som e na ação dos nossos lábios e da língua, ao produzir uma palavra, e isso causará a perda do significado da palavra, embora a perda se possa remediar de imediato voltando a concentrar a mente naquilo que é dito por quem está a falar. O mesmo é verdade para um pianista que paralisa a sua performance por olhar intensivamente para os seus próprios dedos; também ele pode recuperar rapidamente o seu uso hábil, tornando a atender à sua música. Nestes casos o caminho para uma relação integrada - que poderá ter demorado meses a estabelecer - é restaurado num instante, depois da sua suspensão; no mesmo momento, perdem-se de vista os particulares subsidiários. A inferência explícita é muito diferente; não acontece essa fragmentação e essa redescoberta quando recapitulamos a dedução do teorema de Pitágoras. Uma vez clara, esta diferença entre inferência explicita e integração tácita lança uma nova luz sobre uma controvérsia centenária. Em 1867 Helmholtz sugeriu que se interpretasse a perceção como uma inferência inconsciente, mas essa teoria foi em geral rejeitada pelos psicólogos, que assinalaram que essas ilusões óticas não se destruíam pela demonstração da sua falsidade. Os psicólogos assumiram, com razoabilidade, que a “inferência inconsciente” tinha a mesma estrutura que uma inferência explicita consciente. Mas se identificarmos “inferência inconsciente” com integração tácita então temos um tipo de inferência que não é afetada pela evidência adversa, o que, por sua vez, acontece com a inferência explícita. Esta diferença entre uma dedução e uma integração reside no facto de que uma dedução liga dois itens focais, as premissas e os consequentes, enquanto que a integração faz os elemento subsidiários apoiarem-se num foco. Reconhecidamente, há um movimento intencional numa dedução - que é o seu coeficiente tácito essencial; mas a operação dedutiva pode ser executada mecanicamente, enquanto que uma integração tácita é totalmente intencional e, como tal, só pode ser realizada por atos conscientes

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da mente. Brentano ensinou que a consciência atende necessariamente a um objeto e que só um ato mental consciente pode atender a um objeto. A nossa análise do conhecer tácito ampliou esta visão da consciência. Diz-nos que a consciência não só é intencional como também tem sempre raízes a partir das quais atende aos seus objetos. Inclui uma consciência tácita dos seus elementos subsidiários. Essa integração não pode ser substituída por um procedimento mental explícito. Em primeiro lugar, mesmo que se possa parafrasear o conteúdo cognitivo de uma integração, nunca se pode explicitar a qualidade sensorial que transmite esse conteúdo. Apenas pode ser vivido, apenas o podemos habitar. A irredutibilidade da integração tácita pode-se observar melhor no conhecer prático. Podemos assinalar a nossa incapacidade para controlar diretamente os vários movimentos que contribuem para uma performance hábil, mesmo num caso tão familiar como usar os nossos próprios membros. Mas estes casos talvez sejam demasiado comuns para agitarem a nossa imaginação. Consideremos antes o exemplo de encontrar o nosso caminho quando estamos a usar uns óculos de inversão. É virtualmente impossível funcionar, usando uns óculos de inversão, seguindo a instrução de que aquilo que se vê à direita está na realidade à nossa esquerda - no caso de inversão direita - esquerda, enquanto que, reciprocamente, o que se vê à nossa direita está na realidade à nossa esquerda. O psicólogo austríaco Heinrich Kottenhoff, no entanto, mostrou que os esforços continuados para fazer movimentos usando óculos de inversão produzem uma qualidade nova de sentir e da ação: integrando as imagens invertidas com as respostas sensoriais e motoras apropriadas, o sujeito redescobre como encontrar o seu caminho. Esta reintegração apenas pode ser feita subsidiariamente; qualquer instrução explícita para reintegrar imagens e respostas sensoriais e motoras faria pouco sentido. Pelas mesmas razões, não podemos aprender a manter o nosso equilíbrio numa bicicleta se tentarmos seguir a regra explícita segundo a qual, para compensar qualquer desiquilíbrio, deve-se curvar a bicicleta - na direção oposta ao desiquilíbrio - com um raio é proporcional ao quociente do quadrado da velocidade da bicicleta sobre o ângulo do desiquilíbrio. Um tal conhecimento é totalmente ineficiente, a menos que seja conhecido tacitamente, ou seja, a menos que seja conhecido subsidiariamente - a menos que, simplesmente, o estejamos a viver. A forma como os particulares são selecionados e assimilados como elementos subsidiários será tratada adiante, quando falarmos da descoberta científica. Mas podemos antecipar um dos seus aspectos, assinalado por Konrad Lorenz, que chegou, de forma independente, à ideia de que a ciência se baseia numa integração de particulares do tipo “gestalt”. Demonstrou que a velocidade e a complexidade da integração tácita excede em muito as operações envolvidas numa seleção explícita da evidência que a suporta. Recentemente desenvolvi ainda mais esta

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ideia, mostrando que o comportamento em série, demonstrado por Lashley na produção de uma frase oral, pode ser compreendido considerando que o conhecer tácito pode selecionar, em simultâneo, todo um conjunto de dados e combiná-los numa sequência falada e com significado. Uma integração estabelecida desta forma sumária poderá muitas vezes passar por cima de itens isolados de evidência contrária. Pode ser prejudicada por novos factos contraditórios, mas só se esses itens forem absorvidos numa integração alternativa, que desfaz a integração anteriormente estabelecida. Na experiência de Ames sobre a sala enviesada, a ilusão de que um rapaz é mais alto que um homem persiste desde que a evidência do enviesamento da sala seja pequena; mas a ilusão é instantaneamente destruída se, por mudar de posição ou por bater no teto, o observador ficar mais consciente do enviesamento da sala. Esta nova consciência compete, na realidade, com a integração anteriormente estabelecida e destrói-a. David Hume defendeu que, quando na dúvida, devemos suspender o julgamento. Esta teoria deve-se aplicar a conclusões derivadas no papel, conclusões que se podem manipular à vontade - pelo menos no papel. Mas os nossos olhos continuam a ver um rapaz mais baixo do que um homem adulto (embora se saiba que isso é falso) desde que não se apresente qualquer integração alternativa à nossa imaginação. Quando se apresenta uma integração alternativa que parece mais significativa, e portanto mais verdadeira, pode ocorrer uma nova perceção que corrige os nossos erros. Helmholz podia ter respondido aos seus opositores neste ponto, mas também teria ter que admitir que as suas “inferências inconscientes” eram muito diferentes das inferências conscientes. A estrutura característica de todo o nosso conhecimento pessoal resulta ainda mais nítida se compreendermos que todo o conhecimento é ação - ou seja, é o nosso estímulo por compreender e controlar a nossa experiência que nos leva a depender subsidiariamente de algumas das suas partes para atender focalmente ao nosso objetivo principal. À medida que vamos observando a operação deste impulso, veremos emergir outras características importantes do conhecer pessoal. Veremos que todo o conhecimento pessoal é intrinsecamente dirigido por padrões pessoais de valorização, definidos por cada um, para si próprio. Consideremo,s em primeiro lugar, o processo de dominar uma competência ou habilidade. Aqui a ênfase do nosso conhecimento consiste em produzir um resultado. Pode-se dizer que o esforço envolvido na aquisição e aplicação hábil do conhecimento é guiado por um propósito. É à luz desse propósito que certas coisas são feitas para nos servir como ferramentas, e que certos movimentos do nosso corpo são coordenados de forma hábil. O resultado económico e efetivo deste propósito define um padrão para a nossa competência. É pelo esforço de atingir esse padrão que nós selecionamos, na prática, em geral sem a consciência focal de

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o estar a fazer, quais os elementos para uma performance hábil. Por conseguinte, os nossos esforços para atingir uma competência hábil permitem afirmar que estamos a ser guiados por um propósito. Quando, por outro lado, a ênfase do nosso conhecimento reside em reconhecer e compreender uma coisa, podemos dizer que o esforço envolvido na aquisição de tal conhecimento é guiado pela nossa atenção. Um biólogo, um médico, um negociante de arte e um negociante de roupas adquirem o seu conhecimento de peritos a partir de livros de texto, em parte, mas estes textos não lhes servem de nada se não forem acompanhados pelo treino da vista, do ouvido, e do sentido do tato. Só por um esforço atento dos seus sentidos é que podem adquirir a percepção certa para identificar uma determinada espécie biológica, os sintomas de uma certa doença, uma pintura genuína de um certo mestre, ou um tecido com uma qualidade especial. Por esse treino, o perito desenvolve uma delicadeza especial que lhe permite atuar como uma avaliador do valor, ou do significado, de certos objetos ou condições. Logo, todo o ato de conhecimento pessoal contribui para estabelecer um padrão apropriado de excelência. Os atletas ou os dançarinos, ao fazerem o seu melhor, estão a atuar como especialistas críticos dos seus próprios desempenhos; mas quer apliquem os padrões a si próprios, ou não, os peritos são os críticos reconhecidos de certas coisas. E quando uma pessoa é reconhecida como um perito, acredita-se que sabe se certas coisas preenchem, ou não, o padrão das boas espécies do seu tipo. Logo, a participação do observador no ato de conhecer leva-nos a um ponto em que a observação assume as funções de uma avaliação, pelos padrões que o observador considera como impessoais, ou seja, geralmente aplicáveis, mais do que idiossincrasias pessoais. Até mesmo os tribunais se baseiam na capacidade dos peritos para apreciar a verdadeira presença de um certo grau de engenho num novo dispositivo, que fundamente uma decisão sobre uma patente. A matemática também se pode dizer que só existe como ciência se confiarmos na nossa capacidade para apreciar a profundidade e o engenho existente em certos processos de inferência. Podemos agora avançar para o passo final, que combina a vivência interior com uma avaliação feita de acordo com padrões considerados como universais. É claro que um naturalista aprecia uma planta ou um animal saudável por um padrão, a que atribui universalidade. Estão “certos” para a sua espécie. Aprecia o comportamento coerente de um animal da mesma forma. A sua avaliação baseia-se aqui em entrar no propósito e na ação de outro indivíduo. Os feitos da inteligência só se podem observar se vivermos as suas partes como estando inteligentemente integradas, logo identificando-nos a nós próprios (nesse sentido) com a pessoa

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em cuja inteligência estamos a avaliar. A nossa capacidade para dar sentido, para compreender a ação de outra pessoa, entrando na sua situação e julgando as suas ações a partir do seu próprio ponto de vista, parece não ser mais do que uma instância da técnica do conhecimento pessoal, cujos elementos identificamos anteriormente pela forma como vivemos nos elementos subsidiários para ler um mapa, ou pregar um prego com um martelo, ou para descobrir o nosso caminho na escuridão através de uma vara. Esta conclusão completa pelo menos parte do nosso programa. Vimos que as limitações do ideal laplaciano de ciência devem ser resolvidos pelo reconhecimento do nosso conhecimento pessoal - a nossa vivência interior - como uma parte integral de todo o conhecimento. Podemos agora ver que esta emenda fecha o hiato entre as ciências naturais e o estudo do homem. Tendo reconhecido a participação pessoal como um princípio universal do conhecimento e tendo estabelecido a estrutura desse conhecimento, somos agora capazes de ver que a participação pessoal, através da qual chegamos à avaliação das ações humanas como ações de seres sentientes, inteligentes e moralmente responsáveis, é uma instância legítima do conhecimento científico. É a forma como habitamos nesses particulares para chegar ao nosso conhecimento sobre eles - a nossa compreensão das suas ações. Logo, não é nada “anticientifico”. Todo o conhecimento é um conhecimento pessoal - uma participação através da interiorização. Podemos agora avançar. Vimos que o nosso conhecimento pessoal opera por uma expansão da nossa pessoa numa apreensão subsidiária de particulares, uma apreensão fundida com a nossa atenção para com um todo, e que esta forma de viver nas partes resulta na nossa avaliação crítica da sua coerência. Logo podemos também credenciar a nossa vivência dentro de uma situação histórica, e a nossa aceitação de um certo papel nessa situação, como guias legítimos da nossa participação responsável nos problemas apresentados por essas situações. A ciência não nos parecerá então que precise mais de estudar o homem e a sociedade de maneiras independentes, e nós teremos recuperado a aceitação das nossas posições como membros humanos de uma sociedade humana. Portanto, algo mais vital resulta da formulação do conhecimento tácito como um ato de interiorização, como conhecimento pessoal. Aprofunda o nosso conhecimento das coisas vivas. A biologia estuda as formas das coisas vivas, e como crescem a partir das células germinativas; descreve os órgãos das plantas e dos animais e explica como funcionam; explora as capacidades motoras e sensoriais e as performances inteligentes dos animais. Estes aspectos da vida são todos controlados por princípios biológicos. A morfologia, a embriologia, a fisiologia, a psicologia, todos estudam os princípios pelos quais os seres vivos formam e mantêm a sua coerência, e respondem de formas continuadamente novas a uma imensa variedade de novas

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circunstâncias. Os modos como os animais, como o gado ou os cães ou o homem, controlam coerentemente os seus corpos, todos formam sistemas que funcionam compreensivamente. Qualquer estudo químico ou físico dos seres vivos, que não seja relevante para estes mecanismos dos organismo, não faz parte da biologia. É por isso que reconhecemos e estudamos a coerência dos seres vivos pela integração dos seus movimentos - e outras alterações normais que ocorram nas suas partes - na nossa compreensão das suas funções. Integramos mentalmente o que os seres vivos integram na prática - tal como o jogador de xadrez repete o jogo do mestre para descobrir o que ele tinha em mente. Partilhamos o propósito de uma mente vivendo as suas ações. E assim, em geral, partilhamos também os propósitos ou funções de qualquer matéria viva - vivendo nos seus movimentos através dos nossos esforços para compreender o seu significado.

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Parte deste capítulo foi adaptado de Michael Polanyi, “Logic and Psychology”, The American Psychologist, 23 (janeiro 1968) 34-42. Copyright (C) 1968 pela American Psychological Society. Reimpresso com autorização.

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stamos agora em posição de mostrar como o pensamento filosófico e os princípios metodológicos da ciência podem ter sido mal dirigidos por não terem chegado a uma compreensão clara do conhecimento tácito. Consideraremos primeiro alguns exemplos do conhecimento de outras mentes; a seguir, falaremos do problema do corpo e do espírito; em terceiro lugar, dos termos universais; depois, dos princípios da explicação; e, em quinto lugar, da generalização empírica; por último, da descoberta científica.

O CONHECIMENTO DAS OUTRAS MENTES Até um certo ponto, Gilbert Ryle argumentou acerca do nosso conhecimento das outras mentes tal como nós fizemos no capítulo precedente. Demonstrou claramente que não conhecemos o funcionamento das outras mentes por um processo de inferência. Estamos a seguir muito disso. Ryle, no entanto, não tinha o conceito de conhecer tácito e, por isso, concluiu que o corpo e o espírito “não são duas espécies de existência”, e também “não são operações em tandem”. Logo, argumentou que “os desempenhos inteligentes não são indícios para o funcionamento das mentes; são esse próprio funcionamento”1. Temos que rejeitar esta teoria. A teoria do conhecer tácito, embora também nos diga que não conhecemos uma outra mente através de um processo de inferência, mantém o dualismo entre o corpo e o espírito, no seguinte sentido: diz que o corpo visto focalmente é uma coisa, enquanto que visto subsidiariamente aponta para uma outra coisa; estas duas coisas diferentes são o corpo e a mente. Discuti1 Gilbert Ryle, The Concept of Mind (London: Hutchinson, 1949), pp. 61, 23, 46, 58.

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remos mais completamente esta questão corpo / espírito no próxima secção deste capítulo. Merleau-Ponty, alguns anos antes de Ryle, antecipou as suas premissas ao declarar: “Não compreendo os gestos dos outros por um ato de interpretação intelectual...”, ao que adicionou, um pouco mais adiante: “O ato pelo qual eu me exprimo deve ser reconhecido como irredutível a qualquer outra coisa”2. Merleau-Ponty antecipou o compromisso existencial presente no conhecimento tácito, mas fê-lo sem reconhecer a estrutura triádica que determina o funcionamento desse compromisso - a forma como se estabelece o nosso conhecimento de uma coerência válida. O contraste entre inferência explícita e uma experiência existencial imbuída de intencionalidade não é suficiente para definir a estrutura e os mecanismos de funcionamento do conhecer tácito. Dá-nos muitos clarões brilhantes, mas sem um sistema construtivo. A filosofia da teoria do comportamento (behaviorismo) não contestou a dualidade do corpo e do espírito3, mas assumiu que todas as performances mentais podem ser completamente especificadas sem qualquer referência a motivos mentais. Será que isto pode ser verdade? Consideremos uma analogia. Todos os livros de texto de fisiologia se referem aos órgãos e às suas funções e, apesar de frequentes declarações solenes, segundo as quais as conceções teleológicas são desnecessárias e até censuráveis, nunca ninguém publicou um livro de texto de fisiologia que não fale dos órgãos e das suas funções, porque as funções biológicas dos órgãos só se podem conhecer como partes da sua combinação significativa. Descrever, como os behavioristas fazem, os mecanismos de funcionamento da mente sem considerar a liderança dos motivos mentais é tão impossível como descrever acontecimentos fisiológicos que têm lugar num órgão sem se guiar pela observação da sua função fisiológica habitual. Em certa medida, o behaviorismo tem sucesso ao reivindicar o impossível, porque o nosso conhecimento da coerência da mente é de tal modo estável que qualquer mecanismo isolado da mente suscita instantaneamente os motivos mentais subjacentes, que os tais mecanismos isolados eram supostos substituírem. Em Personal Knowledge descrevi como é que a psicologia behaviorista da aprendizagem se pode tornar plausível4. Em primeiro lugar, limitando a inquirição apenas às formas mais grosseiras de aprendizagem. Estes casos muito simplificados podem então ser descritos em termos objetivistas. Mesmo assim, pode-se mostrar que se aplicam aos processos reais de aprendizagem só porque o seu significado 2 M. Merleau-Ponty, Phenomenology of Perception, trad. Colin Smith (London: Routledge, 1962), p. 185. 3 Ver, por exemplo, B. F. Skinner, “Behaviorism at Fifty”, Behaviorism and Phenomenology, ed. T. W. Waon (Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. S2-94. 4 M. Polanyi, Personal Knowledge {Chicago: University of Chicago Press. 1956; rev. ed., New York: Harper Torchbooks, 1964), pp. 370-71.

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é tacitamente compreendido pela sua relação com os acontecimentos mentais dissimuladamente mantidos na mente. Assim, temos sucesso no uso de termos objetivistas (que, em termos estritos, são sem sentido) como paráfrases eficientes para os termos mentalistas que eram supostos eliminar. A crítica de Noam Chomsky ao Verbal Behavior de B. F. Skinner inclui muitas ilustrações de tais paráfrases behavioristas5. Aparentemente termos objetivos, como “estímulos”, “controlo”, “resposta”, etc., são usados de tal modo que a sua ambiguidade protege os termos mentais que eram supostos substituir.. Chomsky mostrou que ou se usam esses termos objetivistas literalmente - e, portanto, o que for dito é obviamente falso e absurdo - ou se usam como substitutos para os termos que eram suposto eliminar - e, portanto, não dizem mais do que aquilo que teria sido dito em termos mentais. O mesmo criticismo aplica-se à simulação mecânica do conhecer tácito. Uma integração tácita apenas pode ser superficialmente parafraseada por um computador, e tais paráfrases apenas resultam pela evocação das qualidades mentais que dizem pôr em prática. A realidade é que nós conhecemos as outras mentes vivendo nos seus atos - tal como o jogador de xadrez chega ao conhecimento da mente do mestre que está a estudar. Não reduz a mente do mestre aos movimentos que ele faz. Vive nessas jogadas, como indícios subsidiários para a estratégia na mente do mestre, indícios que lhe permitem vislumbrar a estratégia. Os lances só ganham finalmente um significado quando são vistos como integrados numa estratégia global. E o comportamento de uma pessoa, em geral, só ganha um significado quando integrado no todo da sua mente.

O PROBLEMA DO CORPO E DO ESPÍRITO Olhando agora para o velho problema do corpo e da mente (ou espírito), vemos como a nossa teoria do conhecer tácito pode permitir formular esse dualismo como a disparidade entre a experiência de um sujeito a observar um objeto externo, como um gato, e a experiência de um neurofisiologista que observa os mecanismos corporais pelos quais o referido sujeito vê o gato. As duas experiências são muito diferentes. O sujeito vê o gato mas não vê o mecanismo pelo qual o está a ver, enquanto que o neurofisiologista vê o mecanismo usado pelo sujeito mas não partilha a visão que o sujeito tem do gato. Admite-se que o neurofisiologista tenha consciência da mente do sujeito que 5 Noam Chomsky, revisão por B. F. Skinner, Verbal Behavior, Language 35 (1959): 26-58,

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vê o animal, pois até certo ponto partilha a mente do sujeito, vivendo nos seus mecanismos externos. Vê o sujeito como um homem sentiente e pensante, e pode compreender a sua resposta à visão do gato; por exemplo, pode seguir a descrição que o sujeito faz do gato. É claro que, da sua parte, o sujeito pode compreender a descrição do seu próprio mecanismo neuronal, embora não o possa observar. Mas mantem-se o facto de que um gato difere profundamente do conhecimento do mecanismo de ver um gato. Cada um deles é um conhecimento de coisas muito diferentes. A perceção de uma coisa externa é um conhecimento de - para. É uma apreensão subsidiária de respostas corporais evocadas por estímulos externos, vistos em ligação com o significado da situação no foco da sua atenção. O neurofisiologista que foca a sua atenção nestas respostas corporais não experimenta a sua integração. Tem um conhecimento do corpo do sujeito, com as suas respostas corporais como o foco da sua atenção. Estas duas experiências têm conteúdos claramente diferentes, e essa diferença representa o núcleo viável do tradicional dualismo do corpo e da mente. “Dualismo” torna-se assim uma mera instância da conversão do sujeito, o que acontece quando muda a atenção da direção que suporta os elementos subsidiários e se foca antes nos próprios elementos subsidiários. A neurofisiologia atual baseia-se no paralelismo do corpo e do espírito como dois aspectos da mesma coisa. Esta teoria é falsa; mas é plausível, porque é óbvio que corpo e mente estão fortemente relacionados. A mente confia no corpo para as suas ações; e como, para a nossa mente moderna, a matéria parece ser mais substancial que a mente, parece razoável ao pensamento moderno assumir que seja o corpo quem determina as ações mentais, dado ser o mais substancial dos dois,. Temos que contradizer isto, mesmo que de uma forma breve, definindo a relação atual entre o corpo e a mente. Alguns princípios - por exemplo, os princípios da física - aplicam-se numa variedade de circunstâncias. Estas circunstâncias não são determinadas por esses princípios; são as condições fronteira para a sua operação, e não há princípio que possa determinar as suas próprias condições fronteira. Quando há um princípio que controla as condições fronteira de um outro princípio, os dois precisam de operar em conjunto. Nesta relação, o primeiro princípio (que controla as condições fronteira) pode ser chamado o princípio de nível superior; o segundo, de nível inferior. Uma tal estrutura, com dois, níveis pode aparecer na operação de muitos tipos de coisas. No jogo de xadrez, por exemplo, a condução do jogo é inteiramente dirigida por um estratagema - um estratagema que, é claro, se apoia na observação das regras particulares do xadrez. Esta relação não se mantem na forma inversa, pois as regras do xadrez não dirigem qualquer estratégia em particular. Deixam em aberto uma infinidade de possíveis estratagemas. Logo, as jogadas em xadrez

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são, por si mesmas, sem significado. O seu significado reside em servirem, em conjunto, para o resultado de um estratagema, e isto por sua vez fundamenta o seu significado na observação das regras do jogo. Todas estas relações tornam-se mais claras no caso de uma competência com várias níveis, na forma de uma hierarquia. A produção de uma comunicação oral, por exemplo, inclui cinco níveis. Num primeiro nível (1) há a produção dos sons da voz. Estes sons combinam-se no nível imediatamente superior (2) da dicção de palavras com significado. Todas estas palavras atingem então (3) um maior significado pela nosso habitar nelas, para as integrar num tipo de significado que só frases podem ter. As próprias frases são então (4) trabalhadas conjuntamente num estilo ou maneira de criar impressões ou pontos inteligíveis - algo que, por si, não existe nas frases. Finalmente, (5) o estilo ou modo de criar impressões precisa ele próprio de ser usado (habitado) para se atingir, através dele, as ideias ou os resultados que são o objectivo focal final da comunicação. Sem o último nível de comunicação, não diríamos nada, na realidade, mesmo que todos os outros níveis continuassem a existir. Ficaríamos apenas com uma rapsódia incoerente de pontos ou impressões, cheia de sons e de frenesim (talvez), mas sem significar coisa alguma. Teríamos que dizer: bom, mas o que é que tudo isto significa? É claro, deste exemplo, que os princípios de um certo nível operam sob o controlo de um nível superior imediatamente a seguir. A voz produzida é conformada em palavras por um vocabulário; um dado vocabulário é conformado em frases de acordo com uma gramática; e as frases são arranjadas num certo estilo, que por sua vez é conformado pelos nossos esforços para transmitir as ideias da composição. Logo, cada nível está sujeito a um controlo duplo: primeiro, pelas leis que se aplicam aos seus elementos por si próprios e, segundo, pelas leis que controlam a entidade compreensiva que eles formam. Esse controlo múltiplo é possível, uma vez mais, porque os princípios que governam os particulares isolados de um nível inferior deixam as suas condições fronteira indeterminadas. Estas são controladas por um princípio superior. A produção da voz deixa largamente em aberto qual a combinação dos sons em palavras, que é controlada por um vocabulário. A seguir, um vocabulário deixa largamente em aberto qual a combinação de palavras para formar frases, que é essencialmente controlada por uma gramática; e assim continua a sequência. Por consequência, as operações de um nível superior não se podem explicar pelas leis que governam os seus particulares, que formam o nível inferior imediatamente a seguir. Não é possível derivar um vocabulário a partir da fonética; não se pode derivar uma gramática a partir do vocabulário; um uso correto da gramática não explica um bom estilo; e um bom estilo não fornece o conteúdo de uma comunicação oral.

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Os princípios mentais e os princípios da fisiologia formam um par desses princípios que operam em conjunto. A mente baseia-se, para o seu funcionamento, na operação contínua dos princípios fisiológicos, mas a mente controla as condições fronteira deixadas indeterminadas pela fisiologia. O que reforça a conclusão derivada da estrutura do conhecer tácito, de que o corpo e a mente são profundamente diferentes; não são dois aspectos diferentes de uma mesma coisa6. Isto exclui qualquer fundamento para uma teoria do determinismo mecânico da mente pelo corpo. Se a mente e o corpo fossem dois aspectos de uma mesma coisa, a mente não deveria poder fazer senão o que fosse determinado pelos mecanismos corporais. Mas, a existência de dois tipos de apreensão - a focal e a subsidiária - distingue claramente entre uma mente como vivência de uma experiência de - para, e os subsidiários desta experiência, quando vistos focalmente como um mecanismo corpóreo. Para além disso, a necessidade de que as condições fronteira, que limitam a operação de um conjunto de princípios de nível inferior, deva ser diferente desses mesmos princípios, significa que a mente pode ser facilmente compreendida como servindo como um conjunto dessas condições fronteira para a operação das leis da neurofisiologia. Embora com raízes corporais, as ações da mente são por consequência livres da determinação corpórea - exatamente tal como o nosso senso comum sabe que ela é livre.

TERMOS UNIVERSAIS O simples facto da biologia lidar com classes de plantas e de animais envolve indeterminações que os filósofos, durante séculos até aos nossos dias, têm tentado eliminar, mas em vão. Platão e a sua escola foram os primeiros a estranhar o facto de ao aplicarmos o nosso conceito de uma classe de coisas, continuamos a identificar objetos que são diferentes uns dos outros em cada um dos seus particulares. Se cada homem é claramente 6 A minha teoria de niveis irredutiveis remonta ao meu PersonalKnoiei’edge e tem sido dessenvolvida desde aí em várias etapas, encontrando-se uma revisão no meu livro The Tacit Dimension (Garden City, N.Y.: Doubieday, 1966). Ver também o meu artigo “Life Transcending Physics and Chemistry” (1967). Uma aplicação da teoria à relação entre o corpo e o espírito aparece no meu artigo “The Structure of Consciousness” (1965), Ambos estes artigos foram republicados em Knowing and Being, ed. Marjorie Grene (Chicago: University of Chicago Press, 1969). F. S. Rothschild antecipou a minha conclusão que a mente é o significado do corpo. Os seus escritos datam desde 1930 e aparecem sumariados em Das Zentralnervensystemals Symbol des Erlebens (Basel and New York: K. Karger. 1958), com um breve sumário em ingles em 1962: “Laws of Symbolic Mediation in the Dynamics of Self and Personality,” Annals of the New York Academy of Sciences 96 (1962): 774-84. Ele desenvolveu largamente esta ideia na psiquiatria e na neurofisiologia, onde sou incompetente para o seguir.

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distinto de qualquer outro homem e mesmo assim reconhecemos cada um deles como um homem, então qual é o tipo de “homem” que é a referência para que todos os homens sejam reconhecíveis? Não pode ser bom e mau, novo e velho, ou castanho, branco, preto e amarelo, tudo isso em simultâneo; mas também não pode ter qualquer uma dessas propriedades alternativas ou, na realidade, qualquer propriedade em particular, seja ela qual for. Platão concluiu que a ideia geral de homem se refere ao homem perfeito, que não tem propriedades particulares, e de quem os homens individuais são cópias imperfeitas, corrompidas pela existência dessas tais propriedades. A ideia platónica de homem, no entanto, incorpora o paradoxo da identificação de indivíduos diferentes, em vez de o eliminar. Uma tentativa para evitar essa dificuldade foi feita por Roscellinus há cerca de novecentos anos, através da sua proposta de nominalismo. De acordo com esta doutrina, a palavra “homem” não é mais do que o nome de uma coleção de homens individuais. Mas a indeterminação reaparece, uma vez mais, quando se pergunta como justificar o mesmo nome como etiqueta de uma coleção de indivíduos diferentes e como, para além disso, podemos continuar a rotular de uma forma continuada, à medida que o tempo passa, um número qualquer de novos indivíduos diferentes, em cada particular, de qualquer outro indivíduo anteriormente rotulado e, mesmo assim, excluir sempre um grande número de outros indivíduos que não pertencem à classe então identificada. Não será de admirar que, cerca de setecentos anos depois, Kant tenha declarado que a forma como a nossa inteligência forma e aplica o conceito de uma classe de particulares “é uma arte escondida nas profundidades da alma humana e cujos modos reais de atividade a natureza dificilmente nos permitirá descobrir”7. Ainda na filosofia atual, em 1945, F. Waismann (b) tentou uma resposta às questões consideradas insolúveis por Kant. Assinalou que os termos gerais têm uma “textura aberta” que admite diferenças nas instâncias a que se aplicam8. Mas isto apenas muda a questão, pois atribuir uma “textura aberta” a uma palavra é meramente implicar que, entre as séries infinitas de diferentes objetos, a palavra é bem aplicada a alguns objetos e não ao resto. A questão de como o fazer permanece em aberto, tal com anteriormente. Não admira que a reavaliação mais incisiva da velha questão, feita por W. V. O. Quine (c), tenha voltado às conclusões de Kant: os fundamentos pelos quais cada caso é atribuído a uma categoria empírica permanecem inescrutáveis9. 7 I. Kant, Critique of Pure Reason, trad. Norman Kemp Smith (New York: St. Martin’s Press, 1929), p. 183 (p. A141). 8 F. Waismann, “Verifiability,” Proceedings Aristotelian Society, supp. 19 (1945): 121-33. 9 Na sua contribuição para o Symposium on Logic and Psychology na Convention of the American

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Todavia, as especulações de dois milénios e meio para eliminar a indeterminação na inclusão de uma presumível instância de uma classe nessa mesma classe, parecem ter sido mal orientadas. Esta indeterminação é irredutível, mas a sua compreensão é controlada de forma segura pela integração tácita. O conhecer tácito integra habitualmente grupos de particulares no seu significado conjunto. Os membros de uma classe como uma espécie, uma família, ou uma linguagem - ou membros de qualquer outro grupo denotado por um único termo universal - possuem um significado focal, conjunto, quando vividos como indícios subsidiários de um tal significado, mesmo que o seu foco esteja quase vazio, ao contrário do objeto focal da percepção. Além de que o significado de uma classe é um aspeto da realidade, pois aponta para propriedades conjuntas dos seus membros que ainda não foram reveladas. Se o aparecimento conjunto de membros diferentes de uma classe, na conceção dessa classe, precisar do apoio de uma analogia, recordemos uma vez mais a visão binocular que une duas imagens algo diferentes numa imagem única com um carácter sensorial diferente; ou recordemos que a forma como vemos um objecto integra, entre muitos outros acontecimentos corporais, inumeráveis memórias para além da sua recoleção consciente; ou de uma metáfora que funde duas ideias díspares num potente significado conjunto, que nunca tínhamos até aí encontrado.

PRINCÍPIOS DE EXPLICAÇÃO Uma vez completamente percebida a estrutura da tríada tácita, o reconhecimento e aceitação das suas funções torna-se irresistível. Demonstraremos isso pela discussão de como a forma de produção de uma explicação científica depende da nossa propensão para ficar intrigado. Para começar devemos notar que ficar perplexo implica um juízo seletivo. Por exemplo, muitos físicos acreditam, hoje em dia, que não faz sentido ficar perplexo pelo facto de um átomo de rádio se decompor hoje e outro átomo talvez uns cinquenta anos depois, pois não há explicação para isso. No entanto, alguns cientistas opõem-se a essa visão, o que implica uma diferença fundamental de opinião. Além disso, pensa-se que é inútil ficar-se perplexo diante desses acontecimentos que, embora possam ser explicáveis por princípios, não estão ainda maduros para serem explicados, ou então não valem o trabalho de os Psychological Association em 1967, Quine atribuiu a identificação de especies de uma classe a poderes nativos por identificar e também mostrou que as caracteristicas gerais de uma classe não podem ser demonstrados. Considerou isto como um caso da inescrutabilidade das categorias. Ver também W. V. O. Quine, Word and Object (Cambridge and New York: The Technology Press of The Massachusetts Institute of Technology and John Wiley & Sons, Inc., I960), pp. 60-80.

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explicar. Há muitas variações na conveniência de ficar perplexo. Mas, em qualquer caso, uma explicação científica deve servir para dissipar a perplexidade. Mas, no entanto, o alívio da perplexidade pode-se conseguir por outras maneiras, para além da explicação, e tais casos lançam alguma luz sobre a própria perplexidade. Suponha-se que estamos perplexos pela forma como uma peça intrincada de maquinaria foi construída e pela forma como funciona, ou pela planta de um edifício onde nos perdemos. O que estamos aqui a procurar é uma compreensão da máquina ou do edifício - uma compreensão, não uma explicação. Uma tal compreensão é um tipo particular de integração tácita que ainda não foi mencionada. Os seus itens subsidiários são os particulares da entidade complexa - a máquina, ou as salas do edifício; e quando integramos estes particulares e se apresenta o seu significado conjunto, o seu aspecto perplexante transforma-se numa imagem clara. Nestes casos a nossa perplexidade é atenuada pela compreensão, que é simplesmente a nossa própria integração das partes na entidade complexa. Uma tal compreensão não é, em geral, uma imagem que se possa desenhar numa folha de papel, que habitualmente serve para elucidar o arranjo espacial tridimensional de objetos opacos, como máquinas e edifícios complexos. A anatomia de um coisa viva complexa, ou de um arranjo complexo de estratos geológicos, ou um complexo arranjo atómico em cristais também pode ser desconcertante, e só pode ser entendido por um ato de compreensão. Mas qualquer projeção plana pode apenas dar uma visão fragmentada de tais sistemas; só pela combinação de tais aspectos na imaginação é que se pode conseguir uma compreensão tridimensional do agregado. Uma tal compreensão é um facto puramente mental, como qualquer outro alvo focal, compreendendo um grande número de subsidiários. Essas compreensões diferem, no entanto, de todos os alvos focais anteriormente referidos (como os da visão estéreo, ler uma frase, tatear uma cavidade, etc.) pelo facto do alvo focal não estar separado dos seus subsidiários, mas antes coincidir, na nossa imaginação, com as suas partes. É o agregado das suas partes visto mentalmente tal como são (ou como acreditamos que sejam). Significa que a sondagem imaginativa de um agregado perplexante estabeleceu nele uma coerência inteligível, ou um significado. Se esta coerência puder ser explicada em termos explícitos, pode constituir um caso de descoberta, tal como exemplificado pela descoberta das leis planetárias por Kepler. Mas o seu âmbito também pode ser aumentado na direção oposta, até ao nível da inteligência animal, como nas experiências clássicas de Wolfgang Kohler sobre os poderes de compreensão dos chimpanzés. O chimpanzé, quando se lhe apresentou, por duas vezes, uma corda com dois nós, largos, à volta de um haste, teve consciência que a corda não se podia libertar puxando-a pelas extre-

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midades, mas precisava antes de ser desatada. Voltando ao pensamento humano, vemos que a biologia começa frequentemente com a questão “como é que funciona?” - o que é muito semelhante à forma como nós começamos quando queremos compreender uma peça de um mecanismo complexo. Além disso, já mostramos anteriormente que compreendemos as coisas vivas, o funcionamento dos seus órgãos e os mecanismos da sua inteligência, através de um ato de interiorização, que é também um ato de compreensão. Uma compreensão semelhante aparece na taxonomia, que organiza as espécies biológicas, tal como a cristalografia por raios X faz para estabelecer o grupo espacial a que pertence uma espécie cristalina. O estabelecimento de uma coerência compreensiva tem muitas formas, algumas apenas conhecidas de forma tácita, outras formuláveis de forma explícita, algumas no uso corrente, e outras que formam parte da ciência. O que nos leva de volta ao tema da explicação científica. A possibilidade de estender o reconhecimento da inferência à natureza consiste numa submissão da lei natural a uma lei mais geral, de que aquela é um caso particular. Este procedimento foi assinalado pelos filósofos modernos desde J. S. Mill até Carl G. Hempel, Hempel e Oppenheim, e Ernest Nagel como constituindo a explicação científica dos fenómenos naturais10. Mas limitar assim o estudo de uma vasta área à analise de um fragmento vai obscurecer o seu sujeito. Michael Scriven, ao criticar esta análise da explicação, sugeriu que conceitos condenados, por muitos especialistas da lógica, como “tanto psicológicos como lógicos” - por exemplo, compreender, acreditar, julgar - talvez precisem de serem repostos em circulação11. A nossa explicação atual da resolução da perplexidade, pela extensão da coerência, amplia o criticismo de Scriven. Definir a explicação de um acontecimento como a sua subsunção sobre uma lei geral deixa por explicar a sua capacidade para resolver a perplexidade e isola-a de muitos outros atos, mais fundamentais, que têm essa capacidade. A explicação tem portanto que ser entendida como uma forma particular de compreensão - uma compreensão que resolve a nossa perplexidade, ao estabelecer uma integração mais significativa de partes da nossa experiência, conseguida pela subsunção de uma lei natural sob uma lei mais geral. As consequências do esforço por uma “explicação” estritamente formal - ou seja, reduzindo a “explicação” a uma qualquer subsunção formal de uma lei natural a uma lei mais geral - são semelhantes às que vimos no caso da explicação 10 J. S. Mill, A System of Logic. Ratiocinative and Inductive (New York: Harper & Bros., 190O), pp. 332-72. C. G. Hempel, Scientific Explanation, Forum Philosophy of Science Series (Washington, D.C.: U.S. Information Agency, 1964), C. G. Hempel and P. Oppenheim, “Studies in the Logic of Explanation”, Philosophy of Science 15 (1948): 135-75. E. Nagel, The Structure of Science (New York: Harcourt, Brace & World, 1961). 11 M. Scriven, “Explanation, Prediction and Laws”, Minnesota Studies in the Philosophy of Science, ed. Herbert Feigl et al. (Minneapolis: University of Mmnesora Press, 1962), 3:172.

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behaviorista. O assunto atual do sujeito restringe-se a um fragmento que se encontrou como adequado para a formalização. Esta formalização, feita de forma estrita, produz um resultado que é estritamente vazio, por si mesmo, de qualquer relação com o assunto do sujeito; mas ao chamar-lhe uma “explicação”, estamos a imbuí-la com a memória do ato mental informal e perspicaz que era suposto substituir. Uma tal negação dos poderes mentais evita as suas consequências últimas ao usar as qualidades dos próprios poderes que pretendia eliminar. Isto pode-se chamar uma pseudo-substituição. Uma pseudo-substituição é um gesto de auto destruição intelectual que se mantem dentro de limites seguros pela sua própria inconsistência. Mencionamos esta prática na nossa crítica do behaviorismo e na simulação da integração tácita por computadores, casos em que a nossa cultura está infiltrada por esses subterfúgios intelectuais.

GENERALIZAÇÃO EMPÍRICA Se a teoria ortodoxa da explicação científica é enganadora, o tratamento da generalização empírica também o é. Sem entrar em detalhes, assinalaremos os três principais erros que resultaram das tentativas para definir a validade empírica através de critérios estritos. Primeiro, como não se conseguiu encontrar um critério empírico para produzir uma boa ideia, a partir da qual começar uma inquirição, os filósofos abandonaram virtualmente as tentativas para compreender como é que isso acontece. Segundo, tendo chegado à conclusão de que nenhuma regra formal de inferência pode estabelecer uma generalização empírica válida, negaram que qualquer dessas generalizações se possa derivar a partir de dados experimentais - enquanto ignoram o facto de que geralmente se chega às generalizações válidas por inquirições empíricas baseadas em procedimentos informais. Terceiro, afirmam que uma hipótese é formalmente refutável por uma única peça de evidência contraditória - uma revindicação ilusória, pois não se pode identificar formalmente uma peça contraditória de evidência. Assinalei estes erros em 1946, em Science, Faith and Society, e também aí desenvolvi algumas ideias acerca dos poderes informais que guiam o desenvolvimento da ciência e que sugerem critérios para aceitar os seus resultados. Subjacente a estas ideias estava a suposição de que a ciência se baseia nos nossos poderes para discernir a coerência na natureza. Este discernimento é aquilo que a vista e outros sentidos fazem, ao nível fisiológico, no ato da perceção, e generalizei esses poderes para incluir a descoberta científica. Disse que “a capacidade dos cientistas adivinharem a presença de formas como testemunhos da realidade apenas difere

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da capacidade da nossa perceção corrente pelo facto de que consegue integrar as formas que lhe são apresentadas em termos que a perceção das pessoas correntes dificilmente consegue fazer”12. Desde que isto foi escrito, tenho tentado perseguir sistematicamente a relação entre perceção e descoberta científica. Entre os autores anteriores em que se baseou o meu trabalho estiveram Poincaré, Hadamard e Polya13. A confirmação da minha posição veio mais tarde, com os trabalhos de filósofos críticos do método hipotético-dedutivo. Uma confirmação mais completa pode-se encontrar no admirável Harvard Case Histories in Experimental Science, dirigido por J. B. Conant. O livro On the structure of Scientific Revolutions, de Thomas S. Kuhn, trouxe a confirmação detalhada das minhas perspetivas, e a análise da ciência por Leonard K. Nash, The Nature of the Natural Sciences, combinou as minhas próprias visões com a de outros autores numa apresentação da ciência como uma compreensão da natureza da realidade. Alguns anos atrás tive a maravilhosa surpresa de encontrar as minhas suposições básicas em William Whewell14, filósofo do século dezanove.

DESCOBERTA CIENTÍFICA Ao discutir os primeiros cinco problemas tratados neste capítulo fomos demonstrando os poderes do conhecer tácito para algumas antigas dificuldades epistemológicas mais ou menos relacionadas com o que se poderia chamar uma “estática” do conhecimento, e também da ciência. Passando agora para uma demonstração de como estes poderes nos podem dar uma explicação para o sexto problema, mostraremos que a noção do conhecer tácito também pode trazer, com facilidade e clareza, as dinâmicas da ciência para um quadro epistemológico. Veremos que o conhecer tácito é capaz de dar sentido a um aspeto da ciência que tem resistido terminantemente a todos os esforços para a enquadrar numa formalização estrita. À medida que lidamos com a maneira como se faz a ciência, desde a antecipação de um problema até à reivindicação de uma descoberta, em termos de conhecer tácito, encontraremos mais dimensões dinâmicas no conhecer táci12 M. Polanyi, Science, Faith and Society (London: Oxford University Press, 1946; reprinted, Chicago: University of Chicago Press, 1964), p. 24 13 H. Poincaré, Science et methode (Paris: Flammarion, 1908). J. Hadamard, The Psychology of Invention in the Mathematical Field (Princeton: Princeton University Press, 1945). G. Polya, How to Solve It (Princeton: Princeton University Press, 1945). 14 J. B. Conant, Harvard Case Histories in Experimental Science (Cambridge: Harvard University Press, 1957), T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions (Chicago: University of Chicago Press, 1962). L. K. Nash, The Nature of the Natural Sciences (Boston: Little, Brown, 1963). W. Whewell, Philosophy and Discovery (London: John W. Parker, 1890).

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to, que também serão de grande valor para reunir a ciência e as humanidades. Descrevemos anteriormente como podemos fazer desaparecer o significado de uma palavra ao atender diretamente ao seu aspecto físico. Pode-se recuperar essa perda de significado avançando mentalmente para o ato de dizer algo em que essa palavra esteja incluída com o seu significado correto. Isto ilustra o princípio básico da dinâmica tácita. Mostra-nos que na realidade nenhuma instância de conhecer tácito é verdadeiramente estática. O avançar para uma intenção é um ato de imaginação. Só a imaginação pode dirigir a nossa atenção para um alvo que ainda não é suportado por elementos subsidiários. Embora o significado perdido de uma palavra esteja na memória recente, quando a nossa imaginação avança, procurando restaurá-la, este significado ainda não está presente. Mas a imaginação deve sentir que este significado perdido está disponível para poder começar uma ação que vai precisar de usar a palavra no seu significado restaurado, pois só com um impulso numa direção praticável é que a imaginação pode ter sucesso na evocação de um significado perdido. Vamos desenvolver mais este tipo de ação imaginativa. A nossa intenção para dizer algo evoca normalmente a sua expressão verbal. No entanto, a linguística moderna mostrou que a maior parte do nosso discurso consiste em frases que nunca tinham sido anteriormente usadas; foram compostas pela primeira vez para essa ocasião. Mesmo assim, quando começamos a dizer uma frase, estamos em geral confiantes de que iremos encontrar as palavras necessárias e organiza -las numa ordem que exprime o nosso pensamento. Podemos falar como falamos porque sentimos que milhares de palavras estão à nossa disposição para os nossos propósitos, e que podemos confiar nos poderes da nossa imaginação, mobilizada para este objectivo, para evocar a implementação do nosso propósito pelos recursos disponíveis, tal como a nossa intenção de levantar os nossos braços evoca a coordenação dos nossos nervos e músculos para realizar esta intenção. Aprender a dizer e a ouvir frases novas é uma ação semelhante. A nossa imaginação adianta-se a um texto novo, antes de nós próprios, para evocar uma compreensão desse texto, e habitualmente faz isso evocando e combinando os significados disponíveis que corresponem ao significado das afirmações sem precedentes com que nos confrontamos. É assim, na essência, que a imaginação funciona nas suas funções mais importantes. Esta é a forma como atua na procura da descoberta. A imaginação do cientista não anda por aí a ruminar, a formar hipóteses aleatórias para serem testadas. Começa por avançar com ideias que sente que podem ser promissoras, porque sente a disponibilidade de recursos para as defender; a sua imaginação vai depois, partir a pedra, nas direções que sente como plausíveis, pondo a nu materiais que tenham uma razoável possibilidade de confirmar essas suposições.

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A imaginação científica, ao atingir a descoberta, passa através de um típico ciclo de vida. A reivindicação, por Copérnico, de que o seu sistema era real proclamou uma visão com imensas implicações ainda desconhecidas. Durante sessenta anos esta visão ficou adormecida na mente dos homens. Foi então que a imaginação de Kepler transformou a visão de Copérnico numa antecipação nova e dinâmica. Pôs de lado, como irrealista, o fantástico sistema dos epiciclos de Copérnico e avançou para a procura das leis que refletiam os fundamentos mecânicos do modelo heliocêntrico. O seu triunfo criou um novo período de calmaria para a imaginação. Acabou, por assim dizer, um ciclo de vida. Quando a imaginação passa à ação, para iniciar uma inquirição científica, torna-se não só mais intensa mas também mais concreta, mais específica. Embora se dirija para um alvo ainda muito vazio, ele é visto como estando numa certa direção definida. O alvo representa um problema em particular, vagamente apontado, mas ainda e sempre a apontar para uma característica escondida da realidade. Uma vez selecionado o problema, a sua persecução irá recorrer a um certo número de recursos em particular, que se consideram como disponíveis. Estes recursos incluem a quantidade de mão de obra e de dinheiro necessárias para a procura. Não se pode pegar num problema sem que se sinta que as suas possíveis soluções podem valer a despesa provável. Não se chega a estas antecipações estranhamente percetivas seguindo regras, nem por acaso, nem isso é garantido por uma aprendizagem longa e rica. Apesar disso, o seu uso é comum e, sem dúvida, indispensável; nenhum cientista pode sobreviver na sua profissão a menos que faça tais antecipações com um razoável grau de sucesso. Para isso, precisa de dons excecionais. Mas esses dons, embora excecionais, são do mesmo tipo dos que estão subjacentes ao mero uso da discurso e, na realidade, são dons que se encontram a trabalhar em toda a ação humana deliberada. São intrínsecos à dinâmica de todo o conhecimento de - para, até ao mais simples ato de conhecer tácito. Na ciência, o percurso entre o problema e a descoberta pode ser longo. Tendo sido lançada uma inquirição, a imaginação vai continuar esse impulso para diante, guiada por uma sensibilidade aos recursos potenciais. Faz o seu caminho mobilizando esses recursos, ocasionalmente consolidando alguns deles em conjeturas específicas. Estas conjeturas vão depois tentar encher, até um certo ponto, a moldura do problema, até aí vazia. É um erro pensar as conjeturas heurísticas como hipotéticas afirmações bem definidas que o cientista vai testar com um espírito neutro e puramente crítico. Os impulsos consistem essencialmente em restringir o programa original da inquirição, mais amplo. Esses impulsos da imaginação podem ser muito excitantes e podem, sem dúvida, vir a revelar-se mais tarde como cruciais; porém, em geral, são bastante

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mais indeterminados do que será a descoberta final. A amplitude desta indeterminação fica algures entre a indeterminação do problema original e a indeterminação da sua eventual solução. Para além disso, a relação do cientista com as suas conjeturas é a de um compromisso pessoal e apaixonado. O esforço que conduziu a uma conjetura envolveu toda as fibras do seu corpo; a sua conjetura incorpora todas as suas esperanças. As teorias correntes da inquirição científica que ignoram o mecanismo do conhecer tácito precisam também de ignorar, e sem dúvida negar, tais compromissos. O carácter provisório e tentativo de cada passo do cientista é aí usado para mostrar que o cientista tem compromissos. Mas qualquer passo na persecução da ciência é definitivo, no sentido vital em que o tempo, o esforço, e os recursos materiais usados nessa etapa foram dispendidos em definitivo. Esses investimentos acumulam-se, com uma velocidade assustadora, ao longo de toda a vida profissional do cientista. Pensar que os trabalhadores científicos tentam alegremente isto e aquilo, mudando calmamente de percurso após cada falhanço, é uma caricatura de uma busca que consome toda a pessoa de um homem. Qualquer interrogação sobre uma conjetura procura necessariamente a sua própria confirmação. Poder-se-ia então supor que um problema se resolve eventualmente pela descoberta de uma coerência na natureza, cuja existência oculta se vislumbrou em primeiro lugar num problema e que depois se foi tornando cada vez mais evidente durante a persecução do problema. Mas isto deixaria de fora um outro fator, cuja identificação se deve a Henri Poincaré. Num ensaio clássico incluído em Science et méthode descreveu dois estádios no processo de encontrar uma ideia promissora para resolver um problema científico15. O primeiro estádio consiste em torturar o cérebro com sucessivas arremetidas da imaginação, enquanto o segundo, que pode acontecer horas depois de terem cessado os esforços do primeiro estádio, é o aparecimento espontâneo da ideia pela qual se tinha lutado. Poincaré diz que este processo espontâneo consiste na integração de algum do material mobilizado pelos impulsos da imaginação; também nos diz que estes impulsos não serviriam para nada se não fossem guiados pelos especiais dons antecipatórios do cientista. Parece portanto plausível assumir que as duas funções da mente funcionam em conjunto, desde o princípio até ao fim da inquirição. Uma são os poderes deliberadamente ativos da imaginação; a outra é um processo espontâneo de integração, a que podemos chamar intuição. É a intuição que sente a presença de recursos escondidos para resolver um problema e que lança a imaginação na sua perseguição. É também a intuição que forma as nossas conjeturas no decurso dessa perseguição e que eventualmente seleciona as peças relevantes da evidência, a partir do material mobilizado pela imaginação, e que as integra na solução do problema. 15 Science et méthode, pp. 50-63.

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Mas, então, e as medidas, os cálculos e as fórmulas algébricas usadas nas conjeturas e nas formulações da ciência? É claro que são essenciais; mas, tal como o uso da linguagem é uma operação tácita, quer no falar da linguagem como na nossa compreensão do que é dito pelos outros, também todo o restante pensamento explícito é uma operação tácita - por exemplo, as medidas. As medidas só podem ser desenvolvidas e compreendidas por uma operação tácita. Baseiam-se totalmente no conhecer tácito e sem isso são literalmente sem significado. Todo o conhecimento é, portanto, ou tácito ou com as raízes no conhecer tácito. Devemos agora estar em situação de ver que todo o nosso conhecimento é inevitavelmente indeterminado. Primeiro que tudo, e como vimos, a relação que o conhecimento empírico tem com a realidade não é especificável. Não há nada, em qualquer conceito, que aponte objetivamente ou automaticamente para qualquer tipo de realidade. A relação de um conceito com a realidade só se estabelece por um juízo tácito baseado em compromissos pessoais, e somos incapazes de especificar todos esses compromissos pessoais, ou mostrar como é que relacionam um dado conceito com a realidade, e assim permite-nos confiar nele como conhecimento. Somos incapazes de fazer isso porque habitamos nesses compromissos básicos e somos incapazes de focar neles a nossa atenção, sem destruir a sua função subsidiária. A coerência que vemos quando habitamos nos particulares que o compõem é que nos faz ver focalmente. Quando nos focamos sobre eles, tornando-os entidades explícitas (como no exemplo do gato), mudamos o seu carácter fenomenal, e descobrimos que, na sua nova forma, não implicam logicamente - ou seja, implicam explicitamente ou de uma maneira isolada - a realidade que descobrimos que eles implicam, através da vivência de uma inferência tácita. Também por estas mesmas razões, como já vimos, as nossas regras para estabelecer coerências verdadeiras - ao contrário das ilusórias - são e devem continuar a ser indeterminadas. Todas as regras que temos devem ser aplicadas, como é claro; e, para o fazer, podemos ter regras adicionais para a sua aplicação. Mas não podemos continuar a ter regras específicas para a aplicação de regras específicas ad infinitum. Nalgum ponto temos que ter “regras” de aplicação (se assim se pode dizer) que não conseguimos especificar, pois precisamos simplesmente de habitar nelas de uma forma subsidiária. Fazem parte dos nossos compromissos mais profundos. Mas, por essa mesma razão, não são especificáveis. Logo, em última análise, não podemos especificar os fundamentos (tanto metafísicos como lógicos ou empíricos) em que nos baseamos para declarar o nosso conhecimento como verdadeiro. Estando comprometidos com tais fundamentos, vivendo neles, estamos a projetar-nos a nós próprios para aquilo que acreditamos ser verdadeiro a partir ou através desses fundamentos. Continuam pois indeterminados.

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O próprio processo da integração tácita que descobrimos tão ubíquo é, quando voltamos a nossa atenção diretamente para ele, como temos vindo a tentar fazer neste trabalho, também indeterminado e não especificável. Não podemos descrever este processo por etapas explícitas, e é por essa razão, como fizemos notar, que nunca uma máquina “pensante” poderá ser um substituto adequado, ou mesmo um modelo, para a mente humana. O nosso habitar nos particulares, nos indícios subsidiários, apenas resulta na sua síntese num objeto focal através de um ato da nossa imaginação - um salto sobre um hiato lógico; isto não acontece através de fases operacionais especificáveis, explícitas, lógicas. A profundidade vista através de um estereoscópio é uma experiência fenomenal nova, não dedutível no seu carácter fenomenológico único a partir dos indícios integrados pelo processo de integração tácita, tal como o conceito heliocêntrico dos planetas “visto” por Copérnico era uma experiência conceptual nova, não dedutível a partir dos dados disponíveis. Podemos apenas apontar para a existência da integração tácita na nossa experiência. Seremos para sempre incapazes de lhe dar uma especificação explícita. Mas há uma outra indeterminação, não tão claramente envolvida naquilo que temos vindo a discutir, mas apesar disso importante para uma visão adequada do conhecimento e da ciência. Quando modificamos os nosso juízos acerca de alguma coisa, estamos a fazer o uso subsidiário de certos princípios novos - o que equivale a dizer que vivemos neles. Por isso, na realidade, nós fazemos mudanças existenciais em nós próprios quando alteramos os nossos juízos. Porque habitamos literalmente em princípios diferentes daqueles em que nos sentíamos em casa, e portanto alteramos o sentido da nossa vida. Mas estas alterações não são completamente especificáveis. Primeiro que tudo, não somos capazes de focar a nossa atenção nelas e de as explicitar. Logo, é mais verdadeiro dizer que modificamos os nosso fundamentos ao fazer novos juízos do que dizer que modificamos explicitamente os fundamentos e que depois fizemos novos juízos através do seu uso deliberado e explícito. Estes novos juízos parecem-nos antes mais significativos do que os antigos e, por isso, comprometemo-nos com eles - e assim com os novos princípios em que se fundamentam, de forma indeterminada. Segundo, mesmo que pudéssemos saber o que são esses novos princípios, com os quais nos comprometemos, as consequências da sua adoção nas nossas vidas deve continuar indeterminada; não podemos aplicá-los às situações em que os vamos aplicar antes de as encontrar. Estas aplicações serão, cada uma delas, um ato da nossa imaginação criativa que nos pucham, e à nossa situação nesse momento, para um certo tipo de integração significativa. Não podemos fazer essas “descobertas” antes de na realidade as ter feito. Mostramos portanto que os processos de conhecer (e também os da ciência) não se assemelham de forma alguma com a realização impessoal de uma obje-

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tividade imparcial. Baseiam-se integralmente (desde a seleção de um problema até à verificação de uma descoberta) em atos pessoais de integração tácita. Não se baseiam em operações explícitas da lógica. Logo, a inquirição cientifica é um exercício dinâmico da nossa imaginação e baseia-se nos compromissos e convicções acerca da natureza das coisas. É um ato fiduciário. Está muito longe de um ceticismo sobre si próprio. Depende de convicções firmes. Nem nunca deve dar origem ao ceticismo. O seu ideal é a descoberta da coerência e do significado naquilo que acreditamos que existe; não é a redução de tudo a um amontoado de átomos sem sentido ou o resultado acidental de um equilíbrio de forças. A ciência não é portanto a fonte cristalina e pura de todo o conhecimento fiável e coerente, como há muito se tem vindo a presumir. O seu método não é o distanciamento, mas antes o envolvimento. Assenta, e não menos do que outras formas de atingir um significado, sobre compromissos que partilhamos pessoalmente. Fazemos uso deles na ciência, por maneiras criativas e imaginativas que envolvem a nossa própria pessoa. Como vimos, é essencial uma certa medida de interiorização, até mesmo para os significados que sintetizamos na matemática e na física. Mas, para compreender as coisas vivas, devemos habitar mais profundamente nos sujeitos do conhecimento - e ainda mais profundamente quanto, a cada passo, procuramos conhecer animais superiores, até que tentamos compreender o mais superior de todos os animais, o homem. Assim, mostrou-se que o ideal da objetividade pura no conhecimento e na ciência é um mito. Será talvez um mito inócuo se a maioria das suas implicações não forem por nós seguidas, mas será certamente venenoso se o forem. Porque a implicação de que a verdade acerca do comportamento humano precisa de um ponto de vista amoral é, como vimos, parte daquilo que são as nossas inversões morais. A outra parte, o nosso atual perfecionismo moral, é algo que ainda teremos que investigar. Mas primeiro tiraremos uma conclusão importante com base no que temos vindo a discutir nos últimos dois capítulos. A compreensão da ciência a que chegamos nos capítulos precedentes permitenos ver que o estudo do homem em termos humanísticos não é anticientífico, pois todas as integrações significativas (inclusivé as obtidos na ciência) mostram uma estrutura triádica consistindo no subsidiário, no focal e na pessoa, e todos são inescapavelmente pessoais. Fizemos notar que esta observação pode ser entendida como constituindo um primeiro passo para unir a distância que supostamente separa o conhecimento científico do conhecimento, atitudes e métodos humanísticos. Considerando o que vimos neste capítulo, podemos com certeza ligar completamente essa distância. Vemos agora que não só o científico e o humanistico envolvem participação pessoal, como também ambos envolvem o uso ativo da imaginação. Sempre foi claro para quase toda a gente que as várias humanidades

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estavam profundamente envolvidas com a imaginação; mas que a imaginação tenha um papel essencial na ciência é que raramente tem sido assinalado. Muitos dos pensadores modernos têm suposto que a ciência é um método de verificar “factos” objetivos, puros e duros. Admite-se que algumas vezes as inquirições científicas têm sido obscurecidas de maneira adventícia pelo funcionamento da imaginação de alguns cientistas, mas apenas (seria de esperar) numa base temporária. A ciência tem sido habitualmente pensada como lidando com factos, e as humanidades com valores. Mas como, neste quadro de referência, os valores devem ser totalmente diferentes dos factos, pensou-se que as humanidades deviam lidar apenas com fantasias. Os valores passaram então a ser entendidos como produtos da fantasia, não dos factos, e portanto não fazendo parte do conhecimento factual. Esta visão acabou por se mostrar como sendo uma base para assumir tacitamente que só o significado obtido na ciência (presumível única fonte de descobertas de factos objetivos) poderia reivindicar, para esses significados, uma relação com a realidade - se é que os significados alguma vez o possam fazer. Aos significados obtidos nas humanidades faltava, pela sua própria natureza, qualquer referência possível à realidade. Eram simples obras da imaginação, brilhantes em muitos casos, muitas vezes surpreendentes e interessantes, intrigantes e agradáveis, mas apesar de tudo inescapavelmente apenas clarões efémeros de luzes que nunca estavam - ou podiam estar - sobre a terra ou o mar. A lógica desta conclusão parece, de facto, ser bastante inescapável se se assumir que a ciência, no seu estado perfeito, é isenta de imaginação - um trabalho de puro distanciamento e objetividade, apenas e unicamente orientada pelos factos. Portanto, essa permanente castanha da filosofia moderna, o esforço para derivar todos os valores a partir dos factos, pareceria ser tão fútil como os esforços ridículos da quadratura do círculo ou da construção da máquina do movimento perpétuo. Pode-se, no entanto, suspeitar que se mantem viva devido a uma necessidade forte para considerar os nossos significados humanistas como algo mais do que fantasias efervescentes e voluntariosas da nossa imaginação. Se, no entanto, como estes capítulos tentaram mostrar, a participação pessoal e a imaginação estiverem essencialmente envolvidas tanto na ciência como nas humanidades, então os significados criados nas ciências não ficam em posição mais favorável em relação à realidade do que os significados criados pelas artes, pelos juízos morais, e pela religião. Pelo menos não podem estar numa posição mais favorável, na sua relação com a realidade, com base numa suposta presença, ou ausência, da participação pessoal e da imaginação numa posição mais do que na outra. Ter, ou referir-se, à realidade - nalgum sentido - pode portanto ser uma possibilidade para ambas as formas de significados, pois a dicotomia entre factos

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e valores não parece ser mais uma distinção real sobre a qual se deva basear qualquer conclusão. Seguramente, deve existir alguma diferença entre estes dois tipos de significados. Vamos por isso fazer uma nova análise das várias formas de significados humanísticos, em termos da tríada que vimos operar nos significados obtidos pela perceção corrente e pela ciência. A diferença real entre os significados científicos e os das humanidades deverá seguramente vir à luz do dia durante uma tal análise. Mais importante do que a perceção desta diferença, no entanto, deve ser a possibilidade de conhecermos as realidades estabelecidas no mundo pelos significados humanísticos, que uma tal análise nos possa proporcionar, à medida que encontramos os fundamentos para a validade desses significados e a vasta importância que para nós possuem, através da significância que são capazes de criar nas nossas vidas.

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O

homem vive nos significados que é capaz de discernir. Prolonga-se a si próprio naquilo que sente como coerente, e aí sente-se em casa. Estes significados podem ser de muitos tipos e variedades. Os homens acreditam na realidade desses sentidos sempre que se apercebem deles - a menos que algum mito intelectual em que tenha acreditado negue a realidade de algum. O homem fica então numa posição difícil consigo próprio acerca desses significados em particular. Como chamamos “real” a qualquer entidade significativa que esperamos que se venha a manifestar no futuro, por formas inesperadas; por assim dizer, pensamos nela como algo que tem uma “vida” própria. Não é portanto algo que nós pensemos como uma mera aparição, resultante dos efeitos conjugados de muitas causas heterogéneas e inteiramente sujeito às futuras manifestações independentes dessas causas separadas - tal como acreditamos que são as constelações de estrelas. As estrelas de uma constelação parecem, a partir da nossa posição no universo, formar um grupo; mas nós acreditamos que esse grupo nunca se manifestará por si próprio, como um grupo, por outras formas inesperadas, pois as nossas teorias astronomicas (em que acreditamos) dizem-nos que essas estrelas não formam um sistema dinâmico e interativo. Não acreditamos, portanto, em muitas das coerências que vemos à nossa volta, se as nossas teorias nos disserem que não são reais. Podemos acreditar que são só aparências, ilusões, criadas pelo acaso das interações de muitas causas separadas. Os significados religiosos podem ser assim por nós reduzidos a amontoados de necessidades psicológicas e de causas históricas; os significados éticos a amontoados de necessidades económicas influenciadas pela história; e os significados estéticos a amontoados de necessidades biológicas - por vezes psicológicas. Embora o senso comum do Bispo Butler lhe dissesse que tudo é aquilo que é e não outra coisa, as nossas experiências com ilusões desenvolveu um senso comum que também sabe que nem tudo é sempre aquilo que “é” (ou seja, nem sempre o que nos parece ser). Logo, não conseguimos evitar a necessidade de recorrer a juízos pessoais para decidir quando é aquilo que é, e não outra coisa qualquer. E, como vimos, o nosso juízo pessoal é aquilo que é por causa dos indícios que vivemos, incluindo, como é óbvio, as visões gerais com que nos comprometemos, acerca da natureza das coisas e da natureza do conhecimento. Devemos, portanto, adotar um tipo de visões gerais acerca da natureza das coisas e da natureza do conhecimento que não nos impeça de acreditar nas coerências que, de facto, nós vemos.

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Vimos como podemos adotar visões não obstrusivas sobre as perceções e as várias coerências da natureza que se abrem aos nossos modos genuínos de inquirição científica. Mas as coerências que se julgam artificiais, não naturais, têm tido muitas dificuldades para serem vistas e respeitada como reais, nos nossos tempos, porque (1) parecem ser criações nossas, não sujeitas ao controlo externo da natureza - e portanto serem criaturas completamente produzidas pelos nossos caprichos e desejos subjetivos - e (2) só as coisas tangíveis são supostas serem reais. Vimos, no entanto, que coisas tais como as classes e as mentes, por exemplo, podem ser aceites como reais, mesmo que não sejam tangíveis. Mas classes e mentes não são entendidas como criações do homem. Os significados - as entidades coerentes - que conhecemos, como o Moisés de Miguel Ângelo, a nona sinfonia de Beethoven, a virtude da justiça, e o Deus dos cristãos, não são só intangíveis - são vistas pelo homem contemporâneo como criações humanas livres - não sujeitas a correção pela natureza. Parece não ser possível que tenham qualquer existência, ou ser, na ausência do homem. Logo, parece que só existem no sentido de estarem presentes, como tais, na mente de alguém e no sentido de serem o efeito de causas naturais muito heterogéneas. Podem-nos parecer importantes e dignos de respeito. Mas, e se supusermos antes que são resultados adventícios de motivações inferiores, ou eventualmente, das reações dos átomos? E se supusermos antes, por exemplo, que a justiça, embora pretenda ser uma espécie de equidade universal, na realidade é apenas a justiça que serve os interesses da classe dominante e proprietária? Se supomos que o seu significado real, a sua base na realidade, é o interesse do mais forte, como Trasimacos disse a Sócrates, há muito tempo, podemos então continuar a respeitá-lo? Qualquer candidato a reducionista que respondesse “Sim, podemos, se pudermos mesmo assim ver que é justo para todos - se o seu significado puder ser visto como sendo exatamente assim” está a afirmar que uma coerência que ele possa ver, de facto, tem na realidade o estatuto que ele parece ver que ela tem. Mas, então, precisa também de admitir que tem um estatuto que não pode ser torturado por uma redução a outras causas ou condições de menor importância do que ele próprio, simplesmente porque uma tal redução faria desaparecer o seu significado. Nessas circunstâncias, deveria simplesmente abandonar a sua teoria reducionista. Deveria ser capaz de ver que, de facto, tinha desistido dela, neste caso. Se, contudo, as suas atitudes científicas estiverem de tal forma imbuídas na sua mente que não consegue separar-se delas, pode tentar viver em dois mundos. Pode acreditar que (1) as criações do homem, que ele tanto valoriza, são na realidade redutíveis a causas e estados do ser que são inferiores àqueles que lhe parece que possui. Mas pode também acreditar que (2) existem causas que geram, na sua mente, a aparência de que esses significados têm um valor superior e, portanto, pode tentar continuar a tratar esses significados com respeito. Mas

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dificilmente pode ajudar a reconhecer, pelo menos tacitamente, que então está, na realidade, a permitir que seja enganado quando assim os honra - que está voluntariamente a permitir que sofra as ilusões da sua grandeza. O perigo é que um tal homem possa também ser induzido num certo ponto, como vimos no primeiro capítulo, a sacrificar esses significados às “realidades” - às implacáveis exigências de um marxismo ou de um fascismo, ou às não menos implacáveis exigências de qualquer outra outra corrente de engenharia social mais na moda; pois não conhece outra posição filosófica que suporte a sua realidade, a não ser em termos desses elementos inferiores, aos quais são supostamente redutíveis. Para manter esses significados seguros na reverência que lhe parecem pedir, o homem contemporâneo precisa de uma teoria desses significados que explique como é que a sua coerência não é menos real do que as coerências percetivas ou científicas que ele aceita tão facilmente. Precisa de ver como é que o seu óbvio envolvimento pessoal com esses significados é necessária e legitimamente parte e parcela da realidade que realmente têm, e que o seu envolvimento pessoal não é de forma alguma uma razão para olhar para eles como meras fantasias subjetivas. Estes significados não lhe parecerão então como meras aparências. Parecerão ser na verdade aquilo que “são”. Ou seja, acreditará que são aquilo que honestamente lhe parecem ser. Parece, portanto, que precisamos de estender a nossa epistemologia às coerências que são habitualmente descritas como “artificiais”, por oposição a “naturais”. Comecemos pela construção dessa extensão, para explicar o tipo de coerência e de poder para nos emocionar que existe numa metáfora. O uso mais elementar da linguagem encontra-se no uso de um nome para designar coisas, como uma pessoa ou um edifício em particular, e a forma mais simples para explicar como é que um nome particular fica associado a uma pessoa ou objeto, em particular, é assumir que isso é o resultado de ouvir a palavra dita à vista da pessoa ou do edifício. Dizem-nos a palavra na presença do objeto, e a coincidência das duas experiências fica associada na nossa mente, da mesma forma como as associações se formam habitualmente entre duas coisas que são muitas vezes vistas ou ouvidas juntas. Esta explicação do sentido associado a um nome é tão plausível que ele é muitas vezes aceite, desde que as leis da associação começaram a ser conhecidas no século dezoito. Mas, como vimos, uma palavra tem um significado. Relaciona-se com algo mais, que é o seu sentido. Uma palavra e o seu objeto não são parceiros iguais numa associação. A explicação de uma linguagem com base em associações está, por isso, fundamentalmente errada. Os parceiros iguais numa associação são, de facto, fáceis de distinguir na rela-

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ção dos nomes com os seus objetos. Ao entrar em Trafalgar Square, em Londres, vê-se a National Gallery e a coluna de Nelson. Depois de ter olhado para eles, cada um deles pode igualmente recordar o outro. Mas suponha-se que se apercebe de um guia turístico a apontar para a coluna de Nelson; repara-se na coluna e no dedo do guia de duas maneiras diferentes. A coluna é interessante por si mesma, mas o dedo do guia só é interessante pela sua capacidade para dirigir a atenção para algo mais para além de si próprio. Se o guia disser à sua audiência o nome da coluna, os membros da audiência não estão interessados nos sons que ele profere, mas sim na capacidade desses sons para dirigir a sua atenção para algo diferente, por exemplo, a coluna. Lembrar-se-ão tanto da coluna como do seu nome, mas a coluna será mais tarde recordada pelo seu próprio interesse, enquanto que o nome será apenas recordado por causa do seu significado, que é a coluna. A palavra em uso não tem de facto interesse por si própria, como um objecto; nisso é muito diferente do objecto que nomeia, o qual é interessante por si próprio como um objecto. Isto refuta a teoria do significado verbal como uma associação igual da palavra e do objeto e confirma antes a nossa visão de que o significado consiste numa relação de - para. Esta conclusão foi já, em certa medida, antecipada por autores importantes. A conceção clássica de uma linguagem como um trabalho criativo da mente não sugere uma relação puramente associativa entre a palavra e o objeto. Edward Sapir, ainda a escrever segundo o espírito desta filosofia, rejeita enfaticamente a ideia de que o discurso possa ser formado por associações. Bertrand Russel observou a peculiar “transparência da linguagem”, que é um aspecto da apreensão subsidiária das palavras pelo orador, em contraste com a consciência focal daquilo que as suas palavras significam. Rewin Strauss e Susanne Langer falaram, cada um à sua maneira, da modéstia do sinal relativamente aos assuntos que designam. Estas reflexões ajudam a suportar a nossa visão de uma estrutura de - para na linguagem usada para designar objetos1. As palavras, compreendidas desta forma, funcionam como indicadores, apontando de uma forma subsidiária para aquela integração focal com que se relacionam. Algumas palavras podem ser assim substituídas por sinais rodoviários, indicando o caminho, ou por mapas ou desenhos de engenharia, ou por fórmulas matemáticas, que servem para nos ajudar a encontrar o nosso caminho entre as coisas. Estes sinais, mapas, e fórmulas servem subsidiariamente como indicações, tal como as palavras denotativas o fazem: e têm em comum com estas palavras 1 Edward Sapir, Culture, Language, and Personality (Berkeley: University of California Press, 1956), pp. 8-15. Bertrand Russell, An Inquiry Into Meaning and Truth (New York: W. W. Norton & Co., 1940), p. 84. Susanne K. Linger, Philosophy in a New Key (Cambridge: Harvard University Press, 1942). pp 58-59. Erwin W. Strauss, Phenomenological Psychology (New York: Basic Books, 1966), pp. 183-84.

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que, quando vistas por si próprias (não como nos aparecem quando estão a servir para a sua função de relação com algo mais), há pouco interesse que se possa encontrar nelas. Podemos agrupar todos estes subsidiários como indicadores que apontam para algo que tem interesse intrínseco e reconhecer que, por contraste, eles não têm esse interesse intrínseco. Podemos dar a forma de um diagrama a esta relação: Podemos ver os subsidiários (S) como relacionados (→) com o seu significado focal (F). S→F Podemos então notar que, nos casos de indicação, os subsidiários (sinais, como palavras, mapas, ou fórmulas matemáticas) não têm interesse funcional, enquanto que aquilo em que se baseiam está na parte da operação que apela ao nosso interesse intrínseco (ii). Isto conduz-nos a toda uma classe de operações de conhecer tácito que podem ser convenientemente representadas como -ii +ii S→F Nestes casos, que incluem praticamente todos os tipos de coerências de que temos estado a falar (integrações de perceções e de conhecimento concetual), os indícios subsidiários não são de interesse intrínseco na transação (-ii). É o objecto da atenção focal que possui interesse intrínseco (+ii). É o que está na ponta da cana que tem interesse para o homem cego, não as impressões na palma da sua mão. É o significado de uma comunicação por palavras que prende a nossa atenção, não as palavras por si. De facto, um grande linguista pode mesmo não ser capaz de mais tarde dizer em que linguagem é que uma comunicação particularmente interessante chegou até si! Estas integrações podem ser chamadas integrações centradas na pessoa, porque fazem-se a partir da pessoa como um centro (o que inclui os indícios subsidiários em que vivemos) para o objecto na nossa atenção focal. Listaremos, como um sumário, doze tipos de integrações que são centradas em pessoas, no sentido de que os indícios subsidiários não têm o interesse intrínseco que o objecto focal possui: • Tipos de integrações centradas em pessoas: • Indícios sensoriais fundidos na perceção • Duas imagens da retina que se fundem numa visão tridimensional

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• • • • • • • • • •

Duas imagens estéreo que se fundem numa visão tridimensional Movimentos deliberados fundidos numa performance intencional Ações tomadas para causar que algo aconteça Estabelecimento de relações entre as partes e o todo Estrutura de uma entidade complexa, por exemplo, uma fisiologia Série de integrações que formam uma estratificação Uso de indícios para estabelecer a realidade de uma descoberta Uma simulação identificada com um objeto simulado Reconhecimento de um membro de uma classe Uso de um nome para designar um objeto

Passemos agora a considerar os significados em que os indícios subsidiários não funcionam (como nos casos anteriores) apenas como meros indicadores que apontam para algo mais. Neste segundo tipo de significados estão os indícios subsidiários que têm interesse intrínseco para nós, e que entram nos significados de tal maneira que nós somos arrebatados por esses significados. Envolvemo-nos de uma maneira muito diferente da forma como nos envolvemos nas integrações centradas nas pessoas. O seu envolvimento é de uma natureza tal que a relação de “assentar em” (ou “relacionar-se com”) e a localização do interesse intrínseco se torna muito mais complexa. Olhemos primeiro para o tipo de sentido em que os indícios subsidiários aqueles de onde atendemos focalmente para as coisas - são de grande interesse intrínseco, enquanto que aqueles para os quais atendemos focalmente são de pouco ou nenhum interesse intrínseco. Seja olhar para uma bandeira, ou para uma medalha, ou para a pedra tumular de um grande homem. Como objetos, estas coisas não têm grande interesse substancial para nós; mas, por exemplo, o que funciona subsidiariamente na relação com uma bandeira, é de grande interesse intrínseco para nós, pois inclui a nossa consciência completa como membros de uma nação. Quando olhamos para uma bandeira nacional numa ocasião solene, esta peça de pano de outro modo sem significado torna-se num espetáculo emocionante, e até mesmo num objecto sagrado para algumas pessoas. Recorde-se como as relações linguísticas de - para são semelhantes à integração das partes num todo. Um nome fica, em certa medida, associado ao seu objeto e torna-se parte dele. Há uma ligação semelhante entre uma nação e a sua bandeira solenemente desfraldada: a existência da nação, as nossas memórias difusas e sem limites dela, e da nossa vida nela, incorporam-se na bandeira - tornam-se parte dela. A estrutura do significado de medalhas, pedras tumulares, e outras coisas desse género á bastante semelhante. Estes objetos da nossa atenção focal, intrinsecamente sem interesse, não indicam algo, tal como fazem outras coisas intrinsecamente sem interesse, tal

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como os sons usados subsidiariamente como palavras para denotar objetos interessantes. Bandeiras e pedras tumulares indicam um país ou um grande homem, mas não se baseiam neles como as palavras se baseiam sobre os seus objetos; antes apoiam esses objetos interessantes, o que quer dizer que os simbolizam. Podemos representar a simbolização do seguinte modo, para mostrar o seu contraste relativamente à indicação de interesse intrínseco: +ii -ii S→F As posições dos sinais mais e menos foram invertidas na simbolização porque os indícios subsidiários são mais interessantes, para nós, do que os objetos focais. O objeto focal, na simbolização, ao contrário do objecto focal numa indicação, tem interesse para nós apenas pela sua ligação simbólica com os indícios subsidiários, através dos quais se torna num objecto focal. O que se relaciona com uma bandeira, tal como uma palavra se relaciona com o seu significado, é a integração de toda a nossa existência vivida num país. Mas isto quer dizer que o significado de uma bandeira (o objeto da nossa atenção focal) é o que é porque nós pomos aí toda a nossa existência. Rendemo-nos àquela “peça de pano” (que seria como a bandeira seria percebida se tentássemos ver nela a indicação de um significado reconhecido). Só por virtude da nossa entrega é que aquela peça de pano se transforma numa bandeira e, portanto, se torna num símbolo do nosso país. Alguns dos elementos subsidiários associados à bandeira, e que lhe dão significado, são a existência da nossa nação e as nossas memórias difusas e ilimitadas da nossa vida nela. No entanto, estes não só assentam na bandeira, tal como outros indícios subsidiários assentam sobre os seus objetos focais, como também, na nossa entrega à bandeira, passam a incorporar-se nela. Logo a bandeira reflete os seus subsidiários, fundindo as nossas memórias difusas. Não podemos usar uma seta linear para exprimir esta característica no nosso diagrama, pois essa seta indica apenas uma associação linear e unidirecional. Devemos fazer um ciclo na seta que simbolize a forma como a nossa perceção do objecto focal também nos leva na direção (e assim nos proporciona uma incorporação perceptual) daquelas memórias difusas da nossa vida (ou seja, de nós próprios), que começam por recair sobre o objeto focal. É assim que podemos dizer que o símbolo nos “arrebata”. Ao rendermo-nos, como pessoas, somos apanhados pelo mecanismo do símbolo. Devemos, por isso, redesenhar o nosso diagrama:

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A integração da nossa existência: +ii -ii S↬F Esta seta ondulada indica a incorporação de nós próprios - da nossa existência tal como vivida no país - na bandeira. Na rendição de nós próprios à bandeira, à medalha ou à pedra tumular - seja o que for que mude os nossos objetos focais em símbolos da nossa pátria, de um grande feito ou de uma pessoa amada - estamos a conseguir a integração daquelas partes difusas de nós próprios que estão relacionadas com essas pessoas ou coisas. A nossa rendição a esses símbolos é, ao mesmo tempo, sermos arrebatados por eles. Para isso, esta coerência não se atinge “em série”, como tivemos que a discutir: primeiro isto, depois aquilo, etc. É um todo, cujos vários aspectos que discutimos são as partes funcionalmente inter relacionadas. Estas partes, ou momentos, operam de imediato, uns em termos dos outros. A nossa rendição e o nosso arrebatamento são dois lados da mesma moeda e ocorrem no mesmo instante. Não nos rendemos a um símbolo se não formos arrebatados por ele, e não seremos arrebatados se não nos rendermos. É uma realização imaginativa e holística do significado, não mecânica, nem em série. A simbolização envolve portanto algo muito diferente da designação ou da indicação. Designar os Estados Unidos pelo seu nome é estruturalmente o oposto de simbolizar os Estados Unidos por uma bandeira. Designar os Estados Unidos é integrar um nome com o país, enquanto que simbolizar os Estados Unidos por uma bandeira é integrar o país numa bandeira. É verdade que os símbolos que temos vindo a considerar são todos coisas não articuladas (pano, peças de metal, pedras), enquanto que os indicadores de que falamos são palavras; mas esta diferença não explica a diferença na forma como se comportam. Quando passarmos para a poesia e depois para o ritual e para o mito, veremos que continua a existir a mesma diferença entre a indicação e a simbolização, mesmo quando ambos se concretizam através de palavras. Precisamos de formar o conceito de uma classe de significados que cubra todos os casos artificiais de significado, como distintos dos significados da perceção, competências hábeis e as tais relações entre as partes e o todo que encontramos na natureza. Vamos por isso usar a palavra “semântico” para todos os tipos de significados artificiais - ou seja, todos os que são inventadas pelo homem. O uso corrente do termo “semântico” limita-o aos significados obtidos pela linguagem; mas aqui estamos a estender o termo para incluir todos os significados criados pelo homem. Não chamaremos então “semânticos” aos significados substancialmente diferentes, mas aparentados, que resultam dos nossos poderes treinados da perceção ou das nossas competências produtivas. Estes serão apenas chamados

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perceção, ou objetos ou ações conseguidas pelas nossas competências produtivas. Temos portanto, e até agora, dois tipos de significados semânticos: indicação e simbolização, que são o inverso um do outro, no que respeita à localização do interesse intrínseco. Atingiremos em breve o assunto principal deste capítulo, um outro tipo de significado semântico, chamado “metáfora”, em que veremos que tanto S como F podem ter interesse intrínseco. No entanto, para já, note-se que a diferença essencial entre indicação e todo o grupo de significados de que a simbolização é um dos tipos, reside na relação da própria pessoa com todo o processo. A participação pessoal e a interiorização de indícios, embora seja certo que estão sempre presentes em todos os tipos de indicações, tendem aí a integrar estes indícios em entidades que parecem serem projectadas a partir da pessoa, como um centro. A perceção, por exemplo, é sempre de coisas vistas da pessoa como centro. A pessoa nunca é arrebatada por uma indicação; nunca se rende ao objecto focal. Como notamos, as indicações são sempre centradas em pessoas. Por contraposição, a simbolização é uma doação da pessoa. Ou seja, o símbolo, como um objeto a nossa apreensão, não é simplesmente estabelecido pela integração de indícios subsidiários dirigidos desde a pessoa para o objecto focal; é também estabelecido pela rendição de memórias e de experiências difusas da pessoa nesse objecto, dando-lhe assim uma personificação visível. Esta personificação visível serve como um ponto focal para a integração destes aspetos difusos da pessoa numa unidade sentida, uma compreensão tácita de nós próprios como pessoas vivas, apesar das múltiplas incompatibilidades que existem na nossa vida, tal como vivida. Em vez de ser uma integração centrada na pessoa, um símbolo torna-se antes numa integração doada pela pessoa, uma integração em que não só o simbolo se integra como a pessoa, como esta também se integra à medida que é arrebatada pelo símbolo - ou dado ao símbolo. Estamos agora prontos para avançar para a compreensão da metáfora. Temos o terreno já bem lavrado, pois já muitos pensadores tentaram explicá-la. Há muito tempo, Aristóteles notou que “é sem dúvida uma grande coisa que o poeta seja capaz de fazer o uso apropriado destas formas poéticas, assim como de palavras estranhas e compostas”. Disse que “metáfora consiste em dar à coisa um nome que pertence a algo mais”2. Owen Barfield, nos nossos dias, fez eco disso quando escreveu que metáfora é “dizer uma coisa e querer dizer outra coisa”3. Mas fica por explicar a razão porque “trocar os nomes” de algo, desta forma, nos pode tocar tanto. Aristóteles pode ter deixado entrever uma razão para isso quando 2 Aristotle, Basic Works, ed. Richard P. McKeon, trad. Ingram Bywater (New York: Random House, 1941), pp, 1479 (1459a), 1476 (1457b). 3 Owen Barfield, “Poetic Diction and Legal Fiction,” in Essays Presented to Charles Williams (Oxford: Oxford University Press, 1947), p. 111.

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disse que “uma boa metáfora implica uma compreensão intuitiva de semelhanças nas dessemelhanças”4. O prazer que ele pensou que todos os homens têm em reconhecer algo pode parecer que está envolvido com o interesse que temos nas metáforas. Mas dificilmente este tipo de prazer pode ser suficientemente intenso, ou específico, para explicar o seu poder. Talvez tenha sido I. A. Richards quem fez, até hoje, um dos principais esforços para explicar o poder das metáforas. É que tanto a semelhança, como a não semelhança, das duas partes de uma metáfora, o conteúdo e o veículo, contribuem de algum modo para o seu funcionamento. Diz ele que “há uma modificação peculiar do conteúdo transportado pelo veículo” e que isto “é mais o trabalho da dessemelhança do que da semelhança”5. Mas Richards não explica como é que esta interação peculiar da semelhança e da dessemelhança pode ter um tal poder sobre nós. Salvo para as metáforas muito simples, que Max Black pensa que podem ser vistos como substituições ou comparações, uma perspetiva de “interação”, como ele classifica a perspetiva de I. A. Richards, parece-lhe ser a melhor. Mas há muitas complicações nesta visão. Ao fim e ao cabo Black parece pensar que “o segredo e o mistério da metáfora” residem na ligação que o leitor é aí forçado a fazer entre as duas ideias, mas fica ainda por explicar como é que isso opera. Apesar de pode fazer, e fazer mesmo, uso de metáforas no seu esforço para explicar o “segredo” delas (ou seja, tem uma compreensão tácita de “metáfora”), Black não consegue desvendar explicitamente esse segredo. De facto, parece pensar que, mesmo que pudéssemos indicar um certo número de relações relevantes entre o conteúdo e o veículo, “o conjunto de afirmações literais assim obtidas não teriam o mesmo poder, para informar e clarificar, do que o original”. Embora admita que uma tentativa para explicar os “fundamentos” da metáfora possa ter interesse, insiste em que não devemos considerar isso como um “substituto cognitivo suficiente para o original”. Logo, embora Max Black pareça ver as metáforas como comunicando algum conteúdo cognitivo, também parecem desafiar todos os seus esforços para esclarecer quais são afinal esses conteúdos cognitivos. Um “leitor apropriado”, diz ele, deve “deduzir por si próprio, com uma boa sensibilidade pelas suas prioridades relativas e respetivos graus de importância”, quais são as várias relações numa metáfora que, quando as tentamos exprimir explícitamente, apenas as conseguimos apresentar, erradamente, como tendo igual peso6. O que falta completamente nesta admissão honesta feita por Black, sobre a ca4 Basic Works, p. 1479 (1459a). 5 I. A. Richards, The Philosophy of Rhetoric (New York and London: Oxford University Press, 1936), p. 127. 6 Max Black, Models and Metaphors (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1962), pp. 45, 38, 39, 46.

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pacidade limitada da sua teoria para desempacotar as metáforas, é um tipo qualquer de explicação sobre como ou porquê uma metáfora nos pode comover com tanta intensidade - porque é que nos pode arrebatar. Na melhor das hipóteses apenas nos diz que aprendemos, por via cognitiva, algo a partir de uma metáfora, que não conhecíamos antes, e que isso tem alguma coisa a ver com a capacidade “adequada” do leitor para fazer uma ligação entre “as duas” ideias numa metáfora. Para avançar, tentemos agora explorar esta capacidade que os leitores possam ter para ligar assuntos diferentes numa mesma metáfora, como um todo. Não deve ser estranha para nós. Encontramos essa capacidade em todos os casos de integração de indícios num todo focal - integrações que vão desde a percepção corrente até à generalização, e que incluem todos o nosso uso e compreensão da linguagem. Vimos que a maioria das frases faladas não têm precedentes e portanto são, em sentido estrito, criações novas; mas apesar disso são habitualmente compreendidas de imediato. O que apresenta um problema que pode ser facilmente resolvido. Na realidade a nossa maquinaria interpretativa é de tal modo potente que, desde que uma frase seja construída de forma gramaticalmente correta, é difícil preenchê-la com palavras, por mais absurdas que sejam, que não façam algum sentido depois de alguns esforços intensos para interpretar a frase. Os linguistas consideram a frase “As ideias verde pálido dormem furiosamente” como sendo bastante segura contra o risco de fazer sentido para alguém. Mas é fácil verificar que “as ideias verde pálido dormem furiosamente” pode simplesmente significar que “as ideias imaturas geram sonhos violentos”, e com algum trabalho seremos também capazes de explicar porque é que tais ideias são pálidas. A ideia não é nova. Leonard Bloomfield (d), um linguista importante no seu tempo, sugeriu que combinações absurdas de palavras podem sempre encontrar uma interpretação poética. A capacidade quase ilimitada do homem para a interpretação de frases construídas gramaticalmente oferece uma oportunidade para a incoerência literária que protesta azedamente sobre o estado do homem nos nossos dias. André Breton, que declarou que essa era a intenção para todas as suas ações e pensamentos, alegava que “comparar dois objetos, tão distantes um do outro quanto possível, e de algum modo juntá-los de uma forma súbita e surpreendente, continua a ser a tarefa mais elevada a que a poesia pode aspirar”7. Ezra Pound em “Numa estação de metro” oferece um exemplo: A aparição destas faces na multidão 7 Andre Breton, Les Vases communicants (Paris: Gallimard, 1955), p. 148. English translation from Richards, The Philosophy of Rhetoric, p. 123.

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Pétalas num galho húmido e negro8 Esta expressão de fragmentação, que recusa dar qualquer significado do nosso mundo moderno, voltará a aparecer ao longo destes capítulos. Yates disse-o em três linhas que também nos dão um exemplo do uso frio e intelectual de uma metáfora: Os peixes shakespearanos navegavam no mar, longe da terra, Os peixes românticos navegavam em cardumes que vinham à mão: Porque é que todos esses peixes enganados dão à costa?9 Para declarar uma fé apaixonada na misericórdia do Cristo crucificado, T. S. Eliot compôs estas intrincadas linhas metafóricas O cirurgião ferido dobra o aço Que questiona a peça destemperada...10 E a voz cheia de paixão fala na metáfora de Shakespeare em que Ricardo II desafia os inimigos que conspiram para o depor: Nem todas as águas do mar revolto Podem lavar o bálsamo de um rei que foi ungido11. A estrutura de uma metáfora e a origem dos seus poderes pode ser rapidamente demonstrada por este último exemplo. Traduzido literalmente para plena prosa, diria que o bálsamo que o ungiu fica de tal forma agarrado ao rei que nem todas as águas do mar o conseguem lavar - implicando que um rei que foi ungido não pode ser deposto porque não pode ser despojado do seu bálsamo 12. Uma tal 8 Ezra Pound, “In a Station in the Metro”, Selected Poems, ed. T. S. Eliot (London: Faber & Gwyer, 1928), p. 89. 9 W. B. Yeats, “Three Movements”, The Collected Poems of W. B. Yeats (New York: Macmillan, 1956), p. 236. 10 T. S. Eliot, “East Coker”, Part IV, The Complete Poems and Plays (New York: Harcourt, Brace, 1952), p. 127. 11 William Shakespeare, Richard II, act 3. scene 2. 12 É claro que há uma outra metáfora escondida dentro desta metáfora – o uso metafórico de um unguento no desempenho daquilo que chamamos um rito ou um ritual (num capitulo posterior discutiremos o tipo de significado que os rituais atingem). O poder irrevogável do rei foi-lhe conferido por um rito envolvendo o uso de um balsam. Esta noção de um ritual de ordenação opera como um indício subsidiário (em particular, a compreensão tácita do direito divino do rei ao seu reino) no sentido global que a imaginação dá à metáfora; mas não devemos permitir que esta característica da metáfora possa obscurecer o significado literal, naturalista que as próprias palavras têm. De outra forma uma metáfora não pode fazer o seu ponto. As palavras que nos são

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afirmação é absurda porque a hipótese sobre a qual assenta, tomada no sentido naturalista, é simplesmente ridícula, mas a afirmação avançada por esta metáfora, entendida metaforicamente, é clara e potente; não é uma afirmação absurda sobre uma eventualidade física. Na realidade, afirma isso mesmo no sentido literal das palavras usadas, mas significa também qualquer coisa mais do que o seu significado literal. O mecanismo semântico pelo qual se estabelece um significado metafórico claro e poderoso é o mesmo pelo qual uma bandeira passa a simbolizar um país - com a diferença de que uma bandeira (uma peça de pano) não tem por si mesma significado, enquanto que a projeção verbal dos mares a tentarem, em vão, lavar o bálsamo de um rei, embora fantástico, está longe de não ter significado. Na realidade oferece um espetáculo fantástico à nossa imaginação. Podemos portanto ver que quando um símbolo incorpora um assunto significante, que tem uma significância por si só, e esta é próxima do assunto que incorpora, então o resultado é uma metáfora. Dado que quer o conteúdo como o veiculo de uma metáfora têm por si interesse intrínseco - ambos são ideias significantes ou expressões por si mesmas - podemos fazer o diagrama de uma metáfora como: t v +ii -ii S ↬ F O conteúdo relaciona-se sobre o veículo mas, tal como no caso de um símbolo, o veículo (o objecto focal) retorna ao conteúdo (o elemento subsidiário) e reforça o seu significado, de forma que o conteúdo, para além de se relacionar com ele, também se incorpora no veículo. Podemos agora esquematizar como é que o nosso êxtase com uma metáfora se atinge adicionando um nível que nos inclui a nós próprios, logo (t ↬ v) +ii +ii ↬ F

Nós +ii S

Tal como acontece num símbolo, também acontece numa metáfora: os indícios apresentadas tratam o balsam como um fluido de algum tipo que não se pode lavar mesmo por toda a quantidade e poder dos mares. O que sugere uma relação natural ilógica (mas surpreendente) entre estes dois fluidos que, como tal, é vazio de qualquer significado metafórico que o balsam possa ter no ritual. Tal absurdo naturalista é essencialmente do tipo de sentido que a nossa imaginação cria numa metáfora e através dela.

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subsidiários - que consistem em todas essas experiências rudimentares das nossas vidas que estão relacionadas com as duas partes da metáfora - são integrados no nosso significado de um conteúdo e de um veículo, tal como cada um deles se relaciona com o objecto focal (uma metáfora). O resultado é que uma metáfora, tal como um símbolo, nos arrebata, nos incorpora e nos comove profundamente à medida que nos rendemos ao seu significado. A metáfora de Ricardo II, a história do mar e do bálsamo, que no seu sentido literal é absurda, está cheia de sentimentos - com a provocação e o orgulho irritado do rei - e por isso amplifica-se numa imagem poderosa e comovente, que incorpora as nossas experiências difusas, e que portanto nos dá um objeto onde os ver integrados. Noutras metáforas como, por exemplo, nas duas linhas de Ezra Pound, o significado integrado dos dois assuntos pode ser dado igualmente por ambos; mais do que no caso da metáfora do mar e do bálsamo, e nas linhas de Eliot, temos aquilo que Empson descreveu como uma metáfora virtualmente mútua13. Uma metáfora pode ser apaixonada, como a dita por Ricardo II, ou pode ser exaltada por sentimentos muito diferentes, como nos dois versos de Eliot. Pode também ser brilhante, quando elucida um assunto interessante, como nos três versos de Yates. Mas todas estas variações podem ser vistas como abrangidas pela capacidade básica da imaginação do homem para integrar dois ou mais assuntos díspares num novo significado único. No próximo capítulo ilustraremos melhor este ponto, no que diz respeito às obras de arte. Sabe-se que as metáforas, tal como as piadas, perdem a sua eficiência se forem explicadas em detalhe. Sabemos que uma integração semântica se destrói se transferirmos a nossa atenção do seu significado para aquilo que está nesse significado - por outras palavras, do ponto de atenção focal para os elementos subsidiários sobre os quais assenta aquele foco. Por vezes, uma integração semântica destruída pode ser substituída, até mesmo substituída com vantagem, por uma relação explícita; mas em muitos casos isso é impossível, como o mostra o poder perdido de uma metáfora explicada. Vimos quão ridículo nos parecia Ricardo II se anunciasse que a inviolabilidade do seu reino estava relacionada com a incapacidade das águas revoltas do mar lavarem a sua unção real - talvez porque o seu bálsamo possuía a propriedade da higroscopia. Como regra, uma metáfora perde a sua força mesmo quando transposta para uma analogia. Mas as analogias podem ser imensamente poderosas. O poder destas linhas de Baudelaire é sem igual14: 13 William Empson, The Structure of Complex Words (London: Chatto & Windus, 1951), pp. 546-49. 14 Charles Baudelaire, “Les Fleurs du Mal”, Oeuvres Completes de Charles Baudelaire, ed. Jacques Crepet, 19 vols. (Paris: Louis Conard, 1930), 1:15.

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O poeta é como o príncipe das nuvens, Que assombra a tempestade e se ri do arqueiro. Por outro lado, Dom Morales escreveu na sua biografia como, nos seus tempos de estudante, mostrou a Auden um poema com o verso “As mulheres abanavam os seus longos cabelos, como árvores”. Auden disse zangado: “Não, não podem. As árvores podem abanar os seus longos cabelos, ou as mulheres podem abanar os seus longos cabelos, mas umas abanarem os cabelos longos como as outras é que não pode ser”15. A metáfora ou a frase direta eram aceitáveis, mas a analogia era intoleravelmente prosaica. Os factores mais subtis de perda de significado não se podem definir de forma estrita. Os efeitos do ritmo e da rima, e de outras características formais da poesia, podem ser explicados por linhas próximas da interpretação da metáfora. As duas partes constituintes de uma metáfora ligam-se a um novo significado conjunto. Isto também parece acontecer com as características formais de um poema. Ao ler um poema estamos subsidiariamente conscientes do seu ritmo, das suas rimas, dos seus sons, da sua construção gramatical, e das conotações particulares das palavras usadas. Cada um desses componentes pode ser analisado em separado, por si só, mas isso obscurece inevitavelmente, e pode mesmo destruir, o sentido de um poema. Pode-se reconstruir o seu significado, com um sentido ainda mais apurado, quando tornamos a voltar a nossa atenção focal para o poema, em alternativa às suas partes; por outro lado, pode acontecer que o poema tenha agora perdido toda a sua frescura. Em qualquer dos casos, a nossa consciência dos seus componentes, que tínhamos examinado focalmente, deve agora tornar-se subsidiária, se queremos ver o significado do poema. Por outras palavras, o ritmo, a rima, o som, a gramática, e todos os outros aspectos formais mais subtis de um poema, assim como as várias alusões às suas partes, ligam-se conjuntamente no significado do poema. Não estamos, por isso, focalmente conscientes do que adicionam àquele significado e como afectam a sua qualidade. Este padrão rico e delicado de elementos subsidiários impregna um poema com a qualidade de uma artefacto distintivo. Dá ao poema harmonias que nenhum outro discurso possui e estabelece uma reivindicação para ser aceite pelo seu próprio valor. Destaca e separa a poesia relativamente à nossa vida corrente. A história de um poema está portanto livre de ser ouvida como uma mera comunicação de factos e pede antes que seja ouvida pela imaginação. Reside aí a independência de uma obra de arte. Há muito tempo atrás I. A. Richards descreveu o efeito isolador de uma forma poética, que estamos aqui a interpretar segundo os princípios da integração semântica. Escreveu: 15 Dom Moraes, My Son’s Father (London: Seeker & Warburg, 1968), p. 191.

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Embora a sua própria aparência de métrica artificial produza, no mais alto grau, um efeito de “enquadramento”, isolando a experiência poética dos acidentes e irrelevâncias da existência quotidiana... Muito daquilo que em prosa seria demasiado pessoal ou demasiado insistente, o que poderia levantar conjeturas irrelevantes ou que poderia “passar por cima de si próprio” é gerido em verso sem qualquer problema 16. Podemos imaginar como é que o conteúdo do soneto dezoito de Shalespeare. “Será que te devo comparar a um dia de verão?” apareceria se dito em prosa. Depois de alguns cumprimentos à beleza da sua amada, metade do soneto é dedicado a dizer-lhe que toda a sua beleza está destinada a desaparecer. Mas é então enfaticamente tranquilizada de que será uma exceção ao seu destino, sendo-lhe logo a seguir dito que esta promessa fantástica significa apenas que o génio do poeta assegurará ao soneto - e a ela própria - uma fama eterna. Esta história, que em prosa nos parece banal, redime-se pelas belezas do soneto. Trataremos deste poder da poesia no próximo capítulo, dentro de uma perspetiva mais ampla das artes.

16 I. A. Richards. Principles of Literary Criticism (New York: Harcourt, Brace, 1942), pp. 145-46.

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imos como uma descrição explícita de uma metáfora de Shakespeare se tornava em algo grandiloquente mas sem sentido e, de modo semelhante, vimos como a descrição em prosa de um dos seus sonetos reduzia o seu conteúdo a uma peça insensível de auto adulação. Vimos também que a nossa nova teoria do significado oferece um mecanismo básico sobre a forma como uma explicação muito detalhada traz consigo uma destruição desse mesmo tipo. O mecanismo de destruição do sentido de uma palavra consiste em desviar a nossa atenção focal do significado da palavra para a própria palavra como um objeto percetivo. Do mesmo modo, o sentido de uma metáfora é destruído quando desviamos a nossa atenção focal do seu significado para as partes constituintes da metáfora, e o sentido de um poema destrói-se quando mudamos a nossa atenção focal do significado do poema para o seu conteúdo prosaico, ou para a sua “história”, que é apenas um dos elementos subsidiários em que um poema se baseia. Mas o dano causado nas metáforas e nos poemas pelo detalhe da especificação inclui uma perda que é muito mais importante do que a perda incorrida quando quebramos a relação de uma palavra com o seu objeto, ao focarmos a nossa atenção na própria palavra por si. As componentes subsidiárias das metáforas e dos poemas estão unidas entre si por um desempenho imaginativo muito mais rico do que qualquer ação imaginativa necessária para ligar uma palavra com o seu significado. Reduzir uma metáfora ou um poema aos seus componentes subsidiários é eliminar a visão que os unia com o seu significado, integrados numa metáfora ou num poema. O que fica não é mais do que uma caricatura do seu verdadeiro sentido. É por isso, dizemos nós, que Max Black descobriu que não conseguia especificar explicitamente, sem perda de significado, todos as relações entre os dois elementos de uma metáfora. Para se chegar à estrutura da poesia precisamos, no entanto, de a distinguir relativamente a uma metáfora. Integrar dois assuntos díspares não corresponde a uma obra de arte, embora tais integrações possam constituir algumas das partes de uma obra de arte. Talvez o século XX ainda venha a rejeitar a própria ideia de obra de arte; mas a rejeição da arte apenas tornaria mais preciso o conceito de arte. O que fosse rejeitado seria mais bem conhecido através do seu próprio processo de rejeição, exactamente tal como a nossa própria inquirição sobre a perda do significado, no nosso tempo, deve elucidar o significado do significado, antes de se poder falar da sua perda.

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Falamos sobre a poesia até tratar de obras de arte em geral, e esta extensão foi deliberada. O nosso estudo das obras de arte incluirá a pintura, a escultura, e a representação cénica, para além da poesia. Teremos perante nós todas as artes que representam algo, e limitaremos a discussão neste capítulo às artes representativas. Comecemos pela velha questão: porque é que as obras de arte continuam a ser reconhecidas como “verdadeiras”, mesmo quando nos contam histórias que entendemos claramente como não verdadeiras. I. A. Richards dá-nos um bom exemplo deste paradoxo. Nota que a representação teatral de um assassinato “tem sobre nós um efeito diferente do que teria um verdadeiro assassinato, se este tivesse lugar à nossa frente”1. A questão é precisamente saber qual é essa diferença e como é que se produz. Recordemos um paradoxo semelhante, gerado por uma metáfora: o paradoxo de numa metáfora se dizer uma coisa e querer significar uma outra coisa. Temos um caso semelhante no teatro. Ao testemunhar um assassinato no palco, temos consciência do cenário e dos antecedentes da cena que inclui o assassinato, que são incompatíveis com um assassinato genuíno; até agora - tal como no caso da metáfora - não rejeitamos essas afirmações contraditórias, as quais transformariam a cena do assassinato num engano sem sentido, mas que apelam aos nossos poderes da imaginação para integrar assuntos incompatíveis num mesmo significado comum. Este significado comum tem, numa peça de teatro, a característica peculiar de um acontecimento dramático apenas visível através da imaginação, tal como o significado de uma metáfora, produzido pela integração dos seus dois componentes incompatíveis; apenas conhecemos esse significado de uma metáfora através da nossa imaginação. Um acontecimento dramático é uma obra de arte, e a estrutura dos acontecimentos dramáticos é típica de todas as obras de arte. Mas as cenas de teatro têm um conjunto excecional de elementos subsidiários. O autor da peça, os atores, os cenógrafos, todo o teatro, e o mecanismo das propriedades cénicas, estão todos envolvidos numa performance dramática. A poesia e a pintura são casos comparativamente mais simples, sob o ponto de vista de estrutura da arte. Numa analogia com o assassinato no teatro, ao qual não respondemos como se ele estivesse a acontecer no mundo real, podemos também dizer que o efeito do soneto de Shakespeare difere do seu conteúdo em prosa porque o sentido do soneto tem as suas raízes num conjunto de subsidiários poéticos que são ignorados pela descrição em prosa do seu conteúdo. Mas ainda há mais. Um soneto, como uma obra de arte, não só é enriquecido, e até mesmo reconfigurado, pelos seus subsidiários poéticos, como também estes elementos subsidiários servem para separar o soneto e a pessoa do poeta. Para se ver isso, temos que corrigir uma simplificação excessiva que até aqui 1 I. A. Richards, Principles of literary Criticism (New York: Harcourt, Brace, 1942), p, 110.

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temos vindo a fazer acerca na nossa análise da integração. Falamos da integração de imagens instantâneas na retina, e de outros indícios subsidiários na perceção, e de um conjunto de movimentos numa competência hábil, integrações que são, falando estritamente, de objetos díspares que formam uma classe compreensiva que os abrange. Tratamos depois da integração de ideias muito diferentes, numa metáfora, o que nos conduziu à integração poética. Demos grande importância ao facto de, à medida que fomos subindo desde as integrações feitas a nível fisiológico até às integrações que ocorrem na formação de conceitos, metáforas, e, finalmente, obras de arte, essas integrações exigirem um esforço de imaginação cada vez maior. Dado que os homens diferem entre si, no que se refere às faculdades de imaginação, poder-se-ia inferir que muitos deles serãomenos capazes de atingir uma integração do que outros mais dotados para isso. Podemos ainda juntar a isto a possibilidade de uma integração altamente imaginativa ficar por descobrir até ser evidenciada por uma mente com poderes excecionais. Parece ser claro que isso está implícito na nossa descrição da gama completa de integrações. O que não estava claro é que há limites à possível integração das coisas. Na natureza, sem a intervenção do homem, pode-se dizer que todas as coisas andam de certo modo juntas; mas habitualmente reconhecemos certos conjuntos de objetos mais coerentes entre si do que quando associados a outros objetos diferentes, tal como fogo e fumo, nuvens e chuva. A ciência moderna descobriu uma vasta rede de coerências até aí desconhecidas e dissolveu como ilusões muitas coerências que tinham sido aceites até aí como genuínas, como, por exemplo, as constelações de estrelas. A engenharia moderna inventou inúmeras coerências novas na forma de invenções. A poesia, a pintura, e o drama encheram a nossa imaginação com obras coerentes de muitas maneiras. Logo, as obras da ciência, da engenharia, e as obras de arte atingem-se todas elas pela imaginaçao. Mas quando um cientista faz uma descoberta, ou quando um engenheiro produz um novo mecanismo, a sua posse por terceiros implica um reduzido esforço de imaginação. O que não é o caso nas artes. A capacidade imaginativa de um artista criativo pode ser enorme, mas apenas a visão que transmite ao seu público é que permite que a sua arte viva para terceiros. Logo o significado que possa criar para o seu público está limitado pela necessidade de proporcionar uma base para a sua recriação pela imaginação de outros observadores ou leitores. O uso de uma obra de arte por outros não é, portanto, como o uso de uma invenção, por exemplo um telefone. Não precisamos de recriar a visão imaginativa do telefone de A. G. Bell para o poder usar, nem para isso precisamos de conhecer e usar as leis de Newton. Mas precisamos de conseguir uma visão imaginativa para “usar” uma obra de arte, ou seja, para a compreender e apreciar sob o ponto de vista estético. É, no entanto, uma sorte que a nossa visão não precise de incluir os senti-

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mentos, as memórias, etc. estritamente pessoais do artista. E isso não é preciso porque, sempre que os nossos poderes da imaginação produzem uma coerência, fazem-no separando os seus elementos subsidiários integrados das suas ligações com outras experiências. Na realidade, este é o princípio que transforma qualquer descoberta, invenção, ou obra de arte numa espécie de realidade com vida própria - num corpo de pensamento vivo, isolado da sua dependência contínua com a personalidade do autor, e portanto capaz de ser compreendido por outras personalidades. Na poesia, este distanciamento necessário com uma personalidade em particular é promovido pela artificialidade da estrutura em que o poema ganha forma. I. A. Richards assinala-o: “Através da sua própria artificialidade, a métrica produz um efeito máximo de enquadramento, isolando a experiência poética dos acidentes e das irrelevâncias da existência quotidiana”2. O ritmo não é mais do que uma das artificialidades de um poema, entre muitas. O ritmo, os sons expressivos, as construções gramaticais peculiares, as conotações estranhas entre palavras e, acima de tudo, as metáforas são outros acessórios poéticos. Todos funcionam como elementos subsidiários que, combinados com o conteúdo de um poema posto em prosa (a “história” do poema), formam o seu sentido ou significado. As pessoas habitualmente falam em prosa, o que também é verdade para as conversas correntes entre os poetas. Qualquer pessoa que se nos dirigisse num discurso rítmico e com métrica seria considerado como estando a brincar, a menos que suspeitássemos de uma obsessão patológica, semelhante a uma obsessão com trocadilhos. Um poema não pode fazer parte da personalidade usual de um poeta. Logo, a estrutura formal de um poema, que encerra muito do significado do poema, forma uma barreira que isola o poema dos assuntos do quotidiano, assim como do poeta como uma pessoa privada. Quando fascinados por um poema, repetimos as suas palavras ao longo de toda a vida; falando em termos estritos, é o poema que fala connosco, não o poeta. É claro que o mesmo acontece com as peças de teatro. As personagens de Hamlet, Otelo, e Shylock são conhecidas por si e não como uma parte da pessoa de Shakespeare. Uma pintura de Cezanne pode ser instantaneamente reconhecida por muita gente que pouco ou nada sabe sobre o pintor. Estes factos são tão óbvios que até se hesita em os expor com detalhe. Mas a sua significância está longe de estar bem reconhecida. Comparei o poema dezoito de Shakespeare com o poeta a dizer à sua amante, em conversa corrente: “És bela, mas murcharás e morrerás; no entanto, a tua beleza sera imortalizada pelo meu verso imortal”. Vemos agora que há uma dupla diferença entre os dois: (1) o poema não é a voz do poeta, e (2) o seu significado 2 Ibid., p. 145.

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não é transmitido pelo seu conteúdo em prosa. Porque o seu significado forma-se pela integração dos seu padrão formal com a parte do seu conteúdo que pode ser descrita em prosa. O que esse conteúdo, em prosa, exprime é incompatível com o discurso artificial de um poema. Mas nós conseguimos integrar esses incompatíveis - o padrão artificial e o conteúdo em prosa - e ao fazê-lo estamos a produzir o significado do poema. Falando em termos lógicos, no entanto, estas partes do poema continuam incompatíveis. Ao atingir o seu significado por via da imaginação estamos subsidiariamente conscientes dos seus dois componentes, os quais, por si mesmo, são explícita ou logicamente incompatíveis, mas que, uma vez combinados por uma imaginação artística, falam a uma só voz, como elementos subsidiários do significado do poema. É assim que o grotesco da prosa se dissolve ao longo dos versos do soneto dezoito de Shakespeare. Podemos ilustrar no diagrama seguinte uma parte da maneira como se atinge o significado de um poema ou de uma obra de arte: Obra de arte = estrutura XX história A estrutura e a história incorporam-se mutuamente. Nenhum deles suporta o outro, nem o simbolizam. Esta integração das partes no significado de uma obra de arte não é mais do que um caso da regra - já antes exemplificada de muitas maneiras diferentes ao longo desta obra - segundo a qual a integração de elementos subsidiários produz uma perceção diferente, tanto na aparência como no conteúdo dos seus componentes. No entanto, aquilo que se produz pela imaginação poética é uma novidade radical, e o seu leitor absorve essa novidade através dos poderes da sua própria imaginação. Logo, nós, os leitores, chegamos a partilhar, na nossa apreciação de um poema, a relação distante que o poeta teve com o seu próprio poema. Mandou -o para o mundo, isolando-o mesmo dos seus afazeres quotidianos e dando-lhe uma estrutura artificial. Somos por isso capazes de o apreciar por si próprio - não como apreciamos a satisfação dos nossos próprios desejos. É assim que podemos observar um assassinato numa peça, de modo integrado com os elementos teatrais que são elementos subsidiários, sem sequer fazer um movimento para ajudar a vítima ou sem sentir que a acção no palco - um pretenso homicídio - seja sem sentido. Aceitamos os indícios que a peça oferece à nossa imaginação para partilhar o seu significado, e vivemos nesse significado mais do que no significado que esses mesmos acontecimentos teriam nas nossas vidas correntes e “interesseiras”3. Isto é o que Kant significava quando definia a apreciação estética da arte como 3 Susanne Langer também o assinala, mostrando que o distanciamento e a alteridade são essenciais numa obra de arte. Ver Feeling and Form (London: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1953), pp. 45, 46.

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um prazer desinteressado. Está também de acordo com o que Conrad Fielder definiu para a pintura, segundo a qual a arte é uma produção da realidade por uma mente4. Não é a mera satisfação de desejos subjetivos e substantivos. Uma obra de arte é uma “coisa qualquer” - uma “realidade” com poderes por si própria. Mas estes termos estão gastos. Precisam de ser melhor clarificados por uma análise estrutural da arte representativa. Do ponto de vista desta análise podemos ver que os poemas, e também as pinturas, as esculturas, e as peças de teatro, são múltiplos conjuntos fechados de indícios, portáveis e duradouros. A sua durabilidade é infinitamente superior à das nossas experiências pessoais, pois a coerência das suas partes é muito mais firme e está organizada de forma mais eficiente. O contraste entre a fluidez das nossas vidas e estes “pacotes” organizados de arte foi bem descrito, para o caso da poesia, por I. A. Richards: Na vida corrente, a maioria de nós tem mil razões que proíbem qualquer trabalho completamente fora da nossa sensibilidade; a gama e a complexidade dos sistemas de impulsos é menor; a necessidade da ação, a incerteza comparativa e a imprecisão da situação, a intrusão de irrelevâncias acidentais, o espaçamento temporal inconveniente - a ação sendo demasiado lenta ou excessivamente rápida - tudo isso obscurece o desenlace e impede o desenvolvimento total da experiência. Precisamos de saltar para uma qualquer solução tosca e pronta5. Richards contrasta esta condição com a existência fortemente circunscrita da poesia, tal como alcançada e absorvida pela sua audiência. T. S. Elliot exprime esta transição de uma forma mais definitiva. Escreve: Quando a mente de um poeta está perfeitamente equipada para o seu trabalho, está constantemente a amalgamar experiências diferentes; a experiência corrente do homem é caótica, irregular, fragmentada. Apaixona-se, ou lê Espinosa, e estas duas experiências nada têm a ver uma com a outra, ou com o barulho da máquina de escrever, ou com o cheiro dos cozinhados; na mente do poeta estas experiências estão constantemente a formar novos todos6. 4 lmmanuel Kant, Critique of Aesthetic Judgement, trad. James C. Meredith (Oxford: Clarendon Press, 1911), p. 49. Conrad Fiedler, On Judging Works of Visual Art (Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1949), p. 60; ver também pp. 52, 57 5 Principles of Literary Criticism, p. 237. 6 T. S. Eliot, “The Metaphysical Poets”, Selected Essays (New York: Harcourt, Brace, 1932), p. 247

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Na nossa compreensão da realidade de um poema ocorre mais do que a integração da sua estrutura e da sua “história”. O poema leva-nos para além da existência difusa das nossas vidas ordinárias, para algo claramente para elém disso, e cria uma entidade circunscrita de sentimentos apaixonados a partir da nossa enorme reserva de experiências emocionais rudimentares. Primeiro, o artista produz, a partir da sua própria experiência difusa, uma forma circunscrita num espaço breve e num tempo curto - uma forma totalmente incomensurável com a substância das suas origens. Depois, nós respondemos a essa forma com a entrega, a partir das nossas próprias memórias difusas de acontecimentos tocantes, com uma dádiva de puros sentimentos ressonantes. A experiência global é a de uma entidade completamente nova, uma integração imaginativa de incompatíveis. Adicionamos portanto uma nova seta por cima do nosso diagrama anterior, acerca do que se passa na integração na poesia ou na arte: A nossa existência embebida em + ii S

estrutura XXX história + ii F

Mas vamos pôr agora de lado qualquer discussão adicional dos poderes que a poesia pode exercer sobre as nossas mentes, para que se possa ver como outras formas de arte, especialmente a pintura, também se ajustam a este mesmo padrão. Consideremos uma pintura, tal como feita na Europa durante quase mil anos - desde o tempo de Péricles até ao período Bizantino, e depois desde o tempo de Giotto e de Duccio até ao fim do século dezanove. Este tipo de pintura procurava criar algo semelhante às coisas percebidas ou imaginadas, pelo menos de acordo com as ideias então expressas. Giotto foi aclamado por fazer pinturas semelhantes à natureza. Um século depois, desenvolveu-se a imitação da profundidade pela perspetiva central, com o aplauso generalizado do público italiano. O impressionismo francês foi a última inovação a prometer uma simulação mais precisa da natureza. Só então aparece uma mudança: o século vinte começou com um desafio à ideia de simulação. Mencionamos aqui este desafio apenas de passagem. O que é estranho é que, ao longo de todos estes séculos, as obras de pintura e de escultura produzidas por artistas foram sendo aclamadas pelos seus públicos. Ou seja, sem um sentimento de desapontamento por essas obras não produzirem a ilusão que pretendiam simular, nomeadamente por poderem ser confundidas com as coisas que pretendiam representar. Uma tal verosimilhança quase nunca se atingiu, e nas raras ocasiões em que tal aconteceu, não foi saudado como o

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triunfo final da arte visual. As ilusões pictóricas deste tipo eram antes conhecidas como extravagâncias. No capítulo sobre “Ambiguidades da terceira dimensão” na sua obra Arte e Ilusão, E. H. Gombrich passa em revista observações anteriores da contradição manifesta entre a profundidade simulada em pinturas e a realidade plana da tela. Cita o crítico neoclássico Quartréme de Quincy: “Quando um pintor comprime uma vasta extensão num espaço curto, quando me guia através das profundidades do infinito numa superfície plana, e faz o ar circular …, gosto de me abandonar às suas ilusões, mas quero que a moldura lá esteja, quero saber que aquilo que eu estou a ver não é mais do que uma tela ou um simples plano”7. Gombrich assinala, no entanto, que os psicólogos descobriram que as ilusões se destroem quando viramos a nossa atenção para uma visão alternativa que contradiz a ilusão. Pergunta: “é possível ver em simultâneo tanto a superfície plana como o cavalo na batalha, tudo isso ao mesmo tempo?”. Responde que isso é impossível: “Compreender o cavalo na batalha é, por um momento, ignorar a superfície plana. Não o podemos ter das duas maneiras”. É verdade que as vistas diferentes, que representam integrações alternativas de uma mesma cena, podem ser mutuamente exclusivas. Mas também temos uma evidência ampla da existência de elementos que se contradizem mutuamente quando vistos focalmente, mas que, apesar disso, podem ser integrados como elementos subsidiários com um significado conjunto. Parece ser este o caso. O conflito entre a representação da profundidade na pintura e o carácter plano da sua base resolve-se pelo mesmo mecanismo que funde as partes contraditórias de uma metáfora. Este mesmo mecanismo também funde a estrutura formal de um poema com o seu conteúdo (a parte desse conteúdo que não se pode transmitir pela prosa). Assim, uma pintura como uma obra de arte é, em termos de qualidades visuais, uma unidade que não existe nas suas partes isoladas. Permitam-me aqui a referência a algum trabalho experimental por psicólogos, que mostra que as contradições sensoriais se resolvem por uma inovação sensorial. Irving Rock e Charles S. Harris demonstraram que essas resoluções de contradições sensoriais acontecem na realidade. Um sujeito a quem é pedido para rabiscar usando um prisma inversor direita / esquerda depressa sente que a sua mão está onde os seus olhos lhe mostram, erradamente, que está. Pedindo para escrever algumas letras e algarismos, escreve-os da direita para a esquerda, em 7 E. H. Gombrich, Art and Illusion (London: Phaidon Press, 1962), p. 236. (A data da obre de Quartremère de Quincy’s work é 1823.)

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vez da esquerda para a direita. Descobriu-se uma integração ainda maior de indícios em conflito, em termos de inovações sensoriais, na forma como uma pessoa encontra o seu caminho quando usa óculos inversores. Recorde-se que o trabalho de Kottenhoff mostrou que o sujeito aprende o seu caminho por reintegração das imagens invertidas com todos os seus indícios percetivos, auditivos e gravitacionais8. As inovações sensoriais deste tipo criam uma amálgama de indícios em conflito, do mesmo modo que a vista de uma pintura unifica os indícios em conflito sobre a profundidade e o plano num significado total da pintura. A teoria segundo a qual a nossa consciência subsidiária de uma tela afeta a forma como vemos uma pintura foi em primeiro lugar adiantada por M. H. Pirenne. Considerou o estranho comportamento da pintura no teto da igreja de Santo Inácio, em Roma, feita pelo jesuíta Andrea Pozzo na viragem do século dezassete. Esta pintura mostra, entre outras figuras, um conjunto de colunas que parecem ser a continuação dos pilares que suportam o teto. No entanto este efeito apenas pode ser apreciado do centro da nave. A partir de outras partes do solo, as colunas aparecem curvas e com ângulos em relação à estrutura de suporte da igreja. Pirenne explica estes factos sugerindo que a vista lateral de uma pintura corrente não produz uma distorção da sua aparência; a distorção é causada apenas quando a ilusão de perspetiva da pintura é tão perfeita que faz com que a pintura pareça ser realmente tridimensional. Todos os outros tipos de pintura são insensíveis ao ângulo de visão. Dado que o seu desenho de perspetiva não é totalmente convincente, o observador continua consciente de que está em frente de uma tela plana. Pirenne acredita que esta apreensão da tela plana reduz os poderes de ilusão da perspetiva e portanto permite-nos reter, mesmo com ângulos apertados de visão, uma aparência não distorcida da pintura. Acresce que a aparência particular que escolhemos é a que vemos a partir do centro correto da perspetiva. Parece que os nossos olhos selecionam essa aparência para todas as posições de observação, porque se assemelha da forma como o objeto pintado é visto na natureza9. Quando Pirenne descreve como, ao observar uma pintura, nós nos apercebemos da sua tela plana, diz que temos uma “consciência subsidiária” da tela - usando este termo no mesmo sentido em que o usamos na nossa teoria de integração semântica. Reconheço, com reconhecimento, que foi o trabalho de Pirenne que iniciou a minha discussão sobre como é que nós vemos uma pintura. No entanto, não reproduzimos aqui os seus argumentos, pois preferiria não me basear na evidência particular por ele usada. 8 Irving Rock and Charles S. Harris, “Vision and Touch”, Scientific American 216 (May 1967): 96-104. H. Kottenhoff, L. E. H. Lindai, and S. E. R. Mable, “Optical and Mechanical Devices for Testing Susceptibility to Motion Sickness”, Perceptual and Motor Skills 7 (1957): 221-22. 9 M. H. Pirenne, “Les Lois de l’optique et la liberté de l’artiste”, Journal de psychologie normale et pathologique 60 (1963): 151-66.

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Podemos agora distinguir claramente três tipos de maneiras pelas quais nos apercebemos das pinceladas e da tela numa pintura: (1) num trabalho trompe l´oeil, as pinceladas estão integradas num significado comum que é idêntico ao do objeto externo que representam; (2) numa obra de arte, as pinceladas são integradas num significado comum com os elementos do fundo, tal como a tela, de que estamos totalmente inconscientes ao ver um tromp l’oeil, e que na realidade são focalmente incompatíveis com os objetos externos representados pela pintura; e (3) numa observação focal das pinceladas e da tela, a sua integração semântica é destruída e a pintura reduz-se a um agregado sem sentido de fragmentos de tinta que cobrem uma superfície plana. Temos ainda que explicar porque é que uma ilusão perfeita de semelhança com o seu objeto não foi aclamada como uma simulação perfeita durante o longo período em que os artistas se esforçaram, por todas as formas, por aperfeiçoar a simulação. Pode-se encontrar a resposta, como já se viu, na superioridade da expressão poética sobre o impacto das nossas experiências pessoais. Quando vemos os objetos externos representados numa pintura como se, na realidade, fossem esses mesmos objetos reais, a sua significância reduz-se a uns meros objetos entre muitos outros, o que geralmente significa vê-los a partir de um ponto de vista trivial. Tomamos então consciência instantânea da abissal trivialidade a que se reduziria uma natureza morta de Cézanne se tivesse que oferecer uma ilusão perfeita de frutos e vegetais autênticos para venda num nicho de uma galeria de arte. Podemos portanto apreciar o facto da integração conjunta das pinceladas com a tela conferir a todas as pinturas uma qualidade artificial distintiva, que as diferencia das visões naturais. Assegura a realidade artística de uma pintura e assim protege os seus poderes distintivos de se dissolverem numa envolvente de realidade factual. As esculturas estão geralmente protegidas contra a possível confusão com o assunto que representam. Mas suponha-se que somos vítimas do talento de Madame Tussaud. Suponha-se que nos dirigíamos a uma rapariga da receção e que descobríamos que era de cera. Não aclamaríamos este maravilhoso produto de simulação plástica, idêntico ao natural, como uma obra de arte acima do Moisés de Miguel Ângelo, com base no facto do Moisés ser muito fácil de reconhecer como uma mera estátua. O mesmo se aplica ao teatro. Um ator, que represente Hamlet e que crie a ilusão perfeita de que está realmente a morrer pelo florete envenenado de Laertes, produzirá uma perturbação repugnante. O seu objetivo deve ser antes produzir a peça em que Hamlet é morto por Laertes. Logo, a afirmação de Coleridge de que a arte exige uma “suspensão voluntária da incredulidade” é duplamente enganadora. Não apreciamos uma obra de arte, seja de poesia, pintura, escultura ou drama suspendendo a nossa incredu-

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lidade sobre o conteúdo da sua prosa. Uma obra de arte representa certos factos da imaginação. Não afirma qualquer facto da experiência. Se acreditássemos que uma obra de arte é uma simples afirmação de certos factos da experiência, não a veríamos como tal. Poderia, na melhor das hipóteses, ser vista como uma ilusão inteligente - mas sem valor como obra de arte. A apreciação de uma obra de arte exige acreditar naquilo que ela significa, e não descrer de qualquer coisa que não é, e que não precisa de reivindicar. Se o estilo da obra de arte nos for familiar, reconhecemos o seu significado sem grande esforço. Os estilos têm mudado constantemente desde a idade de Péricles na Grécia, mas essas mudanças foram suficientemente lentas para serem compreendidas e bem vindas pelos tempos seguintes. No entanto, os últimos cem anos trouxeram inovações tão radicais e frequentes a todas as formas de arte que desafiaram continuamente os estilos e os padrões até aí aceites. Muitas destas inovações encontraram uma oposição violenta durante algum tempo, mas muitas delas ganharam aceitação rápida, o que eventualmente resultou numa transformação completa de muitas das artes - em particular a poesia, a pintura, a escultura e o drama, as artes representativas com que temos lidado. Como veremos, estas alterações trouxeram consigo um certo número de factos acerca da arte que não eram claramente conhecidos até aí. No ínicio, a oposição a essas inovações negava, aos artistas que as criavam, o apoio que eles precisavam para a sua subsistência. No entanto, esses artistas aceitaram os sacrifícios necessários e, renunciando aos confortos da sociedade burguesa, fundaram uma comunidade que aceitou a carência dentro de uma boémia permissiva e subversiva. A profunda dedicação destes inovadores foi equivalente à ferocidade da oposição que tiveram. Os defensores da tradição académica não ficaram satisfeitos apenas com ignorar as obras de arte que não apreciavam. Ameaçaram a vida dos inovadores, ao denunciá-los como fraudes e interrompendo, frequentemente com violência, a representação de peças e óperas modernas. Mostraram uma ligação às correntes tradicionais de arte tão forte como a dos inovadores às suas próprias ideias novas. Esta situação deu eventualmente lugar a um grupo de críticos que reconheceram o valor da arte moderna e apoiaram os artistas de vanguarda, e tentaram explicar os seus princípios. Este apoio, por sua vez, inspirou múltiplos discípulos, convencidos de que estas novas formas de arte faziam sentido e tinham um significado que valia a pena tentar descobrir. Finalmente, explorar o significado destas novas e enigmáticas obras de arte através do exercício da imaginação acabou por fazer parte da educação moderna. Estes conflitos duraram desde meados do século dezanove até aos anos trinta do século vinte. Tínhamos dois grupos opostos, os académicos burgueses e os

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boémios modernos, este últimos apoiados pela vanguarda dos críticos e por uma parte do público que procurava acompanhar o suposto progresso da arte. Num capítulo posterior trataremos com mais detalhe as mudanças no conteúdo da arte que ocorreram neste período. Para já, anotámos apenas a estranha transformação que estas alterações produziram na relação entre o artista e o público. Treinados durante anos na batalha por novas formas de arte, os críticos modernistas e os seus seguidores desenvolveram uma facilidade sem precedentes para interpretar formas menos habituais de arte, e esta facilidade rapidamente alastrou ao público e reduziu a resistência à inovação artística para um nível tal que os inovadores podiam, a partir daí, contar com um reconhecimento rápido. Esta batalha entre a burguesia e os boémios acabou. O resultado foi uma mudança na relação entre os artistas e o seu público. Poetas, escultores, e autores de teatro, assim como autores de novelas e produtores de filmes, podiam contar com a capacidade e a boa vontade do público para desenvolver indícios frágeis, e muitas vezes esotéricos, à luz da sua própria imaginação. Estas novas formas de arte e a nova crítica que as explica também evidenciaram o facto de que apenas podemos compreender uma obra de arte através de um esforço de imaginação - quer a obra de arte seja representativa ou não.

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vida da arte na sociedade é, tal como se viu, o trabalho da imaginação do artista, renovado pela imaginação dos que o recebem. Vimos as raízes dessa imaginação no ato da perceção e em cada movimento deliberado dos nossos membros (braços e pernas). Pode-se considerar que cada descoberta científica inclui uma perceção imaginativa de coisas até aí desconhecidas. A estrutura técnica de um voo de pássaro, ou do andar em pé do homem, mostram, quando analisados, uma engenhosa combinação de partes corporais a funcionarem, em conjunto, como partes de uma máquina. Por si, são casos bem sucedidos de encontrar o significado e, para além disso, constituem a base primordial da invenção de competências hábeis, do uso de ferramentas e dos factos da engenharia. Vale a pena assinalar que, para chegar à estrutura da arte, passamos dos sucessos fisiológicos dos sentidos até às estruturas da linguagem, termos concetuais, símbolos e metáforas, e que ao longo deste caminho encontrámos obras cuja compreensão apelava a uma atividade crescente da imaginação. Até ao momento temos evitado a questão de saber quais os fundamentos com que podemos justificar ou avaliar poemas, ou pinturas, ou peças de teatro. Para lidar com esta questão, que esteve no centro de todas as estéticas do passado, seguiremos uma linha de pensamento paralela, sobre o desenvolvimento do significado das coisas pela imaginação, semelhante ao que temos vindo a seguir - uma linha que nos leva da perceção e das ações motoras voluntárias à ciência e à tecnologia - comparando a maneira como se atinge um significado válido, na ciência e na tecnologia, com a forma como ele se atinge nas obras de arte. Fizemos notar que a invenção na ciência e na tecnologia pode ser compreendida mais facilmente se observarmos como é que se inicia uma investigação e como é que se guia o seu desenvolvimento. Começaremos por passar em revista aquilo que dissemos acerca destes assuntos na ciência e depois veremos como opera nas invenções técnicas e na arte. A investigação científica faåz-se em três fases: primeiro, descobrir um problema, depois inquirir sobre o problema, e finalmente, se a procura tiver sucesso, resolver o problema. Ao reconhecer um bom problema e ao decidir investigá-lo, um cientista precisa de demonstrar uma sensibilidade excecional a indícios promissores. Deve ser capaz de adivinhar, com um alto grau de probabilidade, que existe algo de importante escondido por trás de uma certa direção, e deve ser capaz de avaliar o esforço e o custo de tal investigação. De uma forma modesta, todos nós exercemos essas faculdades, mas os cientistas precisam de ser excecio-

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nalmente dotados para que a sua investigação não esteja condenada ainda antes de começar. Todas as três fases de uma investigação científica são postas em movimento por dois poderes mentais. Recebem a orientação pelos poderes integradores, quando mobilizados e fornecidos de materiais adequados através dos impulsos da imaginação. Estes poderes integradores são largamente espontâneos; para o reforçar, vamos dar-lhes o nome de “intuição”. Todo o trabalho e angústia envolvidos no trabalho criativo acontece pelos impulsos da imaginação; a intuição fazse sem esforço. No início de uma investigação, a intuição predomina. Nesta fase a imaginação entra apenas para manter a intuição alerta ao sentir do problema. Podemos descrever estes juízos antecipatórios que guiam o avistar de um problema, e a decisão de o inquirir, como o trabalho de uma “intuição estratégica”. Uma inquirição começa por impulsos da imaginação na direção geral sugerida pelo problema. Esse impulso, se bem sucedido, reduzirá a imprecisão do problema e oferecerá um guião mais firme para o esforço seguinte, no sentido da possível solução. Toda a procura está cheia de esforços laboriosos da imaginação, largamente guiados por uma intuição inquisidora, que continua a selecionar, de entre os fragmentos mobilizados pela imaginação, aqueles que prometem vir a ser parte da solução. Poincaré, que também descreveu este processo, mostrou como a procura muitas vezes termina, depois de um intervalo de calma (quando os esforços da imaginação estão em descanso), por uma iluminação súbita que oferece a solução para o problema. Esse acontecimento é puramente espontâneo e pode-se dizer que é o trabalho de uma “intuição conclusiva”. O resultado pode afinal ser falso, e podemos ter que voltar outra vez ao princípio da procura - ou porventura talvez acabar por fracassar. Mas há sempre a mesma história, uma vez mais. Primeiro, aparece uma ideia, dada pela intuição, para ser ponderada pela imaginação. Em segundo lugar, deixa-se a imaginação vaguear para encontrar o caminho de possiveis índícios, guiada por sentimentos intuitivos. E em terceiro lugar, há uma ideia que se oferece intuitivamente como uma solução possível, para por sua vez ser ponderada à luz da imaginação. As invenções técnicas passam por estes mesmos três estádios. Alguém vê um problema, antecipa a sua viabilidade e valor, impulsiona a imaginação numa direção que parece prometedora, e finalmente vislumbra uma solução que parece satisfatória. No entanto, o conteúdo é diferente do da ciência. O objetivo da inquiriçao científica é indeterminado, e muita da procura do que vagamente antecipamos também é indeterminada. O objetivo do inventor, por sua vez, é relativamente fixo, da mesma forma que um movimento deliberado ou o esforço para adquirir uma competência. E, é claro, na tecnologia o teste de uma

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solução aparente é de natureza mais prática do que nas descobertas científicas. É, no entanto, importante notar que, algures a meio de qualquer investigação científica, a imaginação está profundamente envolvida na procura pela solução em falta. Aí precisa de ser guiada pelos poderes de antecipação, pois caso contrário as possibilidades de acertar na hipótese apropriada seriam de uma num milhão. Este ponto é fundamental. A imaginação não funciona como um computador, passando em revista milhões de hipóteses inúteis. Funciona antes produzindo ideias guiadas por um sentido fino da sua plausibilidade, ideias que desde o início contêm aspetos da solução. A imaginação continua a trabalhar quando se encontra a solução, no outro extremo de uma investigação científica. Os impulsos da imaginação terão diminuído, mas acreditar que se encontrou uma solução para o problema está cheio de antecipações de possíveis manifestações adicionais, que apenas podemos cogitar pela imaginação. Uma nova teoria, que reivindica ser real, antecipa uma variedade indefinida de manifestações futuras, ainda desconhecidas. A solução de um problema técnico tem implicações porventura não tão indeterminadas, mas são também suficientemente amplas para ocupar largamente a imaginação. Completamos assim a nossa preparação para comparar as obras de arte com as descobertas e as invenções. Recordemos que o significado tem uma estrutura de para. Os elementos subsidiários apontam para um foco; significam alguma coisa para a qual nós atendemos a partir deles. Vimos como uma tal relação semântica se estabelece pela integração de elementos subsidiários num foco, o que nos levou à integração de incompatíveis em obras de arte, consistindo em: (1) estruturas artificiais e (2) “histórias” - conteúdos que por sua vez podem ser expressos na forma de prosa. Vimos como a nossa imaginação produziu um tal objeto imaginativo a partir destes incompatíveis. A procura pela descoberta científica também integra fragmentos de indícios num sentido coerente inicialmente desconhecido (embora a procura seja vagamente guiada por certos poderes de antecipação), enquanto que a invenção técnica começa ao contrário, procurando chegar a um produto que cumprirá uma função definida e esforçando-se por encontrar os meios para o inventar. Produzir uma obra de arte é fazer algo nunca antes visto, mas que o artista apanhou de uma forma vaga por poderes de antecipação, e esta característica essencial da procura pelo artista está mais próxima do cientista do que do inventor. Isto pode parecer estranho, pois o artista não encontra coisas escondidas na natureza, como faz o cientista, mas forja o seu produto tal como o inventor. De facto, algumas artes, tal como a pintura, são meras variantes da produção artesanal. Mesmo assim H. W. Janson está certo ao dizer que

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a construção de uma obra de arte tem pouco em comum com aquilo que habitualmente significamos com “fazer”. É um empreendimento estranho e arriscado em que nunca se sabe bem o que se está a fazer, até que esteja realmente feito; ou, dito de outra forma, é um jogo de encontrar e procurar, em que quem procura não está certo daquilo que procura até que o encontra1. Mas a afinidade entre arte e tecnologia também é importante. Isto torna-se mais evidente quando posto em termos de integração de - para. Um problema científico consiste em elementos subsidiários que antecipam um foco desconhecido. Um problema técnico consiste num foco desejado que antecipa os elementos subsidiários que o implementam. A procura do cientista tem a mesma estrutura de perguntar “o que é que estas palavras significam?”, enquanto que a procura do engenheiro tem a estrutura de perguntar “Quais as palavras que podem exprimir o meu significado?”. Pode parecer que a procura pelas palavras que exprimem um certo significado é exatamente o que um poeta faz e que, por isso, talvez seja central a toda a arte. Mas recordemos que o significado de um poema existe apenas conjuntamente com as suas palavras. O poeta começa com um problema que é largamente indeterminado nos dois extremos: é aberto tanto no seu objetivo como nos meios usados para o atingir. Podemos observar melhor isso no progresso de um pintor. H. W. Janson descreve-o: “… o processo criativo consiste numa longa série de saltos da imaginação e nas tentativas do artista para lhes dar forma moldando o material. A mão tenta executar os comandos da imaginação e faz uma pincelada com esperança, mas o resultado pode não ser bem o que se esperava, em parte porque toda a matéria resiste à vontade humana, em parte porque a imagem na mente do artista está constantemente a mudar, de tal modo que os comandos da imaginação não podem ser muito precisos. … Desta forma, por um fluxo constante de impulsos entre a sua mente a o material parcialmente moldado à sua frente, vai gradualmente definindo cada vez melhor a imagem, até que finalmente toda ela toma uma forma visível”2. Durante o século vinte assistimos a certos desenvolvimentos na física que mudaram os próprios termos com que compreendemos a natureza, e as invenções da tecnologia moderna têm incluído com frequência a invenção das necessidades que satisfazem. Nessa medida a ciência e a tecnologia têm alterado a própria subs1 H. W. Janson, History of Art (New York: Harrv N. Abrams 1962) p. 11. 2 Ibid., p. 10.

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tância da existência intelectual e material do homem. Mas é assim que trabalham todas as artes. Procuram os meios para resolver um problema - um problema que foi concebido para esse mesmo propósito, ou seja, a sua solução. E perseguem essa procura enquanto que ao mesmo tempo continuam a dar forma ao problema, de modo que se ajuste melhor à forma de o resolver. A forma como uma criança cresce para níveis superiores de maturidade física ilustra como opera este tipo de processo criativo, envolvendo uma interação contínua tanto dos meios como dos fins. Mas este é um trabalho da natureza. A arte é o crescimento criativo e deliberado da existência do homem. Como vimos, o arranque de uma investigação científica e o empreender de um problema técnico baseiam-se ambos em antecipações imaginativas de factos desconhecidos, mas começar uma obra de arte é antecipar um resultado que terá existência primeiro na imaginação do artista e depois na do público. Um problema artístico é a antecipação imaginativa, não de factos desconhecidos que num certo sentido já existem na natureza, mas sim de um facto da imaginação - de um poema ou uma pintura que poderia existir. Fizemos notar que o trabalho do artista é uma invenção constante dos meios para exprimir os seus fins, ligado com reajustes dos seus fins tendo em consideração os seus meios. Esta forma de crescimento deliberado tem semelhanças com a inquirição científica ou técnica ao oferecer, por vezes, oportunidades de inspiração súbita e, noutros momentos, por exigir dores infinitas. Exemplos disso existem em todas as artes. Talvez a diferença mais importante entre as artes, por um lado, e a ciência e a tecnologia, por outro lado, se encontre no extremo da sua busca, na forma como as duas são testadas. As invenções técnicas e as descobertas científicas são sujeitas a testes mais impessoais do que as obras de arte. No entanto, esta diferença, embora importante, não é absoluta; compreenderemos melhor a natureza da validade artística se mostrarmos a forma como os critérios pessoais se aplicam até mesmo nos trabalhos mais impessoais da mente. Nos capítulos 2 e 3 vimos até que ponto a participação pessoal está envolvida na ciência. Tendo isso em conta - e as indeterminações consequentes que essa participação acarreta - é evidente que não existem provas estritas para qualquer área da ciência. A importância radical deste facto é geralmente atenuada por argumentos segundo os quais as afirmações da ciência são apenas prováveis e meramente tentativas; mas isso é um exagero e em qualquer caso é irrelevante. O facto é que não só aceitamos como também dependemos vitalmente de observações científicas (que na realidade não tratamos como simplesmente prováveis ou como meras tentativas), mas fazêmo-lo com base num critério não estrito. A nossa confiança na validade de uma conclusão científica depende em última análise de um julgamento de coerência. E como não pode existir um critério estrito para a coerência,

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o nosso julgamento deve permancer sempre um julgamento qualitativo, não formal, tácito, pessoal. O reconhecimento de uma contribuição proposta para a ciência é portanto controlada por um sistema súbtil de valores, que são decisivos para a conformação da própria conceção de ciência. Há na realidade três grandes valores científicos. Sendo o resto igual, uma contribuição para a ciência será tanto mais valiosa quanto mais clara e impessoal for a forma como se estabelece a variável sobre a qual se baseia; e, sendo tudo o resto igual, uma vez mais, terá tanto mais valor quanto mais profundos e abrangentes forem os aspetos sistemáticos da contribuição; e finalmente ambos são transcendidos por um valor pré-científico: o interesse corrente do assunto. A proporção em que estes três valores se encontram nas diferentes ciências é muito variável, mas mesmo assim as várias combinações devem ser avaliadas globalmente como um único valor global, que é essencial para a condução racional da ciência. Mas quem avalia esse valor? Como é que estes valores se cultivam sem suprimir a originalidade que pode exigir uma renovação desses valores? Uma vez mais, não há critérios estritos para fazer essas decisões. É óbvio que a condução da ciência está cheia de julgamentos de valor, e por dúvidas acerca de como exercer um tal julgamento de valores, em muitos casos tal como na condução de qualquer arte. O cientista, ao aplicar critérios não estritos à avaliação do mérito científico, fá -lo na convicção de que esses critérios são universalmente válidos e que a opinião científica do seu tempo endossa as suas propostas. Precisa que tais julgamentos de valores sejam “objetivos” e confia que assim sejam. Logo a validade é atestada pela autoridade dos cientistas como um todo - não simplesmente pela autoridade de um julgamento pessoal dos cientistas que contribuiram. O sucesso da ciência na imposição universal de tais padrões, definidos por ela própria, apoia uma prática semelhante na vida das artes. Para apreciar toda a profundidade desta relação, precisamos primeiro de ver quais são as características das artes em que se manifesta com mais força. As artes são obras da imaginação, tal como as ciências. Mas todas as nossas esperanças e receios, todas as nossas memórias e sentimentos sobre nós próprios, os nossos desejos suprimidos e os sentimentos escondidos de remorsos, tudo o que vemos a dormir e certamente também à luz do dia, e todos os nossos movimentos corporais voluntários - tudo isso também são trabalhos da nossa imaginação. Porque é que a palavra “imaginação” evoca instantaneamente nas nossas mentes a noção de obras de arte, mais do que qualquer um dos outros assuntos? A razão que ocorre facilmente é que apenas as artes procuram transmitir a sua imaginação a um público - a sucessivas gerações de públicos - e dependem dos poderes imagi-

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nativos dessas pessoas para a aceitação desses trabalhos da sua imaginação como significativos. Mas podemos também explicar o que é que qualifica as artes - e só as artes - para este cometimento. As nossas vidas são amorfas, submersas em centenas de correntes cruzadas. As artes são representações imaginativas, talhadas em modelos artificiais; e esses modelos, quando integrados conjuntamente com conteúdos importantes, produzem um sentido distintivo de qualidade. Estes modelos artificiais são, como vimos, o que separa as obras de arte dos fluxos amorfos da experiência pessoal e da vida pública. Tornam as obras de arte algo independentes, em muitos casos portáteis e reprodutíveis, e potencialmente imortais. Na poesia, a intensidade da imaginação artística alimenta-se da invenção de metáforas de grande alcance. A condução da ciência pode também invocar poderes da imaginação para integrar peças de evidência muito dispersas, para a formação de uma nova descoberta; mas a fusão destes indícios previamente isolados será depois facilmente aceite como um facto. Mas não é esse o caso na fusão de assuntos díspares numa metáfora. A metáfora continuará a alimentar muito do fogo da imaginação que serviu para a sua criação, e os que respondem à metáfora continuarão motivados pelas visões e pelos sentimentos da resposta. Quando a estrutura artificial de uma obra de arte, integrada com o seu conteúdo em prosa, se estabelece como uma obra de arte, também estabelece uma reinvindicação sobre a validade universal do seu valor. Este é o ponto que antecipámos quando passamos da ciência para as artes. O artista pode corretamente argumentar que, quando reivindica uma validade universal para o seu padrão autodefinido de valores, está a fazer como os cientistas fazem quando reivindicam uma validade objetiva para os seus próprios padrões autodefinidos de valor científico. Mas o produtor de uma obra de arte reivindica mais do que isso. Uma obra de arte leva a marca do seu criador. Nomeie-se um grande pintor ou escultor, poeta ou autor de teatro, dos séculos passados, e o seu estilo virá fácilmente à mente de muitos dos amantes da sua arte. Um cientista tem também o seu próprio estilo na construção dos problemas e na sua exploração, e pode mesmo introduzir alterações nos padrões de interesse científico e até mesmo na sua validade. No entanto, uma vez aceites, esses padrões modificados serão aplicados por todos os cientistas nas suas próprias investigações. Mas só um falsificador tentará pintor novos Renoir ou Cézanne, ou escrever novos sonetos de Shakespeare ou peças de Ibsen. Enquadrando o seu trabalho num certo padrão, o artista separa a sua obra relativamente à sua vida pessoal, mas por este mesmo ato inclui o seu próprio e único problema artístico, e a sua solução, num padrão que delimita a propriedade que oferece ao público. Na realidade é devido ao reconhecido valor desta personificação num padrão único que as falsificações de obras de um artista em particular

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podem ser tentadas e ter valor. Ninguém sonharia em falsificar uma nova descoberta de Einstein. Apenas o artista se pode separar de si próprio, como artista e como indivíduo privado, e também personificar essa personagem artística na sua obra. Os cientistas não podem fazer isso. Por isso, toda a arte é intensamente pessoal e estritamente imparcial; e precisa, como se disse, de reivindicar uma validade universal para o padrão pessoal autodefinido a que obedece. Um tal reivindicação vai para além do que é reivindicado pelos significados e pelas descobertas que os cientistas aceitam como estabelecidas de forma objetiva. Que um certo cientista tenha criado uma teoria não é visto, mesmo por ele, como uma razão suficiente para que alguém a aceite e a valorize. Mas note-se que a reivindicação de um artista pela autonomia não ultrapassa substancialmente a reivindicação de um cientista por uma autonomia baseada no padrão autoestabelecido que guia a sua persecução da ciência. A comunidade científica confia nos cientistas maduros para aplicarem consideráveis somas de dinheiro - e de tempo dos seus assistentes - na exploração de problemas que eles pessoalmente julgam ser mais promissores do que outras linhas possíveis de inquirição, e também confia neles para irem atrás dos seus próprios pressentimentos. As suas antecipações imaginativas de viabilidade e interesse são aceites, e essas avaliações mostraramse já suficientemente corretas para justificar essa política. Podia-se pensar que, por linhas semelhantes, se pode deixar a responsabilidade final pela aceitação das inovações artísticas ao público, porque a arte não pode entrar na posse pública a não ser que o público seja tocado por ela, e podese pensar que isto significa que a totalidade da comunidade artística deva incluir tanto os artistas como o seu público. Mas uma reflexão breve mostra-nos que isso implicaria ampliar a gama de padrões artísticos autodefinidos e relevantes para passar também a incluir os padrões autodefinidos dos não artistas. O facto das audiências do século vinte terem aprendido a apreciar qualquer inovação, quase sem exceção, pode bem fazer-nos hesitar em aceitar o seu julgamento crítico. Seria preferível contar antes com aqueles cujo labor e sofrimento é necessário para satisfazer os padrões autodefinidos pelo seu próprio trabalho. A sua perserverança perante a rejeição pelo público pode muitas vezes ser um teste melhor para os padrões autodefinidos do que uma rápida aceitação da sua obra pelo público. Era seguramente assim no período de 1870 a 1930. A arte não tem testes externos à arte. A sua produção e aceitação deve por isso basear-se, em última instância, na decisão do seu produtor, interagindo tanto com a tradição como com as inclinações atuais do público, mas interagindo sempre através dos próprios juizos do produtor. O facto do artista precisar de se esforçar para encontrar os seus próprios padrões autodefinidos é uma garantia suficiente de que se submete a estes como sendo padrões universais,definidos por si de for-

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ma não arbitrária e intencional. Poderá ser o primeiro a reconhecê-los, mas mesmo assim sente-se preso a eles, mas não superior; para o artista, a sua inovação de padrões aparece como uma descoberta, tal como a criação inovadora de uma natureza estatística da natureza aparece ao físico moderno como uma descoberta. Que estes fundamentos da criação artística sejam irrevogáveis não significa, no entanto, que sejam infalíveis; podem ser objeto de contestação por outros artistas, tal como as explicações estatísticas da teoria quântica foram contestadas por outros cientistas. Podem eventualmente vir a ser abandonadas. Mas isso seria uma alteração (feita pelos próprios artistas) noutros padrões autodefinidos, cuja adoção seria então a justificação última para todo o trabalho feito sobre a sua orientação. Na realidade, estes padrões terão sido eles próprios estabelecidos, como são todos os princípios, por trabalho válido feito sobre o seu próprio controlo. Não foram escolhidos por um ato deliberado (mesmo que responsável) antes que tenha sido feito trabalho significativo sob o seu controlo. Como vimos no capítulo 3, os novos princípios conhecem a existência como parte de indícios subsidiários que estabelecem uma nova coerência. Só depois desta nova coerência ter sido conseguida é que é possível ver quais os novos princípios que a fundamentam. É por isso que podemos dizer que os princípios e padrões são autodefinidos, mas nunca deliberadamente escolhidos. Tal é a estrutura de um compromisso responsável, distinto de uma “escolha” puramente subjetiva, arbitrária, caprichosa. Esta estrutura aplica-se igualmente nas artes e nas ciências - e também com o público, quando este aprova ou rejeita obras de arte. Mas é o público que deve aprender os critérios com os artistas, não os artistas com o público. Sempre que precisamos de decidir um julgamento, não podemos deixar de considerar o critério último e definitivo. Mesmo uma incapacidade para julgar exige que se considere um critério final para essa recusa. O ponto é que, no entanto, muitas vezes não temos consciência desses critérios até que tenham sido usado como indícios subsidiários numa integração focal. Fica ainda uma diferença entre o critério último das artes e das ciências. Os méritos da formulação estatística da teoria quântica, com base nos quais a teoria foi aceite, são especulativos, enquanto que na renovação na arte - por exemplo, quando a pintura foi renovada pelo impressionismo - a atração reside nos poderes imaginativos despoletados por esta nova visão. O mesmo é verdade ao julgar o tipo de visão do mundo projetada pela ciência. Tais visões do mundo são julgadas não por critérios especulativos apropriados da ciência, mas pelos critérios pelos quais a arte é também julgada - pela atração dos poderes imaginativos libertados por essa visão do mundo; porque a extensão do pensamento científico na formação de uma visão do mundo é um trabalho da imaginação, não de um intelecto formalmente crítico.

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Este é um ponto importante, dado que a principal influência da ciência no mundo moderno não tem sido, como habitualmente se considera, através do avanço da tecnologia; mas antes através dos efeitos imaginativos da ciência sobre a nossa visão do mundo. A revolução industrial fez-se sem uma ajuda substancial das descobertas científicas desse tempo, mas sim pelos efeitos imaginativos que a revolução copérnica já tinha espalhado. O universo visível tinha-se expandido imenso, a terra tinha sido retirada da sua suposta posição central, e os campos últimos da existência do homem reduzidos à mecânica da matéria em movimento. Durante os últimos oitenta ou mais anos, o progresso da ciência tornou-se uma fonte importante do progresso técnico, e isso alterou muitos dos nossos hábitos, melhorou a nossa qualidade de vida e trouxe-nos alguns problemas especiais; mas não teve um efeito tão profundo sobre as nossas conceções acerca de nós próprios, como seres humanos, como tinha tido o darwinismo, e o darwinismo não é responsável por qualquer progresso técnico. Não foi a tecnologia que produziu as ideologias totalitárias que deram origem aos grandes desastres do século vinte, assim como o sentimento de absurdo e o desprezo pela liberdade humana que são hoje correntes. Podemos antes agradecer isso à imagem científica do mundo, tal como refletida na mente moderna. Tais imagens não podem ser testadas pela experiência, da mesma maneira como são os conteúdos atuais da ciência. Estas imagens da visão do mundo são obras da imaginação que toma parte da ciência como o seu assunto. Como todas as obras de ficção, devem tratar o seu tópico de uma forma bem informada e plausível. Recorda-se a famosa afirmação de Laplace, segundo a qual uma inteligência que, num dado momento do tempo, conhecesse “todas as forças que animam a natureza e a situação de cada um dos seres que a compõem … englobaria na mesma fórmula tanto os movimentos dos maiores corpos do universo como do mais pequeno dos átomos; nada seria incerto e o futuro, tal como o passado, estaria presente aos seus olhos”3. Esta afirmação tem a mesma plausibilidade que uma boa passagem de um livro de ficção científica. Embora se possa mostrar que é absurda, a demonstração do seu absurdo não impressiona aqueles cientistas, ou não cientistas, que ficam encantados com o seu magnífico esplendor e com a exaltação de um aspeto brilhante da ciência. Isto não significa descrer dos trabalhos da imaginação que apresentam uma visão do mundo. Longe disso. Estas páginas representam uma tentativa de es3 Pierre Laplace, A Philosophical Essay on Probabilities, Trad. F. W. Truscott e E. L. Emory (New York: John Wiley & Sons, 1902), p. 4.

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boçar uma dessas visões do mundo. Mas de momento estamos preocupados em mostrar até que ponto a imaginação científica se baseia nos mesmos princípios que suportam as artes. Logo, quando Lapalace escreve que “o futuro, e o passado, estaria presente aos seus olhos”, temos que ler isso tal como lemos o verso de Shakerpeare “Mas teu eterno verão jamais se extingue”; e note-se que Laplace e todos os que constroem imagens do mundo inspirados pela ciência, entram numa área da liberdade que é mais própria da poesia e da pintura, das peças de teatro, ou de qualquer das outras artes. Talvez não tenha sido por acaso que Lucrécio era um poeta ou que Platão, antes dele, no seu Timaeus tenha chamado “uma história plausível” à sua própria mundividência. Desenvolvemos a teoria de I. A. Richards, segundo a qual as artes nos podem tocar mais profundamente do que acontecimentos “reais” e correntes porque associam o seu conteúdo temático com as características artificiais de uma estrutura de enquadramento. Esforçámo-nos também por mostrar que esta associação de conteúdo e estrutura é uma integração que produz a sua própria experiência puramente imaginativa e incomparável - uma experiência que não se pode julgar por um critério externo - e gostaríamos de tomar essa experiência imaginativa como a pedra fundamental de uma teoria estética. Comover esteticamente o homem é agitar a sua imaginação para fazer tais integrações. A estética tem falado ao longo dos tempos acerca da harmonia e da beleza que nos agradam nas artes. Mas outras belezas também nos podem dar prazer. A beleza intelectual de uma teoria científica é um prazer, tal como a beleza de um pôrdo-sol ou de uma mulher; e a palavra “beleza” é hoje em dia usada de uma forma muito livre para elogiar uma invenção engenhosa, uma combinação elegante no xadrês ou um feito supremo de atletismo. Mas estas belezas dificilmente mexem com a nossa imaginação, excepto em termos de interesses especiais do tipo pessoal ou profissional. Belezas deste tipo são, na realidade, demasiado harmoniosas como arte, cuja auto-avaliação depende de ligações entre elementos incompatíveis através dos poderes da integração imaginativa. A poesia moderna, a pintura moderna, e as peças modernas e a sua representação têm-no provado claramente. Só um esforço considerável para atingir uma integração das suas partes poderá revelar o seu significado. Nos nossos dias vimos outros dilúvios de imaginação, nas terríveis lutas das ideologias modernas, moldadas por uma visão científica do mundo. A ética e a religião são também expressões fortes da imaginação e podem estar fortemente entrelaçadas com obras de arte. Mas a única obra da imaginação que tem rivalizado com o poder da arte para nos comover tem sido o poder das ideologias totalitárias. O governo soviético decretou que o materialismo dialético deve ser a mundi-

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vidência da ciência. Esta imposição teve efeitos sobre alguns ramos importantes da investigação biológica e colidiu também, por momentos, com os princípios modernos da física e da fisica química. Considerando os seus primeiros cinquenta anos de poder, essa filosofia oficial, no entanto, não retardou muito o progresso da ciência na U.R.S.S.. Os sucessos científicos não parecem ter sido menos distintos neste período do que nos meio século anterior, quando comparado com outras nações europeias. No entanto, e por contraste, o efeito da ideologia soviética sobre as artes foi devastador. Os cientistas continuaram a viver em paz, mas os que tentaram desenvolver a sua própria imaginação nas artes foram considerados como uma ameaça ao estado e tratados como tal. Na pintura, em que a contribuição russa antes de 1917 era menos distinta, a submissão à doutrina do “realismo socialista” provocou uma destruição quase total e produziu um estilo com um nível de filistinismo vazio e sem qualquer paralelo na Europa. Nas outras artes, em que a posição da Rússia tinha estado entre as primeiras da Europa, a contribuição russa caíu quase para o nível da insignificância. Isto mostra quanto os poderes da imaginação artística dependem da autonomia dos artistas e também o poder que reside essencialmente na imaginação artística quando esta cria uma visão do mundo. A persecução da ciência, como tal, apenas envolve mínimamente a imaginação, quando comparada com a persecução das artes. Na realidade, a persecução da ciência só tem alguma importância real quando baseada no pensamento, sentimentos e objetivos do homem, e quando, com base na ciência, a imaginação artística desenvolve uma chamada visão científica do mundo. Nessa altura a sua relação com as nossas vidas parece ser universal. Por isso devemos julgar a qualidade de uma visão “científica” do mundo pela riqueza das suas integrações imaginativas, tal como os artistas julgam a qualidade das suas próprias produções de arte. Não nos devemos esquecer que o nosso objetivo nesta inquirição não é simplesmente desenvolver, com uma sólida base epistemológica, a semântica das coerências artificiais descobertas (ou criadas) pelo homem - como se isso fosse um trabalho académico, profissional e frio - mas produzir, de uma forma semelhante á da arte, uma nova e comovente visão do mundo, mais rica, sob o ponto de vista imaginativo, do que a integração de partes díspares do que as vises até agora oferecidas pelos nossos fabricantes de mitos científicos.

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dicionário de citações de Oxford lista cerca de setenta mil palavras chave com referência a um mesmo número aproximado de linhas de texto, principalmente de poesia. Isto mostra a variedade de frases criadas pelos poetas na língua inglesa, que os povos dessa língua podem usar para dar forma aos seus pensamentos, e isto é apenas um fragmento das ideias disponíveis. Podemos usar ideias de outras poesias que não a inglesa, assim como peças, pinturas e esculturas. Hoje em dia está na moda menosprezar as ideias de outros. Diz-se que não podem exprimir convicções genuínas. Mas isso é um absurdo. Como vimos, não podemos começar a descobrir ideias novas, mesmo em ciência, sem primeiro adoptar um quadro de referência com as ideias que outros tiveram antes de nós. Na realidade, a própria ideia de reclamar uma autonomia absoluta para os nossos pensamentos é, por si mesma, uma doutrina tradicional, desde Descartes. Na sua forma radical moderna, que nos ensina a escolher os nossos próprios valores, essa é a doutrina de Nietzche, já com quase cem anos de idade. Entre as ideias facilmente disponíveis para a nossa cultura, um grande número transmite-se na forma imaginativa e são por nós aceites nessa forma. Podemos compreender como isso acontece se pensamos a arte como uma extensão da perceção. Estamos habituados a considerar as nossas perceções dos objetos como as nossas respostas para com eles; mas, tal como vimos no capítulo 2, podemos antes olhar para a perceção como um ato de inferência tácita destinado a interpretar corretamente os indícios de objetos externos no nosso corpo. Se compreendemos a perceção desta forma, como uma integração da experiência, podemos também compreender a visão do artista como uma integração da experiência que, tal como a perceção, pode ter sucesso ou falhar - ou conseguir apenas um sucesso parcial. O próprio artista julgará em primeiro lugar se o seu produto é, ou não, uma resposta verdadeira à sua experiência. Depois os leitores ou os observadores responderão ao seu significado pela experiência que a obra do artista lhes evoca, que aceitarão como verdadeira quando profundamente tocados por ela. Vimos que, para isto acontecer, a interpretação que o artista faz da experiência precisa de diferir muito das nossas perceções habituais. Não deve representar experiências diárias nem problemas correntes. Deve tratar o seu assunto tal como ele era num dado momento, de tal modo que a sua mensagem também possa ser igualmente transmitida nos momentos breves da sua apresentação. Isso significa, como também já vimos, que a individualidade criativa do artista se diferencia das fantasias da sua própria existência privada. Montar uma obra de arte à parte dos

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problemas práticos e concretos da vida quotidiana confere-lhe uma significância universal, mas também pessoal, a que outros também podem responder. Esta condensação e isolamento da arte alcança-se pela sua estrutura artificial, que infunde a obra de arte com qualidades peculiares que a distinguem claramente das nossas experiências ordinárias. É nos termos de tais expressões artísticas que a poesia, a pintura, a escultura e o drama transmitem, a gerações sucessivas, toda a gama de ideias de que o uso corrente de setenta mil versos de poesia inglesa é um testemunho. O artista condensa a sua compreensão das coisas que o homem viu e fez; e quando essa compreensão nos apela, adotamo-la e clarificamos a nossa vida através dela. A arte comove-nos portanto pela sua influência sobre a qualidade da nossa própria existência. Por outras palavras, sem arte a nossa existência teria muito menos significado para nós. Algumas obras de arte continuam a fazê-lo durante séculos. Os seus significados são de uma profundidade e de uma universalidade suficientes para personificarem aqueles aspetos da experiência humana que permanecem inalterados ao longo do tempo. É isto que significamos quando dizemos que a grande arte é “imortal”. Mostramos no capítulo 5 que a aceitação de uma obra de arte pelo seu público não se deve a uma suspensão da incredulidade (como Coleridge defendia), mas deve-se antes à nossa imersão na crença de que as obras de arte são significativas e têm sentido. Com base nesta convicção, temos eventualmente sucesso na descoberta de um significado conjunto para elementos que são focalmente incompatíveis numa obra de arte em particular, à nossa frente. Vemos a importância desta refutação da ideia de que a nossa aceitação da arte se deve a uma suspensão da nossa incredulidade se voltarmos aos antecedentes da falácia em questão. Encontramos uma primeira afirmação no Livro Dez da República de Platão (595a-599e), onde Sócrates chama “mimesis” à simulação supostamente praticada pelos pintores, a falsificação da verdade. A preocupação de Platão sobre a natureza ilusória da arte pode ter tido origem em dois desenvolvimentos do pensamento grego durante o século quinto (antes de Cristo). A arte grega tinha assumido uma posição revolucionária na direção do naturalismo. Gombrich chamou-lhe uma mudança de “fazer” para “comparar”, ou seja, de fazer símbolos para passar simular objetos1. Ao mesmo tempo, a filosofia desenvolveu um interesse dominante por distinguir claramente entre a aparência e a realidade. Foi à luz disto que a imperfeição da nova arte imitativa foi aberta à crítica. Mas o problema era mais geral e entrou na herança do pensamento crítico ocidental, na forma em que Coleridge o haveria eventualmente de encontrar. O movimento romântico do século dezanove mitigou o dilema invocando que o conteúdo da arte é predominantemente subjetivo e pessoal. Logo, não imita. 1 E. H. Gombrich, Art and Illusion (London: Phaidon Press, 1962), pp. 85-86, 91-101.

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Simplesmente exprime os nossos sentimentos pessoais e subjetivos. Mas o aguçar progressivo do pensamento cético, que conduziu a um questionar global de todos os valores tradicionais, incluindo o valor da pessoa individual, e que foi adoptado pelo movimento romântico, levou a que qualquer afirmação enfática dos sentimentos mais profundos do homem parecesse trivial, e exprimi-los em padrões artísticos convencionais soava a falso. A crítica da arte por Platão, mostrando que a mimesis artística é uma falsificação da verdade, reapareceu assim nos nossos dias para apoiar uma tentativa de obrigar a arte a abandonar toda e qualquer expressão explícita de conteúdo positivo. Uma expressão explícita dos nossos estados foi considerada demasiado trivial; uma expressão explícita da verdade sobre as coisas, impossível. Este movimento tem hoje mais do que um século. Começou na poesia desde as Fleurs du mal, de Baudelaire, publicada em 1857. Passou para a pintura e para a escultura em vários tipos de pós impressionismo, e depois para o palco, com Pirandello, no período entre as duas guerras, e estendeu-se à ficção, na forma de anti-novela, nos últimos vinte anos. No prefácio de Fleurs du mal, Théophile Gautier escreveu que Baudelaire tinha banido a eloquência e a paixão da poesia. Isso aparece também na dedicatória do livro ao leitor, do próprio Baudelaire, que se lhe dirige como “- Leitor hipócrita, - Meu semelhante, - Meu irmão”2. Os refinamentos da linguagem poética, cultivada durante séculos, são postos de lado, e uma sequência de imagens dificilmente coerentes, com misturas sórdidas, é atirada à cara da sociedade pelo poeta, sociedade que ele acredita ter sido corrompida pelas suas próprias mentiras. Os poderes imaginativos únicos gerados pela justaposição de palavras, que à primeira vista são incoerentes, foi ainda mais desenvolvido, cinquenta anos depois, por Rimbaud. O seu poema “Bateau ivre” estabeleceu definitivamente a nova conceção de poesia, de que Baudelairejá antes já se tinha aproximado. Veja-se a tradução da quinta quadra, entre as vinte e cinco estrofes que compõem este poema: Mais doce do que maçãs azedas para uma criança, A água verde infiltrou-se pela madeira do meu casco Lavou-me as manchas azuladas de vinhos e de vomitado E dispersou o arpéu e o leme E no orginal em francês3: 2 Charles Baudelaire, Oeuvres competes de Charles Baudelaire, ed. Jacques Crepet, 19 vols. (Paris: Louis Conard, 1930), 1:7. 3 Arthur Rimbaud, “Bateau ivre”, Oeuvres de Arthur Rimbaud (Paris: Mercure de France, 1937), p.

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Plus douce qu’aux enfants la chaire des pommes sures, L’eau verte pénétra ma coque de sapin Et des taches de vins bleues et des vomissures Me lava, dispersant gouvernail et grapin O som do original francês é tentador de ouvir, e a sequência de imagens, ora torcida, ora a fluir, surpreende alternadamente e recompensa a nossa atenção. Treinados como estamos, depois de todo um século durante o qual este poema tem inspirado um sem número de sucessores, não temos grande dificuldade em refrear o pedido de uma explicação do conteúdo em prosa desses versos. Foi o exercício desta barreira que Rimbaud tinha em mente quando disse a um amigo que um poeta se deve transformar a si próprio num vidente através de um longo, gigantesco e racional desarranjo de todos os sentidos4. Quando diz que um poeta deve ser um vidente, quer dizer que deve ser capaz de fundir uma sequência de imagens incoerentes num poderoso significado comum. A técnica de Baudelaire e de Rimbaud foi depois adotada por muitos poetas que lhes sucederam. Essa influência aparece refletida no ataque que Tolstoi lhe fez no ensaio “What is art?” (“O que é a arte?”), publicado pela primeira vez em 1897. Denunciou Baudelaire, Verlaine, e Mallarmé por estabelecerem toda uma escola decadente de poesia sem sentido5. Poderia ter indicado muitos mais poetas da mesma escola, especialmente em França. Só depois da Inglaterra e da América terem sofrido a experiência destruidora da primeira grande guerra é que a influência da nova poesia lá chegou, cinquenta anos depois da sua fundação em Paris. Waste Land, de Eliot, publicado em 1922, foi um dos primeiros frutos disso. Quando este poema foi rejeitado pelos críticos como ininteligível, I. A. Richards veio em sua defesa num artigo que ecoava o apelo de Rimbaud para que não se pedisse um significado, ponto por ponto, à poesia. Responsabilizou a incapacidade de Middleton Murray para compreender o poema, em consequência da sua abordagem demasiado intelectual. Apelando para aqueles “que ainda dão aos seus sentimentos precedência sobre os seus pensamentos, que podem aceitar e unificar uma experiência sem a tentar capturar numa rede intelectual ou extrair daí uma doutrina”, continuou e descreveu a técnica de Eliot como uma música de ideias: 85. A tradução na versão original desta obra era de Michael Polanyi. A versão desta edição é da responsabilidade do tradutor. 4 Arthur Rimbaud, Letter to Paul Demeny, 15 May 1871, in Complete Works and Selected Letters, ed. e trad. Wallace Fowlie (Chicago: University of Chicago Press, 1966), p. 307. 5 Leo Tolstoy, What is Art?, trad. Aylmer Maude (Indianapolis: Library of Liberal Arts, i960), pp. 76-99 (chap. 10).

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As ideias são de todos os tipos, abstratas e concretas, gerais e particulares, e, tal como as frases dos músicos, organizam-se não porque nos dizem alguma coisa, mas sim porque os seus efeitos se podem combinar num conjunto coerente de sentimentos e atitudes e produzir uma libertação peculiar do desejo. Elas estão lá para serem respondidas, não para serem ponderadas, ou para serem resolvidas6. A nova poesia tornou-se conhecida sob vários nomes. Três deles são muito conhecidos: um é o simbolismo, outro é o intuicionismo e um terceiro é o formalismo. O nome simbolismo diz-nos que os assuntos referidos nesses poemas não se devem entender por si próprios, mas sim de uma forma metafórica, com base no sentido global do poema. O termo “intuicionismo” refere o facto de que as integrações das diversas partes do poema, para formar um todo, é essencialmente espontânea; tanto a maneira como o poeta forma o poema, como a maneira como o seu leitor apanha o seu significado, são ditos serem processos essencialmente espontâneos. E denominar uma tal poesia como “formal” ou “estrutural” diz-nos que a significância dos seus vários versos é muda e desperta a imaginação. Mas parece ser mais apropriado chamar “visionária” a tal poesia, pois o seu significado é criado por um ato poderoso da imaginação, que funde todos os detalhes num só. Precisa de ser apreendido por uma experiência visionária, tal como o próprio poeta a apreendeu no seu ato criativo. Assim, nesta obra, chamaremos “visionária” a essa poesia, e a todas as artes ligadas com ela. Como um poema puramente visionário nada diz que se possa exprimir numa afirmação em prosa, o problema da mimesis não se põe. A afirmação de um poema visionário é semelhante à das pinturas não representativas, que mostram figuras familiares em fragmentos ou combinações absurdas, talvez distorcidas ou coloridas de maneiras fantásticas; afirma, tal como o fazem os pintores surrealistas ou cubistas, que estes elementos díspares têm um significado conjunto, um significado que será tanto mais espetacularmente novo - e mais excitante e comovente - quanto mais incompatíveis forem os seus elementos não integrados. A renovação da pintura, também ela num estilo rebelde, coincidiu no tempo e no espaço com a ascensão da poesia visionária. Começou com o impressionismo, um movimento coerente no início dos anos sessenta em Paris, e fez muito do seu curso antes de se espalhar pela Europa continental, da Rússia até à Itália, ao virar do século. O seu desafio às convenções vazias estava alinhado com a nova poesia, mas o seu programa era dirigido no sentido oposto: não para emancipar o artista da obrigação de uma descrição fiel da experiência mas, antes pelo contrário, insistindo sobre a produção daquilo que se pensava ser uma representação muito 6 I. A. Richards, Principles of Literary Criticism (New York: Harcourt, Brace, 1942), p. 293.

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mais verdadeira da natureza do que a dos académicos que mandavam nos gostos dessa época. Fosse ou não mais fiel à natureza, o impressionismo certamente implicava um exercício novo da imaginação e espalhou pelo público um hábito novo (de que falaremos no último capítulo) para alargar deliberadamente o espaço da visão artística. E penso que foi essa experiência que abriu caminho, ao virar do século, ao futurismo italiano, ao fauvismo francês, ao expressionismo alemão, ao suprematismo russo e, eventualmente, aos vários tipos de pintores abstratos, todos eles unidos na emancipação, por formas diversas, através dos poderes visionários do pintor relativamente à simulação da natureza. Voltaremos, dentro de momentos, à subversão social que acompanhou essas inovações artísticas. Por agora será suficiente dizer que esta subversão se intensificou muito com a experiência da primeira guerra mundial e a vitória da revolução comunista na Rússia. Foi este o momento em que a inovação na pintura apanhou a arte da poesia visionária. Iniciada pelo dadaísmo na Suíça, durante a primeira grande guerra, a nova pintura apenas foi efetivamente lançada, alguns anos depois em Paris, pelo programa do surrealismo. No capítulo 4, ao tratar das metáforas, referimo-nos à ideia de André Breton que “juntar dois objetos, tão remotos um do outro quanto seja possível, e uni-los numa forma súbita e surpreendente, é a tarefa suprema a que a poesia pode aspirar”. Esta declaração afilia o surrealismo com a escola dos poetas visionários, e a prática da pintura surrealista confirma esta afiliação. As composições surrealistas estão cheias de formas e representações totalmente incoerentes, e este absurdo brilhante é muitas vezes reforçado por secções de pintura intercaladas com as perspetivas mais díspares. A pintura surrealista é portanto uma pintura visionária que se junta tardiamente à poesia visionária, como uma segunda arte visionária. O teatro e o filme seguiram ainda mais tarde os princípios da arte visionária. O Rhinoceros de Ionesco e Waiting for Godot de Beckett foram pioneiros no teatro. Last year in Marienbad de Robbe-Grillet esteve entre os primeiros filmes “abstratos” que conheceram uma grande audiência. E uma novela do mesmo autor, Le voyeur, pode também ser considerada como dos primeiros representantes da antinovela. Estes tipos de artes visionárias são porventura ainda mais enigmáticos do que os seus percursores na poesia e na pintura, pois as peças de teatro, os filmes e as novelas falam-nos habitualmente em termos da linguagem de comunicação corrente, e esperamos que cativem a nossa atenção sem um esforço significativo da nossa parte. Logo, achamos a sua forma visionária como ininteligível até que tomamos consciência de que não as devemos tentar compreender como uma re-

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presentação de uma sequência de acontecimentos. Robbe-Grillet diz-nos que, na novela balzaquiana: “o tempo tinha um papel, e mesmo o papel principal; completava o homem, era o agente e a medida do seu destino … As paixões, como os acontecimentos, só podem ser encaradas como um desenvolvimento temporal … Mas na narrativa moderna, o tempo parece ter sido isolado da sua temporalidade. Já não passa … (É) um presente que constantemente se inventa a si próprio … sem nunca se acumular na forma de um passado - logo uma “história” - tudo isto pode apenas convidar o leitor … a um outro modo de participação que não aquele a que estava habituado. … O que (o autor) pediu a si próprio já não é receber um mundo completo e pronto … mas … participar na criação, na invenção … da obra - e do mundo.”7 Para compreender tais peças de teatro, filmes ou novelas, temos que nos treinar - seguindo os preceitos de Rimbaud: não pondo questões para as quais não temos respostas. Só desta maneira podemos induzir os nossos poderes imaginativos para formarem uma visão conjunta dos fragmentos perante nós. É um lugar comum dizer que o artista trabalha pela sua imaginação, mas desde que o problema da mimesis foi formulado, há mais de dois mil anos atrás, essa ideia de que a arte simula algo tangível tem germinado na mente do homem. Esse nunca tinha sido antes o caso, mas só a arte moderna tornou claro que aquilo que a arte faz é criar factos da nossa imaginação. São estes factos da nossa imaginação, que nos são apresentados pelos nossos artistas, que fazem parte do pensamento que forma a nossa cultura. Chegados a este ponto, um leitor pode recordar o que dissemos acerca da separação de um poema em relação às vidas privadas do autor, e do leitor, através da incompatibilidade entre a sua forma e conteúdo em prosa - uma incompatibilidade que exige a sua integração num facto da imaginação totalmente incomensurável com a vida quotidiana. Dissemos que esse mesmo mecanismo opera numa pintura quando a sua perspetiva de profundidade se funde com o facto da tela ser plana. Se esta é a causa do distanciamento de uma obra de arte, precisamos então perguntar como é que a poesia visionária ou as pinturas visionárias podem conseguir esse distanciamento, pois aí esta incompatibilidade entre forma e conteúdo dissolve-se pelo afrouxar da disciplina entre rima e ritmo, e pela destruição de um conteúdo significativo em prosa. É claro que a resposta reside no próprio 7 Alain Robbe-Grillet, For a New Novel, trad. Richard Howard (New York: Grove Press, Inc., 1965), pp. 154-56-

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facto de que um poema visionário não faz declarações coerentes e portanto não se pode envolver na expressão de puros interesses pessoais do poeta - ou do leitor. A situação é semelhante para a pintura surrealista, tal como o é para todas as obras de arte visionárias: o tipo de integração que exigem coloca-as diretamente num domínio da imaginação totalmente separado das preocupações pessoais, tanto do pintor como do público. Se a nova poesia e a nova arte consistem numa sequência visionária de fragmentos incompatíveis, propiciam então um ataque fácil sobre as incoerências da nossa existência social. É o que acontece precisamente no início de Fleurs du mal. Eram tempos em que a perspetiva boémia se estava a formar e tanto Baudelaire como Rimbaud contribuiram para isso. Os boémios professavam um desprezo pelos princípios morais correntes porque a aceitação de quaisquer valores não criados pelo próprio (ou seja, qualquer um já subscrito pela sua sociedade) era intelectualmente desonesta, e em particular porque a sociedade que ensinou essas virtudes não estava à altura disso. Toda a conformidade era assumida como carunchosa. Por alturas do fim do século, a boémia, aprofundada pelas reflexões de Nietzche, tinha-se desenvolvido em niilismo filosófico e, como vimos, a terrível desorientação que se seguiu à primeira guerra mundial transformou os boémios em revolucionários - os “boémios armados” que se lançaram nas batalhas do século vinte que destruíram a Europa. Os pintores e os poetas condenavam o mundo como absurdo e representavam-no como um monte de fragmentos. Mas porque eram artistas, a sua visão trouxe esse monte supostamente morto para a vida, nas suas obras de arte! Assim, estes artistas preservaram a honra dos seus protestos niilistas cortando o mundo aos bocados, mas inadvertidamente triunfaram sobre essa destruição do significado da nossa vida social ao conseguirem evocar, nesse mesmo entulho, imagens nunca antes vistas. Este triunfo fez simultaneamente coroar os artistas como criadores de visões significativas e teve sucesso ao permitir-lhes, nas suas próprias palavras, deixar lá “o monte” como uma expressão de protesto contra as condições caóticas do seu tempo. Este triunfo pode ser compreendido como a face estética da nossa atual inversão moral. A arte moderna pode portanto ser acusada de ter contribuído para a destruição da coerência que constituía a base para as suas descobertas de novos domínios da imaginação. Pode na realidade ter tido algum papel nesta destruição da coerência. Mas o niilismo moderno e a inversão moral emergiram e tiveram influência algum tempo antes de Baudelaire lhes ter respondido. As suas causas fundamentais residem, como vimos, algures para além das artes. A interpretação materialista dos princípios morais no Manifesto Comunista é uma indicação do seu desenvolvimento no ocidente, e Fathers and Sons, de Turgenev, mostra que

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essas eram as ideias dominantes dos intelectuais russos no oriente, quando a sua expressão na poesia ainda mal tinha começado e a sua influência na pintura e no drama ainda estava num futuro distante. As causas próximas da nossa desconfiança sobre a nobreza dos sentimentos reside, como se viu, nos aspetos destrutivos da mundividência moderna associada à nossa imaginação científica. O romantismo teve um papel importante na exaltação dos direitos absolutos do indivíduo mas, à medida que o século dezanove avançava, a influência romântica foi perdendo a sua batalha contra o cientismo e foi depois absorvida por este. A interpretação freudiana do pensamento humano mostra-nos como o individualismo romântico se transformou numa dinâmica biológica em que o “individual” do romantismo se despedaçou em bocados. Os efeitos de uma tal desintegração da pessoa pelo pensamento moderno, incluindo a arte, foram tremendos. A arte moderna teve uma influência clara no descrédito de todas as afirmações dos sentimentos nobres, e podemos lamentá-lo. Mas esta influência perniciosa não apaga os seus sucessos. Acentuou a decomposição do significado (das ideias) pelo seu clamor contra ele, mas os seus poderes para transcender esta decomposição por novos domínios da experiência visionária revelou-nos novos mundos da imaginação. O balanço é, portanto, que parece ter criado mais sentido do que aquele que destruiu, apesar de si próprio. A estrutura da arte manifesta-se melhor se olharmos para a forma como técnicas semelhantes funcionam noutros tipos de pensamento humano. Entre estes tomaremos, como primeiro exemplo, as celebrações das festividades. As celebrações são um tipo de ação que exprime ideias festivas, logo devem ser aqui ditas algumas palavras acerca do tipo de significado imaginativo aí atingido. Tocamos de passagem no significado do desempenho de um ator no palco. Uma peça não fala de pessoas reais ou de acontecimentos reais: o papel do ator é representar pessoas e ações que foram imaginadas pelo autor. Deve responder, pela sua própria imaginação, à imaginação do autor e, assim guiado, deve personificar a parte da peça que lhe está atribuída. Vimos antes que um assunto de interesse intrínseco pode ser simbolizado por um objeto sem qualquer interesse intrínseco. Apesar disso, é claro que um símbolo pode ter alguma semelhança com aquilo que representa. Apliquemos estas características a uma ação. Uma ação sem interesse, por si própria, adquire interesse quando personifica uma outra ação de importância essencial e se torna assim numa ação simbólica. No entanto, o significado de uma uma ação simbólica é realçado se essa mesma ação também tiver alguma semelhança com aquela que personifica - aquela que significa. Uma tal ação simbólica torna-se então também metafórica. Um caso bastante óbvio é quando se faz o sinal da cruz e se lança

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água benta, no rito cristão do batismo. Se se prestar atenção apenas a alguns movimentos da mão, vemos nesse movimento uma figura semelhante ao contorno de uma cruz; o verter da água assemelha-se à ação utilitária de lavar. Portanto as festas, os cortejos e os ritos de luto são não só simbólicos como também são ações metafóricas, logo a sua estrutura é, sob esse aspeto, semelhante ao da poesia e ao de outras obras de arte. Todas essas ocasiões, tal como a poesia e outras obras de arte, rompem com o curso das nossas ocupações correntes e libertam a nossa imaginação das preocupações do quotidiano. Na pintura e no drama, as técnicas básicas e os materiais instrumentais usados por estas artes separam-nas de uma forma bastante definitiva relativamente às nossas experiências normais. Não confundimos, como já se referiu, pinturas e peças de teatro com partes da nossa experiência prática normal. Para a poesia essa separação consegue-se pela estrutura poética do texto. O mecanismo que serve para nos despertar das nossas preocupações privadas, e abrir as nossas mentes para seguir uma obra de arte, são produtos artificiais; o seu poder de despertar e isolar as nossas mentes reside na sua artificialidade, que choca violentamente com a nossa experiência do dia-a-dia. Isto também é verdade para as festividades e ocasiões solenes: é o seu carácter artificial que quebra a nossa rotina diária e desperta as nossas mentes para outros pensamentos. Esta interferência na nossa vida diária é aqui mais direta do que nas artes; exige mesmo uma pausa na persecução regular da nossa vida e exige as nossas melhores vestimentas (ou um vestuário próprio) para participar nos ritos apropriados. As solenidades diferem no entanto das obras de arte porque são essencialmente não originais. Os temas das comemorações são convencionais, e as suas formas são tradicionais, mas são temas importantes, e as suas formas são por vezes profundamente comoventes. Helmut Khun escreveu: “ O que nós celebramos numa festa e o que nela se consagra pode ser de muitos tipos diferentes, mas no fundo é sempre o mesmo: é o conteúdo da verdade na nossa existência ou na existência de uma sociedade”. E vislumbra profundidades até mesmo numa celebração ligeira de um vulgar aniversário: “Quando celebramos e solenizamos a passagem da nossa vida, confirmamos desse modo toda a ordem natural das coisas, de que a vida humana, com o seu ciclo de nascimentos e mortes, é uma parte”8. Assuntos que residem nas profundidades da nossa existência recordam-se melhor nas suas formas tradicionais recorrentes, pois uma maneira “estabelecida” de assim o fazer exprime muito melhor a nossa afiliação com um quadro de referência compreensivo e duradouro do que uma forma simplesmente improvisada para a ocasião. 8 HeJmur Kuhn, Wesen und Wirken des Kuntstuerks (Munich: Kosel-Verlag, I960), pp. 67, 68. A tradução ba versão original desta obra era de Michael Polanyi. A versão desta edição é da responsabilidade do tradutor

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Embora o espírito da arte medieval possa ter sido muito semelhante às maneiras como as ocasiões solenes são hoje comemoradas, os artistas têm tentado, em geral e desde os tempos de Péricles, criar obras da imaginação por vias pessoais e únicas. No nosso século a ideia de arte tornou-se sem dúvida fortemente associada à ideia de inovação. Vamos seguir, de uma forma analógica, o pensamento de Helmut Kuhn acerca deste assunto9. Fazendo uma interpretação própria das suas palavras, vemos que, pela sua independência, as obras de arte estão para além do tempo e que portanto nos falam num determinado momento. Podem passar séculos sobre uma obra de arte, mas se ainda for reconhecida, falar-nos-á de um certo momento. As nossas festas, cerimoniais e solenidades também são retiradas do dia-a-dia e das nossas vidas em curso. Embora muitas vezes falem do passado estão fora do tempo que pretendem transmitir. São momentos intemporais, mesmo que celebrem algo pessoal ou histórico. Temos hoje em dia uma dificuldade especial em viver profundamente os ritos e costumes formais. A nossa têmpera moderna recusa essas coisas. Como são essencialmente não originais, tendemos a considerá-los incapazes de exprimir sentimentos genuínos e rejeitamo-los como uma pretensão frívola. Mas é claro que isto falha totalmente o alvo. É a própria artificialidade das formas tradicionais que lhes permite funcionar como um quadro de referência, separando os acontecimentos a que se aplicam e dotando-os de uma qualidade forte e duradoura, através do trabalho dos nossos próprios poderes imaginativos e luminosos. A destruição de ocasiões formais em nome da autenticidade tem como efeito dispersar a nossa existência por detalhes dispersos sem sentido memorável. Só pela nossa entrega a tais ocasiões é que nos podemos encontrar afiliados num quadro de referência compreensivo e duradouro que dê sentido à nossa vida e morte, assim como às miríades de acontecimentos isolados entre esses dois. De outro modo, não vislumbramos a universalidade que partilhamos com os outros. Ocasiões como o nosso nascimento e morte, e as daqueles com quem partilhamos as nossas vidas, podem ser vistas como essenciais para todo um conjunto duradouro de coisas, quando marcadas por cerimónias ou ritos apropriados. Mas sem tais cerimónias, ficam tão pouco significativas quanto uma pedra em que tropeçamos no caminho, ou uma moeda perdida no metropolitano. Cada um dos inúmeros acontecimentos nas nossas vidas é portanto adventício e o todo é um vazio, uma simples narrativa dita por um idiota, cheia de sons e de fúria, mas que nada significa. Mas a base para a nossa participação significativa em ritos e cerimónias assenta nos mitos que, de algum modo, acreditamos serem verdadeiros. E também aqui aparece uma grande dificuldade para a mente moderna. Não é que não te9 Ibid., pp. 67-73. See also Schriften zur Asthetik (Munich: Kosel-Veriag 1966), p. 271.

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nhamos mitos, mas o que acontece é que estes mitos, reducionistas e relacionados com o cientismo, tendem, pela sua natureza, a destruir o significado de todos os ritos e cerimónias. Devemos a seguir dirigir a nossa atenção para a natureza de mitos diferentes destes - e para a possibilidade da sua verdade.

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omo vimos, as celebrações com solenidades incluem certas ações simbólicas que também são metáforas. Olhando pra os mitos, vemos que são estruturados por tais ações. Focaremos a nossa atenção nos mitos arcaicos - mitos ainda não complicados pela elaboração literária - de modo a tentar ver com mais clareza como os mitos, como tal, funcionam na vida significante do homem. Os primeiros estágios da história do homem mostram-nos, com mais pureza, o tipo particular de expansão básica da mente que se atingiu através do mito. Comecemos pela história do Clever Hans (o Hans inteligente). Este cavalo estava treinado para “responder” a questões simples de aritmética. Apontava-se sucessivamente para os números num quadro negro e o cavalo dava respostas corretas mexendo a pata até que se atingisse o número correto. Observadores críticos não conseguiram encontrar qualquer erro no desempenho do cavalo até que lhe fizeram uma questão para a qual eles próprios desconheciam a resposta. Nessas circunstâncias, o cavalo continuava a abanar a pata indefinidamente e sem sentido. Isso levou à descoberta de que o cavalo tinha anteriormente sido capaz de parar no ponto correto porque os observadores lhe tinham involuntariamente, através de pequenos gestos, sinalizado a sua expectativa que ele parasse nesse mesmo ponto. Como era recompensado quando parava nesses sinais, o animal aprendeu a parar aí. Isto mostra quanto os animais podem rivalizar, e até mesmo ultrapassar, a capacidade nativa do homem para estabelecer regularidades por via indutiva. Os animais também podem identificar membros de uma espécie, ou seja, estabelecer aquilo que funciona como o conceito de uma espécie. A sua agitação durante o sono indica que podem sonhar. O que mostra que também possuem imaginação. No caso do homem, a evolução juntou os poderes inultrapassáveis da linguagem a esses dons. A linguagem torna o pensamento possível, ou seja, pela linguagem passamos a ser capazes de “olhar antes e depois”. Mesmo assim, alguns homens ainda podem continuar cobertos pelo seu meio envolvente, tal como os animais, e os seus pensamentos podem não ser mais do que uma habilidade superior para dominar esses envolventes. Mais tarde voltaremos à questão de saber se as ideias arcaicas sobre a natureza das coisas são o resultado de princípios diferentes de pensamento, presumivelmente inferiores. Primeiro vamos inquirir sobre a natureza dos sucessos intelectuais da mente arcaica na criação do mito. Cada animal forma o centro das interações que definem a sua envolvente, e cada espécie tem o seu círculo distintivo de envolventes. Na sua descrição clássica sobre a postura vertical do homem, E. W. Strauss escreveu que

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na posição vertical, reduz-se o contacto imediato com as coisas … O horizonte alarga-se, afasta-se; a distância torna-se solene, e de grande importância. A direção ascendente, contra a gravidade, inscreve no espaço regiões do mundo às quais atribuímos valores, como os que se exprimem por alto e baixo, levantar e baixar, subir e descer, superior e inferior, elevado e abatido.1 Estas capacidades imaginativas na direção do ascendente e do exterior são apenas algumas das condições necessárias para criar mitos. A conceção do mundo como um todo vai para além deste mero alcançar de objetos observáveis. Formula uma especulação ousada, transcendendo todos os objetos observáveis e estendendo a imaginação muito para além de qualquer horizonte possível que tenha sido experimentado antes. Alguns observadores do comportamento animal notaram certos comportamentos estranhos, que pareciam ser do mesmo tipo daquilo que chamaríamos um comportamento “supersticioso” no homem, porque este comportamento parece ser adquirido, não instintivo, e não parece ser relevante para o sucesso da adaptação do animal; embora não tenha uma relação natural, ou causal, com o que os animais parecem estar a tentar conseguir, esse comportamento acontece sempre, associado com comportamentos eficazes sob o ponto de vista naturalista. Esses erros são dispersos e adventícios nos animais inferiores, mas parecem ser generalizados e organizados entre os homens. Abundam no pensamento arcaico. A ascensão do homem parece ter sido acompanhada por uma explosão de poderes imaginativos que o tornam vulnerável a todo um sistema de erros, de que os animais estão livres. Qualquer mérito superior, ou mesmo qualquer função social, a que possamos atribuir a criação de mitos, tem que reconhecer também a capacidade adquirida para este tipo particular de erro. Mas, por um momento, vamos pôr de lado os erros suscitados pela superstição, pois inevitavelmente levantam a questão principal que estamos a adiar, em particular se os mecanismos intelectuais do homem arcaico eram ou não basicamente diferentes dos do homem moderno. Comecemos a nossa inquirição sobre a natureza dos mitos, como uma realização da mente humana, traçando um paralelo entre a estrutura dos mitos e a estrutura da poesia, em que ambos são entendidos como ações para invocar a nossa imaginação. A nossa inspeção dos mitos arcaicos irá preparar o terreno para uma comparação entre as crenças míticas e a visão do mundo da ciência moderna, a ser discutido mais adiante. O nosso guia para a descrição dos mitos arcaicos e, em parte, para a sua interpretação religiosa, serão os trabalhos de Mircea Eliade. Para corroboração de fon1 Erwin W. Strauss, Phenomenological Psychology (New York: Basic Books, 1966), pp. 144, 142.

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tes anteriores, contamos com Philosophy of Symbolic Forms, de Ernst Cassirer (mas não o seu Language and Mith) e ainda Lucien Lévy-Bruhl em How Natives Think. Eliade distingue claramente entre a construção do mito e outras atividades peculiares da mente arcaica. Aceitamos essa divisão, apesar da continuidade entre mitos e mágica, e todo o sistema de erros arcaicos, pois a continuidade não exclui diferenças fundamentais. Mesmo dentro da área mais vasta dos mitos, Eliade seleciona a parte distintiva dos mitos da criação, e seguiremos essa sua restrição. Este tipo de mito abrange uma visão cósmica que pode retroceder e, por vezes desaparecer, totalmente noutros mitos, tais como os mitos acerca dos heróis super -humanos. Permitam-me que cite uma passagem introdutória de Myth and Reality: World Perspectives, de Eliade: O mito narra uma história sagrada; relaciona um acontecimento que teve lugar num tempo primordial, um tempo da fábula dos “princípios”. Por outras palavras, o mito diz-nos, através das afirmações de seres supernaturais, como é que a realidade terá começado a existir, seja a totalidade da realidade, seja uma ilha, uma espécie de planta, um tipo particular de comportamento humano, ou uma instituição. O mito é, portanto, sempre uma narrativa de uma “criação” e está relacionado com a forma como algo se produziu, como começou a ser2. Os mitos da criação aplicam-se a todos os assuntos importantes e valiosos da nossa vida, fornecendo modelos perfeitos para a morte ou para o casamento, para o trabalho ou para a educação, para a arte e para a sabedoria, que, no início, eram todos perfeitos (no mito): Os mitos … narram não só a origem do mundo, dos animais, das plantas, e do homem, mas também todos os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se tornou naquilo que é hoje - mortal, sexuado, organizado numa sociedade, obrigado a trabalhar para poder viver, e a trabalhar de acordo com certas regras. Se o mundo existe, se o homem existe, é porque os seres supernaturais exerceram os seus poderes criativos no “princípio”. Mas depois da cosmogenia e da criação do homem aconteceram outros eventos, e o homem, tal como é hoje, é o resultado direto destes acontecimentos míticos, é formado por esses eventos. É mortal porque algo aconteceu in illo tempore3. 2 Mircea Eliade, Myth and Reality: World Perspectives, trad. Wilhard R. Trask (New York: Harper & Row, 1963), pp. 5-6. 3 Ibid., p. 11.

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Estes atos da criação aconteceram durante um tempo que era diferente dos tempos em que vivemos. É o “era uma vez”, o “tempo sagrado” dos acontecimentos míticos: Tal como geralmente se aceita hoje em dia, um mito é uma narrativa de acontecimentos que tiveram lugar in principio, ou seja, “no princípio”, num instante primordial e não temporal, um momento de tempo sagrado. Este tempo mítico ou sagrado é quantitativamente diferente do tempo profano, do tempo contínuo e irreversível da nossa existência quotidiana e dessacralizada. Ao narrar um mito, reatulizamos de alguma forma o tempo sagrado em que os eventos narrados tiveram lugar4. Esse tempo sagrado renova-se nos rituais: … os rituais abolem o tempo profano, cronológico, e recuperam o tempo sagrado do mito. O homem torna-se contemporâneo com as explorações que os deuses fizeram in illo tempore5. É importante notar que o que está aqui envolvido não é uma comemoração de acontecimentos míticos, mas sim uma sua reiteração - um fazer novamente aquilo que foi feito quando “era uma vez”. Os protagonistas do mito tornam-se presentes. Isto também implica que já não estamos aí a viver no tempo cronológico, mas sim no tempo primordial, o tempo em que os acontecimentos tiveram lugar pela primeira vez6: Quem recita ou desempenha um mito original mergulha assim numa atmosfera sagrada em que estes acontecimentos milagrosos tiveram lugar. O tempo mítico das origens é um tempo “forte” porque foi transfigurado pela presença ativa e criativa dos seres supernaturais. Ao recitar os mitos, reconstitui-se o tempo fabuloso e, de alguma forma, os acontecimentos descritos tornam-se “contemporâneos”7. Esta distinção é confirmada por Cassirer: A ideia de maná, tal como a ideia negativa correspondente de tabú, repre4 Mircea Eliade, Images and Symbols, trad. Philip Mairet (London: Harvill Press, 1961), p. 57. 5 Mith and Reality, p. 140; see also p. 139. 6 Ibid., p. 19. 7 Ibid., p. 18.

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senta uma esfera distinta e oposta da vida quotidiana, dos processos habituais … Representam o tom característico que a consciência mágica e mítica dá aos objetos (a qualquer objeto). Este acento divide a totalidade da realidade e da ação numa esfera miticamente significante e numa esfera miticamente irrelevante, entre o que desperta interesses míticos e aquilo que o deixa relativamente indiferente …; o sagrado não o repele (ao profano), mas vai-o permeando progressivamente8. A récita de um mito é uma experiência independente das preocupações do dia-a-dia da pessoa que o recita, da mesma forma que os aspetos estruturais de uma obra de arte nos separam das preocupações do quotidiano. Elevam-nos para momentos intemporais. O que acontece quando aceitamos um mito é o que acontece na grande poesia ou no grande teatro, ou quando observamos uma grande pintura: somos superados por ela e levados para além da nossa esfera, para além da esfera onde vivíamos num momento anterior e para onde iremos retornar num momento posterior. O tipo de distanciamento associado aos rituais prescritos pelos mitos arcaicos está claramente ligado à devoção religiosa mas, para já, só precisamos de lidar de uma forma breve com este ponto. O mito arcaico distancia-se do mundo de todos os dias da mesma forma que acontece com um monoteísmo estrito - por exemplo, o monoteísmo do antigo testamento. O nosso envolvimento pessoal no mundo faz-se apenas com algumas partes do mundo, enquanto que o conceito da criação abrange todo o mundo - o mundo que fica por trás, ou por baixo, ou através de todas as suas partes. Um preocupa-se com as coisas como partes, enquanto que o outro ignora esses assuntos e tem como objeto a totalidade de todas as experiências que se podem conceber. A criação é o acontecimento pelo qual se acredita que todas as coisas concebíveis passaram a existir; e o criador, ou criadores, são supernaturais no sentido em que transcendem todos os assuntos particulares. Logo, neste sentido, os mitos da criação não se podem traduzir por termos que se aplicam às coisas do mundo. Os mitos arcaicos e as invocações de mitos arcaicos têm, por isso, uma natureza intrinsecamente separada da natureza. São globais, mais do que qualquer outra atividade humana. Já vimos como pensamentos tão isolados da nossa experiência normal nos podem afetar profundamente nas obras de arte e a celebração de ocasiões solenes. Mas, para o pensamento religioso, precisamos de alargar estes termos. A integração de incompatíveis, conseguida pelos nossos poderes criativos da imaginação, 8 Ernst Cassirer, The Philosophy of Symbolic Forms, trad. Ralph Manheim, 3 vols. (New Haven: Yale University Press. 1955) 2:77-78.

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é tão evidente no pensamento religioso como nas artes. Porque a ideia de ações externas ao mundo e anteriores à sua existência, mas apesar disso operacionais e portanto no mundo, combina incompatibilidades bem patentes: se é mesmo concebível, apenas pode ser concebível como um feito da imaginação - tal como era também o caso na combinação do plano e da profundidade numa pintura, de homicídios e não homicídios num palco, etc. A criação de conceitos até aqui inconcebíveis, pela combinação de características até aí incompatíveis, não é só restrito à arte, à poesia e aos mitos religiosos. É corrente e comum também nas matemáticas e na física moderna. Mas as entidades imaginárias criadas pela integração de incompatíveis na arte e nos mitos vão para além das entidades imaginárias criadas a partir de incompatíveis da matemática e da física. Estas últimas são aceites como integrações naturais; mas as primeiras, por contraste, podem ser chamadas de integrações transnaturais. São integrações do tipo que podemos encontrar na matemática e na física, apesar de os incompatíveis envolvidos permanecerem, na realidade, incompatíveis - no sentido em que nunca conseguimos juntar os seus elementos numa identidade lógica perfeita, em que podemos ver que A é B porque B é logicamente idêntico a A - e acabam por parecer que são naturalmente compatíveis. Quando foram descobertas, essas integrações exigiram um óbvio e considerável poder imaginativo para juntar as suas partes; mas desde que nos habituamos a trabalhar com elas, no mundo corrente do dia-a-dia das nossas preocupações práticas, parecem-nos bastante “naturais”. “Funcionam” no nosso mundo mundano. As integrações da arte, da poesia e do mito, no entanto, não entram na prática das nossas vidas correntes. Não “funcionam” nessa esfera. São, como dissemos, distantes das nossas vidas diárias. E os seus incompatíveis continuam incompatíveis. Precisam de ser unidos entre si por um ato da nossa imaginação, de cada vez que os contemplamos. Aparecem-nos então com significado e coerentes mas, apesar disso, têm sentidos que ultrapassam o “natural”. As conceções religiosas, tal como o mito da criação, são, no entanto, muito diferentes, em vários aspetos significativos, das realizações transnaturais da poesia e da arte. A maneira como estas conceções religiosas falam da totalidade do universo e do nosso destino como seres humanos, dentro destas perspetivas ilimitadas, torna-as míticas por contraposição com os conceitos de poesia e de arte; também os faz sagrados, como veremos. Comparemos a forma como a nossa imaginação mítica distancia as nossas mentes da monotonia das preocupações, tal como uma obra de arte produz o mesmo efeito. Eliade escreve: “ “vive-se” o mito, no sentido de se ser capturado pelo poder exaltante e sagrado dos acontecimentos recordados”9. Nisto, um mito é semelhante a uma obra de arte. Mas difere em dois outros pontos, aliás relacio9 Mith and Reality, p. 19.

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nados. Primeiro, um mito fala de acontecimentos recordados em vez de acontecimentos representados - porque se acredita que os acontecimentos da criação são verdadeiros; em segundo lugar, o arrebatamento de um mito sagrado ultrapassa o arrebatamento da arte. Eliade, e Cassirer antes dele, ambos falam do contraste entre o mito e a vida corrente como um contraste entre o sagrado e o profano. Devemos perguntar como é que isso se alcança. Para Eliade o mito arcaico é sagrado porque, acreditando-se que é verdadeiro, revela a realidade como distinta do não real: … ao recitar ou ao ouvir um mito, retoma-se o contacto com o sagrado e a realidade, e ao fazê-lo transcende-se a condição profana, a “situação histórica”. Por outras palavras, vai-se para além da condição temporal e da auto-suficiência amorfa, que é o destino de todo o ser humano, simplesmente porque todo o ser humano é ignorante - no sentido em que está a identificar-se a si próprio, e à realidade, com a sua própria situação”10. Poderes semelhantes são atribuídos por Eliade às imagens e aos símbolos: O símbolo revela certos aspetos da realidade … que desafiam outros meios do conhecimento. Imagens, símbolos e mitos não são criações irresponsáveis da psique; preenchem uma função, a de trazer as modalidades mais ocultas do ser para a luz do dia11. Mas isto ainda nos deixa com a questão: o mito só é eficiente metaforicamente, do mesmo modo que uma imagem poética? Pense-se nas setenta mil linhas de poesia que a população inglesa educada pode usar para exprimir os seus estados de alma, que de outra maneira seriam difíceis de exprimir. Na sua própria experiência reconhecem a verdade das linhas dos poetas. A verdade dos mitos é uma verdade do mesmo tipo? Ou diferem apenas no conteúdo das imagens que evocam a verdade em nós? A imagem da criação é simplesmente de um tipo que não se pode traduzir na experiência tangível? Pode ajudar a responder a estas questões passaremos em revista como é que um mito era de facto “vivido” pelos povos arcaicos. Devemos olhar para a relação destas práticas com a magia e com toda a variedade de outras crenças tipicamente arcaicas e depois comparar globalmente o sistema arcaico com as nossas próprias visões, que são largamente derivadas da ciência moderna. Vejamos primeiro alguns exemplos de como os mitos da criação são revividos. 10 Images and Symbols, p. 5911 Ibid., p. 12.

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As histórias da criação são recitadas para as ligar a um novo começo. Os dançarinos - homens e mulheres - recitam o canto da criação e a genealogia dos pais durante o nascimento de um príncipe. Uma cerimónia semelhante realiza-se para transferir a alma de um falecido para o outro mundo. Quando uma criança nasce entre os Osages, chama-se “um homem que tinha falado com os deuses”. Quando chega à casa da nova mãe, recita-se à nova criança a história da criação do universo e dos animais terrestres. Até que isso tenha acontecido, a criança não é amamentada. Mais tarde, quando quiser beber água, o mesmo homem - por vezes outro - é novamente chamado. Uma vez mais recita a criação, acabando com a origem da água. Quando a criança já tem idade suficiente para comer alimentos sólidos, o “homem que tinha falado com os deuses” volta e uma vez mais recita a criação, desta vez relatando a origem dos cereais e de outros alimentos. Fazer algo bem, trabalhar, construir, criar, estruturar, dar forma, informar - tudo isto acaba por ser trazer algo para a existência, dar-lhe “vida”, e em última análise, fazer isso como o organismo pré-eminente harmonioso, o cosmos12. Os poderes da idade cosmogénica são evocados em frases imemoriais e em rituais que se acredita datarem dos nossos princípios. Quando as ações simbólicas se realizam, ou são dirigidas por especialistas em erudição antiga, a recordação dos mitos converte-se na prática da magia. Nos tempos modernos a invocação da presença divina por rituais religiosos tem uma função comparável. Para Eliade o principal valor dos mitos arcaicos reside em mostrar que o mundo faz pleno sentido. O mito é uma obra de arte abrangente que, como qualquer outra grande obra de arte, preenche o seu sujeito com uma significância inesgotável. Nesse mundo o homem não se sente encerrado no seu próprio modo de existência: Se o mundo lhe fala através dos seus corpos celestes, das suas plantas e dos seus animais, dos seus rios e rochas, das suas estações e noites, o homem responde-lhe pelos seus sonhos e pela sua vida imaginativa, pelos seus antecessores ou pelos seus totens (simultaneamente naturais, supernaturais e seres humanos), pela sua capacidade de morrer e de voltar ritualmente à vida em cerimónias de iniciação (como a Lua e a vegetação), pelos seus poderes para encarnar um espírito ao pôr uma máscara, etc.13. 12 Myth and Reality, pp. 32-33-13- Ibid., p. 14313 Ibid., p. 143

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Isto é essencialmente o que Shelley chamou a maravilha do nosso ser, de quem disse que a poesia a revela purificando a nossa caótica experiência corrente do filme da familiaridade. A este respeito, o mito não parece ir materialmente para além do âmbito das grandes obras de arte. Mas a ligação com a interpretação da poesia, por Shelley, recorda todas as áreas de distanciamento mental que vão do puro êxtase às doutrinas teológicas e aos programas estéticos. A contemplação pura, tal como praticada pelo budismo zen japonês, pretende desprender a nossa observação pragmática das coisas e olhar para elas antes como fundidas numa experiência compreensiva. Deixamos de olhar solidariamente para os objetos e tornamo-nos imersos neles. Perdem o seu significado habitual e fundem-se com uma intuição imperscrutável do universo: Intuição é a faculdade de compreender o objeto da alma na sua relação interior com a totalidade cósmica escondida sob a variedade do mundo. O trabalho da intuição é orientar a intimidade da alma humana para o NADA14. O pensamento cristão seguiu uma linha paralela na teologia mística dos pseudo-dionísios. Mas a mística cristã não pretende atingir o NADA. Também procura uma perspetiva visionária para além da análise inteligente do meio envolvente, mas por esta via negativa descortina a presença de Deus. Através de uma série de distanciamentos, procura arduamente, pela absoluta ignorância dos particulares, que lhe seja concedida a união com Ele, que está para além de todo o ser e de todo o conhecimento. Num amor perfeito de Deus, o mundo revela-se como um milagre divino. O intelectualismo radical da via negativa é uma tentativa de sair do nosso quadro intelectual de referência e de nos tornar “como crianças”. É próximo da confiança na “loucura de Deus”, aquele atalho à compreensão do cristianismo que Santo Agostinho dizia, com inveja, que é livre para os pobres de espírito, mas interdito para os eruditos. Evitei mencionar o ioga, anterior tanto ao zen budista como à teologia mística, porque os seus exercícios contemplativos pretendem chegar à extinção completa dos sentidos. O nirvana destina-se a libertar-nos não só do quadro intelectual da perceção, mas também da nossa própria existência como seres individuais transmigrantes. É, no entanto, no primitivo pensamento indiano que encontramos as primeira teorias da união de opostos como o fundamento último do mundo. Os opostos podem estar em conflito mas, a um nível mais profundo, são apenas um: 14 Toshimitsu Hasumi, Zen in Japanese Art, trad. John Petrie (Londres: Routledge, 1962), p. x.

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“Por um lado há uma distinção … e conflito entre o Devas e o Asuras, os deuses e os “demónios”, os poderes da luz e das trevas … Mas, por outro lado, numerosos mitos apresentam a consubstancialidade e a irmandade de Devas e Asuras”15. No ocidente, as primeiras tentativas para descobrir uma realidade unificada subjacente às múltiplas aparências do mundo foram feitas pelos filósofos ionianos. Mais tarde, a teologia predominantemente cristã impôs a unificação mística das dualidades maniqueísta e ariana. De acordo com Eliade, a união de incompatíveis foi em primeiro lugar elevada a princípio da teologia geral por Nicolas de Cusa, sob a influência da via negativa dos pseudo-dionisianos. Chamou-lhe a coincindentia oppositorum e argumentou que era a menos imperfeita das definições de Deus16. Voltando ao culto da contemplação extasiada no budismo zen, encontramos um seu desenvolvimento teórico na doutrina da estética. A arte, a poesia e a pintura são ditas ser a transmissão da experiência visionária e, portanto, falam do NADA, do absoluto, da realidade última. Uma cultura informada por tais poderes visionários pode ver a beleza em qualquer gesto e em qualquer olhar, por mais humilde que seja.. Cultiva uma omnipresença benevolente. De todos os sistemas antigos de contemplação extática, só o budismo zen se aplica diretamente às artes criativas. Como tanto analisa o fazer como a apreciação da arte em termos visionários, foi-se tornando apelativo para as escolas de arte moderna, à medida que a arte se tornou cada vez mais visionária. No entanto, as escolas modernas, que recusam o embelezamento dos objetos úteis por decorações, encontram inspiração no zen para a ideia de que a beleza dos objetos práticos deve incluir a sua eficiência. Para já, atendemos apenas de passagem à questão de como é que estes factos da imaginação se tornam tão independentes das nossas preocupações diárias. Que um mito da criação trate o mundo como um todo, cuja ideia transcende quaisquer conceções das partes desse mundo, isola até certo ponto os mitos, tal como já referimos antes; no entanto, o ritual observado ao evocar histórias míticas cria um maior distanciamento relativamente às preocupações comuns do dia a dia. Mas quando passamos para a prática da contemplação pura, que passa da visão normal de uma paisagem para a sua contemplação mística, não vemos que se esteja a cruzar qualquer barreira concetual ou a criar uma estrutura artificial para 15 Mircea Eliade, The Two and the One, trad. J. M. Cohen (Londres: Harvill Press, 1965), pp. 38-89. 16 Ibid., pp. 80-B1. Eliade refere-se ao uso do termo coincidentia oppositorum por C. G. Jung como essencial para a descrição do processo de individualização e o fim último de toda a actividade psíquica. O que Eliade referee em Jung pode-se encontrar em C. G. Jung, Psychology of the Transference, The Collected Works of C. G. Jung, ed. Herbert Read, Michael Fordham, and Gerald Adler, trad. R. F. C. Hull, 17 vols. (Nova Iorque: Pantheon Books, 1954). 16:163-321, e em Mysterism Coniunctionis, Collected Works [Princeton: Princeton University Press, 1970), vol. 14.

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separar esta experiência em relação à forma como habitualmente a vemos. Onde é que encontramos então a fonte do distanciamento, numa tal contemplação? Uma resposta a esta questão pode-se encontrar com mais facilidade no budismo zen, o que lança alguma luz sobre todas as outras variedades de visões místicas. O zen é obtido por um treino árduo e longo: Para experimentar o zen, precisamos de entrar para um mosteiro zen e tomar parte nos … (exercícios de meditação zen) sob a orientação de um mestre sábio e experiente. Devemos aprender a atingir a unidade da alma e do corpo através do controlo da respiração, e ao mesmo tempo sentir incessantes choques interiores17. Abundam as descrições da disciplina severa a que os noviços do zen são submetidos. O seu esclarecimento está associado com o esforço e com o sofrimento do discípulo, que distancia a sua vida do fluxo normal da experiência, que lhe abre o acesso a uma meditação extática muito distante dos interesses banais da vida. Por muito cruel que o treino zen possa ser, é incomparavelmente menos doloroso que o processo de iniciação de um jovem no conhecimento dos mitos arcaicos. Não vale a pena estar a descrever aqui tais cerimónias, que são bem conhecidas como ritos de passagem que marcam a entrada do jovem na idade adulta. Mas Eliade diz-nos que também envolvem mais do que a passagem de uma idade para outra: A iniciação continua durante anos, e as revelações são de várias ordens. Para começar, há a primeira e mais terrível revelação, a revelação do sagrado como o tremendum. O adolescente começa por ser aterrorizado por uma realidade supernatural da qual ele experimenta, pela primeira vez, o poder, a autonomia, a incomensurabilidade; e, depois deste encontro com o terror divino, o neófito morre: morre para a infância - ou seja, para a ignorância e para a irresponsabilidade. É por isso que a sua família o lamenta e chora por ele; não voltará a ser a criança que era …; terá passado por uma série de provações iniciáticas que o forçam a confrontar o medo, o sofrimento e a tortura, que o obrigam acima de tudo a assumir um novo modo de ser, o modo que é próprio para um adulto - em particular, o que é condicionado pela quase simultânea revelação do sagrado, da morte e da sexualidade18. 17 Hasumi, Zen in Japanese Art, p. 14. 18 Mircea Eliade, Myths, Dreams and Mysteries, trad. Philip Mairet (Nova Iorque: Harper & Bros., I960), pp. 195-96.

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Mesmo considerando a possibilidade de que os pontos de Eliade possam ser algo exagerados, é claro que as cerimónias de iniciação efetivamente conformam a natureza esotérica dos mitos arcaicos nas mentes dessas pessoas. Isto deve ser por si suficiente para estabelecer o distanciamento da sua visão imaginativa. Mas a força esmagadora das cerimónias de iniciação traz de volta, e reforça, as nossas dúvidas sobre se os mitos da criação se podem considerar como verdadeiros e a sua substância como real, tal como Eliade afirma. Poderá ser real e verdadeiramente significativo que exijam métodos tão terríveis de doutrinação? Precisamos de tratar essa questão da verdade nos mitos no nosso próximo capítulo.

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um facto óbvio que os mitos arcaicos fazem parte de um sistema mais vasto de crenças arcaicas, com absurdos arrepiantes. No seu estudo clássico, How Natives Think, Lévy-Bruhl argumenta que as representações do mundo aceites pelos povos primitivos diferem basicamente das visões que a ciência ensinou ao homem moderno1. Pensa que o choque cruel das cerimónias de iniciação se destina a encher o adolescente com emoções que obscurecem a sua mente. Um ponto de vista exatamente oposto foi aparentemente proposto por Lévi-Strauss, em The Savage Mind, em que argumenta que o mecanismo de raciocínio é inerente à estrutura física da matéria e portanto deverá ter sido o mesmo nas mentes tanto do homem primitivo como do homem moderno2. Esta posição é, em princípio, mais próxima da posição dos primeiro antropólogos ingleses, em particular Tyler, Frazer e Andrew Lang, cujas teorias Lévy-Bruhl rejeitou categoricamente. A dificuldade com a visão de Lévy-Strauss é que os processos mecânicos do pensamento, que ele julga serem universais, são apenas uma aproximação grosseira dos processos reais de aquisição de conhecimento, que se baseiam, em última análise, como já vimos, em integrações tácitas que não tem qualquer equivalente nas máquinas. Lévy-Bruhl parece estar correto ao sustentar que a mente primitiva adquiriu as suas estranhas perspetivas diretamente a partir das suas próprias percepções e não por derivar conclusões falsas a partir de percepções “corretas”, ou seja, a partir do tipo de perceções que o homem moderno aceitaria. Devemos no entanto discordar disto. Nós pensamos que o processo cognitivo, tanto no homem primitivo como no homem moderno, baseia-se nos mesmos princípios, mas os resultados diferem porque o pensamento arcaico tende a basear-se em integrações tácitas mais ambiciosas do que as que são aceitáveis para a mente científica do homem moderno. Podemos estar de acordo que muitas dessas integrações primitivas não fazem sentido, mas alguns tipos de integrações tácitas são, como indicamos antes, verdadeiramente essenciais como base para todo o conhe1 Lucien Levy-Bruhl, How Natives Think, trad. Lilian A. Clare (London: Allen & Unwin, 1926), pp. 352-58. 2 Claude Levi-Strauss, The Savage Mind (London: Weidenfeld & Nicolson, and Chicago: University of Chicago Press, 1966), pp. 267-69-

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cimento. Logo um método científico que dispense integrações tácitas também não faz sentido. É com base nestes fundamentos que seremos capazes de responder à questão sobre qual o sentido, se algum, em que podemos aceitar o ponto de vista de Eliade segundo o qual que um mito arcaico é verdadeiro. Iremos tratar, tangencialmente, a questão da verdade dos mitos neste capítulo, examinando primeiro as crenças arcaicas que lidam com acontecimentos comuns do dia a dia, mas que o fazem de forma muito diferente da usada pelo mundo moderno. Estas crenças não estão totalmente desligadas dos mitos, mas parecem ter um conteúdo mais secular do que os próprios mitos. Podem portanto ser entendidas como sendo algo semelhante a um equivalente funcional às nossas próprias ideias sobre assuntos da experiência quotidiana - ideias que se baseiam na ciência e na tecnologia moderna. O nosso reconhecimento das semelhanças presentes nessas diferenças pode-nos dar uma chave sobre a natureza do nosso problema acerca da verdade dos mitos. Prosseguiremos a ideia de que os absurdos do pensamento arcaico se devem a um uso excessivo dos mesmos poderes integradores que o pensamento moderno aplica (em geral mais sabiamente). Recordemos primeiro os usos múltiplos desses poderes integradores. Vimos que são usados na percepção, na indução da coordenação muscular, na prática de competências hábeis, no estabelecimento de relações semânticas, na formação de conceitos, e na criação de obras de arte. Vimos também que estão subjacentes aos processos de descoberta científica e de invenção técnica. Algumas das nossas ações integradoras exigem pouco esforço da nossa parte; o simples olhar para um objeto é, em geral, suficiente para nos induzir a integração das suas impressões. Outras integrações exigem esforços persistentes por mentes excecionalmente dotadas. Todas as integrações precisam de se basear nos serviços da nossa imaginação, mas os poderes imaginativos envolvidos tornam-se substanciais, e mesmo massivos, à medida que os elementos a integrar se tornam cada vez mais díspares. Trataremos com algum detalhe a integração de elementos que, quando observados focalmente, parecem ser incompatíveis. Uma tal integração pode ser quase totalmente espontânea (como na percepção) e exigir pouca imaginação (em particular na visão binocular). Por outro lado, pode exigir dons especiais (como na criação de arte visionária) ou um treino prolongado (como, por exemplo, para se atingirem as experiências visionárias do budismo zen). Esta recapitulação breve deve ser suficiente para demonstrar que, quer a integração resulte no estabelecimento de fatos perceptivos ou cognitivos ou na produção de obras da imaginação, o processo é essencialmente informal. O facto de uma coerência estabelecida por integração ter qualidades não presentes nos elementos subsidiários usados para compor o resultado focal não é por si uma prova disso,

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pois num processo formal o resultado não pode ser visto como incluindo as suas premissas antecedentes - ou seja, ser uma sua implicação lógica. Logo não podem existir regras estritas - ou seja, formais - para aceitar ou para rejeitar a validade de uma integração. É óbvio que em muitos casos não há praticamente escolha a esse respeito. Identificar um animal como um elefante indiano não envolve grandes escolhas. Mas inferências integradoras de maior importância podem parecer perfeitamente aceitáveis para uns e completamente absurdas para outros. Seja o caso do Dr. Immanuel Velikovsky. No seu Worlds in Collision, Velikovsky propõe uma teoria, baseada na aceitação de relatos do antigo testamento, do Vedas dos hindus, e da mitologia greco-romana, acerca de acontecimentos catastróficos desde o século XV até ao século VII a.C.3. Para explicar esses acontecimentos, Velikovsky suplementou a força da gravitação newtoniana com poderosos campos elétricos e magnéticos a atuarem entre planetas. O seu livro foi muito apreciado e tornou-se num best-seller, embora tenha sido iradamente rejeitado pelos cientistas. Alguns sociólogos suportaram o visão popular contra os cientistas, primeiro no American Behavioral Scientist e depois num livro, por Alfred de Grazia, que atacava fortemente toda a comunidade dos cientistas da natureza por não darem atenção a Velikovsky4. Da minha parte, acredito que os cientistas têm sérias razões para rejeitarem Velikovsky e que o ataque dos sociólogos foi totalmente infundado. Argumentei isso num artigo na Minerva, republicado em Criteria for Scientific Development5. Disse que “um julgamento vital praticado pela ciência é a avaliação da sua plausibilidade … que se baseia num amplo exercício da intuição guiada por múltiplas indicações súbtis”. A diferença entre aqueles que tomam as teorias de Velokovsky a sério e os que as rejeitam liminarmente está nas avaliações muito diferentes que fazem da plausibilidade dessas teorias. E como a plausibilidade não se pode demonstrar formalmente, o conflito entre os dois lados continuou por resolver durante mais de vinte anos. Embora de alcance mais vasto, muitas das diferenças entre o pensamento moderno e o do povo arcaico são do mesmo tipo que as diferenças entre os astrónomos modernos e os seguidores de Velikovsky. Em ambos os casos, as diferenças têm a ver com um julgamento de plausibilidade. 3 Immanuel Velikovsky, Worlds in Collision (New York: Macmillan, 1950). 4 Ralph E.Juergens, “Minds in Chaos: A Recital of the Velikovsky Story,” American Behavioral Scientist 7 (1963): 4-17. Livio C. Stecchini, “The Inconstant Heavens: Velikovsky in Relation to Some Past Cosmic Perplexities,” ibid., pp. 19-44. Alfred de Grazia, ‘The Scientific Reception System and Dr. Velikovsky,” ibid, pp. 45-49, and The Velikovsky Affair: The Warfare of Science and Scientism (New York: New York University Books, 1966). 5 Michael Polanyi, “The Growth of Science in Society,” Minerva 4 (summer 1967): 533-45, and Criteria for Scientific Development, Public Policy, and National Goals, ed. Edward Shils (Cambridge, Mass.: Massachusetts Institute of Technology Press, 1968), pp. 187-99-

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É claro que muitas das observações estranhas feitas pelos povos arcaicos baseiam-se nos mesmos tipos de integrações que usamos hoje em dia. Os povos arcaicos observaram relações causais, e muitas das suas observações deste tipo correspondem exatamente às nossas. Baseiam-se, tal como as nossas observações de causalidade, numa sequência temporal de acontecimentos ou numa contiguidade recorrente dos factos. Mas os povos arcaicos terão extraído conclusões fantásticas a partir dessas contiguidades por estarem muito menos preparados do que nós para só as considerarem como meramente acidentais. No entanto devemos recordar que, ao longo de milhares de anos, as previsões feitas por astrólogos a partir das posições do sol, da lua e dos planetas nas constelações, à data de nascimento de uma pessoa, eram aceites como válidas, embora tais relações sejam puras coincidências, de acordo com a nossa visão científica da posição das estrelas, uma visão geralmente aceite. Quando nos dizem que os princípios de post hoc ergo propter hoc e juxta hoc ergo propter hoc são característicos do pensamento mítico, respondemos que são os guias adequados para todo o pensamento empírico, como o próprio David Hume apontou, e que o homem moderno só difere dos seus antecessores arcaicos por julgar que certas contiguidades temporais ou espaciais devem ser consideradas como coincidências ou como tendo uma natureza causal. Só porque acreditamos que a nossa visão da natureza geral das coisas é mais correta- e largamente derivada da ciência - é que aplicamos os princípios da causalidade de forma mais apta (para a nossa maneira de pensar) do que os povos primitivos. Por exemplo, no Athenauem Club, centro dos mais distintos académicos e escritores em Londres, a numeração dos quartos evita o numero 13, chamando-lhe antes 12A. O medo de dormir sob o número 13, por poder trazer infortúnios, também não desapareceu. Para além disso, é claro que a expectativa de resultados mágicos pela invocação de origens míticas tem a sua contrapartida nos serviços religiosos cristãos, que invocam uma presença divina. Esses são correspondidos, ainda mais amplamente, pelas preces rogatórias de todos os tempos. No entanto, alguns casos curiosos de mágica baseiam-se em relações que diferem, em princípio, de todas as que hoje em dia se consideram possíveis. Um exemplo é o controlo mágico de pessoas e, às vezes, dos poderes divinos, por um conhecimento dos seus nomes secretos. Como Cassirer diz: (No) pensamento mítico o nome … exprime o que há de mais íntimo e mais essencial ao homem, e positivamente “é” a sua essência mais profunda. Nome e personalidade fundem-se … Sabe que o verdadeiro nome de um deus ou de um demónio tem um poder ilimitado sobre o titular. Além disso a imagem de um homem, como o seu nome, é um alter ego: o que acontece

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à imagem acontece também ao próprio homem, ele próprio. … Se se encher uma imagem do inimigo com pregos ou setas, ele irá imediatamente sofrer com isso. E não é só esta eficácia passiva que o nome tem. Pode também exercer um poder ativo, equivalente ao do próprio objeto. Um modelo de cera de um objeto não é a mesmo coisa, mas atua como o objeto que representa. A sombra de um homem faz o mesmo papel que a sua imagem ou fotografia. É uma parte real de si e sujeita a danos; qualquer ofensa à sombra afeta o próprio homem. Não se deve pisar a sombra de um homem por medo de que isso acarrete uma doença sobre si6. Um nome, uma imagem, uma sombra - estas coisas são o que são porque uma pessoa existe e porque se baseiam nessa pessoa. Nem o ser de uma pessoa deixa de ser afetado por tais coisas. Se sabemos o seu nome, se o podemos chamar pelo seu nome, podemos falar e pensar sobre ele. Um homem chamado pelo nome é um homem engrandecido pelo seu nome, tal como um objeto é aumentado pela adição de uma asa, ou como o vestuário transforma uma pessoa numa entidade mais inclusiva. Logo uma pessoa é também aumentada pela criação de uma pintura ou de um modelo de cera. Torna-se mesmo algo ainda maior através da sua sombra, que tem origem nela e que aponta para ela como um corpo que a projeta. Tudo o que está intimamente associado a uma pessoa, associa-se do mesmo modo que as partes de um todo se relacionam com o todo que formam. A ideia de que um nome, uma imagem, e outros atributos de uma pessoa são seus substitutos reais tem sido chamado o princípio do alter ego. Muito próximo deste princípio, e sem dúvida incluindo-o, está o princípio do pars pro toto, a forma da mente arcaica identificar uma parte com o todo a que pertence. Referindo novamente Cassirer: O todo não “tem” partes e não se decompõe nelas; as partes são imediatamente o todo e as funções como tal. Esta relação, este princípio do pars pro toto tem também sido designado como um princípio básico da lógica primitiva. No entanto, a parte não representa apenas o todo, mas “na realidade” especifica-o; a relação não é só simbólica e intelectual, mas real e material. A parte, em termos míticos, é a mesma coisa que o todo, porque é um veículo real de eficácia - porque tudo o que faz ou lhe acontece, também é feito ou acontece ao todo, em simultâneo. Qualquer pessoa que adquira a parte mais insignificante de um homem, mesmo o seu nome, a sua sombra, a sua reflexão num espelho, que para o 6 Ernst Cassirer, The Philosophy of Symbolic Forms, trad. Ralph Manheim, 3 vols. (New Haven: Yale University Press, 1955), 2:40-42.

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mito são também partes “reais” dele - conquista assim poder sobre o homem, tomou posse dele, atingiu um poder mágico sobre ele. De um ponto de vista puramente formal, toda a fenomenologia da magia assenta nesta premissa básica, que distingue com clareza entre a intuição complexa do mito e o conceito abstrato ou, mais precisamente, abstrato e analítico7. Esta descrição pode ser reformulada e expandida através da estrutura do conhecer tácito. Qualquer pessoa que se baseia em qualquer outra coisa, seja designando-a ou sendo parte dela, é por nós conhecida subsidiariamente, sob o ponto de vista dessa ligação. Vista na relação de - para, tem o significado que reside no foco para o qual estamos a atender a partir daí. O significado de um elemento subsidiário desaparece se dirigirmos a nossa atenção focal para ele, e esta destruição da relação de-para altera a aparência tanto das partes subsidiárias como do seu ponto focal. Estas alterações são mais bem conhecidas no desmembramento de uma figura, resultado de atendermos focalmente às suas partes. De fato, estas alterações constituem o próprio fundamento da psicologia gestalt (psicologia das formas). Estas interações de - para aplicam-se igualmente a todas as outras relações significantes. A mente arcaica parece vivamente impressionada pelas qualidades sensoriais das relações significantes, e a sua imaginação exagerou imenso na interação entre elementos subsidiários e o seu foco. Encontramos evidência deste exagero na relação de - para entre os nomes de coisas inanimadas, como arcos, setas, ou rios, e as coisas que designam, ou entre as partes de coisas partidas, como os cacos de um vaso partido e o próprio vaso. Só quando o foco de uma relação semântica é um ser vivo, e particularmente quando é um ser humano, é que a imaginação parece alargar-se muito com as forças dinâmicas envolvidas na estrutura subsidiária e focal das integrações. É claro que as manifestações largamente indeterminadas de um ser podem muito bem dar-lhe uma qualidade misteriosa, que muitas vezes estimula a imaginação muito para além do alcance da experiência. É muito interessante notar neste ponto que a mente moderna faz um erro na direção oposta. O seu conceito de significado falha ao ignorar as qualidade profundas das relações de - para e ao tentar reduzir a mente humana a um sistema previsível de respostas. Voltaremos a este ponto mais tarde. Entretanto vamos alargar mais a mente arcaica. O mesmo tipo de diferença, entre a mente arcaica e as visões modernas da natureza, é claramente evidente noutro ponto, em especial na identificação do homem com animais pela mente arcaica, muito em particular no totemismo. Aí encontramos, uma vez mais, uma característica do conhecer tácito. Vimos que 7 Ibid., pp. 49-51.

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todas as observações se baseiam na nossa interpretação das reações dos nossos órgãos sensoriais, assim como das partes internas do nosso corpo, ao impacto de estímulos externos. Estas reações corporais são experimentadas subsidiariamente; o que nós percebemos é o o significado conjunto dessas reações subsidiárias. O movimento dos nossos membros tem uma estrutura semelhante, como se referiu no capítulo dois. Consiste em mobilizar um conjunto de músculos que suportam, em conjunto, os nossos delicados movimentos, e este movimento é, de facto, o seu significado conjunto. As nossas percepções e os movimentos deliberados do corpo têm portanto a mesma estrutura que temos atribuído, em geral, às relações significantes. Mas observar uma relação significante é integrar os elementos subsidiários que suportam o seu foco, logo é tratar esses elementos subsidiários como se fossem respostas internas do nosso próprio corpo. Neste sentido a estrutura de uma dessas observações atinge-se, como vimos, pela nossa vivência nos seus elementos subsidiários. Em geral, todas as entidades compreensivas são conhecidas pela nossa vivência nelas, e nessa medida participamos nelas como se os seus elementos subsidiários fizessem parte do nosso corpo. A interiorização é mais acentuada no caso do nosso conhecimento das coisas vivas, em especial dos seres humanos e dos animais com uma estrutura semelhante à nossa. Porque nesses casos vivemos, e portanto revivemos, os próprios movimentos pelos quais a pessoa ou o animal executa as suas ações. Isto não é mais do que partilhar a vida entre nós e os outros homens, assim como entre nós e os animais superiores. Esta partilha de vidas não se deve a um esforço deliberado da nossa parte. Não seria bem acolhido por nós. Os estudantes de medicina precisam de se calejar contra o espectáculo da cirurgia do corpo humano. Podemos ver aqui os efeitos poderosos do próprio pars pro tot, que achamos tão estranho no povo arcaico. O corpo morto de uma pessoa querida comove-nos profundamente. Não sentimos a afronta de Antígona como absurda quando vê o corpo do seu irmão atirado aos cães. Vi um estudante do primeiro ano de medicina desmaiar à vista de um osso da coxa acabado de retirar de um cadáver. As operações nos animais são igualmente perturbadoras. Há aqui uma forte evidência a favor da ideia de que o nosso conhecimento das outras pessoas, e também dos animais, se baseia numa participação ativa nas suas vidas. Se nós próprios conhecemos os animais e os outros homens de uma forma tão profundamente estimulante, parece compreensível que, quando muito da vida consistia em caçar ou ser caçado, as participações imaginativas do homem na vida dos animais tenderiam a ir para além disso e tornar-se-iam completamente totemística. Reconhecemos que parece bastante absurdo que membros de uma tribo bra-

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sileira chamada Bororos declarem com orgulho que são uma espécie de papagaio encarnado8 e podemos facilmente compreender que Lévy-Bruhl veja tais identificações como evidência de um poder pré lógico distintivo da mente arcaica, que ele denomina participação. Embora tenhamos considerado ser essencial usar esse mesmo termo para descrever o nosso conhecimento dos animais, o sentido em que o usamos, nesse contexto, é muito diferente do sentido em que é usado para descrever o facto das tribos arcaicas se identificarem com um tipo particular de animal. No entanto, a identidade reclamada pelo totemismo não significa que as duas coisas, homem e animal, sejam intermutáveis. Um Bororo nunca confunde um papagaio vermelho com um homem da sua tribo. Por outro lado, não é raro que o homem moderno consiga identificar dois objetos que facilmente se podem distinguir um do outro; está a fazê-lo sempre que identifica diferentes membros da mesma espécie. Os Bororos parecem pensar que, de certo modo, os papagaios vermelhos pertencem à mesma classe. Mas esta identificação não será um manifesto absurdo? É claro que não, se estiver dentro dos domínios do sentido particular de plausibilidade dos Bororos. Muitos cientistas e filósofos têm afirmado, ao longo dos séculos, que todos os seres humanos, incluindo eles próprios, são máquinas que funcionam automaticamente. Alguns pensadores modernos reforçaram essa ideia quando argumentam que as máquinas possuem consciência e podem ter todo o tipo de sentimento humano. Para muitos de nós esta identificação parece absurda. Mas para eles, muito pelo contrário, a visão segundo a qual o homem tem uma mente que controla as suas ações é que é a visão absurda. Pode ser difícil de penetrar no que os Bororos significam ao identificarem-se a eles próprios com os papagaios vermelhos, mas não há qualquer razão para se dizer que é necessariamente mais absurda do que a visão de muitos cientistas e filósofos, segundo a qual eles são máquinas. A visão de Eliade sobre o mito arcaico como uma fonte de verdade deve ser vista nesta perspetiva. Baseia-se na rejeição da moderna perspetiva científica, que também é, como vimos, um conjunto de crenças. Passaremos agora em revista como é que essas “estranhas” crenças da visão científica do mundo surgiram e como é que tanto impressionaram a mente moderna. Toda a ciência teve certamente que crescer a partir do pensamento pré cientifico, e portanto a maquinaria articulada da ciência deve ter tido origem em antecedentes largamente tácitos. A biologia resultou numa ampla confirmação dos seus antecedentes. No entanto, a física desenvolveu-se rejeitando-os ou passando ao seu lado. Olhemos primeiro para a biologia. As caracteristicas fundamentais da vida eram do conhecimento comum, numa forma tácita e não articulada, antes do desenvolvimento da biologia. Os animais e as plantas já eram reconhecidos antes 8 See Levy-Bruhl, How Natives Think, p. 77-

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do desenvolvimento da zoologia e da botânica, assim como a saúde e a doença eram conhecidas antes da ciência da patologia ter conhecido a existência. O contraste entre sentiência e não sentiência, entre inteligência e a sua ausência, isso era conhecido mesmo antes de serem estudados pela ciência. Eram conhecimento comum, assim como eram muitos detalhes das funções vivas: a fome de alimentos, a necessidade de respirar, os processos de digestão, eliminação e secreção, as funções dos nossos sentidos, os processos de procriação, os desenvolvimentos embriológicos, do crescimento e da maturação, da senescência. Poderíamos continuar indefinidamente com a enumeração dos assuntos que os biologistas recuperaram a partir do conhecimento popular. Grandes ramos da biologia relacionam-se agora com diferentes secções da vida, que foram identificadas de forma apenas tácita antes do advento da ciência. Estes estudos científicos modificaram e suplementaram as concepções tácitas pelas quais nos guiamos, mas raramente as substituíram. A sua riqueza testemunha a perspicácia do discernimento que levou à sua formulação original. As formas caracteristicas dos seres vivos não têm uma definição geométrica e são simplesmente reconhecidas como fisionomias. O mesmo acontece com várias funções vivas, que são fisionomias alargadas, tanto no tempo como no espaço. O nosso conhecimento pré científico das coisas vivas deve portanto ter nascido de atos de interiorização profunda, incluindo o panorama geral das caraterísticas bióticas - e isto continua a ser a forma como estas caraterísticas continuam hoje em dia a ser conhecidas pelos cientistas. A biologia deve, em última análise, basear-se na vida, tal como a vida é conhecida pelos não biólogos. De outra forma não poderia reivindicar a matéria de um assunto específico. Deve contribuir para a explicação das características que formam o panorama da vida, tal como geralmente conhecida. Estas caraterísticas têm pelo menos uma coisa em comum, a saber, podem resultar num erro, o que as distingue das realizações - ao contrário dos átomos, moléculas, e planetas, para os quais tal termo é claramente inapropriado. Tentativas para compreender uma realização devem ter em conta questões como: como se realizou? O que é que pode causar um erro? A biologia consiste predominantemente em responder a estas questões. Procura descobrir os mecanismos pelos quais a vida funciona. A mesma estrutura lógica encontra-se na engenharia. Podemos ter o hábito de usar um relógio, um automóvel, ou outras máquinas sem saber como é que funcionam. Para ver como funcionam, temos que desmontar o objeto, mapear as relações entre as suas partes, e descobrir como é que cada função mantem o mecanismo em funcionamento. Existiam ofícios artesanais antigos, como a produção de cerveja e a cerâmica, que se desenvolveram empiricamente. As investigações para encontrar como é que estes processos funcionam têm exatamente a mesma

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estrutura lógica que as inquirições sobre o funcionamento fisiológico. Alguns dos principais estudos biológicos de Luís Pasteur foram sem dúvida deste tipo de investigações tecnológicas. A biologia é, na realidade, a tecnologia da vida. Essas análises biológicas dos mecanismos alternam com a sua integração num todo de maior significância. Podem-se estabelecer novas entidades compreensivas da mesma maneira como Harvey descobriu a circulação do sangue, ou como Mendel descobriu que a hereditariedade é atomística, ou como o processo da evolução foi estabelecido a partir de um grande número de indícios que o apoiavam. Mas, depois da descoberta de uma nova entidade compreensiva, perguntamos sempre uma vez mais: como é que funciona? A ciência da biologia pode ser muito alargada por fases de integração, mas, para além disso, procura sempre atingir soluções novas para novos problemas analíticos. Cada nova descoberta integradora resulta num “como “ adicional. O avanço prático da engenharia e da tecnologia consiste primariamente na invenção e na construção de dispositivos que funcionam. Também isto é uma procura integradora. Combina de forma hábil os objetos especialmente pensados e processa-os para formar um mecanismo útil. A tarefa é concebida pela imaginação e completada pela produção real do mecanismo e pelo seu funcionamento. Passemos agora do panorama da vida e das invenções humanas para o espetáculo da natureza inanimada. Mas onde é que podemos encontrar esse espetáculo? Há muitos objetos inanimados à nossa volta, a qualquer momento, mas quase todos são o resultado de invenções do homem. Mesmo quando olhamos para os nossos jardins, por vezes acontece que um pouco de solo e um traço da água das chuvas são quase os únicos vestígios visíveis representativos da natureza inanimada. Precisamos de pensar numa região desolada, em calhaus, areia, rios, mares, ventos, nuvens, sol durante o dia, a lua e as estrelas durante a noite. Era esta a variedade de conceitos que o homem tinha da natureza inanimada antes da ciência. Compare-se isso coma riqueza dos itens intrigantes que resultam dos estudos da biologia e de cuja interpretação continua a depender o seu interesse final. As únicas caraterísticas pré-científicas deste mundo inanimado eram as estrelas, o sol, e a lua, com as suas curiosas movimentações. Poucos objetos inanimados eram conhecidos que intrigassem tanto o homem pelos seus comportamentos ou formas distintivas. Nada sugeria a beleza oculta da lei dos gases, da termodinâmica, da óptica, e da acústica; da presença potencial dos espectros atómicos; de milhares de partículas elementares e de milhões de compostos orgânicos; da mecânica newtoniana, da teoria quântica e da relatividade. Mas o interesse deste grande sistema intelectual das ciências físicas nada tem a ver com a luz que faz sobre os seus antecedentes pré científicos. Os estímulos intelectuais que a natureza inanimada deram para a inquirição

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científica resultaram quase exclusivamente da observação do céu. Eram estímulos intensos e eventualmente conduziram a belos resultados, coroados pela gravitação newtoniana e pela relatividade geral. Mas antes de isso acontecer, a impressão enganadora de que a terra estava no centro do universo dominou o pensamento durante muitos séculos. Esta noção, expressa pela astrologia babilónica e depois pela cosmologia de Aristóteles, imbuiu a perspetiva do homem com uma multidão de ideais erradas. Quando a revolução copérnica acabou por refutar essas ideias e, no seu lugar, inspirou um novo sistema governado por leis naturais, despedaçou-se a confiança do homem comum sobre a sua compreensão do mundo em função das percepções por ele experimentadas. A partir daí aceitou incondicionalmente a visão científica das coisas, por mais absurda que esta lhe parecesse. Desde que Laplace levantou, em primeiro lugar, a questão do conhecimento universal, os filósofos têm discutido essa noção, segundo a qual podemos prever, pelas leis da mecânica, qualquer topografia futura a partir da topografia das partículas últimas de um objeto. A imensa dificuldade de fazer esses cálculos é fácil de compreender. Isso fez desviar a atenção da ainda maior dificuldade da própria ideia em si, em particular o facto de os resultados de tais cálculos nada nos dizerem de importante. Admite-se que se poderiam extrair algumas características observáveis a partir daí: pela adição da energia das partículas poderíamos estimar as alterações no calor contido em diferentes áreas. Mas o cálculo das variações da temperatura estaria para além da nossa capacidade, pois não sabemos que probabilidade (ou seja, entropia) atribuir a cada uma das secções da topografia. Assumamos, no entanto, que estas dificuldades podem ser ultrapassadas e que podemos derivar uma topografia completa da física e da química do nosso objeto. Será que isso nos poderá dar um conhecimento compreensivo e significante de todos os objetos? Por si só, uma tal topografia seria ainda quase sem sentido. Quanto poderemos ir para além disso? Se a topografia corresponde a um ser vivo, digamos um sapo, será que podemos reconhecer o sapo a partir disso e derivar daí os mecanismos das funções vitais do sapo? Vimos que os seres vivos se caracterizam pelas suas fisionomias, incluindo a fisionomia espaço-tempo das suas funções. Uma fisionomia não obedece a qualquer fórmula matemática; apenas pode ser reconhecida tácitamente pela vivência dos seus inúmeros particulares, muitos do quais subliminares. Apenas conhecemos um sapo habitando nos seus particulares, e só podemos conhecer a topografia de um sapo se primeiro formos capazes de saber o que é um sapo. Só conhecemos a vida emocional e intelectual dos animais através de uma interiorização profunda, suficientemente profunda para que que se atinja uma empatia com a sua consciência. Suponha-se que se estuda a mente de um grande homem: só podere-

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mos entrar nos seus pensamentos por uma submissão respeitosa à sua liderança. Atribuir tais níveis de existência a uma topografia atómica parece ser tão absurdo como seria falar do cheiro de equações diferenciais, mas a mente moderna dificilmente parece hesitar em contrariar tais incongruências. Intimidados pela experiência da revolução copérnica, não ousamos confiar no testemunho dos nossos sentidos para contradizer os ensinamentos da ciência. Duvidar que “por acaso o sol se move” era ainda um epítome do absurdo para Shakespeare, setenta anos depois da morte de Copérnico. Por essa altura Galileu falava triunfante da aceitação das ideias daquele como uma “violação dos sentidos”. Nos tempos de Kant, a visão newtoniana do mundo, apenas com massas em movimento, tinha ganho o estatuto de um quadro de referência necessário para a experiência. A aceitação pelo homem de um absurdo aparente deu lugar a um absurdo real. A nossa descrição do pensamento arcaico confirma a rejeição, por Lévy-Bruhl, das teorias de Tyler, Frazer e Andrew Lang. Também confirma a visão de Lévy -Bruhl segundo a qual a mente primitiva adquiriu diretamente as suas visões estranhas através do próprio processo de percepção, e não por derivar conclusões erradas acerca do tipo de percepção que o homem moderno viria a aceitar. Embora tenhamos citado muitas das observações abrangentes de Cassirer, admiramos mais a descrição anterior de Lévy-Bruhl. A sua comparação simples com a visão atual é preferível à análise de Cassirer, que vai longe demais para uma explicação, em termos kantianos, de perceção pura comparada com uma percepção disciplinada pelas categorias da compreensão. Mas dificilmente podemos estar de acordo com a ideia de Lévy-Bruhl segundo a qual as mentes primordiais usaram alguns modos pré lógicos de inferência - pelo menos acho que devemos pôr a questão de uma forma diferente. Toda a observação empírica baseia-se, em última análise, na integração de elementos subsidiários num centro focal. Todas essas integrações - desde a percepção até às descobertas criativas - são impulsionadas pela imaginação e controladas pela plausibilidade, que por sua vez depende da nossa visão geral sobre a natureza das coisas. Para uma grande variedade de assuntos do dia a dia, a mente arcaica pensa e atua tão sensatamente como nós. O próprio Lévy-Bruhl diz isso claramente9. Nalguns aspetos a visão arcaica é obviamente diferente daquilo que é vagamente conhecido como a moderna visão científica, mas embora as diferenças possam ser maiores, talvez não sejam mais mais profundas do que as diferenças dos pontos de vista acerca da plausibilidade das coerência entre os vários grupos de pessoas numa universidade ocidental moderna. Ao avaliar as diferenças entre as abordagens arcaica e moderna, temos que 9 Ibid., pp. 78-79.

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manter que a mente arcaica é melhor, sob vários pontos de vista. Está correta ao experimentar os nomes como parte da pessoa nomeada e uma imagem como parte do seu sujeito; porque um nome não é um nome, nem uma imagem é uma imagem, senão como elementos subsidiários para o centro focal a que se referem. Essa é a natureza de todas as relações significantes. Admite-se que a mente arcaica tendia a exagerar esta coerência até ao absurdo, mas está mais próximo da verdade do que a visão moderna, que não tem lugar para a qualidade e para a profundidade dessas coerências nem, portanto, para toda a extensão de elementos subsidiários que são necessários para a sua composição. Esta diferença tornase essencial na observação das entidades compreensivas que apenas podem ser observadas por interiorização. A mente arcaica reconhece a interiorização como um meio adequado para compreender as coisas vivas. A biologia e a psicologia modernas abominam esta abordagem à vida e à mente. Os seus ensinamentos tendem antes considerar que somos todos máquinas e, em última análise, meras topografias atómicas. As ideias de Galileu, Gassendi e John Locke, ligadas ao associativismo de Hume, abriram o caminho para as realizações da ciência moderna, mas ao mesmo tempo também despojaram o mundo de tudo daquilo que tem um interesse primário para o seu sentido. O que finalmente nos leva de volta à questão de saber até que ponto se pode dizer que os mitos arcaicos sejam verdade, tal como Mircea Eliade reivindica. Mostramos pelo exemplo do caso de Velikovsky quanto os nossos julgamentos de plausibilidade afetam as conclusões que tiramos acerca de um conjunto particular de dados. Serviu também para demonstrar a indemonstrabilidade das plausibilidades. Até dentro de uma mesma comunidade académica podemos encontrar julgamentos contraditórios de plausibilidade em grupos diferentes. Este facto prova que estes julgamentos, subjacentes a toda a inferência empírica, se baseiam em grande parte sobre fundamentos que não são especificáveis. Vimos que as aberrações, muitas vezes fantásticas, das crenças arcaicas se devem, em grande medida, a uma relutância para aceitar a possibilidade de algumas das coerências concebíveis serem apenas coincidências. Assinalamos também que a educação científica moderna faz chegar até nós uma visão ainda mais absurda acerca da natureza das coisas, quando afirma que todos os sistemas coerentes da nossa experiência - incluindo a nossa própria consciência - podem ser, em última análise, representados pela interação de partículas atómicas, de acordo com as forças atómicas. Também isto é uma aberração da imaginação: uma extrapolação fantástica das ciências exatas. A realidade é que todo o conhecimento empírico se baseia em elementos subsidiários que, em certa medida, não são especificáveis. Podemos adicionar, como corolário, que a amplitude de sentidos coberta por afirmações verbais é ilimitada.

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SIGNIFICAR

Vimos como a riqueza do sentido poético pode servir para clarificar as nossas próprias experiências e como as pode exprimir com eficácia. Os mitos dos povos arcaicos também podem ser visto a esta luz. É claro que são obras da imaginação; e a sua verdade, como a verdade das obras de arte, apenas pode consistir no seu poder para nos evocar uma experiência que nós consideramos como genuína. Mas não será que isto nos move muito para além do que é considerado como a verificação - particularmente em ciência? Não totalmente. Na história da ciência há muitos episódios de ideias parcialmente verdadeiras que foram totalmente rejeitadas por alguns cientistas devido ao seu conteúdo errado, enquanto que outros as aceitavam, apesar de todos os seus erros. As fantásticas demonstrações do mesmerismo por Mesmer foram depois seguidas com sucesso por Elliotson; mas, como a sua última versão ainda incluía uma forte dose de absurdos, muitos cientistas rejeitaram os seus resultados, tal como também tinham rejeitado os de Mesmer, e só com a reformulação que Braid fez do mesmerismo através do conceito de hipnose, um século depois de Mesmer, é que o conteúdo verdadeiro do seu trabalho foi apreciado e reconhecido como distinto dos seus erros fantásticos. Há hoje em dia um mito segundo o qual uma teoria científica é instantaneamente rejeitada desde que se conheçam alguns fatos que são incompatíveis com a teoria. Mas, como vimos antes, nesta obra, a prática atual dos cientistas é muitas vezes duvidar da demonstração de tais fatos incompatíveis, por mais inexplicável que a evidencia pareça ser; ou então apresentando alguns fatos aparentemente contraditórios com uma teoria aceite como anomalias dessas teorias; ou ainda, noutros casos, aceitando dois princípios mutuamente contraditórios e atribuindo a cada um espaços restritos de aplicação, na esperança de que qualquer coisa venha depois explicar o conflito entre eles. Logo, em muitas ocasiões, mesmo uma teoria científica é aceite, na geralidade, por causa da verdade supostamente contida em si, não porque todas as suas partes sejam igualmente credíveis. Considerando isto, podemos renovar a questão acerca da verdade dos mitos arcaicos da criação. Há muita falta de senso nesses mitos. Conseguimos isolar e ignorar muito disso, mas mesmo assim o centro da história contém muito de inaceitável. Será que podemos supor que é um daqueles casos em que a verdade está tão entrelaçada com erros que não a podemos exprimir sem também exprimir o erro? Por outras palavras, se rejeitarmos os mitos arcaicos por causa dos seus erros manifestos, será que esta purificação não é compensada pela concomitante perda das verdades contidas nesses mitos? Mas o que são esses mitos? Eliade diz que o mito da criação nos torna conscientes de uma realidade mais profunda, que nós inevitavelmente perdemos de vista nas nossas atividades pessoais. Liberta-nos de uma

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falsa identificação da realidade com o que cada um de nós parece ser ou possuir … O mito continuamente reatualiza o grande tempo, e ao fazê-lo eleva o ouvinte a um plano super humano e supra histórico que, entre outras coisas, lhe permite aproximar-se de uma realidade que é inacessível ao nível da existência individual e profana10. Logo o mito da criação abre aos seus seguidores uma certa visão do universo que os faz sentir em casa. À luz do mito, cada acontecimento importante da vida do homem evoca a sua descendência da ancestral origem cósmica, e cada um dos seus empreendimentos é tomado como uma reversão do ato mítico que, pela primeira vez, o realizou. O mito da criação ensina-nos o conhecimento da perfeição, da perfeição da natureza e da virtude na ação. O seu conhecimento imemorial liga aqueles que possuem esse conhecimento e a um interminável contínuo de antepassados. O conhecimento mítico propicia, nas ocasiões sagradas, a experiência de pensamentos para além dos horizontes das vidas individuais dos homens. Assegura aos seus discípulos o acesso à experiência de significados distantes, cujos ecos irão perdurar na sua vida diária. Estes resultados, que aceitam os mitos da criação, produzem em nós experiências que podemos acreditar que são largamente genuínas e portanto largamente verdadeiras. A crença na emergência gradual do homem a partir de um universo inanimado revela-nos que a matéria inanimada das nossas origens estava cheia de um sentido para além de tudo o que somos presentemente capazes de ver nele. Pôr de lado uma conquista tão cheia de significado como esta - como se uma emergência deste tipo pudesse ter um dia acontecido por mero acidente - é bloquear as fontes normais do pensamento inquisitivo. A origem do homem é um mistério que o mito da criação exprime de uma certa forma. E a imagem do destino do homem, como derivado das suas origens míticas, está muito mais próximo das nossas próprias experiências, da nossa experiência da grandeza humana, da nossa percepção do curso da nossa história, desde que a história começou, e da nossa experiência das forças destruidoras das nossas utopias do que a imagem de uma árida topografia atómica à qual se parece reduzir o ideal de observações imparciais. Há portanto uma verdade importante no mito arcaico da criação, que falta no ideal atual de conhecimento científico, e neste sentido podemos estar de acordo como Eliade quando fala do mito da criação como sendo verdade. Para alguns de nós isto é suficiente. Para outros, no entanto, não é suficiente. De facto, pode ser que seja insuficiente para a maior parte do atual geração de seres humanos. No próximo capítulo veremos porquê. 10 Mircea Eliade, Images and Symbols, trad. Philip Mairet (London: Harvill Press, 1961), p. 59.

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lhando para trás sobre o que temos vindo a dizer neste livro, vemos que precisamos de introduzir certos elementos novos para alargar a nossa noção de conhecimento, desde aquilo em que este está, direta ou indiretamente, relacionado com as observações, para aquilo que consiste numa espécie de aceitação, ou reconhecimento, como damos a uma obra de arte. Trataremos especialmente as obras de arte representativas, porque estas incluem sempre alguma afirmação que se pode exprimir verbalmente, por afirmações e prosa. Sempre que aceitamos obras deste tipo como genuínas obras de arte, também as estamos a compreender como verdadeiras, mesmo quando as afirmações do seu conteúdo em prosa possam ser, por si só, eventualmente falsas. Investigamos diversos modos deste tipo de afirmação, que são por nós entendidos como válidos, mesmo sem (ou mesmo apesar de) qualquer conteúdo observacional. A artes representativas são portanto consideradas por nós para fazer afirmações que, de certo modo, aceitamos, mesmo que não as consideremos, na realidade, muito convincentes como factos. Um dos novos elementos que descobrimos ser essencial introduzir, para passar da “observação” para a “aceitação”, é o facto das (falsas) afirmações incorporadas nas obras de arte representativas se fundirem sempre com condições incompatíveis com essas afirmações. Isso exige, como vimos, esforços vigorosos e repetidos, por parte da nossa imaginação, para conseguir fundir ou integrar esses incompatíveis. Na arte visionária, a quem no entanto falta uma “história”, o papel vital que a nossa imaginação tem na nossa aceitação da arte foi claramente posto em evidência. Vimos que, apesar da nossa imaginação estar necessariamente a funcionar em cada tipo de tomada de consciência ou de atividade em que nos empenhamos, está no seu máximo nas nossas apreensões de obras de arte e em acontecimentos semelhantes. Vimos que o conhecimento que as descobertas científicas nos legam pode, eventualmente, tornar-se no nosso conhecimento comum e corrente e parecer não exigir qualquer esforço imaginativo da nossa parte sempre que fazemos uso dele, embora, na realidade, a sua descoberta original possa ter exigido uma forte dose de imaginação. Uma obra de arte, por outro lado, não faz sentido a menos que exercitemos a nossa imaginação de cada vez que a experimentamos. Um outro elemento novo, que vimos que precisamos ao entender a natureza

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da “aceitação”, era qualquer coisa que designamos por “estrutura” (de enquadramento, em oposição ao conteúdo em prosa ou “história”), como por exemplo a tela e a tinta numa pintura, ou o cenário num palco, ou ainda o ritmo e a métrica num poema. Este elemento contribui para o distanciamento com que apreciamos uma obra de arte. Esta estrutura, ao desviar a atenção do curso normal da experiência, evita que as afirmações em prosa feitas na obra de arte sejam consideradas como relacionadas, ou como antecipando, factos observáveis na nossa experiência prática corrente. Esta circunstância levou-nos a considerar a antiga concepção de obras de arte como falsa, quando se pensava que estavam a imitar ou a simular objetos. As pinturas, as peças de teatro e a poesia não afirmam nada que seja, ou não seja, o caso, pois as suas afirmações integram-se com estruturas incompatíveis com essas afirmações. A fusão resultante não pode, portanto, incluir qualquer informação factual. Vimos que a conclusão de Coleridge, segundo a qual aceitamos estas obras de arte por ato de incredulidade voluntária, está por isso errada. O artefacto. fundido no chamado mimetismo, despoja-as do seu conteúdo mimético. Logo uma obra de arte representativa incorpora uma contradição que distingue o caráter das suas afirmações relativamente a qualquer afirmação empírica. Esta contradição separa as suas afirmações do contexto do espaço da nossa vida - o contexto de todo o curso da nossa existência - e causa a sua separação, tanto do seu autor como do seu público, e, sem dúvida, de quaisquer experiências naturais, incluindo as da ciência. Verificamos que podemos chamar o seu significado como transnatural, pois a sua forte contradição retira uma obra de arte do contexto, quer do contexto das nossas vidas passageiras como do contexto do espaço em que vivemos, quer como leigos ou como cientistas. As festividades e as ocasiões solenes que vimos também se distanciam, no mesmo sentido, sendo externas tanto ao contexto das nossas vidas como ao de qualquer experiência. E classificamos, entre essas afirmações isoladas, todos os atos sagrados do ritual, e todos as histórias sagradas recitadas dentro do contexto de um ritual, que efetivamente os isola do fluxo do tempo e do espaço envolvente. Há um terceiro elemento que foi percebido como operacional nas “aceitações”, em oposição às “observações”. Recorde-se o nosso exemplo de uma bandeira nacional como exemplo de um símbolo que representa emocionalmente um país para os seus cidadãos, com fortes sentimentos patrióticos. É um facto surpreendente que a totalidade das recoleções de uma vida completa, difusamente recordadas pelo cidadão de uma nação, sejam condensadas e infundidas numa peça de pano presa a uma haste e suportada por uma estrutura convencional. A vida de uma pessoa, imensamente ampliada e dificilmente recordável, é condensada numa força emocional associada a um objeto que, de outra forma, é trivial e sem sentido.

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Repetindo esta descrição dos poderes simbólicos da bandeira com algumas variações, teremos perante nós os poderes emocionais da poesia, tal como os descrevemos anteriormente, na sequência da análise de I. A. Richards. As memórias difusas da nossa vida no dia a dia contêm experiências que dão sentido e um poder emocional penetrante aos poemas capazes de personificar tais experiências através dos poderes integradores da nossa imaginação. O mesmo tipo de experiência, imersa nas nossas memórias difusas, proporciona o significado e o poder de uma pintura ou de uma peça de teatro. As obras de arte representativas estão tão distantes das nossas vidas correntes e incoerentes como uma peça de pano colorida num mastro está distante das vidas que representa; as obras de arte derivam o seu poder através do mesmo mecanismo com que as bandeiras nacionais. É claro que o exemplo da bandeira não nos leva muito longe. As obras de arte têm um significado intrínseco que uma bandeira não tem. As obras de arte são metáforas, num certo sentido, e embora o poder de uma metáfora seja próximo do poder de um símbolo, tal como uma bandeira, há uma diferença que dá mais significado a uma metáfora do que a um símbolo. Vimos que o poder de uma metáfora reside na nossa capacidade para personificar um objeto de grande interesse (o “conteúdo”) noutro objeto remotamente semelhante (mas também intrinsecamente interessante) (o “veículo”), dando assim ao primeiro objeto um novo significado nítido e com grande carga emotiva. Ocasionalmente tem sido dito que todos os poemas são metáforas, ou que todas as pinturas são metáforas. Isso antecipa vagamente o que temos estado a desenvolver até aqui, em particular o facto de existir uma classe de significados baseados na nossa capacidade para personificar uma coisa noutra coisa (tal como fazemos nas metáforas); mas esta capacidade também inclui a nossa habilidade para submergir todo um conjunto de experiências difusas numa experiência mais rigorosamente circunscrita (como, por exemplo, a experiência de uma obra de arte isolada), com alguma semelhança com o conjunto das experiências difusas. A experiência mais nitidamente circunscrita - que pode ser o veículo numa metáfora, mas que também pode ser uma pintura completa, uma peça de teatro completa ou um poema completo - absorve então, e personifica, a nossa experiência original difusa, tornando-se numa interpretação fortemente reveladora e com enorme carga emocional. É o que acontece quando nos deixamos enlevar por um poema, ou pela vertigem de uma peça de teatro, ou quando vemos pela primeira vez o Moisés de Miguel Angelo e somos obrigados a rever a nossa avaliação da raça humana. Recordemos que até uma ação simbólica pode também ser uma metáfora. É uma metáfora quando quando a ação não só apoia mas também se assemelha àquela que simboliza, como é o caso em ritos e cerimónias. Também estas nos podem arrebatar, pois são ações independentes das nossas vidas correntes e cheias

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de significado, por causa dos ritos sagrados que estão por trás e que nos transportam para o grande tempo dos inícios. Estamos agora prontos, seguindo estas ideias, para tratar a interpretação da religião. Quando falamos da estrutura dos mitos (capítulo 8), fizemos notar que este tipo de ligação muito forte, entre os mitos arcaicos da criação e as cerimónias, nos conduzem aos domínios da religião, mas ainda não exploramos com alguma profundidade a natureza dessas integrações - os seus significados - que se podem alcançar com a religião. Como se pode ver, a religião é uma obra alargada da nossa imaginação, que envolve ritos, cerimónias, doutrinas, mitos, e ainda mais alguma coisa chamado “culto”. É portanto uma forma de “aceitação” muito mais complexa do que qualquer uma das outras formas a que temos estado a atender. Em primeiro lugar a religião envolve mitos sagrados, que informam ritos e cerimónias, imbuindo o seu intrínseco significado metafórico com algo mais do que o tipo de significado poético ou artístico que possuem, como simples obras de arte metafóricas. Seja o caso do sacramento cristão da sagrada comunhão. Comer o pão e beber o vinho são ações correntes por si próprias, como uma forma de satisfazer a fome e de prover à vida biológica. Há ainda mais um resultado natural que acontece quando as pessoas jantam em conjunto, quando partilham o pão em conjunto. Quando se come com alguém a mesma comida, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, estabelece-se uma comunidade de sentimentos, uma convivialidade. Em certa medida tornam-se um só, pelo menos por um momento. Um comer e beber cerimonioso pode portanto servir como um veículo metafórico personificando (e portanto “celebrando”) a comunhão dos homens numa irmandade de sentimentos fraternos, e pode atuar sobre nós de uma forma semelhante à de qualquer metáfora - ou possivelmente qualquer obra de arte. Nós incorporamos as nossas próprias experiências, temporais e imperfeitas, ao longo de um certo período de tempo, na unificação de um momento - que também encarna a nossa unificação com o outro, nesse mesmo momento. Se isso for uma cerimónia tradicional, santificada pelo tempo, a intervalos regulares - talvez por gerações do mesmo povo e seus descendentes - então a cerimónia estará nas fronteiras do sagrado e do religioso. Digamos que poderia passar fácilmente para o óbviamente sagrado ou religioso, uma vez adicionado um mito que a descreva como “era uma vez” ordenada por um deus. A presença de um tal mito, como um dos indícios integrados no significado da cerimónia, separa essas ações não só das situações prosaicas das refeições correntes - uma cerimónia não sagrada também o conseguiria fazer - mas também de todo o domínio dos acontecimentos temporais. Através do mito nós habitamos um momento no grande tempo inicial e unimo-nos não só com outros mas também com os nossos antepassados, e também com o Todo. Participamos no significado último das coisas.

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É óbvio que, na Sagrada Comunhão, o mito é a história da última ceia, em que o próprio Senhor instituiu o rito, para ser realizado “em memória de mim” até ao regresso. Para além deste significado, através da encarnação mútua no mito, está também o significado ainda mais metafórico de satisfazer uma fome espiritual e de encher a vida espiritual pelo assimilação ritual do corpo e do sangue - a substância - do Filho de Deus. (Algo, talvez, da mesma forma como os Bororos são papagaios vermelhos). É claro que só através do acreditar no mito é que se atinge toda a riqueza da cerimónia - o conjunto de todos os seus significados sagrados e religiosos: todos aqueles significados incompatíveis que florescem em conjunto no “Novo Testamento no meu sangue”. Vemos que este rito cristão se torna sagrado e se separa do mito que está nele incorporado (tal como também está incorporado no mito), tal como descobrimos que certos ritos primitivos se transformam em algo totalmente separado e sagrado pela presença de num mito da criação. Vimos que as obras de arte são fusões de incompatíveis e que esta fusão parece ser caraterística de toda uma classe de significados que temos vindo a considerar neste capítulo - significados que nós chamamos “reconhecimentos” ou “aceitações”, por oposição a “observações”. Indicamos que a religião é uma dessas fusões de incompatíveis no que diz respeito, pelo menos, aos seus ritos, cerimónias e mitos. Exploremos agora mais completamente a forma como tais ritos, cerimónias, e mitos funcionam na religião, como fusões de incompatíveis, e depois tentaremos ver como o culto religioso também funciona como uma dessas fusões. Os ritos e as cerimónias quebram as nossas rotinas e introduzem uma ação nas nossas vidas (a celebração) que não é uma ação no sentido corrente da palavra. As nossas ações correntes estão todas localizadas dentro do nosso quadro temporal e dirigem-se para fins específicos - para materiais específicos orientados para fins específicos, em tempos e locais específicos. De facto, a escolha do tempo apropriado - para toda a ação e para cada uma das suas partes - é a essência de uma ação genuína e aceitável. Mas a ação de um ritual apenas tem significado nos tempos do Grande Tempo - o tempo antes de todos os tempos - o qual não tem, nem precisa, de data. Não se destina a realizar objetivos específicos, excepto no caso da magia e das superstições. É óbvio que aquilo que dá um maior significado a um rito é o mito que ele recria. O rito está portanto incorporado no mito - o que é uma circunstância curiosa, pois um mito por si mesmo não tem corpo, a não ser nos ritos que o recriam. Cada um deles apenas existe numa forma viável do outro. Logo não é só apenas o que é dito no mito que serve para o isolar dos assuntos práticos das nossas vidas, mas porventura serão ainda mais os ritos e as cerimónias que recriam as ações que o mito exprime. Cada um serve como um “quadro” para a “história” do outro. E cada quadro é, por sua vez, incompatível com os

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conteúdos de cada história. Uma ação no tempo e no espaço mundano é enquadrada por uma ação que está para além desse tempo e desse espaço, e vice versa. No entanto os dois unem-se num todo significante através da nossa imaginação. Consideremos oura vez a Sagrada Comunhão cristã. Em geral, considera-se que os alimentos corporais podem interferir de algum modo com a alimentação da alma. Este facto aparente é o que está subjacente à eficacia universalmente reconhecida do jejum e da abstinência para efeitos da edificação e do progresso espiritual. No entanto os dois supostos incompatíveis (alimento do corpo e alimento da alma) combinam-se no rito da Sagrada Comunhão. Há também óbvias incompatibilidades ao considerar os mesmos objetos físicos como carne e pão, vinho e sangue - já para não falar da impossibilidade de obter uma fonte infinita de alimento a partir de uma corpo humano finito. Todo o ritual, combinado com o mito, está repleto de incompatibilidades irresolúveis. Mas é a fusão destes incompatíveis, resultado da nossa imaginação, que dá sentido ao conjunto de toda a transação e que move com grande poder os nossos sentimentos religiosos - se formos cristãos. Á medida que voltamos a nossa atenção para o culto religioso, encontramonos com incompatibilidades pelo menos equivalentes às envolvidas no mito e no ritual. Como pode o Deus infinito de todos os Deuse,. o Deus de todos os mundos, o Deus que “tem todo o mundo nas suas mãos” ficar de alguma forma satisfeito, edificado, ou honrado - muito menos glorificado - pelas vozes e ações, pelas posturas, e até mesmo pelos pensamentos superiores de algumas figuras antropológicas, que só recentemente desceram das árvores, quando realizam rituais em certos locais finitos, que pensavam ser santificados, em certos momentos finitos por eles considerados como dias santos? Todo o “quadro” em que a “história” do louvor e da glória de Deus se localiza - a sua encarnação - é caricatamente incompatível com tal “história”. O mesmo tipo de incompatíveis aparece quando o culto passa do louvor, glorificação e reverência para uma ação de graças. Como pode ter significado agradecer certas graças específicas recebidas por certas pessoas específicas, quando se considera que a essência fundamental do Deus de todos é fazer sempre aquilo que é o melhor para todos? Mas quando olhamos para a ocasião particular de dar graças a Deus, estas incongruências parecem-nos inconsequentes. Há uma pedra numa parede do New College, em Oxford, em memória de alguém há muito falecido, que diz: “Agradeço ao meu Deus por cada lembrança dele”. Esta declaração surpreende-nos como algo muito comovente e significativo - mas só de uma forma completamente transnatural. As preces rogatórias são talvez, de todas as partes do culto religioso, a parte mais vazia de significância corrente. Pode-se considerar como remotamente sig-

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nificante sentir gratidão porque Deus é bom - mesmo que se pense que não podia ser de outra maneira. Mas como é que se pode presumir que o podemos aconselhar, ou que podemos argumentar para que faça qualquer coisa a alguém? Algumas súplicas lógicamente significam que não confiamos no seu conhecimento, ou que saiba o que fazer no nosso melhor interesse sem a nossa intercessão. Mas para um crente, na sua forma mais sincera, é óbvio que isto é um supremo ato de confiança. Tal como o homicidio no palco, que na realidade não é um homicidio, este ato de não confiança é na realidade um ato de confiança. A diferença é que aquilo que no palco aparece como uma história, na realidade não é uma ação que esteja a decorrer, enquanto que num serviço religioso aquilo que parece não estar na realidade a acontecer (porque não faria sentido lógico que estivesse a acontecer) está na realidade a acontecer. Alguém está a venerar e a honrar Deus, alguém lhe está agradecido, e alguém está a confiar nele, mesmo que pareça que esse alguém não deveria conseguir obter esses resultados através dessas ações. Mas aqui o “está a fazer” é um “estar a fazer” que passa para além de todos os modos de ação temporal e que encarna as verdades que nos fazem viver no Grande Tempo inicial - ou, como os cristãos dizem, no Reino dos Céus. Logo é só pela nossa participação direta em atos de culto - vivendo-os - que vemos Deus. Deus não é portanto um ser cuja existência se possa estabelecer de uma forma lógica, científica ou racional, antes de nos envolvermos no seu culto. Deus é um compromisso envolvido nos nossos ritos e mitos. Através dos nossos esforços imaginativos e integradores vemos Deus como o ponto focal que funde num significado todos os incompatíveis envolvidos na prática de uma religião. Mas, tal como na arte - só que de uma forma mais completa e global - Deus também se torna na integração de todos os incompatíveis das nossas vidas. Estes incompatíveis incluem não são só todos os falsos “pára e arranca” das nossas vidas, os becos sem saída, as coisas por acabar, as pontas soltas, as esperanças e os medos incompatíveis, as dores e os prazeres, amores e ódios, angústias e elações, as memória e as meias-memória, os momentos esquecidos que tanto significaram na altura para nós - numa palavra, todas as nossas memórias e experiências imperfeitas - mas também os incompatíveis que constituem toda a postura das nossas vidas: a esperança de que vamos ser capazes de fazer ou de atingir aquilo que sabemos que devemos fazer, mas que também sabemos que não temos o poder de conseguir fazer. Num sentido prático estes incompatíveis fundamentais resolvem-se muitas vezes deitando fora ou um ou o outro. O magalómano rejeita as suas fragilidades, o oportunista rejeita as suas obrigações, e um suicida rejeita a esperança. O homem sensato, dizemos nós, mantém juntos todos esses fatores incompatíveis numa espécie de tensão permanente, na expectativa que de algum modo venha a

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ter o poder de fazer aquilo que sabe que deve fazer, mas entretanto vai vivendo com humildade dentro dos limites das suas capacidades - dentro da sua “vocação”, no seu sentido mais lato deste mundo. De facto, este é o tipo de fé e de esperança que um cientista tem quando enfrenta um problema que ele não sabe resolver, mas que mesmo assim resolve atacar1. Ma uma tal fé e esperança é necessariamente cega e portanto difícil de manter sob pressão. Na ausência de um reconhecimento da legitimidade dos tipos de fusões imaginativas a que chamamos “reconhecimentos” ou “aceitações” - quando, por outras palavras, só as observações e só a obstinação de um cientista, ou de uma razão pura, são reconhecidas como formas válidas de conhecimento - é fácil uma tal fé e esperança ser suplantada pela suprema arrogância do marxismo, que esquece ou nega as limitações humanas, ou pela liberdade de um Sartre, que esquece as obrigações que encontramos nas nossas posições, ou de um Camus, que abandona toda a esperança como objetivamente sem fundamento. Na cristandade pauliniana, por outro lado, a fé e a esperança têm um objeto. Vivemos na esperança de podermos, pela graça de Deus, ser de algum modo capazes de fazer o que devemos fazer, mas que neste momento ainda não vemos possibilidade de conseguir fazer - ou ainda confiar em que é preferível não o fazer, se nunca se receber essa graça. Habitando neste quadro mental, não perdemos a tensão, mas isso também não nos preocupa nem nos torna complacentes. Os nossos mitos falam-nos do pecado e porque é que somos excluídos do paraíso por que ansiamos como se fosse o nosso estado natural. Mas também nos falam da Redenção e do poder e da graça de Deus, que nos serão dispensados à medida que for preciso. Libertamo-nos da nossas preocupação com as limitações (para nós) insuperáveis. Mas não nos libertamos das obrigações para com “a lei” e portanto não nos podemos tornar complacentes. Mais, somos humilhados perante Deus pelo reconhecimento da nossa completa dependência dele para a vitória final através de Cristo. Nenhuma destas crenças faz qualquer sentido literal. Podem ser destruídas 1 Acerca disto é interessante notar como John Dewey distinguiu as suas visões relativamente às visões do “ateísmo militante”. Apontou para a falta de “piedade natural” nesse ateísmo, descrevendo-o como a atitude de alguém que pensa de si próprio como “uma lama isolada e só… a viver num mundo hostil e indiferente e lançando assopros de desafio”. Dewey protestava no entanto que a natureza “(não só) produz ocasiões de discórdia e de confusão (como também) seja o que for de reforço e direção”. É assim óbvio que acreditava que a natureza não só nos lega os nossos problemas como também nos dá os recursos para a sua solução. É óbvio que esta convicção é essencialmente uma “fé”, pois ninguém pode saber que um problema, que ainda não foi resolvido, tenha já sido resolvido. Mas é também uma fé essencial se alguém jamais alguém encontrar as soluções para os problemas. Só as podemos encontrar procurando, e só podemos procurar se acreditarmos que há alguma coisa para encontrar – o que é acreditar que não vivemos num universo “hostil” mas antes num universo onde podemos confiar no seu apoio. E isto, dizia Dewey, é essencialmente uma “atitude religiosa”. (Ver John Dewey, A Common Faith (New Haven: Yale University Press, 1934], pp. 52-54.)

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tão facilmente como a atualidade da morte de Polónio no palco, no caso de alguém tentar defender a sua realidade no mundo dos factos. Ambos são obras da imaginação, aceites por nós através das suas integrações significantes de indícios incompatíveis, que nos comovem profundamente, e que nos ajudam a reunir as gotas dispersas da nossa vida num único mar de sentido sublime. Que os homens tenham sido tão profundamente tocados pelas suas religiões, isso certamente que passa sem controvérsia. Que alguns homens sejam, hoje em dia, tão profundamente tocados também é provavelmente aceitável, sejam quais forem as teorias inventadas para o “explicar” (ou seja, reduzir isso a “causas naturalistas”). Mas que é difícil, senão mesmo impossível para muitos, até mesmo para muitos homens - talvez para a maioria dos homens - serem assim tão tocados, hoje em dia, isso também parece estar para além do discutível. Mas porque é que o reconhecimento da religião (ou seja, dos significados da religião), no sentido em que temos estado a descrever - não no sentido de uma religião reduzida a um desejo pela melhoria social, pela construção do caracter pessoal, por relações humanas mais sãs, para qualquer outra coisa que na realidade seja qualquer coisa mais, mas sim uma religião que implique significados únicos para si mesma - porque será que a aceitação de uma tal religião precisa de experimentar uma dificuldade tão grande nos nossos dias: essa é a questão. Voltemos para um indício de algum modo envolvido no reconhecimento de uma obra de arte representacional, algo a que não demos atenção especial nas nossas discussões anteriores. A parte relativa à “história” de tais obras deve ter algum grau de plausibilidade. Deve-nos impressionar, a nós audiência, que um homem como Hamlet possa matar um homem como Polónio, nas circunstâncias da peça. Na realidade, todo o Hamlet precisa de nos impressionar como uma série coerente de acontecimentos relacionados, que precisam de acabar no desfecho em que acabam. Isto é algo diferente de um mero juízo frio e “objetivo” da sua possibilidade lógica. Como Aristóteles referiu há muito tempo, uma impossibilidade convincente numa peça de teatro é melhor do que uma possibilidade não convincente2. Todos os indícios, à medida que chegam até nós, precisam de ser tais que induzam a nossa imaginação a fazer uma integração que pareça ser um curso plausível dos acontecimentos. Estamos habituados a dizer, nestes nossos tempos de rápidas inovações com grande impacto, pelas descobertas, invenções, e artes, que tudo é possível. Mas, na realidade, nós honestamente achamos, por antecipação, que só certas coisas é que são plausíveis. São aquelas que esperamos e que estamos prontos a aceitar - mesmo se de facto forem, na realidade, impossíveis. Mas seja o que for que seja plau2 Aristotle, Basic Works, ed. Richard P. McKeon, trad. Ingram Bywater (New York: Random House, 1941), p. 1482 (1460a),

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sível para nós, é claro que isso nos parece possível. Logo digamos que a parte da história de uma obra de arte representativa deve-nos parecer possível, de alguma forma, neste sentido - não como potencialmente possível, o que para nós incluiria quase tudo o que é imaginável, mas antes o que é realmente possível, no sentido daquilo que realmente nos parece ser plausível. Como se mostrou, são os mitos sagrados que encarnam os rituais religiosos. Mas os ritos incluem uma história, e portanto têm um conteúdo representacional tal como uma obra de arte representativa. É este conteúdo representacional de um mito religioso que deve ser possível para nós (ou seja, na realidade, ser plausível), para o podermos aceitar. Não há dúvidas que este conteúdo representacional do mito religioso é pelo menos um dos impedimentos sérios à aceitação da religião nos nossos dias. Tanto é assim que toda uma escola de teólogos se tem empenhado em demitologizar as nossas religiões. Mas, se é verdade que os mitos são uma parte essencial de qualquer religião, o sucesso de tal movimento pode apenas significar a morte total da religião. Pergunte-se então que tipo de possibilidade é que os mitos sagrados, que informam os ritos religiosos, devem ter para que possam merecer a nossa aceitação. Vê-se de imediato que não pode ser considerarmos a sua descrição dos acontecimentos como factualmente verdadeiros, no sentido das nossas possibilidades no dia a dia. Ou seja, a sua possibilidade não pode residir na nossa concepção dos acontecimentos, pois esta representa-os como tendo realmente ocorrido no tempo secular - pelo menos não como se tais acontecimentos tivessem ocorrido no tempo secular - porque o seu grande distanciamento baseia-se nesses acontecimentos serem compreendidos como tendo antes ocorrido no “Grande Tempo” - esse tempo para além deste mundo - de que Eliade fala. Se aos acontecimentos de um mito sagrado precisam da falta deste tipo de possibilidade no dia a dia - possibilidade que os acontecimentos representados nas artes representativas devem ter - então, seja qual for a sua possibilidade, ela deve ser de um tipo diferente. A arte visionária mostrou que, mesmo quando é óbvio que o conteúdo da história de uma obra de arte não tem plausibilidade, é no entanto possível que a nossa imaginação consiga integrar esses elementos incompatíveis num significado - um significado que não se pode exprimir por qualquer conjunto coerente de afirmações explícitas, um significado que nasceu e que se mantem ao nível do sentimento, mas que, no entanto, é um significado pessoal, genuinamente universal, e não apenas um significado pessoal e subjetivo. Em certa medida ,e para certas pessoas, talvez os significados atingidos pela religião possam ser deste mesmo tipo. Os conteúdos podem continuar a ser completamente implausíveis para nós, mas mesmo assim nós continuamos a ver nas

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RECONHECIMENTO DA RELIGIÃO

histórias da criação, nas histórias dos nascimentos milagrosos, nas histórias da Crucificação e da Ressureição, um sentido que exprime todo a significância da vida e do universo através de sentimentos genuínos e universais. Podemos por isso dizer: não tem importância. Se não for essa história, então qualquer coisa de parecido com isso é de alguma forma verdade. Então, o que é que nos dificulta que se atinja esse sentido na religião dos nossos dias, especialmente dada a facilidade com que atingimos o sentido das artes visionárias? Quando pomos a religião e as artes visionárias face a face, começamos a ver mais claramente porque é que os mitos e os ritos religiosos (quando vistos como incluindo conteúdos implausíveis) são muito menos fáceis de integrar do que as obras de arte visionária. A razão reside em que, mesmo quando todos os detalhes representativos dos mitos são clara e francamente vistos como impossíveis (tal como os “conteúdos” da arte visionária), o sentido desses detalhes ainda pode continuar a ser visto como plausível. Porque, ao contrário dos conteúdos da arte visionária, os conteúdos de uma religião terão como sentido a história de um mundo fundamentalmente significativo, enquanto que o impacto de uma obra de arte visionária é, pelo contrário, que o mundo é um amontoada sem sentido de coisas imperfeitas. Logo se podemos olhar para o mito religioso como plausível, o tipo de mundo que o mito religioso exprime - um mundo com sentido - deve ser visto por nós como plausível. Devemos ser capazes de dizer: se esta não é exatamente a história, então algo de parecido com esta história deve ser como as coisas se combinam. Por outras palavras, deve ser para nós plausível supor que o universo tem, ao fim e ao cabo, um sentido ou significado. Como disse William James, precisa de ser possível pensar que os valores que a religião diz serem superiores possam realmente “atirar a última pedra”3. Posto pela negativa, não devemos acreditar que o universo seja tal que esses “valores” não possam “atirar a última pedra” porque, se acreditarmos num tal universo “sem valores”, então, como diz James, a “hipótese religiosa” não é viável e não a podemos acolher - não obstante uma vida só se poder tornar com sentido se a devemos acolher e se só assim for possível, talvez, escolher aceitá-la. Podemos ainda querer ir tão longe como afirmar que a “hipótese religiosa” (para usar o termo cruamente pragmático de James) é tão terrivelmente atrativa para quase todos os homens que, se ao menos lhe fosse possível acreditar que era possível, então também acreditariam que é verdade. Toda a experiência da humanidade tem seguramente sido que em geral os homens têm essa tal “vontade para acreditar”. Alguns acreditam, mesmo nos nossos dias. E para outros, até 3 William James, “The Will to Believe,” in The Will to Believe and Other Essays (New York: Longmans, Green, 1898), p. 25.

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mesmo Sartre, que não acreditam, dizem: “Angustia-nos que Deus não exista”4. Mas, por mais desejáveis que sejam, os significados da religião não serão provavelmente restaurados pelo homem até que as suas visões do universo sejam tais que ele possa novamente acolher esses significados como representações da forma como as coisas podiam realmente ser. Precisamos agora de tratar da questão de saber se os compromissos naturalistas e cientistas do homem do século vinte o impedem irrevogavelmente de aceitar tal possibilidade, tal como parece acontecer, ou se este apenas as interpretou mal, quando elas se atravessaram no seu caminho.

4 Jean-Paul Sartre, Existentialism, trad. Bernard Frechman (New York: Philosophical Library, 1947), p. 26.

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omo vimos no último capítulo, o elemento representativo de todas as orientações religiosas mostra o mundo como significativo; ou seja, representa o mundo como qualquer coisa que é mais do que um conglomerado de interações físicas e químicas que gera, sem qualquer propósito, as forças de equilíbrio necessárias, ou prováveis, de uma qualquer gota efémera. Mas, tal como visto por muitos pensadores astutos, desde Sócrates, não é possível pensar, em última análise, o mundo como significante a menos que a organização das suas parte tenha um significado, ou seja, a menos que exista algo que o justifique, num certo ponto do processo de juntar as coisas ou, pelo menos, na direção em que elas se desenvolvem. Isto significaria que temos de atingir uma visão do mundo em que o universo, por si, não seja “sem valores”. Precisamos de pensar que devem existir algumas linhas direcionais inteligíveis que o operacionalizam. Logo, para que o mundo tenha um significado não basta supor que faz sentido apenas em termos de fórmulas que explicam tudo como o resultado de uma interação “racional” e ordenada de forças. Sócrates estava justificadamente desapontado quando descobriu que Anaxágoras, embora clamasse ter mostrado que a mente era o organizador e causa de todas as coisas, na realidade apenas tinha mostrado que “ar, éter e água” (elementos materiais) eram as causas de todas as coisas vivas. Sócrates objetou então que Anaxágoras não conseguia mostrar que as coisas estavam organizadas tal como estavam porque essa era a melhor forma de o fazerem. Hoje continuamos com as mesmas dificuldades. Não defendemos que o mundo seja absurdo porque se pense que os seus elementos não estão determinados nas suas relações mútuas. Supomos que, na realidade, estão ordenadamente organizados. Pensamos que o mundo é absurdo porque nos parece que não há razão para o que dele transpira, ou seja, não há um fim ou objetivo ou propósito para tudo isso. Parece-nos que não há qualquer sentido no universo - excepto talvez os sentidos subjetivos que o homem lhe tenta dar. Mas no final o universo anula-os. Logo, o homem vê-se a si próprio como um miúdo que continuamente repara e reconstrói o seu castelo de areia à beira da água do mar, só para ver as ondas levarem-no continuadamente. Uma tal atividade infrutífera pode ser bem aceite por uma criança, mas os homens, quando finalmente reconhecem essa situação, perderão, em geral, a vontade de construir seriamente castelos de areia. Se

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algumas pessoas continuam a construir castelos de areia num ambiente tão hostil, apenas o farão por diversão - como uma forma de passar o tempo - ou como um símbolo do desafio contra a falta de sentido do universo. A aceitação intelectual da redução do mundo à ação cega dos seus elementos atómicos, em termos de equilíbrios de forças, uma aceitação que tem vindo a crescer desde o nascimento da ciência moderna, tem feito com que qualquer forma de visão teleológica dos cosmos pareça não científica e pareça antes uma distração. É esta aceitação, mais do que qualquer outro fator intelectual, que pôs em oposição a ciência e a religião na mente contemporânea (em todas as suas formas, salvo as mais superficiais). No entanto, o recente aumento da oposição filosófica (e popular) à ciência não restaurou a teleologia, pois essa oposição tomou formas completamente opostas à noção de qualquer tipo de finalidade cósmica na ciência contemporânea. O existencialismo tem as suas raízes num auto determinismo que reclama uma reforma radical (por parte dos seres humanos), e portanto também tende a abominar as visões teleológicas, não com base em fundamentos científicos, mas simplesmente com uma outra forma de determinismo. É verdade que a teleologia rejeitada nos nossos dias é compreendida como um propósito cósmico primordial que necessita de todas as estruturas e ocorrências do universo para se realizar a si própria. Esta forma de teleologia é, sem dúvida, uma forma de determinismo - talvez mesmo uma forma mais apertada de determinismo do que aquele que é definido pelo atomismo materialista e mecanicista. No entanto, desde os tempos de Charles Saunders Peirce e de William James que tem vindo a ser proposta uma visão mais frouxa de teleologia - uma visão que nos permitiria supor que um certo tipo de tendencias direcionais inteligíveis podem operar no mundo sem que se tenha que supor que determinam todas as coisas1. Na realidade é possível que até nem mesmo Platão tenha suposto ter sido forçado pelo seu “Bem” acima de todas as coisas. Como Whitehead assinalou, Platão diz-nos que Demiurgo, olhando para o Bem, “persuadiu” uma matéria essencialmente livre a estruturar-se, imitando as Formas, em certa medida. Platão aparece a Whitehead como tendo modelado o cosmos num esforço para atingir o Bem num meio de algum modo recalcitrante, do espaço e do tempo e da matéria, um esforço bem conhecido de todas as almas com propósitos e fins e objetivos. Se é ou não verdade que Platão o tenha feito, certamente que Whitehead modelou o seu próprio cosmos muito dessa maneira2. 1 Charles Saunders Peirce, Collected Papers, ed. Charles Hartshome e Paul Weiss, 6 vols. (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, I960), 7:15-20 (6.13-24), 25-27 (6.30-34), 43-44 (6.6264), 132-40 (6.185-206). William James, A Pluralistic Universe (New York: Longmans, Green, 1920), pp. 30-34, 303-8, 321-28. 2 Alfred North Whitehead, Adventures of Ideas (New York: The Free Press, 1967), pp. 129-30, 146-50.

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As orientações teleológicas das coisas no mundo, tal como encaradas por filósofos como estes, mais do que substituir o determinismo do propósito por um determinismo das forças, têm argumentado que a tendência para se chegar a relações mais significativas, ou ordenadas ou regulares (que pensavam ser claro que o mundo exibia) era inexplicável, a menos que fosse imanente, em todas as coisas, um princípio operacional nessa direção. Como Whitehead referiu, há demasiada ordem no mundo para que se possa explicar sem o recurso a tal princípio. Ainda assim, e apesar de terem sido propostas, às nossas mentes comtemporâneas, algumas alternativas teleológicas de primeira qualidade, em relação à escolha entre as necessidades mecânicas cegas e a liberdade total, o mundo moderno parece estar globalmente empenhado numa ou noutra dessas polaridades opostas e portanto na noção de que o mundo, como tal, é simplesmente absurdo. “Teleologia” tornou-se por isso numa palavra obscena. Antes das explicações mecânicas de Darwin sobre a origem das espécies pela seleção natural e perante os enormes avanços da biologia moderna, que nos propõe explicações mecânicas (físicas e químicas) para os processos da vida, a teleologia não era uma ideia tão objectável. Pelo menos os organismos vivos pareciam ter um proposito na sua organização (uma estrutura integrada de órgãos e tecidos em funcionamento), assim como as suas operações e a sua etiologia. Mas agora a redução de organismos vivos - sem resíduo - a interações físicas e químicas parece ser dada como certa pela biologia, como um projeto a ser realizado e como um facto de que apenas as pessoas de mente confusa poderão duvidar. Não é mais do que um degrau entre esta posição e uma abordagem completamente comportamental (behaviorista) à psicologia animal e humana, que pretende abandonar os propósitos ou fins ou objetivos “mentalistas” na discussão do comportamento animal (incluindo mesmo os comportamentos humanos “superiores”). Logo, assumindo que a convicção corrente, segundo a qual a vida pode ser reduzida às leis da física e da química, é o principal obstáculo em que tropeça a possibilidade de considerarmos qualquer tipo de visão teleológica, passemos em revista, em termos muito gerais, o estado do nosso conhecimento presente dos organismos vivos e da vida. Acreditamos que a vida começou (pelo menos na terra) alguns milhares de milhões de anos atrás e que, desde o princípio, continha longos compostos de DNA, uma sequência linear que envolve quatro radicais químicos. Pensamos que o arranjo particular destes quatro radicais químicos transmite um vasto sistema de notações, diferente para cada tipo de organismo, que se transmite por via química através de gerações sucessivas. Há vinte anos atrás, Watson e Crick identificaram a estrutura dessa cadeia, e investigações feitas desde aí descobriram que todos os membros de qualquer

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sistema terrestre de seres vivos são portadores do mesmo sistema de notações, organizado pelos seus próprios alinhamentos peculiares. Todo o complexo da vida terrestre baseia-se nas cadeias dos mesmos quatro compostos do DNA, cada organismo tendo a sua própria sequência distintiva. Estas sequências do DNA têm vindo a transmitir, de geração para geração, as características hereditárias das coisas vivas, desde o início da vida na terra até ao presente. A cadeia de DNA de cada organismo é transmitida pelos seres vivos aos seus descendentes, através de subdivisões que são sequências lineares para os organismos inferiores monolíticos e combinações binárias das tais sequências por órgãos sexuais opostos nos organismos bissexuados. Em ambos os casos sabese que a sequência característica dos corpos parentais é transmitida para o novo organismo, com as variações que porventura possam ter resultado de mutações, mas amplificada pelas inovações devidas à combinação de pares sexuais em organismos bissexuados. Logo é possível que o padrão inato de cada recém nascido seja, em certa medida, uma novidade. Cada novo padrão transmite ao novo ser os padrões característicos dos pais, com as modificações que resultam das inovações parentais, incluindo o efeito das combinações biparentais. Foi assim que sucessivas características se configuraram nos padrões transmitidos e se manteve um fluxo contínuo de inovações hereditárias. Estas alterações aleatórias, que ocorrem continuamento, criam uma oportunidade para o desenvolvimento de novas espécies, por seleção natural; as espécies capazes de sobreviver sob essas circunstâncias passam as suas inovações para as gerações futuras. Logo o padrão da cadeia de DNA tanto suporta o padrão do organismo corrente como oferece oportunidades, sempre renovadas, para inovações darwinianas que conduzem a novos organismos superiores a partir de formas iniciais inferiores. Este processo estabelece uma medida do crescimento das sequências de DNA, à medida que o DNA se vai progressivamente alongando durante a evolução das espécies. Este aumento pode-se medir na cadeia de DNA pelo aumento do numero de variantes possíveis. A cadeia de DNA de uma bactéria tem cerca de 20 milhões de alternativas; a de um insecto tem dez vezes mais, ou seja, duzentos milhões de alternativas; e um ser humano tem cerca de doze biliões de alternativas possíveis para o seu DNA, cerca de um milhão de vezes mais do que o numero de alternativas numa bactéria. Pensa-se por isso que nós, seres humanos, somos um milhão de vezes mais complicados do que as bactérias. O padrão inicial e o desenvolvimento dos seres vivos é de tal forma uniforme, em todas as plantas e animais, que isso levou pessoas informadas a pensar que constitui a chave para a explicação final de toda a vida, em termos da física e da química. Mas isso está longe da verdade. A combinação química do DNA é

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surpreendentemente simples, e a sua sustentação e renovação em todos os seres vivos é tão compreensiva que, na realidade, convida a supor que explica as principais características da vida em termos químicos. Mas faltam grandes partes desse segredo. Em primeiro lugar debatemo-nos com a questão de saber como é que a terra inanimada, de onde veio toda a vida, conseguiu produzir uma primeira amostra de um composto de DNA. Cálculos para estimar a probabilidade de uma tal síntese, por puro acaso acidental, concordam num resultado tão pouco provável, tão raro, que o acontecimento parece virtualmente impossível. Mas suponha-se que pomos esta dificuldade de lado. Como podemos então explicar a transmissão da vida, de uma geração para a seguinte? Um ovo fertilizado desenvolve-se num sistema organizado com milhões de novas células, com uma imagem modificada dos seus antecessores. Os estádios sucessivos do embrião são cada vez mais amplos do que o seu precursor imediato, cada vez mais diferenciados, e todas estas transformações conseguem-se pela divisão de conjuntos existente de células no dobro de novas células. Cada etapa desta expansão é induzida pela envolvente dos compostos de DNA nesse estádio, e estas vizinhanças guiam o processo graças às vizinhanças orientadoras da etapa anterior, e assim sucessivamente. Por outras palavras, cada etapa do crescimento biológico antecipa a etapa subsequente do crescimento produzindo, para a sua orientação, um corpo celular que informa as divisões celulares da etapa seguinte e que fará o desenvolvimento do produto final. O poder do DNA para guiar o processo de desenvolvimento fisiológico de um feto foi comparado ao poder de uma planta de arquitetura para guiar a construção de um novo edifício. Mas a sua função é muito mais complexa. Uma dada molécula de DNA guia os sucessivos estádios do desenvolvimento embriónico; cada estádio produz um meio celular que, por sua vez, guia esse DNA na produção de meio celular adicional para ações muito diferentes do mesmo DNA - as açõesque têm que se seguir na ordem necessária para completar o desenvolvimento correto do embrião. A mesma partícula de DNA, por outras palavras, atua de forma diferente, em tempos diferentes, nos diferentes estádios de desenvolvimento do embrião. Uma planta de arquitetura não atua de forma diferente, em tempos diferentes, na construção de um edifício. De facto, simplesmente não atua. Simplesmente fornece um guia para o construtor, o qual pode alterar os propósitos do seu comportamento à medida que a construção avança, assumindo que procura produzir a estrutura final antecipada na planta. Como se assume que o composto químico DNA apenas atua por via química, então não pode alterar as suas ações, tal como um construtor pensante o pode fazer. Logo, ou há um outro elemento no organismo que pode atuar como um

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construtor, usando meramente o composto DNA como a sua planta, ou, como a teoria supõe, o DNA pode apenas estar a responder químicamente a outros compostos químicos. Neste ultimo caso, se atua de forma diferente em momentos diferentes, devem existir diferentes compostos químicos com que reagir, em diferentes estádios do desenvolvimento embriónico. Mas estes compostos só podem ser chamados à existência no final do estádio anterior do embrião. Logo o tempo é fundamental. Não existe ainda qualquer teoria que explique como é que isto pode ser feito por uma via estritamente química. O desenvolvimento de uma tal teoria é dificultado, tal como Driesch mostrou no seu trabalho com os embriões de ouriços do mar, por parecer existir uma certa resiliência no desenvolvimento dos tecidos. Alguns tecidos podem por vezes parecer “pressionados” a alterações que normalmente não ocorrem, porque o desenvolvimento normal de algumas partes do embrião foi inibido. É quase como se, nesses casos, existisse um construtor que teria que usar de algum engenho devido às faltas de um ou outro material, ou porque alguma coisa tinha sido previamente construída com erros e agora é preciso construir por cima ou à sua volta. Todas estas considerações parecem apontar para uma de duas conclusões: ou o DNA é simultaneamente a planta e o construtor (qualquer coisa como uma “molécula mestre” que de algum modo se adapta a este comportamento intencional), ou funciona como um outro mero “órgão” do corpo e por isso relaciona-se de uma forma imensamente complexa com cada órgão (e célula), adaptando-se ele próprio às necessidades do organismo, para o seu crescimento e manutenção. Pode ser que haja um número finito de mecanismos físicos e químicos disponíveis para uma dada molécula de DNA se adaptar a diferentes circunstâncias (simplesmente devido à sua estrutura química) e que estes mecanismos sejam simplesmente despoletados pelas condições físicas ou químicas quando tal “necessidade” existe, e que a existência destes mecanismos permaneça por descobrir até que se mostrem devido a uma circunstância menos habitual. Mas como não somos capazes, a partir da estrutura do DNA, de prever quimicamente a sua existência, temos que admitir que não temos ainda a redução dos processos da vida às leis da química e da física, redução que os biólogos modernos parecem querer ter. Além do mais, se de facto um mecanismo verdadeiramente novo fosse desenvolvido pelo organismo como resposta para uma nova “necessidade”, teríamos ainda de escolher entre a criação de uma resposta genuinamente nova para uma situação nova no seu desenvolvimento embriónico, ou então que estamos a ver, pela primeira vez, um mecanismo embutido que aí esteve sempre presente, mas que nunca tinha tido a oportunidade de se revelar antes disso. Por outras palavras, parece não haver maneira de responder firme e objetivamente a uma questão como esta. Não só não provamos que estes aspetos adaptativos da capacidade construtiva do

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DNA podem ser totalmente reduzidos a operações físicas e químicas, como nunca o poderemos vir a conseguir. Um outro problema por resolver resulta do contínuo aumento quantitativo das cadeias de DNA, desde a bactéria até ao homem - desde vinte milhões de alternativas do DNA até cerca de doze biliões. Não há modelo químico que explique este enorme crescimento da cadeia de DNA, desde a bactéria até ao homem. Não temos qualquer explicação química para este facto fundamental do sistema, tal como não temos uma explicação para a origem histórica do DNA, ou para a sua capacidade de produzir um meio que aparentemente antecipa o desenvolvimento contínuo do embrião. Não haja dúvidas que a descoberta do DNA, e do seu processo derivativo, clarificou muito a estrutura das coisas vivas, mas também nos colocou outras perguntas ainda mais profundas. Certamente que devemos dizer, segundo o nosso conhecimento cientifico atual, que os fundamentos biológicos da nossa existência são tudo menos claros. Só é claro que esses fundamentos ainda não foram completamente relacionados com as leis da natureza inanimada. Até aqui não mostramos muito mais do que a falta de explicações completas, de natureza física ou química, para certos aspetos cruciais das coisas vivas, apesar da descoberta momentosa do DNA. O que agora pretendemos é ir para além dessas observações e mostrar porque é que nós pensamos que não é possível encontrar tais explicações. Durante algum tempo supôs-se que os organismos são mecanismos e que, como estes funcionam de acordo com as leis da física e da química, também os organismos o devem fazer. Foi uma suposição muito rica em termos de descobertas de mecanismos fisiológicos. Mas foi infrutífera no impeto e na orientação que deu à investigação das interações físicas e químicas que ocorrem num organismo. Infelizmente esta suposição foi mal compreendida, assumindo-se significar que os organismos devem ser totalmente explicáveis como resultantes de leis da física e da química, dado que os mecanismos também o são. Na realidade, significa exatamente o oposto. Porque os mecanismos não são totalmente explicáveis como resultantes da operação das leis da física e da química. Há dois tipos de princípios envolvidos no próprio conceito de um mecanismo. Um desses tipos são obviamente as reações físicas e químicas que ocorrem “necessariamente”, como nós dizemos, dadas as condições físicas e químicas. São as que fazem o mecanismo “funcionar”. Se apenas nos pudéssemos basear nelas, então não poderíamos, em caso algum, prever o que é que um mecanismo iria fazer - o que seria apenas uma outra forma de dizer que não existem mecanismos. Simplesmente não poderia existir nenhum.

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Mas um outro tipo de princípio essencial aos mecanismos é aquele que define as condições fronteira - os limites - dentro dos quais estas interações físicas e químicas, em particular, vão ter lugar. Estas condições fronteira determinam a estrutura da máquina - a organização peculiar das suas partes físicas e químicas. O que essas condições determinam não são as interações entre as partes, mas sim como se estruturam, uma vez agrupadas dessa maneira e uma vez as partes principais abastecidas de energia suficiente, mas antes o padrão em que se agrupam. Esta organização das partes da máquina não é resultante da operação das leis da física e da química. As máquinas feitas pelo homem não são resultados aleatórios de equilíbrios físicos e químicas que tenham acontecido por acaso. Cada máquina é o resultado dos esforços conduzidos pelo conhecimento e pela imaginação do homem e dirigido para algo que essa tal máquina pretende atingir. Logo não podemos continuar a pensar os organismos como mecanismos, se os queremos explicar em termos de um só tipo de princípio, em particular do tipo físico-químico. Faltaria o princípio do tipo da condição fronteira à nossa explicação, tal como exigido pela compreensão de algo como um mecanismo. Mas a noção de que os 5organismos são, de facto, sistemas altamente complexos e organizados de mecanismos, tem sido uma noção muito frutuosa, como se disse, responsável por quase todo o enorme crescimento do conhecimento biológico dos nossos dias, incluindo o salto dado com o DNA. Parece portanto pouco sensato abandonar a suposição de que os organismos são mecanismos, e aparentemente ninguém hoje em dia o faz na biologia. Uma coisa óbvia acerca destes mecanismos é que cada um deles adquiriu a sua organização por referência a um objectivo, ou propósito, ou finalidade, que precisa de ser atingido. Ora este propósito não é dedutível a partir das leis da física e da química que operam nas suas partes, como facilmente se pode verificar pelo facto de, mesmo que grandes conhecedores dessas leis, não ser capazes de definir o para quê das máquinas mais simples, como as ferramentas manuais, através de meros estudos físicos e químicos. Se não o soubermos a partir de outras fontes, como a observação do uso de uma ferramenta ou de uma máquina, continuaremos na sua ignorância. Continua a ser um mistério para nós Para a finalidade de alguns presumíveis artefatos de civilizações anteriores, embora a sua composição física e química não seja segredo algum. Pode-se, no entanto, dizer que os organismos (que é obvio que não foram criados pelo homem) resultaram simplesmente, na sua totalidade, da operação das leis da física e da química (mesmo que atualmente, como vimos, não existam teorias adequadas para explicar os problemas mais básicos de como é que isso poderá ter ocorrido) e portanto não têm essa origem dual, apenas nos parecem estar funcionalmente organizadas pelas suas partes, como um todo, para cum-

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prir certos objetivos. Se os seres vivos nos oferecem ilusões, então são mesmo umas ilusões muito grandes. Porque é certo que os organismos vivos nos parecem ser - mesmo para os investigadores em biologia - funcionalmente organizados como mecanismos, mas são-no, na realidade, através de fronteiras significativas. A ilusão de que estão assim organizados é tão grande que facilmente nos levam a a pensar que não se podem distinguir dos vários processos que se lhe assemelham, tais como os processos dos sistemas abertos. Os sistemas abertos, como uma chama ou uma tempestade, são processos físicos e químicos conhecidos, que se mantêm por si próprios durante um longo período de tempo, “alimentando” o que “produzem”, crescendo e, num certo sentido, reproduzindo-se. Apesar disso parece claro para todos, incluindo os biólogos que querem reduzir a totalidade dos organismos vivos a transações físicas e químicas, que tais sistemas abertos não são organismos vivos - logo há decididamente qualquer coisa de diferente nos seus modos de operação3. Identificar essa diferença parece ser definitivamente difícil de estabelecer pelos biólogos. A sua dificuldade parece ser que nós precisamos da categoria de “sucesso” para se poder falar com sensatez acerca de coisas vivas. Precisamos de uma necessidade genuína, por exemplo, para uma ciência da patologia relacionada com isso. Sabemos que os organismos podem falhar ou ter sucesso, e a menos que se conheçam as causas das suas falhas - mau funcionamento ou doença - não conhecemos tudo o que há para se saber acerca deles. Uma proposta para uma ciência desse tipo, mas antes para as tempestades, não seria apropriada porque a categoria de sucesso não tem lugar na nossa compreensão das tempestades. As suas partes não nos parecem estar organizadas para desempenhar certas funções essenciais para a manutenção das tempestades - embora, de facto, a mantenham. Nada nos parece ser algo como “tentar” realizar uma tempestade. Certamente que a tempestade não o sugere; o seu comportamento não parece incluir a integridade de um individuo. Mas mesmo uma paramécia é um individuo que aparentemente luta (se consciente ou inconscientemente, isso não faz qualquer diferença) para se adaptar às suas condições e por se manter viva e por se reproduzir. Definitivamente possui mecanismos adaptativos para atingir com sucesso esses “fins” e estes mecanismos podem ter sucesso, ou falhar, em qualquer instância. Mas, pelo contrário, o ácido clorídrico nunca pode falhar na dissolução do zinco. Nem pode em caso algum dissolver por engano a platina. Só as coisas vivas podem fazer erros. Só as coisas vivas podem falhar - ou ter sucesso. Há pouco a ganhar em continuar com este argumento. Se alguém insistir que mesmo os nossos melhores biólogos de hoje são simplesmente “animistas” (seria 3 Ver, por exemplo, C. F. A. Pantin, The Relation between the Sciences (Cambridge, Eng.: At the University Press. 1968), pp. 35-45, 53.

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naturalmente irónico se usassem este termo), ou supersticiosos, ou mitológicos, quando assumem esta atitude relativamente às coisas vivas e que - não obstante as aparências - não há uma diferença nos princípios básicos explicativos que são necessários para lidar com uma tempestade versus um elefante, então pouco mais se pode dizer que vá diretamente ao ponto. Manteria uma tese a todo o custo, assumindo gratuitamente um princípio de distinção que todos usamos, porque os factos observados parecem solicitá-lo, mas na realidade não é necessário. Na melhor das hipóteses está a passar-se um cheque em branco para se levantar no futuro, contando com os depósitos que presumivelmente os biólogos reducionistas venham um dia a fazer. Há no entanto outras considerações que indiretamente lançam a dúvida sobre esta posição obstinada. Dissemos que o DNA funcionava como um código para o desenvolvimento físico e químico de um organismo - uma espécie de mensagem ou mensageiro químico. Examinemos a natureza dos códigos e das mensagens. É claro que nada pode funcionar como um portador de um código a menos que seja física e quimicamente neutro para as mensagens que transmite. Qualquer suporte falha como suporte para uma mensagem se for impressionável por equilíbrios físicos e químicos aleatórios do mesmo tipo que foram usadas para registar a mensagem. Tais impressões aleatórias serão registadas como mero ruído e irão interferir com a mensagem. A estática misturada com os sinais de rádio, o zumbido de um receptor de rádio, as imperfeições eletrónicas de uma gravador eletrónico de bandas magnéticas, todos desfiguram a sua mensagem e, se suficientemente fortes, podem mesmo obliterá-la completamente. Manchas e pulsações podem apenas funcionar como uma mensagem se não forem o resultado de meros equilíbrios e afinidades aleatórias de natureza física e química. É porque as rochas não se organizam por si próprias na forma de letras, através da operação de forças físicas aleatórias, que elas são usadas para marcar o nome de um cais ou de um lugar. É porque as manchas de tinta não têm uma afinidade física ou química com o papel, na forma particular de símbolos da linguagem, e por isso as formas no papel não resultam do simples equilíbrio de forças aleatórias, que as páginas com manchas de tinta, que transmitem uma mensagem, a podem transmitir, na realidade. E é porque os itens de uma cadeia de DNA não foram arranjados (quimicamente) como são, que podem funcionar como suporte para uma mensagem. Cada item de uma série de DNA é formada por uma de entre quatro bases orgânicas alternativas (na realidade duas posições de dois compostos que são bases orgânicas diferentes). Idealmente, para transmitir o máximo de informação, estas quatro bases deveriam ter uma igual probabilidade de formar um qualquer item particular da série. Na realidade, o DNA fica abaixo do ideal como meio ou suporte de transmissão porque há alguma diferença na

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probabilidade das ligações das quatro bases alternativas, ou seja, há alguma redundância; mas não é suficiente para prevenir o DNA de funcionar efetivamente como um código. Se o DNA fosse uma vulgar molécula química, a sua estrutura seria devida ao facto de ter atingido uma estabilidade máxima, e essa organização metódica impediria que funcionasse como um código. Mas não é uma molécula vulgar, e por isso pode funcionar como um código. Seria interessante notar aqui que, quer se assuma, ou não, que esta estrutura tipo código da molécula de DNA pode ter resultado de uma sequência de variações aleatórias, algumas das coisas podem ter sido estabelecidas por seleção natural, este ponto em nada altera o que estamos a discutir. Seja qual for que tenha sido a origem de uma configuração de DNA, esta só pode funcionar como um código se a sua ordem não for devida a forças de energia potencial. Tal como o arranjo de uma página impressa é, e deve ser, estranha à química da página impressa, também a sequência base de uma molécula de DNA é, e deve ser, estranha às forças químicas que operam na molécula de DNA. Esta indeterminação física da sequência de itens numa molécula de DNA implica a improbabilidade da ocorrência de uma sequência particular e torna possivel que uma sequência tenha um significado com um conteúdo de informação potencial igual à improbabilidade numérica de qualquer arranjo particular resultante apenas da minimização da energia potencial. A teoria moderna (que procura confinar-se às forças físicas e químicas e seus modos de operação) não fica com mais do que o acaso para a origem das estruturas particulares de todas as moléculas de DNA. Como qualquer coisa pode acontecer por acaso - mesmo a coisa mais improvável - estas moléculas podem ter passado a existir por puro acaso. Mas isso parece altamente improvável. A probabilidad de que, meramente por acaso, se tenham organizado de uma forma significativa, tal como parecem ser, para além de qualquer dúvida, são inferiores à probabilidade de uma pilha de rochas rolar por uma escarpa abaixo e organizar-se, por mero acaso, num cais de caminho de ferro de acordo com o nome da estação. De facto, cada organismo vivo é uma organização significativa de matéria sem significado, e é altamente improvável que estas organizações significativas tenham todas ocorrido por mero acaso. Mais: olhando para a direção geral do desenvolvimento que a evolucão dos seres vivos tomou, devemos admitir francamente que esta direção aponta para organizações cada vez mais significativas - com mais significado tanto na sua própria estrutura como em termos dos significados que são capazes de atingir. Desde as plantas unicelulares microscópicas, capazes de pouco mais do que prover ao seus sustento e de se reproduzirem, até aos animais minúsculos, sensíveis como indivíduos ao meio envolvente e capazes de aprender hábitos muito rudimentares de sustento, até aos animais mais comple-

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xos, capazes de muitas mais coisas, e aos mamíferos superiores, e finalmente até ao homem, que é capaz de tantas coisas que muitas vezes se supõe a ele próprio como um deus capaz de tudo - esta história evolutiva é um panorama de resultados significantes de proporções quase que espantosas. E quando consideramos, em face do número incrível de possibilidades meramente químicas disponíveis para o DNA, que resultaram tantas combinações significantes e que, ainda por cima, se orientam na direção de resultados cada vez mais significantes (mesmo quando as alterações dessa direção não estavam relacionadas com as necessidades da sobrevivência), é difícil evitar a ideia de que algum tipo de gradiente do significado opera na evolução, para além das mutações puramente acidentais e da pura seleção natural, e que este gradiente de algum modo evoca organizações ainda mais significativas (ou seja, condições fronteira) da matéria. Assim, a inclusão de um gradiente desse tipo nas nossas teorias biológicas não deveria encontrar a resistência que habitualmente encontra - e especialmente quando refletimos há muito anos que um princípio análogo a esse também tem sido usado na física moderna. Na mecânica e na termodinâmica, e também nos sistemas abertos, supõe-se que a matéria inanimada é controlada por forças que conduzem a matéria para configurações cada vez mais estáveis. As teorias físicas correntes são obviamente muito guiadas e estruturadas pela suposição da existência de um tal gradiente na natureza. De tal modo isso faz hoje parte do nosso pensamento que já nem o notamos. Parece-nos natural que a natureza consista de forças e que estas estabeleçam uma configuração estável quando atingem um certo tipo de balanço quando o seu potencial para mudar, a sua energia potencial, está ao nível mínimo possível nessas circunstâncias. Mas noutros tempos (antes do advento da moderna ciência física) tal suposição não fazia parte das especulações da física. Não se assumia então que a natureza atuasse com este tipo de “finalidade” (o que é o mesmo que dizer que atuava nessa direção); antes assumia-se que atuava para outros “fins”, ou seja, noutras direções diferentes conforme os diferentes tipos e coisas e supostamente apropriados para a sua “natureza”. As pedras caíam porque o seu “fim” - no sentido do seu gradiente direcional, não certamente porque esse fosse o seu objetivo consciente - era para baixo. As chamas subiam, pelo contrário, porque o seu “fim” era atingir alturas cada vez mais altas, etc. As antigas e as modernas explicações podem ambas ser entendidas como caminhos que são verdadeiros para com a experiência. Na realidade o caminho antigo, de Aristóteles, é mais fácil de enquadrar com a nossa experiência corrente de objetos grandes do que é a física moderna. Não porque as nossas explicações modernas sejam menos precisas, mas sim porque são simplesmente mais complexas, mais longínquas, do que as explicações antigas. Para explicar porque é que uma rocha cai, nós precisamos de fazer uma viagem através das leis do movimento e da gravidade, e regressar.

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As nossas suposições modernas, segundo as quais a natureza inanimada se move na direção do equilíbrio das forças naturais, na realidade subsititui um novo tipo de “fim” na natureza, em alternativa aos “fins” antigos. Mas não elimina a noção de finalidade, embora esteja simplesmente a referir-se ao gradiente direcional exibido por um processo. Este facto é-nos geralmente escondido, porque parece que assumimos que as forças existentes, pelo simples facto de atuarem, forçam um estado de equilíbrio através da limitação mútuo de umas pelas outras. Mas um dos filósofos modernos, que reconheceu o que era a nova ciência dos seus dias (possivelmente porque tinha consciência de quanto as ideias do homem estavam a mudar no seu tempo), viu claramente que as novas leis do movimento funcionavam como parte de uma estrutura de “causa final”. Leibniz notou que os princípios de conservação das forças e da igual reação não era lógica ou matematicamente necessários para o conceito de movimento ou de matéria. Antes, disse ele, obrigam-nos a usar a noção de “causa final”, pois dependem “do princípio da aptidão”4. Independentemente de se interpretar a “aptidão” das leis do movimento (ou, para nós, do equilíbrio das forças) como uma “causa final”, nas palavras de Leibniz, ou seja, como um gradiente direcional que exerce a sua influencia, permanece verdadeiro que adoptamos esse princípio da física moderna, não porque vejamos a sua vinculação lógica nos conceitos de matéria ou de energia, mas antes porque acreditamos - ao contrário dos antigos - que os acontecimentos físicos se movem nessa direção. Nós “acreditamos” nisto mais do que o “provamos” a partir da observação cuidada; porque, tal como a suposta evidência para este princípio no balanço observado da quantidade de forças envolvidas na situação, o nosso uso de um tal gradiente direcional nas nossas análises de situações permite-nos, em primeiro luga,r a atribuição de valores quantitativos às forças envolvidas. Só podemos medir uma força em termos de uma outra força; mas o que muitas vezes se esquece é que só porque assumimos que precisam de se equilibrar é que podemos estabelecer a quantidade de uma em termos da outra. Precisamos de assumir uma equação antes de poder determinar o valor de qualquer uma das variáveis envolvidas. Logo não temos uma base para a medida de “forças” - independentemente do uso deste princípio - e o seu suposto balanço é portanto assumido, ou definido, por este princípio. O princípio, por si, nunca se prova. No entanto acreditamos que é verdade porque a sua totalidade parece-nos mais “adequado” do que princípios alternativos que dão sentido aos acontecimentos do mundo inanimado. Olhemos mais de perto como este princípio funciona na mecânica quântica. A mecânica quântica (1) assume um campo de forças (energia) dirigido, com cer4 G. W. von Leibniz, “The Principles of Nature and Grace”, pp. 1039-40 em Philosophical Papers and Letters, trad. e ed. Leroy E. Loemker (Chicago: University of Chicago Press, 1956).

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tos graus de probabilidade, para potenciais mais estáveis. Esta suposição, como vimos, vincula a noção de existência, na matéria inanimada, de um gradiente na direção da minimização da energia potencial. A mecânica quântica também assume (2) que essas potencialidades não estão permanentemente a ser atualizadas, porque as forças envolvidas podem ser bloqueadas pelo atrito, e também que (3) catalisadores ou libertadores podem entrar na situação e libertar algumas dessas potencialidades a partir do seu estado “bloqueado”, ou seja, permitindo que sejam atualizadas; por exemplo, uma explosão pode ser desencadeada por muitas coisas, incluindo a desintegração espontânea de um único átomo. Um desses acontecimento espontâneo pode, portanto, ser tratado como um acontecimento não causado, controlado por tendências prováveis, mas sem necessidade dessas tendências (não “causado” por elas). Não se pode dizer que estas tendências prováveis ou o gradiente de minimização de energia potencial sejam a causa do evento subsequente, embora se possa dizer que o “evocam”. De uma forma análoga, o crescimento de um embrião pode ser evocado (e também pode ser controlado) por um gradiente semelhante de formas potenciais de um campo de formas, tal como o movimento de um corpo pesado num plano inclinado pode ser evocado (e assim também controlado) pelo gradiente de minimização da energia potencial. Uma quantidade considerável de trabalho experimental, feitos por biólogos como H. Spemann, Paul Weiss e C. H. Waddington, mostrou que algum do desenvolvimento que tem lugar em embriões é controlado por campos, embora ainda seja incerto como é que isso acontece5. Muitos biólogos tentarão ainda explicar este controlo unicamente por uma ontologia com um só nível, ou seja, puramente em termos de interações físicas e químicas. No entanto, a noção de um campo na embriologia poderia, desde que não fosse tratada de uma forma demasiado mecânica, dar uma oportunidade para que uma hierarquia de níveis do ser entrasse na fotografia, em que os níveis superiores existem por emergência e pelo estabelecimento de novas condições fronteira, que por sua vez reorganizam os elementos dos níveis inferiores, em que se baseiam. Há alguma evidencia que algumas cientistas podem estar a começar a movimentar-se nessa direção6. O conceito de um gradiente na direção da energia potencial mínima, como antes se referiu, também pode ser usado para descrever os esforços do pensamento humano. Quando alguém vê um problema e começa a trabalha nele, existe uma 5 H. Spemann, Embryonic Development and Induction (New Haven: Yale University Press, 1938). Paul Weiss, Principles of Development (New York: Henry Holt, 1939). C- H. Waddington, The Strategy of the Genes (London: Alien & Unwin, 1957), e New Patterns in Genetics and Development (New York: Columbia University Press. 1962). 6 Ver, por exemplo, um livro recente editado por Howard H. Pattee, Hierarchy Theory (New York: George Braziller, 1973).

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variedade de significados potenciais que se julgam acessíveis. A tensão heurística da mente parece portanto gerada pela acessibilidade de configurações mais estáveis. Mas a tensão mental parece, pelo contrário, ser deliberada. Uma mente responde de uma maneira esforçada por compreender aquilo que acredita ser compreensível, mas que ainda não compreende. As suas escolhas destes esforços são portanto incertos, não “determinados”. Mas não são feitos ao acaso. São controlados (tal como são evocados) pela busca de uma intenção. Estas escolhas são parecidas com os acontecimentos da mecânica quântica, por serem guiados por um campo que, apesar de tudo, deixa essas escolhas indeterminadas. Por isso, são também “não causadas”, no sentido em que não há nada dentro no âmbito possível do nosso conhecimento que determine, ou que necessite, que se tornem precisamente naquilo em que resultam. Embora estas características das descobertas sejam semelhantes à dos acontecimentos inanimados, são já decididamente diferentes dos acontecimentos inanimados no que respeito ao campo que os evoca e controla, ou guia, porque não é um campo com a configuração mais estável das forças, mas sim um problema. Para além disso as descobertas não ocorrem de uma forma meramente espontânea, mas sim devido a um esforço para atualizar certas potencialidades escondidas; e a ação não causada que libertam, e que também evocam, não são acontecimentos físicos, mas um impulso imaginativo na direção da descoberta. Mostraremos como podemos descrever o desenvolvimento de organismos vivos fazendo uso do mesmo quadro conceptual que vimos a operar, tanto na mecânica quântica como na resolução de problemas. Tanto a embriologia como o desenvolvimento evolutivo de organismos vivos podem ser compreendidos (1) por serem evocados pela acessibilidade a níveis superiores de estabilidade do seu significado. Mas (2) atingir esses significados superiores pode ser bloqueado pelo código de uma dada molécula de DNA. Uma tal acessibilidade, semelhante à acessibilidade de uma descoberta ou de uma configuração mais estável da energia potencial, pode ser compreendida, em conjunto com a inércia do seu atual significado estrutural, como gerando uma tensão que (3) pode ser libertada por acidente em novos desenvolvimentos (tal como um acontecimento causa uma mutação no desenvolvimento evolutivo) ou pela operação de inibidores ou indutores (no desenvolvimento embriológico), ou através da ocorrência de primeiras causas (não causadas) - genuínas espontaneidades, análogas à desintegração de um átomo. Um desenvolvimento criativo assim libertado pode-se dizer que é evocado, e assim também controlado, mas nunca completamente determinado pelas potencialidades de significados acessíveis e/ou pelo seu agente indutor. Tais desenvolvimentos podem também, tal como os impulsos de uma descoberta, terem sucesso ou não para atingirem um significado mais

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estável, ou seja, um significado mais completo e global em termos do seu sentido. É claro que a dimensão de sucesso ou insucesso é uma característica emergente adicionada ao quadro de referência daquilo que se passa ao nível físico. Uma configuração mais estável de forças não é algo que essas forças se esforcem por atingir e que pode não se atingir. É simplesmente o ponto terminal que nós compreendemos como tendo sido de facto atingido pelo processo físico. Esta visão do desenvolvimento embriologico e evolutivo não só é possível como também é superior à visão atual da biologia, pois seria capaz de ter em conta o aparecimento dos organismos vivos, precisamente nos pontos em que a sua explicação, baseada apenas na matéria inanimada, não consegue ter sucesso: (1) as condições fronteira, que devem consistir em princípios diferentes dos materiais limitantes, nesta visão adquirem novos princípios através da reorganização criativa da cadeia de DNA de uma organismo existente, como resposta a um gradiente de significado mais profundo; e (2) não teríamos que continuar a enfrentar essa questão sem a esperança de tentar explicar a sentiência (uma característica óbvia da vida, pelo menos nos animais superiores) em termos que pertencem à não sentiência. A sentiência seria agora compreendida como uma característica estrutural de princípios com fronteiras superiores de organização e de operação, baseados nela e, é claro, dependente de um nível inferior sem sentiência, mas adicionado àqueles princípios que estruturam os níveis inferiores, desprovidos de sentiência - tal como certos princípios peculiares do cálculo, que embora baseados nos princípios da aritmética, se adicionam a eles, não se derivam a partir deles, ou como os princípios da gramática, que embora baseados nos princípios que governam as palavras, se adicionam a eles, não se deduzem a partir daí. Tal como a aritmética não é suficientemente rica sob o ponto de vista lógico, para que seja possível deduzir a partir daí um calculo matemático (ou uma análise matemática), e tal como as palavras não são suficientemente ricas para que se possa deduzir uma gramática a partir delas, também compreendemos agora as leis da física e da química como não sendo suficientemente ricas para que seja possível deduzir as características da sentiência a partir delas, e deixaríamos de o tentar fazer. Logo, devemos antes derivar simplesmente os princípios da sentiência, e os princípios relativos a estádios superiores da consciência, baseados nos princípios da sentiência, diretamente a partir de um estudo da operação desses mesmos estados, de uma forma desembaraçada e não onerada pela necessidade ideológica de os reduzir a níveis de seres inferiores aos seus. Estes princípios ficariam depois disponíveis para a construção de uma explicação mais rica e mais completa do comportamento dos seres vivos, para além dos princípios da física e da química. Vistas no seu conjunto, para o problema geral deste capítulo, as implicações

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do que temos estado a discutir implicam que o progresso da ciência é explicado como um desenvolvimento evocado por um gradiente do sentido operacional num campo de potenciais significados e problemas. Podemos portanto pensar que a verdadeira descoberta em ciência é para nós possível porque somo guiados por uma intuição de uma organização mais significativa do nosso conhecimento da natureza, providenciado por um declive cada vez mais acentuado do significado, no campo completo de significados potenciais que nos rodeia. Somos portanto capazes de conhecer o suficiente (num sentido antecipativo e intuitivo) que nos permita localizar um bom problema e começar a tatear ações, embora ações eficazes, com vista à sua solução. Podemos agora compreender a inquirição cientifica como um impulso da nossa mente com vista a uma integração cada vez mais significante de indícios. Vimos que isso também é aquilo em que consiste a percepção. Acabamos de mostrar que as coisas vivas, individualmente ou em geral, também se orientam para o significado, e é claro, dos nossos capítulos anteriores, que todo o quadro cultural do homem, incluindo os seus símbolos, as suas artes da linguagem, as belas artes, os seus ritos, as suas celebrações, e as suas religiões, constituem um vasto complexo de esforços - no seu conjunto, com sucesso - para se atingirem todos os tipos de significados. Podemos, portanto, afirmar justificadamente que tudo o que conhecemos está cheio de significado, não é de todo absurdo, embora muitas vezes nós não consigamos alcançar esses significados e caímos em absurdos. Por outras palavras, pode-se falhar o significado, pois a emergência da vida abre a possibilidade de sucessos, mas também é obvio que abre as possibilidades do fracasso. Para além disso, como vimos, podemos afirmar tudo isto com uma clara e aberta consciência científica. A hipótese religiosa, se na realidade afirma que o mundo tem um sentido, mais do que ser um absurdo, é portanto uma hipótese viável para nós. Não há qualquer razão científica para não acreditar nela. Mas não encontrar uma razão científica por não se poder acreditar não é a mesma coisa que acreditar, especialmente desde que, como George Santayana uma vez apontou, é tão impossível ser religioso sem ter uma religião como falar sem ter uma linguagem7. Não podemos falar de cães sem usar palavras que se lhe refiram. O som ou sinal particular “cão” pode ser, na realidade, reconhecido como meramente convencional ou apenas de origem histórica; apesar disso seria preciso ter, pelo menos, esta palavra, ou uma outra palavra também acidentalmente estabelecida, e teríamos que estar comprometidos com o seu uso, com a noção de que realmente significa aquele animal em particular. Do mesmo modo não podemos fazer o culto, suplicar, agradecer, louvar a Deus (seja como for que isso seja con7 George Santayana, Reason in Religion (New York: Charles Scribner’s Sons, 1946), p. 5.

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siderado) sem ter alguma forma particular de o fazer que nos pareça adequada e sagrada - alguma forma distante das nossas transações correntes com os nossos irmãos homens. O sentido religioso, como vimos antes, é uma integração transnatural de indícios incompatíveis, obtida pela nossa vivência nos vários rituais e cerimónias informadas por mitos. É claro que estes devem ser ritos e mitos especificos - não ritos e mitos em geral. Mas isso não existe. A religião “em geral” não é portanto religião, tal como uma linguagem “em geral” não é uma linguagem. Para se ser religioso, precisamos de ter uma religião. Em tempos idos a religião seria habitualmente herdada, tal como a linguagem, os costumes, o nome e mesmo a profissão. Mas muita gente hoje em dia não herda uma religião. É claro que há outra forma de se chegar à religião, pela conversão. Mas a conversão parece ser “caída do céu”. Parece claro que não nos convertemos - seja para um partido politico, uma filosofia ou uma religião - pela demonstração puramente lógica ou objectiva da verdade a que nos convertemos. O que acontece é que nos convertemos quando vemos nalgum ponto que esse partido, ou religião, ou epistemologia, ou mundovidência (ou mesmo uma teoria científica), em particular, oferece possibilidades para significados mais ricos do que aqueles que tínhamos sem eles. Nesse momento estamos convertidos, quer o tenhamos desejado ou não; pois, como vimos, somos guiados pela natureza para atingirmos o significado, e aquilo que genuinamente nos parece abrir as portas a um significado mais profundo é aquilo em que nos podemos recusar a acreditar apenas verbalmente. Como Santayana também disse, se algumas vez ouvíssemos “o sermão de uma religião litúrgica a chamar-nos: Sursum corda, elevai os vossos corações, nós devíamos responder sinceramente, Habemos ad dominum, os nossos corações elevar-se-iam naturalmente para o Senhor”8. William James, como bom pragmático que era, tentou infelizmente abrir os seus leitores ao apelo de uma religião por uma forma que ofendeu justamente muitas almas religiosas. Defendeu que se as nossas visões do mundo fossem tais que a hipótese religiosa fosse viável, então poderíamos acreditar nela, deliberadamente, e tentar ver se ficávamos ou não “melhor”, tal como previsto pela hipótese religiosa. Parece querer sugerir algo como tentar acreditar em Deus, e ver se nos sentimos ou não melhores acerca de tudo9. A verdade é que podemos não nos sentir melhor ao adoptar uma religião. Podemos em vez disso escolher o sofrimento, lutas e sacrifícios. De qualquer modo, não aceitamos uma religião porque ela nos oferece certas recompensas. A única coisa que uma religião nos pode oferecer é ser precisamento aquilo que ela é, por si 8 George Santayana, Obiter Scripta, ed. Justus Buchler e Benjamin Schwarth (New York: Charles Scribner’s Sons. 1936), p. 296. 9 James, The Will to Believe and Other Essays, pp. 25-27-

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mesma: um maior significado para nós próprios, para as nosas vidas e para a nossa compreensão da natureza de todas as coisas. A condicionalidade do acreditar de James não pode ser uma crença genuína, a que aderimos com os dedos cruzados. Na realidade, como vimos, a religião existe para nós apenas quando, tal como uma peça de poesia, nos arrabatar. Não é em qualquer sentido uma “hipótese”. Por isso este trabalho não se dirige para a conversão a qualquer religião. No máximo, dirige-se para que abramos os nossos ouvidos para ouvir os chamamentos litúrgicos com que porventura nos cruzamos. Como Santo Agostinha o via, uma crença religiosa não se pode alcançar pelos nossos esforços deliberados e pela nossa escolha. É um dom de Deus e deve permanecer inexplicavelmente negado a alguns de nós. Neste capítulo tentamos apenas mostrar que não se pode compreender adequadamente a ciência moderna como dizendo-nos que o mundo é sem sentido e sem finalidade, o que é um absurdo. A suposição que é um absurdo é um mito moderno, criado imaginativamente a partir dos indícios resultantes de uma profunda má compreensão do que é a ciência e o conhecimento e daquilo que ambos precisam, uma má compreensão descendente dos restos do positivismo no nosso pensamento e da aliança com falsos ideais de objetividade dos quais temos sido incapazes de nos libertar completamente. São esses obstáculos que precisamos de evitar se queremos voltar a experimentar toda a variedade de significados possíveis ao homem. Mas não devemos só abrir os nossos ouvidos para a o nosso Deus falar comnosco, se ele se dignar a isso; devemos também procurar viver numa sociedade em que tais significados, que temos vindo a explorar nesta obra, sejam reconhecidos como reais e merecedores de respeito e honra - e nos quais os homens sejam também respeitados e honrados como criadores e portadores desses significados. Se não podemos viver numa tal sociedade, embarcaremos coletivamente numa tarefa brutal de moldar esses significados com base em fundamentos de suposta utilidade social ou de uma qualquer “causa” toda poderosa - uma missão que o homem moderno tem tentado (e continua a tentar) neste século. Nos últimos dois capítulos mostraremos os princípios básicos que devem estruturar uma sociedade aberta à persecução desses significados.

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e acreditarmos na existência de um movimento generalizado para se atingir o sentido do universo, então não consideraremos qualquer tipo de significado atingido pelo homem como meramente subjectivo ou privado - apenas uma espécie de epifenómeno de espuma a flutuar à superfície, um mero subproduto das interações reais que acontecem no mundo, como ensinavam os marxistas. Mas, pelo contrário, consideraremos cada significado encontrado como um epitome da realidade, pois pensaremos que constitui o tipo de coisa para a qual o mundo está organizado. No entanto, aqueles que não acreditam que um dos princípios estruturantes do mundo é um gradiente de significado podem ainda ser suficientemente valentes para que se agarrem aos significados que fomos capazes de atingir, tratando-os como as coisas mais preciosas que possuímos. Mas quer pensemos, ou não, que esses significados fazem parte daquilo que é a totalidade do universo, se lhes damos verdadeiramente valor, sem dúvida que queremos viver numa sociedade em que os seus resultados sejam honrados e respeitados. Por exemplo, não queremos vê-los controlados em nome de um suposto interesse público. É quase axiomático que a distinção entre uma sociedade livre e uma sociedade totalitária reside exatamente neste ponto: uma sociedade livre é vista como uma sociedade que não se esforça, em princípio, por tentar controlar o que é que as pessoas acham significativo, e uma sociedade totalitária é vista como uma sociedade que, por princípio, se esforça por esse controlo. O que aconteceu no domínio dos significados nos dois estados mais totalitários do nosso século - os estados de Hitler e de Estaline - é uma evidencia sobre a justiça desta distinção. Não só foi praticada a “lavagem ao cérebro” em massa pelas autoridades centrais destes dois estados, através de formas grosseiras de propaganda, possíveis dado o seu controlo completo dos canais de comunicação, mas essas mesmas autoridades usaram livremente a violência, e a ameaça de violência, num esforço concertado para controlar todos os aspectos do pensamento humano nas direções que eles pensavam ser consonantes com os interesses superiores da sociedade como um todo. O controlo total tinha por objetivo o interesse do todo, e tudo era suposto ser feito em nome desse interesse. Qualquer interesse não orientado para os supostos interesses do todo era considerado como não tendo direito a manter-se em pé. A existência desses interesses podia ser ou não permitida, dependendo de um certo número de factores, mas nunca podiam, por si, exigir o direito ao respeito. Pelo contrário, as nossas sociedades livres eram supostas, pelos seus apologis-

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tas desse tempo, serem estados em que nunca se fariam tais tentativas de controlo do pensamento e em que todo e qualquer significado era suposto ser “lançado no mercado das ideias” para ser “comprado” - ou transferido - à vontade por cada individuo, livremente e seja porque razão for. A sociedade livre foi por isso algumas vezes descrita como a sociedade “aberta” - notavelmente por Sir Karl Popper - contra a sociedade “fechada” defendida pelos totalitários. No entanto, tal como os apologistas dos totalitarismos corretamente apontaram, as nossas sociedades livres não eram na realidade tão abertas como a teoria dizia. Os advogados da sociedade livre foram por isso acusados de hipocrisia. Apontaram para o facto de existirem inúmeros limites sobre a alardeada abertura das nossas sociedades. Muitas tradições criaram severas restrições às liberdades dos homens. Estas restrições, assinalou-se, eram em muitos casos aplicadas pelos governos das nossas sociedades livres. Os advogados das nossas sociedades livres apresentaram desculpas pela existência de limites tradicionais às nossas liberdades, ou seja, aos nossos valores e às nossas morais. Tornou-se moda chamar imperfeições lamentáveis a esses valores e morais - embora temporariamente inevitáveis - que afectam as nossas sociedades, e defender que estas sociedades, embora ainda não totalmente abertas, um dia virão a sê-lo (um argumento gratuito, é claro, usado em termos quase idênticos pelos apologistas dos horrores de Estaline). Muitos advogados das sociedades livres caíram na tentação de atacar toda e qualquer restrição tradicional e, ao fazê-lo, reforçaram o cepticismo e o pensamento niilista que, como já assinalamos no início desta obra, eram o canteiro onde os movimentos totalitários tinham precisamente florescido. Não perceberam que uma sociedade livre assenta sobre um certo tipo de quadro de referência tradicional; e que a sua ideia errada de que uma sociedade livre é uma sociedade aberta, atiraram à rua a criança conjuntamente com a água do banho. Isso é um erro sério. Uma sociedade totalmente aberta seria globalmente uma sociedade completamente vazia - na realidade uma sociedade que na realidade nunca poderia existir, porque nunca teria qualquer razão para existir. O que precisamos agora de fazer é algo que provavelmente não será muito popular com muitos dos grandes intelectuais contemporâneos. Devemos mostrar a necessidade de um quadro tradicional e também tentar mostrar qual o tipo de quadro necessário para que a sociedade seja livre. Para facilitar, e ver mais claramente o que se pretende, podemos tomar como exemplo uma aventura moderna de grande importância, que nos servirá como um paradigma para outros empreendimentos intelectuais e morais na nossa sociedade livre. Como exemplo consideremos o desenvolvimento da ciência moderna. É um

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exemplo significativo, pois a ciência moderna foi fundada numa rejeição violenta de toda a autoridade. A revolta contra a autoridade foi o seu grito de batalha durante o seu período formativo. Isto foi referido por praticamente todos os primeiros cientistas e os seus apologistas filosóficos - por Bacon e por Descartes, por Locke e por Hume, entre muitos outros. Foi também escolhido pelos fundadores da Royal Society como o seu lema: Nullius in Verba. Este grito de guerra, tal como incialmente compreendido, foi significativo, pois nesses tempos era importante rejeitar toda a autoridade externa, dado que todas as autoridades tradicionais da altura eram adversárias da nova ciência e tinham que ser rejeitadas. Mas uma vez derrotados esses opositores, o lema manteve-se e passou a implicar que a persecução da ciência exigia o repúdio de toda a autoridade e de toda a tradição. Nesse ponto tornou-se numa ilusão, pois, como veremos, a persecução da ciência certamente que não pode, e não deve, repudiar toda a autoridade e tradição1. O conceito popular de ciência diz que a ciência é uma coleção de factos observáveis que qualquer pessoa pode verificar, por si. Vimos que isto não é verdade no caso do conhecimento de peritos, assim como no diagnóstico de uma doença. Além do mais também não é verdade nas ciências físicas. Em primeiro lugar, por exemplo, um leigo dificilmente poderá ter acesso aos equipamentos para confirmar um facto da astronomia ou da química. Mesmo supondo que de alguma forma acedia ao uso de um observatório ou de um laboratório de química, não saberia usar os instrumentos e muito provavelmente poderia mesmo danificá-los irremediavelmente, mesmo antes de conseguir fazer uma primeira observação; e mesmo que tivesse tido sucesso numa observação, para verificar uma afirmação cientifica, e tivesse encontrado um resultado contraditório, podia com justiça assumir que tinha feito um erro, tal como os alunos fazem nos laboratórios quando aprendem a usar os equipamentos. Na realidade a aceitação das afirmações da ciência não se baseia nas suas observações, mas na autoridade que os leigos reconhecem aos cientistas, nos seus domínios específicos, e isto é verdade quase na mesma medida para todos os cientistas que usam resultados da ciência da autoria de outros: não se sentem obrigados, nem mesmo competentes, para testarem eles próprios esses resultados. Os cientistas dependem muito da autoridade que reconhecem aos seus colegas cientistas. 1 Ver Michael Polanyi, Science, Faith, and Society (Chicago: University of Chicago Press, 1964; primeira edição, 1946), para um primeiro tratamento sobre os fundamentos tradicionais da ciencia e o culto da originalidade. Estas ideias são parcialmente desenvolvidas ainda antes, em ensaios escritos nos anos de 1940 e publicados em The Logic of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1951), e posteriormente formaram as bases de Personal Knowledge {Chicago: University of Chicago Press, 1958). Análises mais recentes destes assuntos podem-se encontrar em “Science: Academic and Industrial”, Journal of the Institute of Metals 89 (1961): 401-6; em “The Republic of Science”, “The Potential Theory of Adsorption,” and “The Growth of Science in Society”, incluidos em Knowing and Being, ed. Marjorie Grene (Chicago: University of Chicago Press, 19&9); e no livro The Tacit Dimension (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1966).

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SIGNIFICAR

A autoridade que os cientistas têm é ainda exercida de uma forma pessoal pelo controlo que exercem sobre os canais através dos quais se fazem as contribuições para a comunidade científica. As propostas que parecem suficientemente plausíveis são aceites para publicação nos jornais e revistas cientificas, e o que for rejeitado será ignorado pela ciência. Essas decisões baseiam-se nas convicções fundamentais dos cientistas acerca da natureza das coisas e acerca do método que possa conduzir a resultados com mérito cientifico. Estas crenças e a arte da inquirição científica que neles se baseia não estão codificados em leis e regulamentos, nem se aplicam de uma forma legalista. São, no essencial, tudo o que está envolvido na persecução tradicional da ciência, e que em larga medida são apenas aplicadas tácitamente na formação de um juízo. Para o demonstrar, exemplifiquemos com uma afirmação pouco plausível, quase absurda, numa carta publicada há cerca de vinte e cinco anos na revista Nature. O autor da carta observou que o período médio de gestação de diferentes animais, desde os coelhos às vacas, era um múltiplo inteiro do numero pi. A evidência era ampla, e a concordância era forte. Mas a aceitação desta contribuição pela revista apenas se pode entender como uma piada. Não há evidência que possa convencer um biólogo moderno que os períodos de gestação são iguais a múltiplos inteiros de pi. O conceito da natureza das coisas pelos nossos biólogos diz-lhes que tal relação é absurda, mas não prescreve como o provar. Outro exemplo - da física - pode-se encontrar num artigo por Lord Rayleigh, publicado nos Proceedings da Royal Society em 1947. Descrevia algumas experiências bem simples que provavam, na opinião do autor, que um átomo de hidrogénio lançado contra um fio metálico podia transmitir a sua energia, até à casa de uma centena de electrão volt. Se correta, uma tal afirmação seria mais revolucionária do que a descoberta da fissão atómica por Otto Hahn, em 1939. Mas quando este artigo apareceu, os físicos não ficaram impressionados. Simplesmente encolheram os ombros. Embora não encontrassem qualquer erro na experiência, não só não acreditaram nesses resultados como nem sequer acharam que poderia valer a pena ver o que é que havia nele de errado, muito menos verificá-lo. Simplesmente ignoraram o artigo. Cerca de dez anos depois, algumas experiências acidentais ofereceram uma explicação para os resultados de Lord Rayleigh. Os seus resultados eram aparentemente devidos a factores ocultos, sem grande interesse, que aliás dificilmente poderiam ter sido identificados na altura. Devia ter ignorado a sua observação, pois como físico devia saber, tal como os seus colegas, que deveria haver algo de errado com essa observação. É verdade que a rejeição de afirmações implausíveis tem-se mostrado muitas vezes errada; a segurança contra este perigo apenas seria garantida aceitando o custo de se aceitar que as publicações fossem inundadas por bagatelas e dispara-

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AUTORIDADE MORAL

tes. Os seus editores teriam que suspender os princípios de julgamento e publicar tudo o que lhes fosse submetido. Os princípios usados para julgar os artigos para publicação são largamente tradicionais, pois foram adquiridos pelos cientistas individuais a partir dos seus mentores e da literatura sobre o seu tema, e são, no fundo, na sua maioria apenas compreensões tácitas. Mesmo quando se fazem tentativas para os explicitar, o que estas afirmações explicitas significam apenas pode ser compreendido pelos cientistas do tema específico envolvido. Há muita coisa que não se pode explicitar, porque fica ao nível dos sentimentos acerca das aptidões e das atitudes de trabalho, que atraiçoam uma compreensão essencialmente imaginativa de como é que se espera que as coisas nesse domínio funcionem, ou sejam. É claro que há alguns princípios muito gerais do julgamento cientifico que se podem declarar; mas o seu enunciado prova, por si, o nosso ponto. Muito tem sido dito, em termos populares, acerca da exatidão dos resultados científicos. Certamente que a precisão, como princípio geral, aplica-se ao mérito cientifico. Mas o que conta para essa precisão pode ser diferente em domínios diferentes da ciência. Medida numa escala absoluta, a precisão dos resultados é muito menor em certos domínios da ciência do que noutros. Há pelo menos dois outros princípios que também contam para o juízo cientifico; e quando os resultados atingem um alto grau em termos desses princípios, mesmo um grau inferior de precisão é considerado como aceitável pelos cientistas. Estes dois princípios são a importância sistemática e o interesse do assunto. Mesmo na física será raro encontrar a precisão absoluta, mas as exigências da precisão serão inferiores se os resultados mostrarem uma boa aderência a um sistema de teorias já aceites ou se servirem para avançar no desenvolvimento sistemático de teorias. Em muitos casos pode mesmo haver pouco interesse intrínseco na natureza inanimada dos temas tratados pela física - muitas vezes impossível de experimentar. Pelo contrário, o interesse intrínseco pode ser muito alto nos temas subjetivos que a zoologia e botânica tratam, e os resultados nestas ciências podem portanto ser muito respeitáveis, mesmo que sejam relativamente pouco precisos e contribuam pouco, por comparação com os resultados da física e da química, para o desenvolvimento sistemático da ciência. A ciência ganha forma pelas avaliações delicadas que os cientistas fazem nas suas áreas. Julgam as contribuições em termos desses valores de precisão, interesse sistemático e ainda daquilo que se poderia chamar o interesse secular do tema tratado; considerando-os em conjunto, fazem o seu juízo em termos de um ótimo que eles e os seus pares aceitam tacitamente. A aplicação deste ótimo, tal como a aplicação de um ótimo económico, resulta numa decisão; mas o processo da sua aplicação não pode ser especificado, porque os valores relativos dos vários facto-

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SIGNIFICAR

res não tem existência determinada antes do juízo: são alocados apenas no próprio processo do julgamento. Estes juízos são portanto juízos tácitos, e sempre pessoais. Mas não são um capricho. Os gostos pessoais com que são feitos assentam muito num sentido de gosto tradicional adquirido pelo cientista através da sua aculturação na comunidade de cientistas a que se conseguiu juntar. Se esta visão de quanto o juízo cientifico assenta na tradição for correta, podemos admirar como a conformidade assim criada pode permitir o aparecimento de alguma originalidade genuína. Na realidade permite: a ciência apresenta um panorama de desenvolvimentos surpreendentes. Como é que se podem produzir essas surpresas, sob fundamentos tão dogmáticos? Ouvimos com frequência a confirmação surpreendente de uma teoria. A descoberta da América por Colombo foi uma confirmação surpreendente da teoria da esfericidade da terra; a descoberta da difração dos electrões foi uma confirmação surpreendente da teoria ondulatória da matéria por De Broglie; as descobertas da genética trouxeram uma confirmação surpreendente dos princípios mendelianos da hereditariedade. Temos aqui o paradigma de todo o progresso em ciência: descobertas que são feitas pela exploração de possibilidades sugeridas pelo conhecimento existente. Isto aplica-se a novas descobertas radicais. Todo o material sob o qual Max Planck fundou a teoria quântica, em 1900, estava disponível para análise por todos os outros físicos. Mas só ele viu aí inscrita uma nova ordem que podia transformar a visão do homem. Nenhum outro cientista teve sequer uma vaga suspeita dessa visão; foi ainda mais solitária do que as descobertas de Einstein. Embora muitas confirmações surpreendentes se tenham acumulado ao longo dos anos seguintes, a ideia de Plank era tão estranha que demorou onze anos até que a teoria quântica ganhasse a aceitação dos principais físicos. Mas, trinta anos depois, a posição de Plank na ciência aproxima-se da até aqui dispensada apenas a Newton. Enquanto a ciência impõe uma variedade imensa de declarações oficiais, não só tolera a dissidência nalguns casos particulares como pode mesmo encorajar a uma dissidência criativa. Enquanto a maquinaria das instituições científicas suprime severamente as contribuições propostas que contradizem a visão correntemente aceites acerca da natureza das coisas, as mesmas autoridades científicas prestam o seu mais alto tributo às ideias cujas implicações possam modificar profundamente as ideias aceites. Esta aparente contradição resolve-se porque todo o nosso conhecimento do mundo externo assenta, na realidade, em fundamentos metafísicos tacitamente aceites. A vista de um objeto sólido indica a toda agente que existe também um outro lado, com um interior oculto, que podemos explorar; a vista de outra pessoa indica-nos um conjunto ilimitado de atividades ocultas, do seu corpo e espirito.

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AUTORIDADE MORAL

A percepção tem esta profundidade inesgotável, porque o que nós percebemos é compreendido tacitamente como um aspecto da realidade, e os aspectos da realidade são tacitamente considerados como indícios de possíveis experiências futuras ainda desconhecidas, e porventura mesmo impensáveis. É isto que o corpo existente do pensamento cientifico significa para um cientista produtivo, quer o verbalize, ou não, desta forma. Vê nele um aspeto da realidade que, como tal, promete ser uma fonte inesgotável de novos e frutuosos problemas. Esta obra baseia-se nisso: a ciência continua a ser frutífera porque oferece uma compreensão sobre a natureza da realidade. Esta visão da ciência reconhece meramente aquilo em que todos os cientistas acreditam: a ciência oferece-nos um aspeto da realidade e pode portanto vir manifestar uma verdade inesgotável, e muitas vezes surpreendente, no futuro. Só com esta confiança é que o cientista concebe problemas, persegue inquirições e reclama descobertas. Esta confiança é o fundamento com que ensina os seus estudantes e com que exerce a sua autoridade sobre o público, e é pela transmissão desta confiança às gerações seguintes que a ciência garante aos seus pupilos uma base independente, a partir de onde pode começar as suas próprias descobertas, porventura em oposição aos seus professores. Mas devemos também notar que esta realidade é, claramente, também imaginada como estruturada de uma certa maneira; e estas convicções correntes acerca da natureza fundamental da realidade são o contexto operativo em que se julga qualquer mudança, mesmo uma mudança “nova”. Se a sua novidade ameaça essas visões básicas e correntes, terá dificuldade em fazer-se ouvir, e muito mais em ser aceite; mesmo assim pode vingar se alguns cientistas se converterem, se concluírem que oferece potencialidades mais significativas do que as atuais visões fundamentais. A descoberta de novos factos pode também mudar o interesse que os cientistas têm por certos factos estabelecidos, e os próprios padrões intelectuais estão sujeitos a alterações. O interesse pela espectroscopia foi bruscamente renovado pela teoria da estrutura atómica de Bohr, e a novidade do seu encanto também forjou uma mudança nos padrões da beleza científica. Nenhum resultado igualou a descoberta da teoria quântica por Planck, e o seu efeito sobre a transformação da qualidade da satisfação intelectual na física matemática. Tais alterações foram acompanhadas, ao longo de séculos, pela convicção de que oferecem uma compreensão mais profunda da realidade, e só com essa convicção é que um cientista pode iniciar novos padrões que não são apenas uma predileção pessoal, mas que são propostos com uma intenção universal e responsável, ou seja, acreditando que se mostrarão aceitáveis pelos outros, como verdadeiros. Com esta confiança presente no seu espirito, um cientista tanto pode ensinar os seus alunos a respeitar os valores da ciência como encorajá-los a um dia tentarem aprofundar esses valores à luz da sua própria compreensão.

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SIGNIFICAR

Como um cientista praticante durante muitos anos, acredito que tudo isto é uma descrição verdadeira dos procedimentos atuais na ciência. Mas uma verdadeira descrição dos atuais procedimentos científicos não implica a sua justificação. Mas, se se acreditar, como eu acredito, que as convicções metafisicas dos cientistas asseguram necessariamente a disciplina e incentivam a originalidade na ciência, então devemos declarar essas convicções como sendo verdadeiras. O que eu faço. Mas isso não significa que partilhe todas as convicções aceites pelos cientistas acerca da natureza das coisas. Pelo contrário, todos os meus escritos mostram a minha dissenção em muitas áreas, particularmente na psicologia e na sociologia; mas esta dissenção não desfigura de qualquer modo as minhas noções acerca da dedicação necessária dos cientistas relativamente a verdades externas. Porque compreendemos mutuamente a nossa dedicação, podemos respeitar, e não tentar eliminar, as nossas visões diferentes. Infelizmente estas convicções metafisicas não são explicitamente professadas, hoje em dia, pelos cientistas, muito menos pelo público em geral. A ciência moderna cresceu afirmando o seu fundamento na experiência e não numa metafísica derivada dos primeiros princípios. A nossa afirmação de que a ciência apenas pode ter disciplina e originalidade se acreditar que os factos e os valores da ciência assentam numa realidade ainda por revelar, está em oposição à concepção filosófica corrente do conhecimento cientifico. Acreditamos que estas visões filosóficas atuais têm-se revelado aquém dos verdadeiros compromissos realmente feitos pelos cientistas. Mostrou-se que a liberdade dos cientistas para fazerem contribuições verdadeiramente originais assenta sobre várias convicções tradicionais aplicadas pela comunidade de cientistas como um todo. Estas convicções asseguram a continuidade conjunta quer da disciplina como da inovação. A seguir precisamos de mostrar como é que esta comunidade de cientistas se governa a si própria, na realidade, de acordo com estes princípios. A investigação é perseguida por milhares de cientistas independentes em todo o planeta, cada um deles conhecendo apenas uma pequena parte da ciência. Como é que o resultado dessas inquirições, cada uma delas largamente conduzida na ignorância do trabalho dos outros, pode sustentar a unidade sistemática da ciência? E como é que milhares de cientistas, cada um dos quais tem um conhecimento detalhado apenas de uma pequena fração da ciência, impõem em conjunto padrões iguais em todos os domínios tão vastos e diferentes das ciências? O sistema contemporâneo da ciência cresceu a partir do sistema que existia há uma geração atrás, através de avanços independentes num grande número de pontos em que o sistema antigo oferecia oportunidades de progresso. Os cientistas procuraram esses pontos, e cada um desenvolveu o seu. Cada um estudou

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o trabalho dos outros sobre esses pontos promissores e considerou como é que poderia fazer uso dos seus dons próprios. Uma tal estrutura de ajustes mútuos, descentralizada e livre, através da auto coordenação de esforços, conduz, na prática, ao maior progresso global possível e assegura, da melhor forma. o caracter sistemático da ciência nos estádios sucessivos do seu progresso. Todas as instituições que servem para o avanço e para a disseminação da ciência supõem que existe um campo potencial para o progresso sistemático, pronto a ser revelado pela iniciativa independente de cientistas individuais, o que pode rapidamente perder a sua raison d’être e degenerar em meras facções de interesses se deixar de se basear nessas suposições. É, por exemplo, com base nesta convicção que os cientistas são contratados para toda a vida como investigadores e lhes são assegurados subsídios para esse objetivo. Muitos edifícios dispendiosos, peças de equipamento, revistas, etc. são financiadas e mantidas com essa convicção. Um noviço, ao entrar na comunidade cientifica, aceita, em termos gerais, estas profundas convicções tradicionais. O que levanta outro problema intrincado que a comunidade cientifica precisa de resolver. Como é que podemos com confiança falar de ciência como um corpo sistemático de conhecimento e assumir que o grau de fiabilidade e de interesse intrínseco de cada um dos seus ramos se pode julgar pelo mesmo padrão de mérito científico? Podemos ter a certeza de que as novas contribuições serão aceites pelos mesmos padrões de plausibilidade e que serão recompensadas pelos mesmos padrões de precisão, de originalidade e interesse? A menos que as contribuições sejam aceites, nas diversas áreas, por padrões substancialmente iguais, haverá um grande desperdício de recursos. Pode tal escândalo ser protegido contra a transferência de recursos das áreas atualmente com padrões inferiores para as áread em que os padrões são superiores? Poderá parecer impossível comparar o complexo valor científico de contribuições marginais em áreas tão diferentes como, por exemplo, a astronomia e a medicina. Mas, de facto, isso acontece, ou, pelo menos, aproxima-se razoavelmente na prática. É feito aplicando um princípio que podemos chamar de principio do controlo mútuo. Consiste, no caso presente, no simples facto de que os cientistas se observam uns aos outros. Cada cientistas está sujeito ao criticismo de todos os outros cientistas e é encorajado pelas suas apreciações. É assim que se forma a opinião cientifica que aplica os padrões científicos e que regula a distribuição das oportunidades profissionais. É claro que apenas os colegas cientistas que trabalham em domínios diretamente relacionados é que são competentes para exercer uma autoridade direta; mas os seus campos pessoais formarão cadeias de proximidades sobrepostas que se estendem por todos os domínios da ciência. É claro que basta que os padrões de plausibilidade e de valor sejam iguais em todos os pontos de

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SIGNIFICAR

sobreposição das ciências para que permaneçam semelhantes em toda a ciência. Mesmo aqueles ramos mais isolados da ciência irão basear-se nos resultados de outro ramo e apoiar-se mutuamente contra qualquer leigo que tente desafiar seriamente a sua autoridade. Esse controlo mútuo produz um consenso mediado entre os cientistas, mesmo quando não conseguem compreender mais do que uma vaga descrição dos temas de cada um. Claro que isto também se aplica a mim próprio. Tudo o que disse aqui acerca do funcionamento do ajuste mútuo e da autoridade mútua baseia-se na minha convicção pessoal que os modos de interação que observei nos meus ramos da ciência se podem assumir como extensíveis a todos os outros ramos. O controlo mútuo aplica-se também aos que entrem de novo na comunidade cientifica, em qualquer ponto particular dos seus vastos domínios. Começam as suas inquirições aderindo aos mecanismos da interação mútua e ao mesmo tempo vão ocupando o seu próprio lugar no sistema existente de controlo mútuo, e fazem-no na convicção de que os seus métodos correntes são essencialmente verdadeiros e comuns através da ciência. Confiam nas tradições animadas por este sistema de controlo mútuo, sem terem muita experiência dele, e ao mesmo tempo afirmam uma posição independente a partir da qual podem reinterpretar e possivelmente revolucionar essa tradição. É verdade que a comunidade cientifica implica uma hierarquia, mas isso não altera o facto de que a autoridade da opinião cientifica é exercida pelo controlo mútuo de cientistas independentes, bastante para além da esfera de ação de cada um deles. Os cientistas com reputação mundial, os editores das revistas cientificas, e os membros seniores das faculdades académicas têm, na realidade, muita mais influência do que o cientista médio ou de que um principiante. Mas uma tal hierarquia estabelece-se por si própria, principalmente pelo livre respeito pelas opiniões entre os membros da comunidade científica. Vimos que o cientista só pode conceber problemas e prosseguir a sua investigação se acreditar numa realidade oculta em que se baseia a ciência. Agora que, para além disso, mostramos que a originalidade cientifica resulta da tradição cientifica e que ao mesmo tempo a ultrapassa, podemos mostrar como este processo estabelece o sentido de responsabilidade pessoal que sustenta a inquirição dos cientistas. Há duas maneiras possíveis de olhar para o progresso feito pela linha da frente das descobertas cientificas, à medida que se vai avançando ao longo da linha do tempo. Podemos olhar para trás e ver esse progresso como o crescimento do pensamento nas mentes de pessoas dotadas, ao longo de linhas da ciência determinadas ou “causadas”. Pode parecer que a frequente ocorrência de descobertas simultâneas suporta esta imagem. Mesmo as grandes descobertas, que funda-

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mentalmente reorganizam o nosso conceito da natureza, podem ser feitas simultaneamente por cientistas diferentes em diferentes lugares. A mecânica quântica foi descoberta em 1925 por três autores tão independentes uns dos outros que na altura se pensou que tinham dado origem a três soluções incompatíveis do mesmo problema. Visto assim, o crescimento de novas ideias parece ser pré determinado. As mentes de quem faz as descobertas parecem simplesmente oferecer um terreno adequado para a proliferação de novas ideias. Mesmo assim, ao olhar para diante, antes do acontecimento, o ato de descoberta parece pessoal e indeterminado. Começa com as intimações solitárias de um problema, de pedaços e bocados, por aqui e por ali, que parecem oferecer indícios para algo escondido. Parecem como fragmentos de um todo coerente, mas ainda desconhecido. Esta visão tentativa deve tornar-se numa obsessão pessoal, pois um problema que não nos preocupa não é um problema. Não há incentivo. Não existe. Esta obsessão, que nos estimula e que nos guia, é acerca de algo que não podemos descrever: os seus conteúdos são indefinidos, indeterminados, estritamente pessoais. Na realidade o processo pela qual essa coisa desconhecida virá à luz será depois descrito como uma descoberta precisamente porque não se podia atingir pela aplicação persistente de regras explícitas aos factos. O verdadeiro descobridor pode ser aclamado pelo feito audacioso da sua imaginação, que cruzou os mares do pensamento possível, mas nunca dantes navegados. Logo prova-se que a imagem vista por trás, dos cérebros humanos como terreno passivo para a proliferação do pensamento, é falsa. Apesar disso, representa um aspecto da persecução da ciência. O progresso cientifico, visto depois de um acontecimento, pode mostrar as possibilidades que estavam previamente ocultas e que eram vagamente antecipadas pelo problema. Isto explica como diferentes cientistas podem sentir intimações independentes sobre uma potencialidade em particular, muitas vezes espreitando-a a partir de indícios diferentes e possivelmente fazendo a sua descoberta em termos diferentes. Há uma opinião generalizada, em conflito com o que acabamos de dizer, que afirma que os cientistas encontram descobertas meramente através de quaisquer tentativas que lhes possam passar pela cabeça. Esta opinião resulta de não se reconhecer a capacidade do homem para antecipar a aproximação de uma verdade oculta. As conjecturas e os palpites do cientista são estímulos e apontadores para essa procura. Como envolvem altas paradas, são tão arriscadas quanto as suas perspetivas são fascinantes. O tempo e o dinheiro, o prestígio e a auto confiança perdidos, que se apostararm em conjecturas desapontadoras, rapidamente vão esgotar a coragem e a posição de um cientista. O seu tatear é uma decisão ponderada. Não são lutas aleatórias que saem da sua cabeça numa direção qualquer. As escolhas feitas durante uma inquirição cientifica são portanto escolhas res-

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SIGNIFICAR

ponsáveis feitas pelo cientista, mas o objeto da sua inquirição não é da sua autoria. Os seus atos estão sob o julgamento da realidade oculta que procura pôr a descoberto. A sua visão do problema, a sua obsessão com ele, e o seu salto final para a descoberta estão cheios, desde o princípio até ao fim, com uma obrigação em relação a um objetivo corretamente chamado “externo”. Os seus atos são atos pessoais intensos, mas não há neles uma vontade própria dos próprios atos. A originalidade é conduzida em cada etapa por um sentido de responsabilidade em avançar o crescimento da verdade na mente dos homens. A sua liberdade reside neste serviço perfeito. Muitos escritores têm observado, desde que John Dewey avançou com a ideia no final do último século que, em certa medida, nós conformamos todo o conhecimento pela forma como o conhecemos. Assim posta a questão, nesta forma crua, o conhecimento parece estar sujeito aos caprichos do observador. Mas a persecução da ciência mostrou-nos como, mesmo na conformação das suas próprias antecipações, quem conhece é controlado por exigências impessoais. Os seus atos são julgamentos pessoais exercidos responsavelmente com vista para uma realidade com que procura estabelecer contato. Isto é verdade para toda a busca e descoberta da verdade “externa”, ou seja, para chegar ao significado “centrado sobre si” em contraposição com o significado “sugerido por si”. Esta é a única justificação positiva para se aceitar a ciência como verdadeira. Têm sido feitas tentativas para compensar esta aparente deficiência pela redução das reivindicações da ciência pela verdade a simples probabilidades. A incerteza e os compromissos da ciência têm sido exageradas. No entanto tudo isso ultrapassa o ponto. Uma afirmação provável inclui um juízo não menos pessoal e não menos dirigido por uma intenção universal do que uma afirmação da sua certeza. Qualquer conclusão, quer proposta como uma suposição ou afirmada como uma certeza, representa um compromisso da pessoa que lá chegou. Ninguém pode pronunciar mais do que um compromisso responsável, por si mesmo, e isso preenche completamente a sua responsabilidade por encontrar a verdade e por a afirmar. Se é, ou não, a verdade, isso só pode ser posto em perigo através de outro compromisso igualmente responsável. Não há maneira explicita ou automática de o evitar. Um cientista, tendo confiado ao longo da sua inquirição na presença de algo real aí oculto, pode apenas confiar nessa presença externa para reivindicar a validade do resultado que satisfaz a sua busca. Tal como aceitou a disciplina que o pólo externo do seu empreendimento lhe impôs ao longo da sua inquirição, espera que outros - desde que igualmente equipados - também reconheçam e aceitem a disciplina da presença que o guiou. Pela sua própria autoridade, que o liga à busca pela realidade, irá reivindicar que os seus resultados são universalmente válidos. Tal é a intenção universal da descoberta cientifica.

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Não estamos a afirmar que tenha sido estabelecida universalmente, mas apenas que mostrou uma intenção universal, pois um cientista não pode saber se as suas reivindicações serão ou não aceites. Pode acontecer que sejam falsas, ou, mesmo que na realidade sejam verdadeiras, podem não suscitar a convicção necessária. Pode-se mesmo suspeitar, ao longo da investigação, que as suas conclusões não se vão mostrar aceitáveis. Em qualquer caso, a sua aceitação (ou reconhecimento) não lhe garantirá a sua verdade. “Aceitação” não equivale a “verdade”. Reivindicar a validade de uma afirmação apenas declara que deve ser aceite por todos, porque todos devem ser capazes de a ver - tal como Galileu supôs que o clero do seu tempo devia ser capaz de ver o que ele via, quando olhava pelo seu telescópio. A afirmação da verdade científica tem um caracter obrigatório; nisso é como todas as outras avaliações que são declaradas universais pelo nosso próprio respeito para com elas. Falamos do entusiasmo pelos problemas, de uma obsessão com palpites e visões que são estímulos e apontadores indispensáveis para a descoberta. Mas a ciência é, na visão popular, suposta ser desapaixonada. Sem duvida que há uma idealização desta suposição, hoje em dia corrente, que julgam que o cientista não só é indiferente ao resultado dos seus trabalhos como até procura, na realidade, a sua refutação2. Isto não só é contrário à experiência, mas também é um contrasenso lógico. As conjecturas no trabalho de um cientista nascem da sua imaginação na busca por uma descoberta genuína. Um tal esforço pode arriscar uma derrota ao submeter essas conjecturas a testes rigorosos, mas nunca a procura. De facto é a ânsia pelo sucesso que faz com que o cientista arrisque o fracasso. Não há outra maneira para ganhar esse sucesso. Como vimos a respeito de tudo na vida, a categoria do sucesso não existe sem a de um possível fracasso. Os tribunais empre2 Esta visão foi expressa de forma persuasiva por K. R. Popper; por exemplo em Logic of Scientific Discovery [New York: Basic Books, 1959}, p. 279, da seguinte forma: “Mas estas nossas conjunturas ou “antecipações” maravilhosamente imaginativas e audaciosas são cuidadosa e sobriamente controladas por testes sistemáticos. O nosso método de investigação não é defende-las, para provar como estão corretas. Pelo contrário, tentamos subverte-las. Usando todas as armas da nossa lógica, matemática e as armas da técnica tentamos provar que as nossas antecipações são falsas – para adiantar, na sua esteira, novas antecipações injustificadas e injustificáveis, novos “preconceitos imprudentes e prematuros” como Bacon lhes chamou com ironia.’’ Popper chega mesmo ao ponto de manter que (na p. 419) os cientistas escolhiam a hipótese menos provável para investigar, pois seria a mais fácil para refutar! Uma tal suposição anda próximo do ridículo , mesmo que “improvável” não signifique “implausível” para ele. Popper pensa que os cientistas escolhem a hipótese plausível mais geral para investigar. Mas ao faze-lo, estão de facto a escolher a menos provável. Ele pensa que a hipótese plausível mais geral é a menos provável porque , sendo a mais geral, será a que está mais distante dos dados sensoriais que poderiam ser evidencia a favor ou contra ela. Mas tendo notado esta circunstância de mera coincidência acerca da hipótese plausível mais geral, Popper continua depois a supor que os cientistas não a escolhem simplesmente porque é a hipótese plausível mais geral de que se podem lembrar, mas antes porque é a mais arriscada de que se podem lembrar. Não só se põe o carro antes dos bois, como os animais forem atrelados completamente ao contrário.

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SIGNIFICAR

gam dois advogados distintos para argumentarem as alegações opostas, porque só por um compromisso apaixonado a uma visão particular é que a imaginação pode descobrir a evidência que a suporta. O compromisso apaixonado de um cientista para com uma posição não aparece depois de, por várias vezes, não ter conseguido falsificar a sua posição. O impulso criativo da imaginação na ciência vem de várias fontes. Em primeiro lugar, a beleza da descoberta antecipada e a excitação da sua conquista solitária. Mas o cientista também procura o seu sucesso profissional; se a opinião cientifica recompensa o mérito justamente merecido, a ambição também serve como um verdadeiro incentivo para a descoberta. Vemos aqui um princípio não moral, a ambição, mas aproveitada para um fim moral. A persecução da ciência, como vimos, é parte da esfera moral da obrigação, que agora podemos ver que deve ser um nível superior do domínio cultural (com princípios próprios), assente sobre um nível inferior desse mesmo domínio cultural - um nível essencialmente não moral, o nível da ambição, da procura do poder e do lucro. Vimos, no caso da inquirição cientifica, como um tipo de associação moral de pessoas, através do exercício da autoridade mútua, junta a tradição e a liberdade na procura da verdade, e como as ações das pessoas nessa associação se tornam responsáveis por uma intenção universal através de uma convicção comum na existência de uma realidade cujos aspectos podem ser descobertos, cada vez mais, por essas pessoas, através das suas próprias ações imaginativas. A persecução da ciência , como indicado antes, pode servir como um paradigma para outras associações livres de pessoas dedicadas a outros fins que são, como a verdade, concebidas para ser de valor intrínseco - ou seja, fins que se consideram nalgum sentido dignos de respeito. A liberdade pode ser exigida pelos indivíduos dedicadas a essas associações, com fundamento naquilo a que se dedicam. Só a procura da verdade, no caso das associações cientificas, pode justificar o direito de um cientista à sua liberdade de inquirição e à publicação dos seus resultados. Isso é um direito que ele pode exigir dos seus colegas, com base nestes fundamentos. Mas com que fundamentos é que o pode exigir aos seus colegas cidadãos e ao seu governo? Deve ficar claro que não tem outra base para o exigir que não seja o respeito pela verdade, do mesmo tipo que é honrado pela sua própria comunidade de cientistas. Só terá portanto a liberdade para prosseguir a inquirição cientifica se o público também tiver respeito pelo ideal da verdade cientifica e se confiar naqueles que forem aceites como cientistas para se empenharem honestamente nessa procura. Podemos portanto ver que uma sociedade livre não é simplesmente uma sociedade “aberta”, uma sociedade em que qualquer coisa pode acontecer. É uma sociedade em que os homens, empenhados em várias atividades cujos fins são

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considerados dignos de respeito, têm a liberdade para prosseguir esses fins. Uma sociedade livre é portanto uma sociedade em que no essencial os seus cidadãos estão empenhados - dedicados - a vários fins ideais (como a verdade) e portanto é uma sociedade capaz de respeitar as atividades livres dos seus cidadãos na procura desses fins. Não pode ser uma sociedade livre por ser aberta em assuntos como estes, ou seja, sendo neutral em relação à verdade e à falsidade, justiça e injustiça, honestidade e fraude. Começamos este capítulo com uma inquirição sobre a natureza operacional da comunidade científica para ver se nos poderia dar alguma luz sobre a natureza de uma sociedade livre. Esta inquirição mostrou-nos como uma associação pode estar ligada, por tradição, a certos padrões e valores e mesmo assim ser livre - tanto no sentido de ser inovadora e no sentido de ser auto governada ou autónoma. Mostrou também que uma associação livre deste tipo só pode existir dentro de uma sociedade que opere segundo as mesmas linhas e que seja dedicada à defesa do mesmo tipo de ideais. Vejamos agora, no ultimo capítulo, como uma tal comunidade cientifica livre e a noção de autoridade mútua que a governa podem ser uteis como paradigmas para outras associações livres numa sociedade livre e, finalmente, para a própria sociedade livre.

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SOCIEDADE LIVRE



SOCIEDADE LIVRE

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á outras associações de pessoas que precisam do mesmo tipo de atividade livre que existe na ciência. Todas as áreas da cultura operam segundo linhas semelhante às da ciência. Em geral as pessoas envolvidas em atividades académicas podem exigir liberdade - para ensinar e para investigar - com os mesmos fundamentos que os cientistas, ou seja, para procurar solidariamente a verdade apropriada a cada uma dessas atividades. O desenvolvimento de todas as artes e ofícios requer igualmente este tipo de liberdade. Assim como professar a religião e a busca da justiça sob a lei, a administração da justiça. Todas estas áreas de interação livre operam dentro da tradição que as disciplina, mas que também deixa espaço para inovações do tipo de ajuste mútuo e criticismos individuais vis-à-vis as atividades dos outros. Como não podemos explorar todas estas atividades em detalhe, consideraremos uma que se dedica a um fim e que todos concordam que é importante - administração da lei, promovendo a justiça. Um juiz sentado num tribunal e a ponderar um caso refere-se conscientemente a muitos precedentes - e porventura de forma inconsciente a muitos outros. Um grande número de outros juizes sentaram-se aí e decidiram de acordo com o estatuto, precedente, equidade e conveniência, tal como este que agora se senta aí e tem que decidir. A sua mente está em contacto permanente com as suas mentes, à medida que analisa os vários aspetos do caso. Para além das referências legais que faz, o juiz sente toda uma tendência contemporânea de opinião, o meio social como um todo. Quando avalia o interesse do seu conhecimento de todos esses os assuntos para o caso e lhes responde à luz da sua consciência profissional, a decisão que declara conterá a sua convicção e será recebido com respeito pelos outros membros do tribunal. A sua decisão, por sua vez, afetará a opinião publica e as decisões de futuros juízes noutros casos. Logo a operação da lei constitui uma sequência de ajustes entre juízes sucessivos, guiada por uma interação paralela entre eles e o público em geral. O que resulta é o crescimento ordenado da lei através da aplicação e reinterpretação das mesmas regras fundamentais, e a sua expansão para um sistema de crescente alcance e consistência. Há muitas diferenças importantes entre a forma como os cientistas individuais

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operam dentro da comunidade de cientistas e a forma como os juízes trabalham dentro da comunidade de juízes e advogados e o público em geral, mas mesmo assim há dois pontos em que são semelhantes: quando um cientista se envolve com um problema e aceita como uma premissa sua toda a massa de conhecimento científico previamente estabelecido, e se submete à direção dos padrões científicos, tendo também em conta a tendência global da opinião científica corrente, parece-se com um juíz que se refere ao precedente e à lei, e os interpreta à luz do pensamento contemporâneo. O método comum do ajustamento mútuo, quer dos juizes como dos cientistas, é claramente um processo de consulta. É claro que há um outro processo de ajuste mútuo, usado noutro tipo de atividade associativa, em que tal ajuste é essencial - os negócios, uma atividade que ainda não mencionamos. Os homens de negócios fazem o ajuste mútuo essencialmente através da competição, em que cada um se guia primariamente pela obtenção de vantagens individuais. A liberdade que cada participante precisa para operar num ambiente moderno da atividade económica também se justifica pela referência aos seus próprios fins, mas há uma diferença entre esses fins e os fins de que temos estado a falar. A finalidade da atividade económica é dar aos indivíduos os bens materiais e os serviços que querem usar e desfrutar individualmente. Esses fins económicos não são portanto nem espirituais nem ideais, como a verdade, a justiça, a beleza - fins que podem ser partilhados pelas pessoas (de facto, dificilmente poderão existir se não forem partilhados) e que não se esgotam pela sua satisfação. A produção de uma magnífica obra de arte ou peça de música, o crescimento de um corpo de leis mais consistente e mais coerente, o desenvolvimento de uma grande teoria nova na física, são resultados espirituais e ideais que todos usufruem, mas que ninguém esgota. Mas um automóvel a sair de uma linha de montagem, ou um alqueire de trigo a sair de uma quinta, nada são até que algum individuo em particular os possa consumir. A liberdade essencial à eficiência da produção, distribuição e consumo de bens económicos e de serviços não se pode argumentar com base em fundamentos morais, pois esta liberdade não é essencial para a criação daquilo que está imbuído com um sentido moral e obrigação, como a verdade ou a justiça, ou qualquer outra coisa que melhora ou expande o nível do significado - a significância das vidas vividas - tal como o fazem a arte e a religião. Este últimos fins são fins que, uma vez apreendidos como significativos, exigem a nossa responsabilidade para com eles; dizemos portanto que são de um valor inerente, que são algo que nós acreditamos que deve ser respeitado. Logo podemos continuar a dizer que a liberdade para prosseguir esses fins também precisa de ser respeitada. Podemos dizer que a liberdade económica para fazer ajustes mútuos, que são

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mutuamente aceitáveis, também deveria ser respeitada. Mas aqui o “dever” é condicional, não categórico. Depende de se ter ou não um modo industrial de produção que exija tantos ajustes contínuos que tornam o planeamento central numa impossibilidade. O “dever” neste caso é algo como o “dever” envolvido num imperativo hipotético (para usar os termos de Kant). É como dizer, por exemplo, que se se tiver um fogão a gaz, devemos ligá-lo a uma fonte de gás e acendê-lo, antes de cozinhar os alimentos. Claro que não há uma obrigação moral em ligar e acender o fogão - mesmo em cozinhas para os nossos alimentos. Pelo contrário, os outro extremo de ideais, aqueles que exigem liberdade para a sua realização - e portanto também a liberdade assim exigida - serão semelhantes ao imperativo categórico de Kant. Estes são comandos incondicionais - comandam em absoluto. Há miríades de problemas particulares, dificuldades intrincadas, para manter estes enclaves de atividade livre numa sociedade. Não nos compete aqui entrar em sugestões detalhadas para a sua solução. Na realidade essas sugestões, feitas num livro como este, seriam em vão. Numa sociedade livre esses problemas só se podem resolver por mútuos ajustes políticos ao longo do tempo. Não são problemas técnicos da filosofia, cujas soluções um pensador académico possa trabalhar numa biblioteca ou enquanto atravessa o Quad. O que é importante para a nossa discussão acerca desses enclaves de liberdade é que se clarifique o sentido básico em que as instituições de uma sociedade livre se diferenciam das suas opostas. Precisamos também de mostrar que esta diferença está relacionada com aquilo com que nós, como pessoas, estamos apaixonadamente comprometidos. Temos falado de liberdade neste capítulo com se fosse algo desejável. Mas “liberdade” é um termo ambíguo, e alguns dos seus significados têm sido severamente criticados. Um sentido muito básico de “liberdade” parece ser “ausência de restrição externa”. Os limites racionais à liberdade, compreendidos desta forma, são definidos pela condição de que o nosso exercício de uma liberdade não dever interferir com o direito de ouras pessoas exercerem a mesma liberdade. Isso são limites razoáveis, porque este tipo de liberdade possivelmente não pode existir numa situação social (ou seja, aceite como “correta” por todos numa sociedade) sem ter em consideração esses limites. Isto parece muito simples, e certos exemplos podem ser aduzidos, que sejam facilmente compreendidos e aceites por todos. Seja, por exemplo, a liberdade de poder ir dormir e de ver televisão. Devo ter essa liberdade, diz este principio da limitação, desde que o meu exercício dessa liberdade não interfira com a liberdade do meu vizinho poder escolher entre as mesmas alternativas. Herdamos dos grandes utilitaristas do passado este princípio, que governa o uso da liberdade individual. Ligaram a ideia da persecução de uma boa

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sociedade com a persecução da felicidade máxima por um numero máximo de pessoas e, nesse sentido, a liberdade que estamos a discutir aqui é uma condição necessária para a existência efetiva dessa persecução. Nesta base, contudo, isto é uma concepção individualista, um conceito auto assertivo da liberdade e, porque isso é o que fica na sua base, pode infelizmente ser usado - e tem sido usado - para justificar todos os tipos de comportamentos socialmente injustificáveis e até mesmo destruidores. Os piores tipos de exploração - dos pobres, das crianças, das mulheres, mesmo a escravatura - têm sido praticados em seu nome. Serviu também como fundamento para o movimento romântico, exaltando o individuo único e sem lei, e as nações lutando pela “grandeza” a qualquer preço. Há um outro sentido ou significado para a liberdade, que é exatamente o oposto do que temos vindo a discutir. Considera a “liberdade” como a “libertação dos fins pessoais através da submissão a obrigações impessoais”. Quando Lutero enfrentou a Dieta de Worms e declarou que “esta é a minha posição e não poderia ser de outra maneira”, não estava a declarar a sua falta de liberdade para fazer de outra maneira. Estava a reconhecer que o reconhecimento de uma obrigação moral lhe dava a liberdade para prosseguir não só os seus fins meramente pessoais (como a proteção da sua própria vida) mas também, como neste caso, uma liberdade em relação às autoridades religiosas. É claro que isto é uma forma de libertação, embora isso seja muito diferente da visão auto assertiva e individualista dos utilitaristas; na realidade, segundo este ponto de vista, isto seria mesmo insensato. Mas um tal sentido para a liberdade pode tornar-se muito parecido com uma teoria do totalitarismo. Torna-se exatamente nisso pela simples adição da noção (claro que isso não estava nas intenções de Lutero) de que o estado é o guardião supremo do interesse público. Segue-se o perigoso paradoxo de todos os totalitarismos do novo século: o individuo liberta-se pela sua completa entrega ao estado. A preservação da liberdade nas vidas dos homens é por isso gravemente posta em perigo por ambas as concepções de liberdade; pois, mesmo se os homens não forem para os extremos da anarquia ou do totalitarismo sob o impulso destes significados, podem muito bem sentir, por outro lado, que a teoria individualista da liberdade é simplesmente egoísta. Pelo menos é pouco inspiradora. É certo que os jovens europeus que foram inspirados pela visão totalitária da liberdade e marcharam para a segunda guerra mundial encontraram a visão individualista da liberdade pouco inspiradora. Por outro lado, a teoria da liberdade como uma auto rendição a obrigações impessoais não parece estar de acordo com a nossa simpatia para a procura individual da felicidade na sua forma pessoal. Se refletirmos agora sobre a estrutura que vimos para a liberdade da comu-

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nidade científica e da comunidade jurídica, vemos que, na realidade, estas duas comunidades combinam os dois aspetos da liberdade que discutimos no seu funcionamento global. A liberdade de um cientista ou de um juiz não é uma simples auto afirmação. É uma liberdade para prosseguir certas obrigações e para as partilhar num sistema de autoridade mútua. No entanto esta liberdade implica uma ausência de restrições externas porque também implica um direito a fazer juízos pessoais (muitas vezes bastante inovadores) - juízos que levam consigo bocados completos da nossa pessoa. Procuremos agora usar este paradigma da comunidade científica para nos esclarecer sobre que tipo de princípios estruturais é que uma sociedade livre, como um todo, pode precisar. Por uma analogia simples e óbvia, uma sociedade livre pode existir no contexto de uma tradição que dá um quadro de referência dentro do qual os membros dessa sociedade podem fazer contribuições livres para as tarefas envolvidas na sociedade. A liberdade de mera auto-afirmação apenas pode levar à desintegração dos nossos padrões e das nossas instituições. De tempos a tempos pode resultar num equilíbrio de forças sociais - interesses - que mutuamente se modulam até ao ponto em que todos podem viver em conjunto nalgum tipo de equilíbrio operativo. É algo como o que Madison teve esperança que fosse o caso da grande sociedade em que ele esperava que os Estados Unidos se transformassem1. No entanto, ninguém que pense que a liberdade é uma mera auto-afirmação se devotará à manutenção de um tal equilíbrio; devotar-se-á antes a perturbá-lo sempre que possível, de modo a atingir mais dos seus próprios interesses. Logo, qualquer equilíbrio que tenha existido em qualquer momento estaria sempre ameaçado e quase de certeza seria, de tempos a tempos, completamente destruído. Como Adam Smith antecipou, o principal perigo de um equilíbrio ótimo, que tivesse sido atingido entre instituições de comércio livre, viria dos fabricantes, pois nenhum deles teria qualquer interesse em manter um sistema de competição livre; os seus interesses seriam antes assegurar monopólios para controlar os respetivos mercados. Os ajustes que podem e que devem ser feitos num mercado livre não poderiam ocorrer nesse caso. Como todos os produtores industriais fariam a mesma coisa, nenhum deles estaria a fazer aquilo que o mercado livre precisaria. Smith pensou, portanto, que só um tremendo esforço para educar agricultores e trabalhadores no seu próprio interesse poderia dar forma a um mercado livre ou preservar um já existente2. Na realidade, parece que ele tinha pouca esperança no seu sucesso. 1 James Madison, “Federalist Paper No. 10’’, Selections from the Federalist Papers, ed. Henry S. Commager (New York: Appleton-Century* Crofts, 1949), p. 14. 2 Adam Smith, The Wealth of Nations (New York: Modern Library, 1937): pp. 248-50, 734-40.

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O que precisamos para uma sociedade livre viável é uma devoção tradicional aos objetivos espirituais, como a verdade, a justiça e a beleza - que exigem sociedades auto determinadas para a sua realização: de cientistas, académicos, juristas e juízes, artistas de todos os tipos, e clero. Porque sem uma devoção pública geral a estes objetivos espirituais, as comunidades livres e auto determinadas não podem continuar a existir. O público (e os funcionários públicos) decidiriam certamente, a certo ponto, tentar controlar essas atividades no interesse do “bem público”. É claro que um público que sucumbisse a essa tentação não encontraria depois nada que pudesse usar para melhorar o bem público, pois teria inibido, senão mesmo aniquilado, a inquirição real, o real discernimento espiritual ou moral, a justiça real e a arte real. O que poderia ficar, nas caricaturas dessas atividades, seria incapaz por não fazer sentido. No entanto, uma explicação muito explicita e uma devoção “oficial” a estes ideais (definindo-os de forma demasiado explícita e instituindo agencias públicas para a sua promoção) também as destruiria, porque destruiria a liberdade das pessoas para fazerem inovações relevantes para a sua persecução nessas áreas. Um tal sociedade ficaria em certa medida ossificada num conjunto rígido de objetivos sem sentido (porventura essencialmente verbais). Talvez a polícia pudesse encontrar um nicho importante numa tal sociedade, tal como hoje em dia nas sociedades em que a realização dos fins ideais está subordinada a algo chamado “bem público”. O que terá sido esquecido é que seria impossível dar uma boa definição para a verdade científica, para a justiça pela lei, e para a boa arte. O que isto é, em concreto, é simplesmente aquilo que todos os membros de cada grupo relevante procuram delinear em conjunto. A verdade, por exemplo, tem uma dada forma específica apenas na medida em que uma comunidade de cientistas for livre para trabalhar sobre qual é essa sua forma - um trabalho sempre inacabado. O mesmo é verdade para a justiça, no desenvolvimento prático do sistema legal, e para a arte, nas contínuas obras dos artistas. Estes enclaves de liberdade - ciência, lei, arte, e por aí adiante - terão de se consistir em círculos autónomos de homens, livres do controlo público para poderem trabalhar nos seus problemas através de ajustes mútuos e de autoridade; por outras palavras, devem ser, por si próprias, pequenas repúblicas. O público deve respeitá-los o suficiente para que se abstenha de os dirigir em qualquer direção, às vezes chamada de “bem público”. Mesmo a economia, porque é uma economia industrializada, deve ter a sua liberdade para operar, como vimos, por ajustes mútuos dos seus participantes, através dos mecanismos do mercado e dos preços e lucros. Interferir com este sistema de ajustes mútuos pode e deve ser feita, é claro, de tempos a tempos, para fins de grande importância para o público e para a preservação do próprio sistema de ajustes mútuos; mas tentativas para o suplantar integralmente por um planeamento central levariam simplesmente ao

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fim de uma sociedade industrial e a pôr nas mãos de funcionários públicos todo o poder para controlar as atividades de grupos e pessoas, pois todo o capital em circulação (os recursos) seria controlado e distribuído de acordo com os seus juízos. Parece ser claro, sob o conceito de sociedade livre que temos vindo a delinear, que muitos dos assuntos da sociedade seriam geridos pelo desenvolvimento de várias ordens espontâneas - conjuntos organizados que se desenvolvem livremente através de ajustamentos mútuos, mais do que organizações corporativas, todos organizados de cima para baixo segundo a sua estrutura, ou seja, controlados centralmente. Nós argumentamos que um sistema que se desenvolve de baixo para cima, através da mútua interação livre das suas partes (sujeita apenas a uma dedicação livre e comum dos seus participantes ao valor de alguns padrões, princípios e finalidades ideais) é o único sistema social que pode, com todo o sentido ou significado, ser chamado livre. A alternativa é o controlo central de todas os assuntos sociais, de cima para baixo, e estabelecer uma ordem corporativa - o que é a essência do totalitarismo. Um tal sistema de ordens espontâneas é, no entanto, vulnerável a várias objeções sérias. Vejamos quais e tentemos dar uma resposta. Pode-se afirmar que, sob um sistema de ordem espontânea: (1) O bem público fica entregue a decisões pessoais e a motivações individuais. (2) A sociedade fica submetida à regra de uma oligarquia previligiada. (3) A sociedade pode entrar numa deriva para uma direção que ninguém deseja. Como vimos, sob um sistema de ordem espontânea, os indivíduos - quer sejam produtores ou consumidores na economia - envolvem-se numa concorrência aberta com vista ao seu ganho pessoal. Os cientistas, os juízes, os académicos, os clérigos, etc., guiam-se por sistemas de pensamento que promovem o crescimento, a aplicação ou a dessiminação daquilo a que se dedicam. As suas ações são por isso determinadas pelos seus próprios interesses profisssionais, os quais não pretendem especificamente a promoção do bem estar geral da sociedade. Os homens de negócios devem procurar o lucro, o juiz deve encontrar e aplicar a lei, o cientista deve promover a descoberta, pois é isso mesmo que os torna num homem de negócios, num juiz ou num cientista. Cada um é na realidade ignorante de como é que a sua ação vai influenciar o bem público, nem permitiria que o desviassem dos seus deveres profissionais por um tal conhecimento, que não possui. Condenamos com justiça aqueles juízes da Alemanha nazi que permitiram que o seu melhor juízo legal fosse adulterado por aquilo que foi tomado pelo interesse nacional da altura: o renascimento do espirito nacional germânico e a presumida contribuição de bodes expiatórios “temporários” para a frágil e desmoralizada condição alemã. Relativamente à segunda objeção, de que a sociedade ficaria submetida ao do-

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mínio de uma oligarquia privilegiada, deve-se admitir que um sistema de ordem espontânea envolve o seu exercício por várias elites com considerável poder e que podem afectar o público. Sob uma economia de mercado competitiva - geralmente chamada “capitalismo”3 - a elite dos homens de negócios lida com a maior parte da riqueza das pessoas e dirige no dia a dia as atividade dos que a produzem - os trabalhadores. Os interesses sociais confiados a um sistema judiciário independente e à livre persecução da ciência são menos importantes. Na realidade as atividades mentais cultivadas pelos vários membros da profissão da escrita - poetas, jornalistas, filósofos, novelistas, pregadores, historiadores, economistas - são talvez as mais decisivas na conformação dos assuntos públicos e na definição do destino da sociedade. As atividade destas pessoas, nos sistemas de ordem espontânea e livre que acabamos de delinear, podem-lhes dar uma aparência de regime oligárquico empenhado em usurpar o poder público e em curto circuitar as possibilidade de um controlo público democrático e livre. Quando se adicionam as vantagens pessoais que estas pessoas possuem em virtude da sua posição, as suas prerrogativas podem parecer ainda mais invejáveis. A herança da propriedade, acrescida pelas oportunidade adicionais oferecidas aos filhos dos pais mais bem colocados, tende a criar-lhes uma posição de poder e de privilégio hereditário - as posses de uma classe restrita de famílias conhecidas, em termos marxistas, como a burguesia. Num sistema de ordem espontânea o interesse público escapa ao controlo do estado, mas fá-lo submetendo-se ao controlo daquilo que parece na realidade ser uma oligarquia burguesa irresponsável4. No entanto os membros desta oligarquia, embora obtenham um benefício considerável pelo exercício das suas funções, não exercem um controlo em nada parecido com um controlo do tipo planeado ou deliberado. Literalmente ignoram para onde vão e não podem controlar a direção em que os resultados isolados das suas ordens espontâneas se movem no seio da sociedade. Esta direção não é especificamente desejada por eles ou por alguém. Ocorre. Deve ser dito que, neste sistema, a sociedade se move para destinos desconhecidos. 3 É de notar que, no entanto, os mercados, preços, taxas de juro, lucros, etc., são precisos, não pelo capitalismo privado, mas sim pela existência de um modo industrial de produção, que não tem outra maneira de ajustar as suas multiplas partes, separadas umas com as outras, de uma forma significativa, pois não tem outra forma de as avaliar em termos relativos entre si e das vontades atuais dos consumidores atuais. Logo as ditas instituições capitalistas são tão essenciais numa sociedade socialista como numa sociedade capitalista. Uma economia moderna com planeamento central é uma impossibilidade física. Ver Michael Polanyi, The Logic of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1951), pp. 111-53. Ver também Paul Craig Roberts, Alienation and the Soviet Economy (Albuquerque: University of New Mexico Press, 1971), pp. 48-88. 4 É, no entanto, uma ironia interessante que uma classe privilegiada também pareça aparecer nas sociedades não capitalistas – embora aqui seja uma mera caricatura do seu contraponto capitalista. Ver Milovan Djilas, The New Class (New York: Frederick A. Praeger, 1957), pp. 54-56.

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Nesta ordem das coisas, o estado, embora deva pagar aos juízes e subsidiar a investigação cientifica, não pode obrigar os juízes a certas decisões que o estado possa pensar que são do interesse público, nem um estado empenhado na promoção da investigação científica pode designar as investigações que devem ser feitas. Na medida em que os estados tentam dirigir essas inquirições, ou inibem o progresso da ciência em certas direções, ou então obrigam quem recebe tais subsídios a mentirem e aldabrarem. Mesmo se os estados tivessem sucesso em dirigir a investigação numa certa direção, é óbvio que continuaria a ser incapaz de prever ou controlar as descobertas a serem feitas. As consequências sociais de qualquer descoberta são também imprevísiveis. Tanto podem ser muito benéficas como podem ser muito prejudiciais; provavelmente poderão ser ambas as coisas num certo grau. O que tudo isto parece significar está incorporado numa terceira objeção: sob este sistema andamos à deriva. Mas isso dificilmente pode ser tomado como um criticismo do sistema, pois a verdade é que de facto parece que o homem anda necessariamente à deriva. O futuro está para além do nosso controlo, porque está para além da nossa compreensão. Como é que podemos ser capazes de prever descobertas - que são descobertas precisamente porque ninguém as podia ter deduzido (previsto) a partir daquilo que já conhecíamos? Mas as descobertas, como vimos, podem mudar a direção da coisa humana. Se, hoje em dia, uma biblioteca do ano 3000 D.C. caísse nas nossas mãos, temos todas as razões para acreditar que não seriamos capazes de compreender os seus conteúdos. O futuro serão os significados que os homens então tiverem alcançado, mas que os homens de hoje ainda não alcançaram. Não podemos planear quais serão. Precisaríamos de os conhecer antes de os podermos planear. Seja como for, apenas podemos controlar se tivermos objetivos. Assim só podemos controlar o futuro em termos dos nossos objetivos presentes, que são tudo o que temos; mas quando o futuro chegar, os homens lidarão com ele em termos dos objetivos que então tiverem - não daqueles que hoje foram planeados como sendo os que os homens então deveriam ter nessa altura! Não podemos planear agora para algo que então poderá ser que ninguém esteja interessado em planear. O sistema de controlo mútuo de um determinado momento é apenas apropriado para esse momento. O sistema de ajustamentos mútuos deve estar em fluxo contínuo à medida que se move para níveis cada vez mais elevados de significado; cada avanço obriga a uma reavaliação contínua do sistema, à medida que surgem novos fatores e novos sentidos. Atingir-se um novo sentido significa que ainda se podem alcançar mais alguns novos significados; pois a existência deste novo sentido é uma adição aos sentidos que foram compreendidos quando nasceu, e a nossa visão precisa agora ser ampliada para incluir também o aparecimento deste novo significado.

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É claro que o progresso deste sistema de ajustes contínuos e reflexivos não se pode ser conhecer antes de ser conhecido, e portanto não pode ser (lógicamente) planeado. Mas isto parece, na realidade, ser a situação ontológica do homem no mundo; se não for assim para sempre, como na realidade parece ser, pelo menos essa é a sua situação atual. É esta lógica da situação do homem que o impede de controlar a deriva da história. Pode abraçar uma filosofia social que não vê esta lógica e que tenta (futilmente, é claro) controlar o futuro, ou pode admitir a sua impotência em relação ao futuro - os seus limites como mero humano - e abraçar uma filosofia social que assegura as instituições que, de facto, deixam o futuro por planear - e livre para fazer os seus próprios ajustes mútuos. A mesma lógica pode também justificar o sistema oligárquico que vimos estar envolvido numa sociedade livre, pois mostra que as funções sociais que nós temos discutido - ciência, lei, arte, etc. - se podem atingir apenas por ajustes mútuos e independentes. São, numa palavra, tarefas policêntricas. Podem chegar a uma solução apenas se operarem a partir de muitos centros livres e interatuarem continuamente umas com as outras na formação de um sistema de ajustes mútuos. Isto significa que estas tarefas só podem ser feitas através de uma ordem espontânea, não por esforços deliberados de uma organização corporativa. Em termos de um exemplo simples, para assegurar uma ordem desse tipo entre as batatas dentro de um saco que acomode o maior numero possível de batatas, não podemos sentar e planear (ou seja, não podemos organizar corporativamente) onde é que cada batata deve ficar e depois direcionar cada uma delas para essa posição. Basta um ou dois pontapés na saca para que cada batata se movimente e para que mutuamente “se acomodem” com todas as outras batatas, atingindo espontaneamente uma ordem de proximidade. Por analogia, o “pontapé” nos cientistas, juizes, etc. neste sistema de ordem social espontânea são os seus motivos pessoais para a entrada inicial no “movimento” envolvido nessas várias iniciativas. Mas o motivo poderoso que as vai mover para as “melhores” relações mútuas (a ordem espontânea que na realidade se atinge) é o corpo de incentivos padrão que definem a natureza destas atividades. Estes incentivos são um só, os seus deveres profissionais. Logo, independentemente dos motivos privados que motivam uma pessoa para ser, por exemplo, um juiz - ambição pelo estatuto, pelo poder, pelo respeito, pelo dinheiro, ou seja pelo que for - não será um juiz a menos que funcione de acordo com os incentivos padrão da profissão, e não de acordo com os seus próprios motivos privados para entrar na profissão. Estes incentivos padrão são: encontrar a lei relevante e os factos relevantes, e tomar uma decisão que ou siga os precedentes ou que crie então um novo precedente, com fundamentos tais que os seus colegas o possam considerar razoável (ou pelo menos assim o devam considerar).

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As observações anteriores mostram que os indivíduos dessas elites operam a dois níveis: um é o nível inferior da ambição - do poder e do lucro, o outro é o nível superior da obrigação moral. O primeiro pode ser visto como inferior por três razões. Em primeiro lugar, não é tão rico em princípios como o nível moral assente sobre ele; isto é análogo à forma como, tal como notamos antes, a aritmética não é tão rica como o cálculo ou a análise matemática, que em certo sentido assentam sobre ela. Segundo, quando alguém está a operar ao nível moral - “conduzido” por ele - apercebe-se de que o nível moral é “superior”, isto é, merece mais respeito do que o nível da pura ambição, embora se continue a compreender a natureza e a existência desse nível da ambição, e seguramente que não se lhe pode negar atenção. Pelo contrário, se alguém imagina uma operação conduzida estritamente ao nível da ambição, apenas o pode fazer retirando todo o sentido moral dessa visão. Terceiro, o nível moral apenas pode existir se assentar sobre um nível inferior. Este nível inferior proporciona os “pontapés” ou os estímulos que os indivíduos precisam para atuar moralmente. Mas estes estímulos também limitam a realização moral. Tal como os nossos corpos viabilizam os sistemas intelectuais em que vivemos (não podemos pensar sem um cérebro), também limitam as nossas realizações nesses sistemas. É por isso que nunca podemos ser perfeitos em coisa alguma - seja na ciência, na arte, na moral, ou na religião. A noção de perfeição, em qualquer carreira, é uma projeção imaginativa de como seria a operação completa e ilimitada dos princípios que governam esses níveis mentais superiores. Logo as nossas mentes, nas sua operação atual, nunca podem atingir a independência dos nossos corpos, tal como os princípios operacionais (fronteira) de uma máquina não são, na operação da máquina, independentes das leis físicas que governam as partes da máquina. De facto são essas leis físicas que governam as partes que tornam possível a operação dos princípios operacionais. Um automóvel pode-se mover e parar de uma forma controlada e intencional. Pode ser melhorado pelo desenvolvimento de princípios operacionais ou de fronteiras que estruturam cada vez melhor as suas partes, de forma que se possa mover mais depressa e parar mais rapidamente. Podemos dizer que os seus poderes motivadores “privados” (das partes físicas, a que as leis da física e da química dão uma estrutura inteligível) foram organizados da melhor forma com vista a executar essas tarefas. Mas essas mesmas leis também impõem limites a esses resultados. Devido à maneira como a matéria “funciona”, um automóvel nunca pode ser construído para se mover a uma velocidade infinita ou parar instantaneamente, embora este comportamento fosse a projeção imaginária mais completa das intenções no uso da máquina, ou seja, dos seus princípios fronteira, tomados em abstrato relativamente à ação “privada” das partes que essas condições fronteira organizaram. Numa forma perfeitamente análoga a todos estes exemplos, a esfera moral da

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vida de um homem é possível - mas também limitada - pelos sistemas de poder e de lucro e condicionada pelos interesse paroquiais sobre os quais assenta a sua esfera moral. Fizemos notar que as pessoas que assumem as responsabilidades por vários trabalhos sociais devem ter incentivos privados para os induzir a fazer isso e que a sua ação moral deve, portanto, assentar sobre uma base pessoal de poder e de lucro. Mas as ações morais destas elites também se baseiam em organizações de poder e de lucros. As várias elites que conduzem os projetos culturais que elevam a humanidade para um nível acima de todos os outros animais (em termos de conseguir significados que ultrapassam em muito a capacidade de todos esses animais) apenas o podem fazer porque têm o poder de operar livremente nas suas esferas. Pode ser verdade que o publico aceite que só tenham esse poder quando façam dele um uso responsável; ainda mais, o público destruirá os vários poderes dessas elites - e portanto as suas realizações - se tentar supervisionar demasiado de perto o seu uso desses poderes. Por exemplo, um juiz ou tem, ou não tem, o direito de julgar um caso; portanto o seu poder para o fazer ou é, ou não é, reconhecido pelo público. Se o seu poder não é reconhecido, não tem o direito de julgar um caso; e se não existir ninguém na comunidade judicial que tenha este poder ou direito, então não há juízes autênticos - apenas funcionários públicos a julgarem por decreto - e não existe estado de direito em tal comunidade. Como um juiz pode ter poder para dar sentenças - poder que lhe é reconhecido por quem tem poder político - então deve realisticamente fazer, de tempos a tempos, uma pergunta não legal: quem o continuará a apoiar - e aos seus juízos - dado que ele próprio não os pode aplicar? Como disse Dooley, “o supremo tribunal segue as eleições”. Ter um olho pregado na direção das considerações políticas é o preço para um juiz continuar a julgar e a ter a oportunidade de aplicar uma tal justiça, que o público apoie. Mas mesmo assim este ponto não “reduz” os princípios da justiça aos princípios do poder e do lucro. Mesmo os marxistas mantiveram que essas ideologias, uma vez existentes, têm vida por si próprias - têm os seus próprios princípios; no entanto a única realidade que os marxistas aceitam, nesses princípios, é a que reflete os interesses da classe dominante, com o objetivo de manter essa posição. Nós. pelo contrário, apenas reivindicamos que os interesses da classe dominante - ou seja, daqueles que detêm o poder político na sociedade, no momento - pode resultar numa limitação sobre a realização da justiça. Estes interesses não determinam o que deve ser, em cada momento, a justiça ideal. Os juízes determinam este pensamento por ajustes mútuos no pensamento legal, tal como tem acontecido até aos nossos dias. Começamos este capítulo com a pergunta sobre que tipo de sociedade honrará e respeitará os feitos significativos do homem. Descobrimos que é uma sociedade

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formada por um certo número de associações de pessoas livres e auto governadas, que participam por ajustes mútuos na persecução de vários fins, alguns dos quais se pensa serem de um tal valor intrínseco que criam obrigações, por si, ou seja, geram respeito por si próprios. Mais ainda, esses fins - e esses participantes - têm que ter, em geral, o respeito do público antes que o público lhes permita participar nesses tipos de “jogos”, mesmo que daí não seja claramente visível qualquer bem público. Quando existem compromissos deste tipo numa sociedade, então podem existir aí associações livres. Quando não existem, então as associações livres não podem existir, ou pelo menos não podem existir de forma duradoura. Agora precisamos de perguntar se, numa sociedade livre, o público em geral funciona no respeito pelo seu governo. É claro que isto também deve ser feito por ajustes mútuos e autoridade mútua, caso contrário uns cidadãos estariam simplesmente sob a autoridade de outros. A forma que estes ajustes mútuos tomam é persuasão. É uma forma também usada em várias outros sistemas de ajustes mútuos por ordem espontânea, tais como os esforços dos cientistas para que os seus colegas aceitarem as suas reivindicadões sobre uma descoberta importante. Neste caso a persuasão não deve ser confundida com uma “mudança de espírito” comportamental. Uma mera mudança mental pode-se conseguir por truques subliminares, afirmações fraudulentas, ou, em geral, por uma “lavagem ao cérebro” dos comportamentos. Mas não é esta persuasão que é praticada pelos cientistas. Este tipo de persuasão é inteiramente do tipo moral, pois implica um “abrir os olhos” para uma mudança da mente, sem pressões, ameaças, ou truques psicológicos - por outras palavras, feita em face dos factos e representando o que uma pessoa deve pensar quando tem todos os factos à sua disposição e quando ninguém lhe está a tentar esconder seja o que for. Este é, como se disse, o ideal da persuasão no argumento cientifico. Seria também o ideal na persuasão política entre os cidadãos, excepto que nas situações políticas acontecem circunstâncias atenuantes para os desvios relativamente a esse ideal. Na persuasão política o padrão superior de motivação é, talvez, aquilo que é correto ou justo num sentido distributivo; mas isto nunca se pode separar dos motivos de interesse, nem estes, por sua vez, dos motivos do poder. Existem muitos interesses numa sociedade. Nenhum deles pode ser promovido sem poder. Os membros de cada grupo de interesse pensarão portanto que o que é “justo” ou “razoável” para eles terá o poder para promover os seus próprios interesses particulares, e portanto a sua própria necessidade para melhorar ou proteger o seu poder acabará por entrar necessariamente naquilo que pensam ser “justo” ou “razoável”. E aquilo em que os participantes podem estar de acordo como justo ou razoável precisa de ser o que deve decidir os problemas políticos. Seria difícil

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saber o significado de estabelecer cientificamente o que é politicamente “justo”, ou seja, estabelecê-lo procurando a verdade ideal sobre isso. A justiça é sempre um problema prático ou político, não teórico. Mesmo as comunidades de pessoas que prosseguem fins ideais (científicos, artísticos, etc.) não se envolvem numa inquirição científica ou estética sobre a verdade que partilham, quando competem por fundos públicos. Se pudesse existir uma verdade acerca da qual os interesses particulares devessem ter poder, ou devessem ter mais poder do que outros, então a persuasão em assuntos políticos poderia ter a verdade como o seu padrão superior de incentivo, tal como na ciência. Se fosse assim, o interesse público poderia ser conhecido por uma elite, cuja aptidão particular e cuja disciplina fosse inquirir sobre estes assuntos, e então apenas essas pessoas poderiam governar. A persuasão do tipo científico operaria então, mas apenas nos ajustes mútuos feitos entre os membros dessa elite. Mais ninguém teria direitos políticos e se envolveria na persuasão política, ou científica, sobre qualquer tipo de assunto público. Estas pessoas especiais, semelhantes aos filósofos-rei de Platão, teriam que ser isolados dos outros interesses, meramente privados. Como o consentimento público para a posição política preferida dos tais filósofos-rei tinha obviamente que ser renovada todos os dias, os governantes teriam que se empenhar na persuasão política para se manterem no poder. Logo pareceria que a persuasão política é o tipo de ajustamento mútuo essencial para se atingir uma ordem espontânea em qualquer sociedade que obviamente não seja governada por um tirano. Como a persuasão política nunca pode operar como persuasão científica, tendo a verdade como norma superior de incentivo, a persuasão política fará uso de truques, compromissos, acordos e várias formas de conivência, e cada um dos grupos de interesses em competição tentará sempre assegurar tanto poder quanto lhes for possível. De facto deve-o fazer para proteger os seus interesses. No entanto, como vimos quando discutimos a visão utilitária de liberdade, tais circunstâncias podem resultar na desintegração de uma sociedade. Uma comunidade política deve portanto depender de um conjunto fortuito de instituições para evitar que as suas facções se destruam mutuamente (e ao Estado) nos seus esforços para conseguir todo o poder possível. Instituições desse tipo são necessárias, quer exista ou não um respeito público tradicional pelos fins ideais das associações livres que temos vindo a discutir. Estas instituições são largamente fortuitas, pois dificilmente poderiam ser designadas por um grupo de interesses qualquer, a menos que cada um deles estivesse tão inseguro da sua capacidade para governar as coisas no seu próprio interesse que precisasse de lutar por um conjunto de instituições que não pudesse ser capturada, in toto, por qualquer uma das facções existentes.

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SOCIEDADE LIVRE

Se um tal conjunto de instituições se desenvolvesse, teríamos então um muito bom exemplo de uma esfera moral de muito alto nível como base para uma esfera inferior de lucro, poder e interesses paroquiais - tal como Madison e Hamilton claramente esperavam que fosse então o caso para os Estados Unidos. Numa situação como a descrita, algumas condições fronteira, criadas principalmente por um conjunto de instituições, resultariam em que os interesses grosseiros se transformassem, na pratica, em princípios morais, como a “justiça”. Devemos ainda recordar que as chamadas operações políticas - para obter um lugar ou para influenciar legislação - podem na realidade permanecer muito amorais numa sociedade como esta. Mas, no entanto, o todo poderia operar tão bem quanto fosse possível esperar, se o todo funcionasse assegurando uma distribuição adequado do poder, para manter as diversas facções ativas, e se os vários sistemas de ordem espontânea permanecessem suficientemente bem estabelecidos para que deixassem esses sistemas crescer por ajustes mútuos entre os seus membros. No entanto, apercebemo-nos que está a operar bem só se conseguirmos abandonar os nossos perfecionismos morais profundamente arraigados - uma das causas, recordemos, da inversão moral. É claro que podemos fazer isso vivendo por completo na visão aqui desenvolvida em particular, se o nível moral existir nas fundações de um nível inferior, essencialmente não moral, e este último deve inevitavelmente pôr limites ás realizações do nível superior. Não é difícil ver o significado conceptual e a validade ontológica deste princípio, mas poderá ser mais difícil vivermos com ele. Uma vez compreendida a importância dos limites necessários à nossa capacidade para construir uma sociedade perfeita, e que possamos aí viver, então vamos refrear todos os tipos de ações radicais contra o estabelecimento da justiça e da fraternidade. Reconheceremos que podemos reduzir privilégios injustos, mas só por etapas graduadas e nunca completamente. Não existe uma panaceia para isso. Só podem ser tratados um de cada vez, nunca em conjunto, pois temos de usar o poder do sistema atual para fazer qualquer mudança. Tentar reformar toda as estruturas do poder de uma vez deixar-nos-ia sem qualquer estrutura de poder para usar no nosso projecto. Em qualquer caso, seríamos capazes de ver que a renovação moral absoluta apenas poderia ser tentada por um poder absoluto e que uma força assim tirânica destruiria toda a força moral do homem, mas não a renovaria. Também reconhecemos que uma sociedade livre e liberal como a que esposamos é uma sociedade conservadora. A nossa insistência que a independência do pensamento envolvido na ciência, arte e profissões legais é um direito inviolável corresponde, na realidade, a subscrever um tipo de ortodoxia que embora não

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SIGNIFICAR

especifique uma lista de artigos fixos de fé, é vista como imutável. Por outras palavras, não compreenderemos que a nossa sociedade seja “aberta” no sentido de esmagar estes enclaves independentes de pensamento e de ação; admitiremos livremente que esta ortodoxia não se baseia no poder coercivo do Estado mas financia-se pelos beneficiários da função pública e da propriedade - em conjunto com todas as injustiças e imperfeições que tais arranjos possam trazer. Percebemos portanto que temos uma fidelidade moral para com uma sociedade manifestamente imperfeita, se não mesmo uma sociedade imoral; e descobriremos, paradoxalmente, que o nosso dever reside no serviço a ideais que, no entanto, sabemos que possivelmente não podemos atingir. É contudo neste ponto que podemos ter alguma hesitação. Como homens, parece que precisamos de um propósito baseado na eternidade, ao contrário dos outros animais. A verdade certamente que faz isso, assim como os nossos outros ideais. Criamos todo um firmamento de valores que compõem o nível cultural da vida que habitamos. Estas obras da imaginação são como uma tremenda explosão de glória. Mas no entanto têm as suas raízes no nível fisiológico inferior do homem, onde o homem é um mero animal entre animais. Na realidade, muita desta explosão de glória é devida às estruturas puramente fisiológicas que viabilizam a nossa linguagem. Mas essas obras da imaginação ascendem a partir dessas estruturas inferiores, como vimos neste livro, para níveis com significados autónomos e cada vez mais compreensivos - e não vislumbramos o fim disso. Há no entanto outro nível de realização significativa, mediando entre esses níveis da cultura do homem e os seus níveis fisiológicos. É o nível das suas associações políticas. Se os homens criam uma fronteira para as suas vidas animais, que exibe princípios morais e políticos do tipo que temos vindo a esboçar neste capitulo, então todos os outros níveis de significado que temos vindo a tratar neste livro - a ciência, a arte, a religião e semelhantes - convertem-se em possibilidades. Se os homens não criam nem mantêm este tipo de fronteira, então o desenvolvimento destes outros níveis superiores deve ficar em dificuldades - ou morrer. No entanto, tal como é verdade com outras obras da imaginação do homem, os domínios moral e político têm os seus próprios princípios: e se estes forem projetados muito para além das suas ligações essenciais com os níveis inferiores do poder e do lucro, onde têm as suas bases, então levam à formação de uma imagem mental - um sonho utópico - de um mundo a operar apenas em termos desses princípios superiores: justo, e puro, e livre de qualquer contaminação pelos elementos grosseiros de onde vieram. A perfeição moral de um tal mundo acena-nos e deixa-nos insatisfeitos com as nossas próprias limitações morais e as limitações das nossas sociedades. Talvez seja claro que o apelo moral da cristandade tenha deixado em nós uma

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SOCIEDADE LIVRE

essência que nos faz arder com uma tal fome e sede de retidão. Se é assim, devenos ser possível encontrar nessa mesma cristandade o antídoto para o veneno do perfecionismo moral; porque o que essa religião nos tem dito é que nós somos inescapavelmente imperfeitos e só pela fé e pela confiança na graça abrangente de Deus é que nós próprios nos projetamos na obra suprema da imaginação - o Reino de Deus - em que habitamos na paz e na esperança da perfeição, que é só de Deus, e onde nós podemos, de uma forma totalmente inexplicável e transnatural, encontrar por fim a nossa fome e sede de retidão satisfeitas - no meio de todas as nossas imperfeições. Como São Paulo nos diz que o seu Deus lhe disse: “Não removerei a tua enfermidade. A minha força torna-se perfeita na fraqueza”. Aqueles de nós que não podem viver assim, através da religião, sublimam as suas insatisfações pelas nossas limitações morais - e da nossa sociedade - mas têm pela frente uma tarefa mais difícil. Precisamos de aprender a sofrer com paciência a angústia que essas imperfeições nos causam. Um reconhecimento firme de que os demónios que impedem o nosso desenvolvimento moral completo são precisamente os mesmos elementos que são a fonte do poder que dá origem aos sucessos morais que vemos acerca de nós, sejam eles quais forem, pode-nos eventualmente conduzir a uma tolerância para com esses elementos inferiores semelhante à tolerância que temos para com um motor de combustão interna: é ruidoso e mal cheiroso, e por vezes recusa-se a arrancar, mas, mesmo assim, é o que nos leva para onde precisamos de ir. Devemos de algum modo aprender a compreender e assim a tolerar - não a destruir - a sociedade livre. É o único motor político até agora encontrado que nos liberta numa direção cada vez mais mais rica e mais cheia de significado, ou seja, que expande sem limites o firmamento dos valores em que habitamos e que, por si só, torna o período breve da nossa existência moral verdadeiramente significativo através da persecução de todas essas coisas que se relacionam com a eternidade.

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NOTAS



NOTAS

Capítulo Um 1. B. F. Skinner, Beyond Freedom and Dignity (Nova Iorque: Alfred A. Knopf, Inc., 1971). 2. Baron d’Holbach, The System of Nature, trad. B. D. Robinson {Boston: J. P. Mendum, 1853), pp. 153, ix-x. 3. W. E. H. Lecky, History of the Rise and Influence of the Spirit of Rationalism in Europe, 2 vols. (Nova Iorque: Appleton, 1878), 1:128. 4. Hermann Rauschning, The Revolution of Nihilism, trad. Ernest W. Dickes {Nova Iorque: Longmans, Green, 1939). 5. V. I. Lenin, ‘Where to Begin?” (1901) e “What Is to Be Done?” (1902) in Collected Works, ed. Victor Jerome, trad. Joe Fineberg e George Hanna (Moscovo: Foreign Language Publishing House, 1961), 5:23-24, 473-84, and 514-18. 6. Konrad Heiden, Der Fuehrer, trad. Ralph Manheim (Boston: Houghton Mifflin, 1944), pp. 145-50.

Capítulo Dois 1. D. O. Hebb, ‘The Problem of Consciousness and Introspection”, Brain Mechanisms and Consciousness, ed. J. F. Delafresnaye (Oxford: Basil Blackwell, 1954), p. 404; L. S. Kubie, ‘”Psychiatric and Psychoanalytic Considerations of the Problem of Consciousness”, ibid., p. 446; K. S. Lashley, “Dynamic Processes in Perception”, ibid., p. 424. 2. Clyde Kluckhohn e Dorothea Leighton, The Navaho (Cambridge. Mass.: Harvard University Press, I960), p. 177. 3. Gordon Guide, What Happened in History (Baltimore: Penguin Books 1961), p. 16. 4. R. Pipes, “Russia’s Intellectuals,” Encounter 22 (1964): 79-84. 5. C. S. Lewis, The Abolition of Man (Nova Iorque: Macmillan, 1947), pp. 28-33. 6. Leslie Paul, The Annihilation of Man (Nova Iorque Harcourt, Brace, 1945), p. 143.

Capítulo Três 1. Gilbert Ryle, The Concept of Mind (Londres: Hutchinson, 1949), pp. 61, 23, 46, 58.

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SIGNIFICAR

2. M. Merleau-Ponty, Phenomenology of Perception, trad. Colin Smith (Londres: Routledge, 1962), p. 185. 3. Ver, por exemplo, B. F. Skinner, “Behaviorism at Fifty”, Behaviorism and Phenomenology, ed. T. W. Waon (Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. S2-94. 4. M. Polanyi, Personal Knowledge {Chicago: University of Chicago Press. 1956; rev. ed., Nova Iorque: Harper Torchbooks, 1964), pp. 370-71. 5. Noam Chomsky, revisão por B. F. Skinner, Verbal Behavior, Language 35 (1959): 26-58, 6. A minha teoria de niveis irredutíveis remonta ao meu Personal Knowledge e tem sido desenvolvida desde aí em várias etapas, encontrando-se uma revisão no meu livro The Tacit Dimension (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1966). Ver também o meu artigo “Life Transcending Physics and Chemistry” (1967). Uma aplicação da teoria à relação entre o corpo e o espírito aparece no meu artigo “The Structure of Consciousness” (1965). Ambos os artigos foram republicados em Knowing and Being, ed. Marjorie Grene (Chicago: University of Chicago Press, 1969). F. S. Rothschild antecipou a minha conclusão que a mente é o significado do corpo. Os seus escritos datam desde 1930 e aparecem sumariados em Das Zentralnervensystemals Symbol des Erlebens (Basel e Nova Yorque: K. Karger. 1958), com um breve sumário em ingles em 1962: “Laws of Symbolic Mediation in the Dynamics of Self and Personality,” Annals of the New York Academy of Sciences 96 (1962): 774-84. Ele desenvolveu largamente esta ideia na psiquiatria e na neurofisiologia, onde sou incompetente para o seguir.. 7. I. Kant, Critique of Pure Reason, trad. Norman Kemp Smith (Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1929), p. 183 (p. A141). 8. F. Waismann, “Verifiability,” Proceedings Aristotelian Society, supp. 19 (1945): 121-33. 9. Na sua contribuição para o Symposium on Logic and Psychology na Convention of the American Psychological Association em 1967, Quine atribuiu a identificação de especies de uma classe a poderes nativos por identificar e também mostrou que as caracteristicas gerais de uma classe não podem ser demonstrados. Considerou isto como um caso de inescrutabilidade das categorias. Ver também W. V. O. Quine, Word and Object (Cambridge e Nova Iorque: The Technology Press of The Massachusetts Institute of Technology and John Wiley & Sons, Inc., I960), pp. 60-80. 10. J. S. Mill, “A System of Logic”, Ratiocinative and Inductive (Nova Iorque: Harper & Bros., 190O), pp. 332-72. C. G. Hempel, Scientific Explanation, Forum Philosophy of Science Series (Washington, D.C.: U.S. Information Agency, 1964), C. G. Hempel and P. Oppenheim, “Studies in the Logic of Explanation”, Philosophy of Science 15 (1948): 13575. E. Nagel, The Structure of Science (Nova Iorque: Harcourt, Brace & World, 1961). 11. M. Scriven, “Explanation, Prediction and Laws”, Minnesota Studies in the Philosophy of Science, ed. Herbert Feigl et al. (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1962), 3:172. 12. M. Polanyi, Science, Faith and Society (London: Oxford University Press, 1946; reprinted, Chicago: University of Chicago Press, 1964), p. 24

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NOTAS

13. H. Poincaré, Science et methode (Paris: Flammarion, 1908). J. Hadamard, The Psychology of Invention in the Mathematical Field (Princeton: Princeton University Press, 1945). G. Polya, How to Solve It (Princeton: Princeton University Press, 1945). 14. J. B. Conant, Harvard Case Histories in Experimental Science (Cambridge: Harvard University Press, 1957), T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions (Chicago: University of Chicago Press, 1962). L. K. Nash, The Nature of the Natural Sciences (Boston: Little, Brown, 1963). W. Whewell, Philosophy and Discovery (Londres: John W. Parker, 1890). 15. Science et méthode, pp. 50-63.

Capítulo Quatro 1. Edward Sapir, Culture, Language, and Personality (Berkeley: University of California Press, 1956), pp. 8-15. Bertrand Russell, An Inquiry Into Meaning and Truth (Nova Iorque: W. W. Norton & Co., 1940), p. 84. Susanne K. Linger, Philosophy in a New Key (Cambridge: Harvard University Press, 1942). pp 58-59. Erwin W. Strauss, Phenomenological Psychology (Nova Iorque: Basic Books, 1966), pp. 183-84. 2. Aristotle, Basic Works, ed. Richard P. McKeon, trad. Ingram Bywater (Nova Iorque: Random House, 1941), pp, 1479 (1459a), 1476 (1457b). 3. Owen Barfield, “Poetic Diction and Legal Fiction,” in Essays Presented to Charles Williams (Oxford: Oxford University Press, 1947), p. 111. 4. Basic Works, p. 1479 (1459a). 5. I. A. Richards, The Philosophy of Rhetoric (Nova Iorque e Londres: Oxford University Press, 1936), p. 127. 6. Max Black, Models and Metaphors (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1962), pp. 45, 38, 39, 46. 7. Andre Breton, Les Vases communicants (Paris: Gallimard, 1955), p. 148. English translation from Richards, The Philosophy of Rhetoric, p. 123. 8. Ezra Pound, “In a Station in the Metro”, Selected Poems, ed. T. S. Eliot (Londres: Faber & Gwyer, 1928), p. 89. 9. W. B. Yeats, “Three Movements”, The Collected Poems of W. B. Yeats (Nova Iorque: Macmillan, 1956), p. 236. 10. T. S. Eliot, “East Coker”, Part IV, The Complete Poems and Plays (Nova Iorque: Harcourt, Brace, 1952), p. 127. 11. William Shakespeare, Richard II, act 3. scene 2. 12. É claro que há uma outra metáfora escondida dentro desta metáfora – o uso

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SIGNIFICAR

metafórico de um unguento no desempenho daquilo que chamamos um rito ou um ritual (num capitulo posterior discutiremos o tipo de significado que os rituais atingem). O poder irrevogável do rei foi-lhe conferido por um rito envolvendo o uso de um balsamo. Esta noção de um ritual de ordenação opera como um indício subsidiário (em particular, a compreensão tácita do direito divino do rei ao seu reino) no sentido global que a imaginação dá à metáfora; mas não devemos permitir que esta característica da metáfora possa obscurecer o significado literal, naturalista que as próprias palavras têm. De outra forma uma metáfora não pode fazer o seu ponto. As palavras que nos são apresentadas tratam o balsamo como um fluido de algum tipo que não se pode lavar, mesmo por toda a dimensão e poder dos mares. O que sugere uma relação natural ilógica (mas surpreendente) entre estes dois fluidos que, como tal, é vazio de qualquer significado metafórico que o balsamo possa ter no ritual. Tal absurdo naturalista é essencialmente do tipo de sentido que a nossa imaginação cria numa metáfora e através dela. 13. William Empson, The Structure of Complex Words (Londres: Chatto & Windus, 1951), pp. 546-49. 14. Charles Baudelaire, “Les Fleurs du Mal», Oeuvres Completes de Charles Baudelaire, ed. Jacques Crepet, 19 vols. (Paris: Louis Conard, 1930), 1:15. 15. Dom Moraes, My Son’s Father (Londres: Seeker & Warburg, 1968), p. 191. 16. I. A. Richards. Principles of Literary Criticism (Nova Iorque: Harcourt, Brace, 1942), pp. 145-46.

Capítulo Cinco 1. I. A. Richards, Principles of literary Criticism (Nova Iorque: Harcourt, Brace, 1942), p, 110. 2. Ibid., p. 145. 3. Susanne Langer também o assinala, mostrando que o distanciamento e outra coisa diferente são essenciais numa obra de arte. Ver Feeling and Form (Londres: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1953), pp. 45, 46. 4. lmmanuel Kant, Critique of Aesthetic Judgement, trad. James C. Meredith (Oxford: Clarendon Press, 1911), p. 49. Conrad Fiedler, On Judging Works of Visual Art (Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1949), p. 60; ver também pp. 52, 57. 5. Principles of Literary Criticism, p. 237. 6. T. S. Eliot, “The Metaphysical Poets”, Selected Essays (Nova Iorque: Harcourt, Brace, 1932), p. 247. 7. E. H. Gombrich, Art and Illusion (Londres: Phaidon Press, 1962), p. 236. (A data da obra de Quartremère de Quincy é 1823.)

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NOTAS

8. Irving Rock and Charles S. Harris, “Vision and Touch”, Scientific American 216 (May 1967): 96-104. H. Kottenhoff, L. E. H. Lindai, and S. E. R. Mable, “Optical and Mechanical Devices for Testing Susceptibility to Motion Sickness”, Perceptual and Motor Skills, 7 (1957): 221-22. 9. M. H. Pirenne, «Les Lois de l’optique et la liberté de l’artiste», Journal de psychologie normale et pathologique 60 (1963): 151-66.

Capítulo Seis 1. H. W. Janson, History of Art (Nova Iorque: Harry N. Abrams 1962) p. 11. 2. Ibid., p. 10. 3. Pierre Laplace, A Philosophical Essay on Probabilities, Trad. F. W. Truscott e E. L. Emory (Nova Iorque: John Wiley & Sons, 1902), p. 4.

Capítulo Sete 1. E. H. Gombrich, Art and Illusion (Londres: Phaidon Press, 1962), pp. 85-86, 91-101. 2. Charles Baudelaire, Oeuvres completes de Charles Baudelaire, ed. Jacques Crepet, 19 vols. (Paris: Louis Conard, 1930), 1:7. 3. Arthur Rimbaud, “Bateau ivre”, Oeuvres de Arthur Rimbaud (Paris: Mercure de France, 1937), p. 85. A tradução inglesa, na versão original desta obra, era de Michael Polanyi. A versão portuguesa desta edição é da responsabilidade do tradutor. 4. Arthur Rimbaud, Letter to Paul Demeny, 15 May 1871, in Complete Works and Selected Letters, ed. e trad. Wallace Fowlie (Chicago: University of Chicago Press, 1966), p. 307. 5. Leo Tolstoy, What is Art?, trad. Aylmer Maude (Indianapolis: Library of Liberal Arts, i960), pp. 76-99 (chap. 10). 6. I. A. Richards, Principles of Literary Criticism (Nova Iorque: Harcourt, Brace, 1942), p. 293. 7. Alain Robbe-Grillet, For a New Novel, trad. Richard Howard (Nova Iorque: Grove Press, Inc., 1965), pp. 154-568. Helmur Kuhn, Wesen und Wirken des Kuntstuerks (Munique: Kosel-Verlag, I960), pp. 67, 68. A tradução inglesa, na versão original desta obra, era de Michael Polanyi. A versão portuguesa desta edição é da responsabilidade do tradutor 9. Ibid., pp. 67-73. See also Schriften zur Asthetik (Munique: Kosel-Veriag 1966), p. 271.

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Capítulo Oito 1. Erwin W. Strauss, Phenomenological Psychology (Nova Iorque: Basic Books, 1966), pp. 144, 142. 2. Mircea Eliade, Myth and Reality: World Perspectives, trad. Wilhard R. Trask (Nova Iorque: Harper & Row, 1963), pp. 5-6. 3. Ibid., p. 11. 4. Mircea Eliade, Images and Symbols, trad. Philip Mairet (Londres: Harvill Press, 1961), p. 57. 5. Mith and Reality, p. 140; see also p. 139. 6. Ibid., p. 19. 7. Ibid., p. 18. 8. Ernst Cassirer, The Philosophy of Symbolic Forms, trad. Ralph Manheim, 3 vols. (New Haven: Yale University Press. 1955) 2:77-78. 9. Mith and Reality, p. 19. 10. Images and Symbols, p. 5911. Ibid., p. 12. 12. Myth and Reality, pp. 32-33-13- Ibid., p. 143 13. Ibid., p. 143 14. Toshimitsu Hasumi, Zen in Japanese Art, trad. John Petrie (Londres: Routledge, 1962), p. x. 15. Mircea Eliade, The Two and the One, trad. J. M. Cohen (Londres: Harvill Press, 1965), pp. 38-89. 16. Ibid., pp. 80-B1. Eliade refere-se ao uso do termo coincidentia oppositorum por C. G. Jung como essencial para a descrição do processo de individualização e o fim último de toda a actividade psíquica. O que Eliade referee em Jung pode-se encontrar em C. G. Jung, Psychology of the Transference, The Collected Works of C. G. Jung, ed. Herbert Read, Michael Fordham, and Gerald Adler, trad. R. F. C. Hull, 17 vols. (Nova Iorque: Pantheon Books, 1954). 16:163-321, e em Mysterism Coniunctionis, Collected Works [Princeton: Princeton University Press, 1970), vol. 14. 17. Hasumi, Zen in Japanese Art, p. 14. 15. Mircea Eliade, Myths, Dreams and Mysteries, trad. Philip Mairet (Nova Iorque: Harper & Bros., I960), pp. 195-96.

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NOTAS

Capítulo Nove 1. Lucien Levy-Bruhl, How Natives Think, trad. Lilian A. Clare (Londres: Allen & Unwin, 1926), pp. 352-58. 2. Claude Levi-Strauss, The Savage Mind (Londres: Weidenfeld & Nicolson, and Chicago: University of Chicago Press, 1966), pp. 267-69 3. Immanuel Velikovsky, Worlds in Collision (Nova Iorque: Macmillan, 1950). 4. Ralph E.Juergens, “Minds in Chaos: A Recital of the Velikovsky Story,” American Behavioral Scientist 7 (1963): 4-17. Livio C. Stecchini, “The Inconstant Heavens: Velikovsky in Relation to Some Past Cosmic Perplexities,” ibid., pp. 19-44. Alfred de Grazia, ‘The Scientific Reception System and Dr. Velikovsky,” ibid, pp. 45-49, and The Velikovsky Affair: The Warfare of Science and Scientism (Nova Iorque: New York University Books, 1966). 5. Michael Polanyi, “The Growth of Science in Society,” Minerva 4 (summer 1967): 533-45, e Criteria for Scientific Development, Public Policy, and National Goals, ed. Edward Shils (Cambridge, Mass.: Massachusetts Institute of Technology Press, 1968), pp. 187-996. Ernst Cassirer, The Philosophy of Symbolic Forms, trad. Ralph Manheim, 3 vols. (New Haven: Yale University Press, 1955), 2:40-42. 7. Ibid., pp. 49-51. 8. See Levy-Bruhl, How Natives Think, p. 779. Ibid., pp. 78-79. 10. Mircea Eliade, Images and Symbols, trad. Philip Mairet (Londres: Harvill Press, 1961), p. 59.

Capítulo Dez 1. Acerca disto é interessante notar como John Dewey distinguiu as suas visões relativamente às visões do “ateísmo militante”. Apontou para a falta de “piedade natural” nesse ateísmo, descrevendo-o como a atitude de alguém que pensa de si próprio como “uma lama isolada e só… a viver num mundo hostil e indiferente e lançando assopros de desafio”. Dewey protestava no entanto que a natureza “(não só) produz ocasiões de discórdia e de confusão (como também) seja o que for de reforço e direção”. É assim óbvio que acreditava que a natureza não só nos lega os nossos problemas como também nos dá os recursos para a sua solução. É óbvio que esta convicção é essencialmente uma “fé”, pois ninguém pode saber que um problema, que ainda não foi resolvido, tenha já sido resolvido. Mas é também uma fé essencial se alguém jamais alguém encontrar as soluções para os problemas. Só as podemos encontrar procurando, e só podemos procurar se acreditarmos que

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SIGNIFICAR

há alguma coisa para encontrar – o que é acreditar que não vivemos num universo “hostil” mas antes num universo onde podemos confiar no seu apoio. E isto, dizia Dewey, é essencialmente uma “atitude religiosa”. (Ver John Dewey, A Common Faith (New Haven: Yale University Press, 1934], pp. 52-54.) 2. Aristotle, Basic Works, ed. Richard P. McKeon, trad. Ingram Bywater (Nova Iorque: Random House, 1941), p. 1482 (1460a), 3. William James, “The Will to Believe,” em The Will to Believe and Other Essays (Nova Iorque: Longmans, Green, 1898), p. 25. 4. Jean-Paul Sartre, Existentialism, trad. Bernard Frechman (Nova Iorque: Philosophical Library, 1947), p. 26.

Capítulo Onze 1. Charles Saunders Peirce, Collected Papers, ed. Charles Hartshome e Paul Weiss, 6 vols. (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, I960), 7:15-20 (6.13-24), 25-27 (6.30-34), 43-44 (6.62-64), 132-40 (6.185-206). William James, A Pluralistic Universe (Nova Iorque: Longmans, Green, 1920), pp. 30-34, 303-8, 321-28. 2. Alfred North Whitehead, Adventures of Ideas (Nova Iorque: The Free Press, 1967), pp. 129-30, 146-50. 3. Ver, por exemplo, C. F. A. Pantin, The Relation between the Sciences (Cambridge, Eng.: At the University Press. 1968), pp. 35-45, 53. 4. G. W. von Leibniz, “The Principles of Nature and Grace”, pp. 1039-40 em Philosophical Papers and Letters, trad. e ed. Leroy E. Loemker (Chicago: University of Chicago Press, 1956). 5. H. Spemann, Embryonic Development and Induction (New Haven: Yale University Press, 1938). Paul Weiss, Principles of Development (Nova Iorque: Henry Holt, 1939). C. H. Waddington, The Strategy of the Genes (Londres: Alien & Unwin, 1957), e New Patterns in Genetics and Development (Nova Iorque: Columbia University Press. 1962). 6. Ver, por exemplo, um livro recente editado por Howard H. Pattee, Hierarchy Theory (Nova Iorque: George Braziller, 1973). 7. George Santayana, Reason in Religion (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1946), p. 5. 8. George Santayana, Obiter Scripta, ed. Justus Buchler e Benjamin Schwarth (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons. 1936), p. 296. 9. James, The Will to Believe and Other Essays, pp. 25-27-

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NOTAS

Capítulo Doze 1. Ver Michael Polanyi, Science, Faith, and Society (Chicago: University of Chicago Press, 1964; primeira edição, 1946), para um primeiro tratamento sobre os fundamentos tradicionais da ciencia e o culto da originalidade. Estas ideias foram parcialmente desenvolvidas ainda antes, em ensaios escritos nos anos de 1940 e depois publicados em The Logic of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1951), e posteriormente formaram as bases de Personal Knowledge {Chicago: University of Chicago Press, 1958). Análises mais recentes destes assuntos podem-se encontrar em “Science: Academic and Industrial”, Journal of the Institute of Metals 89 (1961): 401-6; em “The Republic of Science”, “The Potential Theory of Adsorption,” and “The Growth of Science in Society”, incluidos em Knowing and Being, ed. Marjorie Grene (Chicago: University of Chicago Press, 19&9); e no livro The Tacit Dimension (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1966). 2. Esta visão foi expressa de forma persuasiva por K. R. Popper; por exemplo em Logic of Scientific Discovery (Nova Iorque: Basic Books, 1959}, p. 279, da seguinte forma: “Mas estas nossas conjunturas ou “antecipações” maravilhosamente imaginativas e audaciosas são cuidadosa e sobriamente controladas por testes sistemáticos. O nosso método de investigação não é defende-las, para provar que estão corretas. Pelo contrário, tentamos subverte-las. Usando todas as armas da nossa lógica, matemática e as armas da técnica, tentamos provar que as nossas antecipações são falsas - para adiantar, na sua esteira, novas antecipações injustificadas e injustificáveis, novos “preconceitos imprudentes e prematuros” como Bacon lhes chamou com ironia.’’ Popper chega mesmo ao ponto de manter (na p. 419) que os cientistas escolhiam a hipótese menos provável para investigar, pois seria a mais fácil para refutar! Uma tal suposição anda próximo do ridículo, mesmo que “improvável” não signifique “implausível”, para ele. Popper pensa que os cientistas escolhem a hipótese plausível mais geral para investigar. Mas ao faze-lo, estão de facto a escolher a menos provável. Ele pensa que a hipótese plausível mais geral é a menos provável porque, sendo a mais geral, será a que está mais distante dos dados sensoriais que poderiam ser evidencia a favor ou contra ela. Mas tendo notado esta circunstância de mera coincidência acerca da hipótese plausível mais geral, Popper continua depois a supor que os cientistas não a escolhem simplesmente porque é a hipótese plausível mais geral de que se podem lembrar, mas antes porque é a mais arriscada de que se podem lembrar. Não só põe o carro antes dos bois, como os animais forem atrelados completamente ao contrário.

Capítulo Treze 1. James Madison, “Federalist Paper No. 10’’, Selections from the Federalist Papers, ed. Henry S. Commager (Nova Iorque: Appleton-Century Crofts, 1949), p. 14. 2. Adam Smith, The Wealth of Nations (New York: Modern Library, 1937): pp. 248-50, 73440.

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SIGNIFICAR

3. É de notar que, no entanto, os mercados, preços, taxas de juro, lucros, etc., são precisos, não pelo capitalismo privado, mas sim pela existência de um modo industrial de produção, que não tem outra maneira de ajustar de forma significativa as suas multiplas partes, separadas umas com as outras, pois não tem outra forma de as avaliar entre si e com as vontades dos consumidores atuais. Logo as ditas instituições capitalistas são tão essenciais numa sociedade socialista como numa sociedade capitalista. Uma economia moderna com planeamento central é uma impossibilidade física. Ver Michael Polanyi, The Logic of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1951), pp. 111-53. Ver também Paul Craig Roberts, Alienation and the Soviet Economy (Albuquerque: University of New Mexico Press, 1971), pp. 48-88. 4. É, no entanto, uma ironia interessante que uma classe privilegiada também pareça surgir nas sociedades não capitalistas – embora aqui seja uma mera caricatura do seu contraponto capitalista. Ver Milovan Djilas, The New Class (Nova Iorque: Frederick A. Praeger, 1957), pp. 54-56.

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NOTAS BIBLIOGRテ:ICAS



NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Os capítulos deste livro foram adaptados pelos autores a partir dos seguintes trabalhos de Michael Polanyi, publicados e por publicar:

Capítulo 1. “Sixty Years in Universities.” Lição não publicada na University of Toronto, 24 Novembro 1967. The Logic of Liberty. Chicago: University of Chicago Press, 1951. Capítulo 7.

Capítulo 2. “Sixty Years in Universities.” “On the Modern Mind.” Encounter 24 (May 1965):12-20. “The Study of Man.” Quest (Bombay) no. 29 (April-June 1961): 26-35. “Logic and Psychology.” American Psychologist 23 (January 1968): 27-43.

Capítulo 3. “Logic and Psychology.” “On the Modern Mind.”

Capítulo 4. “From Perception to Metaphor.” Lição não publicada, University of Texas, e University of Chicago, Fevereiro e Maio 1969 ”Meaning.” Lição não publicada, University of Chicago. Abril 1970

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SIGNIFICAR

Capítulo 5. “Works of Art.” Lição não publicada, University of Texas e University of Chicago, Fevereiro and Maio, 1969 ”Meaning.”

Capítulo 6. “Works of Art.” ”Meaning.”

Capítulo 7. “Visionary Art” Lição não publicada, University of Texas e University of Chicago, Fevereiro and Maio 1969

Capítulo 8. “Visionary Art.” “Myths, Ancient and Modern,” Lição não publicada, University of Texas e University of Chicago, Fevereiro e Maio 1969

Capítulo 9. “Myths, Ancient and Modern.”

Capítulo 10. “Acceptance of Religion.” Suplemento não publicado às lições dadas nas University of Texas e University of Chicago, Fevereiro e Maio 1969. ”Meaning.”

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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Capítulo 11. “Expanding the Range.” Lição não publicada, University of Texas, Abril 1971

Capítulo 12. «Honor.’ Lição não publicada, University of Texas, Abril 1971. The Tacit Dimension. Garden City, N.Y.: Doubleday & Co., Inc., 1966. Pages 63-79.

Capítulo 13 The Logic of Liberty. Capítulos 3, 8, 9, and 10. Personal Knowledge. Chicago: University of Chicago Press, 1956. Capítulo 7.

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