Revista Redescricoes ano VII, n3, 2016

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano 7, número 3, 2016 ISSN: 1984-7157 FOTO DE CAPA DESTA EDIÇÃO: Título: Estátua de Platão em Atenas. Resolução original: 303 x 202 Foto: Markara / Shutterstock.com Disponível em: http://www.infoescola.com/filosofos/platao/

GT – Pragmatismo e Filosofia Americana REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. Os artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Paulo Ghiraldelli Jr. – UFRRJ e Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) Susana de Castro – UFRJ Adriano Naves de Brito – Unisinos Gabriel Palumbo (Universidade de Buenos Aires – UBA) Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo Luiz Eduardo Soares – UERJ Jurandir Freire Costa – UERJ Cerasel Cuteanu – CEFA James Campbell – Universidade de Toledo Leoni Maria Padilha Henning – Universidade Estadual de Londrina Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” Inês Lacerda Araújo – PUC-PR Heraldo Silva – UFPI Maria José Pereira – UCG Vera Vidal – Fiocruz Ronie Silveira – UNILAB Reuber Scofano – UFRJ Cristiane Maria Marinho – UECE Narbal de Marsillac – UFPB Baptiste Grasset – UNIRIO Ricardo Corrêa de Araújo – UFES Marcelo Barreira – UFES Edna Maria Magalhães do Nascimento – UFPI Aldir Filho – UFMA Juliano Pessanha – CEFA e USP Marcos C. Lopes (Unilab) Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Filosofia ISSN 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr, Frederico Graniço e Ricardo Vinícius Ibañez Mantovani. Editores Executivos: Paulo Francisco M. Ghiraldelli e Francielle Maria Chies. Editores Adjuntos: Naiana Carvalho da Cunha, Hugo Lopes de Oliveira, Diego Aquino Horta, Giovane Martins Vaz dos Santos.

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano 7, número 2, 2016

Sumário Editorial ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 4

Artigos A fortuna e os espaços de animação---------------------------------------------------------------------------- 6 (Paulo Ghiraldelli Jr.) A linguagem e o pensamento sob uma perspectiva do Crátilo de Platão e de outros autores--22 (Barbara Melissa Barbosa Marcondes de Almeida) Sociabilidade, lei e poder civil em Hugo Grotius ----------------------------------------------------------37 (Ricardo Vinícius Ibañez Mantovani) Bota a fala: cantando o futuro, reconhecendo o passado -----------------------------------------------56 (Marcos Carvalho Lopes)

Tradução Rolf Rauschenbach - Culturas políticas pós-convencionais via processos de democracia direta: considerações teóricas baseadas em Jürgen Habermas e Lawrence Kohlberg -------------------- 68 (Frederico Graniço)

Resenha Consolação da filosofia (Boécio) ------------------------------------------------------------------------------101 (Thiago Ricardo de Mattos)

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EDITORIAL (Revista Redescrições, ano VII, nº 3)

Neste volume da Revista REDESCRIÇÕES temos, inicialmente, um artigo do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr: A fortuna e os espaços de animação. O estudioso do pensamento de Peter Sloterdijk, partindo deste, nos brinda, dentre outras coisas, com uma breve história da (concepção de) Fortuna. Para tanto, nos remete a clássicos como Boécio, Maquiavel e Montaigne. Num segundo momento, vemos Bárbara Melissa Barbosa Marcondes de Almeida analisar um outro clássico da filosofia: Platão – ou, mais especificamente, seu Crátilo. De fato, em A linguagem e o pensamento sob uma perspectiva do Crátilo de Platão e de outros autores, a autora nos oferece uma detida análise de certos pontos centrais do referido texto, estabelecendo um diálogo profícuo com as ideias de uma das maiores pensadoras brasileiras: Marilena Chauí. Na sequência, em Sociabilidade, lei e poder civil em Hugo Grotius, Ricardo Vinícius Ibañez Mantovani analisa as noções de sociabilidade, lei natural, lei civil e poder civil tal como são pensadas por Hugo Grotius em sua principal obra: O Direito da guerra e da paz. Seu trajeto conta, ainda, com uma breve investigação do pensamento de outros autores que trataram de temáticas similares à mencionadas, bem como do contexto histórico em que Grotius desenvolveu suas ideias. Finalmente, em Bota a fala: cantando o futuro, reconhecendo o passado, Marcos Carvalho Lopes (e coautores) apresentam o projeto/grupo que dá nome ao artigo, explicando muito rapidamente sua origem, contextualizando seus pressupostos teóricos e apresentando (e analisando) as duas primeiras canções compostas pelo grupo. Neste número de REDESCRIÇÕES, contamos, ainda, com a tradução de Frederico Graniço do artigo Culturas políticas pós-convencionais via processos de democracia direta: considerações teóricas baseadas em Jürgen Habermas e Lawrence Kohlberg, de Rolf Rauschenbach.

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Por fim, temos a resenha da principal obra de um dos autores que mais influenciaram a Idade Média, A Consolação da Filosofia, de Boécio. Num texto claro, objetivo e abrangente, Thiago Ricardo de Mattos nos apresenta o citado livro na exata medida: o suficiente para entendermos seu cerne, mas pouco o bastante para instigar nossa leitura. Desejamos, pois, uma ótima leitura a todos! Os editores

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A FORTUNA E OS ESPAÇOS DE ANIMAÇÃO FORTUNA AND ANIMATION SPACES

Paulo Ghiraldelli Jr.1

RESUMO: Peter Sloterdijk nos convida a falar sobre espaços de animação. Neste artigo, falo sobre fortuna, Renascimento, Modernidade e novella. Tento mostrar espaços de animação nesta linha. Então, este artigo tem heróis: Boécio, Maquiavel, Montaigne e os jesuítas. Palavras-chave: estoicismo, Peter Sloterdjik, Maquiavel, Boécio.

ABSTRACT: Peter Sloterdijk has invited us to talk about animation spaces. In this paper, I talk about Fortuna, Renascimento, Modern Age and novella. I try to show animation spaces in this line. So, this paper has heroes: Boethius, Machiavelli, Montaigne and Jesuits. Keywords: Stoicism, Peter Sloterdijk, Machiavelli, Boethius.

I Toda época possui algumas perguntas que lhe caem bem. Tenho uma especial para o nosso tempo: quais os nossos espaços de animação? Explico: os tempos contemporâneos se revelaram como o cemitério de projetos que prometiam mundos e fundos e, no entanto, a despeito das derrotas deles, conseguimos chegar até aqui. Apesar de alto e baixos, estamos seguindo em frente. Então, existem espaços construídos por nós 1 Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, ghiraldelli.pro.br, autor entre outros de Sócrates: pensador e educador (Cortez, 20015).

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que nos animam. Do que se trata? Que espaço são esses? Caso não possamos mapear esses espaços corretamente, será que eles não podem se destruir junto com tantas destruições outras que causamos? O que nos animou e o que nos anima? Quais os elementos de energização de que dispomos? Temos pistas para essas questões. Entramos para o século XX com várias semi-utopias sociais e políticas. Difícil encontrar alguma não ligada ao paradigma da "sociedade do trabalho". Isso é tão verdade que a ciência criada na transição entre o século XIX e o XX, e que se tornou a ciência própria do século XX, a sociologia, foi gerada por três grandes teóricos do trabalho: Marx, Durkheim e Weber. As propostas políticas também assim se fizeram: liberalismo, social democracia, nazi-fascismo e comunismo. Todas essas semi-utopias não prometeram outra coisa senão a felicidade a partir da reorganização do modo de produzir e reproduzir alimentos, máquinas, meios de comunicação, remédios, novas doenças e bactérias, cosméticos, tecidos, pessoas e estilos de vida. Novas formas de organização do trabalho junto de nova vida política e, então, nova e feliz vida individual – era isso que deveríamos ganhar com nossas quase-utopias. Mas, ao final do século XX, todos esses movimentos – políticos, sociais, científicos e amorosos – se viram desacreditados. O pós-modernismo dos anos oitenta, então sintetizado na formulação "crise de legitimidade das metanarrativas", se fez por conta dos fracassos das grandes teses baseadas nas prerrogativas da "sociedade do trabalho". Falamos então, por um breve período, em "paradigma da comunicação". Linguagem e comunicação? Virada linguística? Sim, a conversa foi por essa via. Nosso infortúnio quanto às disputas a respeito das teses atinentes à "sociedade do trabalho" teriam vindo de nossas falhas comunicacionais. Assim diagnosticamos, já utilizando do “paradigma da linguagem”, o que havia nos feito sair do “paradigma do trabalho”. Teríamos de investigar melhor a linguagem, que então substituiu o trabalho como o que seria nossa melhor e mais central característica.

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A política e a sociologia não acompanharam a crise apontada pelo pósmodernismo. Mas o campo das artes, literatura, cinema e filosofia, se viram renovados. Os principais filósofos contemporâneos foram beber em Nietzsche e Wittgenstein, e então vimos ocorrer um boom de literatura filosófica a respeito de linguagem, narrativas, discursos, verdade, significado etc. A própria carreira de um dos principais filósofos do final do século XX mostrou o desenrolar dessa história. Habermas serviu ao marxismo renovado, depois se encaminhou para a construção de uma teoria de busca de fundamentos para o "agir comunicativo" e, por fim, não podendo ceder à desconstrução francesa, por conta de seu cheiro demasiado nietzschiano, encostou no pragmatismo americano, parando em Dewey e tendo muito a ver com Putnam. Não endossou Rorty de todo, claro, pois este se manteve nietzschiano demais, muito voltado à ideia – tida como relativista – que diz que o significado é dado pelo uso e a verdade é apenas um qualificativo de enunciados, também fornecida pelo uso. Por um breve período de início do século XXI, então, a política e o movimento social ficaram velhos, e a filosofia, que parecia estar se renovando, também logo se viu em impasses. Pois o “paradigma da linguagem” não conseguiu grandes rearticulações com o paradigma cambaleante, mas com traços fortes ainda vivos, o da “sociedade do trabalho”. Os teóricos da ponta das ciências humanas e da filosofia hoje, em boa medida, estão convencidos que vivemos a retomada de uma conversação neo-ontológica. Interessados em uma narrativa ontológica reatualizada, queremos saber onde estamos quando estamos em nossa situação melhor de animação. Ou seja: como sempre estamos em espaços de animação? Podemos um dia sermos pegos desprevenidos e cairmos fora de um espaço desse tipo, e então colocar tudo a perder? A animação merece uma investigação. Inspirado em Peter Sloterdijk2, penso que um bom indício para compreendermos as bases sobre as quais nossos lugares são espaços de animação, é traçarmos uma pequena narrativa histórica a respeito da fortuna, a sorte. Por quê? Por uma razão simples: nossa animação é hoje lúdica, é uma animação vinda da chance, mas nem sempre a fortuna teve o rosto que tem hoje, participando da animação

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Especialmente no "Das Reich der Fortuna" (2013).

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no sentido atual. Além do mais, nossa animação, claramente lúdica, tem às vezes querido ser programável, quase que uma negação da própria fortuna. A história da fortuna pode ser a história dos nossos espaços de animação, uma forma de um "conhece-te a ti mesmo, como quem é espacial".

II A história da fortuna marca o espaço europeu de animação. Os grandes momentos dessa história tornam-se bem visíveis na comparação de dois grandes clássicos da literatura filosófica. Esses clássicos correspondem respectivamente ao período medieval e ao período renascentista. Trata-se do Consolação da filosofia, de Boécio, e de O Príncipe, de Maquiavel. Nossa história começa com uma peripécia da natureza. Em 519 um cometa fez um grande traço no céu da Itália, gerando um pânico coletivo jamais visto naqueles tempos. Roma estava sob domínio bárbaro, nas mãos do Imperador cristão Teodorico. E este, em 522, perdeu o seu sucessor, o seu genro Eularico. Não foi difícil para ele ligar a mensagem do céu com a desgraça familiar. Em 523 João I se tornou papa, um homem com forte pendor a uma conciliação com o Império do Oriente, Bizâncio. Tudo isso, somado à velhice, fez Teodorico mudar de humor. Até então ele tinha convivido bem com a aristocracia romana, incentivando-a no cultivo das tradições, na manutenção do senado e na valorização da cultura helênica em sua fusão com o cristianismo tornado hegemônico. Mas Teodorico viu lá no cometa o detonador do aviso de que a aristocracia romana poderia estar planejando uma reunião dos dois Impérios. Abriu-se então um clima nada propício para homens cultos. Nesse clima é que Boécio, então Consul romano, foi preso por conta da acusação de levar adiante estudos de magia e práticas de conspiração, em favor da unificação dos Impérios. Passou um tempo na prisão antes de ser executado. Entre uma dor física e outra, provocada pela tortura, Boécio escreveu o célebre Consolação da filosofia. No Criton de Platão, Sócrates na prisão chama as leis da cidade para dialogar com ele, de modo a mostrar ao jovem discípulo que ali estava, tentando convencê-lo de fugir,

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que isso seria um erro contra a cidade. De maneira semelhante, Boécio recebe as suas leis, não as da cidade, mas as de conduta própria de um homem letrado: as da Filosofia. Esta, em forma de mulher, é quem surge diante dele para ministrar-lhe remédios paulatinos. A Filosofia, esse eterna médica das almas, está disposta a um exercício de rememoração platônica com Boécio, de modo a fazê-lo se reconhecer, voltar a ser aquele que estaria curado da desolação da prisão. Assim aconteceria, promete ela, se ele pudesse ver as coisas segundo a ótica que ele certamente teria visto, se não fosse alguém que havia esquecido da Filosofia por conta das agruras do momento. Para um tal diálogo, então, a Filosofia se coloca no lugar da Fortuna, e faz o papel desta na conversação com Boécio. Nesse seu trabalho, mostra o quanto o cônsul presidiário deveria não levar a Fortuna como quem só traz males. Depois de um diálogo intrincado em forma de exposições filosóficas lógicas, a Filosofia deixa de lado o papel da Fortuna e retorna à condição de Filosofia, e então passa a enfrentar a pergunta que não poderia deixar de ser colocada, como de fato foi, por um homem crente em Deus, um cristão com cultura filosófica grega. Por que ele teria merecido passar pela desgraça da prisão. Por que a Fortuna viera a lhe jogar na situação de desconforto. Enfim: por qual razão sendo Deus bom, o mal contra os bons pode ocorrer e, em geral ocorre? Se Deus é bom, e é criador, de onde vem o mal? O texto se torna então não mais uma conversa exclusivamente filosófica entre a Filosofia e Boécio, mas uma verdadeira investigação filosófica, ditada pela Filosofia quase que de um modo socrático, a respeito do então já clássico problema do mal em convívio com o plano de Deus. A formulação dada pela Filosofia a Boécio, a respeito do mal – e só então percebemos a razão pela qual é a Filosofia que lhe aparece, e não Deus ou um anjo etc. , inclui uma explicação do papel da Fortuna segundo duas outras figuras, a Providência e o Destino. A Filosofia explica que: “Com efeito, a Providência é precisamente a razão divina que reside no princípio supremo de todas as coisas e que ordena o universo; quanto ao Destino, trata-se da disposição inerente a tudo o que pode mover-se, e pala qual a Providência reúne todas as coisas, cada uma no seu devido lugar. (...)

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Embora se trate de duas coisas diferentes, elas dependem uma da outra: o desenvolvimento do Destino procede da indivisibilidade da Providência. Com efeito, do mesmo modo que um artista começa por representar mentalmente a forma de sua criação antes de passar para a realização, e além disso cumpre por etapas sucessivas aquilo que estava representado em suas linhas gerais, assim também Deus fixa pela Providência o que deve ser feito, uma vez e definitivamente, enquanto o Destino organizada na multiplicidade e na temporalidade exatamente aquilo que foi fixado.”3

No meu jargão, a imagem pode ser posta da seguinte maneira: um arquiteto atemporal traça a planta, um mestre de obras temporal executa os detalhes da obra – eis a providência e o destino. Desse modo, como que a fortuna se apresenta e é explicada? Inaugurando o contorno de uma subjetividade proto-moderna, empurrada por uma psicologia visivelmente estoica, Boécio fala do ato de conhecimento como alguma coisa que separa o conhecedor do conhecido, e assim fazendo pode lançar o argumento de que vemos o temporal, sem apanhar o intemporal. Assim, quase que como quem irá, na modernidade, estabelecer uma distinção entre sujeito e objeto, dando conformações ao conhecimento por conta dos esquemas inerentes ao sujeito, Boécio estabelece a temporalidade como o campo do destino, propriamente a fortuna, que nos faz ver então sua Roda, o ciclo de ascendência e queda sucessivas de uma vida. Todavia, se saímos disso e tentamos olhar no todo, como quem com um golpe de vista, sem ficar pulando de uma coisa à outra, veríamos a imutabilidade dos traços gerais da providência. Nesse caso, o todo teria um sentido intrínseco, apresentando então o propósito divino. Claro que aqui poderíamos deixar de lado o cristianismo de Boécio e ficar com o argumento, que ele conhecia bem, dos estoicos: se olho a natureza como um todo, e não somente o que me ocorre no imediato, posso vislumbrar o propósito maior e sempre bom da natureza. Assim ensinou Crisipo e outros da Stoa.4 Mas o cristianismo de Boécio pode, junto do saber helênico, falar dessa dualidade posta pelo não-temporal e o intemporal, associada à divisão entre conhecedor e conhecido, como mecanismos que fazem a fortuna não ser possível de ser evitada no seu comando, mas de ser, no seu ocorrer, trabalhada em seus efeitos.

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BOÉCIO. A Consolação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2016, pp. 117-18. GHIRALDELLI, P. Estoicismo – uma introdução. < https://www.academia.edu/29199618/Estoicismo__uma_introdu%C3%A7%C3%A3o >, 2016. 4

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Nessa explicação, Boécio mostra o rosto da fortuna como o que não pode ser evitado no que faz, mas podendo ser compreendida em seus efeitos que, enfim, merecem cair sob as mãos dos homens que, enfim, lhe darão utilidade. Pode-se receber da fortuna algo ruim, que deverá servir para moldar o caráter na persistência e na superação. Podese receber da fortuna algo muito bom, que deverá servir para tornar o caráter atento para a corrupção das forças, quando se está em situação de bonança. Os feitos da fortuna, todos eles, podem ser utilizados pelo homem. Dessa maneira, em suma, não existe qualquer fortuna como padroeira do mal. Mas os ventos que impulsionaram as caravelas Santa Maria, Pinta e Nina, trazendo o aventureiro Colombo para o que seria a América, mudaram as coisas tanto quanto o cometa que riscou os céus da Itália alterou o reino de Teodorico. Dez séculos depois desse cometa, esses ventos abriram o mundo para uma renovada concepção da fortuna. Aqueles que haviam aprendido a lição sobre a fortuna, no Consolação da Filosofia, souberam passar a Idade Média com um alento intelectual. Mas muitos jamais puderam desfrutar dessa compreensão, e se locomoveram segundo uma visão da fortuna como uma “senhora caprichosa e injusta, que engana seus admiradores guiando-os em círculo”. As autoridades medievais, por sua vez, nunca deixaram de avisar: só os insensatos querem montar no carrossel da Fortuna. Mas, enfim, quando as notícias da existência do que seria a América e suas novidades começaram a chegar, o espaço europeu de animação ganhou novo ímpeto, e as características da fortuna se alteraram. Peter Sloterdijk assim descreve essa nova situação: “(...) com o começo da Era Moderna mudam os ventos, agora voltamos a ver as belas deusas da sorte em equilíbrio sobre seus globos cósmicos, fornecendo um dos símbolos mais antigos da sorte comercial: a vela inflada pelo vento. Como se vê, por exemplo, no edifício da Aduana de Veneza, onde por motivos misteriosos a mulher desnuda mostra sua parte traseira aos dogos na praça de São Marcos. Agora chega o tempo em que Maquiavel podem ensinar que a fortuna é uma mulher que gosta que agarrem com força, pois para caminhar com ela um pouco só, prefere fazê-lo com aquele que a aperta energicamente contra si no momento oportuno”5.

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SLOTERDIJK, P. Das Reich der Fortuna. In: El Reino de la Fortuna – Extremadura, Renacimiento, Fortuna. Extremadura: Fundación Ortega Muñoz, 2013, p. 66.

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É bem interessante ver Peter Sloterdijk notar os traseiros nus voltados para os dogos, os conselheiros de Veneza, revelando aí uma situação já brincalhona, leve, na relação entre os homens e a fortuna. Não se trata mais, nesse caso, de um esforço intelectual como o de Boécio para entender a fortuna, e nem esta é uma senhora que comanda uma roda que antes parece um instrumento de tortura que qualquer outra coisa. Em seguida, Sloterdijk lembra então da figura que vem à mente de Maquiavel, nesse tempo, para descrever a fortuna: a moça que vai ficar pouco com o cavaleiro, que deseja ser raptada para sentir o prazer momentâneo. Trata-se da deusa da contingência, mas antes de tudo, de uma virgem que representa agora não um tacão sobre a cabeça do homem, mas uma oportunidade. Uma mulher que quer ser arrebatada e pressionada ao corpo; o cavaleiro que assim fizer terá mostrado ser ele o proprietário sagaz da oportunidade. O homem da sorte não é um calculista, é um oportunista. Assim abre-se a modernidade. Vale a pena citar aqui o próprio Maquiavel, para efeitos de simetria comparativa com o texto de Boécio: “Estou convencido que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte é mulher e, para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. E é geralmente reconhecido que ela se deixa dominar mais por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos circunspectos, mais ferozes e com maior audácia a dominam”6

O capítulo dessa passagem é significativamente denominado “De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se deve resistir-lhe”. A imagem fornecida é tipicamente renascentista, e que de certo modo marcou toda a literatura posterior. Também deu as diretrizes para certa psicologia feminina, utilizada até bem pouco tempo, a da mulher que precisa ser arrebatada, contrariada e até sofrer alguma pequena violência em uma situação de amor passageiro. Nesse aspecto, toda a doutrina de Maquiavel para o príncipe se expõe em síntese: se a virtú é a audácia do governante, a fortuna é a sua oportunidade. De um lado, conhecimento; de outro, mulher a ser arrebatada. Quão longe já estamos, nesse caso, da fortuna como quem precisa ser estudada, pois tem a ver como o destino na sua ligação com a providência. Aqui, a fortuna é antes 6

MAQUIAVEL, N. O Príncipe. In: Maquiavel – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1987, p. 105.

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mulher que deusa, antes metáfora para a oportunidade que elemento de estudo metafísico, mais um dado da política que um elemento da filosofia e da teologia. Há aí uma mundanização da fortuna. Se com Boécio o espaço de animação que ela alimenta é proporcionado pela via intelectual, com Maquiavel um tal campo se integra numa prática de comerciante, de aventureiro, de governante audacioso. A fortuna não é mais algo dos efeitos, mas das façanhas. Não há mais que se lidar com seus resultados, mas simplesmente se aproveitar dela para produzir os tais resultados. Há aí uma passagem do semi-contemplativo ao ativo, e todo um espaço criado para falarmos em subjetividade moderna, em sujeito propriamente dito. Nessa trilha, não há como escapar da construção da subjetividade renascentista, uma protossubjetividade moderna par excellence. Michel de Montaigne é o nosso homem. Em contraponto com Montaigne, a subjetividade moderna realmente ativa se apresenta com os jesuítas. Em ambos os casos, a animação de espaços pelos que são responsáveis, só é de fato permitida por conta do novo papel da fortuna.

III Leitor dos estoicos, Montaigne se vê como dividido entre o que chama de um eu interior e um eu exterior. Leitor dos céticos, então se entrega a um mar de dúvidas. Sabe que o máximo que pode fazer no sentido de louvar-se por uma postura sábia, é manter uma proximidade entre a sua conduta pública, exterior, e o seu estar consigo mesmo, o estar ‘em casa’, a vida interior. Não há razão, diz ele, para prezar opiniões dele próprio mais que de outros ou de sua mesma diante de outros, e vice-versa. Não tendo uma âncora para fixar o lugar de onde pode dizer o que é o certo e o que é o verdadeiro, o que se pode fazer para viver sobrecarregado desse ceticismo é, simplesmente, chamar o ensinamento dos rivais dessa escola, o estoicismo. Uma moderação dos excessos se faz necessária: o que é realizado externamente não deve fazê-lo afastar-se demais do que é realizado em casa, na volta para o seu interior. Eis a regra básica: o eu externo não deve ser disparatado em relação ao eu interno e vice-versa. Nada de excessos exteriores e nada, portanto, de arrependimentos lamentosos a quatro paredes. Aqui, de modo aparentemente paradoxal, o estoicismo se casa com o ceticismo. A moderação não quer dizer resignação. Moderação

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aqui significa saber que o mundo é regido pela fortuna tanto para o eu interior quanto para o eu exterior, e então o melhor é manter uma menor distância entre esses dois eus e estar atento para “apanhar a bola na hora que ela é jogada”. Na linguagem nossa, popular: o cavalo só passa encilhado uma vez, não se pode deixar de tentar montá-lo. Montaigne deixa claro que a sua moderação, que pode conviver com as suas incertezas, não é resignada: “jamais serei grato à impotência por qualquer bem que ela me faça”.7 Esse é seu ensinamento básico. Aí reside o triunvirato ceticismo, estoicismo e fortuna. Ele escreve: “Prezo pouco minhas opiniões, mas prezo igualmente pouco a dos outros, e a fortuna me paga dignamente”.8 É à fortuna que se pode remeter ao final. Por isso mesmo, quem sabe disso e sabe aproveitar o momento, deve poder fazer bom julgamento de si. Conclui: “se o acontecimento me derrota e se favorece o partido que recusei, não há remédio, não me recrimino, acuso minha fortuna, não minha obra: isso não se chama arrependimento”.9 O príncipe maquiavaliano, dono da virtú, não poderia falhar em apanhar a fortuna. Também considerando a fortuna um elemento que expõe não o destino férreo, mas a oportunidade a ser apanhada, Montaigne envereda por um outro tratamento: prepara-se antes, acomodando-se à situação de quem não torna seu eu interior estranho ou distante do eu exterior. De posse desse tirocínio, mantém–se atento. Essa seria sua máxima e possível virtú. Não conseguindo com isso arrebatar a mulher na hora certa, então, há de culpar esta por ter sido mais rebelde do que aquilo que se poderia imaginar. Nessa hora não vale o arrependimento, mas simplesmente o entendimento de quanto a fortuna não é domável. Montaigne deixa bem claro que, olhando sua vida, nota não conhecer o arrependimento. Todavia, tanto Maquiavel quanto Montaigne estiveram atentos para a característica central do mundo pós-medieval, pois viram sua época, o Renascimento, como anunciando aquilo que outros preferiram só deixar para o Iluminismo, a ideia de

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MONTAIGNE, M. Do arrependimento. Ensaios. São Paulo: Penguim e Cia das Letras, 2010, p. 360. Idem, ibidem, p. 359 9 Idem, ibidem. 8

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‘sabotagem do destino’10. O anti-fatalismo emergente se construiu na base de uma ideia que, no campo filosófico, se fez sentir em concomitância com a ampliação e espraiamento da tese do ser humano como “um mundo em miniatura”. Para cada pessoa, a ideia de se deslocar do mundo tornou-se então sem sentido, uma vez que cada um pode passar a pensar algo como “o mundo está sempre comigo”. “Onde eu estou, estou completa e declaradamente no mundo”.11 A literatura dominante veio a servir esses seus novos clientes lhes dizendo que tinham mesmo que “jogar o jogo do mundo”. “Isso criou um novo discurso sobre a Fortunta”. 12 Esse discurso conduziu a uma “reavaliação de ser-nomundo da humanidade a partir da perspectiva do ser capaz de aproveitar o jogo”.13 Mas, enquanto Maquiavel ocupou a cena como o conselheiro par excellence, que deveria não deixar o governante desconhecer sua virtú e deixar passar a opportunità associada à fortuna, Montaigne dirigiu a si mesmo em seu aconselhamento. Contou então de sua preocupação de um tipo de virtú adrede preparada, a da coerência entre a conduta pública e a conduta privada. Ora, por sua vez, no afã de torcer a fortuna, Maquiavel tinha de ser o homem por detrás da conduta pública do Príncipe. Na escolha entre dois males, ou seja, na situação de tragicidade do mundo, Maquiavel tinha o trabalho de manter a consciência do Príncipe intacta, estando ele ali para sugerir a tomada pelo mal mais conveniente ao poder. Maquiavel buscou tornar o príncipe em sujeito, Montaigne buscou tornar a si mesmo sujeito. Montaigne fez parte, então, da própria tendência da virada do mundo para o abandono do evangelho em função do protonoticiário diário, ou seja, as novelas. Ele contou a sua vida em trechos breves, que levou o nome correto de Ensaios. Preencheu, do lado francês, a função literária dos tempos, iniciada por Boccaccio e Petrarca no campo italiano. Comentando essa situação, Sloterdijk destaca o papel da novella. Fala de que não se trata meramente de um novo gênero literário entre outros. Insiste no fato da novela

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Peter Sloterdijk atribui tal frase a Ulrich Sonnemann, pensador atuante nas franjas da Escola de Frankfurt. Entrevista de Sloterdijk a Ulrich Raulff no Marbacher Magazin, número 135, 2011, pp. 14-72. 11 Idem, ibidem. 12 Idem, ibidem. 13 Idem, ibidem.

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representar “a vitória do interessante sobre o edificante, o triunfo da curiosidade sobre a devoção”. Mas há mais: “a novella é a mãe das notícias”. Escreve: A novella não informa só as pequenas vitórias da inteligência humana sobre as circunstâncias. Melhor ainda, concebe o mundo inteiro a ser descoberto e administrado como uma fonte de reavivação, que não se cansa de alimentar os recipientes ilustrados. O mundo compreendido modernamente se converte em um ateliê de reanimações. Quem informa sobre ele ou publica a seu respeito está conectado, por assim dizer, a um gerador de evangelhos, dos quais emanam as inovações. 14

A tendência à novela deu aos tempos o ritmo de quem precisava menos da literatura religiosa e mais da literatura novidadeira. O novo deveria ter menos o que fazer que o mais novo, e este menos ainda que o mais novo que o novo. O novelesco ganhou o mundo, e até mesmo a literatura religiosa teve de ser reescrita nos termos de capítulos de novidades. Assim, a história de Jesus foi recontada de modo que a Boa Nova fosse mostrada antes como nova, e só então boa. Partiu-se para novelização do recado evangélico em concomitância com a evangelização de todos os recados. Eis aí um autêntico espaço de animação. Junto disso surgiram outros tipos de conselheiros. Não mais só Maquiavel falando ao príncipe ou Montaigne falando a si mesmo, mas uma empresa toda, unificada e treinada, para falar aos que precisam ser indivíduos autônomos, ou seja, sujeitos, mas que não estariam à altura desse requisito da modernidade. A Companhia de Jesus foi criada nessa época para fornecer um exército de conselheiros, os precursores dos consultores atuais. Foi uma companhia de animação. As datas falam por si: Maquiavel faleceu em 1527, Montaigne em 1592 e a empresa de Loyola foi criada em 1540. Todos estiveram na esteira do sucesso popular do livro Fortunatus15, de 1509. Neste livro, o herói vai a um determinado e escolhido bosque, onde encontra uma fada que o presenteia com uma bolsa que sempre lhe fornece nova quantidade específica de moedas, continuamente repondo seu gasto. O herói sai ao mundo para aventuras de todo tipo, amorosas e policiais. Junto da ideia da secularização do amor e da libertação de Eros, tão bem descrita pelo sociólogo Werner Sombart, pode-se ver 14 15

SLOTERDIJK, P. Das Reich der Fortuna, op. cit., pp.69-70. Idem, ibidem, p. 67

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nisso, também, a conhecida atividade da usura regrando o mundo. O dinheiro faz dinheiro, há uma reprodução dentro da bolsa do canguru de mais canguruzinhos, numa mágica contínua. O dinheiro gera juros. A fortuna faz fortuna, o dinheiro. Nesse clima, os pecados foram se ampliando e se sofisticando. Quem seria realmente o pecador? Os jesuítas se transformaram, então, naquilo que Pascal, mais tarde, os acusou, usando um tom agressivo: os donos da arte do casuísmo. Eles, jesuítas, disseram a cada um dos habitantes da Europa, “isto é pecado, e isto também é”, mas na escala de gravidade é possível distribuir os faltosos de modo que todos ganhem os céus, ainda que não todos na primeira fila. Assim disse um casuísta ao explicar sua profissão, relato interessantíssimo de um episódio das Cartas persas, o escrito de juventude de Montesquieu. Todavia, os jesuítas fizeram muito mais que isso. Eles agiram como superadores dos conselheiros de si e do secretário do príncipe, tornando-se de fato consultores para uma época de criação da subjetividade moderna, esta instância que deveria revelar antes o empresário disposto ao risco que qualquer outro tipo. De todas as novelas vigentes, então, a maior dela, a novela das novelas, era a da Descoberta da América. Todo tipo de empresa de risco, de investimento para tornar a bolsa de Fortunatus realmente mágica, se fez vigente. Todos passaram a ser credores e devedores em cadeia. E os jesuítas ensinaram os novos indivíduos a, não podendo ser tão autênticos sujeitos modernos como eles próprios eram, a ao menos conseguirem imitar tal coisa. A atividade religiosa dos jesuítas foi subproduto dessa atividade de acompanhar expedições empresariais pelos mares e, então, serem os consultores e animadores de todo tipo de empresário-navegador do momento. A sorte estava lançada, o risco também, e o modo de tornar a vida palatável e seguir em frente foi dado pelas histórias sobre tudo isso, as novelas, que vieram a dar a cobertura geral para se manter a todos estimulados. “Ser sujeito significa tomar uma posição a partir da qual um ator pode passar da teoria à prática”. É assim que Peter Sloterdijk define o sujeito.16 Levando isso em conta, expõe o trabalho da atividade de ser sujeito no campo da entrada da modernidade, em associação ao desempenho da consultoria (jesuítica), como um trabalho de

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SLOTERDIJK, P. O Palácio de Cristal. Lisboa: Relógio D’água, 2008, p.65.

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autodesinibição, onde o indivíduo anima-se não para se conter, como pensaram Adorno e Horkheimer, mas para ir adiante de modo totalmente desinibido. A atividade empresarial não se faria por auto-contenção, desse modo o indivíduo moderno estaria mais para o histérico que para o melancólico.17 Ora, a subjetividade jesuítica criou o treinamento para si mesma, associando o atletismo, o convento, o militarismo e a erudição, e uniu o resultado disso, que é uma enorme capacidade de esforço, ao seu célebre quarto voto: a obediência ao Papa. Aquilo que muitos viram como um ganho nos protestantes, a autonomia perante o chefe da Igreja, apareceu de modo negativo aos Jesuítas, que souberam fazer da ligação ao papa um grande e principal trunfo. Ou seja, quando em dúvida, o jesuíta ainda tinha o papa, e mais ainda, a disciplina capaz de cada um encontrar o papa interior. Tornaram-se assim serviçais mais poderosos que seus chefes (não à toa, depois, o papa extinguiu a Companhia). Os homens de Loyola deram a animação necessária, como consultores e modelos, aos que queriam enfrentar aventuras a fim de entrarem na cadeia de credores e devedores e do negócio de risco. Ir além-mar, afinal, não era para qualquer um. Na ‘sociedade de oportunidades’, ou seja, de mulheres que querem o arrebatamento, todos precisam ser príncipes-empresários para então poderem viver com a tal bolsa de reposição de dinheiro, o achado do herói de Fortunatus. Romper com a inibição própria, desinibir-se, ter um plano ascético para tal tarefa, tornou-se algo próprios dos jesuítas e dos que saíam, mesmo leigos, de suas escolas. Eles foram a origem dos consultores, essa raça que atua agora nas empresas e em todo lugar – inclusive na prática do entretenimento em fusão com o trabalho e vice-versa –, em uma época em que todos os ‘ideólogos’ ficaram enterrados pelo ocaso do Maio de 68.

IV Volto agora ao tema da narrativa ontológica do presente. Compreender os espaços de animação como base para uma ontologia do presente implica, antes de tudo, levar a sério as formulações do liberalismo. Claro que uso o termo “liberalismo”, aqui, em um

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Idem, ibidem, p. 66.

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sentido filosófico e amplo. Tomo-o na acepção de Peter Sloterdijk: “O que é o liberalismo, de um ponto de vista filosófico, senão a emancipação do acidental? – E que é o novo espírito de empresa senão uma prática que visa corrigir a sorte?”.18 A emancipação do acidental nada é senão trazer a fortuna como o que pode ser visto antes como oportunidade que como imagem do fatalismo. Foi assim que o risco ganhou plausibilidade e seduziu os homens do Renascimento e da entrada do mundo moderno. Foi também pelo risco que se levou a sério, pela primeira vez, a ideia de verdade e mentira, acerto e erro. Os antigos nunca prestaram atenção no erro. Claro que, com o cristianismo, o homem passou a considerar o erro, pois se entendeu como vivendo no pecado. Mas essa atitude foi apenas o negativo da fórmula antiga, onde os homens viviam no acerto. Com a emancipação do acidental, com a cultura da fortuna a partir de conselheiros, auto-conselheiros e consultores, e com as embarcações cruzando mares e apostando investimentos, aí sim o erro se transformou em matéria de estudo. Não à toa, na abertura da modernidade, com Descartes e Bacon, se inauguraram teorias do erro e preocupações com a verdade. Descartes se preocupou com o engano metafísico nas duas primeiras meditações, e na quarta com o erro psicológico. Bacon traçou a agenda posterior das discussões sobre erro, ilusão e ideologia, ao colocar no seu Novo Organum os “ídolos da tribo”. Esses homens modernos sentiram o peso do Renascimento na sua inauguração de novos e fecundos espaços de animação. Os homens passaram à vita ativa. De certo modo, abriram as portas para a noção de “Renascimento Permanente”, algo possível de se transformar em conceito trans-histórico tanto quanto ocorreu com o conceito de Iluminismo. De certo modo, essa é uma operação que vem sendo levada a cabo por Peter Sloterdijk. Ele tem se preocupado com um mundo em que cada um de nós possa ter o ímpeto do mecenato. A ideia de criar e cuidar está presente no projeto desse filósofo, e parte disso é a construção de uma narrativa ontológica que dê uma certa naturalidade a uma tal nova visão.

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SLOTERDIJK P. O Palácio de Cristal, op. cit., p. 57.

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Referências bibliográficas BOÉCIO. A Consolação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2016. MAQUIAVEL, N. O Príncipe. In: Maquiavel – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1987. MONTAIGNE, M. Ensaios. São Paulo: Penguim e Cia das Letras, 2010. SLOTERDIJK P. O Palácio de Cristal. 1ª ed. Lisboa: Relógio D’água, 2008. ______. El Reino de la Fortuna: Extremadura, Renacimiento, Fortuna. Extremadura: Fundación Ortega Muñoz, 2013.

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A LINGUAGEM E O PENSAMENTO SOB UMA PERSPECTIVA DO CRÁTILO DE PLATÃO E OUTROS AUTORES LANGUAGE AND THOUGHTS UNDER THE PERSPECTIVE CRATYLUS OF PLATO AND OTHER AUTHORS

Barbara Melissa Barbosa Marcondes de Almeida1

RESUMO: Este artigo procura evidenciar o quanto é possível entender acerca da linguagem e do pensamento, a partir de pressupostos teóricos de grandes escritores e também utilizar um diálogo Platônico para refletir sobre esse assunto, mostrando como a linguagem e o pensamento se fazem presentes a todo momento no diálogo, ressaltando o que a obra Crátilo nos mostra e a forma como se apresenta, além de, esclarecer o tema tratado na conversação entre Sócrates, Hermógenes e Crátilo, assim se voltando para a questão problematizada por Sócrates acerca do ser e dos nomes, desta forma respondendo, se as coisas existem por elas mesmas, ou só existem devido aos nomes que recebem. Com isso fazer um aparato com o questionamento do que é a linguagem, com base no livro Convite à Filosofia de Marilena Chauí, em que também será abordado o surgimento da linguagem, qual a sua importância e a posição de intelectualistas e empiristas em relação a ela, comparando com a possibilidade do pensamento a anteceder com a proposta de Inês Lacerda em seu texto Introdução a Filosofia e através de uma difusão de ideias de ambos os textos será explicada a obra Crátilo de Platão a partir das informações e reflexões apresentadas por Marilena Chauí em seu capítulo sobre a linguagem, de forma que serão comparadas as duas perspectivas de abordagem, tema deste artigo percebendo a correlação existente entre ambas, no qual os respectivos tratam acerca da linguagem. Palavras-chaves: Linguagem, Crátilo, Platão, Pensamento. 1

Barbara Melissa Barbosa Marcondes de Almeida acadêmica do curso de Letras, 7º Período pela Universidade Federal do Tocantins.

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ABSTRACT: This article seeks to highlight how it is possible to about understand the language and from thought theoretical pre-supposed the great writers and Also use the Platonic dialogue to reflect on this issue showing how language and thought are present at all times in dialogue highlighting what Cratylus work shows and the way you present yourself. In addition to clarifying the theme of the conversation between Socrates, Hermogenes and Cratylus, Thus turning to the question problematized by Socrates about being and names, responding Thus if things exist by Themselves, or are there only because of the names que r eceive. Thereby making an apparatus with the question of what is the language? Based on the book Invitation to Marilena philosophy Chauí, que Will Be Also Discussed the emergence of language, what is its importance and position of intellectualism and empiricist about her, comparing with the Possibility of thought to precede with the proposal of Agnes Lacerda in his text Introduction to Philosophy and through the diffusion of ideas of BOTH texts is Explained Cratylus Plato's work from the information and ideas presented by Marilena Chau in his chapter on the language, so que the two perspectives are Compared theme approach this Article realizing the correlation between the two in Which the respective deal about language. Keywords: Language, Cratylus, Plato thought.

Linguagem Marilena Chauí ao analisar a teoria da linguagem observa que o linguista Hjelmslev diz que: “a linguagem é inseparável do homem” dizendo ainda que “a linguagem o segue em todos os seus atos”. Sendo o instrumento graças ao qual o homem modela o seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, suas vontades e seus atos, é a base mais profunda da sociedade humana. Marilena Chauí destaca que Jean Jacques Rousseau considera que a linguagem nasce de uma profunda necessidade de comunicação; desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram buscar meios para isto, sendo assim, os gestos e as vozes acontecem na busca da expressão e da comunicação, dessa forma acarretando o surgimento da linguagem.

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Em (CABRAL, 1991), Hjelmslev afirma que, “a linguagem é o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o conflito se resolve no monologo do poeta e na meditação do pensador”, afirma ainda “está sempre a nossa volta, sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos, acompanhando-nos em toda a nossa vida. Ela não é um simples acompanhamento do pensamento, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento”. Como vemos no trecho a linguagem está no homem e o homem é a linguagem, ele é si e si mesmo enquanto se faz ser linguagem. Além de mostrar pontos de vista diversificados sobre a linguagem e pensamento Marilena Chauí deixa o seu conceito de linguagem, basicamente ela demonstra sua visão apresentando cinco passos sobre a linguagem, sendo o primeiro, o que diz que a linguagem é um sistema no qual têm os seus princípios e suas leis próprias. O segundo é a linguagem como sistema de sinais ou de signos, neste mostrando que a linguagem por sua vez forma uma totalidade linguística. O terceiro, a linguagem que indica coisas; neste ela quer deixar claro que os signos linguísticos dos quais chamamos de palavras possuem uma função comunicativa ou denotativa, pois através do signo chegamos ao significado. O quarto é a linguagem estabelecendo a comunicação, neste ela quer apresentar a linguagem com função comunicativa, no qual é por meio de palavra que nos relacionamos com os nossos semelhantes. E por último, ela apresenta a linguagem como forma de exprimir pensamentos, sentimentos e valores, assim voltando a linguagem para a função de conhecimento e também a expressão, ou seja, sua função conotativa, em que de uma mesma palavra podemos exprimir sentidos ou significados diferentes. Em contrapartida temos a filosofia da linguagem de Inês Lacerda Araújo, que deixa claro logo no início do texto seu ponto de vista sobre linguagem e pensamento. Podemos observar isso quando Inês comenta que: [...] para haver linguagem são necessários sons, significações e sua combinação através de regras gramaticais de uma dada língua.

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Sem essa estrutura, sem essas articulações, não é possível formular frases inteligíveis e, portanto, não é possível pensar, argumentar, memorizar, relatar, descrever etc” (ARAÚJO, 2008).

Logo mais à frente este pensamento fica mais explícito, quando ela comenta: “alias, sem linguagem não é possível pensar, e pensar não é algo mental abstrato, subjetivo. Há inúmeras atividades como argumentar, raciocinar, analisar descrever, entre outras, todas elas implicam a linguagem” (ARAÚJO, 2008). Outro trecho importante ressaltar: “é ilusão achar que o pensamento seja um processo puro, interno, mental, pois ele tem um conteúdo e pode ser expresso. Assim, precisa da linguagem que não é mero instrumento para o pensamento representar o mundo e nem um subproduto do sujeito pensante” (ARAÚJO, 2008). Ambos os textos querem mostrar a linguagem e seus diversos aspectos, sendo um deles a linguagem e o pensamento, no texto de Marilena Chauí devido as citações anteriores, podemos notar um envolvimento da escritora com o tema pensamento existindo pela linguagem, do qual ela faz várias citações que tendem a uma reflexão da possível existência única de linguagem e pensamento, porém, ela trata deste assunto de forma mais subtendida, assim não dizendo diretamente para o leitor a sua opinião, mas expressando-a através de referências cujas quais foram mencionadas acima. Além das abordagens de pensamento e linguagem citadas anteriormente a escritora apresenta ainda sobre o que é a linguagem na sua opinião e afirma: “que a linguagem é um sistema de sinais usados para a comunicação entre pessoas”, ou seja, todo e qualquer tipo de comunicação estabelecida entre dois indivíduos podemos chamar de linguagem. De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea2, a palavra língua é derivada de linguagem: “Língua é uma forma particular de linguagem, um

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(A. A. V. V. Academia das Ciências de Lisboa e Ed. Verbo, 2001).

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sistema de signos vocais, que podem ser transcritos graficamente, comum a um povo, a uma nação, a uma cultura e que constitui o seu instrumento de comunicação”. É através dela que nós seres humanos, que somos dotados de linguagem podemos moldar, nossos pensamentos, emoções, vontades, atos, entre outros, através da linguagem em geral; e tudo isso acontece pela necessidade de comunicação e expressões linguísticas que a linguagem pode trazer através da sua amplitude e assim podemos perceber o quanto ela é importante. Algumas definições de linguagem: Conforme Edward Sapir, “A linguagem é um método puramente humano e não instintivo de se comunicarem ideias, emoções e desejos por meio de símbolos voluntariamente produzidos”. (apud COTRIM 1999 p. 17). Em Outline of Linguistic Analysis: “Uma língua é um sistema de símbolos vocais arbitrários por meio dos quais um grupo social coopera”. (BLOCH; TRAGER, 1942, p.5). Segundo o Dicionário de Filosofia: Linguagem: “tem função de expressão verbal do pensamento”. (BRUGGER, 1977, p. s/n). Portanto, o pensamento existe e vem a existir por intermédio da linguagem, pois a linguagem é bem mais do que uma formulação de pensamento e sim, a forma do qual ele é transferido do subconsciente de cada ser para a realidade da oralidade, ou de formas de expressão em geral. Sendo assim, a mais importante tarefa da filosofia da linguagem, é o esclarecimento das relações existentes entre pensamento e linguagem (primazia e influencia). Já as imagens chamadas por eles de sensoriais são as adquiridas através dos sentidos, que é quando aprendemos a ouvir e assim podemos compreender os sons e as vozes e com isso reconhecer a grafia do som através da leitura.

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Portanto, a palavra ou a imagem verbal é a síntese de imagens motoras e sensoriais que são armazenadas em nosso cérebro; os empiristas chegaram a essa conclusão devido a um estudo médico sobre perturbações da linguagem, no qual descobriram vários tipos de doenças sendo elas: a afasia (incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na língua); a agrafia (incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras); entre outras. Com essas percebe-se que todas devido aos estudos feitos, estão relacionadas a lesões no cérebro e também à linguagem e foi assim que perceberam que a linguagem era um fenômeno físico, do qual não temos consciência. Os intelectualistas têm uma maneira bastante diferente de pensar sobre a linguagem, diferente da dos empiristas. Aceitam que a fala, a audição, a capacidade de ler e escrever estejam no nosso corpo, porém a linguagem diretamente dita, segundo eles, vem do nosso pensamento e de nossos sentimentos; acreditam que a linguagem é: “um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos, para transmitir e comunicar ideias abstratas e valores” (CHAUÍ, 2005). Portanto, para eles a palavra representa um pensamento, uma ideia, assim sendo produzida pelo ser pensante que se utiliza de letras e sons para se expressar, então para provar o que dizem os intelectualistas mostram a história de Helen. Segundo Marilena Chauí, Nascida cega e surda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ler, e nem visto as coisas e as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais, Helen Keller jamais teria chegado à linguagem. Mas chegou. E chegou quando compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra água; quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra sentia, tornou-se capaz de usar a linguagem. (CHAUÍ 2005, p.142) Com isso, perceberam que a linguagem “longe se ser um mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de pensamentos” (CHAUÍ, 2005).

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Apesar de tantos conflitos de ideias os dois pontos de vista tem algo em comum, um deles é que as duas formas de pensamento de ambos os grupos acreditam plenamente que as palavras têm a finalidade de indicar algo e além desse ponto em comum, eles também creem que as palavras têm apenas a função de representar algo através das letras. A primeira tentativa de definir a linguagem surgiu na Grécia onde filósofos tentavam descobrir se a linguagem é natural ou se é uma convenção. Se ela fosse natural, eles diziam que: as palavras já têm o seu sentido próprio e necessário, mas se fosse convencional, elas eram decididas através da sociedade. Depois de anos nesta mesma discussão eles chegaram à conclusão de que a linguagem como capacidade de expressão em humanos é natural, ou seja, a necessidade de comunicação entre os seres é algo inato. Porém as línguas são convencionais, elas surgem de condições históricas, resumindo nascem de fatos culturais. Os empiristas acreditam que a linguagem é um composto de imagens corporais, que são de dois tipos: as motoras e as sensoriais; e essas constituem em imagens verbais. As imagens motoras que são aquelas que adquirimos assim que aprendemos a articular sons e letras, ou seja, quando aprendemos a falar e a escrever, quando isso acontecer podemos dizer que estamos usando as imagens motoras. Segundo a direção empirista de Marty: “a linguagem é produzida pelo pensamento. Com o fim de este se comunicar” (apub CHAUÍ, 1995). Segundo a direção idealista Vossler: “a linguagem é a manifestação perfeitamente adequada do pensamento” (apud CHAUÍ, 1995). A linguagem nada mais é do que um labirinto no qual nunca saberemos o início ou o fim, ela não é o que comunica ao outro, mas é aquilo que está por trás do que se comunica, ela não é o que se define, ela simplesmente acontece, ela pertence ao mundo das ideias e se transporta a esse mundo, ela está em todos e em tudo, ela é abstrata, mas o que é que não nasce do abstrato? Tudo nasce ao abstrato para ser transcrito. Mas e o pensamento? O que vem a ser pensamento? Ou o que é o pensamento? Com quais elementos o pensamento se enlaça?

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Segundo o dicionário de filosofia, o pensamento: “no sentido mais amplo abrange todos os fenômenos do espírito, o pensamento é então sinônimo de inteligência”. E podese dizer mais “o pensamento é o modo de conhecimento não intuitivo dirigido ao ente enquanto tal” (BRUGGER, 1977). O pensamento perfaz-se no espírito humano em variados atos de apreensão (compreensão) da relação, (formação do conceito raciocínio). Observando também o conceito de raciocínio que se une ao ato de pensar em um enlace com a linguagem podemos ter a definição dele como: [...] operação do pensamento que, partindo de uma ou várias proposições admitidas (premissas) resulta o estabelecimento da verdade, da falsidade ou da probabilidade de sua conclusão, o raciocínio é semelhante à inferência, mais geralmente mais desenvolvido, sendo a inferência uma operação da qual se pode afirmar a verdade ou a falsidade de uma proposição em virtude de sua ligação com outras já consideradas verdadeiras ou falsas (BRUGGER, 1977). Portanto, para captarmos a linguagem, é necessário seguir o rastro do pensamento, juntamente com o raciocínio, não se esquecendo da fala, sendo a forma pela qual o pensamento é passado para os semelhantes, assim através dos tempos antes mesmo da linguística vê-la mais como um aglomerado de signos linguísticos a tentativa aqui não é dizer se a linguagem antecede o pensamento ou se o pensamento antecede a linguagem e nem mesmo afirmar “Sim, é possível o pensamento sem linguagem” ou “não é possível o pensamento sem linguagem”, mas sim, observar o que as duas são e como se dão de formar entrelaçadas na qual se amparam. Porém pode–se arriscar em dizer que necessitam uma da outra, portanto, a linguagem é o todo, mas, de certa forma está ligada ao pensamento e ele caminha junto com a linguagem pelo simples fato de podermos pensar a linguagem (fala) e a linguagem (essência), sendo a linguagem da fala a linguagem cujo qual se pode passar o pensamento por meio de fala (sons), e a linguagem como essência, sendo aquela que existe dentro de cada um, assim vindo a acontecer como linguagem nascida do abstrato. O pensamento em si independe da linguagem para existir, porém, para que ele se expresse venha à tona, ganhe vida, é preciso do código da linguagem.

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Pensando nas perspectivas as autoras é melhor não afirmar e nem negar, o objetivo não é ter uma resposta, mas pensar nas possibilidades de chegar a ela. E como percebemos em ambos os textos as autoras tem suas concepções e desta forma cada um terá a sua afinal, linguagem e pensamento não se definem e não se pode rotular algo que é abstrato ao ponto de não ser rotulável essa é uma questão que se tem muito a discutir, sendo assim, a ciência da linguagem acompanhada do pensamento avança a um ritmo acelerado, e iluminada sob ângulos sempre novos, desvendando cada fio que vem a fazer um enlace entre esses dois elementos primordiais da comunicação na qual essa pratica sabemos usar, porém ainda não a conhecemos por completo e sempre será um mistério e um tabu a se revelar, ou melhor, a pensar.

Diálogo Crátilo O diálogo Crátilo (ou da correção dos nomes) trata-se de uma conversação que ocorre entre Sócrates e mais dois interlocutores, que são Hermógenes e Crátilo. Neste diálogo Sócrates e seus interlocutores, tratam de um tema específico que é a correção dos nomes, ou seja, quais os critérios que estabelecem a relação entre nome ou coisa nomeada. Para Hermógenes, o critério é o hábito, pois, em sua concepção, nada tem um nome correto, e por isso ele defende a tese convencionalista, no qual o nome de algo consiste em um acordo, uma convenção. Portanto, para Hermógenes nada tem um nome certo, e esses nomes podem ser alterados sem mudar o seu sentido. Assim, Crátilo defende uma tese naturalista, na qual ele acredita que todas as coisas têm um nome correto. Podese dizer ainda que para Crátilo haveria uma natureza da coisa nomeada que seria espelhada no nome através da etimologia. Para Sócrates, (Platão), as essências existem em si e por si mesmas e a tentativa no Crátilo, é saber se os nomes conseguem dizer essas essências. Devido ao conflito de ideias entre os integrantes do diálogo, Sócrates é chamado a tomar parte dessa discussão, devido à impossibilidade de ambos chegarem a qualquer acordo. Ao investigar cada um deles, Sócrates desmonta os argumentos fazendo interrogações sobre suas teses e tenta propor uma concepção alternativa, segundo a qual

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haveria uma natureza, uma essência que pode ser entendida como a noção platônica de “ideia”, que diferentemente do que pensa Crátilo, não seria o fluxo incessante, mas a estabilidade. Onde essa natureza estável se espelharia nos nomes através de certos sinais, que muitas vezes não se apresentam nas etimologias. Então Sócrates começa a explicar a origem de várias palavras em sua concepção para seus interlocutores, porém Sócrates não consegue levar muito adiante a sua posição, pois também não deixa de admitir que a convenção também desempenhasse um papel importante na atribuição dos nomes, e assim o diálogo termina sem uma última resposta. Contudo, isso não significa um fracasso de Sócrates e consequentemente de Platão, em dar uma resposta à questão, mas aponta para a impossibilidade dos nomes dizerem a essência das coisas. No Crátilo, Platão estaria tentando, em última análise, examinar a relação entre realidade e linguagem, ou seja, quais as possibilidades de a linguagem expressar a realidade; o que ele faz através de uma análise da relação entre nome e coisa nomeada. A questão é que Platão tem a pretensão de atribuir a realidade não a aquilo que vemos, mas ao que ele chama de essências ou ideias, e sobre essa ele tinha uma teoria a “teoria das ideias” ou das formas, sendo está a que ele se utilizava para explicar os seus conceitos, contudo que não se pode dizer muito sobre as essências, mas apenas pressupô-las como necessárias. O final do diálogo mostra que no plano dos nomes esse espelhamento das essências não parece possível, pois Sócrates chegou a sugerir a Crátilo que vá as coisas mesmas, e não aos nomes, dada a presença da convenção na atribuição dos nomes. Resumindo, a ênfase não recai sobre os nomes, mas sobre o discurso composto, minimamente de nome e verbo. Sendo “nome um som composto significativo, sem referência a tempo, do qual nenhuma parte é de si significativa”. E o verbo sendo “um som composto, com significado, com referência de tempo, do qual nenhuma parte tem sentido próprio, como no caso dos nomes” (POÉTICA 1910, p.41).

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Marilena Chauí versus Crátilo Segundo o texto de Marilena Chauí “Platão considerava que a linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois pelo diálogo e pela comunicação conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os outros” (2005). Essa afirmação de Platão citada por Marilena Chauí relaciona-se diretamente com o diálogo Crátilo, onde logo no início da conversação, Hermógenes diz o seu ponto de vista acerca da correção dos nomes e em seguida afirma “estarei pronto a ouvir e aprender de Crátilo ou de qualquer outra pessoa”, ou seja, ambos iniciaram o diálogo com o seu ponto de vista fixo, porém estão abertos a outras opiniões e até mesmo uma definição do que é o “certo” para outra pessoa, assim tendo como objetivo aprender com o seu semelhante, sem desprezar o seu ponto de vista. Com isso, temos uma correlação com a citação exposta por Marilena Chauí acerca de Platão, onde ela diz o que Platão pensa acerca da linguagem, e que através dela percebemos nossa ignorância e com isso podemos aprender com os outros. A respeito de outra dimensão da linguagem, os gregos usavam uma palavra, a qual eles chamavam de logos, que é a junção de três palavras e suas ideias: fala/palavra, pensamento/ideia e realidade/ser, tudo isso se resume em logos. No Crátilo desenvolve-se essa linguagem, como poder de um conhecimento racional, abordando conceitos e ideais referindo-se ao pensamento, a razão e a verdade de cada um. Onde os integrantes conhecem o pensamento de cada um dos participantes para assim percorrer a história, o mundo, através de pensamentos e opiniões com o objetivo de se chegar à conclusão acerca da correção dos nomes que termina em aporia. O que também pode-se perceber que ocorre no diálogo Crátilo de Platão, é que se relaciona diretamente com o texto sobre linguagem de Marilena Chauí, é o conhecimento sendo apresentado pela conceituação que é o conjunto de representações mentais, ou seja, ideias elaboradas pelo pensamento, tendo como base a experiência de cada um,

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conservada na memória do homem, e assim registrada sob a forma de linguagem, e expressa através de um diálogo. A linguagem do Crátilo é feita precisamente como se procede ao pensamento, a observação, análise e compreensão, sendo assim um processo que se pode denominar de método dialético, assim expressando a língua em forma de diálogo. Platão utiliza do método dialético como forma de um processo de esclarecimento, por meio do qual o filósofo tem como principal objetivo dialogar, de modo a se conquistar o conhecimento. Sócrates com o uso da dialética socrática entra em um processo, pelo qual tenta chegar à verdade, assim formulando questões capazes de atualizar o que já se sabe, mas de uma forma apenas potencial, ou também de mostrar as contradições diante das teses defendidas que expõe um interlocutor num diálogo. É através de um pensamento ativo e de participações pensantes, de fato a serem discutidas e conduzidas pela razão formada, que se faz surgir o conhecimento e com isso revelar a dialética do pensamento, através da linguagem. Todo esse processo citado acima e visto no diálogo Crátilo de Platão, é o instrumento que nos permite pensar e consequentemente vir a comunicar esse pensamento, assim estabelecendo diálogos com nossos semelhantes e dando sentido a essa realidade que nos cerca, chamada linguagem. É devido à linguagem que cada coisa tem um nome determinado, sendo naturalista, como o pensamento do Crátilo, ou convencionalista segundo a linha pensante do Hermógenes. Às vezes nos preocupamos tanto com o nome determinam a coisa, ou de qual maneira o nome foi determinado que esquecemos que isso é a linguagem do nome e não um todo em si, mas, a maneira como chamamos algo. Porém, o nome da coisa não demonstra sua essência, mas sim somente o signo linguístico de nome; com isso no Crátilo o nome acaba sendo um instrumento da linguagem na tentativa de mostrar a essência da coisa nomeada. Crátilo acerta em dizer que os nomes das coisas derivam de sua natureza e que nem todo homem é formador de nomes, mas apenas o que olhando para o nome que cada coisa tem por natureza, sabe como exprimir com letras e sílabas sua ideia fundamental,

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assim vindo a transformar a essência da coisa em signo linguístico que se dá pela linguagem. Resumindo, a linguagem pode ser desde uma cadeia de sons articulados, até uma rede de marcas escritas (uma escrita), ou até mesmo um jogo de gestos (uma gestualidade), sendo assim a linguagem nos impõe estes problemas logo que chegamos ao seu modo de ser, produzindo e exprimindo; a linguagem é simultaneamente o único modo de ser do pensamento, a sua realidade para a sua realização. Através do diálogo Crátilo de Platão podemos notar que a linguagem nesta obra surge devido a um processo de comunicação de uma mensagem que ocorre entre dois sujeitos falantes pelo menos, e sendo um o destinador ou o emissor, e o outro, o destinatário ou o receptor assim utilizando da linguagem, um método dialético. Percebemos que a linguagem está relacionada, diretamente com o ser em geral, e ela não veio de agora, existe toda uma história, e estudos acerca da sua origem, e de fato o que ela vem a ser quando o assunto é linguagem relacionada a diálogo.

Considerações finais Com o respectivo trabalho, podemos perceber que a linguagem está relacionada, diretamente com o ser em geral, e ela não veio de agora, existe toda uma história, e estudos acerca da sua origem, e de fato o que ela vem a ser quando o assunto é linguagem relacionada a diálogo. Percebemos também que cada um tem sua opinião quando o assunto é linguagem, e para provar isso, eles correm atrás e pesquisam para assim expor seus pensamentos e conclusões. A linguagem está a nossa volta, assim como logos (a palavra), vem a se dar como forma de linguagem, é ela a linguagem que nos diferencia dos animais e nos faz “ser”; é a ferramenta do homem, afinal é ela que o torna humano e consequentemente diferente de outros seres em geral, sendo assim o ser humano não é dotado pela linguagem, mas sim adotado por ela, na qual ela o faz acontecer e se dar como ser humano, a linguagem nos torna seres pensantes e assim possibilita a interação com o nosso semelhante, vindo a conhecer os seus conceitos, princípios, pensamentos, entre outros; e com isso

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estabelecendo o ato da comunicação onde a parte social da linguagem se relaciona com o sujeito falante ao utilizar o código da língua, mais conhecida como linguagem. Quanto ao Crátilo, percebemos que ele é um diálogo que apesar de ter sua predominância para o lado da linguagem, também acaba abordando assuntos com objetivos diversos, sendo também um diálogo bastante coerente, da filosofia de Platão, contendo assim uma linguagem com elemento filosófico de outros aspectos. Portanto, percebe-se que o diálogo Crátilo de Platão buscou conhecimento para poder julgar a adequação dos nomes, assim utilizando a linguagem em sua forma dialética com o objetivo de interrogar e responder; devido às diferenças percebe-se que a linguagem pode sim se manifestar como se chama nos dias de hoje de significante do significado linguístico, e a mesma teve o seu papel, fundamental no diálogo Crátilo de Platão, que foi aprimorar o intelecto em meio à busca do conhecimento com o objetivo de se chegar à essência através do conhecimento da linguagem, porém ao final pode-se ver que os nomes não dizem a essência, o que faz a busca do conhecimento vir a terminar como aporia assim guiada por logos. “A palavra distingue os homens e os animais, a língua distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um homem antes que ele tenha falado”. Jean Jacques Rousseau

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SOCIABILIDADE, LEI E PODER CIVIL EM HUGO GROTIUS

SOCIABILITY, LAW AND CIVIL POWER IN HUGO GROTIUS Ricardo Vinícius Ibañez Mantovani1

RESUMO: Neste artigo, pretende-se analisar as noções de sociabilidade, lei natural, lei civil e poder civil tal como são pensadas por Hugo Grotius em sua principal obra: O Direito da guerra e da paz. Nosso trajeto contará, ainda, com uma breve investigação do pensamento de outros autores que trataram de temáticas similares à mencionadas, bem como do contexto histórico em que Grotius desenvolveu suas ideias. Palavras-chave: Hugo Grotius, sociabilidade, lei natural, poder civil, santo Tomás de Aquino, Cícero, physis.

ABSTRACT: In this article, we intend to analyze the notions of sociability, natural law, civil law and civil power as they are thought by Hugo Grotius in his main work: On the law of war and peace. Our journey will also include a brief investigation of the thinking of other authors who deal with similar themes, as well as an explanation of the historical context in which Grotius developed his ideas. Keywords: Hugo Grotius, sociability, natural law, civil power, Saint Thomas Aquinas, Cicero, physis.

O holandês Hugo Grotius (1597-1645) foi um personagem inquestionavelmente relevante para a vida política de sua época - tendo ocupado, dentre outros cargos, o de

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É especialista em filosofia moderna. Autor de Limites da apologia cristã (São Paulo: Garimpo Acadêmico, 2016) e 10 Lições sobre Pascal (Petrópolis: Editora Vozes, no prelo).

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conselheiro de Maurício de Nassau, o de Procurador Geral dos Estados da Holanda, Zelândia e Frísias Orientais e o de Governador de Roterdã2. Sua vida acadêmica inicia-se muito cedo: aos 11 anos é matriculado na recémcriada Universidade de Leiden, onde estudou direito e línguas clássicas e recebeu o grau de doutor honoris causa utriusque iure (direito civil e canônico). Ao longo de sua fértil jornada intelectual foi poeta, historiador, jurista, advogado, autor de uma introdução ao direito holandês – além de filósofo e apologeta da religião cristã (fato relativamente menoscabado por alguns de seus leitores que, a nosso ver, tendem a “laicizar” - de maneira exagerada - o pensamento do autor)3. Na sequência de nosso trabalho, nos debruçaremos – sobretudo – sobre algumas teses grotianas presentes em O direito da guerra e da paz (“De jure Belli ac Pacis”, de 1625), obra que inseriu definitivamente o escritor na história daquilo que pode ser chamado de filosofia do direito. Aqui, vale lembrar que, desde os últimos anos do século XV, por conta do recente contato travado com povos não-cristãos até então desconhecidos4, a civilização ocidental defrontava-se com questões jurídicas totalmente inéditas. A premente necessidade de estabelecer algo como um “solo comum” com as culturas que não reconheciam a verdade da Revelação moveu muitos teólogos – dentre os quais destaca-se Francisco de Vitória5 - a derivarem (de uma determinada leitura) da natureza humana algumas regras que, em princípio, pudessem ser consideradas universalmente válidas.

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Sobre a vida e o contexto histórico em que se moveu Hugo Grotius, conferir a introdução à edição brasileira de O direito da guerra e da paz (Ijuí: Fondazione Cassamarca, 2005), escrita por Antônio Manuel Hespanha, bem como JAVID, M. Droit naturel et droit divin comme fundaments de la légitimité politique, Toulouse, thèse de doctorat (Université des Sciences Sociales de Toulouse), 2005. 3 Grotius empreende a defesa do cristianismo em De veritate religionis Christianae, de 1627. Voltaremos ao tema da “laicização” do pensamento grotiano mais adiante. 4 Notadamente, os povos do “novo continente”. 5 Teólogo dominicano espanhol (1483-1546), professor da Universidade de Salamanca. Dentre suas preocupações centrais (abordadas, por exemplo, em De potestate civili e em De indis e de iure belli) encontra-se a relação dos Estados europeus – tanto entre si quanto no que diz respeito a outros povos. Grande teórico do direito das gentes, influenciou Hugo Grotius e é considerado, ao lado deste, como um dos pais do direito internacional moderno. No Brasil, contamos com uma boa tradução de Os índios e o direito da guerra (Ijuí: Fondazione Cassamarca, 2006), prefaciada por Francisco Castilla Urbano.

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Em linhas gerais, os grandes tratadistas ibéricos integrantes da Segunda Escolástica6 reconheciam, sem maiores problemas, a legitimidade das “instituições nativas” – desde que estas não desrespeitassem o que entendiam constituir a dignidade própria ao homem. Deste modo, quando, por exemplo, exigia-se dos “selvagens” que não impedissem a difusão da mensagem do Cristo, isto era feito sob a seguinte alegação: a comunicação é um traço distintivo do ser racional; assim sendo, quem tenta impedi-la, rebela-se contra sua própria natureza e, portanto, pode, com justiça, ser submetido a retaliação. Hugo Grotius, todavia, não está tão preocupado com a relação das repúblicas cristãs com os chamados “povos exóticos” – nem, tampouco, com a disputa de territórios longínquos por parte destas mesmas repúblicas. O que chama sua atenção é, antes de tudo, o sistema de convivência dentro da Europa. Dentre os inúmeros fatores que, à época, ameaçavam convulsionar a paz do continente, lembremos, a título de exemplo, das guerras de religião ocorridas na França, das tensões entre a Espanha dos Habsburgos e a Inglaterra e dos primórdios da Guerra dos Trinta anos. Ora, será exatamente este contexto conturbado que inspirará Grotius a investigar – na obra que será nosso objeto de estudo – as condições nas quais uma guerra pode ser declarada de modo justo, isto é, as condições nas quais a atitude bélica não entra em desacordo com o direito das gentes (ius gentium)7. Entretanto, a mente sistemática do filósofo não abordará a temática do direito das gentes de maneira direta e isolada, mas o incorporará num edifício racional8 muito mais vasto9, em cujas bases encontra-se uma ampla argumentação elaborada com vistas a 6

Movimento intelectual do século XVI – preponderantemente ibérico – baseado numa retomada e, por vezes, numa releitura das ideias de santo Tomás de Aquino. Dentre seus representantes italianos, são dignos de nota Tommaso de Vio e François de Sylvestris de Ferrara. Já, na famosa Escola de Salamanca particularmente sensível às questões contemporâneas relativas à Igreja e aos Estados -, destacam-se, além do próprio Francisco de Vitoria, Domingo de Soto e Melchor Cano. 7 Conceito cuja significação será explicitada mais abaixo. 8 Onde serão desenvolvidas suas noções de sociabilidade, lei e poder civil que tanto nos interessam aqui. 9 Em consonância com o espírito sistemático próprio aos pensadores da época. A respeito disso, que se note o tom fortemente cartesiano que, para nós, tem a declaração a seguir: “Em toda esta obra me propus sobretudo três coisas: apresentar minhas razões de decidir, apresentando-as tão evidentes quanto possível, dispor em boa ordem as matérias que tinha a tratar e distinguir claramente as coisas que poderiam parecer as mesmas, se comparadas entre si, mas que na realidade não o são”. GROTIUS, H. O direito da guerra

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refutar a posição segundo a qual o direito10 não existe. Afinal, “como toda discussão sobre o direito seria inútil se o próprio direito não subsistisse, importaria, para recomendar nossa obra e preveni-la contra ataques, refutar em poucas palavras esse grave erro”11. Neste ponto, Grotius elegerá como adversário o acadêmico Carnéades (214 – 129 a.C.) que, de acordo com o jurista, seria o mais perspicaz dentre os céticos. Com efeito, sabe-se que, em 155 a.C., houve uma missão político-diplomática de Atenas em Roma. Tal missão - como nos lembra Luiz Bicca – foi motivada por um “incidente político, um autêntico imbróglio internacional, envolvendo pretensões atenienses sobre o território de Oropos, que lhes custou uma punição, uma multa elevada imposta pelos romanos”12. Frente à gravidade da referida situação, os governantes atenienses delegaram a tarefa de defender seus interesses perante o senado romano aos líderes das três escolas filosóficas mais influentes da época – quais sejam, o acadêmico Carnéades, o estoico Diógenes de Babilônia e o aristotélico Critolau -, os quais gozavam de grande prestígio junto aos homens letrados que comandavam a Cidade Eterna13.

e da paz, Prolegômenos, 56. Ijuí, Fondazione Cassamarca, 2005, p.64. Todas nossas referências a esta obra grotiana se farão com base na supracitada edição. 10 Grotius atribui ao termo ius três significações distintas. Em I, I, III,1 de O direito da guerra e da paz, lêse: “A palavra direito (ius) nada mais significa aqui do que aquilo que é justo. Isto, num sentido mais negativo que afirmativo, de modo que o direito transparece como aquilo que não é injusto”, p.72-73. Já, em I, I, IV,1 da mesma obra, temos a seguinte declaração: “Há um significado de direito (ius) diferente do anterior, mas que dele decorre e que se refere à pessoa física. Tomado neste sentido, o direito é uma qualidade moral ligada ao indivíduo para possuir ou fazer de modo justo alguma coisa”, p.74. Por fim, em I, I, IX,1, pode-se ler: “Há um terceiro significado da palavra direito (ius), segundo o qual o termo é sinônimo da palavra lei, tomada no sentido mais amplo e que indica uma regra das ações morais que obrigam a quem é honesto”, p.78. É importante que se sublinhe que nossa análise se focará principalmente sobre esta última acepção do termo – que, de resto, é aquela da qual o próprio filósofo tirará mais consequências. 11 GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos 5, p.36. 12 BICCA, L. Carnéades em Roma: ceticismo e dialética. Rio de Janeiro, Revista Sképsis, ano 4, número 5, p.77. 13 Ainda a respeito do enorme prestígio de que desfrutavam os filósofos à época, Bicca assevera que “granjearam a adesão e orientaram a conduta dos homens cultos em toda parte: da Capadócia a Cartago, de Damasco a Massília, pessoas de diversas classes sociais buscavam inspiração e orientação no estoicismo, na filosofia Acadêmica e na do Liceu. Com isso, as instituições que eles representavam, bem como a eloquência e o encanto desses próprios pensadores, serviram para efeito de conseguir uma audiência para sua causa, por mais fraca que esta pudesse ser”. BICCA, L. Carnéades em Roma: ceticismo e dialética. Rio de Janeiro, Revista Sképsis, ano 4, número 5, p.78.

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Sabe-se também que, durante sua visita, Carnéades (assim como os outros dois pensadores) proferiu algumas palestras, duas das quais foram dedicadas ao tema da justiça - uma afirmando e fundamentando sua existência e outra a negando por completo. Ora, se o conteúdo da primeira fala de Carnéades se perdeu, o conteúdo desta última, entretanto, é tradicionalmente reconstruído a partir de algumas passagens do Da República de Cícero e do Instituições Divinas de Lactâncio. O que se segue é, precisamente, o resumo desta argumentação do mestre da Academia tal como realizado por Grotius nos Prolegomena:14 “Os homens se impuseram, em vista de seu interesse, leis que variam de acordo com os costumes e que, entre os mesmos povos, muitas vezes variam de acordo com as circunstâncias. Quanto ao direito natural, esse não existe; todos os seres, homens e outros animais, se deixam arrastar pela natureza em função de suas próprias utilidades. Deduz-se, pois, que não há justiça ou, que se houvesse uma, não passaria de suprema loucura, porquanto prejudica o interesse do indivíduo, preocupando-se em proporcionar vantagem a outrem”15. Cremos que a supracitada argumentação de Carnéades pode ser dividida em duas seções distintas. De fato, num primeiro momento, o acadêmico nega que as leis sejam algo mais do que fruto do mero interesse dos governantes partindo de uma constatação histórica – a infinda variabilidade das regras que regem os agrupamentos humanos. Entretanto - já num segundo movimento - o ponto de partida de Carnéades parece mudar, o que torna sua crítica à justiça ainda mais profunda: não se trata mais de negar a isenção das leis com base em dados históricos, mas sim de negar o próprio direito natural a partir de uma determinada concepção da natureza humana. Neste ponto, para compreendermos devidamente tanto a argumentação do filósofo cético16 quanto os argumentos elaborados por nosso jurista no intuito de refutá-la, vale a pena nos atermos ao que este último nos diz em I, I, XII,1 de O direito da guerra e da paz: “Costuma-se provar de duas maneiras que algo é de direito natural: a priori e a 14

Trata-se dos “Prolegômenos” de O direito da guerra e da paz. Para nos referirmos a esta importante parte da obra, nos utilizaremos - no corpo do texto - do termo latino “Prolegomena” – preferido e largamente utilizado pela tradição de especialistas na filosofia de Hugo Grotius. 15 GROTUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 5, p.36. 16 Tal como reconstruída por Grotius.

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posteriori. Desses dois modos de argumentar, o primeiro é mais abstrato e, o segundo, mais popular. Prova-se a priori demonstrando a conveniência ou a inconveniência necessária de uma coisa (em relação) à natureza (...). Prova-se a posteriori concluindo, se não com uma certeza infalível, ao menos com bastante probabilidade que uma coisa é de direito natural por que é tida como tal em todas as nações ou entre as que são as mais civilizadas”17. Ao aplicarmos esta distinção grotiana aos raciocínios de Carnéades, temos que este argumenta a posteriori quando, da variabilidade das leis, conclui que estas não são senão o produto do interesse daqueles que as promulgam. Afinal, se a observância das mesmas regras em épocas e lugares distintos deve poder provar - a posteriori - que estas se amarram à própria natureza humana18, a acachapante inconstância das normas que estruturam a vida em sociedade constitui, em princípio, uma prova de mesmo caráter no que concerne à mendacidade intrínseca às leis19. Ora, quando atentamos às palavras da citação transcrita há pouco, começamos a entender o motivo pelo qual Grotius não poderá aceitar a prova a posteriori do filósofo acadêmico. Explicamo-nos: nosso jurista afirma que, para se demonstrar que uma lei é natural, basta indicar que é observada, não por todas as nações, mas pelas nações mais civilizadas. Assim sendo, pode-se concluir que, para Grotius, o fato de haver algumas sociedades que não observam certas regras não constitui, em absoluto, um argumento a favor da inexistência das leis naturais – como pretendia Carnéades. Neste sentido, Grotius declarará, junto com Porfírio20, que “há povos selvagens e mesmo desumanos, a respeito dos quais juízes sensatos não devem tirar consequências para se indispor contra a natureza humana”21.

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GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XII, 1, p.85. Posição adotada por Grotius. Sublinhe-se que, ainda que as leis positivas não se confundam com as leis naturais, sua justiça depende de que estejam em acordo com estas. A distinção entre leis civis e leis naturais será esmiuçada mais abaixo. 19 Tese defendida por Carnéades. 20 PORFÍRIO. De non Esu Animantium (IV, 21). A indicação bibliográfica é fornecida pelo próprio autor de O Direito da guerra e da paz. 21 GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XII, 2, p.86. 18

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Em outras palavras, Grotius não se preocupa com o fato de algumas sociedades serem ordenadas segundo regras bizarras (ou mesmo com o fato de as sociedades ditas civilizadas, por vezes, adotarem leis bárbaras - ou antinaturais - durante um período); afinal, do mesmo modo que “aquele que afirma que o mel é doce não mente só por que os doentios não acreditam que o seja”22, as leis naturais não deixam de existir apenas por que os homens corrompidos são incapazes de reconhecê-las23. Os depravados ocupam, na argumentação grotiana, um papel análogo àquele ocupado pelos loucos na argumentação cartesiana: são depravados, e eu não o seria menos caso levasse em conta seus exemplos24. Mas de quais regras podemos dizer que são observadas, com relativa constância, pelas nações mais civilizadas? Curiosamente, Grotius não responderá a esta questão apresentando-nos uma lista formada por algumas leis apanhadas em diversas constituições – como, talvez, fosse de se esperar. Ao invés disso, o filósofo proporá uma determinada concepção de natureza humana - contrária à de Carnéades – e, exclusivamente a partir dela, deduzirá uma série de normas que pretende serem universalmente válidas - e que, precisamente por isso, seriam respeitadas em todas sociedades não degeneradas. Se não, vejamos. Quem é o homem para Grotius? “O homem é um animal, mas um animal de uma natureza superior e que se diferencia muito mais de todas as demais espécies de seres animados do que elas podem se distanciar (entre si). É o que testemunham muitas ações próprias do gênero humano. Entre essas, que são próprias aos homens, encontra-se a

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GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XII, 2, p.87. A respeito disto, Grotius ainda nos remete a Aristóteles, quando este declara que “para julgar o que é natural, é necessário examinar as coisas que se comportam convenientemente segundo a natureza e não aquelas que são corrompidas”. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XII, 2, p.87. Note-se que o autor não revela de que obra aristotélica é extraído o trecho citado. 24 Cf. DESCARTES, R. Meditações. O trecho que, especificamente, temos em mente é o seguinte: “A não ser talvez que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos”. DESCARTES, R. Primeira meditação. São Paulo, Abril Cultural (coleção “Os Pensadores”), 1979. 23

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necessidade de sociedade, isto é, de comunidade, não uma qualquer, mas pacífica e organizada de acordo com os dados de sua inteligência (...)”25. Observe-se que se, em Carnéades, o homem – a exemplo de todos outros seres – não busca senão seu interesse, em Grotius encontramos um posicionamento mais otimista – ou menos individualista – no que tange à natureza humana. Nesta altura de sua argumentação, o filósofo fará questão de frisar – por meio de inúmeras notas que remetem seu leitor a uma vasta gama de autores – que tal visão, antes de ser uma novidade de seu pensamento, é sustentada por grande parte da tradição ocidental: de Fílon de Alexandria a São João Crisóstomo, passando pelo poeta Juvenal e pelo imperador Marco Aurélio. Antes de mais nada, Grotius crê que Carnéades equivoca-se ao afirmar que os animais (em geral) buscam somente suas vantagens, pois, se assim fosse, o cuidado despendido com a prole – e, não raro, com outros indivíduos adultos da mesma espécie – restaria sem explicação. Aliás, dirá o jurista, tal comportamento, avesso a todo e qualquer instinto egoísta, é fácil e inegavelmente detectável nas crianças, “nas quais, mesmo antes de qualquer instrução, se pode verificar o aparecimento de certa inclinação para a benevolência”26. Alie-se a isto o fato de que apreciamos a companhia uns dos outros (mesmo que disto não nos advenha senão o prazer da convivência27) e de que, para tanto, somos dotados de linguagem (precioso apanágio do homem)28 - e assim, compreenderse-á por que podemos ser chamados, a justo título, de animais sociais. Todavia, isto ainda não é tudo. Como vimos, o homem não visa apenas viver em uma comunidade qualquer, mas numa pacífica e organizada de acordo com os dados de sua inteligência. Com efeito, para Grotius, da natureza sociável do homem derivam regras de coexistência – as leis naturais – que, por seu turno, são perfeitamente apreensíveis pela reta razão. É digno de nota que, de acordo com o pensamento do jurista, tais leis - que obrigam a todos - não precisam ser fundamentadas em nenhuma outra instância que não

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GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 6, p.37. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 7, p.38. 27 “A natureza do homem (...) nos impele a buscar o comércio recíproco com nossos semelhantes, mesmo quando não nos faltasse absolutamente nada”. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 16, p.43. 28 Cf. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 7, p.38-39. 26

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a própria natureza humana. Será levando isto em conta que o autor poderá asseverar que “o que acabamos de dizer (sobre as leis naturais) teria lugar de certo modo, mesmo que se concordasse com isso, o que não pode ser concedido sem um grande crime, isto é, que não existe Deus ou que os assuntos humanos não são objeto de seus cuidados”29. Eis a tão celebrada hipótese impiíssima grotiana, que fará com que alguns comentadores vejam no filósofo holandês um profundo “laicizador” dos estudos sobre o direito natural30. De fato, segundo certos especialistas, tais estudos poderiam ser divididos em três fazes distintas: o jusnaturalismo cosmológico - que fundamentaria as leis naturais na physis -, o jusnaturalismo teológico - que fundamentaria as leis naturais em Deus – e o jusnaturalismo racionalista – que fundamentaria as leis naturais tão somente na razão e natureza humanas e do qual Grotius poderia ser considerado o primeiro grande expoente31. Sem pretendermos aprofundar o debate – o que, aqui, desviaria-nos consideravelmente de nosso objetivo -, queremos simplesmente registrar nosso desacordo no que diz respeito à distinção que acabamos de evidenciar. Resumidamente, cremos que as alegadas linhas ou “escolas” de jusnaturalismo não podem, em absoluto, ser distinguidas segundo a instância em que seus autores fundamentam o direito natural. Tanto para Cícero quanto para santo Tomás de Aquino (apenas para citar os mais célebres representantes, respectivamente, do que seriam o jusnaturalismo cosmológico e o jusnaturalismo teológico), o direito natural não está atrelado senão à natureza sociável do homem. Ambos autores são unânimes ao afirmar que, tendo sido criados para viver em comunidade, os seres humanos encontram em si – em sua razão – certas disposições que devem reger todas as relações que estabelecerem

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GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 11, p.40. Conferir FERNANDES, André de Paiva Bonillo. O direito natural entre Deus e a razão: aproximações entre Tomás de Aquino e Hugo Grotius. São Paulo: USP, FFLCH, dissertação de mestrado, 2015, p.11-18. A respeito da originalidade de Grotius neste particular, Antônio Manuel Hespanha afirma que só pode ser diminuída por “exageros ideologicamente orientados”. (GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Introdução, p. 15). Como se verá, cremos que a tal posição devem ser feitas algumas ressalvas. 31 Esta classificação é proposta, por exemplo, por Antônio Castanheira Neves em Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p.24; apud FERNANDES, André de Paiva Bonillo. O direito natural entre Deus e a razão: aproximações entre Tomás de Aquino e Hugo Grotius. São Paulo: USP, FFLCH, dissertação de mestrado, 2015, p.11. 30

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com seus pares: minha necessidade do Outro32 vem, necessariamente, acompanhada da percepção de que não posso tratá-lo tão somente de acordo com meu bel-prazer33. Note-se que, quer em Cícero, quer em Tomás, a existência das leis naturais pode ser defendida apenas com base no fato de que o homem é um ser de natureza social34 e que, portanto, seus atos não devem pôr a perder os laços que - naturalmente - mantêm com seus semelhantes. É óbvio que, quando se tratar de traçar um panorama geral que englobe a natureza humana em questão, o consenso existente entre o Consul romano e o Doutor Angélico virá abaixo: enquanto para o primeiro nossa natureza não é senão uma parte integrante da physis tal como compreendida pelos estoicos, para o segundo ela será o fruto do plano de um Ser transcendente e Todo-Poderoso, que teria feito os homens para viverem uns juntos dos outros35. Isto, no entanto – ressaltamos uma vez mais -, não significa que, para argumentar em favor das leis naturais, os filósofos jusnaturalistas precisam recorrer a algo mais do que à constatação de nossa sociabilidade inata. A nosso ver, tudo quanto dissemos tende a tornar questionável a proposição de diversos “tipos” de jusnaturalismo (segundo os moldes que acabamos de indicar), bem como a atenuar a originalidade da “hipótese impiíssima” grotiana. Explicamo-nos.

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Seja ela física - como pretende Tomás (cf. nota 35) - ou, antes de mais nada, “psicológica” - como querem Cícero e Grotius. 33 Etienne Gilson, em Le thomisme, investigando a questão da lei natural em santo Tomás, afirma: “O terceiro (preceito) que se impõe (ao homem) como ser racional recomenda-lhe a procura de tudo que é bom segundo a ordem da razão. Viver em sociedade, para juntar os esforços de todos e tornar possível que uns ajudem aos outros; procurar a verdade na ordem das ciências naturais ou, melhor ainda, no que diz respeito ao supremo inteligível que é Deus; correlativamente, não prejudicar os homens com os quais somos chamados a viver, evitar a ignorância e nos esforçarmos para dissipá-la (...)”. GILSON, E. Le thomisme: introducion à la philosophie de saint Thomas d’Aquin. Paris: J.Vrin, 1965, p.331, grifo nosso. 34 Ou seja, podem ser defendidas independentemente de qualquer referência a conteúdos de fé ou dogmas religiosos. 35 O que não significa, todavia, que, para santo Tomás, a gregariedade humana se resume a um conteúdo de fé - já que a julga perfeitamente constatável pela razão (motivo pelo qual seu pensamento, neste aspecto, não pode ser considerado “menos laico” do que o de Cícero ou de Grotius). Sobre isto, que se confira a Suma contra os gentios III, cap.LXXXV, 26371 (2607), onde lê-se: “O homem é naturalmente animal político e social. Com efeito, isto se torna evidente pelo fato de que o homem, se viver sozinho, não é capaz de se manter na vida, porque a natureza só é suficientemente providente para o homem em poucas coisas. Deu-lhe, no entanto, a razão, pela qual ele pode providenciar para si todas as coisas que são necessárias para a vida (...), as quais um só homem não é capaz de conseguir. Por esse motivo foi dada ao homem a exigência de viver em sociedade”. Apud MURARO, R.T. Os limites da lei humana na Suma de Teologia de Santo Tomás de Aquino. São Paulo: FFLCH, USP, dissertação de mestrado, 2013, p.22.

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Em primeiro lugar, tanto para Cícero, quanto para santo Tomás e Grotius a sociabilidade humana é algo constatável pela mera experiência - não constituindo, portanto, um dado ao qual se chegaria somente por meio de profundas considerações metafísicas e/ou através de pressupostos teológicos. Além disso, para os três autores, as leis naturais – que devem regrar e viabilizar a vida em comunidade - são algo ao alcance de nossa razão – a qual, para conhecê-las, não precisa de nada além de encontrar-se saudável. Assim sendo, cremos que a afirmação grotiana de que a validade das leis naturais não seria abalada nem mesmo se Deus não existisse (ou se Ele não se importasse com os assuntos humanos) não representa uma quebra radical com a tradição jusnaturalista, configurando - apenas - a clarificação de uma tese que, de certo modo, já estava presente no pensamento de filósofos que precederam o jurista na tarefa de refletir a respeito do direito natural36. Voltemos, pois, ao O direito da guerra e da paz e perguntemos: segundo seu autor, quais regras deveriam viger entre os homens mesmo que o céu estivesse vazio? Bem, para Grotius encontram-se entre os preceitos fundamentais ditados pela razão“o dever de se abster do bem de outrem; o de restituir aquilo que, sem ser nosso, está em nossas mãos ou o lucro que disso tiramos; a obrigação de cumprir as promessas; a de reparar os danos causados por própria culpa e a aplicação de castigos merecidos entre os homens”37.

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Que fique assente que, com isto, não queremos negar a relevância histórica da hipótese impiíssima grotiana – mas somente indicar que sua originalidade deve ser contextualizada. Uma posição bem distinta da nossa é aquela defendida por L. F. Sahd em Hugo Grotius: direito natural e dignidade in Cadernos de Ética e filosofia política 15, 2/2009, pp.181-191 (São Paulo: FFLCH-USP). No referido texto, Sahd chega a afirmar (p.188) que, em decorrência de sua originalidade, Grotius poderia ser considerado o primeiro jusnaturalista de toda tradição ocidental. 37 GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 8, p.39.

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Ainda no que tange à relação destas normas com Deus38, Grotius a vê sob um duplo aspecto39. Afinal se, por um lado, foi Ele quem nos fez sociáveis – e, portanto, pode ser considerado, a justo título, o criador das leis naturais (ou racionais) que tornam a vida social realizável40 -, por outro lado, tais leis estão tão intimamente ligadas à nossa sociabilidade inata que nem mesmo a divindade as pode alterar. “O direito natural é tão imutável que não pode ser mudado nem pelo próprio Deus. Por mais imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não abrange porque aquelas a que fazemos alusão não podem ser senão enunciadas, mas não possuem nenhum sentido que exprima uma realidade e são contraditórias entre si. Do mesmo modo, portanto, que Deus não poderia fazer com que dois mais dois não fossem quatro, de igual modo ele não pode impedir que aquilo que é essencialmente mau não seja mau”41. O Criador certamente poderia nos ter feito de tal modo que não tivéssemos qualquer vontade de nos relacionarmos com nossos semelhantes e que não perseguíssemos senão nossos interesses pessoais; todavia, visto que fomos criados com um inelutável pendor para a vida comunitária, nem mesmo Ele pode negar a injustiça das ações que se chocam contra tão profunda e arraigada tendência – cuja efetivação se confunde com a realização de nossa própria natureza. Do fato de que as leis naturais são acessíveis a todos homens minimamente razoáveis não se segue, no entanto, que estes as observam sempre. Ainda que, por exemplo, ser fiel a seus compromissos seja uma regra do direito natural evidente para a maioria dos seres racionais, é escusado dizer que, não raro, os indivíduos a negligenciam

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Cuja existência nunca é, de fato, posta em questão. Com efeito, imediatamente após formular a hipótese impiíssima, Grotius apressa-se em declarar que: “O contrário nos tem sido inculcado em parte por nossa razão, em parte por uma tradição perpétua, e nos tem sido confirmado por numerosas provas e milagres atestados através dos séculos; (...) Nisso nós, cristãos, acreditamos, convencidos que somos por nossa fé indubitável”. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 11, p.40-41. 39 Simone Goyard-Fabre considera que Hugo Grotius não é um pensador perfeitamente moderno (mas sim de transição, situado entre o classicismo e a modernidade) precisamente por, ao falar de direito natural, ainda fazer menção à transcendência divina. Cf. GOYARD-FABRE, S. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo, Martins Fontes, 2002, p.40-70. 40 “Esse direito natural de que tratamos, tanto o que se refere à sociabilidade do homem, como aquele assim chamado num senso mais lato, ainda que decorra de princípios inerentes ao ser humano, pode, no entanto, ser atribuído com razão a Deus, porque foi ele que assim dispôs para que tais princípios existissem em nós”. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 12, p.41. 41 GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I,I,X,5, p.81.

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por completo. Como, pois, resolver este problema que poderia enfraquecer – ou mesmo tornar inexequível – a sociedade humana? É neste contexto que surgem, no pensamento de Grotius, as leis civis - ou, simplesmente, o direito civil. Deste direito, o filósofo dirá que “é aquele que emana do poder civil. O poder civil é aquele que está à frente do Estado. O Estado é uma união perfeita de homens livres associados para gozar da proteção das leis e para sua utilidade comum“42. Destrinchemos, pois, esta densa declaração grotiana. Remetamo-nos, uma vez mais, à regra mencionada há pouco – qual seja, ser fiel a seus compromissos – e analisemos o que decorreria de sua inobservância num cenário em que o Estado ainda fosse inexistente. Duas opções são factíveis: ou não haveria qualquer reação da “parte lesada” – caso fosse mais fraca do que a “parte infratora” -, ou, então, haveria alguma reação daqueles que foram lesados – caso fossem mais fortes que os infratores. Ora, a injustiça do desfecho da primeira situação é inegável. Todavia, Grotius não parece alimentar muitas esperanças quanto à pretensa justiça que permearia o desenlace da segunda situação narrada. De fato, é a própria razão que nos diz “que uma má ação pode ser punida”43. Porém, no estado pré-político, quem poderá, de direito, aplicar tais punições? Sobre isto, nosso filósofo dirá que, apesar de a natureza não indicar, de maneira específica, aquele que deverá fazer as vezes de algoz, esta função poderá ser exercida por todos que forem superiores ao transgressor, isto é, por todos que não forem “tão criminosos como ele”44. Neste particular, Grotius parece juntar-se a Maimônides e a Tomás de Aquino (por ele citados) quando estes defendem que, um criminoso, ao agir como tal, retira a si mesmo do “número dos humanos” e coloca-se na posição de um animal – ou seja, coloca-se numa posição em que os outros homens podem dispor de sua liberdade e mesmo de sua vida. Com base nisto, pode-se concluir que, no “estado de natureza”, todo aquele que for prejudicado pela não-observância de uma lei da razão (e que possuir meios para punir

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GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I,I,XIV,1, p.88. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, II, XX, III, 1, p.786. 44 GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, II, XX, III, 1, p.786. 43

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os que tiverem lhe causado a injúria) pode, licitamente, penalizar os infratores - desde que, claro está, esteja numa posição moralmente superior à destes últimos, isto é, não tenha “cometido pecado semelhante”45. Contudo, há, aqui, um problema muito bem assinalado pelo filósofo. Quando se trata de aquilatar a gravidade de uma injúria sofrida por nós e/ou por nossos entes queridos, em geral, somos facciosos – tendemos a exagerar o tamanho da ofensa e, precisamente por isto, corremos o risco de agirmos injustamente ao castigarmos quem nos fez sofrer: “como nos negócios que nos dizem respeito - e pela afeição que temos para com os nossos - estamos sujeitos a nos deixar corromper, logo que várias famílias se uniram num mesmo local, os juízes foram instituídos e só a eles foi conferido o poder de vingar os ofendidos; a liberdade que a natureza havia concedido aos outros se encontrou desde então supressa”46. É evidente, pois, que, para Grotius, a injustiça se faria insuportavelmente presente em qualquer local em que não houvesse um poder comum capaz de obrigar a todos e a cada um - pois, neste estado, ou bem as injúrias restariam sem punição, ou bem seriam retribuídas com novos atos iníquos: somos sociáveis, não santos. Assim, no intuito de diminuírem o coeficiente de injustiça - e, consequentemente, de tornar sua convivência mais estável e pacífica – os homens optaram por unirem-se sob um corpo político47. Em consonância com isto, lembremos que, há algumas linhas, acompanhamos Grotius definindo o Estado precisamente como “uma união perfeita de homens livres associados para gozar da proteção das leis e para sua utilidade comum” – definição esta que, agora, estamos em condição de compreender melhor.

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GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, II, XX, III, 1, p.787. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, II, XX, VIII, 4, p.800. 47 Diferentemente de Hobbes, Locke e Rousseau, Grotius não tece longas considerações no que toca à transição do estado pré-político para o estado político. Suas declarações a este respeito, via de regra, são sucintas e encontram-se dispersas ao longo dos inúmeros capítulos que compõem O direito da guerra e da paz. Para uma melhor compreensão do tema, conferir PINHO, B.O. Direito natural em Hugo Grotius. (São Paulo: FFLCH-USP, dissertação de mestrado, 2013) – notadamente o capítulo 2.3, intitulado “O surgimento da sociedade civil e da propriedade”. 46

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Aqui, é importante notarmos que, se era nossa natureza sociável que nos fazia buscar comércio com nossos semelhantes, será nossa utilidade48 que ditará o estabelecimento do poder civil – a cuja autoridade todos membros do Estado estão sujeitos. Ao poder civil caberá, acima de tudo, o direito de declarar a guerra, selar a paz e negociar alianças, bem como o direito de legislar e de julgar os processos dos particulares: ou seja, ficará a seu encargo o cuidado de todas as questões relacionadas à proteção dos associados, quer no que diz respeito às “ameaças externas”, quer no que tange aos perigos inerentes à vida no interior do Estado. Do poder civil poderá se dizer que é soberano na exata medida em que suas resoluções não estão à disposição de outrem – tanto em termos de força quanto (principalmente) em termos de direito49: “seus atos (...) não podem ser anulados ao belprazer de uma vontade humana estranha. Dizendo “vontade humana estranha”, excluo aquele que exerce esse poder soberano e ao qual é permitido mudar de vontade. Excluo também seu sucessor, que goza do mesmo direito que ele e que, em decorrência, possui o mesmo poder e não outro”50. Como já apontamos, dentre estas resoluções irresistíveis do poder civil51 estão as leis civis e sua aplicação às contendas dos particulares. Ora, ainda que estas leis não

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“Quanto à utilidade, ela foi a causa ocasional do direito civil, pois a associação de que falamos, ou a sujeição a uma autoridade, começa a se estabelecer em vista de alguma vantagem”. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 16, p.43. 49 Para Grotius, a soberania do Estado é o que faz com que ele possa ser considerado uma “união perfeita” – isto é, uma “união” à qual nada falta, tampouco o poder decisório supremo: “Excluímos, por esta razão os povos que aceitaram passar sob a dominação de outro povo, como o fizeram as províncias dos romanos, pois não constituem por si mesmos um Estado, no sentido que ora atribuímos ao termo, mas são os membros menos dignos de um grande Estado, do mesmo modo que os escravos são membro de uma família. Em contrapartida, pode ocorrer que o chefe seja o mesmo para vários povos que, no entanto, formam cada um em particular uma sociedade perfeita”. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, III, VII, 2, p.176. 50 GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, III, VII, 1, p.175. 51 Segundo Hugo Grotius, nem sempre pode-se dizer que a soberania reside no povo: “Por que, pois, não seria permitido a um povo submeter-se, por própria iniciativa, a um só indivíduo ou a vários, de modo a lhes entregar totalmente o direito de governá-lo, sem reserva alguma?” GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, III, VIII, 1, p.177. Nestes casos, o filósofo afirma que somente seria lícito se resistir ao soberano numa situação de risco eminente de morte – resistência esta que, necessariamente, deve ainda estar submetida ao bem público e que não pode chegar ao extremo de atentar contra a vida do(s) governante(s). Cf. Idem, I, IV, VII, p.248-260. Por outro lado, no que toca aos “príncipes que são subordinados ao povo”, é lícito que se lhes resista – e até mesmo que se lhes impinja a pena capital –, caso “cheguem a violar as

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possam contrariar as leis naturais – das quais, de certo modo, devem ser apenas derivações -, elas são, por assim dizer, mais completas do que estas últimas, uma vez que suas prescrições vêm acompanhadas das respectivas punições que deverão ser impingidas a todos aqueles que as violarem. Eis por que é extremamente vantajoso para os homens constituírem um corpo político regido por leis elaboradas e afiançadas pelo poder que está a sua frente – o poder civil. Diferentemente do que ocorre na situação pré-política – em que os indivíduos se encontram à mercê de sua própria sorte -, os membros de um Estado têm uma instância superior à qual podem recorrer em todos os casos em que se sentirem vítimas de alguma injustiça - podendo, deste modo, dar curso, de maneira relativamente mais despreocupada, a seu instinto de sociabilidade. É possível, pois, resumir-se o pensamento de Grotius sobre os temas abordados até aqui do seguinte modo: o homem é um animal social; do seu pendor à vida em comunidade podem ser deduzidas certas regras básicas do justo e do injusto (as leis naturais, de todo acessíveis à reta razão); são previstas por estas leis - por exemplo - tanto a obrigação de se cumprir as próprias promessas como a aplicação de penas àqueles que faltarem com sua palavra; dado que tendemos a ser parciais quando julgamos aqueles que nos causaram algum dano, surge a necessidade do soerguimento de um poder capaz de regular – justamente - a vida em sociedade, o poder civil; tal regulamento se dá através da promulgação das leis civis, bem como de sua aplicação às disputas particulares; cabe ainda ao poder civil cuidar de tudo aquilo que concerne à segurança dos membros do Estado, tal como a declaração da guerra e a elaboração de alianças com nações estrangeiras. No entanto, as leis naturais e as leis civis não são as únicas categorias de lei mencionadas por Hugo Grotius na obra que ora analisamos. Assim sendo, antes de

leis”. Cf. Idem, I, IV, VIII, 1, p.260. Por fim, vale ressaltar que Grotius defende que os cristãos, enquanto tais, devem estar dispostos a não “opor resistência aos que possuem o poder superior” – não se importando com o que daí possa lhes advir. Cf. Idem, I, IV, VII, p.248-260.

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finalizarmos este artigo, sentimo-nos na obrigação de, pelo menos, listar os outros tipos de normas que figuram no Direito da guerra e da paz. Com efeito, no edifício teórico de nosso filósofo, o direito civil será apenas um caso específico do que é conhecido como direito voluntário humano, que também abarcará o direito mais restrito que o civil e o direito das gentes. Ora, quanto ao direito civil não pode haver problemas. Como vimos, ele diz respeito às leis que emanam da vontade do poder civil – cujo esforço deve dar-se no sentido de reforçar e de calçar as leis naturais. Quanto ao direito mais restrito que o civil, pode-se dizer que é o que “compreende as ordens de um pai, de um mestre e outras similares”52; ou seja, é aquele que se refere às regras estabelecidas por um “superior” que não seja o próprio poder civil (ainda que não possam contrariar as determinações deste último). Já no que concerne ao direito das gentes (jus gentium), Grotius assevera que é “aquele que recebeu sua força obrigatória da vontade de todas as nações ou de grande número delas”53. Na realidade, quase nenhuma das leis pertinentes ao direito das gentes é universal, isto é, quase nenhuma delas é aceita por todos os países. De fato, tais normas parecem ser o resultado de convenções “locais”, sustentadas por grupos de Estados com vistas a regrar as guerras e os acordos internacionais. Será precisamente o direito das gentes (que, assim como as leis civis, deve estar em consonância com o direito natural) aquilo que permitirá a Grotius traçar distinções entre as guerras legítimas e as guerras ilegítimas54: preocupação fulcral do De jure Belli ac Pacis. Ao lado das espécies já elencadas de direito, nosso filósofo arrola, por fim, o direito divino específico e o direito divino universal, ambos voluntários. Genericamente, o direito divino voluntário distingue-se do direito natural na medida em que emana pura e simplesmente da vontade divina, tornando-se manifesto por meio de uma revelação

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GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XIV, 1, p.88. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XIV, 1, p.88. 54 Conferir GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, §21 e segs. 53

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sobrenatural - enquanto este último não passa de uma consequência de nossa natureza sociável, podendo ser logicamente deduzido a partir dela. O direito divino específico está relacionado aos mandamentos que Deus prescreve, de maneira peculiar, a um povo – notadamente, ao povo judeu: “dentre todos os povos, há um somente ao qual Deus se dignou a conceder leis em particular, ou seja, ao povo hebreu, ao qual Moisés se dirige nesses termos (Deuteronômio IV, 7): ‘Existe nação tão poderosa que tenha tido deuses tão favoráveis, quanto tem sido o Senhor, nosso Deus, a todos os votos que a ele elevamos? Existe nação tão poderosa que possua instituições e leis justas como o é, em seu conjunto, esta lei que promulgo hoje ante vós?’”55 Ora, as leis destinadas aos judeus obrigam somente a eles - visto que “uma lei não obriga aquele a quem não foi dada”56. Isto, não entanto, não significa que Deus não tenha manifestado sua vontade a todos nós e que, portanto, não tenha prescrito regras à humanidade em sua totalidade. Com efeito, as prescrições do direito divino universal deram-se a conhecer em três momentos distintos da história: imediatamente após a criação do homem, por ocasião da dispersão das águas do dilúvio e, finalmente, “no momento da mais grandiosa reparação, que foi realizada por Cristo”57. Por amor a nós, o Criador não quis que os princípios da justiça fossem atingíveis somente através da razão, tornando-os sensíveis – por meio de sua Revelação – “até mesmo para aqueles cujo espírito é menos apto ao raciocínio”58. A verdade, além de ensinar interiormente, cala fundo em todos que, escutando, ouvem59.

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GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XVI, 1, p.89. GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XIV, 2, p.90. 57 GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, I, I, XV, 2, p.89. 58 GROTIUS, H. O direito da guerra e da paz, Prolegômenos, 13, p.42. 59 O que não significa que, para Grotius, os preceitos presentes nas Escrituras sejam idênticos às leis de natureza, já que são mais exigentes e mais perfeitos do que estas. 56

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Referências bibliográficas DESCARTES, R. Meditações. São Paulo, Abril Cultural (coleção “Os Pensadores”), 1979. FERNANDES, André de Paiva Bonillo. O direito natural entre Deus e a razão: aproximações entre Tomás de Aquino e Hugo Grotius. São Paulo: USP, FFLCH, dissertação de mestrado, 2015. GOYARD-FABRE, S. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo, Martins Fontes, 2002. GILSON, E. Le thomisme: introducion à la philosophie de saint Thomas d’Aquin. Paris: J.Vrin, 1965. HUGO, G. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Fondazione Cassamarca, 2005. MURARO, R.T. Os limites da lei humana na Suma de Teologia de Santo Tomás de Aquino. São Paulo: FFLCH, USP, dissertação de mestrado, 2013. NEVES, A. C. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1994 PINHO, B.O. Direito natural em Hugo Grotius. São Paulo: FFLCH-USP, dissertação de mestrado, 2013. SAHD, L. F. Hugo Grotius: direito natural e dignidade in Cadernos de Ética e filosofia política 15, 2/2009, pp.181-191 (São Paulo: FFLCH-USP).

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BOTA A FALA: CANTANDO O FUTURO, RECONHECENDO O PASSADO MARCOS CARVALHO LOPES1 MAGNUSSON DA COSTA2 TANIA CORREA JALÓ3 KADIJA TURÉ4 LAURO JOSÉ CARDOSO5 SULEIMANE ALFA BÁ6 JOÃO DITO SAMBU7 VICTOR CASSAMÁ8 RÓ GILBERTO G. CÁ9

RESUMO: Este trabalho apresenta o projeto Bota a fala: hip-hop, reconhecimento e paideia democrática, explicando muito rapidamente (1) sua origem; (2) contextualizando seus pressupostos teóricos e (3) apresentando e analisando as duas primeiras canções compostas pelo grupo, “Bem-vindos”, mixada com a ideia de lusotopia – de João de Pina Cabral; e “Preconceito”, sampleada com a descrição da razão negra feita por Achelle Mbembe. Palavras-chave: hip-hop, lusotopia, preconceito, autoafirmação negra.

ABSTRACT: This work presents the project Bota a fala: hip-hop, reconhecimento e paideia democrática explaining very quickly (1) their origin; (2) contextualizing their theoretical presupposes and (3) presenting and analyzing the first two songs composed by the group, "Ben-vindos", “mixed” with the idea of lusotopia - by João de Pina Cabral; and "Preconceito", “sampled” with the description of the black reason made by Achelle Mbembe. Keywords: hip-hop, lusotopy, racis, subject, subjection.

1 Professor na UNILAB – Campus dos Malês em São Francisco do Conde, é doutor em filosofia pela UFRJ e pós-doutorando em Literatura, cultura e contemporaneidade pela PUC-RJ. 2 UNILAB, discente do curso de Humanidades, bolsista PIBEAC/UNILAB. 3 UNILAB, discente do curso de Humanidades. 4 UNILAB, discente do curso de Letras. 5 UNILAB, discente do curso de Letras, bolsista voluntário PIBEAC/UNILAB.. 6 UNILAB, discente do curso de Humanidades, Bolsista de iniciação científica PIBIC/UNILAB. 7 UNILAB, discente do curso de Letras. 8 UNILAB, discente do curso de Letras. 9 UNILAB, discente do curso de Humanidades.

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O hip-hop foi criado por jovens negros urbanos e talentosos nos Estados Unidos, que fundiram formas musicais do Novo Mundo africano e estilos retóricos com as novas tecnologias pós-modernas. Assim como os spirituals, Blues e jazz – as maiores formas de arte que emergiram dos Estados Unidos – , a música hip-hop expressou e representou a parrhesia socrática (discurso ousado, franco e simples diante da moralidade convencional e do poder fortificado). Os objetivos básicos do hip-hop também se desdobram em três: criar uma agradável diversão e uma arte séria para os rituais dos jovens; criar novas maneiras de escapar da miséria social; e explorar novas respostas para o significado e sentimento em um mundo dirigido para o mercado. (WEST, 2006: p.15).

O projeto Bota a fala: hip hop, reconhecimento e paideia democrática surgiu de um desafio feito pelos estudantes da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Um desafio diferente, ou melhor, uma provocação criativa que gera sentido. Este desafio se “fia” numa lealdade, na confiança, numa” fé” que é a chave pedagógica de qualquer educação que valha a pena. Afiamos nossas palavras em comum, em diálogo, que retece os sentidos. Porém, seguindo o encontro, houve um movimento, um desvio, uma inversão na direção da ação, uma abertura que desconstrói e redescreve. Explicar em que circunstâncias isso aconteceu ajuda a entender como a aproximação com o hip-hop desafiam e como este projeto pretende contribuir para o desenvolvimento de uma educação (paideia) democrática. O Bota a fala começou em janeiro de 2015, partindo do desafio de utilizar uma linguagem que os estudantes dominavam e gostavam, desenvolvendo canções que servissem tanto para das boas vindas aos estudantes (estrangeiros e brasileiros que chegavam à UNILAB), quanto como uma forma de denunciar e combater o preconceito, um problema que no cotidiano surgiu como novidade negativa para aqueles que vieram de países lusófonos da África para estudar no Brasil. A miragem da democracia racial ainda engana... O resultado da primeira apresentação foi amplamente positivo. De lá para cá o grupo já participou de diversos eventos, bate-papos etc. De todo modo, o sentido do Bota a fala está mais na autocriação e autodeterminação expressa em suas canções do que em qualquer teoria prévia. De todo modo, há sempre alguns pressupostos que mereceriam ser mais bem descritos.

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O Bota a fala é um projeto de pesquisa educacional baseado nas artes, que utiliza o hip-hop como linguagem para compor uma educação (paideia) democrática. Desenvolvido por estudantes da UNILAB do Campus dos Malês da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), o Bota a fala procurar dar voz e debater questões raciais, questionar estereótipos de gênero, pensar as relações entre educação estética e autocriação ética, valorizando os múltiplos letramentos potencializados pelo hip-hop. Identificando-se como um projeto de pesquisa educacional baseado nas artes (Arts-based Teacher Education Project), o Bota a fala desenvolve uma modalidade de investigação qualitativa no campo da educação na qual os produtos artísticos e o processo criativo de construção são reconhecidos como “representando” resultados. Neste sentido, partimos do reconhecimento de que uma performance do grupo apresenta resultados da pesquisa desenvolvida, aproximando o fazer artístico e acadêmico (TELLES: 2006 e DIAS; 2003). O hip-hop já tem um amplo reconhecimento dentro dos estudos afro-diaspóricos, tanto por sua relevância como uma forma de cultura global que pede uma contextualização local, construindo formas de expressão que misturam elementos prévios, questionando pressupostos culturais (teóricos, estéticos, políticos etc.) universalistas e da originalidade e propriedade, servindo como instrumento privilegiado na construção de uma forma de educação democrática, que rompa com os pressupostos academicistas bancários e desenraízados. Por conta deste potencial como forma de cultura global, o hip-hop permite a conexão entre culturas diversas que se reconhecem através da construção de identidades pós-coloniais em que a cultura afro-diaspórica afirma sua condição de agente. O tipo de abertura que a performance e a canção proporcionam, ampliam as possibilidades de reconhecimento e identificação moral. A identificação moral é um pressuposto para qualquer educação que pretenda modificar os sentimentos e narrativas, promovendo um tipo de educação profunda que mereça o nome de democrática.

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Não trataremos aqui de explicar todos os nossos pressupostos teóricos, mas seguimos a estética pragmatista proposta por John Dewey e desenvolvida por Richard Shusterman e Cornel West – inspirada no neopragmatismo de Richard Rorty – para abarcar o hip-hop; apropriamo-nos da concepção de educação de Paulo Freire, pensando o oprimido como desenraizado; dialogamos com os letramentos de reexistência de Ana Lúcia Silva Souza; da filosofia pop de Charles Feitosa; da afroperspectiva de Renato Noguera etc. Aqui apresentaremos as duas primeiras canções compostas pelo Bota a fala: “Bem-vindos” e “Preconceito”. O desenvolvimento da letra foi feito como um trabalho ao mesmo tempo coletivo e individual, já que as estrofes geralmente foram escritas por uma única pessoa. Por isso mesmo, as letras não deixam de ser polifônicas e a tentativa, desenvolvida na sequencia desta fala/texto, de descrevê-las de modo narrativo e híbrido (sampleando seu sentido com aqueles propostos por textos teóricos) não deve ser tomada como uma reificação, mas como uma tentativa de complexificar e fazer pensar mais e mais com as canções.

Bem-vindos A ideia de uma Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira (UNILAB) pressupõe a lusotopia de um espaço comum de inter-relação, que se justifica e efetiva não somente a partir do compartilhamento de uma língua, mas também por uma série de traços culturais, institucionais, políticos que arquitetam características de um modo de ser-no-mundo como identidades continuadas, que facilitariam o reconhecimento e a abertura para relações de proximidade fraternal (amicitia), constituindo o que João de Pina Cabral chamou de ecumene, uma rede aberta de interligações. Na descrição de Pino Cabral, a ideia de lusotopia não é uma forma de utopia, mas um conjunto de disposições e narrativas que funcionam para o autor como constituintes ontológicos do mundo historicamente compartilhado que surgiu a partir da expansão marítima portuguesa no século XVI, não se desenvolvendo como estruturas vinculadas necessariamente a territórios ou a linguagens ou nações, mas efetivando-se

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como catalisador para relações de proximidade e reconhecimento como aquelas que se dão na proximidade do parentesco. Explica Pina Cabral que fazer parte da lusotopia como ecumene é ser agente/paciente dos modos de identificação/diferenciação que são a chave para produzir e reagir ao catalisador da amicitia. [...] Cada um de nós que possui esses modos de identificação/diferenciação (isto é, que os transporta no seu passado e que os assinala de forma essencializada por virtude da sua presença) é co-constituinte de um espaço/tempo por virtude de fazer parte dele. A lusotopia como ecumene, portanto, consolida-se através da sua ocorrência. Essa ocorrência é instanciada no momento de intersubjectividade – quer dizer, para simplificar, quando duas pessoas que possuem esses modos de identificação sentem os efeitos do catalisador de amicitia e assumem reflexivamente a sua presença.

A UNILAB, no entanto, não é somente um lugar que potencializa a lusotopia, mas que agrega outros fatores explicitamente, ao afirmar-se “afro-brasileira” procura resgatar formar de interligação, ecumenes comuns ao Brasil e a África, mas não somente. De certo modo, a cultura jovem globalizada nos horizontes pós-coloniais procurou apropriar-se de formas de vida e expressão da cultura negra norte-americana como o hiphop, que promove conexões periféricas e diaspóricas – Halifu Osumare fala em connective marginalities – que apontam para uma internacionalização que não se assemelha ao universalismo descontextualizado. Por isso mesmo, é preciso cantar o seu lugar, inventá-lo por meio da palavra. Com a UNILAB não seria diferente. A canção “Bem-vindos” foi escrita par ser uma forma de receber os calouros que chegavam para a UNILAB. Neste sentido, seu canto cria a legenda para este lugar no qual diversos povos “unidos pela História” conviveriam como uma família, deixando de lado suas diferenças. A idealização da “Família UNILAB” não se dá sem uma nota divergente, polifônica e em uma língua distinta, em crioulo guinense a resignação para superar as precariedades surge como um provérbio que afirma uma forma de solidariedade diante das limitações e dificuldades. A UNILAB é nossa universidade. Reivindicar o nós é criar esta comunidade imaginada. A experiência de exílio, de quem precisa viver a diáspora, saindo de casa na procura de um futuro melhor também é tematizada em “Bem-vindos” como uma luta na

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qual é necessário utilizar a mente, em que a vitória é uma forma de honrar a família distante. Existe uma distância entre a esperança na “Família UNILAB” e a saudade da família real e distante, antecipando-se ao trabalho de luta/luto necessário para habituaremse as ausências. Esta dupla projeção, passado-futuro também se “espacializa” entre um fora e dentro da UNILAB, se o mundo está cada vez mais complicado a universidade é o lugar no qual se busca um refúgio, não como distanciamento, mas buscando ferramentas para mudar o mundo. A UNILAB é o ponto de partida, o projeto Bota a fala é cantado como instrumento de transformação para reconstruir o mundo. Mas, em que sentido? Em questão está o racismo, a divisão entre “pretos” e “brancos”. O olhar desfocado precisa ser aperfeiçoado para superar qualquer divisão: na UNILAB precisaríamos aproximar a universidade da sociedade e questionar o apartheid cotidiano, construindo formas de inclusão que realmente mereçam este nome. Na última parte da canção outra voz surge: a do estudante que chega, responde a saudação e faz um balanço de seus sonhos e objetivos. Neste trecho, intuitivamente surge a ideia de que é preciso conhecer o passado e incorpora-lo para construir o futuro de modo consequente, sankofa. As dificuldades não são negadas, mas a esperança de construir este lugar é a nota final: a condição “melhorista” não jogou para baixo do tapete todos os problemas enfrentados, mas convida aqueles que cantam juntos para que se reconheçam nesta luta, trabalhando para fazer a “Família UNILAB” um lugar em que a convivência permite superar as distâncias. (Voltando a descrição de lusotopia feita por Pina-Cabral, vale lembrar que a disposição para relações fraternais, não significam necessariamente relações de amizade, como sabemos, muitas vezes os conflitos que se dão entre próximos são os mais apaixonados e violentos. A família UNILAB não deixa de ser um lugar de tensões cordiais...). Cito a letra: Bem−Vindos

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Sejam bem−vindos à família UNILAB Nossos irmãos de Cabo-Verde, Angola, Moçambique, Brasil, Guiné e São Tomé Cabó medi nada, kilku tem el ki nona kumé Somos povos unidos pela História Por isso, abraça o teu irmão Abra o seu coração Aqui não existe raça, cor e muito menos religião O que prevalece é a nossa união. Bem-vindos à família UNILAB Bem-vindos à nossa universidade Bem-vindos à São Francisco do Conde Bem-vindos, Bem-vindos ao Brasil Eu sei que ta com a saudade da tua família, mas mantenha foco naquilo que lhe trouxe aqui. essa luta você tem força irmão pra vencer. pra subires na vida só depende de você. use a mente , vai avante, seu futuro será brilhante. use a mente, vai avante seu futuro será brilhante. então lute! abó i mais q´ um vencedor, bu familia sé sintido tudo sta na bó. O mundo está complicado e torna cada vez mais complicado, nossa sociedade Hey man acredite, aqui é o seu lugar você parte da solução traga suas amigas, traga os seus amigos ABC, a escola é muito mais que isso man, podes crer que um dia eu, você, vamos reconstruir o mundo projeto bota a fala , nossa missão a escola man é nosso ponto de partida preto, branco, coisas desfocadas ando you brother, puxa a mente não deixa nada te levar na divisão: aqui é o seu lugar Trouxe na minha bagagem muitos sonhos, vontade de vencer e superar as minhas debilidades. Cheguei nessa universidade concentrado no objetivo, com uma nova vibe, sistemas de um ser ativo. Quando olho para o passado e lembro do meu percurso, me sinto orgulhoso e disposto para o futuro. Para mim, um ser que muda perspectivando o melhor, é aquele que melhor sabe lidar com o pior.

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Preconceito O que significa a autoafirmação de ser negro/preto/africano? Esta primeira palavra é um gesto de autodeterminação cujo significado é de um desafio. Desafio ao primeiro movimento daquilo que Achelle Mbembe chamou de “razão negra”, como sendo a “consciência ocidental do negro”, um conjunto de práticas discursivas que cotidianamente sustentam a descrição do negro “enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem, passível, a tal respeito, de desqualificação moral e de instrumentalização prática” (MBEMBE, 2014: p.58). Esse primeiro discurso, que se pretendia universal, aos poucos foi se deteriorando, ganhando tons desafinados, vozes dissonantes que o contradiziam e contestavam, num segundo texto que apresenta justamente, a consciência negra do Negro. Esta última se apresentaria justamente a partir do gesto de autodeterminação, que vem acompanhado de um “modo de presença em si, olhar interior e utopia crítica”. Explica Mbembe que “se a consciência ocidental é um julgamento de identidade, este texto segundo será, pelo contrário, uma declaração de identidade. Através dele, o Negro diz de si mesmo que é aquilo que não foi apreendido; aquele que não está onde se diz estar, e muito menos onde o procuramos, mas antes no lugar onde não é pensado” (MBEMBE, 2014: p.59). Esta, que deveria ser uma canção sobre “preconceito” – como afirma o título –, é na verdade uma canção de autoafirmação (que não tem como tônica nenhuma posição cordial ou de dupla consciência). A apropriação positiva do nome negro é, na descrição de Mbembe, uma forma de subversão daquilo que é atribuído e muitas vezes interiorizado como sendo a “consciência ocidental do negro”. Esta subversão, de certo modo, “explode por dentro” a própria função preconceituosa do nome “negro”, que redescrito, apropria-se do passado de escravatura, segregação e colonização, em que os corpos eram utilizados como objetos sem voz, para afirmar o agora em que se tem o microfone nas mãos, como aquele em que se afirma/cria um novo sentido, de protagonismo, de agenciamento. Com esta redescrição a própria palavra “negro” se esvazia de um modo semelhante aquele em que Franz Fanon o utilizou o termo “Negro” advém mais de um mecanismo de atribuição do que de autodesignação. Eu não sou negro, declara Fanon, nem sou um negro. Negro

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não é nem meu nome nem apelido, e menos ainda a minha essência e identidade. Sou um ser humano e isto basta. O Outro pode disputar em mim esta qualidade, mas nunca conseguirá tirar a minha pele ontológica. O facto de ser escravo, de ser colonizado, de ser alvo de discriminações de toda a espécie de praxes, vexações, privações e humilhações, em virtude da cor da pele, não muda absolutamente nada. Continuo a ser uma pessoa intrinsecamente humana, por mais violentas que sejam as tentativas que pretendem fazer-me crer do contrário. Este excedente ineliminável, que escapa a qualquer captura e fixação num estatuto social e jurídico e quem nem a própria condenação à morte conseguiria interromper, nenhuma designação, nenhuma medida administrativa, nenhuma lei ou atribuição, nenhuma doutrina e nenhum dogma poderão apagá-lo. “Negro” é, portanto, uma alcunha, a túnica com a qual outros me disfarçaram e na qual me tentam encerrar. Mas entre a alcunha, aquilo que pretendem que ele diga e o ser humano que deve interioriza-lo, há algo que jamais deixará de fazer parte do afastamento. E é este afastamento que o sujeito é chamado a cultivar e, até, a radicalizar (MBEMBE, 2014: p.88).

O que não se apreende é a voz, é o canto é o gesto de contestação próprio da linguagem hip-hop. O racista passa a ser visto como alguém infantilizado, que bem merece assim ser tratado. A possibilidade de criar novas harmonias na UNILAB, de fazer deste lugar um espaço que combate e vai contra qualquer forma de discriminação é tema do Bota a fala, que explicitamente apropria-se da arte para multiplicar sentidos: precisamos intervir para melhorar as coisas, aprimorar o mundo. Este sentido de arregaçar as mandas a invés de prender-se a qualquer ressentimento é bem pragmatista – é o otimismo da vontade tentando superar o pessimismo da razão. Quem tem a palavra agora não veio para o Brasil na condição de escravo, muito pelo contrário, é alguém que pode ironizar a pretensão dos que se dizem civilizados, sabendo que, ao levantar a voz causara “espanto”, que sua autodeterminação fere os pressupostos do universalismo que define o que é ou não conhecimento. Perguntar ao ouvinte ignorante e preconceituoso, que ocupa o lugar de quem se prende ao primeiro movimento da razão negra, se entendeu o que foi dito, é inverter o jogo. Um passo a mais está em afirmar a co-dependência, e pelas diferenças reconhecer ubuntu. Mai uma inversão é tomar as diferenças de cor como resultado das filiações que partem da negritude: os negros e as negras são tomados como padrão, aqueles que são a humanidade original.

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A polifonia toma lugar sem um discurso final, apenas a afirmação de que na UNILAB teremos um espaço em que as diferenças seriam respeitadas, ou melhor, superadas por esta autodeterminação. Se temos diferenças culturais e de tons de pele, mais coisas nos aproximam, muito mais coisas e sentimentos. È preciso seguir o beat para entender, a pulsação, a emoção compartilhada na performance da canção, produz uma harmonia que materializa este sentido. Eis a letra: Preconceito Eu sou negro Eu sou preto Eu sou africano Com muito orgulho Nada nos possa deter mesmo que muitos nos digam que não Sempre de cabeça erguida que vamos conquistar Se dantes éramos levados para a Europa Trazidos para as Américas Usados como cobaias Trabalhando como escravos Mas agora, é a hora, da nossa afirmação Negro no poder Negro no poder Por que de tanto preconceito? Por que de tanta discriminação? Podemos ter diferenças na cultura ou na cor da pele Mas todos nós pertencemos a uma única raça “a raça humana” Pra tu que es negro Pra tu que não é racista Ponha as mãos no ar e grita numa só voz Não ao preconceito! Não à discriminação! Não ao preconceito! Não à discriminação! Podemos ter a diferença na cultura ou na cor Unidos pela história somos todos iguais O racismo é mau, quem negar leva tau-tau, Eu sou africano, 100% black power Tipo Tina Turner, Com uma voz gigante, Venho de São Tomé, pois aqui somos irmãos, vês?! Sinta a pressão dessa pura mensagem, Arte e imaginação, sentido sem bandidagem. UNILAB nas costas, vamos abrir as portas, Ignorando os preconceitos, firmando novos conceitos.

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Sintonia lusófona em terreno brasileiro, Harmonia autêntica para o mundo inteiro, Clap-clap, batam as palmas, reflitam sobre o assunto, Não a discriminação, é esse o bom conteúdo. Ser negro é bom, transmito isso no som, Independentemente da cor, escutem bem esse louvor. Repitam aqui o refrão, deixa entrar no coração, Somos a equipa de ação, prontos para a intervenção… yá!” Podemos ter a diferença na cultura ou na cor Unidos pela história somos todos iguais não viemos acorrentados em navios negreiros como no século passado não… chegamos aqui, uns de terno e gravata, relógio no pulso, cabeças raspadas, sei lá… se isso é que chamam de civilização. que cara é essa brow? sou diferente? sou. pra frente eu vou. qual é a parte da minha historia que você não entendeu? por ser diferente não me faz teu inimigo, nossas diferenças que fazem do mundo, mundo. preciso de ti, sei que precisas de mim. brow, sacou? Negro ou negra também pode ser pai ou mãe por isso pode ter a diferença na cultura ou na cor mas que na verdade somos todos iguais Podemos ter a diferença na cultura ou na cor Unidos pela história somos todos iguais Somos todos iguais , meu irmão deixa de mania Ouça bem este beat rap, este flow Dito Buanh SD, pronto eu estou aqui -”eu não sou ninguém brother” “vai, olha para mim, homem como tu, como qualquer um” Homem malcriado, deixa de maldade não me trate assim, vai Esquece minha raça, minha fala Não importa se sou pobre e vivo na senzala ou no gueto O que é certo mam aqui todos somos iguais Vai, respeita seu brother, bora!

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Referências bibliográficas MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. 1ª ed. Lisboa: Antígona, 2014. OSUMARE, H. Global Hip-hop and the African Diaspora. In: H. Elam, Jr. & K. Jackson, eds., Black Cultural Traffic: Crossroads in Global Performance and Popular Culture. Ann Arbor, MI: University of Michigan Press, 2005. p. 266-288. PINA-CABRAL, J. Lusotopia como Ecumene. Revista Brasileira de Ciências Sociais 25 (74), 2010, pp. 5-20. WEST, C. Prefácio. In: DARBY, Derrick e SHELBY, Tommie. (Org.). Hip Hop e a Filosofia. Da rima à razão. Trad. Martha Malvelli Leal. São Paulo: Madras, 2006. p.1516.

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TRADUÇÃO

Culturas políticas pós-convencionais via processos de democracia direta: considerações teóricas baseadas em Jürgen Habermas e Lawrence Kohlberg

Post-conventional Political Cultures via Processes of Direct Democracy: Theoretical Considerations Based on Jürgen Habermas and Lawrence Kohlberg Rolf Rauschenbach1 Frederico Graniço2

Resumo: Neste artigo, propõe-se diferenciar culturas políticas em duas dimensões. Em primeiro lugar, partindo-se da distinção de Habermas dos conteúdos do discurso, sugerese uma distinção entre elementos morais, ético-políticos e pragmáticos da cultura política, bem como de um elemento de cultura de interesses equilibrados. Em segundo lugar, partindo-se dos modelos de estágio de Kohlberg para o desenvolvimento da consciência moral individual e para a cultura moral, sugere-se uma distinção entre dois estágios coletivos pré-convencionais, dois convencionais e dois pós-convencionais da cultura política. Pode-se mostrar que, do ponto de vista normativo, apenas as deliberações feitas em uma cultura política pós-convencional podem produzir resultados razoáveis ou pelo menos justos. Considerações conceituais indicam processos de democracia direta como o método para promover culturas políticas pós-convencionais. Quanto mais liberdade os cidadãos tiverem de formular e desencadear processos de democracia direta, mais se pode esperar deles que gerem culturas políticas pós-convencionais.

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Autor. É graduado em Ciências Políticas pela Universidade de St. Gallen, onde também concluiu a sua tese de doutoramento. 2 Tradutor. É escritor e doutorando em filosofia.

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Palavras-chave: Democracia deliberativa, Cultura moral, Cultura política, Democracia direta, Psicologia do desenvolvimento.

Abstract: In this article, it is proposed to differentiate political cultures in two dimensions. First, inspired by Habermas’ distinction of the contents of discourse, a distinction is suggested between moral, ethical-political and pragmatic elements of political culture as well as of an element of culture of balancing interests. Second, inspired by Kohlberg’s stage models for the development of the individual moral consciousness and for moral culture, a distinction is similarly suggested between two pre-conventional, two conventional and two post-conventional collective stages of political culture. It can be shown that from a normative point of view, only deliberations made in a postconventional political culture can produce reasonable or at least fair results. Conceptual considerations indicate processes of direct democracy as the method for promoting postconventional political cultures. The more liberty that the citizens have to formulate and trigger processes of direct democracy, the more one can expect from them to generate post-conventional political cultures.

Keywords: Deliberative democracy, Moral culture, Political culture, Direct democracy, Developmental psychology

Introdução Foi Montesquieu um dos primeiros autores que argumentaram que elementos culturais são relevantes para a estabilidade de um sistema político. Afirmou que o medo estabiliza o despotismo, a honra é a cultura base da monarquia e que a virtude funda uma república (2008 [1748]). John Stuart Mill adicionou a ideia de que os indivíduos são capazes de aprender e, consequentemente, que a base cultural de uma política pode ser modificada ao longo do tempo (1865 [1861]). O conceito moderno de cultura política remete-nos à obra de Almond e Verba, que procuravam uma explicação para a estabilidade dos sistemas políticos. Seu ponto básico era que uma política permanece estável se suas instituições são congruentes com a cultura política predominante. Eles formularam quatro tipos de cultura política e afirmaram que apenas uma cultura cívica poderia garantir a sobrevivência da democracia. Em termos gerais, para esses dois autores, a cultura política fornece a base psicológica para a democracia. Ela representa os

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processos cognitivos, afetivos e avaliativos socialmente internalizados de um indivíduo para com os outros, em particular em contextos políticos (1989 [1963]: 14). Outros autores têm refinado e variado o conceito. Easton (1965a, 1965b, 1990) propõe uma matriz que combina duas formas de apoio político (difuso e específico) com três objetos do sistema político (comunidade política, regime político e autoridade política). Lipset deriva a estabilidade de um sistema político a partir de sua legitimidade e eficiência (1960). Fuchs propõe um complexo modelo de processos políticos baseados no apoio político; a cultura política desempenha um papel central (2002). Como Lipset, Diamond também estuda a relação entre legitimidade e eficiência, porém de uma maneira mais sofisticada; além disso, ele tenta estabelecer benchmarks que deverão permitir determinar a estabilidade dos sistemas políticos (1999). Rohe foca sobre o carácter processual da cultura política e sublinha a sua importância simbólica (1994). Para além da noção tradicional de cultura política, foram introduzidos dois conceitos que podem ser vistos como extensões da ideia inicial: Inglehart estuda valores e suas modificações (1977, Inglehart e Welzel, 2005). Em sua concepção, a cultura política é bastante dependente dos valores gerais de uma sociedade. Seu objetivo geral é explicar a mudança de materialista para valores pós-materialistas. Aqui, ele identifica valores cívicos como importantes direcionadores para este desenvolvimento. Putnam cunhou o recurso de um coletivo para coordenar-se eficientemente o capital social (1993, 2000, 2002). É interessante notar que nenhum desses autores se refere a Habermas, apesar do fato de que suas considerações têm uma base normativa forte; Habermas toca apenas superficialmente em Almond e Verba, bem como em Inglehart. Nas crises políticas das democracias estabelecidas, bem como quando as políticas não podem ser democratizadas como desejado, a falta de cultura política adequada é frequentemente defendida como a principal razão para tais situações problemáticas. Przeworski (1998) mostrou, no entanto, que a estabilidade das democracias é, em primeiro lugar, determinada pelo rendimento per capito. Acima de um certo limiar, não foram capazes de identificar um único caso em que uma democracia se desintegrou. A partir daí, concluem que seria bastante difícil provar que a cultura política tem um papel causal na estabilidade das democracias.

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Neste artigo, a cultura política não é conceitualizada como uma variável estritamente causal. O ponto de vista adotado aqui é hermenêutico: pressupõe-se que a cultura política é tanto causa quanto consequência de comportamento político. Instituições políticas formais e circunstâncias socioeconômicas exercem um papel igualmente importante neste jogo. É assumido, embora neste artigo eu não vou testá-lo empiricamente, que as mudanças na cultura política podem ser vistas como sinais iniciais de políticas, o que pode resultar em modificações institucionais formais. Contudo, esta hipótese também funciona ao contrário: um conjunto específico de instituições políticas tem um Impacto sobre a cultura política dessa mesma política; este ponto será ilustrado com as instituições da democracia direta. Quando me refiro à cultura política, refiro-me à soma não oficialmente institucionalizadas de normas e crenças que orientam os atores políticos em seus pontos de vista e ações. Escusado será dizer que essas normas e crenças não são variáveis independentes, também sendo influenciadas pelas instituições políticas formais e pelas circunstâncias socioeconômicas. Contudo, sustento a hipótese normativa de que os seres humanos como seres racionais têm uma capacidade de decidir por conta própria, independentemente das instituições políticas e das circunstâncias em que vivem, o que é moralmente certo ou errado, que tipo de identidade gostariam de construir, como o mundo factual deve ser tratado e como o consenso ou compromisso com outros pode ser alcançado. O objetivo deste trabalho é mostrar como um indivíduo adquire tais capacidades cognitivas e como, de um ponto de vista institucional, esses processos de aprendizagem podem ser promovidos. As questões levantadas neste artigo serão tratadas de forma teórica. Como ponto de partida, foi escolhida a teoria da democracia deliberativa de Jürgen Habermas. A escolha é motivada pela sua qualidade normativa explícita (derivada da ética do discurso, 1983; 1991), e por sua integração no quadro teórico abrangente da ação comunicativa (1995), que permite situar as observações num contexto teórico mais amplo. No entanto, a análise da análise do conceito de cultura política de Habermas nos conduzirá a um resultado insatisfatório: embora a cultura política desempenhe um papel importante em sua teoria, ele fornece apenas uma conceituação vaga e sem pistas de como culturas políticas que favorecem a deliberação poderiam ser promovidas. Para preencher essas lacunas, volto ao trabalho de Lawrence Kohlberg, que formulou uma extensa teoria sobre REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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a aquisição da capacidade de raciocínio moral; ele também desenvolveu um sistema de estágios coletivos de cultura moral, que será a base para minha conceptualização da cultura política. Habermas e Kohlberg trabalharam juntos bem intensamente, em particular quando o primeiro estava formulando sua ética do discurso e, o segundo, sua filosofia e psicologia do desenvolvimento moral. Eles se inspiraram profundamente; ambos declararam o trabalho do outro como complementos importantes para suas próprias teorias. Seu diálogo foi abruptamente terminado pela morte precoce de Kohlberg em 1987. O presente estudo pode ser visto como uma tentativa de virtualmente continuar o diálogo entre Habermas e Kohlberg. As ideias de Kohlberg foram recebidas de forma bastante controversa; isso pode ser exemplificado por duas críticas. Carol Gilligan alegou que Kohlberg favoreceria sistematicamente uma ética masculina de justiça, em oposição a uma ética feminina do cuidado (1982). É um fato que o pensamento de Kohlberg depende principalmente de teorias de justiça, mas isso não favoreceu a avaliação dos participantes do sexo masculino em entrevistas guiadas por Kohlberg (Jaffee e Hyde 2000: 721). Embora a crítica de Gilligan fosse empiricamente infundada, enriqueceu o debate sobre o desenvolvimento do raciocínio moral na medida em que mostrou que o foco na justiça só poderia limitar a compreensão do fenômeno. A mudança de foco do indivíduo para o coletivo de Kohlberg pode ser vista como uma resposta à crítica de Gilligan. Coisa semelhante ocorreu com a alegação de que Kohlberg promoveu uma visão ocidental e valores incompatíveis com outras culturas. Kohlberg e sua equipe testaram a teoria dos estágios individuais do raciocínio moral em mais de cinquenta projetos de pesquisa intercultural e foram capazes de identificar os primeiros quatro estágios individuais em quase todas as culturas; eles poderiam identificar a quinta etapa, não só nos países ocidentais, mas também em ambientes urbanos modernos na Índia, Japão e Taiwan (Kohlberg 1996: 28). Embora a segunda alegação também tenha sido empiricamente infundada, não se pode negar que a pesquisa intercultural sobre o raciocínio moral é uma tarefa desafiadora. A crítica e as dificuldades encontradas motivaram Kohlberg e sua equipe a revisar vários elementos do seu pensamento e testar e permitiu-lhes refinar sua abordagem.

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Revisitar os métodos pedagógicos de Kohlberg para promover as capacidades cognitivas, o raciocínio moral e a cultura moral de uma vontade coletiva lança nova luz sobre os processos de democracia direta. Tornar-se-á claro que estas instituições favorecem a geração de culturas políticas pós-convencionais, envolvendo todos os cidadãos no processo de tomada de decisão.

O conceito de cultura política nos escritos de Habermas Segundo Habermas, as instituições democráticas por si só não são suficientes para permitir deliberações que produzem resultados razoáveis ou pelo menos justos. Para além das instituições, é necessário um certo tipo de cultura política que disponha os atores políticos - cidadãos e funcionários - a aplicar a razão e, assim, a solidariedade (1999: 206). Ele afirma que a cultura política é o fundamento da liberdade democrática e, ao mesmo tempo, o meio em que ocorre o progresso político em direção a mais democracia (1999: 333). A cultura política permite que os cidadãos reajam em situações legais, mas ilegítimas, de acordo com suas crenças morais (1996: 87). Sem cultura política, os cidadãos tornam-se monadas isoladas, egoístas, exercendo seus direitos individuais como armas uns contra os outros (2005: 112). A cultura política que favorece as deliberações é caracterizada por um paradoxo: embora seja um pré-requisito, não há maneira de forçar ou dirigir sua geração. O Estado tem de abster-se de doutrinação política ou de demandas normativas mais sutis, pois isso prejudicaria a cultura política (1999: 381). Embora o conceito de cultura política desempenhe um papel importante na teoria da democracia deliberativa, Habermas fornece uma definição um pouco vaga e não há pistas claras sobre como o pós-convencionalismo político via democracia direta. Este artigo visa preencher esta lacuna. O conceito de Kohlberg de cultura moral e seus instrumentos pedagógicos de discussões de dilemas e comunidades justas irão inspirar as respostas.

O conceito de cultura moral nos escritos de Kohlberg

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Kohlberg é mais conhecido por sua pesquisa sobre os estágios individuais do raciocínio moral. Ele argumenta que o comportamento moral é o resultado de processos afetivos e cognitivos; É, contudo, o raciocínio cognitivo que dá ao comportamento uma qualidade moral (1984: 9). Os processos cognitivos criam a consciência moral, que permite que uma pessoa interaja com os outros ao longo de escolhas morais explícitas. Nesse sentido, o raciocínio moral é uma capacidade cognitiva, que permite uma a uma pessoa assumir diferentes perspectivas em um dilema moral e refletir sobre as visões conflitantes para obter uma solução justa. No entanto, essa capacidade precisa ser adquirida. Kohlberg descreve este processo de aprendizagem em duas fases préconvencionais, duas convencionais e duas pós-convencionais. Em geral, os estágios cognitivos têm as seguintes características (Colby e Kohlberg 1987: 6ff): enquanto diferentes estágios cognitivos servem à mesma função básica do raciocínio, eles implicam uma diferença qualitativa nas estruturas. Isso significa que diferentes modos de pensar podem ser observados em diferentes estágios. Os estágios formam uma sequência invariante, significando que um indivíduo tem que passar por uma fase de cada vez; nenhum pode ser ignorado. Uma série de fatores pode acelerar o progresso ao longo desta sequência, retardá-lo ou até mesmo pará-lo, mas eles não mudam a sequência como tal. Esses modos sequenciais de pensamento formam um todo estrutural. Uma determinada fase de resposta a uma tarefa não representa simplesmente uma resposta específica determinada pelo conhecimento e familiaridade com essa tarefa ou tarefas semelhantes a ela; em vez disso, representa a organização de um pensamento subjacente. Os estágios são integrações hierárquicas e formam uma ordem de estruturas cada vez mais diferenciadas e integradas para cumprir uma função comum. Portanto, os estádios superiores integram as estruturas em estádios inferiores. Com base no conceito de estágios individuais, Kohlberg e seus colegas formularam seis estágios de raciocínio moral individual, bem como orientações detalhadas entrevistas para avaliar as capacidades cognitivas de individuos que enfrentam um dilema moral. Com extensa pesquisa empírica, eles foram capazes de identificar com facilidade os quatro primeiros estágios do raciocínio moral pré-convencional e convencional. O quinto estágio pode ser identificado com menos facilidade, pois os

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estágios pós-convencionais são normalmente atingidos pela idade adulta e Kohlberg foi predominantemente testar crianças e adolescentes. O sexto estágio serve principalmente como uma referência normativa e pode ter sido alcançado apenas por indivíduos como Gandhi ou Martin Luther King. Em sua pesquisa posterior, Kohlberg mudou seu foco do indivíduo para o coletivo. Isto foi devido à sua observação de que em certas escolas, os alunos desenvolveram-se para estágios mais altos mais rapidamente do que em outros, apesar do fato de que individualmente eles parecessem ter as mesmas capacidades cognitivas. Kohlberg percebeu que o cenário geral de uma escola, tanto em termos de infraestrutura física quanto em termos de "fatores sutis", influenciou o desenvolvimento dos alunos. Foi nesse contexto que ele cunhou o conceito de "cultura moral". Sua noção de cultura baseia-se em Levine (1981): "A cultura é uma organização compartilhada de ideias que inclui os padrões intelectuais, morais e estéticos prevalentes na comunidade e o significado da ação comunicativa". Nesse sentido, cultura moral se refere às ideias e normas compartilhadas por um grupo sobre como resolver dilemas morais de uma forma que considere adequada. Para distinguir diferentes tipos de culturas morais, Kohlberg estendeu seu conceito de estágios individuais aos coletivos. Aqui, as características dos estádios individuais, tais como descritos acima, são suavizadas. Estágios individuais referem-se às estruturas cognitivas de indivíduos; os estágios coletivos referem-se a um grupo de pessoas e seu comportamento. Embora se presuma que os indivíduos pensem e tentem constantemente organizar e integrar suas estruturas cognitivas de forma racional, nenhuma "mente de grupo" é assumida fazendo o mesmo, embora se sustente que indivíduos interagindo em grupos construam normas comuns, o que em influencia o seu pensamento no grupo. Entretanto, a construção de tais normas comuns reflete o desempenho do raciocínio moral, não a competência do raciocínio moral. Por essa razão, os estágios coletivos têm uma estrutura qualitativamente diferente (Power et al., 1989a: 136ff): A dinâmica dentro dos estágios coletivos não segue uma sequência invariante. Não há um ponto de partida natural no estágio coletivo 1. O estágio coletivo em uma dada situação depende dos estágios individuais das pessoas envolvidas, bem como do contexto geral. O estágio coletivo nunca será maior do que qualquer dos estágios individuais representados no

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grupo. As flutuações, tanto para cima como para baixo, podem ser observadas muito mais frequentemente do que no desenvolvimento individual, onde a regressão é bastante incomum. Enquanto um grupo opera em um ambiente relativamente estável e tem uma tarefa claramente definida, um estágio coletivo ótimo pode ser deduzido. Isto contrasta com os indivíduos, que, em última instância, são confrontados com o desafio de se envolver na complexa ordem global; a longo prazo, só se pode cumprir adequadamente essa tarefa através de meios pós-convencionais. Estágios individuais representam um todo estrutural, implicando uma estratégia consistente para resolver problemas cognitivos. Os estágios coletivos não possuem tal consistência. Eles são o resultado de interações entre indivíduos que são movidos por fatores cognitivos e afetivos. Por essa razão, os estágios coletivos se referem não puramente à cognição, mas ao comportamento em geral. Além disso, não se pode presumir que, numa dada situação, todas as pessoas envolvidas dispõem da mesma fase individual. Portanto, os estágios coletivos são sempre uma mistura de diferentes estágios individuais. Essa heterogeneidade não representa um problema per se, uma vez que a heterogeneidade permite a expressão de diferentes pontos de vista, o que, por sua vez, cria a necessidade de interação discursiva e pode provocar aprendizado individual e coletivo. É, portanto, claro que os estágios coletivos não representam integrações hierárquicas no sentido estrito da palavra. Eles são muito heterogêneos e não há nenhum agente tentando estabelecer consistência global no raciocínio de um determinado grupo. Os grupos estão mais preocupados com a questão de como devem agir do que por que devem agir de uma certa maneira (Power et al., 1989a: 138). Foi neste contexto que Kohlberg formulou os estágios coletivos da cultura moral (Power et al., 1989b: 271ff):

Estágio coletivo 1 - cultura moral autoritária Na verdade, não há descrição de uma cultura moral no estágio 1 por Kohlberg, e pode-se argumentar corretamente que não pode haver cultura moral no estágio 1. Na verdade, na fase 1, a cultura moral consiste em sua total ausência. Apenas seus próprios interesses determinam o comportamento de cada pessoa; outras pessoas não são levadas em conta, ou são apenas meios para fins egoístas. A relação entre indivíduos é baseada

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na coerção maciça - normalmente física. Uma autoridade com uma legitimação arbitrária exerce o poder coercitivo. Para assegurar sua autoridade, a solidariedade entre os indivíduos é minada para evitar qualquer tipo de cultura moral e consequente insurreição. Por essa razão, o conceito de comunidade não desfruta qualquer tipo de apreciação e assim que a autoridade perde poder, toda a estrutura se evapora em anarquia. Por razões óbvias, a noção de democracia não tem significado tangível na fase 1.

Estágio coletivo 2 - cultura moral das relações comerciais A cultura moral no estágio 2 tem as características de um mercado. Relacionamentos com outros são estabelecidos para envolvê-los no comércio. As necessidades dos outros são motivo de preocupação desde que sua satisfação dê o direito à satisfação de suas próprias necessidades. As necessidades são percebidas de forma isolada e numa lógica de meios/fins estritos; O fato de cada indivíduo ser um todo complexo e de ser um fim em si mesmo é menos apreciado. O sentido de comunidade é limitado à experiência de que o comércio dentro de uma comunidade é mais fácil, uma vez que as necessidades tendem a ser semelhantes. No estágio 2, os mecanismos democráticos são rudimentares, pois as necessidades individuais são satisfeitas bilateralmente e não são necessárias decisões coletivas. As necessidades coletivas são escassas ou não são percebidas como tal. No geral, a democracia no estágio 2 implica que todos podem expressar suas próprias necessidades. A satisfação dessas necessidades não é, no entanto, uma questão de justiça, mas de poder de mercado. Em geral, existe, se é que existe, apenas uma cultura moral muito limitada na fase 2.

Estágio coletivo 3 - cultura moral da comunidade. É só a partir do estágio 3 em diante que se podem observar formas substanciais de cultura moral. A comunidade é apreciada como uma rede de fortes laços interpessoais baseados na amizade e na consideração mútua; Afeição e proximidade são elementos importantes. A comunidade permite atingir metas e criar normas comuns, o que seria impossível de alcançar individualmente. No estágio 3, a democracia implica o direito de

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ser ouvido. As necessidades individuais e coletivas são igualmente importantes. A maioria determina as necessidades coletivas. A maioria é a nova autoridade e é respeitada mesmo em detrimento de interesses individuais.

Estágio coletivo 4 - cultura moral de estabilização e identificação No estágio 4, a comunidade é percebida como algo que é mais do que a soma das relações interpessoais. A comunidade se torna um fim em si mesmo. As relações interpessoais são formalizadas para estabilizar a base anteriormente afetiva da comunidade. As identidades não são apenas baseadas em relações pessoais, mas também em normas, princípios e instituições, fornecidos pela comunidade. No estágio 4, a democracia implica o direito de expressar as necessidades, ser ouvido e levado em consideração, para que a maioria possa representar o bem comum. A questão central nesta fase é, portanto, o benefício para a comunidade. Kohlberg não fornece descrições de culturas morais pós-convencionais. Não lhe ocorreu, ao fazer pesquisas nas escolas, que as culturas morais pós-convencionais provavelmente não seriam identificáveis, pois crianças e adolescentes raramente chegam aos estágios pós-convencionais individualmente. Além disso, as escolas como entidades sociais são de natureza comunitária, não social. As escolas não têm a complexidade típica das sociedades modernas e que são necessárias para estimular estruturas pósconvencionais. A complexidade não é uma característica inerente a um fenômeno; depende da perspectiva do observador (St € uttgen 1999). Desse ponto de vista, a pressuposição de que as sociedades são mais complexas do que as comunidades é arbitrária. Esta afirmação baseia-se no pressuposto de que as escolas como comunidades são concebidas de tal forma que permite aos alunos formar capacidades dentro de um espaço limitado e controlado, enquanto as deliberações públicas ao nível de uma sociedade são por natureza ilimitadas e incontroláveis, já que delas qualquer um pode participar. Como a intenção aqui é fornecer toda a gama de culturas políticas, das quais a cultura moral é um elemento importante, propõe-se suprimir essa lacuna com as descrições das duas culturas morais pós-convencionais a seguir.

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A primeira cultura moral pós-convencional considera que um indivíduo é sempre membro de uma sociedade complexa. A própria sociedade não é uma entidade dada; é o produto de inúmeras contribuições comunicativas de todos os membros da sociedade. Estas contribuições têm de respeitar os direitos fundamentais. O Rechtsstaat e as suas instituições - nomeadamente parlamentos e tribunais - facilitam a aplicação dos direitos fundamentais. Minorias gozam de atenção especial e alguns privilégios. No entanto, é a maioria que delineia as minorias e decide sobre o seu tratamento especial. Esta estrutura segregativa reflete-se também na distinção entre direitos civis e direitos humanos. Os direitos humanos são aplicáveis a todos, e os direitos civis apenas aos cidadãos de uma determinada política.

Estágio coletivo 6 - cultura moral da universalização No segundo estágio da cultura moral pós-convencional, a noção de cidadania global (Weltb€urgerrecht) é universalizada. As distinções entre cidadãos e pessoas sem direitos civis são extintas. Todos os seres humanos recebem tratamento igual em todas as dimensões. A cultura moral do estágio 6 não permite os mecanismos de segregação, pois prevalece a consciência de que tais instrumentos pervertem os princípios morais em sua essência e os transformam em ideologia. Nesta fase, nenhuma forma específica de boa vida é propagada. Em vez disso, um modo que permite a coexistência das mais diversas concepções de boa vida está na vanguarda. Essas concepções de boa vida estão em diálogo constante entre si; é a comunicação que destaca as diferenças positivamente. A sociedade (mundial) é tão complexa quanto fragmentária; a fragmentação se reflete também nas identidades das pessoas. Isso não é percebido como uma ameaça, por causa da consciência prevalecente de que as diferenças são inevitáveis. A cultura moral do estágio 6 permite a resolução de diferenças intransponíveis pacificamente e viver a diversidade positivamente.

Do conceito de cultura moral à cultura política A discussão até agora tem dado dois resultados: primeiro, com os estágios coletivos, encontramos uma estrutura conceitual que permite diferenciar o fenômeno cultural de forma descritiva e normativa. Como essa estrutura é projetada em estágios REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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hierarquicamente integrados, culturas diferentes podem ser vistas como produtos de um processo de aprendizagem. Em segundo lugar, com os seis estágios coletivos da cultura moral, temos um exemplo para descrições substantivas de uma variação de um fenômeno cultural que pode ser usado como um modelo para a formulação de estágios coletivos de culturas políticas. Antes de fazê-lo, a questão precisa ser abordada como as culturas morais e políticas estão inter-relacionadas. Por razões óbvias, é preciso abster-se de uma moralização da política, unindo cultura moral e política. Neste contexto, a distinção de Habermas entre o discurso (ético) e a deliberação (política) é de grande utilidade. Ele distingue o discurso, no qual os envolvidos avaliam se uma norma é moralmente justa, da deliberação, em que a busca de consenso ou compromisso sobre questões envolvem não apenas uma dimensão moral, mas também considerações ético-políticas e pragmáticas (1998: 207). Inspirado na distinção posterior, proponho conceituar a cultura política como a soma de quatro "subculturas": cultura moral, cultura ético-política, cultura pragmática e cultura de interesses equilibrados. A cultura moral foi introduzida acima. Ele define os padrões que precisam ser cumpridos para se preservar o senso de justiça em um determinado grupo. A cultura ético-política informa como um grupo forma sua identidade e como sua noção de vida boa se estabelece. Isso não implica que seja a expressão de uma versão em grande escala da identidade do ego. Apenas descreve o tipo de mecanismos que um grupo usa para garantir identificações individuais e coletivas. A cultura pragmática informa como um grupo lida com questões de verdade. Indica como um grupo percebe o mundo objetivo e como se adapta a ele. A cultura de equilibrar os interesses informa como um grupo lida com situações em que nenhum consenso pode ser alcançado e algum tipo de compromisso é necessário. Com estes elementos, a definição inicial de cultura política pode ser refinada: a cultura política é a soma das normas e das crenças coletivamente mantidas, mas não formalmente institucionalizadas, que orientam os atores políticos em suas visões e ações públicas. Ele orienta os atores políticos na busca por consenso ou compromisso sobre questões políticas. Sempre que as decisões políticas são tomadas, os envolvidos precisam considerar dimensões morais, ético-políticas e pragmáticas, bem como de que maneira os

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interesses podem ser equilibrados. Os modos informais dessas considerações estão inscritos na cultura política. Embora a cultura política e a razão pública se preocupem, até certo ponto, com questões semelhantes, elas não podem ser igualadas. A razão pública é um conceito puramente normativo, idealizando o apoio racional e solidário para o bem comum de todos os membros de um Estado. Da mesma forma, podemos distinguir entre deliberações justas e cultura política: a justa deliberação é uma atividade comunicativa, que requer instituições específicas, bem como uma cultura política específica; caso contrário, não se pode esperar um consenso baseado na razão e na solidariedade. A cultura política é a soma de normas e crenças coletivamente mantidas, mas não formalmente institucionalizadas, que podem favorecer o uso da razão e da solidariedade em um grau mais ou menos elevado.

Os seis estágios da cultura política Com base nas reflexões anteriores, é agora possível formular seis estágios coletivos de cultura política. Como mostra a Tabela3, cada estágio é composto por quatro "sub-culturas", que em conjunto formam tipos ideais (Weber 1968: 190) de cultura política. O que se segue é uma descrição desses seis estágios coletivos.

Estágio coletivo 1 - Cultura política do medo A cultura moral relevante à cultura política do medo é caracterizada por sua ausência. A cultura moral do estágio 1 não leva os outros em consideração; os interesses próprios dominam, mas prevalecem apenas os da autoridade. No entanto, a afirmação baseia-se nos meios de poder em vez do consentimento dos outros. Quando uma cultura política de medo reina, questões ético-políticas surgem, se é que surgem, em uma extensão muito limitada. A definição de quem detém o poder resolve todas as outras questões, enquanto todos os outros atores permanecem em um estado de total dependência. Questões de sobrevivência dominam e questões de identidade individual ou coletiva desempenham, caso existam, um papel menor. Com uma cultura política de

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medo, os aspectos pragmáticos parecem ser totalmente materialistas e imutáveis. Eles parecem ser apenas limitações e / ou ameaças. Pode-se mesmo duvidar que, em uma cultura política de medo, as questões sobre a verdade, o bem e o justo possam ser distinguidos, já que a autoridade domina todas as áreas com os mesmos meios indiferenciados de poder (físico). Por essa razão, a cultura de equilibrar os interesses é igualmente fraca: como a autoridade sempre prevalece, não há necessidade de procurar compromissos. Em suma, a cultura política do medo é o estado de diferenciação mínima.

Estágio coletivo 2 - Cultura política do egoísmo A cultura moral, relevante para a cultura política do egoísmo, é a dos mercados as relações com os outros são estabelecidas para se engajar no comércio. As necessidades dos outros desempenham um papel na medida em que contribuições para sua satisfação engendram o direito de satisfazer as necessidades próprias. No entanto, a satisfação das necessidades próprias não é uma questão de justiça; depende unicamente do poder de mercado. As questões éticas e políticas continuam a desempenhar um papel menor. As identidades individuais e coletivas parecem ser subproduto das relações comerciais. A cosmovisão indiferenciada também aparece no contexto dos aspectos pragmáticos. Na fase 1, parecem ser materialistas e imutáveis, mas não só são percebidos como limitações e / ou ameaças, mas também como oportunidades para ganhar vantagens sobre os outros atores. Nesse sentido, a cultura política do egoísmo é a cultura de equilibrar os interesses em sua forma mais simples. No entanto, os princípios pelos quais os interesses são equilibrados são extremamente indiferenciados. Num sentido figurado, qualquer fatura deve ser paga imediatamente e na mesma moeda; caso contrário, nenhuma transação será realizada.

Estágio coletivo 3 - Cultura política da comunidade A cultura política da comunidade baseia-se na construção de fortes relações interpessoais amigáveis e respeitadoras. A comunidade permite perseguir metas e criar valores que de outra forma são inalcançáveis. Dentro da comunidade, um sentimento de identidade pode ser estabelecido. Essa identidade é baseada no sentimento da família ou do clã. No entanto, a identificação positiva é limitada ao pequeno círculo de pessoas com REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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quem se mantém vínculos estreitos. À medida que as relações interpessoais e as realidades sociais das comunidades se tornam moldáveis, os aspectos pragmáticos também mudam de natureza. Dentro da comunidade, os aspectos pragmáticos podem ser manipulados. Devido aos graus mais elevados de diferenciação de todos os aspectos relevantes, modos mais sofisticados de equilíbrio de interesses tornam-se disponíveis. Compromisso em detrimento dos próprios interesses é sempre inaceitável na fase 2, mas na fase 3 o mesmo seria aceitável se for a favor da comunidade. As renúncias são, contudo, limitadas ao pequeno círculo da comunidade. Em geral, pode-se afirmar que, no estágio 3, está emergindo uma noção vaga de bens coletivos.

Estágio coletivo 4 - Cultura política das tradições A cultura moral da cultura política das tradições se concentra na estabilização e na identificação. No estágio 3, a comunidade ainda é percebida como um subproduto das relações interpessoais. No estágio 4, a comunidade como tal se torna uma prioridade. É percebido como sendo maior do que a soma das relações individuais entre os membros do grupo. As relações interpessoais no estágio 3 ainda são dominadas por aspectos afetivos. Para estabilizá-los, eles são formalizados - no estágio 4 - e atribuídos a funções específicas dentro da comunidade. Assim, a cultura ético-política se transforma. As identidades coletivas não são mais baseadas em relacionamentos interpessoais. Eles são derivados de locais geográficos específicos e eventos históricos referidos por símbolos e rituais. As identidades individuais são derivadas da origem de uma pessoa. Em geral, as identidades parecem emergir de si mesmas e permanecem imutáveis. Devido à disponibilidade de categorias mais abstratas, os aspectos pragmáticos perdem suas características totalmente materialistas e, portanto, podem ser redefinidos coletivamente. Essas categorias mais abstratas também permitem novos modos de equilibrar os interesses. Em vez de equilibrar os interesses simultaneamente, eles podem ser equilibrados ao longo de um período de tempo mais longo e em diferentes categorias. No geral, a etapa 4 inclui a noção de bens públicos e expande o calendário para um prazo mais longo.

Estágio coletivo 5 - Cultura política do Estado-nação constitucional

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Em comparação com os estágios convencionais da cultura política, os estágios pós-convencionais são diferenciados. Isso pode ser visto na cultura moral do estágio 5: o significante social não é mais a comunidade, mas a sociedade. A própria sociedade não é percebida como uma entidade fixa, mas como produto de inúmeras contribuições comunicativas de todos os membros da sociedade. Nos estágios convencionais prevalecem as relações interpessoais, mas nos estágios pós-convencionais as relações anônimas e funcionais se tornam o modo dominante de interação social. É crucial que essas relações sejam sempre guiadas pelos direitos humanos. O Rechtsstaat e as suas instituições permitem e facilitam este esforço. A complexidade das estruturas sociais e estaduais também se reflete nos modos em que as identidades são formadas. Em primeiro lugar, estruturas mais complexas permitem uma maior variedade de identidades individuais. Em segundo lugar, as identidades não se baseiam em fundamentos materialistas e aparentemente imutáveis, mas em princípios e procedimentos abstratos que permitem a diversidade. Um raciocínio mais abstrato também prevalece no contexto de questões pragmáticas. Os conceitos mecânicos da realidade são substituídos por idealizações mais complexas. Em particular, o horizonte de tempo é amplamente expandido e motiva soluções sustentáveis de problemas pragmáticos. No estágio 5 compromissos e renúncias aparecem sob uma nova luz. A cultura de equilibrar os interesses, na fase 5, aprova um tratamento preferencial das minorias. Com uma visão mais diferenciada e a longo prazo, a sociedade percebe que a discriminação das minorias é prejudicial não só para o discriminado, mas também para o discriminador. Em geral, a cultura política do Estado-nação constitucional produz, portanto, bens públicos não só a longo prazo, mas também de natureza complexa.

Estágio coletivo 6 - Cultura política do cosmopolitismo A cultura moral da cultura política do cosmopolitismo busca a universalização. A cultura moral no estágio 6 dissolve as diferenças entre membros de diferentes sociedades. O Estágio 5 ainda diferencia os direitos civis, aplicáveis apenas a cidadãos de uma determinada política, dos direitos humanos, aplicáveis a todos os seres humanos. No estágio 6, essa diferenciação é abandonada. No entanto, isso não implica que apenas uma maneira da boa vida seja propagada. Ao contrário, a cultura moral do estágio 6 permite

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um diálogo aberto entre diferentes conceitos de vida boa. O conceito de cidadania desaparece e é substituído pela ideia de cosmopolitismo. Nessa nova luz, as identidades mudam sua qualidade. Elas não têm mais uma aparência materialista, como na fase 4; seu núcleo não é mais um número de princípios gerais, como no estágio 5. No estágio 6, prevalece a visão de que identidades individuais e coletivas são o produto de processos comunicativos. Por essa razão, o cuidado desses processos comunicativos torna-se essencial. As comunidades - na forma de processos comunicativos compartilhados - e as diferenças - percebíveis apenas pela comunicação entre si - permanecem, portanto, em equilíbrio. Isso não significa que dentro da cultura do cosmopolitismo todas as diferenças sejam dissolvidas. De fato, todos os aspectos da vida, em particular as identidades, são mais fragmentados. No entanto, essas fragmentações não são percebidas como uma ameaça, pois há a consciência de que as diferenças são inevitáveis. A cultura moral da universalização permite resolver as diferenças intransponíveis de forma pacífica e para desfrutar a diversidade. Em total contraste com a percepção na fase 1, onde os aspectos pragmáticos são vistos como ameaças, na fase 6 eles são percebidos em ciclos. As ameaças potenciais não são negadas, mas entendidas como parte de um todo maior. Consequentemente, há uma atitude relaxada em relação às renúncias. Tanto quanto necessário, são aceitas naturalmente e percebidos em um contexto mais amplo, que lhes atribui algum significado. Em geral, a cultura política do cosmopolitismo é a cultura na qual a complexidade é produzida e mitigada de forma comunicativa.

Pós-convencionalidade Ao contemplar os diferentes estágios da cultura política, surge a questão a respeito de quais estádios se revelam adequados para uma democracia deliberativa e podem contribuir para a realização do Estado bom e justo. Habermas define a cultura política como um elemento essencial de uma democracia deliberativa. Ele afirma que uma cultura política liberal representa a base sobre a qual as instituições de liberdade são baseadas. Disponibiliza cidadãos e detentores de cargos para agir racionalmente e buscar consenso e solidariedade. Sem cultura política, os atores políticos se transformam em mônadas isoladas, usando seus direitos como armas uns contra os outros. Escusado será dizer que as etapas de 1 a 3 não correspondem com o que Habermas tem em mente. Também é

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duvidoso que o estágio 4 possa satisfazer as necessidades de uma democracia deliberativa. No estágio 4, embora a perspectiva puramente egocêntrica tenha sido substituída por uma visão maior, além de as relações interpessoais serem menos afetivas e formalizadas pelas tradições, o horizonte geral continua restringido à comunidade, desprovida da complexidade típica das sociedades. O fosso desaparece quando as exigências de Habermas são comparadas com os estágios pós-convencionais da cultura política (estágios coletivos 5 e 6). Com nossas formulações, uma determinada cultura política não aparece mais como uma rede difusa de mentalidades; em vez disso, pode ser diferenciada analiticamente em quatro elementos. Com base na diferenciação proposta, as diferentes formas de cultura política podem ser reconstruídas sistematicamente e colocadas em uma sequência hierárquica. À luz das culturas políticas pré-convencionais e convencionais, os estágios pós-convencionais, normativamente desejados, aparecem não apenas como idealizações normativas, mas como desafios - embora atingíveis - nos processos de aprendizagem cognitiva individual e coletiva. Isso leva à pergunta: em que nível deve ser enobrecido o modelo de estágios coletivos das culturas políticas e o requisito para o pós-convencionalismo? É fácil perceber que os estágios coletivos pré-convencionais e convencionais da cultura política e suas formulações descritivas podem ser usados como ferramentas analíticas para entender melhor situações políticas específicas. O mesmo se aplica aos estágios pósconvencionais, na medida em que eles possam ser identificados empiricamente. No entanto, a exigência de pós-convencionalidade é motivada normativamente. Permanecerá uma questão aberta se a tendência à pós-convencionalidade é motivada apenas normativamente, ou se ela realmente tem fundamentos antropológicos. No entanto, é claro que o projeto da modernidade e seu esforço abrangente - a democracia - continua impensável sem estruturas pós-convencionais. A pretensão de universalidade do princípio da pós-convencionalidade é menos opressiva do que poderia parecer à primeira vista: resumida a seu âmago, implica que as decisões legítimas só podem ser alcançadas quando todas as perspectivas são levadas em conta, sem favorecer qualquer uma em particular.

Procedimentos que promovem culturas políticas pós-convencionais

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Como somente os estágios pós-convencionais das culturas políticas provaram ser adequados para uma democracia deliberativa e a realização do Estado bom e justo, surge a questão de como essas culturas políticas podem ser favorecidas. As recomendações de Habermas revelam-se bastante vagas, razão pela qual os métodos de Kohlberg para promover o desenvolvimento de estágios superiores da consciência moral e da cultura moral são consultados aqui. Kohlberg concebeu estes métodos para as escolas. Por essa razão, não podem ser transferidos diretamente para o campo político. No entanto, os métodos de Kohlberg são úteis, pois fornecem seis critérios que precisam ser atendidos por um procedimento que supostamente favorece as culturas morais pós-convencionais. A aplicação desses critérios leva a processos de democracia direta. De acordo com Habermas, as culturas políticas são produzidas e regeneradas espontaneamente (1999: 292), de maneiras variadas e labirínticas (1990: 95). Os mecanismos de direção política e administrativa do Estado não influenciam a cultura política. Mesmo se o Estado pudesse influenciar a cultura política, deveria abster-se de fazê-lo, pois a doutrinação e outros meios de manipulação iriam minar os fundamentos das culturas políticas pós-convencionais, baseadas no livre-arbítrio. Solidariedade e razoabilidade podem ser esperadas, mas nunca podem ser forçadas. Devido a isso, Habermas afirma que a orientação para o bem público deve ser exaltada em pequenas moedas (1999: 381). Do ponto de vista de Habermas, as culturas políticas pósconvencionais são o resultado de processos de aprendizagem que ocorrem além dos mecanismos institucionalizados de formação da vontade política. Para favorecer tais processos de aprendizagem, ele sugere uma estrutura jurisdicional que inclui as instâncias máximas de autocorreção. Tais estruturas admitem a necessidade de uma revisão constante de todos os atos estaduais. Os casos de autocorreção podem ser exemplificados pela exigência de leituras múltiplas de leis nas câmaras do parlamento ou pelo canal normal de tribunais (1996: 88). Como cada instância de autocorreção inclui a possibilidade de deliberar e revisar posições, a cultura política pode ser regenerada simultaneamente. Do ponto de vista conceptual, as sugestões de Habermas fazem sentido. No entanto, o impacto das deliberações nos parlamentos e nos tribunais sobre a cultura política de toda uma organização política continua a ser questionável, uma vez que poucas pessoas estão ativamente envolvidas nesses procedimentos. REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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Voltar-se a Kohlberg para identificar procedimentos adequados para a promoção de culturas políticas pós-convencionais pode ser justificado pelo fato de que Kohlberg não só estabeleceu ferramentas analíticas para descrever e compreender a consciência moral individual e culturas morais coletivas, mas também projetou métodos pedagógicos para favorecer o desenvolvimento para os estágios superiores do raciocínio moral e da cultura moral. Ele introduziu e testou com sucesso dois métodos: dilema-discussões e a abordagem da comunidade justa. Nas discussões sobre dilemas, os estudantes deliberam regularmente sobre hipotéticos dilemas morais. Ao se exporem aos argumentos dos outros, eles se treinam na mudança de perspectivas e na aquisição de estruturas cognitivas mais complexas do raciocínio moral (Colby e Kohlberg 1986: 159). No entanto, nenhum impacto sobre o comportamento moral pode ser detectado ao aplicar o método das discussões sobre dilemas (Steffek 2000: 144). Por esse motivo, Kohlberg concebeu um modelo em que estudantes, professores e administradores de uma escola decidem, de forma regular, sobre questões relevantes para a sua vida escolar diária (Power et al., 1989c). Poderia mostrar em várias aplicações empíricas que a abordagem da comunidade justa produz efeitos positivos sobre as capacidades de raciocínio moral, sobre o comportamento moral dos alunos, bem como sobre a cultura moral geral da escola. Contudo, havia uma limitação importante: não se poderia conseguir nenhum estágio pós-convencional (Kohlberg 1980: 28). É também por isso que Kohlberg formulou apenas os estágios coletivos pré-convencionais e convencionais da cultura moral. Não lhe ocorreu que as comunidades justas não têm a complexidade típica das sociedades, precisamente por serem, em termos sociológicos, de natureza comunitária e não social. Apesar da limitação dos métodos de Kohlberg, podemse derivar seis critérios conceituais que devem ser satisfeitos por um procedimento que se supõe produzir culturas políticas pós-convencionais: (1) O procedimento deve tratar questões reais e relevantes, já que dilemadiscussões sobre questões hipotéticas têm demonstrado não ter impacto sobre o comportamento e a cultura. (2) O procedimento deve permitir a participação ativa de todos os interessados, não só na deliberação, mas também na decisão final. Ter a palavra final é um importante REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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fator motivacional para se envolver em um debate que, de outra forma, permanecerá hipotético. (3) A participação no procedimento deve ser voluntária: a obrigação de participar de um procedimento concebido para gerar culturas políticas pós-convencionais seria uma contradição em si mesma, pois o núcleo da pós-convencionalidade é a disposição à solidariedade e à razoabilidade baseada no livre arbítrio. (4) O procedimento deve tratar de questões complexas: A deliberação das questões relativas às comunidades deve contribuir para o desenvolvimento de culturas morais convencionais. Devido à falta de complexidade das questões comunitárias, os estágios pós-convencionais não puderam ser alcançados nas escolas. A introdução de questões de organização das sociedades modernas garantirá o grau de complexidade necessário para estimular estruturas pós-convencionais. A participação de todos os membros de uma sociedade aumentará ainda mais a complexidade da resolução de um problema. (5) O procedimento deve ser auto reflexivo e auto referencial: Um elemento importante da pós-convencionalidade é que ela motiva a autorreflexão e tem uma estrutura aberta, desprovida de restrições externas. Para replicar e reforçar essas características, o procedimento deve permitir que ele seja seu próprio objeto, de modo que seja possível decidir tanto sobre questões de conteúdo como sobre adaptações formais do procedimento. (6) O procedimento deve ser aplicado de forma regular: casos empíricos mostram que uma aplicação regular de métodos como discussões de dilemas e processos de tomada de decisão dentro de comunidades justas é crucial para o desenvolvimento sustentável da cultura moral aos estados mais elevados. Por essa razão, ao procedimento que promove a cultura política pós-convencional deve ser permitido que ocorra com bastante frequência. Tendo em conta estes seis critérios, coloca-se a questão de saber qual o procedimento que pode satisfazer todos estes critérios e, ao mesmo tempo, gerar decisões políticas legítimas e vinculativas. Nas democracias (deliberativas), os processos

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parlamentares são tradicionalmente o procedimento aplicado para gerar decisões políticas legítimas e vinculativas. Do ponto de vista relevante para este artigo, a sua limitação reside no número restrito de pessoas envolvidas. Por esse motivo, não se pode presumir que os processos parlamentares contribuam para a geração de uma cultura política pósconvencional de uma política em grande escala. Isso leva à questão se pelo menos as eleições dos representantes servem a causa da pós-convencionalidade. As eleições não cumprem os critérios anteriores, porque nas eleições, os candidatos são a preocupação, não as questões. Do ponto de vista psicológico, a eleição de um representante implica uma regressão, uma vez que a responsabilidade de decidir é delegada a outra pessoa, que é então seguida nos modos pré-convencional ou convencional. Além disso, a frequência das eleições parlamentares é tão baixa que não se pode assumir nenhum efeito sustentável na geração da cultura política pós-convencional. A busca de um procedimento que atenda aos seis critérios leva a processos de democracia direta. Eles representam o mecanismo no qual os cidadãos têm o poder de decisão final e podem anular o parlamento e / ou o governo. É importante notar que falo de processos de democracia direta, e não de democracia direta. Na minha compreensão, os processos de democracia direta não representam um regime político de pleno direito que poderia funcionar em uma base autônoma. Constituem um complemento institucional de um regime democrático, com parlamentos representativos, tribunais independentes, etc. Dessa forma, conceitos como a democracia deliberativa ou participativa devem ser vistos em um nível teórico diferente. Nas teorias da democracia deliberativa, argumenta-se que o intercâmbio de ideias, opiniões e valores e o alcance de um consenso fundamentado antes da tomada de decisões políticas são cruciais para o funcionamento de uma democracia; esta posição pode ser vista em oposição às teorias agregativas, nas quais se sustenta que os interesses políticos são fixos e o único momento relevante é a justa agregação de votos nas eleições (Turan 2011). As teorias da democracia participativa voltam a ter um enfoque diferente: enfatizam a importância da participação política em geral; incluindo formas de participação não institucionalizadas (Kaase 2011). Como demonstra o seguinte debate, os processos de democracia direta atendem aos seis critérios estabelecidos acima: (1) Os processos de democracia direta abordam questões reais e relevantes. O resultado dos processos de democracia direta pode ser vinculativo e tem um impacto real REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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sobre a política. Definir certos requisitos legais para o início de processos de democracia direta pode garantir a relevância das questões. (2) Os processos de democracia direta permitem a participação ativa de todos os interessados: podem ser concebidos de forma a permitir que os cidadãos iniciem processos de democracia direta e tomem a decisão final. (3) A participação em processos de democracia direta pode ser voluntária. (4) Os processos de democracia direta tratam de questões complexas: os processos regulam as questões políticas de uma forma de governo; eles são derivados de seu contexto social. As sociedades modernas, por definição, são de natureza complexa e, por essa razão, os processos de democracia direta podem ser assumidos para tratar questões complexas. (5) Os processos de democracia direta são auto reflexivos e auto referenciais: podem ser projetados de tal maneira que eles mesmos possam se tornar o objeto de um processo de democracia direta. Este é o caso, em particular, quando todas as questões constitucionais, incluindo a regulação formal dos processos de democracia direta, estão sujeitas a processos de democracia direta. (6) Os processos de democracia direta podem ser aplicados regularmente: por causa de sua natureza dinâmica, as sociedades modernas nunca carecem de questões complexas a serem regulamentadas coletivamente. Ao projetar os requisitos legais de tal forma que obstáculos insuperáveis não impeçam o início de processos de democracia direta, pode-se esperar um número adequado de processos de democracia direta.

Processos de democracia direta nas teorias da democracia deliberativa Os processos de democracia direta são um candidato promissor para a promoção da cultura política pós-convencional. Como o fundamento teórico desta pesquisa é a teoria da democracia deliberativa, é interessante analisar como os teóricos da democracia deliberativa conceitualizam esses processos. Em primeiro lugar, a posição de Habermas será resumida. Isto será seguido por um debate de outras posições críticas e favoráveis.

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Este debate permitirá avaliar a adequação dos processos de democracia direta dentro das teorias da democracia deliberativa. As contribuições teóricas de Habermas para os processos de democracia direta são bastante limitadas. Isso é algo surpreendente, considerando o que ele afirma como o princípio do discurso: as normas podem ser assumidas como válidas somente se todas as pessoas interessadas as aprovarem (ou pudessem as ter aprovado) em um discurso prático (1983: 103). Da mesma forma, ele afirma que as leis só podem ser legítimas se encontrarem a aprovação de todos os cidadãos num processo discursivo regulado por lei (2005: 100). No entanto, ele não deriva desses princípios um pedido de processos de democracia direta. Isto porque, na sua opinião, não há possibilidade de incluir um grande número de cidadãos nas deliberações. É por isso que ele aposta nos processos parlamentares, nos quais as deliberações podem ser realizadas com mais facilidade (1998: 210). As instituições políticas no centro dependem, no entanto, de impulsos provenientes da periferia, embora seja o procedimento institucionalizado que gera legitimidade e não os próprios cidadãos. Suas contribuições devem ser exaltadas em pequenas moedas; os cidadãos devem contribuir para a formação da vontade política sem participar na decisão final. Habermas reconhece que este conceito leva facilmente a uma relação populista entre cidadãos e detentores de cargos, em que as deliberações acabam sendo dominadas por pessoas (carismáticas) e que os programas partidários tendem a ser “comoditizados”. Habermas acredita que tal enfermidade só poderia ser curada por práticas comunicativas de autodeterminação, mas ele persegue esta ideia apenas muito debilmente. Em seus comentários sobre questões políticas específicas, Habermas desenha mais frequentemente processos de democracia direta. Ele defendeu um referendo sobre a unificação da Alemanha, especialmente porque isso teria lançado as bases para uma nova cultura política (pós-convencional) (1990: 165). Por razões semelhantes, defendeu um referendo sobre a Constituição Europeia após o fracasso do Tratado de Lisboa (2008a: 10). Em uma entrevista, ele expressou sua admiração pelo modo republicano de democracia praticado pelos cidadãos suíços, embora questionasse, diante dos desafios continentais e globais, se os processos suíços de democracia direta dispunham de uma compreensão adequada (2008b: 49). De modo geral, Habermas considera que os processos de democracia direta desempenham apenas um papel marginal, embora não os exclua por definição e esteja REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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realmente ciente de sua capacidade de contribuir positivamente para a formação de culturas políticas pós-convencionais. Há apenas alguns teóricos da democracia deliberativa que estão em total oposição aos processos de democracia direta. Wolfensberger rejeita tais mecanismos per se; ele argumenta que o povo americano não está interessado em mais participação no nível federal e que os referendos e as iniciativas do Estado se transformaram em armas de interesses especiais em vez de válvulas de segurança restantes para o último recurso (2000: 4, 279). É verdade que alguns estados americanos enfrentam situações alarmantes e alguns de seus problemas também estão relacionados a efeitos perversos de iniciativas e referendos. Seria, no entanto, metodologicamente improcedente descartar processos de democracia direta quando se olha apenas para casos negativos. Sabato, Ernst e Larson questionam processos de democracia direta à luz de grandes orçamentos em campanhas nos EUA (2001, Matthews 2005). O montante de dinheiro gasto em campanhas tem, sem dúvida, aumentado - o mesmo é verdade para as campanhas eleitorais. O dinheiro dos lobbies desafia as instituições democráticas em geral e são necessários novos modos de financiamento e transparência. Os processos de democracia direta podem ser úteis para estabelecer novas regras e disseminá-las na população em geral. Petit argumenta contra os processos de democracia direta, porque eles podem induzir sentimentos apaixonados que impedem as deliberações (2006: 95ff). Ao mesmo tempo, aprecia o contributo positivo para decisões mais legítimas e espera que estes procedimentos tenham um impacto favorável no desempenho do parlamento (2003, p. 153). Leduc enumera uma dúzia de fatores que podem reduzir a qualidade deliberativa dos processos de democracia direta; que dizem respeito principalmente à possibilidade de manipulação pelo governo, com orçamentos esmagadores para as campanhas, com formulação enganosa do escrutínio, baixo nível de informação, bem como o problema da baixa participação, o potencial de polarização, etc. Embora as considerações de Leduc não possam ser desprezadas levianamente, deve-se admitir que elas se aplicam igualmente aos processos da democracia representativa. Além disso, deve considerar-se que os potenciais problemas também dependem, em grande medida, da regulamentação específica dos processos de democracia direta, como verificaria uma comparação, por exemplo, entre a legislação californiana e a suíça (Möckli 1994). REDESCRIÇÕES – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016.


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Os teóricos da democracia deliberativa que favorecem os processos de democracia direta concordam que o ato de votar em si não pode substituir o processo deliberativo. O principal argumento para os processos de democracia direta reside no facto de que estes procedimentos ajudam a comunicar entre o centro político com as suas instituições e os seus titulares, por um lado, e a periferia e os cidadãos, por outro. Na visão de Mastronardi, os processos de democracia direta funcionam como filtros entre o centro e a periferia e capacitam os cidadãos consideravelmente, já que podem se representar em algumas questões sem qualquer intermediário (2007: 174, 258). Em oposição a Scheyli (2000: 184), Mastronardi argumenta que os processos de democracia direta não integram a periferia no centro político, porque as decisões tomadas nesses procedimentos permanecem exceção. Schneider demonstra em um estudo comparativo que os processos de democracia direta são capazes de refletir a complexidade da questão, enquanto houver um sistema de mídia versátil e uma cidadania ativa. Ela chega a concluir que a qualidade dos debates públicos se mostrou melhor no regime com processos de democracia direta como sistema puramente representativo (2003: 222ss). Certamente, esses efeitos positivos dependem de uma série de fatores, como um certo nível educacional, bem como um certo nível de segurança social e econômica. Uma vez ativadas as instituições dos processos de democracia direta e das pré-condições, é ativado um mecanismo de reforço mútuo, melhorando a forma como esses procedimentos são aplicados, o contexto educacional e socioeconômico e a cultura política da forma de governo (Mastronardi 2007: 272). Esta breve visão geral demonstra que os processos de democracia direta podem ocupar um papel mais proeminente entre as teorias da democracia deliberativa. Também mostra como vários autores presumem que esses processos contribuem para a produção da cultura política (pós-convencional), mas nenhum deles construiu um argumento completo nessa direção. Com relação à cultura política, pode-se dizer que esses processos não são apenas um complemento de outras instituições deliberativas, mas são essenciais para a geração de culturas políticas pós-convencionais.

Processos de democracia direta e seu impacto na cultura política Até agora, os processos de democracia direta não foram diferenciados. Nesta seção, aplicando o critério do grau de liberdade na participação na decisão política,

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distinguem-se quatro tipos de processos de democracia direta (listados com crescente grau de participação. Para uma discussão detalhada sobre as classificações disponíveis referir-se a Svensson 2011): - Processos de democracia direta que devem ser aplicados por lei: nem os titulares de cargos nem os cidadãos têm influência no desencadeamento desses processos; - Processos de democracia direta que podem ser iniciados pelo parlamento e / ou pelo governo: os cidadãos não têm nenhuma influência direta no desencadeamento e na formulação de tais processos. Em certos casos, a pressão pública pode ter algum impacto sobre os titulares de cargos para iniciar e / ou formular um processo de democracia direta; - Processos de democracia direta nos quais os cidadãos podem vetar decisões do parlamento e / ou do governo: os cidadãos podem decidir sobre quais assuntos eles querem votar, sem ter o poder de fazer suas próprias propostas; - Processos de democracia direta nos quais os cidadãos podem definir as próprias questões: isto dá aos cidadãos o maior grau de participação, porque eles próprios podem propor a questão sobre a qual votar. Na seção seguinte, esses quatro processos serão avaliados em termos de sua aptidão para gerar culturas políticas pós-convencionais. - Os processos de democracia direta, que podem ser iniciados pelo parlamento e/ou pelo governo, são os mais fracos em termos de geração de culturas políticas pósconvencionais. Como o início de tais processos depende totalmente da boa vontade do parlamento e/ou do governo, existe um risco considerável de que eles sejam aplicados apenas aos casos em que os mandatários esperam resultados favoráveis a eles. Isso reduz os cidadãos a meros meios de legitimar cegamente as decisões já tomadas pelo parlamento e/ou pelo governo. A contribuição para a geração da cultura política pós-convencional é ainda mais reduzida se os resultados de tais processos de democracia direta não forem vinculativos.

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- À primeira vista, os processos de democracia direta, que têm de ser aplicados por lei, não parecem ser capazes de contribuir consideravelmente para a geração da cultura política pós-convencional. Paradoxalmente, este não é o caso. A obrigação de deixar que os cidadãos decidam sobre certos assuntos (importantes) demonstra a confiança que a Constituição coloca neles. Tal obrigação mostra que, independentemente da intenção do parlamento, do governo e/ou dos cidadãos, a decisão final permanece com os cidadãos. Este regulamento é de natureza pós-convencional, uma vez que expressa a posição de que certas decisões não podem ser delegadas a ninguém e que cada indivíduo deve ser capaz ou tornar-se capaz de decidir por conta própria. A reflexividade de tais procedimentos torna-se particularmente clara quando a instituição de processos de democracia direta é objeto de um processo de democracia direta. Nesses casos, o que precisa ser decidido não é uma questão de conteúdo político, mas sim o projeto formal de processos de democracia direta. Para evitar uma contradição em si, tais meta-processos devem ser, por lei, objeto de processos de democracia direta. - Os processos de democracia direta, nos quais os cidadãos podem vetar as decisões do parlamento e/ou do governo, podem gerar ainda mais culturas políticas pósconvencionais, porque aqui os cidadãos podem decidir ativamente quando intervir e quando vetar as decisões dos governos. Quanto mais as decisões do parlamento e/ou do governo estiverem sujeitas a um veto popular potencial, mais a igualdade entre cidadãos e detentores de cargos é afirmada. O fato de os cidadãos poderem vetar uma decisão tomada pelos detentores de cargos obriga estes últimos a considerar constantemente a opinião pública para evitar um possível veto. É por isso que os processos de democracia direta que permitem aos cidadãos vetar as decisões dos detentores de cargos são particularmente

capazes

de

gerar

culturas

políticas

pós-convencionais.

Tais

procedimentos demonstram aos cidadãos que seus representantes não são líderes a serem seguidos em modos pré-convencionais ou convencionais. Eles implicam a total responsabilidade dos cidadãos pelo seu destino político e os motivam a alcançar os estágios pós-convencionais. Por razões óbvias, o impacto da geração de culturas políticas pós-convencionais é reduzido se os resultados de tais processos de democracia direta não forem vinculantes.

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- Os processos de democracia direta, nos quais os cidadãos podem definir as questões por si mesmos, são os mais fortes para gerar culturas políticas pósconvencionais. Este tipo permite aos cidadãos não só desencadearem um processo de democracia direta, mas também definir a questão a ser votada. Os cidadãos tornam-se ativos em questões específicas e podem ter certeza de ter a palavra final sobre eles. Com este instrumento à mão, os cidadãos são motivados a refletir sobre as realidades sociais em geral e a listarem as questões que lhes parecerem mais relevantes nos processos de democracia direta. Este tipo de envolvimento político é particularmente favorável à geração da cultura política pós-convencional em uma grande escala (social). O fato de que alguns tipos contribuem menos para a geração de culturas políticas pós-convencionais não implica que elas devem ser excluídas do menu constitucional. Pelo contrário, cada processo tem seus méritos; diferentes tipos de processos de democracia direta abordam diferentes tipos de questões. Em última instância, os cidadãos de um Estado devem adaptar as instituições da democracia direta às suas necessidades específicas, recorrendo novamente aos processos de democracia direta.

Conclusão Reativar o diálogo entre Habermas e Kohlberg permitiu a formulação de seis estágios coletivos da cultura política. Com isso, está disponível toda a gama de culturas políticas: da cultura política do medo, típica dos regimes autoritários, à cultura política do cosmopolitismo, a visão normativa de uma ordem global democratizada. As diferentes culturas políticas são conceituadas como etapas de um processo de aprendizagem individual e coletiva. Revisitar os métodos pedagógicos de Kohlberg para promover as capacidades cognitivas individuais no raciocínio moral e a cultura moral de um coletivo tem lançado uma nova luz sobre os processos de democracia direta. Tornou-se claro que essas instituições favorecem a geração de culturas políticas pós-convencionais, envolvendo todos os cidadãos no processo de tomada de decisão. Os processos de democracia direta representam uma oportunidade de aprendizagem única para o cidadão, que, ao decidir sobre questões específicas, tem de assumir uma responsabilidade diferente de quando elege um representante. Não se argumenta que os processos de democracia

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direta possam substituir os processos decisórios parlamentares; eles são vistos como complementos que elevam o cidadão a uma posição em que ele pode ou deve ter sua opinião em questões particularmente importantes. Em última análise, nosso argumento restringe a diferença entre teorias deliberativas e liberais da democracia. Concordamos que a deliberação é crucial para a geração de decisões razoáveis ou pelo menos justas; ao mesmo tempo, sustentamos que a participação na decisão final é um importante fator motivacional para o sucesso do processo de aprendizagem desejado.

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1 - Cultura moral da autoridade

Apenas necessidade rudimentar de identidades coletivas. No geral, elas são o resultado de coerção autoritária.

Os aspectos pragmáticos são percebidos como materialistas e imutáveis. Eles representam restrições ou perigos.

Nenhum equilíbrio de interesses é previsto. Somente os interesses da autoridade prevalecem.

Cultura política do medo

2 - Cultura moral de negociações e relacionamentos

As identidades ainda não são prioridade. Eles são percebidos como subprodutos das relações comerciais.

Os aspectos pragmáticos continuam a ser percebidos como materialistas e imutáveis. No entanto, eles oferecem a possibilidade de ganhar vantagem sobre os outros.

Os interesses podem ser balanceados, contanto que todos queiram.

Cultura política do egoísmo

3 - Cultura moral do “estar em boas mãos”

Identidades coletivas são apreciadas e engendram um sentimento familiar. Para com as pessoas de fora, a comunidade assume a supremacia.

Aspectos pragmáticos não são mais percebidos como imutáveis. Com a ajuda da comunidade, certos aspectos pragmáticos podem ser atingidos positivamente.

O balanceamento de interesses em detrimento do interesse dos indivíduos é aceitável se beneficia a comunidade.

Cultura política da comunidade

4 - Cultura moral da estabilização e identificação

A importância de identidades coletivas cresce ainda mais. Elas se referem a locais e eventos específicos e são evocadas por rituais e símbolos; parecem ser de natureza materialista.

Aspectos pragmáticos aparecem em categorias abstratas. O grupo pode redefini-las coletivamente.

Conforme categorias mais abstratas se fazem disponíveis, os interesses podem ser balanceados de maneira mais flexível e assíncrona.

Cultura política das tradições

5 – Cultura moral do estado-nação constitucional

Identidades coletivas são baseadas em princípios abstratos que permitem a diversidade. Os direitos civis são uma importante parte da identidade coletiva.

O crescimento do horizonte temporal inclui soluções sustentáveis.

Renúncias não são percebidas como tais. Minorias gozam de especial atenção.

Cultura política do estado-nação constitucional

6 – Cultura moral da universalização

A identidade (coletiva) é vista como o resultado do processo comunicativo.

Os aspectos pragmáticos percebidos em ciclos.

Os interesses balanceados são, enquanto necessários, auto evidentes.

são

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Cultura política do cosmopolitismo


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RESENHA BOÉCIO. A Consolação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2016. Thiago Ricardo de Mattos

A Consolação da Filosofia foi escrita no século VI. Anício Mânlio Torquato Severino Boécio era um nobre romano. Fora chamado pelo rei da Itália, o godo Teodorico, a assumir a função de “Mestre dos Ofícios”. Mantendo as propriedades das famílias tradicionais da nobreza romana, e trazendo os filhos mais estudados delas para serem colaboradores do seu governo, Teodorico esperava manter uma boa relação com Bizâncio, pertencente ao Império Romano. Quando jovem, Boécio fora iniciado na filosofia grega. Chegou a estudar em Alexandria, como outros jovens com as mesmas condições dele. Agora preocupava-se com o desenvolvimento da cultura romana, em tempos de decadência do Império. A moral, a poesia e o direito romanos estavam bem desenvolvidos. Mas Boécio sentia que eles poderiam se enriquecer caso entrassem em contato com o exercício espiritual próprio do grego: a dialética. Boécio traduziu Platão e Aristóteles para a língua latina. A dialética então viria a ser fundamental ao espírito dos juristas e dos homens de Estado e da Igreja, romanos. Além disso, a especulação metafísica acerca do mundo determinaria a teologia e a filosofia medievais. No ano 524, o senador romano Albino é acusado de conspirar contra Teodorico. Boécio apresenta uma defesa a Albino, no Senado. Mas Boécio acaba incluído na acusação de conspiração. Em um julgamento sem que estivesse presente, tirando-lhe a chance de dizer alguma palavra em defesa própria, Boécio é condenado à pena capital. Na prisão, passa por atrozes torturas. Ele lamentava o próprio destino porque, além de ser inocente da acusação que sofrera, sempre baseara sua atuação pública na defesa da justiça. Era um homem de educação clássica, e que agora estava sem seus bens, sem sua honra, sozinho e diante da morte.

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Estas perdas, contudo, revelar-se-ão ilusórias: a biblioteca que tivera estava gravada em seu espírito, e o que ele tinha de fazer era voltar a escutar essas vozes que viviam nele; e o ciclo de ganho e perda da honra, assim como de outros bens terrenos, terá sua face revelada para ele. A Consolação foi composta no sofrimento da prisão, através de lembranças de poetas latinos e de poetas e filósofos gregos. A memória, aqui, ganha um sentido passivo, o de memória-receptáculo, e também um sentido positivo, o de memória-viagem da alma de volta ao seu lugar natal. A Consolação começa com a visita da Filosofia a Boécio, na prisão. As Musas estavam com ele, inspirando-o a poemas tristes sobre sua antiga juventude feliz e sua chegada velhice desgraçada pela Fortuna. A Filosofia as expulsa, e inicia o trabalho de resgate e cuidado a um discípulo em sofrimento. A escrita de Boécio compreende ele mesmo, alguém em desespero e que se põe a questionar a justiça na vida na terra, e a Filosofia, que trabalha para colocar o raciocínio dele de volta ao caminho da suprema verdade. É um processo de rememoração, não como um “saque” de noções que um dia foram “depositadas”, mas de palavras que serão “palavras de vida”. Estas palavras são veículos que afastam a alma da tristeza, da fraqueza, da dúvida e levam-na a um portoseguro. A distinção, contudo, entre “depósito” e “veículo” não é segura, pois se Boécio pôde ascender, foi por possuir recursos interiores prontos para isso. Os textos aprendidos durante a mocidade despertam para seu sentido à medida em que a experiência de adulto os reconhece. A direção de consciência que a Filosofia impõe é firme, jamais fria. Obriga Boécio a expulsar de si o passivo biográfico, as dores de suas desgraças, para que ele conclua, do próprio destino, a questão geral e central. A Filosofia, às vezes, tem o tamanho humano. Às vezes toca o céu. A Filosofia encontra-o com olhos lacrimosos, e deplora aquela perturbação de alma. Ele era livre, percorria os etéreos caminhos a céu aberto. Agora dirige-se às delícias, que se tornaram trevas. Ele possuía curiosidade e encontrava explicações sobre a natureza e o universo. Agora o peso do seu corpo o põe prostrado, com os olhos presos ao chão. Ela coloca a mão no peito dele, e diagnostica a letargia, doença do espírito logrado. Quando a reconhece, Boécio encolhese, pergunta por que ela se apresenta no exílio dele. Acaso a Filosofia não teme também ser condenada? Ela jamais abandonaria um discípulo. E não é a primeira vez que a Sabedoria confronta as más ações dos homens. Sócrates venceu uma morte injusta, sendo conduzido por Ela à imortalidade. Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016


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Boécio diz ter aprendido com a Filosofia, desvendado a ciência das coisas humanas e divinas. Acreditou no dito de Platão, de que felizes eram os estados governados por sábios, e decidiu aplicar esses ensinamentos à vida política. A fim de realizar o bem geral, entrou em discordância com os ímprobos. Foi acusado e condenado, sem ter feito nada de ruim. E não conheceu qualquer prêmio por suas boas ações. Com semblante tranquilo a Filosofia escutou essas mágoas. Disse-lhe que ele não fora expulso da terra pátria, mas dela baniu-se a si mesmo. Esqueceu-se daquele mesmo dito de Platão, quando começou a considerar que o governo das coisas ocorre pela opinião da maioria. Há uma lei que proíbe a expulsão de quem escolhe viver em uma cidade. Mas ele se extraviou. Agora pergunta por que a terra não é governada como no céu. A cólera lhe perturba a alma e lhe turva a razão. A Filosofia procede, então, na avaliação da mente de Boécio. Ele aceita que o universo seja governado por uma inteligência, mas considera que hajam homens excluídos dela. Para a Filosofia, aquela primeira asserção já é uma faísca, da qual poderá ser feita uma chama. O que é você? -, ela pergunta a ele. Animal racional e mortal? Não sabes que é mais alguma coisa? Esqueceu-se da finalidade do homem. E também da finalidade do universo. Julgas que a Fortuna siga um curso próprio. E que, por você ter perdido os bens terrenos, ela mudou a teu respeito. Ela não mudou, pois sempre permanece fiel à própria inconstância. Se, em uma vida, ela atribui bens a alguém, em um momento ela os retira. É neste momento em que os homens a julgam má. E ela também os faz passar da desgraça à glória. O homem nasce nu e sem nada, e é a Fortuna quem o acolhe. Ele não é o dono do que tem, e sim a Fortuna. O homem ignora a maneira dela de agir. Quando perde as coisas, a amaldiçoa, quando deveria lhe ser grato. Boécio diz que as palavras da Filosofia são doces, mas tão logo elas terminam, a melancolia volta para ele. A Filosofia responde que aqueles são remédios suaves, preparatórios para outros, mais profundos. As alegrias dele passaram, mas o mesmo ocorrerá com as dores que ele está sentindo. Que ele não se lamente. Existe homem cuja felicidade seja perfeita? Essa pátria a que ele, Boécio, chama infelicidade, é a de muitos. Felicidade ou infelicidade, independem da Fortuna. Felicidade é o bem de uma natureza guiada pela razão. É efêmera a felicidade que se experimenta por meio dos bens da Fortuna. O sucesso material dado por ela cessa com a morte. E a alma não é mortal. Para

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quem tem vida e razão, objetos sem movimento e sopro vital não podem ser tão interessantes. Um ser criado à imagem de Deus não pode dobrar-se a objetos sem vida! O criador quis que os homens se colocassem acima das coisas da terra. Eles, porém, aviltam-se, colocando-se abaixo delas. O homem é superior quando usa as faculdades racionais, e de baixa condição quando não as utiliza. Ele deixa de ser quem é. Os bens da terra produzem preocupação, quanto mais se os têm. E deixam de dar preocupação quando se os vê como eles são, sem importância, e se se contenta com o que a Natureza dá. A respeito de honras, virtudes não se adquirem com elas. Se pessoas más têm honras, este bem nada vale. Agora, se pessoas honestas são honradas, o valor está todo na honestidade, não nas honras. A respeito de poder, que outro poder um homem pode ter sobre o outro, que não sobre o corpo e os bens dele? Não é possível dominar um espírito livre e firme. A natureza de cada coisa produz o que lhe é próprio, e não se mistura com o que lhe é contrário: a riqueza jamais satisfaz o avarento; o poder não faz senhor de si aquele que se entrega à busca apaixonada pelas coisas. A Fortuna nada pode dar que mereça ser buscado. A alma, quando atinge os céus, despreza o que antes lhe causava preocupação. Buscar a fama, confiando nas opiniões dos muitos a seu respeito, é esquecer-se do tamanho diminuto da terra e da população humana. A terra e seus bens são pequenos e desimportantes. E o homem é naturalmente grande e importante. A Fortuna, quando agracia, ilude os homens a respeito da natureza dela e da natureza deles próprios. Engana o homem a respeito da própria estatura e a dos outros. Quando a Fortuna retira os bens, revela seu caráter instável, e libera a alma humana, fazendo-a ver os verdadeiros valores. A esta altura, Boécio já se diz forte e pronto aos remédios mais profundos. Então a Fortuna lhe diz: Tudo o que se busca na terra, busca-se com vistas à Felicidade. Mas um bem que se adquire na terra, como a riqueza, o poder ou a fama, ainda deixa o desejo de outros bens, como glória ou o prazer. Eles não trazem, portanto, a Felicidade. O bem supremo, que inclui todos os da terra, leva a este bem verdadeiro e ao estado de perfeição, que nada tem a desejar. A cegueira do homem acerca de sua própria natureza, e também da falsidade das promessas de felicidade pelos bens da terra, fazemno desconsiderar que sua inclinação natural leva ao verdadeiro bem. O céu é admirável não por suas propriedades, mas pela razão que o move. Os homens dividem o que é por

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natureza simples e indivisível. A cada um dos perfeitos poder, honra, celebridade, prazer e riqueza nada falta, nem qualquer um dos outros elementos. Ou eles não seriam perfeitos. Estes bens têm, portanto, a mesma substância. O homem busca cada uma daquelas coisas como partes de um todo. Mas a totalidade não se divide em partes. Deste modo, os homens não obtêm nem parte, nem totalidade. Na criação do universo, o espírito divide-se em duas partes: ambas traçam um duplo circuito de enorme extensão e, ao retornarem ao ponto de onde partiram, voltam-se sobre si mesmas. Todos os pontos do espaço são, então, explorados, e a perfeição dos seres celestes e das almas é estabelecida. Deus é a origem, o condutor e a chegada. Nesta oração, a Filosofia pede que lhe seja concedido aproximar-se do trono Dele, e que a sua alma possa visitar a fonte do bem. Se os bens terrenos são imperfeitos, então existe aquilo que é perfeito. Deus contém o supremo bem. O supremo bem só pode ser único, pois se houvesse dois, um faltaria ao outro, impedindo cada um deles de ser perfeito. Pela aquisição da felicidade, o homem se torna divino. E pela participação no divino, o homem se torna feliz. Quanto aos bens da terra, a essência de tudo o que é desejável é o bem. Os diferentes bens que existem não diferem entre si, pois referem-se a um Bem que está acima deles. O bem absoluto existe porque todos os bens reúnem-se numa mesma substância. Tudo o que existe, subsiste enquanto é uno, e morre quando se desagrega. Cada ser vivo resulta da união entre uma alma e um corpo. O universo, composto de elementos díspares, é mantido coeso por um ser único. Um ser que permanece ele mesmo imutável, enquanto governa a regularidade dos movimentos do que existe. Deus governa tudo através do bem, bem este que é da natureza de tudo buscar. Mas Boécio levanta a palavra para dizer que, embora exista um ser bom que tudo governa, o mal existe, o vício prospera, enquanto a virtude é levada ao suplício. A perturbação desta alma é assim respondida: o bem e o mal são opostos. O bem é poderoso, e o mal é destituído de poder. Para se realizar uma ação, o homem precisa de vontade e de capacidade. Se faltar vontade, a capacidade empreende nada. Sem capacidade, a vontade também de nada adianta. Todos os homens, bons ou maus, procuram o bem. O homem bom o realiza pelo exercício da sua função natural, uma virtude. O homem mau, incapaz de exercer sua função natural, recorre a um meio não natural, mesmo que seja para não realizar e, sim, parecer que realizou. A natureza corrompida deste o impede de realizar sua função Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016


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natural. Por isso ele é fraco. E, ao renunciar àquilo a que todo ser tende, que é o bem, o homem mau deixa de ser. Um cadáver é um homem morto, mas não um homem. Os maus conservam a aparência de homens porque um dia já o foram. O ser, para ser, precisa conservar a boa ordenação da alma e preservar a própria natureza. A capacidade de realizar uma boa ação é desejável. Realizar o mal não pode ser desejável. Se todo poder é desejável, então a possibilidade de fazer o mal não é um poder. Apenas as boas pessoas são felizes. São partícipes da divindade e da felicidade suprema. O sábio não duvida que o mau será castigado. A vileza é o próprio castigo dele. Ele olha apenas o chão, e não pode se erguer da natureza de besta. A maldade rebaixa aquém do nível humano. Alguém que se encoleriza com facilidade é um leão. O que se diz do burro, senão que é um ser humano desprovido de inteligência e que, portanto, não é mais um ser humano? Somente a bondade pode elevar o homem acima da natureza humana, alçando-o à condição divina. Boécio ainda se lamenta que os maus não sejam castigados. A Filosofia diz que eles jamais escapam do castigo, visto que morrem. E caso não tenham sido castigados antes, terão vivido infelizes, pois o castigo seria um bem que lhes teria sido acrescentado. Ao mau faltam todos os bens, por isso ele é infeliz, e necessariamente é mais infeliz do que o mau que recebeu o castigo. Caso morram sem receber o castigo, a iniquidade piorará o seu mal e infelicidade. Levante seus olhos ao céu, tome como modelo o que há de melhor, e você não precisará de juiz que te recompense. E não olhe para o malfeitor com ódio, pois ele é cego, doente. Veja a punição dele como uma oportunidade que ele recebe para abandonar os próprios vícios. Tudo o que vem ao mundo é sujeito à mudança. Estável é a inteligência divina, que dá a causa, a ordem e a forma ao terrestre. Indivisível, a inteligência fixa uma regra que inclui tudo: a Providência. O Destino, por sua vez, reparte cada coisa individualmente, no espaço e no tempo. A Providência fixa o que deve ser feito. O Destino está a serviço dela, e organiza a sua ocorrência. Ele participa da Providência, mas como um ponto num círculo, que está distante do centro: sua razão passa ao largo da inteligência que o governa. O que está mais próximo do centro, do divino indivisível e imóvel, escapa ao Destino. A Providência produz um encadeamento imutável de causas, que rege as criaturas. De outro modo, elas estariam jogadas ao acaso. As criaturas tendem ao bem, e se fazem o mal é por ignorância.

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A bondade é a saúde da alma. Deus preserva o bom e afasta o mal, é médico das almas. Os homens não captam a intimidade das almas dos homens, têm juízos discordantes acerca de quem é bom ou mau. O que contraria Boécio, que maus sejam premiados, é uma expressão da ordem que convém ao universo. A Providência envia bens e males aos homens. Ela corta felicidades muito prolongadas, para que a alma não se corrompa. Quando o homem perde os bens terrenos, a alma dele pode exercitar a virtude da paciência. Coisas agradáveis dadas a alguém mau ensina aos bons a forma como devem considerar estas formas de prosperidade. Os maus estão em desacordo com outros maus, e também consigo mesmos. A consciência deles é torturada pelas más ações que eles cometem. Um homem mau torna bom outro homem mau, pois este, ao ver o mal de que sofre o primeiro, não quer se assemelhar a ele. Passa a odiar o mal e a buscar a virtude. Só a Divindade é capaz de transformar o mal em bem. Nada do que ocorre é por acaso, pois acaso significa que algo ocorreu sem ter uma causa, que ele surgiu do nada, o que é impossível. Acaso é um acontecimento inesperado, resultado de uma soma de circunstâncias, e que foi fixado pela Providência. O homem possui livre arbítrio, usa seu juízo para decidir o que buscar e o que evitar. As almas humanas são livres quando contemplam a inteligência divina. São menos livres quando se mantêm ao nível do seu corpo, e escravas na servidão aos vícios da carne. Não há contradição entre livre-arbítrio e Providência. Tudo o que ocorrerá já foi previsto, mas não ocorrerá porque foi previsto e, sim, foi previsto porque ocorrerá. O fato de se conhecer os fatos futuros não implica na necessidade deles. A realização do que depende da vontade não é dirigida por um termo pré-fixado. O homem tem liberdade, mas o raciocínio humano não atinge a presciência divina. O que é conhecido não o é pela qualidade do que é conhecido, mas pela capacidade dos que procuram conhecer. O sentido percebe a matéria. As conchas do mar estão neste nível. A imaginação percebe a forma. Os animais que se movem são capazes dela. A razão ultrapassa a forma e concebe a ideia de espécie. Ela é com o gênero humano. A inteligência é a mais elevada de todas, e apreende a ideia de forma absoluta. As faculdades superiores compreendem as inferiores e tudo o que elas percebem. E as faculdades inferiores não se aproximam das superiores. A inteligência não depende dos sentidos ou

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da razão, pois capta tudo com uma única visão do espírito. Dizer que o homem é um “animal bípede racional”, é dizer que ele tem a capacidade de julgar suas sensações físicas, sua alma não é passiva. Mas se ele tem a razão, que é partícipe da inteligência, deve considerar que, assim como a imaginação cede à razão, a razão deve ceder à inteligência. A razão deve elevar-se, para ver o que não é capaz de ver por conta própria. Qual é a natureza da substância divina? Deus é eterno. A eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada. Temporal é todo o ser que vive o presente no tempo, vem do passado e vai para o futuro. E ele não consegue abarcar, ao mesmo tempo, toda a extensão da própria vida. Escapa-lhe o passado, não antecipa o futuro. Apenas pode viver o momento presente. Ele está sujeito à lei do tempo. O ser eterno apreende de uma vez a totalidade de uma vida sem limites. Ele está sempre presente, mas em plena posse de si mesmo, pois o seu presente abarca todo o tempo ilimitado. O tempo não possui a plenitude Dele, pois não cessa de passar de uma situação para a outra. O tempo ata-se ao presente fugidio, não pode abarcar a plenitude da permanência. Deus é eterno, sempre presente, seu saber ultrapassa o movimento do tempo. Considera passado e futuro como se estivessem se desenrolando. Por isso a presciência divina não trata do futuro, mas do que é iminente. É previdência, não previsão. É por isso que não impede a existência do livre-arbítrio dos homens, pois o que eles fazem gera uma consequência necessária imediata, não futura. A presciência de Deus, quando vê como estando prestes a ocorrer o que ao homem contaria como o futuro, é previdência. O homem é que cometeu o ato, mas Deus o viu antes. A natureza do homem não torna necessário que ele realize uma ação específica. Morrer, sim, é uma necessidade absoluta, que sujeita os homens. Algumas coisas ocorrem por necessidade, outras por vontade. A Consolação termina neste ponto. O prefácio do livro diz que a sessão de tortura seguinte, à qual o prisioneiro será submetido, ocorrera logo depois desta escrita. As tábulas e o estilete foram deixados num canto, pelo prisioneiro. E ele foi para o seu suplício, que talvez tenha sido o último. Este livro é um diálogo ao estilo Platônico. A dialética influenciará a cultura latina, e dará novo fôlego à cultura grega antiga. E o platonismo mostra-se como um fundamento para o cristianismo. Mas o que temos aqui é um homem levando cada porção do seu sofrimento

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ao trabalho do espírito. O suplício inicialmente o derruba, mas não derrota. Ele termina por atingir o estado mais alto que um homem pode atingir.

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